TERESA CASTRO NUNES, "Supostamente..."

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A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli TERESA CASTRO NUNES (1956-) Teresa Castro Nunes ~ E.S.A.A.A.

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Teresa Castro Nunes, "Supostamente...", in Conto e Poesia ~ leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli

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A.A. ~ 2010-2011

Prof.ª eli

TERESA CASTRO NUNES

(1956-)

Imagem - aqui

Teresa Castro Nunes ~ E.S.A.A.A.

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SUPOSTAMENTE...

- …vá, Zé Maria, sei que estás em casa. São 9horas, nunca sairias tão

cedo! Atende o telefone… Pronto, não queres atender… como queiras,

mas o Renato vai voltar a pressionar-te. E cá estou eu para ouvir as suas

descomposturas e depois, as tuas desculpas. Cá estou eu, no meio disto

tudo, sem ter culpa de nada…Brr!... Quando é que fico rica para deixar de

vos aturar?... Oh homem, despacha-me esse livro, não entregaste sequer

um esboço… Não queres atender? Olha, adeus…

Acordara ao som da estridente campainha do telefone e ficara a ouvir,

sem responder, sem se mexer, a zangada doçura de Madalena.

Desgrenhado, após a curta noite de três horas de sono, com uma

barba de cinco dias, olhou o quarto em tudo condizente com o seu

aspecto – roupas, sapatos, cadeira, almofadas, teclado do computador,

canecas com restos de café, pratos com pedaços esquecidos e copos

sujos de líquidos diversos, tudo, junto à secretária, sobre a secretária,

debaixo da secretária, obedecia à estranha ordem caótica que alongava a

amálgama de lençóis, cobertores e almofadas onde Zé Maria permanecia

numa quietude nervosa que só os olhos traíam.

Teimou no remanso durante minutos esquecidos, abandonando-se a

uma preguiça que sabia estar-lhe, por ora, interdita. Sabia-lhe bem,

como fruto proibido, esses minutos mornos, de olhos fixos num tecto

branco, vazio.

Tal como vazia, sentia toda a sua capacidade criativa.

Autor de cinco romances bem aceites pela crítica e pelo público,

conhecido pelos enredos geniais, pela escrita mágica e fluente, matizada

de humor, o seu editor pressionava-o, agora, a apresentar, em curto

espaço de tempo, nova obra – os seus livros vendiam-se bem! Depois

dessa reunião, nessa tarde distante, deambulara pela cidade, sentara-se

em dois ou três cafés, desafiando a curiosidade para esses pequenos

pormenores do quotidiano que se desfaziam, frente ao computador, em

enredos fabulosos, como se de um sortilégio constante se tratasse.

Passou-se a tarde, passou-se o dia, e outro, e outros sucederam-se.

Liame quebrado, sentava-se com um desespero frenético, teclado nos

joelhos, implorando, a essas letras, o favor de se organizarem em mote

singular.

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Suspirava fundo com arremessos de mau génio, levantava-se, ia

comprar o jornal que não lia, para logo o abandonar, raivosamente

atirado para longe, como se desses textos lhe viesse uma imensa

maldição. Sentava-se, então, olhando vagamente o prédio fronteiro,

numa desatenção abatida.

E Madalena, a secretária de Renato, o editor, era cada vez mais

frequente nas suas chamadas implorativas: pelo menos, um esquema,

um esboço... Zé Maria respondia num mutismo apudorado. As ideias não

surgiam. Também, nunca gostara de escrever sob aquela pressão, mas

isto era a primeira vez que lhe sucedia, “Óptimo, vende-se bem”, tudo

fruto desse dom que desde sempre lhe enchera os dias e as páginas.

“Óptimo, vende-se bem” fazia-o, agora, sentir-se coagido...E outro

telefonema, nesta manhã…

Suspirou, sentou-se na borda da cama, esticou o pé, ossudo e

descalço, para um intrépido raio de sol que escoava do cortinado

entreaberto. Na véspera chovera, dia tristonho que dera espaço a noite

estrelada. Abatido, levantou-se, afastou os cortinados. Tossicou. Perdeu-

se no continuado olhar indefinido, primeiro, para a rua clara e pacata, em

baixo, onde poucos circulavam, depois subindo, lentamente, para os

andares em frente, onde, como de costume, do lado direito, algumas

personagens circulavam, do lado esquerdo ainda apagado àquela hora.

Sempre que o fazia, vinha-lhe à memória “A Janela Indiscreta”. Sorriu,

pálido, ao sol e à ideia, deixando-se vergar sob o peso da tristura na

cadeira de realizador.

Maquinalmente, estendeu a mão para um velho pacote de bolachas

aberto ao lado do computador, com a outra agarrou, sem ver, um copo

meio cheio de um café frio e com alguns dias de vida, que levou à boca,

para logo fazer uma tremenda careta e o despejar, com veemência e

repugnância, na terra de um pequeno vaso onde um acanhado e

agressivo cacto verdejava. Tossiu e procurou consolo na bolacha, já

empapada de humidade. Meia mordida, deixou-a cair, desconfortado, no

cesto dos papéis.

Apoiou o cotovelo no braço da cadeira, segurou o queixo, reteve os

olhos no monitor apagado. Mordeu, com força, o lábio inferior, como se

quisesse penalizar-se por aquela estranha ausência de alento, e a mão

sentiu a aspereza do seu desleixo ao errar pela cara desalegre, tão fora

do seu habitual. A exigência imediata de um bom duche inundou-o.

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No caminho para a cozinha, juntou num tabuleiro alguns dos pratos,

copos, chávenas, guardanapos amarrotados, com que, nos últimos dias,

adornara o ambiente. Pousou-o junto ao lava-louça já cheio. Acendeu o

esquentador. Depois, descobriu o caminho para a máquina do café. Abriu

a lata daquele miraculoso pó castanho, o último. Preparou a água. Ligou a

máquina. Não tardou que aquele cheiro reconfortante enchesse o espaço

de energia. Recolheu os vários pedaços de lixo num saco, alinhou as

peças de louça possíveis dentro da cuba, regou-as com detergente, abriu

a água quente e, logo, um monte branco de múltiplas bolas cheias de

pequeníssimos arco-íris cresceu à sua frente.

Ficou a olhá-las, numa expectativa infantil, a mesma com que sempre

esquadrinhava o céu, em dias de chuva ensolarada, para se maravilhar

com esse arco de sete cores, num perpétuo fascínio sem idade... “Arco da

Velha, vai-te daí...” Ainda carregava em si a vontade imensa de se

agarrar à pontinha do vermelho, subir para o dorso daquele trague-

chuvas e cavalgar por esse país de cores e fantásticas irrealidades, na

demanda do tal pote guardado pelo anãozinho feiticeiro. E continuava a

sonhá-la, rica em aventuras e longas batalhas com alvos corcéis alados,

em castelos de nuvens sedosas e heróis fartamente coloridos. Porque

cada cor tinha o seu mundo, o seu mistério. Cada cor encerrava uma vida

mágica, refém de um vilão, sustentada pela esperança de um resgate

longínquo em alma de criança...

E se escrevesse uma história infantil? Nunca tinha tentado.

Continuavam-lhe na lembrança aqueles vagos façanhosos da sua

meninice: monstros, dragões, bruxas, fadas... enredos alucinantes e

divertidos. Tudo se misturava numa amálgama de recordações,

conversas, brincadeiras, numa doce alucinação, que dali o afastou,

trauteando uma menos antiga canção pop “When I was small and

Christmas trees were tall…”, com ecos de suave cheiro a canela ocultada

em laços e papéis matizados pela intensa alegria branca que enchia o

centenário casarão de profundos recantos habitados por resplandecentes

fantasias.

Na grande casa dourada da sua meninice, cada esquina, cada nicho

encerrava as aventuras solitárias da inocente imaginação onde

maravilhosos anõezinhos protegiam preciosas princesas de terríveis

dragões que, a mando de poderosos feiticeiros, lutavam com valentes

guerreiros de alazões empenhados em renhidos finais felizes.

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Sonhos tecidos com as páginas dos inestimáveis livros antigos, onde

todas as suas quimeras se desenvolveram, palmo a palmo, confundidas

as verdades e as fantasias, construídas letra a letra em alvos papéis,

entrelaçadas com as constantes ausências de uma mãe carinhosa, de um

pai falador, numa constante partida para longínquos paradeiros. Sonhos

que permitiam o deleite solitário de menino único numa adulta família. E

que parecia querer continuar menino...

E porque não a história infantil? O gozo imenso de um devaneio sem

limites vivificou-o. A aparência de novo mote trouxe-lhe o alento do

assobio perdido enquanto vasculhava lembretes em busca de

preferências.

A água quente a jorros sobre o corpo envolveu-o, ainda mais, nas

brumas de fantasias remotas, numa divertida brincadeira, dissolvendo

heróis de espuma em rios de imaginação onde navegavam as vozes e as

loucuras do passado, apetites de criança entorpecidos, em arcas perdidas,

num sótão vago e longínquo. Fluíam memórias esquecidas do tempo em

que o mundo é tão perfeito, tão à medida da felicidade...

Mas, agora, já não eram as bem comportadas histórias de final

aventurado. Uma traquinice pueril fê-lo perverso. Agradava-lhe a

vertigem saborosa do inesperado. Desenfadava-se, satisfeita a

necessidade imperiosa de inverter bruscamente os destinos.

Trocava personagens, urdia tramas únicos, dos papéis fazia uma

embrulhada. Os alvos corcéis rebelavam-se, os valentes cavaleiros

perdiam-se em caminhos sem sinalização, as doces princesas eram

maquiavélicas bruxas disfarçadas, as armas, apetitosas gulodices

derretidas pelo calor do bafo dos inofensivos dragões que, pacatamente,

dormiam em dosséis de cetim azul...

E a obra já tinha o nome “ A Rebelião dos Façanhudos”... Ria-se!

Envolveu-se na toalha num reconforto recente. Olhou-se ao espelho e

aquele rosto distraído e maltratado fê-lo soltar uma careta e uma

gargalhada, apetecia-lhe, agora, ser o palhaço de tardes quentes de circo

de verão. Pintou-se de espuma, com a lâmina traçou figuras surrealistas,

numa criancice exorcizante. Esquecera o livro por escrever, os temas e as

editoras. Respirava fundo e sorria ao outro eu que lhe retribuía grato pela

libertação.

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O aroma a café fresco, acabado de fazer, arrebatou-o para a cozinha,

com a gula de rapazinho. Organizou um tabuleiro que o convidava a uma

agradável quietude de parcimonioso festim.

Foi sentar-se frente ao computador, saboreando cada pedaço daquele

momento com uma alegria reencontrada. Abriu a janela. Sentiu um ar

fresco de Primavera reluzente. Ruídos e vozes trouxeram-lhe a vida de

outras casas.

Semicerrou os olhos, perdendo-se no horizonte limitado que a

pequena rua lhe oferecia, simpática e luminosa, cheia de rápidos bons-

dias, de minúsculas falas, de parcos odores e alguns prédios com meia

centena de anos.

Suspirou profundamente e deixou-se ficar, sem rumo, confundido, na

sua velha cadeira de realizador.

Várias personagens vizinhas, e já vagamente familiares, foram-lhe

invadindo as retinas, chamando-o para a pacatez de outras moradas,

amarrando-o a uma curiosidade familiar. Debaixo das pálpebras

entreabertas, aqueles olhos azulados seguiam, errantes, com sedução

hipnótica, as suas costumadas figuras indefinidas que pareciam menear-

se nos dois apartamentos dianteiros, o direito e o esquerdo, a casa de

família e o escritório de alguma pequena empresa.

Nunca as atentara de verdade, apenas lhes dedicava uns distraídos

reparos em curtas pausas. De um lado, a esquecida e atarefada mãe de

duas crianças, uma de colo, outra de escola, do outro, a aprimorada

secretária.

Deteve-se, numa tentativa de continuar aquele breve reencontro com

sabor a memórias felizes, na casa de brinquedos espalhados, de corridas,

de risos, de tropelias e de zangas, com o suave cheiro a fraldas, a

banhos, a comidas infantis. A casa acolhedora, onde sempre se volta,

onde as horas estão presentes nas suas impontualidades. A casa daquela

mãe, mulher nova e bonita, sacrificada em mil actividades diárias, num

zelo de matriarca confidente.

Olhou-a com ternura, como se toda a sua infância voltasse a esse colo

terno e quente, envolvido no espesso algodão rosa de um “robe de

chambre”, como a avó dizia. Sentiu-lhe a macieza e o cheiro suave.

Percorreu-o um inquietante ciúme desse bebé que o ocupava e esticava

os bracitos em afagos desajeitados, com sorrisos de cumplicidades.

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Observou-a melhor. Desconhecia-a. Chamou-lhe Mãe. Apetecia-lhe,

também, esticar a mão para o gancho que lhe prendia parte do farto

cabelo de reflexos dourados, dia após dia. Apetecia-lhe ver aquele cabelo

solto, desfeito em anéis sedosos. Bonita, mas tão distraída de si, como se

tudo no mundo se resumisse ao imenso beijo que aquela boca

maravilhosamente rosada depositava, agora, na cabeça penugenta do

filho. E as brincadeiras, com mesclas de afagos coniventes, continuavam,

prolongavam-se, nada mais tinha importância no universo de Mãe.

Os olhos azuis semicerrados sentiram o apelo urgente da outra figura

feminina do lado esquerdo. Aquela secretária, impecável, vestida com

sábia correcção, atendia, com sorriso fabricado, um telefonema que se

lhe afigurava complicado. Numa eficiência profissional, tomava curtos

apontamentos, buscava soluções no computador. Esgueirando-se, de

lado, sob a mesa, umas magras e bonitas pernas terminavam nos sapatos

de moda, de cor azul como o vestidinho leve de mangas curtas que

trazia.

Também desconhecida, chamou-lhe Ela. E aquela curiosidade bem

masculina quis-lhe uma demorada análise. Nunca tivera uma secretária.

Tudo indicava que nunca a teria. Mas achava, cheio de malícia, que, se

um dia tivesse uma, teria de ter também, umas pernas bonitas, bem

feitas, magras como as de Ela.

Todas as secretárias deveriam ter pernas bonitas, ou então não

seriam boas secretárias, sentenciou na fantasia repleta de machismo.

Com meio sorriso, cheio de duplos significados, seguiu-a. O

telefonema terminara. Ordenou os apontamentos. Retirou a folha do

bloco e colocou-a sobre a outra secretária, ainda vazia, a do patrão.

Olhou em volta, como se procurasse pretexto para compor um desalinho.

Suspirou com um leve encolher de ombros.

Alcançou a sua mala de mão, também azul, como os sapatos. Retirou

com sábia feminilidade, o espelhinho e o baton. Observou-se. Avivou as

cores. Mordeu os lábios mais vermelhos, agora.

Percebia-se-lhe inquietação, quando se sentou, de novo, sem

trabalhar.

Ela era uma mulher nova, com um bonito cabelo moreno caído sobre

os ombros de onde se elevava um pescoço magro, ossudo, adornado por

um pequeno colar de ouro. Tinha um ar levemente sensual, penetrante.

Guardava, nos olhos escuros, o silêncio profundo do mistério.

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O telefone voltou a tocar. Ela atendeu, primeiro, com aquele sorriso

fabricado, como se o interlocutor a estivesse a ver, mas foi rápida a

mudança de semblante. Os dedos esguios, de unhas brilhantes, da mão

esquerda, tamborilavam, sem cessar, até que os levou à boca,

mordendo-os, numa raiva súbita, enquanto escutava, numa atenção

crispada. Chegara a sua vez de falar. Gestos rápidos acompanhavam-lhe

as supostas palavras doridas. Abanava a cabeça. Calou-se. Pousou o

auscultador com demasiada força e a pequena mão direita aplanou uma

fugidia lágrima que lhe tornava ainda mais brilhante e misterioso o

profundo olhar.

Tapou a cara com as mãos. Ficou, assim, algum tempo, escondida do

mundo. Choraria? Apeteceu-lhe descobrir o rosto de Ela, perguntar-lhe

porquê.

De repente, levantou-se. Compôs o vestido, prendeu o cabelo atrás

das orelhas e saiu, decidida para o interior do pequeno escritório. Para

onde teria ido?

Zé Maria remexeu-se na sua cadeira. Incomodava-o aquela nova

curiosidade, aquele descortinar de espaços confidentes. Escrúpulos?

Voltou a mexer-se, com alguma agitação. Shakespeare acomodou-lhe,

por fim, a consciência: “...all the world is a stage and men and women

merely players...”

Zé Maria, o espectador. Ela e Mãe, actrizes. A Vida, o fascínio pelo

constante espectáculo que teimava perpetuar em letras escolhidas,

fruindo cada corpo, cada gesto, cada passo das suas personagens,

suspeitando-lhes as tramas que o nutriam, numa gula de escritor.

Esculpia-lhes a existência. Lavrava-lhes minúcias. Acalentava-as até à

libertação final em páginas brancas...

Mãe acabara de entrar na sala. Vinha descalça. Trazia umas calças

cinzentas de malha, uma t-shirt rosa suave, solta e larga, o cabelo, como

sempre, apanhado despretensiosamente. O corpo roliço abandonou-se no

sofá onde, antes, acariciara o filho. Inclinou-se para trás, entregando-se

ao deleite de um vagar. Cruzou as mãos sobre a cabeça, fechou os olhos.

Mas logo, na urgência do dever, puxou uma cesta de roupa, escolheu

uma peça, puxou uma caixa às flores, retirou linha, agulha, dedal,

começou a pregar um botão... tarefa comezinha, cheia de uma alegria

costumada!

Uma vez mais, admirou-lhe o desapego. Uma vez mais, quis-se

criança numa sobeja saudade feita de pacatas recordações. Sempre que

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olhava Mãe, o mesmo desejo, o mesmo carinho por essa mulher que

parecia encarnar as mães do mundo, e que queria sua, principalmente.

Continuava na faina, parecia bailar, parecia cantar. Irradiava um

encantamento enleante, exalava o perfume raro da felicidade. De

repente, numa lembrança, olhou o relógio de parede. Com mímica de

aflição divertida, pousou o trabalho, arrumou a caixa, levantou-se. Saiu

num ápice, para voltar, de imediato, com o tabuleiro dos pratos, copos,

talheres, toalha, guardanapos... Hora do almoço! E desapareceu, de

novo, na vertigem dos cozinhados.

Zé Maria sorria, com singeleza, invejava a bonomia daquela vida

familiar, onde, supostamente, eram esquecidas amarguras como as de

Ela.

À secretária, sozinha e com superficial disposição, teclava com zelo

profissional. Agora, óculos de moda protegiam-lhe os olhos, adornavam-

lhe o nariz um pouco arrebitado e cheio de graça. Absorta, não sentiu a

porta da rua, nas suas costas, abrir-se lentamente, sem ruído. Um

homem alto, de óculos escuros, barba curta bem tratada, bem vestido

num fato de corte impecável, entrou com os passos tácitos de quem não

se quer fazer sentir. Escondia algo com a mão direita e foi levantando a

esquerda, à medida que se aproximava da cadeira de Ela.

Zé Maria sentiu o arrepio dos filmes de “suspense”! Apetecia-lhe

gritar, mas a sua boca recusava-se à obediência. Estremecia de

inquietação, preso na sua cadeira de realizador. Quem era aquele

homem? Que pretenderia de Ela? Teria alguma coisa a ver com o

telefonema que tanto a perturbara? E Ela, de costas, sem o ver...

A mão desceu sobre aquele elegante pescoço, viu o braço direito

elevar-se e, num repente, o ombro esquerdo de Ela era agarrado, com

suavidade, e uma rosa vermelha surgia, do outro lado, entre a sua

cabeça e o monitor. O homem sorria. Sem denotar susto, Ela levantou-se,

libertou-se da mão que a agarrava, e mostrou-lhe todo o furor que havia

em si, arrancando-lhe a rosa da mão, atirando-a para o outro canto da

sala. Deu um passo atrás, virando a cadeira, voltou-se, de novo, para

enfrentar o homem que, encostado à secretária, sorria, com prudência,

de braços cruzados, aparentando uma enervante calma.

Não fora o crime que tanto receara. Supostamente, tratava-se de um

caso de assédio. Sentiu a imensa revolta contida em Ela. Apeteceu-lhe

saltar dali, esmurrar o outro. Sim... o outro! Mas as pernas não lhe

obedeciam. E quem era, afinal, aquele de quem não gostava? Não o

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conhecia, mas adivinhou-lhe o cargo. Chamou-lhe Tartufo, crivando-o

com uma abafada vingança, cheia de ciúme mal disfarçado.

Ela gesticulava, libertando uma zanga oculta. Tartufo mexeu-se,

avançou, estendeu-lhe os braços. Ela saltou para o lado com ar felino,

arqueando o corpo esguio, estendia o indicador direito, ameaçador,

levantou as mãos para esconder a cara e fugiu, para o interior do

escritório, arrastando a porta consigo.

Tartufo já não sorria. Lembrava aquele triste espantalho da quinta dos

avós, esquecido após a tempestade, parado, ali, no meio da sala,

boquiaberto, sem saber o que fazer com os braços meio levantados, meio

abandonados, figura patética carente de simpatia. Sentou-se no

majestoso trono de patrão, levantou uma revista ao seu alcance e,

culpabilizando-a, arremessou-a, irado, para junto da rosa, enquanto

curvava o corpo, num suspiro de derrota. Com um gesto implorativo,

estendeu as mãos para o telefone, compôs um qualquer número.

Aguardou, tamborilando os dedos. Nenhuma voz veio em seu socorro.

Desligou e, sem perder a compostura de homem de negócios bem

sucedido e bem vestido, fez deslizar, com violência, o cadeirão e saiu,

apressado, compondo os óculos escuros e o nó da gravata.

O rosto triste e assustado de Ela assomou à porta, com prudência,

perscrutando os quatro cantos da sala. Avançou, devagar, receosa.

Dirigiu-se para a porta da rua e trancou-a. Aproximou-se da janela, olhou

a rua, em baixo. Encostou-se ao vidro, pensativa, mordendo os dedos da

mão esquerda, onde, no anelar, rebrilhava uma aliança.

Deixou-se ficar o tempo de um transeunte lhe chamar a atenção.

Acenaram-se quando os olhares se cruzaram. Ela fez-lhe sinal que a

esperasse, que ia descer.

Zé Maria conhecia, de vista, esse homem, costumavam trocar rápidos

acenos quando se cruzavam. Tinha-o alcunhado, desde que viera habitar

para o bairro e o vira pela primeira vez, de Maio-de-68, pois tinha aquele

aspecto perdido no tempo e no espaço, longos os cabelos e a barba,

agora grisalhos, sempre de túnica larga, calças de linho, sandálias e

sacola a tiracolo. Achou estranho o conhecimento e, com curiosidade,

aguardou o encontro.

Maio-de-68 esperava à porta do prédio, segurando o jornal e a sacola

caqui. Quando Ela chegou, trazendo as chaves, numa mão e a malinha,

na outra, cumprimentaram-se com um rápido beijo nas faces. Ficaram

alguns momentos a falar. Ela, de olhar fixo no chão, encolhia os ombros,

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meneava a cabeça, enquanto ouvia Maio-de-68 que, agora, com carinho,

a envolvia com o braço sobre os ombros. Depois, pegou-lhe no pulso, viu

as horas no pequeno relógio, puxou-lhe o queixo, procurando aquele

olhar de sabor a mistério. E apontou-lhe o fundo da rua. Começaram a

caminhar, vagarosamente.

Zé Maria, cada vez mais intrigado, seguiu ambos até ao bisonho

restaurante da esquina, onde entraram para a leve refeição do meio-dia.

O sabor do mistério espicaçava-o. Porque conheceria a jovem e

sofisticada secretariazinha, aquele hippie fora de época? E franzia a cara

com trejeitos de incompreensão desaprovadora. Dois mundos,

aparentemente, tão diferentes... como diferentes eram, também, os de

Ela e Mãe.

À volta da mesa redonda, vestida de quadrados azuis, sentados, um

homem e uma criança aguardavam Mãe que trazia o tabuleiro com os

três pratos de sopa. O garoto barafustou ao vê-la, encostou a cabeça à

mão numa recusa de enfado. O homem moreno, novo, de calças de

ganga e pull-over (por demais evidente o seu papel ali, chamou-lhe Pai),

puxou-lhe o talher e fez-lhe um sinal autoritário, para que começasse a

comer. O petiz, de olhar vivo, travesso e astuto (merecido epíteto,

Bisnau), obedeceu, tranquilo, como se aquela atitude fizesse parte do

cerimonial de cada refeição, sem a qual ela não se podia iniciar.

E as colheres lá seguiam o seu mais sensato rumo. Pai e Mãe falavam

com aquela singeleza familiar de que são feitos os momentos domésticos,

acompanhando, de perto, com olhar de aprovação, Bisnau, que não se

podia atrasar... a escola ... a escola! Uma paz tecida com os reflexos de

oiro daquele lindo cabelo preso... Mãe fazia pequenos percursos, acudindo

às mais leves necessidades do seu tranquilo universo. Por vezes,

suspirava, prazenteira, em jeito de deliciosa queixa de quem ama o que

faz.

O telefone tocou.

Uma vez mais, levantou-se para o atender, apesar de Pai lhe ter feito

sinal para que continuasse sentada, que ia lá. Teimou e levantou o

auscultador. O rosto alterou-se-lhe, num rubor aflito. Desligou demasiado

depressa, envenenando o ar com evasivas atrapalhadas, percebidas nos

lábios apressados. Pai olhava-a, sem falar, implorando, na expressão,

uma verdade não consentida. Agarrou-lhe a mão, carinhosamente,

quando se sentou, mas Mãe, virando a cara, puxou-a, sob um olhar

incrédulo e interrogativo.

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Tacitamente, em prenúncio de discussão, levantaram-se ambos.

Bisnau seguia-os com a expressão astuta e o garfo pendente entre o

prato e a boca entreaberta, remota a refeição.

Em cantos opostos, os dois esbracejavam, recriminavam-se na ponta

dos indicadores arrogantes. Mãe perdera a doçura de matriarca

esquecida. O cabelo liberto do cativeiro, rolava-lhe pelos ombros em

pesados anéis de cor desesperada, protegendo um rosto vermelho de

aflição desacautelada.

Bisnau agarrou-se a Pai, numa ânsia difusa de proteger, de ser

protegido. Olhava-o com todas as dúvidas da expressão assustada. Nem

o beijo paterno o tranquilizou, o reconciliou com Mãe, de quem não se

aproximava. Numa aparente calma, de mãos dadas, ambos saíram da

sala, sem fechar a porta.

Mãe deixou-se cair, pesadamente, numa cadeira, amparada pelo

pranto magoado. Abanava a cabeça e soluços sofridos sacudiam-lhe o

corpo, marcavam a diferença entre a culpabilizada mulher de agora e

aparente inocência observada, pouco antes. Parecia uma penitente,

renunciando ao halo de felicidade.

Assustada, levantou-se, num impulso, quando Pai e Bisnau, de bibe e

mochila, voltaram a entrar. A mão paterna empurrou-o, com doçura

firme, para receber, contrariado, virando a carita, o suplicante beijo e

afago maternos. Depois, voltaram a sair, demasiado rápidos, com trilho

de lágrimas e recriminações.

A sala ficava deserta.

Também Zé Maria se sentia traído na quimera acalentada. Que teria

feito Mãe, essa mulher supostamente tão esquecida de si, tão doce, tão

maternal? Sentia o desabrigo triste dos sonhos desfeitos, sonhos onde

encasulara os seus fantasmas mais queridos. Sentia a confusa dor de

Bisnau. Tentava perceber as expressões arguidoras de Pai. Procurava

motivos, estremecendo de receio, na sua cadeira, como se soluçasse,

também.

Ela e Maio-de-68 trouxeram-lhe a perspectiva de uma bonança.

Caminhavam serenos e sorridentes, pelos paralelepípedos da estreita

rua. À porta do prédio, pararam para trocar as últimas palavras, antes do

rápido beijo de despedida. Ela mimava, com carinho, o ventre, enquanto

Maio-de-68 lhe pegava na outra mão. Tocou-lhe a aliança, colocou-lha na

linha do profundo e misterioso olhar, como se procurasse avivar-lhe a

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memória de um compromisso. Ela sorriu, abanou a cabeça numa

benevolência carinhosa, afagou-lhe longamente o ombro e abandonou-o,

entre acenos, na direcção da escada.

Voltou-se, ainda, com ar feliz, para lhe soprar, com lentidão, um

delicado beijo na ponta dos dedos. A boca do homem, no meio da barba

grisalha, rasgou-se num demorado e atraente sorriso, enquanto afastava

os cabelos para trás das costas e puxava a alça da sacola caqui que lhe

pendia do ombro.

Depois, a caminhar, num passo incerto, mas cauteloso. Parecia que

cada movimento lhe acarretava uma outra preocupação. Nesse momento,

perdera o aspecto zombeteiro. A testa franzida denotava o percurso de

uma interrogação que se lhe vinha firmando no pensamento. Percebiam-

se-lhe as dúvidas várias que procurava esclarecer dentro de si. Hesitou.

Deu um passo atrás. Recomeçou a andar, mas parou, logo em seguida,

estático, de olhar fixo no chão, como se das pedras cinzentas da rua lhe

nascessem todas as certezas.

A buzinadela de um carro, seguida do impropério do condutor,

chamaram-no à realidade, no meio das desculpas em que se desfez.

Saltou para o passeio. Cofiou a barba com ar menos absorto, mais

resoluto. E dirigiu-se, bem encostado à parede, para a porta do prédio do

escritório de Ela. Parecia não querer ser visto, sobretudo por quem – Ela,

provavelmente - estivesse à janela. Encostou-se, ajustando bem cada

fragmento do corpo à ombreira. Evidenciava a vontade de passar

despercebido. Olhou a rua para um lado e para o outro. Procurava a

aproximação de alguém, não de qualquer transeunte, mas de uma pessoa

em particular. Deixou-se ficar, assim, alguns instantes. Depois, com

profundo suspiro, olhou o céu, como não usava relógio, orientava-se pelo

Sol. Sem pressas, retirou, da sacola, o jornal, abriu-o, com pausa atenta,

e embrenhou-se na leitura de um qualquer artigo escolhido.

O assunto enleou-o, de tal forma, que não sentiu a aproximação

despreocupada de Tartufo que, em jeito de galhofa, lhe sacudiu as folhas.

Pela forma como se cumprimentaram, Zé Maria percebeu serem já

conhecidos, não se tratavam como simples vizinhos. E isso causou-lhe a

estranheza suficiente para se perder em novas conjecturas. Primeiro, Ela.

Agora, o impecável e jovem patrão sedutor. E parecia haver entre eles

alguma intimidade. Não era, certamente, o mundo dos negócios que os

ligava, aos três. Qual seria, então, o motivo que levava Maio-de-68,

sempre colado às paredes, a pegar, com simpática firmeza, no braço de

Page 14: TERESA CASTRO NUNES, "Supostamente..."

Tartufo e a arrastá-lo, rua abaixo, de forma delicada, indicando-lhe a

direcção do bisonho restaurante? E o outro deixava-se conduzir pela

conversa... Não! Zé Maria abanava a cabeça à guisa de incompreensão,

tão díspares eram as personagens!

Tentou encontrar resposta, observando Ela.

Trabalhava, com empenho, com o computador, sentada à secretária.

Fazia curtas e pensativas pausas, encostando o queixo à mão, na

tentativa de resolver as dificuldades que lhe iam surgindo. As mais

morosas mereciam um frenético tamborilar de dedos. Vencidas,

arrancavam-lhe, do peito, demorados suspiros de alívio. Ao mesmo

tempo, que observava, escolhia, folheava toda uma série de papéis,

brochuras, dossiers na recolha de informações, fazia deslizar, entre

estantes, com divertida graciosidade, a cadeira azul de rodízios que a

acolhia durante o dia de trabalho.

Pareciam esquecidos os dois episódios que, durante a manhã, a

tinham aborrecido. Parecia lograr de uma bem-aventurança que lhe

tornava, ainda, mais profundo e misterioso, o silencioso olhar.

Mas Tartufo ia voltar. E, como seria, quando regressasse? Ainda que

Maio-de-68 o tivesse afastado dali, o reencontro estaria, somente,

adiado. Ter-lhe-ia Ela contado o caso de assédio (sim, a Zé Maria não

restavam dúvidas do que acontecera!) de que fora vítima? Estariam

ambos a ter uma admoestativa conversa?

Ela parecia ter acabado a tarefa. Colocou as mãos na nuca, à guisa de

preguiça. Levantou, ligeiramente, as bonitas pernas e, batendo com o pé

na esquina da secretária, fez rodopiar a cadeira, abrindo os braços, numa

tremenda alegria infantil. Quando parou, rindo, segurou a cabeça com as

mãos, e, deixando-a cair para trás, entregou-se ao prazer da evasão. Em

que sonhos se acalentaria?

O toque áspero do telefone chamou-a à realidade. Endireitou-se.

Quem lhe usurparia aquela doce intimidade? Com ar contrafeito, atendeu-

o. O semblante modificou-se, a severidade fazia-a mover rapidamente os

lábios, apoiada por gestos de censura. Com uma careta, desligou, pouco

depois. Desta vez, contudo, não parecia triste. Ergueu os braços numa

manifestação de triunfo radiante, deixando cair as mãos sobre o ventre,

para uma carícia delicada.

Buscou uma folha branca e uma caneta. Mordeu-a, pensativa,

abanando a cabeça. Pousou-a sobre o papel, sem começar a escrever.

Page 15: TERESA CASTRO NUNES, "Supostamente..."

Começou, então, a riscar traços largos. Desenhava, com meneios de

aprovação e prazer, alargando-se-lhe a boca, de lábios vermelhos, num

sorriso que denotava a crescente satisfação que a invadia. Parou, enleada

com o resultado, retocando-o, ainda, num, ou noutro ponto. Levantou-se

e dirigiu-se para a secretária de Tartufo. Afastou, um pouco, alguns

documentos e aí colocou a folha, presa sob um colorido pisa-papéis.

Ajeitou o trono, de modo a que ficasse bem na frente da mensagem que

não queria ignorada. Olhou o todo e, satisfeita com o resultado, afastou-

se, batendo, colegialmente, as palmas.

Pegou na malinha de mão, agarrou em duas disquetes, retirou outra

do seu computador, olhou em volta, na tentativa de perceber se esquecia

alguma coisa. Pegou, ainda, num apontamento, que dobrou, e arrumou

tudo na mala. Dirigiu-se para a porta, com saltinhos de alegria, abriu-a e

saiu.

Em baixo, para grande surpresa de Zé Maria, que não dera pela sua

chegada, esperava-a Maio-de-68. Com rápidos afagos de ombros,

sorrisos, trocas de palavras e acenos de cabeças, Ela mostrou-lhe as

disquetes e começaram, ambos, a caminhar pela rua acima, na direcção

oposta do bisonho restaurante, com um ar determinado.

Num ápice, a Zé Maria, afigurou-se-lhe clara esta situação: Maio-de-

68 aconselhara Ela, vítima de assédio, a abandonar o emprego, mas não

sem antes trazer consigo determinados e importantes dados e

informações. Enquanto os recolhesse, ele distrairia Tartufo. E, a carta de

demissão, teria sido o desenho que fizera e deixara, bem visível, na

secretária de Tartufo. Óbvio o conselho! Óbvia a vingança! Mas como,

porque se conheceriam os três? Isso não descortinava, por mais voltas

que desse na sua cadeira de realizador, enquanto os via, cada vez mais

longe.

Mas, também, não achava muito correcta a vingança. E sempre

supusera Maio-de-68, uma pessoa integra... Tinha o sadio olhar de quem

acredita nos ideais intensos das causas puras. Semblante calmo e pacato

que o fazia parecer pairar acima de todos os malefícios! Verdadeiramente

intrigante, este grupinho!

No entanto, sentia já uma grande de saudade de Ela, a bonita

secretariazinha de misterioso e profundo olhar. Quem a viria substituir na

pequena empresa? Se calhar, alguma sábia e petulante profissional, sem

pernas bonitas... e por quem não apetecesse zelar, nem lobrigar a

suposta vida.

Page 16: TERESA CASTRO NUNES, "Supostamente..."

Restava-lhe, agora, Mãe. Esquecera-a, por momentos, de tal forma se

deixara embrenhar naquela tecedura.

Estava sozinha, na sala. Sobre a mesa, uma mala, de razoável

tamanho, aberta. Ao lado, um monte de roupa, alguma dobrada, outra,

em cabides e, no meio, percebia-se, ainda, um monte de fatinhos de bebé

e algumas fraldas descartáveis. Com gestos rápidos e tristes, Mãe

preparava-se para quebrar os laços mais queridos.

Partia, levava consigo o filhote mais novo, esquecia Bisnau, esquecia

Pai, esquecia a casa e as suas horas impontuais, as suas desarrumações,

os seus cheiros, os seus risos...

Não! Não! E Zé Maria abanava, veementemente, a cabeça. Não era

possível! Aquela mulher, que simbolizara todos os felizes fantasmas, que

acalentara todas as quimeras familiares, ia, agora, desfazer-se num fumo

desconhecido? E tudo por causa de um telefonema... (O telefone, o

telefone, sempre o telefone e a sua penetrante campainha...) Apetecia-

lhe agarrá-la, gritar-lhe, implorar-lhe que ficasse, que nada justificava

essa despedida. Mas a sua voz perdia-se no vazio do espaço que os

separava! Que alguém, que alguma coisa a segurasse, a retivesse...

Preces ouvidas?

Outra exaltada campainha, a porta tocava, sem parar. Mãe foi abrir,

com lentidão. E na sala, à sua frente, com modos desabridos, entrou uma

rapariga nova, magra, toda vestida de ganga, com vários adornos

dourados, que em nada lhe modificavam a expressão irada.

Gesticulava, com veemência, fazendo círculos à volta da mesa, sem se

deter. Mãe não abria a boca. Num mutismo conformado, não tentava,

sequer, interrompê-la. Apenas, abanava, triste e negativamente, a

cabeça, como se não quisesse concordar com todo e qualquer argumento

que Bem-vinda (de tal forma Zé Maria a desejara...) lhe apresentasse.

Esta pegou, de repente, num canto da mala, com a intenção de a atirar, e

ao seu conteúdo, pelo ar, para bem longe daquela intemperança. Mas,

Mãe impediu-a, agarrando-lhe a mão, com a mesma inesperada energia

com que começou a falar. E, entre as duas, estalou uma acesa e felina

discussão, arrumadas as roupas, fechada a bagagem.

Nada parecia demovê-la dos seus propósitos.

Saiu da sala, deixando Bem-vinda entregue à companhia de um

nervoso cigarro e ao embaraço de não saber onde sacudir a cinza,

lembrando-se de que, naquela casa, habitada por crianças, nunca se

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fumava. Salva pelo vaso de uma exuberante planta, ao pé da janela,

esmagou, com raiva, a beata que prendia entre os dedos. Sentia a

debilidade dos seus argumentos face à determinação vertiginosa que se

lhe deparara, sofria as desventuras anunciadas, deixou-se abater, por

fim, sobre o sofá, olhos fechados, cabeça entre as mãos.

O desalento que Mãe percebeu, ao entrar, de novo, na sala, descalça,

como sempre, com o corpo roliço cingido por um irritante vestido

vermelho, soltos e cuidadosamente penteados, os cabelos. Sentou-se, a

seu lado, passando o braço pelo ombro da amiga, que não se mexeu. Foi-

lhe falando, perto do ouvido, até Bem-vinda lhe desferir, de novo, um

violento olhar, e, à guisa de desaprovação, num ápice, pegou na mala,

saindo, porta fora, sem outras palavras ou explicações, perseguida pelas

súplicas de quem queria ser compreendida.

O bebé acordara, entretanto. Mãe foi buscá-lo, trouxe-o, ao colo, para

a sala, sentou-se e envolveram-se, ambos, em afagos e carinhos

ingénuos, esquecidas as mágoas e recriminações.

Tal como Bisnau, tal como Pai, tal como Bem-vinda, também Zé Maria

não lhe perdoava tudo o que observara, tudo o que percebia estar prestes

a acontecer. Juntava-se a eles, na queixa dolorosa de quem se sente

traído. Não conhecia os motivos, mas, de qualquer forma, nunca os

aceitaria. Mãe deveria permanecer como a construíra, a fada do lar,

perdida em mil bem-aventurados e esquecidos afazeres, no desapego de

matriarca. Depositara as suas esperanças nos argumentos, na

razoabilidade de Bem-vinda. Também, ele se sentia derrotado.

E doía-lhe, sobretudo, a triste e anunciada privação de Bisnau. Porque

a conhecia. Porque recitava de cor a amargura do afastamento materno...

Procurando conforto, arrastou a atenção para Tartufo.

Acabara de chegar ao escritório e, ainda com as chaves na mão,

procurava, debalde, com o chamamento, Ela. Findas as buscas, sentou-

se, reparando, de imediato, no suposto demissionário desenho. Fixou-o,

numa demorada análise. Encostou-se, parecendo saborear, deliciado,

cada traço, sem mostras de agruras, desfazendo-se, por fim, toda aquela

contemplação, numa sacudida e demorada gargalhada.

Pegou na agenda, seleccionou, no índice, uma letra e, aí, o número

que compôs no teclado do telefone. Responderam-lhe, o começo de uma

demorada e sorridente conversa.

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Irritou-o, a passividade e o ar prazenteiro com que Tartufo recebera a

demissão. E, com o telefonema, buscava nova vítima, certamente... Ou

estaria a servir-lhe para contar as suas façanhas de alegre conquistador...

Fosse como fosse, Ela deixara de lhe interessar! A represália não era

honesta, mas, também, deixara Zé Maria um pouco mais confortado,

ainda que não se conformasse com o facto de ter perdido a

secretariazinha de bonitas pernas e misterioso e profundo olhar.

Em curto espaço de tempo, sumiam-se as suas mais recentes

personagens. Ela abandonara já o palco, Mãe estava prestes a fazê-lo.

Como seguiria o espectáculo? Autor das suposições, espectador dos

actos, angustiava-o não saber o rumo que as suas vidas iam tomar.

Tinha-as desenhado à sua maneira, mas ambas se impuseram,

rebelando-se, partindo com independência, determinação. O destino, que

urdira, escapava-lhe, fugia-lhe por entre os dedos, numa espécie de

insurreição.

O enervante som do telefone (Mas que coisa! Esse miserável som,

ninguém será capaz de o calar?) fazia-se, uma vez mais, sentir em casa

de Mãe. Atendeu-o, com o bebé ao colo, já pronto para sair, aconchegado

ao perverso e justo vestido vermelho. Houve, apenas, uma curta troca de

palavras. Desligou.

Pegou numa fotografia emoldurada que estava ao lado do aparelho,

contemplou-a, deixando cair duas lágrimas sobre o vidro. Pousou-a, de

novo, sobre a pequena mesa. Virou-lhe as costas, mas, voltando-se, num

rompante, agarrou-a, abriu a mala de viagem, guardou-a, entre os

pertences que levava.

Zé Maria teve a certeza: a fotografia de Bisnau. Mas, abanando a

cabeça, desaprovou-lhe a acção. Achava que não a merecia...

Sentou o bebé, num pequeno carrinho. Depois, calçou uns sapatos de

salto bastante alto e fino, também vermelhos. Os caracóis fartos,

alourados e cuidadosamente penteados cobriam-lhe os ombros. Nada

lembrava a matriarca em “robe de chambre” rosa. Onde estava essa

mulher para quem sonhara doçura?

Abriu a porta e, empurrando o carrinho, arrastou, pesadamente, atrás

de si, o passado dentro da bagagem. Saíram.

Em baixo, na rua, entre buzinadelas frenéticas, um recente Mercedes

azul, descapotável, acabava de chegar. Sem estacionar, parou junto à

porta do prédio, no momento em que Mãe a transpunha. O condutor

Page 19: TERESA CASTRO NUNES, "Supostamente..."

saiu, ao seu encontro e, depois de um longo beijo nos lábios, guardou-lhe

a mala no porta-bagagem, abriu-lhe a porta para entrar, sentou-se ao

volante e partiram, os três.

Zé Maria repudiava este final, dando pequenos socos no braço da

cadeira. Quisera acreditar que entre Mãe e Pai havia uma qualquer

incompatibilidade, que se iam separar por uns tempos, que haveria uma

reconciliação... Isto não! Se pudesse voltar atrás, nunca lhe teria

chamado Mãe... Por Bisnau, reconhecia a mais dura traição. Como pudera

mascarar-se de tanta inocência? Detestava-a, neste momento...

Sem Ela, sem a-mulher-de-vermelho-que-não-merecia-o-nome, e

sem saber muito bem porquê, procurou, em Tartufo, os ventos de paz,

esquecido do ciúme com que o hostilizara, desde o início.

Deixara o telefone, mas continuava à secretária, mexendo,

remexendo e estudando toda uma série de papeladas e dossiers. Parecia

muito concentrado no trabalho, agora, sozinho, sem ajudas. Tão absorta

a atenção, que não sentiu a porta abrir-se, de mansinho.

Ela, com um largo e solto vestido branco, sapatos brancos e uma

expressão de radiante felicidade, entrou, sem fazer barulho. Retirou

qualquer coisa da malinha, também, branca que trazia a tiracolo, e

enfiou-a nos dedos. Na mão direita, umas botinhas de bebé azuis, na

esquerda, umas cor-de-rosa. Sem ruído, dirigiu-se para Tartufo e,

abraçando-o, pelas costas, colocou-as à frente dos seus olhos, mexendo-

as, como fantoches, interceptando-lhe a atenção.

Assustado e risonho, o homem agarrou-lhe os braços e fê-la deslizar

para o seu colo, envolvendo-se, ambos, em ternos e doces afagos.

À porta, que, entretanto, ficara aberta, assomou alguém batendo com

a bengala e de lunetas na ponta do nariz, simulando uma disfarçante

velhice que não lhe pertencia. Era Maio-de-68.

Tartufo e Ela voltaram-se. Os três, avô e futuros pais, abraçaram-se

numa imensa ventura...

... que a vibrante campainha do telefone veio interromper!

- Calem-na! Calem-na, por amor de Deus! – gritou a voz zangada de

Zé Maria – Calem-na!...

E endireitou-se, de olhos bem abertos, na cadeira de realizador.

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Das janelas fronteiras, perscrutou Ela, de azul vestida, sentada à

secretária, trabalhando com afinco e deixando escapar, de lado, as suas

bonitas e magras pernas; e Mãe, de “robe de chambre” rosa e com os

reflexos dourados dos cabelos, parcialmente presos, com um gancho,

embalava, cantando, com pequenos passos, o seu precioso bebé.

- Zé Maria! Oh, Zé Maria! – suplicava a voz de Madalena – pela

enésima vez, responde, homem! O Renato quer...

- Pronto! Pronto! Madalena, adoro-te, minha querida. Marca-me,

amanhã, um almoço com o grande patrão. Há livro... – e desligou,

alargando-se-lhe o rosto numa expressão venturosa.

O profundo olhar azul fixou-se, com tranquilo prazer, uma vez mais,

nas janelas fronteiras, enquanto ligava o computador, se sentava e

começava a escrever.