Termodinamica

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Antonio MacDowell de Figueiredo Termodinâmica Aplicada Antonio MacDowell de Figueiredo - - 28/03/11- 21:28:52 1

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Antonio MacDowell de Figueiredo

TermodinâmicaAplicada

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ConteúdosSímbolos......................................................................................................................................3

Parte I: CONTEXTUALIZAÇÃO.............................................................................................6

1. Introdução..........................................................................................................................7Objeto..........................................................................................................................................7Origem.......................................................................................................................................10Modelos e Representações.......................................................................................................13Escopo.......................................................................................................................................20Entendimento e Explicação.......................................................................................................24A Ciência Moderna....................................................................................................................26A Questão do Método................................................................................................................28Primeiros Passos.......................................................................................................................34

Combustão.....................................................................................................................................35Termometria...................................................................................................................................38

2. Fundamentos...................................................................................................................47Teoria Fenomenológica.............................................................................................................47Espaço, Tempo e Matéria..........................................................................................................51

Espaço............................................................................................................................................52Tempo.............................................................................................................................................55Matéria - Massa..............................................................................................................................57Matéria - Substância.......................................................................................................................59

Objeto Material..........................................................................................................................64Atributos Globais e Atributos Locais...............................................................................................65Condição de um Objeto Material....................................................................................................67Objeto Material Elementar..............................................................................................................69Verificação Empírica – Permanência.............................................................................................72

Grandezas Físicas.....................................................................................................................75Grandezas Primitivas e Grandezas Derivadas..............................................................................77Grandezas Direta e Indiretamente Mensuráveis............................................................................77Grandezas Globais e Grandezas Locais........................................................................................78Grandezas Aditivas........................................................................................................................79Grandezas Específicas - Densidades............................................................................................82Grandezas Intensivas – Campos Termodinâmicos........................................................................89Grandezas Extensivas....................................................................................................................91

Propriedades e Estado..............................................................................................................92Transformação: Processo e Mudança de Estado..........................................................................95

Parte II: FORMULAÇÃO......................................................................................................99

Parte III: APLICAÇÃO........................................................................................................100

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Símbolos

R

Alfabeto latino

Símbolo Significado Unidade Dimensão

A área m2 <L>2

a vetor aceleração m / s2 <L><T>-2

a intensidade da aceleração m / s2 <L><T>-2

ℰ grandeza física extensiva

G grandeza física

grandeza física intensiva

kB constante de Boltzmann

L comprimento m <L>ℓ comprimento característico m <L>M massa kg <M>М massa molar kg / mol <M><N>-1

М massa substantiva <M><N>-1

N quantidade de substância mol <N>n número de objetos ou de partículas

r vetor posição m <L>ℜ constante universal dos gases

T temperatura K , °Ct tempo s <T> ou <t>V volume m3 <L>3

v vetor velocidade m / s <L><T>-1

v velocidade m / s <L><T>-1

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Letras gregasSímbolo Significado Unidade Dimensão

λ fator multiplicador

λ comprimento de onda m <L>

∏ propriedade genérica

propriedade extensiva genérica

propriedade específica genérica

propriedade intensiva genérica

Diversos

₡ condição de um objeto

ℂ conjunto de objetos ou de seus atributos

ⵟ espaço euclidiano

Ø objeto material

⊘ objeto material elementar

[...] unidade

{...} valor ou intensidade

<...> dimensão

Subscritos

i índice mudo

j índice mudo

u grandeza unitária

Superscritos

el elementarn dimensão do espaço euclidianoo referência

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Parte I: CONTEXTUALIZAÇÃO

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1. Introdução

Objeto

O que é, de que trata a Termodinâmica1? Não há uma definição única nem uma

delimitação precisa de qual seja o seu objeto temático. Definições formuladas por diversos

autores, selecionados mais ou menos ao acaso, afirmam, os mais simples, diretos e, não

obstante, mais abrangentes, que a Termodinâmica “... correlaciona fenômenos”[13], que ela trata

“dos processos que observamos na natureza”[18] ou “da matéria e da interação entre matéria”[48]; ou

que ela é, “de uma forma genérica, o ramo da ciência que trata dos fenômenos térmicos” [51].

Certamente, tais formulações são muito pouco elucidativas2, não deixando sequer entrever a

complexidade e o alcance de suas implicações3. Mais explicativo seria afirmar que a

Termodinâmica é “a ciência dos fenômenos ligados à temperatura e à influência desta sobre as

propriedades físicas”[12]; vale dizer, que ela “concerne à compreensão e interpretação das

propriedades da matéria na medida em que estas são afetadas por variações de temperatura” [46].

A temperatura e as propriedades da matéria são as noções centrais desses enunciados.

Mas a Termodinâmica é também definida como “o estudo da energia, suas formas e

transformações, e das interações entre energia e matéria”[30]; ela trata “das leis sob as quais

1 Termodinâmica: palavra cunhada por Kelvin, em 1849, com o significado: “...operando ou operado pela transformação de calor em potência motriz“[57]; sua origem é a combinação da palavra grega θερμότητα – transliteração thermotita, da qual decorrem thermós ou thérmē, que significam quente e calor - e da palavra grega δΰναμις - transliteração dýnamis, com significado força ou força em potência.

2 ....thermodynamics correlates phenomena, and that is all![13].3 “Para alguns termodinâmicos assim como para seus inimigos, a Termodinâmica é a ciência do tudo, de modo que para uma

segunda categoria de indivíduos, ela é, por mera lógica, a ciência do nada e, então, ciência nenhuma....”[42]. Fica, portanto, a advertência quanto ao significado científico ou mesmo à relevância pedagógica de formulações tão abrangentes.

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transcorrem transformações e transferências de energia em que participam energia interna e

calor”[16]. E, de forma algo mais geral, diz-se também que a Termodinâmica é, “como uma parte da

Física, uma teoria geral da energia”[53]. Nesses enunciados, as noções centrais são a energia e as

interações entre objetos materiais.

Diz-se, ainda, que a Termodinâmica é “a ciência dos estados e das mudanças de

estado de sistemas físicos e das interações entre sistemas que acompanham tais mudanças de

estado”[27]; ela é “a parte da Física Teórica dedicada essencialmente ao estudo das propriedades

gerais dos sistemas físicos em equilíbrio assim como das leis gerais que se manifestam no

processo em que se estabelece o equilíbrio”[37]. Estes últimos enunciados não se referem a

qualquer fenômeno ou propriedade física particular, mas são restritivos em relação à condição do

objeto, sendo-lhes centrais as noções de estado e de equilíbrio.

Formulados para caracterizar e circunscrever o objeto temático da Termodinâmica,

esses enunciados têm variados enfoques, precisão e abrangência, e, de certa forma, prenunciam

o modo como os seus autores constroem suas versões da teoria. A maioria deles tem o notável

traço comum de referir-se a noções e conceitos a serem estabelecidos no curso do próprio

desenvolvimento da teoria - pressupõem, pois, o domínio desta, já que só assim podem ser

inteiramente compreendidos. Ao empregar tais elementos, pertencentes ao próprio âmbito da

Termodinâmica ou que, se já definidos no âmbito de outras estruturas conceituais da Física, nela

eventualmente encontram novos significados, aquelas formulações suscitam outras indagações: O

que são fenômenos térmicos? O que é temperatura? O que se entende por calor? O que se

entende por energia? E por energia interna? Quais são as formas de transformação da energia?

Sabe-se o que é matéria; mas, o que é, como se identifica a interação entre objetos materiais? O

que são sistemas físicos? O que caracteriza um estado ou uma mudança de estado? Quando

sistemas físicos estão em equilíbrio? Como este se estabelece? Assim, sendo necessário definir

significados para tais termos, distintos do entendimento comum que geralmente lhes é associado,

a questão persiste: como precisar o que é ou de que trata a Termodinâmica?

Não há resposta simples e precisa para esta questão; nem uma cuja formulação não

implique em alguma sequência tautológica de significados conceituais, mesmo considerando que

alguns destes são noções a priori4, fundamentais e não definíveis em termos de conceitos físicos

já antes empiricamente estabelecidos. De fato, assim procede o desenvolvimento de qualquer

4 Noções a priori independem da experiência, ao contrário de concepções a posteriori, estabelecidas em decorrência da experiência. Espaço, tempo e matéria são noções a priori. É possível conceber um espaço vazio e um transcorrer temporal sem ocorrência de eventos; é impossível, porém, construir a representação de um fenômeno sem relacioná-lo a um suporte material, num espaço não existente e sem um transcorrer do tempo.

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ciência de base experimental: nem sempre é possível descrever fatos experimentais nos termos

específicos de uma teoria mediante uma sequência lógica, não redundante nem tautológica, de

significados conceituais. Por exemplo, o conceito termodinâmico de estado refere-se à

caracterização instantânea de um objeto material em termos dos valores de suas propriedades; a

noção de propriedade, por sua vez, pressupõe a noção de objeto material e a circunstância,

também instantânea, de que ele esteja num certo estado. Implicitamente, o conceito de estado e a

noção de propriedade recorrem às noções fundamentais de espaço, tempo, matéria e, como será

visto, de substância, temperatura e carga elétrica. Em essência, certos fenômenos naturais são

utilizados para estabelecer “definições operacionais” de variáveis representativas daquelas

noções a priori. Cada uma de tais definições é feita em termos de um significado conceitual, uma

expressão matemática e uma regra de medição. Sobre a base assim construída são introduzidos

ou deduzidos novos conceitos, definidas novas variáveis e formulada a teoria.

No âmbito macroscópico, a Termodinâmica assim como, de resto, as demais ciências

de base experimental, investiga transformações constatadas mediante a observação de atributos

diretamente mensuráveis de objetos materiais determinados. No âmbito microscópico, a

investigação termodinâmica recorre a modelos supostamente representativos da constituição mais

elementar da matéria, cujos atributos fundamentais, que também correspondem a noções a priori,

não são acessíveis à observação. Obtém-se a representação macroscópica do âmbito

microscópico mediante procedimentos estatístico-probabilísticos que determinam, como

expectativa média, o efeito macroscopicamente observável de coleções de numerosos eventos

microscópicos.

A teoria da Termodinâmica a ser aqui apresentada é de natureza fenomenológica. Ela

se restringe ao âmbito macroscópico da representação dos fenômenos. O que isto significa? Qual

o propósito de uma tal teoria? Propõe-se ela a descrever e classificar ou também a explicar fatos

da experiência? Qual é a natureza da elaboração analítica que uma teoria fenomenológica

propicia?

Uma teoria fenomenológica propõe um modelo macroscópico de representação de

aspectos da natureza, mais apropriadamente, de uma certa classe de fenômenos que ocorrem na

natureza, vale dizer, que ocorrem com objetos materiais macroscópicos. Assim, ela é formulada

com base na observação reiterada e sistemática de fatos da experiência. Portanto, uma tal teoria

é condicionada pelos dados particulares que constituem a sua base empírica e pelos métodos

utilizados para obtê-los. Sobre esta base, a teoria procede a uma generalização, que não deve se

resumir à mera descrição e à classificação dos fenômenos. Ela deve ter certa capacidade

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analítica. Para tanto, via de regra, o modelo de representação proposto por uma teoria

fenomenológica afirma que objetos materiais têm atributos que nem sempre são diretamente

mensuráveis ou mesmo diretamente observáveis. Não obstante, a teoria deve estabelecer

relações entre tais atributos e outros atributos mensuráveis, mediante as quais ela deve prever

comportamentos e resultados a partir de condições iniciais dadas. O formalismo analítico da teoria

é desenvolvido como uma articulação lógico-dedutiva de noções, conceitos, idealizações,

hipóteses, convenções e relações entre atributos, inferidas ou supostamente existentes. Ao assim

representar um fenômeno, uma teoria fenomenológica o descreve, classifica e, neste âmbito

macroscópico, o explica.

Na próxima seção, é feita uma sucinta referência à origem da Termodinâmica e aos

seus princípios-síntese. Tal é a designação que, neste texto, é dada aos postulados fundamentais

da Termodinâmica. O escopo e os objetivos da versão da Termodinâmica aqui apresentada são

estabelecidos na seção seguinte. No próximo Capítulo, apresenta-se o conjunto de noções e

conceitos elementares que fundamenta a teoria, numa sequência que sugere uma formulação

axiomática de sua estrutura conceitual e formalismo analítico. Com isso, já se obtém alguma

elucidação das questões postas ao início desta Introdução. Na Parte II, esse conjunto de noções e

conceitos é rediscutido e considerado em sua expressão matemática, a partir dos quais

desenvolve-se uma formulação abrangente [desta versão] da teoria. Na Parte III, a teoria é

aplicada a situações específicas de interesse.

Origem

“O fogo transforma a matéria”5, produz luz, gera calor. A luz ilumina, clareia. O calor

aquece, transforma e deforma os materiais; variando-lhes o volume, produz um efeito mecânico. A

observação metódica e sistemática, o entendimento e a descrição analítica deste aparentemente

simples encadear de fenômenos termoquímicos e termofísicos foram, em essência, os objetivos

persistentes do desenvolvimento técnico-científico do qual resultaram os conceitos, princípios e

métodos que constituem o domínio do conhecimento que se denomina Termodinâmica.

5 Ignis mutat res: antiga divisa de um saber sem idade, “... a ciência do fogo...”[47]. Ainda é uma questão bastante controversa e um desafio arqueológico a determinação da época em que os seres humanos passaram a dominar o fogo. Há alguma evidência de que, já há 790 mil anos, hominídeos utilizavam sistematicamente o fogo, sendo muito provável que já soubessem acendê-lo e não apenas dele se aproveitassem quando produzido por causas naturais[23]. Na medida em que os provia com calor e luz, proteção contra predadores e novas fontes de alimentação, o domínio do fogo lhes trouxe significativos benefícios sociais e comportamentais. Evidências descobertas a meio caminho na rota entre a África e a Eurásia podem sugerir que a habilidade para controlar e manter o fogo pode ter sido um fator relevante de estímulo aos movimentos migratórios dos humanos originais, a partir de redondezas circunscritas e familiares na África, para explorar e popular ambientes remotos e desconhecidos [1].

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De que se tem notícia, a primeira descrição sistemática de procedimentos, dispositivos

e artefatos “termodinâmicos” encontra-se na obra Pneumática, de Heron de Alexandria6, escrita

por volta de 60 d.C.. Nesse, por assim dizer, tratado de aplicações termotécnicas há setenta e oito

formas engenhosas de utilização do calor para aquecimento do ar e geração de vapor d'água

visando a obtenção de um efeito mecânico. Remonta, portanto, a tempos muito remotos a origem

de alguns conceitos, noções e explicações de fenômenos que eventualmente são, ainda hoje,

parte da teoria da Termodinâmica. Na forma de uma resenha histórico-descritiva, apresenta-se

adiante um sucinto resumo de como alguns desses conceitos e noções foram estabelecidos.

Em termos historicamente precisos, pode-se afirmar que “...a questão da qual nasceu

a Termodinâmica não concerne à natureza do calor ou da sua ação sobre os corpos, mas à

utilização dessa ação”[47]. Trata-se de saber em que condições o calor produz uma ação

mecânica7, quer dizer, pode deslocar um corpo, acionar um motor.... A partir desta questão, a

Termodinâmica desenvolveu-se como uma estrutura conceitual de ampla validade, fundamentada

em dois princípios-síntese, comumente referidos como Primeira e Segunda Leis. Esses princípios

expressam - e postulam como universais - uma generalização da observação empírica relativa às

transformações termoquímicas e termofísicas que sucedem em objetos materiais em decorrência

de suas interações recíprocas. Eles são formulados sobre fundamentos e em termos estritamente

fenomenológicos.

Transformação e interação são noções essenciais para a formulação dos princípios-

síntese da Termodinâmica. No contexto de uma teoria fenomenológica, os significados destes

termos são algo mais específicos do que aqueles do seu entendimento comum. Diz-se que ocorre

uma transformação num objeto material quando há mudanças em seus atributos observáveis; em

termos quantitativos, quando variam os valores de seus atributos mensuráveis. Diz-se que há uma

interação entre objetos materiais se a transformação que num deles ocorre é origem ou

decorrência da transformação que no outro sucede. A noção de interação entre objetos materiais

implica, como exigência lógica, uma relação de causa-e-efeito8 entre as transformações que neles

6 Heron de Alexandria (10 d.C. - 75 d.C., Alexandria, Egito) – geômetra e engenheiro grego; inventou inúmeros artefatos e dispositivos mecânicos e termomecânicos para movimentar peças e criar efeitos sonoros e luminosos, utilizados como ornamentos em teatros, templos e palácios; inventou a primeira máquina a vapor de que se tem notícia; em diversos tratados, dentre os quais os mais importantes são Pneumática, Automata, Mecânica, Métrica, Dioptra, registrou seu trabalho e compilou o conhecimento técnico existente na época.

7 É curioso observar que, em termos aristotélicos, uma ação mecânica é um artifício ou uma operação contra a ou que burla a natureza[31]. Mecânica – do grego μηχανική, originada de μηχος - contrivance, utilizada na obra Problemas Mecânicos de Archytas de Tarentum (400 a.C. - 350 a.C., Tarentum, Magna Grécia, hoje Itália; filósofo, matemático e cientista grego; usualmente designado o pai da mecânica matemática); esta obra é um pequeno tratado que descreve o funcionamento de mecanismos básicos em termos de alavancas e das propriedades dos círculos: “.... Sempre que for necessário produzir um efeito contra a natureza, ….., é preciso arte (da palavra grega τέχνη – transliteração techne)..... Nós chamamos toda essa classe de problemas mecânica....” .

8 Princípio da causalidade: um evento é sempre um efeito precedido de uma causa; dada a causa, tem-se o efeito. Em termos

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sucedem9.

Há duas importantes considerações referentes à natureza dessas relações causais. A

primeira concerne ao determinismo: uma relação de causa-e-efeito é suscetível de tratamento

científico apenas se as mesmas causas produzirem sempre os mesmos efeitos. Repetidas as

mesmas condições iniciais e circunstâncias de uma interação entre objetos materiais, nesses

objetos ocorrem sempre as mesmas transformações10. A segunda consideração concerne à

irreversibilidade, ou seja, à constatação de que a sucessão dos eventos constituintes de um

fenômeno macroscópico real não é integralmente reversível. Vale dizer, levados em conta todos

os objetos envolvidos, toda interação ou conjunto de interações é inerentemente irreversível; não

é possível inverter o sentido de todas as interações de modo que suas correspondentes

transformações sejam integralmente revertidas. Em outros termos, causa e efeito não são

arbitrariamente permutáveis; elas são entre si discerníveis. Nesse contexto, diz-se que são

assimétricas as relações causais subjacentes a fenômenos macroscópicos reais.

Os princípios-síntese são enunciados com base nestes significados. O primeiro deles,

a Primeira Lei da Termodinâmica, expressa a noção de que interações entre objetos materiais

estão submetidas aos requisitos de uma continuidade qualitativa e de uma permanência

quantitativa de uma certa grandeza, a energia. Interações correspondem a transferências de

energia entre objetos materiais. Vale dizer, considerados todos os objetos envolvidos num dado

conjunto de interações, a quantidade total da energia permanece sempre a mesma.

O segundo princípio-síntese, a Segunda Lei da Termodinâmica, expressa a noção de

que há uma evolução qualitativa subjacente ao decurso daquelas interações: interações operam

transformações definitivas e irreversíveis sobre o conjunto de objetos que delas participam; não é

possível recuperar totalmente o status quo ante. Em termos quantitativos, este princípio afirma

que, considerados todos os objetos envolvidos nas interações, sempre cresce o valor total de uma

grandeza, a entropia.

Essencialmente, a Primeira Lei da Termodinâmica postula a existência da grandeza

energia e o requisito de conservação de sua quantidade total; a Segunda Lei da Termodinâmica

postula a existência da grandeza entropia e a condição de irreversibilidade. O crescimento da

fenomenológicos, todos os eventos que sucedem na natureza decorrem de relações desse tipo.9 Rigorosamente, essa assertiva é tautológica porquanto a própria implicação de uma relação causal entre transformações que

ocorrem em distintos objetos materiais impõe a existência de interação entre os mesmos – para discussão, consultar Hoffman [29].10 Adiante serão tratados dois importantes aspectos concernentes a esta consideração. O primeiro questiona o significado da

repetibilidade: o curso das transformações, em cada objeto, deve ser exatamente o mesmo ou apenas suas respectivas situações inicial e final? O segundo lida com a natureza da repetibilidade: ela é estritamente determinística ou aqui o determinismo é de cunho estatístico-probabilístico?

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entropia é uma consequência deduzida. Na Parte II, Formulação [da teoria da Termodinâmica],

estas e outras considerações relativas aos princípios-síntese serão detalhadamente discutidas.

Modelos e Representações

Há várias versões da Termodinâmica. Cada uma delas adota uma sintaxe particular e

um conjunto próprio de significados conceituais, modelos e métodos, mediante os quais formula

uma representação de fenômenos particulares ou, mais genericamente, uma representação de

classes particulares de fenômenos. Cada representação descreve e explica esses fenômenos e

prevê os seus efeitos; sua formulação é baseada numa certa concepção ou hipótese fundamental,

expressa mediante noções a priori, tais como espaço, tempo, matéria, espaço-tempo ou a

dualidade corpúsculo-onda.

O modelo do continuum e o modelo corpuscular são as representações mais intuitivas

dos fenômenos da natureza. Ambos apoiam-se nas mesmas concepções de tempo e espaço. O

tempo é apreendido como uma sucessão contínua e ordenada de instantes; o espaço, como uma

distribuição contínua de lugares ou locais - instante e lugar são noções independentes,

indefiníveis, dadas a priori. Tempo e espaço são indefinidamente divisíveis. A diferença básica

entre estes modelos é a forma de representação da matéria.

Para o modelo do continuum, a matéria encontra-se continuamente distribuída por

toda a extensão do espaço ocupado por um objeto material. Interações entre objetos materiais

dão-se mediante campos de ação a distância ou campos de ação por contato direto11. O modelo

do continuum é naturalmente apropriado para descrever fenômenos de escalas macroscópicas,

grosso modo entendidos como aqueles sujeitos à percepção sensorial humana, eventualmente

amplificada ou intensificada por meio de instrumentos analógicos12. Por exemplo, microscópios ou

11 Campo é um conceito físico-matemático segundo o qual o valor local de uma grandeza física é uma função indefinidamente divisível da posição e do tempo. No âmbito macroscópico, há dois tipos de campos: de ação a distância e de ação por contato direto. Um objeto material cria um campo de ação a distância no seu entorno espacial, mesmo vazio. Cada objeto material cria, no seu entorno, mesmo vazio, um ou vários campos espaciais contínuos que são os agentes de suas interações a distância com outros objetos. Vale dizer, esses campos prescindem da interposição de um meio material entre os objetos que os geram e aqueles sobre os quais atuam. Este tipo de campo é percebido apenas quando um outro objeto material (um corpo de prova ou um sensor) é posto num dado lugar deste espaço. Neste caso, o campo torna-se o agente da interação entre aqueles objetos materiais. Por exemplo, o campo gravitacional criado pela Terra é o agente da interação desta com um objeto material dado. Já campos de ação por contato direto, tais como o de velocidade, o de pressão ou o de temperatura, não pré-existem no espaço. Para que estes existam, o espaço não pode estar vazio; o campo é consequência de interações por contato entre objetos materiais determinados.

12 Nesses instrumentos, há uma relação biunívoca explícita entre a informação que lhes é fornecida e aquela que fornece ao observador. Vale dizer, a medida de uma grandeza física é obtida explicitamente da medida de uma segunda grandeza que tem,

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telescópios óticos são instrumentos analógicos porquanto suas lentes amplificam efeitos de

fenômenos que, não fora por sua pouca intensidade, já seriam sensorialmente percebidos como

imagens; susceptíveis, portanto, à experiência imediata e à observação direta. Pelo contrário,

imagens produzidas por microscópios eletrônicos resultam de transformações operadas por

modelos físico-matemáticos sobre efeitos que, mesmo se perceptíveis, não o são como imagens.

Distinção semelhante existe entre termômetros e manômetros analógicos e digitais13. Os limites

inferiores típicos das escalas espacial e temporal macroscópicas são comprimentos da ordem de

10-6 metros e intervalos de tempo da ordem de 10-7 segundos; os limites superiores são as

dimensões astronômicas. As teorias termodinâmicas baseadas nesse modelo podem ser

caracterizadas como versões de uma Termodinâmica do Continuum.

Neste âmbito encontram-se a Termodinâmica Clássica, a Termodinâmica das

Misturas, a Termodinâmica Química e a Termodinâmica dos Processos Irreversíveis. Dentre as

versões da primeira, a Termodinâmica da Engenharia ou Termodinâmica Aplicada trata dos

processos técnicos ou tecnológicos que relacionam fenômenos térmicos, mais especificamente,

aqueles que envolvem o que é comumente chamado transferência de calor com a realização de

ações mecânicas, eletrodinâmicas ou eletromagnéticas, genericamente designadas trabalho.

Já a Termodinâmica das Misturas ou dos Meios Heterogêneos trata de fenômenos em

que as transformações preponderantes decorrem de difusão mássica, ou seja, do movimento

relativo das substâncias constituintes dos materiais sem que haja perda de sua identidade

química; enquanto a Termodinâmica Química ou Termodinâmica das Reações Químicas trata

daqueles em que preponderam transformações da identidade química das substâncias

constituintes da matéria. Tais transformações geram alterações nos valores dos atributos

mensuráveis das substâncias. Tais fenômenos podem ser também tratados sob um ponto de vista

microscópico. Nesta perspectiva, transformações da identidade química das substâncias são

alterações moleculares; assim como são movimentos moleculares os processos de difusão

mássica. Moléculas assim, como suas partes constituintes, os átomos, são elementos de uma

representação da matéria que não a trata como um continuum.

Para o modelo corpuscular, a matéria é constituída por partículas ou corpúsculos

discretamente distribuídos no espaço. Objetos materiais macroscópicos são coleções numerosas

de partículas microscópicas. Fenômenos macroscópicos resultam de interações microscópicas

com a primeira, uma relação biunívoca; estas grandezas são representativas de fenômenos descritos por idênticos formalismos físico-matemáticos. Normalmente, a medida de uma grandeza física feita por instrumentos analógicos é indicada por um cursor ou um ponteiro que pode deslocar-se continuamente ao longo de todas as posições de uma escala. Ou seja, o deslocamento é, de fato, a grandeza diretamente medida.

13 Os dispositivos físicos que operam estas transformações são chamados transdutores.

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entre campos potenciais conservativos gerados pelas partículas constituintes de cada objeto e

entre tais campos e aqueles gerados pelas partículas constituintes de outros objetos. O grande

número de interações simultâneas e recíprocas entre as partículas torna a descrição do seu

comportamento coletivo um problema matemático de extrema complexidade, significativamente

simplificado mediante a aplicação de métodos estatístico-probabilísticos. O comportamento

coletivo das partículas passa, então, a ser descrito em termos de expectativas médias, ou seja,

dos valores esperados de seus atributos e parâmetros globais.

Interações microscópicas não são susceptíveis de observação e medição diretas.

Tipicamente, sua escala espacial corresponde a comprimentos muito pequenos, cerca de 10-13

metros; sua escala temporal corresponde a intervalos de tempo da ordem de até 10-15 segundos14.

Para tornar-se observável, o comportamento esperado do coletivo de partículas deve poder ser

expresso em escalas espaciais da ordem de 10-6 metros e escalas temporais da ordem de 10-7

segundos, ou seja, pelo menos cerca de 108 vezes maiores do que as escalas dos fenômenos

microscópicos. Deste ponto de vista, tais expectativas podem ser consideradas essencialmente

independentes do tempo[10] já que, em termos relativos, variam muito lentamente. Teorias

termodinâmicas baseadas nesse modelo são extensões da Teoria Cinética dos Gases; em termos

gerais, elas podem ser caracterizadas como versões de uma Termodinâmica Estatística.

A Termodinâmica do Continuum e a Termodinâmica Estatística são estruturas teóricas

autônomas, baseadas em concepções de representação da natureza mútua e evidentemente

excludentes. O continuum é indefinidamente divisível, o corpúsculo não o é[59]. Para o modelo do

continuum, interações dão-se entre objetos materiais; transformações, no interior destes. Para o

modelo corpuscular, interações dão-se entre as coleções de partículas que constituem objetos

materiais distintos; transformações são interações que ocorrem entre as partículas constituintes

de um mesmo objeto. Não obstante, submetidos à verificação experimental, há situações em que

sobrepõem-se os domínios de validade desses modelos; ou seja, são essencialmente

coincidentes os resultados obtidos a partir de cada concepção. Tipicamente, esse é o caso da

descrição do comportamento de objetos que encerram pelo menos cerca de 1023 partículas/mol15,

submetidos a efeitos de campos gravitacionais de baixa ou moderada intensidade.

O modelo clássico do continuum falha ao descrever fenômenos cuja velocidade

característica, v, aproxima-se da velocidade da luz, c, e quando é muito intensa a influência de

14 Intervalos de tempo da ordem de 10-15s correspondem ao período do movimento oscilatório dos átomos; comprimentos da ordem de 10-10 a 10-13 m correspondem ao chamado comprimento de onda de Compton [variação máxima do comprimento de onda de um feixe de radiação que se espalha após incidir sobre um material-alvo].

15 Mais especificamente, da ordem do número de Avogrado [NA = 6,022 1023 partículas /mol].

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Page 16: Termodinamica

campos gravitacionais. Entre previsão e medição surgem discrepâncias da ordem de (v/c)2. Para

estas condições, o modelo de representação mais adequado é baseado na concepção de um

continuum espaço-tempo que se deforma à presença da matéria. Tempo e espaço não são

independentes. A velocidade da luz no vácuo é um limite finito e invariante; perturbações e

alterações de campos eletromagnéticos não se propagam instantaneamente; no vácuo, todas elas

propagam-se à mesma velocidade, a da luz. Esse modelo descreve fenômenos que ocorrem em

escalas astronômicas e macrocósmicas16, que chegam até 1010 anos, a “idade” do universo e até

1026 metros, o “horizonte dos eventos”. Tais designações marcam os extremos de tempo e

distância em que se obtém registros de sinais de grandezas físicas. As teorias termodinâmicas

baseadas nesse modelo podem ser caracterizadas como versões de uma Termodinâmica

Relativística.

No outro extremo, o modelo corpuscular estatístico-probabilístico falha quando lida

com fenômenos microscópicos que envolvem quantidades extremamente pequenas de matéria,

de escalas atômicas ou subatômicas. As velocidades características desses fenômenos são,

também, próximas da velocidade da luz. Aqui, porém, preponderam os efeitos quânticos; já não se

lida com a existência estável da matéria, mas com a dualidade corpúsculo-onda. Se, no modelo

corpuscular, o comportamento global do coletivo de partículas é descrito em termos estatístico-

probabilísticos, agora, a natureza dual da matéria - ondas e corpúsculos - implica que esta

também tem, no nível mais fundamental, uma representação probabilística, designada dualidade

probabilística quântica ou determinismo quântico17. As teorias termodinâmicas baseadas nesse

modelo podem ser caracterizadas como versões de uma Termodinâmica Quântica.

Escalas espaciais e temporais independentes e quantidades invariantes de matéria

são próprias de representações que tratam espaço, tempo e matéria em termos absolutos. No

modelo relativístico, espaço e tempo não são independentes nem absolutos. No modelo quântico,

perde sentido a concepção da existência estável da matéria. Em grande medida, porém, o enorme

valor da velocidade da luz oculta a verdadeira natureza do espaço e do tempo; assim como os

minúsculos valores dos comprimentos de onda da matéria ocultam a sua natureza ondulatória.

Esta é a razão pela qual, para a maioria dos fenômenos com que se lida no cotidiano, os modelos

relativístico e quântico preveem efeitos essencialmente coincidentes com aqueles previstos por

16 “...nas estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias, até além da imensa extensão total do cosmo” [7]; o domínio característico deste modelo seria mais apropriadamente expresso em termos de alguma escala representativa da deformação do continuum espaço-tempo.

17 A representação determinística clássica, dita laplaciana, traduz uma concepção segundo a qual é possível conhecer o estado de um sistema numa situação arbitrária, do futuro ou do passado, se conhecido o seu estado numa situação particular. A situação pode referir-se a uma posição espacial instantânea ou a uma posição no continuum espaço-tempo. O determinismo quântico refere-se a estados quânticos, isto é, à probabilidade de ocorrência de um dado estado num campo quântico. Nos termos desta concepção, é possível determinar a probabilidade da ocorrência de um dado futuro, mas não qual o futuro que ocorrerá.

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Page 17: Termodinamica

representações macroscópicas e microscópicas mais simples.

O modelo do continuum espaço-tempo e o modelo quântico são concepções

conflitantes e mutuamente excludentes de representação da natureza18. Não obstante, alguns

fenômenos são apropriadamente explicados por um, certos fenômenos pelo outro modelo. Por

exemplo, é um efeito relativístico que a atração gravitacional gerada por enormes quantidades de

matéria a encerre em espaços extremamente pequenos; por outro lado, são efeitos quânticos o

intenso aquecimento então resultante e a respectiva emissão de radiação. Tal é a situação limite

da intensa contração de estrelas e nebulosas a espaços relativamente diminutos e sua

subsequente explosão, quando a radiação emitida é dissipada irreversivelmente no espaço vazio

em expansão.

Pode-se indagar: que interesse tem esta menção a fenômenos tão fundamentais no

contexto da apresentação de uma teoria macroscópica, de cunho fenomenológico, cujo objetivo é

essencialmente prático e trata da utilização do calor para gerar movimento em escalas sujeitas à

percepção sensorial humana? Embora o tratamento especializado desses fenômenos

fundamentais esteja bem além dos temas de interesse direto deste texto, há algumas boas razões

para mencioná-los. Uma delas é que as representações correntes de tais fenômenos envolvem

conceitos e variáveis termodinâmicas, tais como energia e entropia, originalmente formulados

para representação de fenômenos macroscópicos mais convencionais.

Outra razão é que os princípios-síntese, originalmente estabelecidos sobre bases

macroscópicas e fenomenológicas, mantêm-se ainda válidos, de alguma forma, nos modelos de

fenômenos fundamentais de escalas macrocósmicas, microscópicas e ultramicroscópicas. Esses

princípios expressam sempre as mesmas noções: de permanência e continuidade e de

irreversibilidade e evolução. As duas primeiras noções são a essência dos princípios de

conservação da quantidade de matéria e de conservação da quantidade de energia, tratados

independentemente pelas Termodinâmica do Continuum e Termodinâmica Estatística e de forma

unificada nas Termodinâmica Relativística e Termodinâmica Quântica. As duas últimas noções

dão significado ao princípio do aumento da entropia, que condiciona o decurso temporal das

transformações e a direção das interações: dentre todas as cogitáveis, são impossíveis as que

implicam o restabelecimento integral do status quo ante. Em outros termos, não é possível

18 Segundo o modelo relativístico, na situação limite de ausência de matéria, o continuum espaço-tempo é plano, liso e uniforme. Nos termos do modelo quântico, o vácuo não é um vazio absoluto; persistem flutuações quânticas com sistemática criação e destruição de matéria. Efeitos relativísticos e efeitos quânticos têm importância equivalente em fenômenos que ocorrem em escalas espaciais ultramicroscópicas, da ordem de 10-35 metros, cerca de 10-20 vezes o tamanho do núcleo atômico. Esta é a ordem de grandeza do chamado comprimento de Plank, cujo valor é dado por ( ћ G / c3 )1/2, onde c e G representam, respectivamente, a velocidade da luz e a constante gravitacional, características da relatividade geral, e ћ a constante de Planck, característica da mecânica quântica.

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Page 18: Termodinamica

estabelecer processos que evoluam para o passado19. Esta é a noção de irreversibilidade. Mas ela

é também uma noção de evolução porque, num certo sentido, dentre as possíveis transformações

estão aquelas das quais resulta a eventual emergência de organizações e estruturas materiais

cada vez mais complexas, tal como sucede em processos bioquímicos e biofísicos. Num outro

sentido, porém, esta noção é de perda porque implica uma tendência à extinção inexorável da

capacidade de transformação, posto que, a cada uma, reduz-se o potencial-motriz necessário

para transformações ulteriores. Assim sucede nos sistemas fechados e isolados de interações

com seu exterior.

A partir da perspectiva macroscópica, a irreversibilidade é uma condição real e

inevitável da ocorrência dos fenômenos. Sempre, em tais fenômenos, podem ser diferenciadas

situações “anteriores” de situações “posteriores”; o decurso do tempo é assimétrico, transcorre

sempre do passado para o futuro. Não obstante, mediante a escolha apropriada de alguns

parâmetros, dentre os quais as dimensões da porção do espaço sob observação, o período de

observação e a precisão e acuidade da medição, é possível deixar de apreender aspectos

irreversíveis de um fenômeno e tê-lo como reversível[8]. Por exemplo, são distintos os valores dos

parâmetros que detectam a irreversibilidade de processos geológicos, do movimento de um

pêndulo em oscilação livre ou dos processos termoquímicos que ocorrem no interior de motores

de combustão interna. Mas, é bastante evidente a irreversibilidade de fenômenos tais como, por

exemplo, o do aquecimento de uma resistência através da qual flui uma corrente elétrica20; do

arraste provocado pelo escoamento laminar de um fluido viscoso ao longo de uma superfície; da

condução de calor através de um objeto material, da sua parte mais quente para a menos quente;

da difusão de uma substância através de um meio material, da região de maior para a região de

menor concentração21; da cristalização de um líquido sub-resfriado22. Esses fenômenos não são

passíveis de representação mediante modelos macroscópicos cujas formulações analíticas sejam

simétricas em relação a uma inversão do tempo, isto é, à transformação t → - t, onde t é o tempo.

Pode-se dizer que, nessas representações, o tempo corresponde a um parâmetro de marcação,

19 Significado análogo pode ser dado ao postulado da teoria da relatividade de que a velocidade da luz do vácuo é a máxima possível. Pois, se houvesse velocidade maior, os sinais de luz poderiam ser ultrapassados e se procederia na direção do passado. Há, porém, uma distinção importante: no caso da termodinâmica, o postulado refere-se à impossibilidade de uma evolução para o passado; no caso da relatividade, o postulado é o da impossibilidade de sua observação.

20 No caso de uma resistência linear, que segue a lei de Ohm, a potência dissipada como calor é representada pelo lei de Joule. 21 Esses fenômenos são representados pela lei de Newton da viscosidade, lei de Fourier da condução e lei de Fick da difusão

quando, respectivamente, a intensidade do arraste, da condução de calor e de difusão mássica são diretamente proporcionais aos gradientes locais de velocidade, de temperatura e de concentração.

22 Um líquido sub-resfriado é aquele que encontra-se numa temperatura inferior à temperatura de saturação correspondente à pressão a que está submetido. Temperatura de saturação é aquela em que, numa dada pressão, diferentes fases coexistem em equilíbrio. A cristalização é um processo progressivo e irreversível de solidificação de um líquido sub-resfriado; a partir de um “núcleo” que desencadeia a solidificação, átomos do meio líquido são depositados sobre a interface sólido-líquido, que avança irreversivelmente.

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Page 19: Termodinamica

que identifica cada situação de uma sucessão dinâmica das situações pelas quais passa o

sistema.

Questiona-se se a irreversibilidade não seria apenas uma limitação circunstancial da

representação macroscópica de fenômenos microscópicos complexos23. Mais especificamente,

indaga-se se ela seria o efeito macroscópico aparente de uma complexa multi-ocorrência de um

grande número de interações microscópicas de campos conservativos. Ora, sob a ação de

campos conservativos, todo sistema deve poder retornar a uma situação arbitrariamente próxima

de sua situação inicial - mesmo que este retorno seja improvável ou demande intervalos temporais

muito longos. Neste caso, as interações microscópicas seriam necessariamente reversíveis,

simétricas em relação a uma inversão do tempo. Quais seriam, então, os fenômenos cujo efeito

macroscópico é irreversível? De onde surgiria a irreversibilidade?

Na verdade, é impossível obter-se uma representação de efeitos macroscópicos

irreversíveis apenas como consequência matematicamente deduzida da aplicação de operadores

estatístico-probabilísticos sobre campos conservativos24. Sendo assim, para que tais modelos

corpusculares possam representar ocorrências reais, a irreversibilidade lhes deve ser incorporada

como um postulado justificado pela observação[42]. O que acaba por dar-lhes, pelo menos em

parte, um caráter fenomenológico, com a particularidade de reduzir o princípio do aumento da

entropia a um postulado ad hoc. O que pode ser de grande importância prática mas, em termos

mais fundamentais, tem pouco valor descritivo ou explicativo[47]. Tome-se, para ilustrar, a perda de

estabilidade no escoamento laminar de um fluido, da qual decorre a transição para um

escoamento turbulento. O efeito macroscópico da turbulência é geralmente equivalente a uma

intensificação do efeito provocado pela viscosidade do fluido. Por esta razão, este fenômeno da

turbulência é convencionalmente representado mediante uma “viscosidade aparente”. Agora,

como se sabe, o efeito da viscosidade é irreversível. Então, mesmo que a representação da

turbulência seja de natureza estatístico-probabilística e baseada em modelos corpusculares

[reversíveis], ela deve ser macroscopicamente configurada de forma a que o seu efeito resulte

irreversível.

Uma última razão para a referência àqueles fenômenos fundamentais é que a

conservação da energia é um princípio geral não suscetível de demonstração, quer no âmbito

23 Questiona-se até se a irreversibilidade não seria consequência da condição assumida por um observador macroscópico. Neste caso, perante a assertiva “...irreversibilidades e assimetrias temporais são impostas pelo observador, não sendo criadas pelo sistema!”[49], pode-se contrapor “...nós não podemos causar a reversão de sistemas macroscópicos por nossa própria escolha. A decisão, digamos, de 'olhar ou não olhar' para Sirius, não pode afetar qualquer processo irreversível naquela estrela” [20].

24 “A conclusão é que não pode haver nenhuma rigorosa dedução estatístico-matemática das equações macroscópicas irreversíveis a partir das equações microscópicas reversíveis da dinâmica”[20].

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Page 20: Termodinamica

fenomenológico quer no contexto de representações baseadas em modelos mais fundamentais,

enquanto o crescimento da entropia é um princípio geral também não demonstrável no âmbito

fenomenológico, mas cuja explicação mais fundamental cogita-se encontrar no contexto de uma

unificação das representações macrocósmicas e ultramicroscópicas25. A partir da segunda metade

do Século XX, o desafio de encontrá-la tornou-se um dos mais instigantes temas de investigação

da Física Teórica, particularmente no contexto de uma representação de efeitos relativísticos e

quânticos nos termos de uma única teoria.

A Parte II deste texto apresenta uma teoria fenomenológica da Termodinâmica

baseada no postulado do continuum. Como tal, ela é restrita à consideração de fenômenos

macroscópicos, excluídas cogitações sobre existência, natureza e comportamento de corpúsculos

como elementos constituintes da matéria assim como considerações sobre efeitos relativísticos e

quânticos. Não obstante, no curso da apresentação poderá ser feita referência a modelos

corpusculares sempre que, suplementarmente, eles auxiliem a descrição ou explicação de algum

aspecto da ocorrência dos fenômenos considerados. Quando este for o caso, deve-se ter em

conta este seu caráter suplementar, em nenhuma circunstância integrante da ou necessário à

formulação da teoria fenomenológica. A versão da teoria a ser desenvolvida é mais

convencionalmente designada uma Termodinâmica Aplicada ou Termodinâmica da Engenharia,

utilizada para desenvolver métodos de análise e simulação de processos que, sem considerar

reações químicas e difusão mássica, tratam da utilização do calor associada à realização de

alguma ação trabalho.

Escopo

A maioria das ciências da natureza opera conceitos termodinâmicos. Certamente,

dentre as principais razões do amplo emprego desses conceitos encontram-se o papel unificador

desempenhado pelo postulado de conservação da energia e, menos explícito, o papel ordenador

25 Como ilustração: na formulação do modelo da chamada assimetria-mestre [master assymmetry][20], são utilizadas observações independentes dos âmbitos da Termodinâmica e da Astrofísica para identificar relações causais entre fenômenos irreversíveis de qualquer escala, entre si aparentemente dissociados mas indiretamente relacionados à assimetria temporal única e fundamental de um universo não-estático, mas em expansão em relação a um espaço dito não-saturado. A constatação fenomenológica deste processo permite ordenar temporalmente séries de eventos de escala macrocósmica, com o que é possível identificar duas outras assimetrias temporais, entre si independentes: a decrescente densidade de matéria e radiação e o fluxo de radiação na direção do espaço não-saturado. Não há observação ou modelo que indique ser qualquer dessas últimas a causa da expansão; pelo contrário, são efeitos desta. Por esta razão, a expansão temporal é denominada assimetria-mestre. Através da gravitação, estrelas e nebulosas contraem-se e aquecem; emitem, então, radiação que, por sua vez é dissipada irreversivelmente no espaço frio e não-saturado. De modo que, nos termos deste modelo, a gravitação e o espaço não-saturado são as causas indiretas e últimas da irreversibilidade.

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Page 21: Termodinamica

e restritivo relativamente ao decurso possível das transformações, desempenhado pela requisito

do crescimento global da entropia. Numa circunscrição algo arbitrária das atribuições temáticas de

domínios do saber correlatos à Termodinâmica, o fenômeno da transformação da matéria por

meio da combustão é objeto temático da Termoquímica; os fenômenos físicos dos quais resultam

luz e calor são estudados na Termofísica; os fenômenos da transferência de energia como calor

concernem à Transferência de Calor26. Da utilização da combustão e do calor para produção de

efeitos mecânicos tratam as áreas temáticas Motores de Combustão e Máquinas Térmicas. Há

muito de comum nos modelos de representação e métodos analíticos empregados por esses

domínios temáticos, baseados, em última instância, em conceitos e princípios da Termodinâmica.

Estes são ainda utilizados para tratar interações e transformações em sistemas macroscópicos e

em sistemas microscópicos assim como em macro-sistemas e em micro-sistemas27 em domínios

temáticos particulares das Física, Cosmologia e Astrofísica, das Química e Físico-química e das

Biociências. Significados conceituais de alguns destes domínios são correlacionados mediante a

Termodinâmica, tal como ocorre, por exemplo, entre a Física Quântica e a Física Relativística28.

A Termodinâmica é, ainda, elemento essencial do desenvolvimento de diversas

ciências aplicadas e áreas de conhecimento tecnológico. Por exemplo, no âmbito da oceanografia,

da geologia e das ciências ambientais, dentre as quais meteorologia, climatologia e ecologia, a

Termodinâmica é elemento essencial da formulação de modelos modelos descritivos, explicativos

e preditivos de fenômenos naturais relacionados ao comportamento da atmosfera e dos oceanos

assim como de outros fenômenos relacionados ao clima. Nas várias engenharias - mecânica,

química, nuclear, naval, elétrica, eletrônica, de materiais, de petróleo etc...- e na bioengenharia,

praticamente não há equipamento, dispositivo, processo ou sistema tecnológico que não utilize

noções e conceitos termodinâmicos em seus modelos descritivos e suas rotinas de projeto. Esses

modelos são utilizados, dentre vários exemplos, para projeto de sistemas de termo-geração de

potência elétrica e propulsão [utilizando combustíveis fósseis, fusão ou fissão nuclear, energia

solar, geotérmica ou outras fontes primárias]; de refrigeração e condicionamento térmico-

ambiental; de processos termoquímicos [combustão, destilação, liquefação, reações químicas

etc..]. São termodinâmicos também os elementos básicos do projeto de motores de combustão,

turbinas de propulsão, foguetes, células-combustível e de outros sistemas termo-fluido-dinâmicos,

26 Essa denominação é inapropriada, mantendo-se em uso por tradição e ausência de designação alternativa de ampla aceitação. Como será visto, o calor não se transfere; calor apenas designa a forma macroscopicamente perceptível assumida por fenômenos de transferência de energia entre objetos materiais quando são desiguais os valores de suas temperaturas.

27 A noção de sistema termodinâmico e uma classificação mais detalhada dos tipos de sistemas serão discutidas mais adiante. Em termos gerais, os sistemas são ditos macroscópicos ou microscópicos em função de suas dimensões físicas; e são ditos macro-sistemas ou micro-sistemas em função do número de seus elementos individuais constituintes.

28 Aqui, referência é feita à teoria da emissão de radiação pelos chamados buracos negros, cuja elaboração recente reúne elementos da teoria da relatividade e da mecânica quântica para oferecer uma explicação “fundamental” da irreversibilidade, consequentemente, do princípio do aumento da entropia.

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Page 22: Termodinamica

tais como sistemas de lubrificação, de proteção contra superaquecimento de semicondutores e

circuitos eletrônicos e de segurança termo-hidráulica de reatores nucleares.

Frequentemente, conceitos e métodos termodinâmicos são aspecto necessário da

formulação e da solução de problemas de amplo interesse sócio-econômico, atuando como

elementos auxiliares de processos decisórios relacionados à concepção e implementação de

políticas de utilização de energia, quer sob aspectos técnico-econômicos quer daqueles

concernentes ao incremento da qualidade de vida e preservação do meio ambiente. Na termo-

economia, por exemplo, tais conceitos e métodos são combinados aos das ciências econômicas

para análise dos processos de formação, avaliação e otimização de custos em sistemas de

conversão de energia. Dentre outras, a análise termodinâmica é determinante para a viabilidade

do desenvolvimento de tecnologias para aproveitamento das chamadas fontes alternativas de

energia29.

No âmbito mais geral, indicadores termodinâmicos relacionados aos padrões gerais de

utilização de energia e à eficiência dos processos de transformação auxiliam o planejamento e a

forma mais adequada de exploração dos insumos energéticos disponíveis; e de medidas que

objetivam controlar as consequências dessa utilização sobre a qualidade da vida e do meio

ambiente30. A contribuição da Termodinâmica é imprescindível para determinação de parâmetros

limitadores de emissão de material poluente e de rejeitos térmicos e químicos, subprodutos de

processos industriais ou veiculares de combustão e de outras aplicações que requeiram uso

intensivo de energia termoquímica. A limitação da emissão desses subprodutos é crescentemente

necessária tendo em vista seus efeitos sobre biosfera, em especial a degradação ambiental e as

mudanças climáticas de âmbito global, para o que concorrem os danos causados à camada de

29 Embora disponível sob diversas formas, a energia utilizável por atividades humanas provém essencialmente de apenas duas fontes primárias. Uma delas, o sol, provê energia continuamente, parte da qual, transformada, pode ser aproveitada imediatamente ou em curto prazo sob formas ditas renováveis [solar, eólica, das marés, biomassa etc.]. A outra fonte é a Terra, que armazena formas de energia ditas não renováveis, em materiais de origem fóssil orgânica [carvão, petróleo, gás natural etc.] e de origem mineral não orgânica [nuclear, água etc.]. No início do século XXI, cerca de 80% da energia consumida de fontes primárias provem de materiais fósseis.

30 Todas as atividades humanas impõem, de algum modo, alterações irreversíveis aos eco-sistemas naturais. A partir da segunda metade do Século XX, tornou-se evidente que tais alterações podem tornar-se efetivamente danosas e ameaçadoras à qualidade e até à possibilidade de vida na Terra. Tal constatação impulsionou um novo tipo de consideração sobre os modelos vigentes de desenvolvimento econômico-social, particularmente em relação à utilização de tecnologias que requerem uso intensivo de fontes não renováveis de energia ou que afetam danosamente o conjunto complexo de eco-sistemas que compõem a biosfera. A utilização do conhecimento tecnocientífico passa, então, a submeter-se mais diretamente a considerações de nova ordem, além daquelas de natureza estritamente técnica ou econômica.

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Page 23: Termodinamica

ozônio31, a intensificação da chuva ácida32 e o efeito estufa33.

Tal é o escopo da Termodinâmica, sucintamente apresentado tanto no âmbito de sua

formulação teórica quanto da importância e abrangência de suas aplicações. Nesse amplo

contexto, o objetivo da presente apresentação da Termodinâmica é desenvolver uma formulação

conceitualmente rigorosa e operacionalmente útil:

➢ dos princípios e leis gerais a que estão submetidos os processos de transferência de energia

entre sistemas e de transformação entre formas de energia no interior destes sistemas;

➢ das relações gerais entre propriedades de sistemas submetidos a processos de transferência

ou de transformação de energia;

➢ das relações específicas decorrentes da aplicação dos princípios, leis e relações gerais a

sistemas e processos tecnológicos particulares; e

➢ dos principais métodos da análise termodinâmica para sistemas de transformação de energia.

31 A camada de ozônio protege a superfície terrestre da incidência de radiação solar ultravioleta e, com isso, das suas consequências danosas aos seres vivos. A redução da camada de ozônio é fortemente influenciada pela ação de compostos químicos artificiais do tipo clorofluorcarbono (CFC) e hidroclorofluorcarbono (HCFC). Embora sob rigorosa regulação internacional, estabelecida em sucessivos acordos a partir do Protocolo de Montreal, de 1987, os CFC continuam a ser utilizados para produção de solventes, aerossóis, espumas e fluidos refrigerantes, entre outros itens. Dado o seu longo ciclo de vida, é provável que apenas em meados do século XXI seja atingida, aos níveis já acordados, a redução da concentração de CFC na estratosfera. Como ocorre a ação destes compostos? Na estratosfera, entre 15 e 39 km acima da superfície da Terra, ozônio (O3) é criado pela ação da radiação solar ultravioleta incidente sobre moléculas de oxigênio (O2). Cerca de 75% desse ozônio é destruído naturalmente pela ação do óxido nítrico (NO). Permanece, porém, uma quantidade suficiente para reduzir a incidência de radiação ultravioleta sobre a superfície terrestre. Compostos do tipo clorofluorcarbono (CFC) e hidroclorofluorcarbono (HCFC) sobem até a estratosfera, onde suas moléculas são rompidas também pela ação da radiação solar ultravioleta. O cloro (Cl) então liberado reage com o ozônio, formando monóxido de cloro (ClO) e oxigênio. Em seguida, o cloro e o oxigênio do ClO separam-se, ambos reagindo com ozônio para formar, novamente, monóxido de cloro e oxigênio, desencadeando uma reação em cadeia de destruição de ozônio. Cada átomo de cloro chega a destruir 105 moléculas de ozônio antes que o processo seja interrompido pela reação do cloro com o metano (CH4) para formar ácido clorídrico (HCl) que se precipita como chuva.

32 A chuva ácida é produzida pela conversão do dióxido de enxofre (SO2) e de óxidos de nitrogênio (NOx) em ácido sulfúrico (H2SO4) e ácido nítrico (HNO3). Sua precipitação sobre mares e cursos d'água provoca um crescimento descontrolado de algas, reduzindo o oxigênio necessário à sobrevivência de espécies animais; sobre florestas e terras cultivadas, afeta o crescimento de árvores e contamina alimentos. A maior fonte de emissão de enxofre e dos óxidos de nitrogênio é a combustão de materiais fósseis. Os efeitos da chuva ácida podem ser apenas mitigados com aperfeiçoamento das tecnologias de combustão; uma redução significativa de seus efeitos será obtida apenas mediante intensa redução do uso de combustíveis fósseis.

33 A densidade média do fluxo de energia solar incidente sobre a Terra, sob a forma de luz e radiação térmica, é da ordem de 343 W/m2. Desta, um terço é refletida de volta ao espaço e dois terços atingem o solo, de onde é reemitida como radiação infravermelha de grande comprimento de onda. Uma fração da radiação reemitida é bloqueada pelos gases do efeito estufa – GEE, desta forma aquecendo a atmosfera. O efeito estufa natural eleva a temperatura da Terra em cerca de 33 oC, tornando-a habitável. Qualquer fator que altere significativamente o equilíbrio natural desses fluxos de energia pode influenciar drasticamente as condições climáticas globais. Os principais GEE de ocorrência natural são vapor d'água (H2O), dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O). As emissões destes três últimos têm também origem antrópica, ou seja, decorrem de atividades humanas (por exemplo, queima de combustíveis fósseis, desmatamento, atividades agropecuárias). A liberação na atmosfera dos compostos artificiais de clorofluorcarbono (CFCs) e hidroclorofluorcarbonos (HCFC) também contribuem para aumentar o efeito estufa. A maior parte das emissões de CO2 decorre de fenômenos naturais ligados ao ciclo global do carbono; por outro lado, apenas cerca de 30% das emissões de CH4 provêm de processos naturais. No Protocolo de Kioto, de 1997, 155 países comprometeram-se a reduzir a emissão global dos GEE, até o ano 2012, de 5% dos níveis de 1990.

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Há diversas formas mediante as quais pode-se atingir cada um destes objetivos. Há,

portanto, várias versões da Termodinâmica, cada uma das quais formulada com significados

conceituais e metodologias apropriados para sua aplicação a classes específicas de interações e

transformações.

Neste texto, a teoria será inicialmente formulada em termos bastante abrangentes,

com um nível razoavelmente elevado de abstração. Em seguida, esta formulação será aplicada

para tratamento de processos técnicos ou tecnológicos que envolvam a transferência de energia

sob forma de calor e trabalho. Em geral, o trabalho estará relacionado à realização de uma ação

mecânica. Este objetivo caracteriza o âmbito da chamada Termodinâmica da Engenharia ou

Termodinâmica Aplicada.

Entendimento e Explicação

O desenvolvimento de uma ciência ou de uma disciplina técnico-científica não se dá

apenas a partir de si mesma, não é determinação desinteressada nem decorrência do acaso - por

que indagar sobre a luz e o calor e sobre a sua relação com o trabalho? Em cada época, o

desenvolvimento da ciência e da tecnologia é simultaneamente estimulado e condicionado pelos

sistemas dominantes de pensamento – inclusive valores sócio-culturais, crenças e preconceitos -

e, sempre, por interesses de natureza política ou econômica.

Numa perspectiva histórica de curto prazo, o que determina os fenômenos a estudar e,

de resto, impulsiona o progresso das ciências da natureza e da tecnologia são as demandas

práticas da sociedade34. Sob outra perspectiva, de longo prazo, o progresso do conhecimento

científico decorre também de motivações menos pragmáticas, impulsionado por alguma

necessidade humana de descrever, entender e explicar a natureza. Em sentido amplo, esse

esforço de entendimento e explicação dá-se no bojo de grandes sistemas teóricos. Cada um

destes sistemas expressa uma certa concepção fundamental relativamente à apreensão da

natureza, postula princípios, adota conceitos, estabelece métodos e deduz resultados que guiam o

progresso científico e tecnológico no curto prazo. Desse esforço não decorre apenas uma

sequência de êxitos; há erros e fracassos que, muitas vezes, atuam como elementos-guia.

Eventualmente, esse próprio desenvolvimento pode evidenciar restrições ou inadequações da

34 Em termos gerais, a satisfação dessas necessidades práticas são evidentemente contraditórias. Como se constata no curso da história, elas implicam simultaneamente a melhora das condições propícias à vida e o aumento da capacidade de extingui-la.

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concepção que o propiciou ou, no limite, conduzir ao esgotamento do potencial de entendimento e

explicação desta concepção35.

No curso do desenvolvimento de qualquer ciência, não é rara a ocorrência de eventos

científicos extraordinários. Alguns eventos são extraordinários porque elaboram grandes sínteses

de conhecimentos adquiridos autonomamente no âmbito de várias disciplinas e que, dispersos,

apresentam-se sob formulações e terminologias distintas para expressar essencialmente o

mesmo conjunto de noções e conceitos. Outros desses eventos marcam reinterpretações

conceituais inovadoras, ainda no contexto de referenciais teóricos preexistentes;

retrospectivamente, poder-se-á até verificar que algumas dessas reinterpretações já

prenunciavam, quando de seu enunciado, concepções teóricas inovadoras, apenas ulteriormente

evidenciadas. Há eventos, enfim, que são extraordinários porque marcam o início de uma nova

disciplina - ou de uma nova ciência, quando se impõem rupturas radicais relativamente aos

referenciais teóricos vigentes. Isto se dá, constata-se, quando teorias baseadas nesses

referenciais já tolhem o progresso do conhecimento, frequentemente por estarem em franco

desacordo com a observação empírica. Em geral, nessas situações, instaura-se uma crise cuja

superação requer a adoção de novos referenciais teóricos baseados noutras concepções

fundamentais.

No interregno de eventos extraordinários, as ciências da natureza e a tecnologia

parecem desenvolver-se como uma progressão bem ordenada de proposições e verificações de

hipóteses e de descobertas e invenções. Na verdade, mesmo no âmbito de uma mesma

concepção fundamental, esse progresso é tão tortuoso como “...o movimento de uma multidão,

em que a direção do todo decorre, de alguma maneira, dos impulsos independentes dos

indivíduos; ... alguns avançando, outros recuando...”[36]; quase tantos numa direção, que se torna

dominante, quanto seguindo, em aparente confusão, direções diversas. Quando acumulam-se

evidências empíricas de desajustes na concepção fundamental vigente, já não se vislumbra uma

direção dominante. Esse acúmulo de desajustes precede e como que acusa a iminência de

eventos extraordinários. Então, mesmo uma descoberta fortuita ou o resultado de um processo

rotineiro de verificação de hipóteses pode ser suficiente para determinar a refutação, total ou

parcial, de uma teoria científica estabelecida, em decorrência do que surge a crise da qual

eventualmente emerge uma nova concepção fundamental.

Assim, recorrentemente, desencadeiam-se ciclos de entendimento e explicação que,

35 Segundo um poeta: “...O mundo é absolutamente incompreensível. Então inventamos uma série de compreensões e vivemos dentro desta cadeia de explicações. Uma cadeia lógica que tem a ver com a realidade, que não é gratuita ou absurda, mas que não esgota a realidade. Quando esse tecido conceitual se rompe, você vê que nem tudo está explicado....” [25]

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sempre, desdobram-se sob aquelas perspectivas de curto e longo prazos, sendo delimitados por

eventos científicos extraordinários. A genealogia dos sistemas conceituais e de suas decorrentes

teorias científicas é baseada, portanto, em precedentes. Os seus conceitos, leis e princípios não

correspondem a formulações sequenciais logicamente ordenadas; pelo contrário, eles formam um

conjunto de formulações intrincadamente interdependentes. Eis porque, da apresentação de uma

teoria científica segundo a cronologia de seu desenvolvimento, não resulta uma construção

necessariamente lógica, consistente e ordenada de sua estrutura. As apresentações de teorias

científicas como estruturas conceituais hierarquicamente ordenadas correspondem, de fato, a

reconstruções de seus reais processos de desenvolvimento36. À medida em que são formuladas,

tais reconstruções passam a afetar a forma como prossegue o desenvolvimento das teorias,

condicionando também a forma mediante a qual novo conhecimento é justificado e passa a ser

considerado saber estabelecido.

No caso da Termodinâmica, auxilia entender e explicar essa reconstrução, além de ser

instrutivo e instigante, conhecer algo sobre a progressão do conhecimento da qual resultaram

seus principais conceitos, noções e métodos. Sem pretender constituir uma elaboração

epistemológica ou uma descrição sistemática e completa do seu desenvolvimento teórico, este é o

objetivo da sucinta resenha histórico-descritiva apresentada nas próximas seções37.

A Ciência Moderna

Por onde e quando começar? No Ocidente, o desenvolvimento e a sistematização do

saber como ciência pouco progrediram durante os cerca de mil anos da Idade Média38,[33],

limitados pela controvérsia teológica entre a fé e a razão - a persistente discussão sobre a

36 “A estrutura e a organização do conhecimento científico é uma das questões fundamentais das ciências cognitivas e da educação assim como da filosofia da ciência. As concepções sobre a estrutura do conhecimento científico afeta profundamente também o modo como esse conhecimento é ensinado, tendo, assim, consequências educacionais de ordem prática...”[34]

37 Não mais que uma síntese, esta resenha é descritiva, esquemática e seletiva. Descritiva na medida em que não é feita uma apreciação crítica de cada desenvolvimento; e, a menos de situações particulares, a primazia de autoria atribuída à proposição de uma teoria, à explicação de um processo ou fenômeno ou à invenção de determinado método ou instrumento dá-se apenas para efeitos de contextualização histórica, como registro cronológico possivelmente incompleto. Ela é esquemática por apresentar essa cronologia como um encadeamento lógico. E é seletiva na medida em que não é isenta de interpretação, no caso, a do autor.

38 Convenciona-se situar o início da Idade Média no período entre o incêndio de grande parte do acervo da Biblioteca de Alexandria, ateado pelos cristãos no ano 390, e sua quase completa destruição pelos muçulmanos, no ano 642. A partir de então, no curso de sua expansão territorial e política, os árabes tornaram-se “curadores” do conhecimento científico herdado do pensamento clássico greco-romano, preservado mediante traduções, comentários e tratados. Nestas obras, registraram também várias de suas próprias realizações técnico-científicas, particularmente na matemática, química, ótica, astronomia, medicina e engenharia. É desta forma que o aristotelismo e muitas daquelas realizações chegam ao ocidente. Neste, eventos isolados e atividades restritas a monastérios mantiveram vivo o conhecimento que, mais tarde, seria a base para a formulação de um pensamento original.

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inteligibilidade das leis da natureza e a autonomia da razão perante a fé. No início do Século XII,

já desenvolvera-se o entendimento de ser a natureza regida por um sistema coerente de leis que

poderiam ser explicadas pela razão. A partir de meados do Século XIV, dá-se uma sucessão de

grandes acontecimentos que, radical, progressiva e inexoravelmente, transforma a vida social,

religiosa, política e econômica do ocidente39. A demarcação entre os âmbitos da fé e da razão,

então vigente, torna-se mais e mais questionada. Nem certas questões teológicas, como então

formuladas, podiam ser apropriadamente abordadas pelo pensamento racional e lógico que se

desenvolvia, nem a perspectiva da fé parecia convincente ou suficiente para explicar os

fenômenos da natureza. As explicações no âmbito da razão, porém, ainda persistiam baseadas

em verdades aparentes e princípios auto-evidentes40. No mais das vezes, o interesse genuíno

pelo que poderia constituir um saber científico resvalava para a magia, a alquimia e a astrologia.

De modo que, ainda até os finais do Século XV, o pensamento científico ocidental baseava-se

quase exclusivamente na herança greco-romana clássica, sobretudo na especulação filosófica

aristotélica41.

Dessa crise no âmbito da fé assim como em decorrência de necessidades práticas de

nova ordem42 resultaram um questionamento sistemático e crítico do saber estabelecido e o

estímulo a um exercício intelectual racional e pragmático relativamente à compreensão dos

fenômenos da natureza. Progressivamente, a atividade científica, como ulteriormente viria a ser

designada, entra numa fase de grande efervescência: já não são suficientes a justificação

39 Dentre estes acontecimentos, a Peste Negra, entre os anos 1347 e 1400, reduz em cerca de um terço a população europeia e abala a certeza do poder da fé, em razão do que crescem o misticismo e a superstição; a queda de Constantinopla, em 1453, marca o fim do domínio ocidental sobre o oriente próximo; o desenvolvimento de novas técnicas de impressão, entre os anos 1450 e 1460, possibilita a publicação de várias obras escritas na antiguidade e a disseminação do pensamento clássico, em larga escala e sem controle ou censura; a descoberta do Novo Mundo, no ano 1492, praticamente destrói os fundamentos das teorias clássicas da geografia, meteorologia e astronomia.

40 Na 3ª cena da peça A Vida de Galileu Galilei, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), Galileu insiste com sábios da corte de Florença para que observem o céu através do telescópio e constatem a existência dos satélites de Júpiter. Os sábios recusam-se a olhar; um deles argumenta: “Não seria o caso de dizer que é duvidoso um telescópio no qual se vê o que não pode existir?”.

41 O sistema filosófico aristotélico foi a base do pensamento escolástico do cristianismo medieval e do islamismo, fortemente influenciando o desenvolvimento intelectual do ocidente até fins do Século XVII. De toda a extensa obra de Aristóteles (384 a.C., Estagira, Macedônia - 322 a.C., Cálcide, Grécia), é aqui particularmente interessante assinalar alguns aspectos de sua filosofia da natureza. No âmbito terreno, quatro qualidades fundamentais eram postuladas - o calor, o frio, o seco e o úmido; elas atuariam sobre a prima materia (matéria original) para constituir os elementos fundamentais - terra, água, ar e fogo; da ação do calor sobre o úmido originar-se-ia o ar; do calor sobre o seco, o fogo; do frio sobre o seco, a terra; e do frio sobre o úmido, a água. As qualidades fundamentais seriam corruptíveis e mutáveis. Por exemplo, o aquecimento da água, fria e úmida, a transformaria em ar, quente e úmido. O âmbito celestial seria constituído por um quinto elemento fundamental, uma quinta-essência incorruptível e imutável chamada éter. Os elementos fundamentais da estática seriam a matéria e a forma, os da dinâmica, a ação e a potência. O movimento dos astros seria causado pelo vento etéreo impelido pelo Primum Mobile, uma entidade superior todo-poderosa.

42 Para ter-se uma ideia de quais eram estas necessidades e qual era o conhecimento requerido para atendê-las, tomem-se exemplos das novas tecnologias que, nos finais do Século XV e por todo o Século XVI, contribuíram para viabilizar a navegação oceânica de longo curso: na cartografia e na construção de embarcações, a invenção de novas técnicas de representação do espaço e de projeção de objetos tridimensionais sobre o plano; também na construção, a sistematização de conhecimentos de resistência dos materiais e o cálculo estrutural; para marcação mais prática e precisa do curso do tempo, a invenção do relógio mecânico; para orientação, a invenção da bússola e um conhecimento mais preciso da mecânica celeste.

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metafísica, a descrição qualitativa e a classificação dos fenômenos naturais. A predição e, mais

decisiva, a sua verificação passam a ser elementos necessários da explicação. Em particular, nos

domínios do conhecimento que viriam a constituir a Física, os principais procedimentos

metodológicos passam a ser a experimentação, a expressão matemática e a conjetura baseada

na observação43. A indagação científica deixa de buscar o por que e o que é, nos termos de

razões fundamentais de ordem metafísica[19], e passa a ser como ocorrem os fenômenos naturais.

Surge a ciência moderna.

A Questão do Método

É provável que Leonardo da Vinci44 tenha sido dos primeiros a considerar, cerca de

1490, que a elaboração científica deveria basear-se na observação, expressar-se em termos

matemáticos e submeter-se à verificação experimental45. A primeira extensa, complexa e decisiva

aplicação da matemática à explicação e previsão de fenômenos físicos é feita por Copérnico46,

entre os anos 1510 e 1514. Valendo-se mais do cálculo do que da observação direta dos astros,

ele concebe uma nova descrição dos movimentos celestes e desenvolve um modelo matemático

representativo que substitui a concepção geocêntrica e geostática de Ptolomeu por uma

concepção heliocêntrica e heliostática47. Com a hipótese do duplo movimento da Terra, Copérnico

43 Na verdade, no Egito, Índia, China e Babilônia, a observação e experiência já eram práticas correntes desde a antiguidade; sua interpretação, porém, era impregnada de ideias preconcebidas e princípios gerais; entendiam-se os fenômenos naturais como manifestação de propósitos metafísicos e a expressão matemática como um ideal de perfeição, não como um requisito de rigor e certeza.

44 Leonardo da Vinci (1452, Vinci, Itália - 1519, Cloux, França) – pintor, desenhista, escultor, anatomista, arquiteto, engenheiro e cientista italiano; escreveu e desenhou cadernos sobre quatro temas principais: pintura, arquitetura, elementos de mecânica e anatomia humana; não submetendo sua interpretação a princípios de como as coisas devem ser, mas a como elas de fato são, antecipou, como conjeturas, várias explicações que seriam ulteriormente confirmadas, dentre outras: o princípio da impossibilidade do movimento perpétuo; os princípios do equilíbrio mecânico e do movimento dos fluidos; que uma força não é necessária para manter o movimento, mas para alterá-lo; que a luz é um fenômeno ondulatório; que a combustão de uma vela e a respiração são essencialmente o mesmo fenômeno.

45 Cerca de.1490, Leonardo da Vinci escreveu[44] ,“...é minha intenção, primeiro, descrever a experiência; depois, demonstrar porque esta experiência deve suceder da maneira como sucede. Esta é a regra que deve ser seguida por quem especula sobre os efeitos naturais...”; adverte que “...a experiência não engana nunca; só erram vossos julgamentos, que prometem a si mesmos resultados estranhos à vossa experimentação pessoal...”; e, num manuscrito de 1515, reitera: “... não há certeza se não se pode aplicar a matemática ou um conhecimento baseado na matemática”.

46 Nicolaus Copernicus, Mikolaj Kopernik (1473, Toruń, Polônia - 1543, Frauenberg, Prússia) – astrônomo polonês; insatisfeito com a concepção geocêntrica e geostática do universo, passou anos desenvolvendo uma teoria segundo a qual a Terra e outros planetas realizam movimentos circulares em relação a um ponto no espaço próximo ao Sol; ca. 1510, apresentou a primeira descrição deste sistema “heliocêntrico” num sumário manuscrito, De Hypothesibus Motuum Caelestium a se Constitutis Commentariolus (Pequeno Comentário sobre Hipóteses acerca dos Movimentos Celestes), quase desprovido de deduções e cálculos; a versão final da teoria, apresentada em 1540 no livro De Revolutionibus Orbium Caelestimum (Sobre a Revolução das Esferas Celestes), é uma obra quase totalmente matemática.

47 A teoria heliocêntrica impunha duas drásticas implicações relativamente às concepções vigentes na época. No contexto de uma concepção geo-estática, não havia dificuldade em explicar a ocorrência de estrelas fixas; elas estavam, de fato, imóveis. Para um modelo em que a Terra encontra-se em movimento, a explicação passa a ser a de que aquelas estrelas estão tão distantes que é

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introduz o chamado princípio da relatividade ótica do movimento, definindo três situações

possíveis na relação entre o observador e o objeto observado: o movimento pode ser produzido

pelo observador, pelo próprio objeto observado ou por ambos. No entanto, Copérnico não

formulou uma teoria física sobre os movimentos celestes nem demonstrou experimentalmente que

a Terra se move. De modo que, para muitos, o seu modelo parecia matematicamente acertado

mas fisicamente absurdo; faltava-lhe algo como “a aparência de verdade”[41].

Não obstante, impôs-se a questão: se um modelo matemático de representação da

natureza pode revelar relações não evidentes de um fenômeno natural, como conciliá-las com

relações aparentes entre observáveis deste mesmo fenômeno? Em outros termos, como

quantificar tais observáveis e incluir suas relações num sistema de cálculo? Ou, inversamente,

como submeter resultados da racionalização matemática abstrata à verificação experimental? Sob

qual critério? Pois, mesmo que a observação direta já não seja critério de certeza ou completeza,

é necessário tê-la em conta, reproduzi-la, prevê-la, explicá-la. Essencialmente, estas são as

questões que dão origem ao desenvolvimento do método científico.

A experimentação sistemática é a base do “novo método” para a ciência, que é

proposto por Bacon48 em 1620. Esse método opera por indução e consiste de um processo de

observação, que se desenvolve em duas etapas, seguido de um processo de exclusão. A

observação exige uma precisa descrição do fenômeno, o que salienta a qualidade dos

instrumentos de medição e coleta de dados; depois, procede à classificação dos resultados

obtidos. A exclusão objetiva eliminar da informação experimental o que seja apenas contingente

ou influência acidental. Assim depurados, os resultados podem induzir a revelação de correlações

essenciais entre as variáveis observadas. Para Bacon, a aplicação recorrente desse procedimento

deveria induzir, gradual e progressivamente, a revelação de correlações cada vez mais

abrangentes sobre um fenômeno ou uma classe de fenômenos. Há, porém, um problema: para

um mesmo fenômeno, é possível estabelecer correlações distintas e até conflitantes se a

observação basear-se em distintos conjuntos de variáveis – cuja escolha, por suposto,

corresponde à adoção de distintas premissas explicativas. Dito de outra forma, para um mesmo

imperceptível o seu movimento relativo à Terra. A primeira implicação, portanto, é que a dimensão do universo seria muito maior do que até então estimada. A segunda implicação concerne à explicação aristotélica sobre a causa da queda dos corpos; no contexto de uma concepção geocêntrica, ela decorreria da tendência da matéria de buscar o seu “lugar natural” no centro da Terra, que seria também do universo. Mas, o que sucede se a Terra não ocupar posição tão singular? A resposta a esta questão seria dada por Newton, na teoria da gravitação.

48 Francis Bacon (1561– 1626, Londres, Inglaterra) – jurista, filósofo, ensaísta e político inglês; ao planejar sua obra Magna Instauratio (Grande Instauração), propôs-se elaborar uma reorganização de todo o conhecimento, da lógica e epistemologia à ciência aplicada; na Parte II, intitulada Novum Organum (Novo Instrumento), publicada em 1620, propôs um método nos termos do qual a interpretação dos fenômenos naturais deveria basear-se na observação sistemática dos fatos e expressar-se mediante correlações essenciais que não cogitassem sobre suas causas finais ou propósitos; o título dado a esta Parte II indica sua intenção de que o novo método substituísse aquele estabelecido no Organum, a compilação medieval dos ensinamentos de Aristóteles.

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fenômeno é possível estabelecer correlações distintas compatíveis com leis mutuamente

incompatíveis, todas estabelecidas exatamente com base na mesma evidência indutiva[50]. Para

resolver este problema, Bacon propôs o experimentum crucis – experimento crucial ou

experimento crítico, ao qual uma teoria deveria submeter-se para ser considerada saber científico

estabelecido49. Na filosofia da ciência, a noção, mais exatamente, a exequibilidade de um

experimentum crucis tornou-se e mantém-se um tema controverso[54], sob o duplo argumento de

que via de regra a própria concepção do arranjo experimental subentende a validade das

correlações a serem verificadas; e que não é possível assegurar que a tabulação de um dado

conjunto de variáveis diretamente observáveis de um fenômeno ou de uma classe de fenômenos

seja suficiente para estabelecer sua explicação, excluídas quaisquer outras. Esse último

argumento evidencia outro problema: a de que não pode haver evidência indutiva que não esteja

baseada na observação imediata50. Em suma, a indução operada sobre relações específicas,

menos gerais, não é suficiente para a revelação de leis mais gerais.

Já a intuição racional e a dedução são a base do método proposto por Descartes51, em

1637. O conhecimento científico deveria desenvolver-se como uma hierarquia de proposições

referentes a aspectos estritamente quantificáveis dos fenômenos e deduzidas de princípios gerais.

O primeiro elemento metodológico do sua proposição estabelece que não se deve aceitar como

verdade aquilo que não é auto-evidente; o segundo elemento especifica que deve-se dividir um

todo em suas partes constituintes e operar a análise em cada uma destas; o terceiro elemento

opera no sentido inverso, realizando a síntese que recompõe o todo, mediante encadeamento das

partes analisadas, arbitrariamente ordenadas das simples para as complexas sob o critério de

facilidade de compreensão; o quarto elemento, a enumeração, deve dar conta de que, na

consideração do fenômeno, nada, nenhum aspecto, foi omitido. A aplicação do primeiro elemento,

contudo, resulta em princípios que pouco mais são que conjeturas ou racionalizações intuitivas;

49 Um experimentum crucis ou instantia crucis (instância ou exemplo crucial) deve decidir entre teorias ou hipóteses conflitantes, e se uma dada proposição é correta ou não; tipicamente, a experiência crucial deveria produzir um resultado previsto por uma teoria ou hipótese, mas não por alguma outra já estabelecida. Tais episódios são muito raros no desenvolvimento da ciência. Exemplos famosos são a separação das cores através do prisma, feita por Newton; o desvio da trajetória da luz provocado pela atração gravitacional do sol, realizada por Eddington, para confirmar a existência das lentes gravitacionais previstas pela teoria da relatividade geral, de Einstein; e a explicação dada pela hipótese quântica ao espectro observado da radiação do corpo negro.

50 Por exemplo, qual evidência indutiva afirma a existência de ondas sonoras? As sensações auditivas são as mesmas quer existam quer não existam tais ondas. Nenhuma evidência indutiva pode estabelecer que uma dessas hipóteses deve prevalecer sobre a outra.

51 René Descartes (1596, La Haye, França – 1650, Stockholm, Suécia) – matemático, cientista e filósofo francês; considerado um dos precursores da filosofia moderna; questionou a autoridade e os sentidos como elementos determinantes do conhecimento; insiste em que, além do raciocínio, também a intuição desempenha papel preponderante, o que é expresso na assertiva cogito ergo sum (penso, logo existo); em 1637, publicou sua mais famosa obra, Discours de la Méthode (Discurso sobre o Método), na qual estabelece as regras do ulteriormente denominado método cartesiano, acompanhada de três ensaios, la Dioptrique (A Dióptrica), uma teoria da refração, les Météors (Os Meteoros), onde estuda meteoros, fenômenos astronômicos e atmosféricos e explica o arco íris, e la Géométrie (a Geometria), em que apresenta os fundamentos da geometria analítica e da aplicação da álgebra à geometria, e introduz a notação algébrica até hoje utilizada.

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deles são deduzidas generalizações também intuitivamente evidentes, de limitada utilidade como

conhecimento, pois não consideram o curso real de fenômenos específicos. Para superar tal

limitação, pode-se recorrer a hipóteses que, embora sugeridas pela observação e pela

experiência, devem, antes, ser consistentes com os princípios gerais e permitir a retomada da

sequência de deduções. Assim, a hipótese é, neste método, um elemento metodológico inovador,

embora seja mais apropriado considerar as hipóteses descarteanas como analogias de

experiências do quotidiano52. Finalmente, na aplicação do quarto elemento, como saber se algum

aspecto foi omitido? O critério é o da evidência, guiada pela intuição. Em suma, tanto nos

requisitos que condicionam a proposição de hipóteses quanto neste critério de inclusão, a intuição

apriorística prevalece sobre o objetivamente observado. O que impõe sérias restrições ao valor

científico dos resultados da aplicação deste método.

Entre 1634 e 1638, Galileo53 adota a hipótese científica54 como mais um elemento

metodológico e, ao elaborar uma completa descrição quali-quantitativa do movimento dos corpos,

sistematiza o novo método da ciência. A sua teoria do movimento integra os processos dedutivo,

baseado na hipótese, e indutivo, baseado na observação e na medição. Nela, a abstração e a

idealização são elementos metodológicos que estendem o alcance das técnicas de indução. Por

exemplo, as noções de “queda livre no vácuo” e de “pêndulo ideal” são mais que generalizações

de observações; representam extrapolações destas para situações-limite não encontradas na

realidade, mas concebidas pela mente. Assim, a idealização e a hipótese, o uso inédito da

dedução matemática - essencialmente, a dedução geométrica -, a identificação de elementos

mensuráveis nos fenômenos naturais e a busca por relações entre medidas destes elementos

tornam-se a essência de “um conceito novo de experiência e de teoria científicas”, com os quais

Galileu “instaura um modelo sem precedente de saber racional”[32].

52 Por exemplo, para Descartes, no coração há geração espontânea de calor, que vaporiza o sangue venoso; a expansão deste o impele ao sistema arterial; esta descrição contradiz fatos já conhecidos na época. Outro exemplo: a reflexão da luz explica-se por analogia ao rebote de bolas quando chocam-se contra superfícies duras. O movimento dos planetas compara-se ao de rolhas que flutuam no turbilhão de um fluido em escoamento.

53 Galileo Galilei (1564, Pisa, Itália - 1642, Arcetri, Itália) - matemático, astrônomo e físico italiano; considerado o iniciador da física experimental; a sua obra, Discorsi e Dimostrazioni Mathematiche Intorno à Due Nuove Scienze Attenenti alla Meccanica & i Movimenti Locali (Discursos e Demonstrações Matemáticas concernentes a Duas Novas Ciências Atinentes à Mecânica e aos Movimentos Locais), de 1634, formula uma unificação do saber científico da época, sendo o marco fundador das disciplinas da Resistência dos Materiais e da Mecânica Clássica e de sua constituição como ciências. Nesta obra, entre outros temas, desenvolve o conceito de similitude e a teoria da semelhança física; descreve matematicamente a natureza parabólica da trajetória dos projéteis e as leis que regem o movimento do pêndulo simples; demonstra que a aceleração gravitacional terrestre é a mesma para qualquer corpo; concebe e formula o conceito de referencial.

54 Uma hipótese científica é uma suposição ou uma conjetura sobre uma relação real ou sobre as causas de relações reais, através da qual fatos ou fenômenos reais podem ser explicados[63]. Assim concebida, uma hipótese é uma formulação matemática baseada na observação e deve preceder e guiar a experiência, que é feita para verificá-la; isto é, o experimento deve ser organizado de forma a reproduzir as condições afirmadas na conjetura.

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As hipóteses formuladas e a teoria desenvolvida por Galileu concernem à

Cinemática55, ou seja, à caracterização físico-matemática do movimento; cogitam do seu

transcorrer e não das suas causas. Para tratar destas, outro elemento metodológico adquire

significado científico preciso: o princípio da causalidade, ou seja, a noção de causa-e-efeito56.

Implicitamente, Galileu a menciona quando discorre sobre o que poderia causar variação no

movimento de um corpo57. Coube a Newton58 a formulação adequada e definitiva de uma teoria

sobre as causas do movimento - a Dinâmica.

Em 1687, com a gravitação universal, Newton apresentou uma teoria unificada da

Mecânica mediante a qual todos os fenômenos da dinâmica e da astronomia puderam ser

explicados. O método adotado na elaboração da chamada síntese newtoniana é axiomático; nele,

novos e já conhecidos elementos metodológicos são combinados no que é considerada uma

aplicação perfeita do método científico. O método axiomático newtoniano desenvolve-se em três

estágios[38]. Inicialmente, são formuladas proposições, os axiomas, que estendem-se, como

princípios, além da evidência indutiva original. Dos axiomas são deduzidas consequências, os

teoremas. Ao contrário destes, os axiomas não podem ser deduzidos de outras proposições.

Ambos, axiomas e teoremas, apoiam-se em noções fundamentais não demonstráveis, enunciadas

como definições. O conjunto dedutivamente organizado de axiomas, teoremas e definições

constitui um sistema axiomático. Em seguida, devem ser especificadas correlações entre

teoremas e observáveis dos fenômenos. As correlações e suas consequências são, então,

55 Termo cunhado por André-Marie Ampère, em 1834[4]: “... j'ai donné le nom de cinématique, de κίνημα, mouvement¨...”. 56 Segundo o princípio da causalidade, um evento, qualquer evento, é um efeito precedido de uma causa. Dada a causa, tem-se o

efeito. Todos os eventos ou, nos termos aqui utilizados, todas as transformações que sucedem na natureza decorrem de relações desse tipo. Para o pensamento aristotélico, há quatro causas ou princípios de explicação: a causa materialis ou causa material – a substância da qual o objeto é feito; a causa formalis ou causa formal - a maneira como a transformação sucede no objeto ou a forma do processo; a causa efficiens ou causa eficiente – o potencial motriz que impulsiona a interação; e a causa finalis ou causa final – o propósito último da transformação. Para Aristóteles, a causa final tem primazia; para a ciência moderna, a causa eficiente é geralmente considerada a explicação do evento ou da transformação. Por exemplo, à pergunta “por que ocorre a coisa A?”, a resposta em termos aristotélicos seria: “porque é da natureza de A ocorrer como ocorre”; para a ciência moderna, a resposta parece óbvia: “porque, antes, ocorreu tal coisa B”.

57 “...qualquer velocidade, uma vez impressa a um corpo em movimento, permanecerá de forma indestrutível desde que sejam removidas as causas externas de aceleração ou retardamento...”[22]. Na sequência, Galileu refere-se às aceleração e desaceleração que ocorrem, respectivamente, em movimentos descendentes (“movimento natural”) e ascendentes (“movimento forçado”) em relação a um plano horizontal. Dessa constatação teria emergido o conceito de que o movimento contínuo e uniforme apenas poderia ocorrer se o corpo mantivesse uma distância constante ao centro da Terra. Por não ter procedido na forma preconizada pelo seu próprio método, é incerto e controverso se Galileu faz, nesta formulação, uma referência cientificamente consistente, ainda que imprecisa ou incompleta, ao conceito de força e ao princípio da inércia[55],[15]. A controvérsia está na conjetura sobre o conceito ao qual Galileu recorre, se a um princípio de inércia (o de uma “inércia circular”, como alguns a denotam) ou a um conceito de conservação da velocidade. Observe-se que não era nova a ideia de que o movimento tende a persistir na ausência de uma ação externa. No ano 100 d.C., Plutarco escrevera: “...tudo é carregado pelo movimento que lhe é natural, se não for defletido por alguma outra coisa...”; em 1490, Leonardo declarara: “...todo corpo tem peso na direção na qual se move...”.

58 Isaac Newton (1642, Woolsthorpe, Inglaterra – 1727, Londres, Inglaterra) – físico e matemático inglês; a sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), publicada em 1687, é o ponto culminante do processo que estabeleceu os fundamentos da ciência moderna. Nela, introduz conceitos de novas grandezas físicas e novos termos - quantidade de massa , quantidade de movimento; redefine antigos significados - força, tempo, espaço; cria uma nova linguagem matemática – o cálculo diferencial e o cálculo integral; formula a lei da gravitação universal, as leis do movimento - o princípio da inércia e a relação entre força e aceleração - e a lei da ação-e-reação.

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submetidas à confirmação experimental. Desta, origina-se a evidência indutiva que eventualmente

sugere e lastreia novas proposições.

Como se sabe, os axiomas da Mecânica são as três leis do movimento. A formulação

da primeira lei - “Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme numa

linha reta a menos que seja compelido a mudar aquele estado por forças que sobre ele atuem” -

apoia-se sobre mais um elemento metodológico, o sistema ideal isolado. Um sistema [...um

corpo...] é isolado de um universo do qual faz parte, o que significa que a descrição do seu

comportamento [...continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme...] faz referência

ao restante das coisas com as quais o sistema pode ou poderia relacionar-se [...forças que sobre

ele atuem...]. Assim, a concepção de um sistema isolado não pressupõe que ele seja

independente do restante das coisas, mas que ele esteja livre de uma dependência causal e

contingente em relação a interações específicas com o resto do universo. Mais ainda, se o

sistema é ideal, essa liberdade é requerida apenas em relação a certas características abstratas

atribuídas ao sistema isolado ou ao seu comportamento [...movimento uniforme numa linha reta...]

e não em relação ao sistema real e concretamente considerado. O conceito de sistema ideal

isolado é essencial para o desenvolvimento de várias teorias científicas, dentre as quais a

Termodinâmica.

O método axiomático newtoniano orientou o desenvolvimento da atividade científica

pelo menos até os primeiros anos do Século XX, particularmente na Astronomia, na Física e na

Engenharia. Por esta época, indagações sobre o significado da observação ou do fato

experimental e novos desafios práticos e conceituais resultaram na formulação da Teoria da

Relatividade e da Mecânica Quântica e, mais recentemente, da Teoria dos Buracos Negros e da

Teoria das Cordas. Em síntese, foram suscitadas novas e importantes questões metodológicas

relativas ao papel da observação e da realização de experiências para definição do fenômeno a

investigar e para a formulação de teorias científicas59. Para a filosofia e a epistemologia, por todo

o período desde o Século XVII até, pelo menos, finais do Século XX, a questão do método

59 Heisenberg[28] cita, de Einstein, a seguinte reflexão: “...É errado tentar fundamentar uma teoria apenas em grandezas observáveis. Na realidade, ocorre justamente o contrário. É a teoria que decide o que podemos observar.... O fenômeno sob observação produz certos eventos em nosso aparelho de medição. Como resultado, ocorrem outros eventos no aparelho que, eventualmente e por caminhos complicados, produzem impressões sensoriais e nos ajudam a fixar os efeitos em nossa consciência. Ao longo de todo este caminho – do fenômeno à fixação em nossa consciência -, nós devemos ser capazes de dizer como a natureza funciona, devemos conhecer as leis da natureza pelo menos em termos práticos, antes de podermos afirmar que observamos alguma coisa. Só a teoria, isto é, o conhecimento das leis naturais, nos habilita a perceber o fenômeno subjacente a partir de nossas impressões sensoriais. Quando afirmamos que observamos algo novo, nós deveríamos de fato dizer que, embora estejamos prestes a formular novas leis da natureza que não estão em concordância com as antigas, nós não obstante supomos que as leis existentes – por todo o caminho do fenômeno à nossa consciência – funcionam de tal maneira que podemos nelas confiar e, consequentemente, falar de 'observação' ”.

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científico manteve-se aberta e controversa60. Não obstante, para as finalidades desta resenha e

para o escopo da teoria da Termodinâmica a ser desenvolvida adiante, é suficiente a noção dos

elementos metodológicos até aqui apresentados.

Primeiros Passos

Como visto, a concepção newtoniana da Mecânica constrói um completo e abrangente

sistema de representação e explicação dos fenômenos da natureza inanimada. Três de suas

noções fundamentais, formuladas como definições, são fundamentais também para a

Termodinâmica. As duas primeiras concernem ao tempo e ao espaço absolutos. O tempo é um

continuum, constituído por uma sucessão ordenada de instantes e independente de qualquer

referencial, ou seja, de qualquer instante se progride indefinidamente para o passado assim como

para o futuro. O espaço é, também, um continuum, mas uniforme, sem ordenação, e imutável,

sendo constituído de lugares e independente da matéria61. A terceira noção é que a matéria é um

atributo mensurável de um objeto e que a massa designa a quantidade de matéria nele contida.

Um objeto material ocupa, em cada instante, apenas um lugar no espaço; o volume é a medida

deste lugar.

Na época da formulação da concepção newtoniana, as explicações dominantes dos

fenômenos termofísicos e termoquímicos persistiam feitas em termos essencialmente qualitativos.

Em parte, essa situação decorria da inexistência de séries precisas de observações quantitativas,

posto que decorrentes de medições realizadas com instrumentos rudimentares. Sem submeter-se

aos métodos quantitativos que já caracterizavam a representação dos fenômenos mecânicos, tais

observações pouco bastavam para inferir comportamentos sistemáticos e fundamentar a

proposição de uma estrutura conceitual abrangente e consistente, a partir da qual fenômenos

termofísicos e termoquímicos pudessem ser apropriadamente entendidos e explicados. Assim,

não obstante sua evidente inadequação e o erro de suas predições, a maioria das explicações

baseava-se ainda na concepção aristotélica da natureza; na alquimia; ou, herança de certo

60 Neste âmbito, são várias as questões controversas. Por exemplo, a observação dependente da teoria? (ver nota anterior) Dado que, mediante a introdução de hipóteses ad hoc apropriadas, uma teoria poderia ser sempre compatibilizada com qualquer observação empírica, poder-se-ia determinar a correção de uma teoria por sua submissão à prova empírica? Qual é o critério de demarcação entre o que é e o que não é ciência ou conhecimento científico?

61 Nas palavras de Newton[43]: “o tempo absoluto, verdadeiro, matemático, em si próprio e por sua própria natureza, flui uniformemente sem relação a qualquer coisa externa ...”; “o espaço absoluto, em sua própria natureza, sem relação a qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel...”; “...a ordem das partes do tempo é imutável, também assim é a ordem das partes do espaço...”; “...todas as coisas são postas no tempo numa ordem de sucessão; e, no espaço, numa ordem de situação...”.

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obscurantismo medieval, em influências e simpatias62, crenças e superstições.

Combustão

A concepção mais remota e primitiva do fogo é metafísica: o fogo seria o principio

básico do universo; a chama, a manifestação de um algo imaterial encerrado nos materiais. Para

Heráclito e os filósofos pitagóricos do Século V a.C., a ação do fogo reduziria a matéria à sua

forma mais elementar, ou seja, transformaria uma estrutura complexa noutra, de constituição mais

simples. Seguiu-se, então, a noção de que os materiais combustíveis encerrariam um princípio

inflamável que escaparia, quando da queima. Concepções posteriores cogitaram-lhe uma

natureza material, algo que se desprende do material que queima. No entanto, já no Século III

a.C. Philon de Bizantium63 constata que a queima de um material não se mantém se feita no

interior de um recipiente fechado; ele propõe que o ar atmosférico, inicialmente contido no

recipiente, seria “consumido” durante a combustão. Na China do Século VIII d.C.[52], a combustão

era explicada como uma combinação de certos materiais com uma parte do ar atmosférico. Tal

“parte do ar” seria expressão de um dos princípios opostos da natureza, o yang, sendo a “outra

parte” o yin64. Essas explicações metafísicas do fenômeno da combustão anteciparam, por vários

séculos, a concepção científica que, semelhante, posteriormente viria a prevalecer.

Em 1669, Becher65 sugeriu a existência de uma terra combustível, presente em todos

os materiais e liberada durante a combustão. Em 1703, Stahl66 elaborou uma síntese das ideias

em circulação e postulou que os materiais combustíveis conteriam um elemento fugaz, sutil e

62 No seu significado original, na idade média, influências denotam ações atribuídas aos astros sobre os seres animados e inanimados e que determinam o seu destino; simpatias denotam correspondências que se supõe existir entre as qualidades de certos corpos.

63 Philon de Bizantium [Filón de Bizâncio] [290 a.C., Bizâncio (Turquia) – 220 a.C., ?] - engenheiro grego; escreveu um amplo tratado sobre mecânica do qual perduraram fragmentos sobre pneumática, balística, mecanismos e aplicações bélicas dos princípios da tensão e torção de corpos elásticos; descobriu a expansividade do ar mediante aquecimento, utilizando-a para bombeamento d'água e para construção do termoscópio, um instrumento rudimentar que indicava variações da pressão e temperatura ambientes.

64 A oposição yin-yang é associada à ideia de cinco agentes ou elementos fundamentais da natureza - madeira, fogo, terra, metal e água; yang representa a criação, a luz, o calor, o ativo, o dominante; yin representa a contemplação, o escuro, o frio, o passivo, o submisso.

65 Johann Joachim Becher (1635, Speyer, Alemanha - 1682, Londres, Inglaterra) - alquimista, químico, médico e negociante alemão, provavelmente o primeiro a elaborar uma teoria da química; em 1667, publicou a obra Physica subterraneae (Física Subterrânea) em que expôs a idéia de que os corpos naturais seriam compostos por princípios próximos, como a água e a terra; nesta última, distinguia três elementos, terra lapida, vitrea ou fundente, terra mercurial ou fluida e terra pinguis ou fértil, inflamável.

66 Georg Ernst Stahl (1660, Ansbach, Francônia - 1734, Berlin, Prússia) - alemão, professor de química e medicina na Universidade de Halle; elaborou a primeira quantificação sistemática das transformações químicas, embora ainda sem os conceitos de átomo e de elementos químicos.

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indestrutível, o flogístico67. Liberado durante a queima, a chama seria a sua forma visível; um

material cuja combustão não deixasse restos seria constituído de puro flogístico; e, dadas as

condições apropriadas, fosse este restituído aos restos queimados da combustão, reconstituir-se-

ia o material combustível original. A Teoria do Flogístico contribuiu para a formulação de vários

conceitos e métodos fundamentais da Química, mediante os quais foram feitas importantes

descobertas.

No início do Século XVII, Helmont68 descobriu que o ar atmosférico é composto por

diversos gases; descobriu, também, a existência de um certo produto gasoso da combustão. Em

1774, Black69 denominou-o ar fixo, após demonstrar que esse gás inibe a combustão. No curso de

experiências realizadas na década 1750-60, Lomonosov70 verificou que os restos de um processo

de combustão, inclusive cinzas, fumaça e os gases produzidos, pesam mais do que os materiais

antes de sua realização. Sugeriu, então, que a combustão seria uma combinação química violenta

de uma substância com uma parte do ar. Esta “parte do ar”, chamada ar perfeito, ar de fogo ou ar

vital, foi descoberta por Scheele71, em 1772. Neste mesmo ano, Rutherford72 descobriu um

componente do ar atmosférico que não participa do processo de combustão; denominou-o ar

flogisticado. Alguns anos antes, em 1766, Cavendish73 supôs ter isolado o flogístico, ao descobrir

um gás explosivo produzido pela combinação de metais e ácidos; denominou-o ar inflamável. Em

67 Flogístico: da palavra grega phlogistós, “inflamado”; sucedâneo da terra inflamável, concebido como um elemento imaterial e não como uma substância, o flogístico circularia entre os materiais, inexaurível, dando-lhes combustibilidade; no curso da combustão, o ar atuaria como mero transmissor do flogístico liberado; com o progresso das técnicas de medição, o flogístico passou a ser considerado uma substância real à qual atribuía-se a variação de peso dos materiais envolvidos num processo de combustão.

68 Joannes Baptista van Helmont (1580, Bruxelas, Bélgica – 1644, Vilvoorde, Bélgica) – químico, físico e fisiologista belga; considerado um dos precursores da bioquímica; considera-se que fez a “ponte” entre a alquimia e a química; inventou a palavra “gás”; descobriu que o spiritus sylvestre (espírito silvestre, hoje dióxido de carbono) é a mesma substância produzida durante a fermentação e a combustão.

69 Joseph Black (1728, Bordeaux, França - 1799, Edinburgh, Escócia) - químico e físico britânico; professor na Universidade de Glasgow, Escócia; reconheceu o papel do dióxido de carbono no processo de combustão, introduziu os conceitos de calor específico e calor latente; estabeleceu os fundamentos do que veio a denominar-se Teoria do Calórico e as bases quantitativas da disciplina Transferência de Calor.

70 Mikhail Vasilyevich Lomonosov (1711, Kholmogorov, Rússia - 1765, S. Petesburgo, Rússia) - poeta, cientista e gramático russo; na sua obra Meditationes de Solido et Fluido (1760), propôs o que é provavelmente a primeira formulação de uma lei de conservação da matéria e energia, designada “lei universal da natureza”, que expressava suas concepções teóricas sobre a unidade dos fenômenos naturais e sobre a natureza corpuscular da estrutura da matéria; rejeitava a Teoria do Flogístico.

71 Karl Wilhelm Scheele [1742, Stralsund, Pomerânia (Alemanha) – 1786, Köping, Suécia] – químico e farmacêutico sueco; descobridor de várias substâncias químicas, dentre as quais o oxigênio, esta em 1772; a primazia de tal descoberta lhe é raramente reconhecida, em virtude de atrasos da publicação de seus resultados experimentais no livro Abhandlung von der Luft und dem Feuer (Tratado sobre o Ar e o Fogo), de 1777.

72 Daniel Rutherford (1749 - 1819, Edinburgh, Escócia) – botânico, químico e médico escocês; por ter sido o primeiro a publicar seus resultados, é-lhe atribuída a descoberta do nitrogênio, ainda como estudante de medicina, em Edinburgh, embora haja dúvidas quanto à real precedência relativamente às descobertas similares de Scheele, Priestley e Cavendish.

73 Henry Cavendish (1731, Nice, França – 1810, Londres, Inglaterra) – físico e químico inglês; descobriu o hidrogênio, ao qual denominou ar inflamável ou puro flogístico; foi um dos descobridores da composição do ar, da composição da água e da natureza e propriedades do hidrogênio; realizou medições pioneiras do calor específico de várias substâncias e de várias propriedades da eletricidade; num experimento famoso, determinou a massa e a densidade da Terra.

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1774, Priestley74 o isolou, chamando-o ar deflogisticado. Já em 1766, em eventos independentes,

Warltire75 e Macquer76 observaram que a combustão do ar inflamável produz água. A água seria,

então, a combinação do ar deflogisticado com o flogístico. As denominações dadas a essas e a

outras substâncias descobertas naquele período demonstram que a Teoria do Flogístico oferecia

uma explicação unificadora das transformações que ocorrem nos materiais durante o fenômeno

da combustão. Submetida a ajustes77 que procuravam explicar evidências empíricas disponíveis, e

não se prestando a verificações quantitativas, a Teoria do Flogístico persistiria aceita nos meios

científicos por quase todo o Século XVIII.

Entre os anos 1770 e 1789, Lavoisier78 realizou uma série de experimentos relativos

ao papel desempenhado pelo ar atmosférico no processo de combustão, utilizando a balança

como principal instrumento de medida. Lavoisier propôs que, durante a queima, ar deflogisticado,

que denominou oxigênio, combina-se com a substância combustível, sendo absorvido nos

produtos da combustão. Dentre estes, encontra-se o ar fixo, depois chamado dióxido de carbono.

Ao invés da liberação de flogístico, ter-se-ia absorção de oxigênio, o que explica o aumento do

peso dos produtos da combustão. A parte do ar que não participa do processo de combustão, o ar

flogisticado, foi chamada azoto, ulteriormente, nitrogênio. A combustão consiste, então, de uma

rápida combinação de matéria orgânica com o oxigênio do ar, usualmente incandescente, em que

são produzidos dióxido de carbono e calor. Lavoisier demonstrou, ainda, que a respiração dos

seres vivos é um processo essencialmente similar ao da combustão, embora muito mais lento; e

mostrou que, no processo de calcinação de metais, do qual não resulta dióxido de carbono, o ar

desempenha essencialmente o mesmo papel que no processo de combustão. Em 1783, baseado

em resultados experimentais, Lavoisier estabeleceu que a água é um produto da combinação de

74 Joseph Priestley (1733, Birstal Fieldhead, Inglaterra – 1804, Northumberland, Pa., EUA) – clérigo, cientista político e físico inglês; descobridor de várias substâncias químicas, dentre as quais a amônia, o ácido clorídrico, o óxido nítrico e o oxigênio, esta em 1774, independentemente de Scheele; a primazia de tal descoberta lhe é freqüentemente atribuída; relatou regularmente suas experiências com gases na série Experiments and Observations on Different Kinds of Air (Experimentos e Observações sobre Diferentes Tipos de Ar), com seis volumes, publicada entre 1774 e 1786; manteve-se sempre fiel à idéia do flogístico.

75 John Warltire (?) - químico inglês, citado nas publicações de Priestley e Cavendish com relação a experiências de produção de água a partir da combustão do ar inflamável ou flogístico no ar atmosférico.

76 Pierre Joseph Macquer (1718 - 1784, Paris, França) - médico e químico francês, administrador da fábrica de porcelana de Sèvres; foi o primeiro a desenvolver a idéia da química como uma disciplina sistemática e quantitativa; em 1749 e 1751, respectivamente, publicou os dois volumes do tratado Élemens de Chymie Théorique et Pratique (Elementos de Química Teórica e Prática); em 1766, publicou anonimamente o primeiro dicionário de Química Geral Dictionnaire de chymie, contenant la théorie & pratique de cette science (Dicionário de Química, contendo a teoria e a prática desta ciência).

77 Exemplos de tais ajustes: associando a evidência do aumento do peso total dos produtos da combustão à observação de que a chama ascende verticalmente, atribui-se um peso negativo ao flogístico; num ambiente fechado, a combustão deixa de ser possível quando o ar torna-se saturado de flogístico.

78 Antoine-Laurent Lavoisier (1743 - 1794, Paris, França) - cientista francês e administrador público; em 1786, publicou um contundente ataque à Teoria do Flogístico; baseado em suas descobertas e teorias, um grupo de químicos franceses publicou, em 1787, a obra Méthode de Nomenclature Quimique (Método de Nomenclatura Química), no qual são classificados e renomeados os elementos e compostos químicos conhecidos; a sua obra, Traité Élémentaire de Chimie (Tratado Elementar de Química), publicado em 1789, é o marco fundador da Química Moderna, em que são introduzidos o conceito de elemento químico e o princípio de conservação da massa durante as reações químicas; esta obra estabelece o abandono da Teoria do Flogístico.

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oxigênio com ar inflamável, renomeado hidrogênio79. As formulações teóricas, elaboradas

principalmente por Lavoisier, e a explicação sistemática das evidências empíricas finalmente

implicaram no abandono da Teoria do Flogístico, substituída pelos conceitos, princípios, métodos

e procedimentos que vieram a constituir as disciplinas Química Analítica e Termodinâmica

Química.

Termometria

As sensações fisiológicas de quente e frio são inerentemente subjetivas. Evidencia

essa subjetividade a situação em que, num mesmo ambiente, alguns têm a sensação de quente,

outros, de frio; ou as sensações de quente ou de frio que se tem ao contato com objetos feitos de

materiais diferentes, tais como madeira e metal. Tais sensações são de fato relativas, posto que

manifestam-se como um “mais quente” ou “menos frio” e um “menos quente” ou “mais frio” em

relação a uma sensação de referência intrínseca e individualmente adotada. Cerca de 170 d.C.,

Galeno80 prescreveu o mais antigo método de que se tem registro para qualificação do quente e

do frio; subjetivo e de utilidade muito limitada, o seu método era baseado na sensação cutânea

causada por drogas medicinais81,[21],[14].

A observação de materiais submetidos a processos que os tornam mais quentes ou

mais frios constata a ocorrência de variações em alguns de seus atributos físicos diretamente

observáveis. Facilmente perceptível é, por exemplo, o aumento do volume de um sólido ou de um

líquido que, à proximidade do fogo, torna-se mais quente; ou o aumento da pressão de um fluído

encerrado num recipiente rígido quando submetido ao mesmo processo. Comportamento inverso

ocorre à proximidade do gelo82, os materiais tornam-se mais frios, a pressão assim como,

geralmente, o volume diminuem. Há outros processos que podem provocar estes mesmos efeitos.

79 Após o abandono da Teoria do Flogístico, mudaram as denominações de vários dos gases então conhecidos. Em 1777, Lavoisier cunhou os nomes oxigênio (do grego, produtor de ácido) para denominar o ar deflogisticado ou ar perfeito; hidrogênio (do grego, produtor de água) para denominar o flogístico ou ar inflamável; e azoto (do grego zōē, que não mantém vida), em 1790 substituído por nitrogênio (do grego, produtor de nitro), para denominar o ar flogisticado.

80 Claudius Galenus [Galeno, Galenos, Galen] [ca. 129 d.C., Pergamum, Mysia (atual. Turquia) – 199 d.C., Roma, Itália] – médico grego; fundador da fisiologia experimental e precursor da moderna farmacologia; entendia a medicina como um saber global, científico, filosófico e literário; por cerca de 1400 anos, o seu pensamento teve forte influência na medicina; afirmava que a matéria apresenta quatro temperamentos fundamentais - quente, frio, úmido e seco, combináveis em diferentes graus; o perfeito equilíbrio corresponde ao temperamento moderado (temperamento temperato), todas as outras situações são ditas de temperamentos imoderados (temperamenti intemperati).

81 O método de Galeno estabelecia quatro graus quentes (calor sem desconforto; calor com desconforto; calor com dor; calor com grave alteração cutânea), quatro graus frios (ligeiramente refrescante; evidentemente refrescante; intensamente refrescante; perda de sensibilidade) e um grau neutro, temperado, que corresponde à sensação causada por uma mistura de quantidades iguais de água fervendo e gelo.

82 As referências à proximidade do fogo e à proximidade do gelo são feitas para caracterizar situações extremas que, para a sensação fisiológica comum, são respectiva e indiscutivelmente quentes ou frias.

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Um gás torna-se mais quente quando submetido a um processo de intensa compressão e, no

sentido inverso, mais frio se submetido à expansão. Atributos físicos de materiais cujos valores

variam quando estes tornam-se mais quentes ou frios são chamados propriedades termoscópicas.

Cerca de 250 a.C., Philon inventou o termoscópio, reinventado na Itália83, em 1592.

Esse aparelho rudimentar consiste de um recipiente fechado contendo água e ar; sua parte

inferior é conectada ao segmento mais curto de um tubo em forma de J. O segmento mais longo

deste J é vertical e aberto à atmosfera, ver Figura 2.1[a]. À proximidade do fogo, o ar interior do

termoscópio torna-se mais quente e expande; à proximidade do gelo, torna-se mais frio e contrai.

A variação do volume do ar move a água, através do tubo J, para fora ou para dentro do

recipiente. Desta maneira, o sentido do movimento da linha d'água no segmento mais longo do

tubo é uma indicação qualitativa de que o ar torna-se mais quente ou mais frio, não havendo,

porém, qualquer quantificação deste efeito, por mais precisa que seja a medida da variação do

volume da água no seu interior.

Objetivamente, sem valer-se da sensação fisiológica, como determinar o quanto um

material está quente ou frio? Para responder esta questão com base na observação empírica, são

feitas as seguintes proposições: [a] há um atributo físico do material, sua temperatura, cujo valor é

a expressão objetiva da sua condição de estar quente ou estar frio, independentemente do

processo mediante o qual essa condição é estabelecida; [b] a medida desse atributo, ou seja, o

valor da temperatura, é um número arbitrariamente estipulado para cada conjunto de valores das

propriedades termoscópicas mensuráveis do material que, então, passam a ser designadas

propriedades termométricas.

Agora, o que significa medir a temperatura de um corpo ou de um ambiente? A

resposta a esta questão envolve três noções empíricas, fundamentais para a Termodinâmica,

duas das quais já implicitamente consideradas na proposição do conceito de temperatura. A

primeira é que, postos em contato, corpos desigualmente quentes ou desigualmente frios

geralmente estão sujeitos a influências recíprocas, a uma interação. Para inferir a ocorrência de

interação, recorre-se à seguinte relação causal: há interação se, ao contato, variarem os valores

de alguns dos atributos físicos dos corpos; não há interação se não ocorrem tais variações. A

constatação empírica é que, se há interação, quanto maior for aquela desigualdade, mais variam

os valores desses atributos84. A desigualdade, portanto, atua como potencial-motriz da chamada

83 O termoscópio de Philon de Bizantium foi aperfeiçoado por Heron de Alexandria, que o descreveu em sua obra Pneumática, traduzida do grego para o latim, em 1575; há controvérsia sobre quem, ca. de 1592, reinventou o termoscópio, se Galileo - o mais frequentemente citado, Sanctorius ou Sagredo.

84 De fato, mesmo havendo a desigualdade, a interação pode não ocorrer devido a uma propriedade particular da interface entre os corpos. Tal propriedade é dita adiatérmica ou adiabática. Por simplificação, essa condição não é aqui considerada. Pressupõe-

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interação térmica.

A segunda noção corresponde ao que pode ser caracterizado como um princípio de

tendência ao equilíbrio, segundo o qual corpos que estejam desigualmente quentes ou frios,

quando postos em interação mútua e exclusiva, tendem a tornar-se igualmente quentes ou

igualmente frios. Ou seja, há uma tendência à extinção do potencial-motriz da interação; extinto

este potencial, cessa a interação. Essa condição final caracteriza o que se denomina equilíbrio

térmico entre os corpos85.

A terceira noção diz respeito à propriedade de transitividade do equilíbrio térmico.

Quando um corpo atinge uma condição de equilíbrio térmico com dois outros, cessam suas

interações térmicas com quaisquer destes. Nesta condição, se estes outros são postos em

contato, também entre eles não há interação térmica. Vale dizer, eles também encontram-se em

equilíbrio térmico.

Medir a temperatura de um corpo ou de um ambiente implica, portanto, determinar a

temperatura de um objeto de medição apropriado, um instrumento denominado Termômetro86.

Para tanto, deve-se medir os valores das propriedades termométricas do seu material constituinte,

que é chamado substância termométrica. Em termos práticos, controla-se os valores de todos

menos uma dessas propriedades, de modo que o valor da temperatura passa a ser função de

apenas uma propriedade termométrica. Valores arbitrários da temperatura são então associados

aos valores da propriedade termométrica independente, constituindo-se uma escala

termométrica87. Como se percebe, termômetros são termoscópios equipados com escalas

termométricas. A construção desta escala requer interações sucessivas do termômetro com um

terceiro corpo ou ambiente, tomado como referência, quando este encontra-se sob condições

determinadas às quais são associados valores arbitrários da temperatura. Os métodos e

instrumentos de medição da temperatura são objeto da disciplina Termometria.

A primeira escala termométrica foi proposta por Sanctorius88, em 1612. Aplicada ao

se, ainda, a ausência de interações que não sejam aquelas causadas pelo fato dos corpos estarem desigualmente quentes ou frios. E não se cogita sobre o tempo necessário à ocorrência da interação.

85 Essa é uma expressão particular de um princípio geral de tendência ao equilíbrio: no curso de interações mútuas e exclusivas entre corpos, reduzem-se seus respectivos potenciais-motrizes, terminando por extinguirem-se, quando cessam as interações. Estabelece-se, então, uma situação particular de equilíbrio, ou seja, equilíbrio relativamente àquele tipo de interação.

86 Termômetro: das palavras gregas thermós, “quente”, ou thérmē, “calor”, e latina metrum, “medir”.87 Os métodos gerais empregados para atribuir valores numéricos à temperatura não diferem, em essência, dos utilizados para

atribuir valores a outras grandezas físicas fundamentais, tais como comprimento, massa e tempo. A adoção de padrões e de métodos de comparação e interpolação é procedimento comum a todas essas grandezas, não havendo nada de especial em relação à temperatura.

88 Santoro Sanctorius [1561, Koper (Capodistria), Istria (atual. Croácia) – 1636, Veneza, Itália] – médico italiano, pioneiro no emprego de instrumentos de precisão na prática médica; sua escala termométrica foi concebida para utilização nos estudos sobre

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Page 41: Termodinamica

termoscópio, essa escala tinha intervalos iguais entre o valor zero, arbitrado como a temperatura

da neve ao derreter, e o valor 110, atribuído à temperatura da chama de uma vela. Logo em

seguida, Sagredo89, discípulo de Galileo, adotou uma escala com 360 divisões iguais, como num

círculo, razão pela qual cada uma destas passou a chamar-se grau. Sendo o termoscópio aberto à

atmosfera, variações da pressão do ambiente externo podem impor variações no volume do ar no

interior do recipiente e deslocar a água no tubo, consequentemente afetando a medida da

temperatura. Os instrumentos que assim operam seriam mais apropriadamente denominados

baro-termômetros.

A influência da variação da pressão atmosférica sobre a medida da temperatura foi

eliminada nos termômetros que passaram a ser produzidos em Florença entre 1641 e 164490.

Para tanto, foi adotada uma variante da técnica muito simples e engenhosa, então desenvolvida

por Torricelli91 e aplicada na invenção do barômetro. Em 1644, ele descreveu essa técnica;

utilizando-a, mediu a pressão atmosférica e demonstrou a existência do vácuo. Um tubo longo é

cheio com mercúrio e posto verticalmente num vaso também com mercúrio, mas aberto à

atmosfera. A extremidade superior do tubo é fechada; a inferior, aberta – ver Figura 2.1[b]. Nesta

situação, a coluna de mercúrio no interior do tubo não ocupa toda a extensão deste; junto à sua

extremidade superior forma-se um espaço vazio, um vácuo, onde não há matéria e a pressão é

zero. A pressão atmosférica sobre a superfície do mercúrio no vaso é definida como o peso de

uma “coluna virtual” de ar que se estende vertical e ilimitadamente a partir da superfície do

mercúrio no vaso, por unidade de área desta superfície. Esta pressão é equilibrada pela pressão

causada pelo peso da coluna de mercúrio cuja altura é medida a partir da superfície do mercúrio

no vaso, por unidade de área da seção transversal do tubo. Tem-se, em conclusão92:

o metabolismo basal; a sua obra Commentaria in artem medicinalem Galeni (Comentários sobre as artes medicinais Galenas), de 1612, contém a primeira menção escrita do termômetro de ar; inventou um higrômetro para medir umidade, um pêndulo para medir o ritmo do pulso, uma seringa para extração de pedras renais e vários outros instrumentos; na sua obra De Medicina Statica Aphorismi (Aforismos sobre a Medicina Estática), de 1614, descreveu uma série de experiências sobre o peso do corpo humano, descobrindo que a maior parte dos alimentos ingeridos são perdidos através do que chamou perspiratio insensibilis (perspiração insensível).

89 Giovan Francesco Sagredo (1571, Veneza, Itália – 1620, Veneza, Itália) – administrador público e diplomata veneziano; cientista amador e discípulo de Galileo; construtor de termômetros; realizou estudos sobre magnetismo, ótica, mecânica.

90 O desenvolvimento de termômetros insensíveis à pressão barométrica foi patrocinado por Ferdinando II de Medici, Grão Duque da Toscana (1610 – 1670, Florença, Itália), assim com também o desenvolvimento do higrômetro de condensação. Em 1657, Ferdinando II e Leopoldo de Medici fundaram a Accademia del Cimento (Academia de Investigação) de Florença, com o projeto de verificar e testar experimentalmente princípios da filosofia natural aristotélica. A Academia funcionou descontinuadamente por dez anos, concluindo o seu projeto em 1667, com a publicação do volume Saggi di Naturali Esperienze (Ensaios de Experiências Naturais) em que são divulgados seus principais resultados. A investigação desenvolvida na Academia, baseada nos trabalhos de Galileo, marca o início da física experimental moderna.

91 Evangelista Torricelli (1608, Faenza, Itália – 1647, Florença, Itália) – físico e matemático italiano; inventou o barômetro, com o qual demonstrou experimentalmente a existência do vácuo e determinou o peso do ar atmosférico. Em 1643, formulou o teorema de Torricelli, segundo o qual a velocidade de um fluxo de líquido em queda livre é dada por (2 g z)½, onde g é a aceleração da gravidade e z a distância vertical percorrida.

92 O barômetro é um instrumento utilizado para medir a pressão atmosférica, também chamada pressão barométrica, definida como a força por unidade de área exercida sobre uma superfície pelo peso da massa de ar acima dela.

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Page 42: Termodinamica

patm = Hg g ℓ Hg ,

onde patm denota a pressão atmosférica, ρHg a massa específica do mercúrio, g a aceleração da

gravidade e ℓHg a altura da coluna de mercúrio contada a partir da superfície do mercúrio no vaso.

Em termos estritos, o valor da pressão atmosférica assim calculado é apenas aproximadamente

correto, posto que a quantidade de ar, consequentemente, o seu peso, depende da temperatura

deste. Na variante florentina da técnica de Torricelli, a extremidade inferior do tubo não é aberta à

atmosfera mas conectada a um bulbo fechado contendo álcool diluído em água. A escala dos

termômetros assim construídos tinha 50 graus.

Cerca de 1654, também em Florença, os termômetros passaram a ser calibrados com

utilização de dois pontos fixos, também chamados pontos fiduciais93. Em 1664, Hooke construiu

um termômetro utilizando álcool como substância termométrica e demonstrou a possibilidade de

adoção de uma escala-padrão, baseada num único ponto fixo, passível de utilização por

instrumentos de diferentes tamanhos. Na sua escala, o ponto fixo é o ponto de congelamento da

água e cada grau representa um incremento do volume da coluna da ordem de 1/500 do volume

de todo o líquido contido no termômetro. Em 1665, Huygens propôs a utilização de dois pontos

fiduciais, os pontos de ebulição e de congelamento da água.

A inexistência de prescrições e padrões consensuais para definição de pontos fixos e

substâncias termométricas fez com que, ao final do Século XVII, cerca de 35 escalas estivessem

em uso, sendo virtualmente impossível comparar medições de temperatura feitas com distintos

instrumentos. Para alguns, tornou-se evidente a necessidade de alguma padronização. Duas

concepções básicas de termômetros foram então utilizadas para proposição das escalas

termométricas que terminaram por prevalecer. A primeira utiliza a pressão de um gás como a

propriedade termométrica de um termômetro que opera a volume constante. A segunda utiliza o

volume de um líquido como propriedade termométrica de um termômetro que opera a pressão

constante. Esses instrumentos são variantes construtivas do termoscópio de Philon ou do

barômetro de Torricelli, ver Figura 2.1[a-d].

93 Pontos fiduciais ou fiduciários de uma escala termométrica são valores arbitrados da temperatura a serem atribuídos a situações físicas bem definidas, estáveis e de fácil reprodução (por exemplo, situações em que coexistem água líquida e gelo; água líquida e vapor d'água; gelo, água líquida e vapor d'água).

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[a] Termoscópio de Philon – 250 a.C. [b] Barômetro de Torricelli - 1644

[c] Termômetro de Amontons - 1702 [d] Termômetro de Fahrenheit - 1724

Figura 2.1: Concepções originais de Termoscópios, Barômetros e Termômetros.

Em 1702, Amontons94 sugeriu a definição de uma escala termométrica baseada num

termômetro que utiliza o ar como substância e a pressão como propriedade termométricas [3]. A

94 Guillaume Amontons (1663 – 1705, Paris, França) – físico francês, inventor de diversos instrumentos científicos; descobriu o atrito estático, isto é, a resistência oposta para mover um corpos a partir do repouso; concebeu um método para medir uma variação de temperatura em termos de uma variação correspondente da pressão de uma massa constante de ar, mantida a volume também constante; o seu método está na base do conceito do zero absoluto de temperatura, ulteriormente desenvolvido.

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arar

ℓHg

ar

ℓHg

Hg

vácuo

ar

águaHg

AratmHg

vácuo

ℓHg

Page 44: Termodinamica

concepção construtiva desse termômetro é semelhante a do termoscópio de Philon, já descrito,

mas utiliza mercúrio ao invés de água, ver Figura 2.1[c]. Quando a temperatura do ar varia, a sua

tendência à variação do volume é contida pela imposição de uma contrapressão na abertura

inferior, imposta pelo peso da coluna de mercúrio somada àquela do ar atmosférico. A altura desta

coluna deve ser tal que o volume do ar é mantido constante e igual ao volume do recipiente que o

encerra. Nesta condição, o valor da pressão do ar no interior do recipiente, p = par , é calculado por

p = par = p atm Hg g ℓ Hg ,

onde a pressão atmosférica, patm, pode ser medida, por exemplo, pelo barômetro de Torricelli.

Então, com base nos resultados das experiências de Mariotte sobre o comportamento dos gases,

Amontons sugeriu que a temperatura fosse determinada através de uma relação linear com a

pressão, definida a partir de uma temperatura arbitrada para o ponto de ebulição da água, embora

não lhe tenha sugerido um valor. A escala termométrica de um termômetro de gás a volume

constante seria, então, dada pela relação:

= refp

pref,

onde θref é o valor arbitrado para a temperatura da situação de referência cuja pressão é pref .

Cerca de 1724, Fahrenheit95 adotou o mercúrio como a substância termométrica de

um termômetro que opera a pressão constante. A concepção do seu termômetro é semelhante a

do barômetro de Torricelli, porém, com o recipiente de mercúrio fechado à atmosfera, ver Figura

2.1[d]. Comparado ao álcool, então muito utilizado como substância termométrica, o mercúrio

líquido apresenta uma grande expansão volumétrica para as variações mais comuns das

condições térmicas ambientais; sua opacidade facilita a visualização. A propriedade termométrica

é, pois, o volume ocupado pelo mercúrio no interior de um tubo reto de vidro com extremidades

seladas. No espaço vazio na parte superior do tubo, acima da superfície do mercúrio, a pressão é

aproximadamente zero, de modo que o mercúrio expande isobaricamente. Os pontos fiduciais são

o valor zero atribuído à temperatura de uma mistura de água, gelo, sal de amoníaco e sal marinho

– o frio mais intenso que Fahrenheit pode registrar -, e o valor 96, atribuído à temperatura “que é

obtida se o termômetro é posto na boca, de modo a adquirir o calor de um homem sadio”, como

descreve, ou “o limite do calor que é encontrado no sangue de um homem sadio”[17] - inicialmente,

95 Daniel Gabriel Fahrenheit (1686, Danzig, Polônia – 1736, Haia, Holanda) – negociante e físico alemão, construtor de instrumentos meteorológicos de precisão; considerou inicialmente o álcool, depois, o mercúrio como substância termométrica e concebeu a escala termométrica que tem o seu nome; descobriu que a água pode permanecer líquida numa temperatura abaixo daquela do seu ponto de congelamento e que a temperatura de ebulição dos líquidos varia com a pressão atmosférica.

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Page 45: Termodinamica

este valor teria sido 24, o número de horas do dia solar, mas foi, por razões práticas, multiplicado

por quatro. Essas situações físicas de referência, porém, não são precisamente definidas nem

podem ser reproduzidas sem incertezas. Em 1742, essencialmente seguindo a concepção de

Fahrenheit, Celsius96 propôs uma escala termométrica definida em bases científicas consistentes.

Como referência para os pontos fixos, ele adotou duas situações físicas bem definidas que, em

princípio, podem ser facilmente configuradas e controladas: os pontos de congelamento e de

ebulição da água na pressão atmosférica, aos quais atribuiu os valores 100 e 0 graus de

temperatura, respectivamente. Posteriormente, esses valores foram permutados relativamente às

situações físicas de referência.

Embora várias outras escalas tenham sido propostas e eventual e circunstancialmente

utilizadas, a facilidade de construção e calibração de termômetros e a conveniência de uso

assegurou a permanência das posteriormente denominadas escala Fahrenheit e escala Celsius

de temperatura. Ulteriormente, as mesmas situações físicas foram adotadas como referências

padrão dos pontos fiduciais destas escalas. Por convenção, adotou-se:

ponto de congelamento da água na pressão atmosférica padrão97,

θ = 32 oF = 0 oC,

e ponto de ebulição da água na pressão atmosférica padrão,

θ = 212 oF = 100 oC.

Aqui, os símbolos oF e oC denotam a temperatura θ, respectivamente, em graus

Fahrenheit e em graus Celsius98. Nessas escalas, a relação funcional entre o valor da temperatura

96 Anders Celsius (1701 - 1744, Uppsala, Suécia) – astrônomo sueco, foi um dos primeiros no seu artigo Observações sobre dois graus persistentes num termômetro, apresentado em 1742 à Real Academia Sueca de Ciências, relata experiências em que conclui que o ponto de congelamento da água é independente da latitude e da pressão atmosférica, e que o ponto de ebulição depende desta; cria uma regra para determinar esta ponto em função do desvio da pressão em relação a uma certa pressão atmosférica padrão; e utiliza esses resultados para propor a escala de temperatura que tem o seu nome. A escala proposta tinha valores ascendentes da temperatura a partir do ponto de ebulição e no sentido do ponto de congelamento; assim, evitava-se operar com temperaturas de valor negativo, embora já fosse corrente a utilização de escalas de temperatura como sentido inverso. Há incerteza sobre quem promoveu a inversão do sentido da escala proposta mas, já em 1749, o próprio Celsius a mencionava.

97 Rigorosamente, essa convenção é apenas aproximadamente correta, posto que depende da definição da pressão atmosférica padrão que, por sua vez, depende da definição de temperatura. Em 1954, na 10e Conferénce générale des poids et mesures (Conferência Geral de Pesos e Medidas), foram estabelecidas as seguintes definições: a temperatura do ponto triplo da água é 0,01 oC; o intervalo de 1 oC vale 1/273,16 da diferença entre a temperatura do ponto triplo da água e o zero absoluto [o zero absoluto é um conceito termodinâmico a ser tratado adiante; equivale a -273,15 oC]; a pressão atmosférica padrão, 1 atm, é aquela da qual resulta uma coluna de 760 mm de Hg num ambiente na temperatura de 0 oC e aceleração gravitacional de 9,80665 m/s2; 1 atm = 101,325 kPa = 1,01325 bar.

98 A denominação grau Celsius foi definida pela 9e Conferénce générale des poids et mesures (Conferência Geral de Pesos e

Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 45

Page 46: Termodinamica

e o valor do volume é, por definição, linear. De modo que, suas respectivas equações

termométricas relacionam o valor da temperatura θ e do volume V do mercúrio mediante:

[ Fo ] = 32 180V − V g

Vv− Vg

e

[ Co ] = 0 100V − Vg

V v− V g,

onde Vg e Vv indicam o volume ocupado pelo mercúrio nos pontos, respectivamente, de

congelamento e de ebulição da água. Se o tubo é cilíndrico com seção transversal constante, as

equações termométricas passam a relacionar o valor da temperatura θ e a extensão ℓ do tubo de

ocupada pelo mercúrio, mediante:

[ Fo ] = 32 180ℓ − ℓg

ℓv− ℓg

e

[ Co ] = 0 100ℓ − ℓg

ℓv− ℓg,

onde ℓg e ℓv denotam as extensões do tubo ocupadas pelo mercúrio nos pontos de congelamento e

de ebulição da água, respectivamente. Finalmente, cabe observar que também a pressão p do

termômetro de gás a volume constante, semelhante ao proposto por Amontons, poderia ser

utilizada numa equação termométrica análoga àquelas que utilizam o volume ou o comprimento

para definição das escalas Fahrenheit e Celsius.

Medidas), em 1948. A denominação grau centígrado é considerada imprópria e não deve ser usada.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 46

Page 47: Termodinamica

2. Fundamentos

Teoria Fenomenológica

Nas ciências da natureza, uma teoria fenomenológica é um modelo analítico-descritivo

representativo de um ou de uma classe de fenômenos macroscópicos. Fenômeno macroscópico é

a designação genérica dada a qualquer mudança direta ou indiretamente observada num ou em

relação a um algo macroscópico identificável - um objeto material1. A observação, vale dizer, a

experiência imediata2 é, portanto, o insumo primário da construção de uma teoria fenomenológica,

com base na qual são inferidas, deduzidas ou postuladas relações entre atributos macroscópicos

quantificáveis de objetos materiais. Tais relações são supostamente representativas tanto das

interações mútuas entre estes objetos quanto das transformações que, em decorrência dessas,

são operadas em cada um deles.

Uma teoria fenomenológica não cogita desvendar a natureza nem as causas

fundamentais destas interações e transformações, não explica porque uma relação tem uma dada

forma nem porque alguns daqueles atributos assumem valores que dependem da constituição

material específica de cada objeto.

Considere-se um objeto material submetido a uma diferença de potencial elétrico, isto é, a uma

interação específica com o seu exterior. Como se sabe, dependendo da natureza de seu

1 Um objeto material é um algo extenso e tangível; uma atividade material é aquela observada num objeto material. Uma observação é um ato perceptivo de um sentido; ou seja, é um ato mediante o qual um sentido percebe ou representa um objeto material ou uma atividade material[56].

2 “Para a ciência, fatos são os dados do mundo, aquilo que percebemos por meio de nossos sentidos ou de aparelhos que ampliam esses sentidos. Já as teorias são ideias que tentam explicar e interpretar os fatos, são modelos de como o mundo funciona. Teorias são as estruturas mais importantes da ciência, enquanto os fatos só se tornam importantes quando vistos dentro de um corpo teórico. São elas que dão sentido ao que vemos e nos permitem fazer observações objetivas sobre fenômenos naturais. Sem as teorias, não conseguimos fazer perguntas em ciência, nem planejar experimentos ou interpretar os resultados obtidos.” [2]

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:53 47

Page 48: Termodinamica

material constituinte, uma corrente elétrica pode, então, percorrer o objeto. À passagem dessa,

o material aquece. Em outros termos, o objeto experimenta uma transformação; a intensidade

do aquecimento depende da intensidade da corrente elétrica.

O valor da resistência elétrica de um dado objeto material é definido como a razão entre a

diferença de potencial elétrico e a intensidade da corrente elétrica que o percorre. Se o material

do objeto é um metal cuja temperatura é mantida constante, o valor dessa razão geralmente

também permanece constante; ou seja, há uma relação linear entre a diferença de potencial e

a intensidade da corrente elétrica. Este resultado, conhecido como Lei de Ohm, é uma relação

fenomenológica descritiva da interação entre o objeto material e o seu exterior. Para materiais

não metálicos, tais como termistores e gases, a relação entre diferença de potencial e corrente

elétrica não é linear. Apenas com base em evidências fenomenológicas, não há como explicar

esses distintos comportamentos.

Enquanto a resistência elétrica é um parâmetro representativo do objeto, isto é, de sua forma e

do seu material constituinte, a natureza deste é representada por um seu atributo a que se

denomina resistividade elétrica3. Para um dado valor da corrente elétrica, é possível

estabelecer uma relação entre os valores da resistividade e da temperatura do material.

Apenas a evidência fenomenológica não explica a origem dessa relação nem a forma por ela

assumida.

A completa representação de determinado fenômeno macroscópico compreenderia a

representação, sem restrições, de todas as transformações que ocorressem em todos os objetos

materiais envolvidos num certo conjunto de interações recíprocas. Como levá-las, porém, todas

em conta, se a realidade de um fenômeno macroscópico raramente é, a qualquer observador,

absoluta e completamente acessível?4 Quase sempre, a representação de um fenômeno real é

expressa em termos das relações supostamente mais relevantes associadas à sua ocorrência.

Para determinar tal relevância, o observador deveria ser capaz de apreender todas as relações

constituintes do fenômeno e discriminar, sob algum critério, a sua importância relativa. Mas, se

assim fosse, este conjunto de relações já comporia a representação completa do fenômeno. Pelo

que, a menos de razões práticas, não mais seria necessário representá-lo ideal e parcialmente.

Na verdade, não há como reconhecer se um observador tem essa capacidade, pois não há como

determinar se um dado conjunto já compreende todas aquelas relações.

3 Mais exatamente, enquanto a resistividade é uma característica do material, a resistência é uma característica de determinado objeto constituído por este material. Para um dado objeto, a razão entre a resistividade e a resistência é igual à razão entre a área da seção transversal à direção da corrente elétrica e o comprimento correspondente à distância por esta percorrida.

4 Na verdade, qual é a realidade de um fenômeno? “...Nem [tudo] está explicado, a realidade é maior que qualquer explicação, mesmo porque a realidade muda. ..... Vivo uma coisa extraordinária que quero contar para as pessoas. .... Então eu conto aquilo. O pior é que é impossível contar. Como traduzir perfume em palavras? O poema não é a tradução do perfume em palavras, mas a criação de um artefato que pretende transmitir para o outro a experiência que senti ali. Trata-se de uma grande confusão. A verdade da poesia é o que comove, não o que se comprova..”.[25]

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Page 49: Termodinamica

Como lidar com essa questão? Como já dito, além de descritiva, a representação de

um fenômeno macroscópico deve ter uma capacidade analítica. Por conseguinte, a determinação

de relevância não se dá mediante discriminação dentre todas as relações possíveis, mas na

medida em que uma representação parcial tenha, em comparação com outra, mais consistência e

rigor formal, maior generalidade e abrangência, melhor aproximação relativamente à observação

mensurável. Ainda assim, esta representação pode ser bastante complexa se levadas em conta

as transformações que ocorrem em todos os objetos materiais, sem restrições, envolvidos num

dado conjunto de interações mútuas. Metodologicamente, é possível restringi-la ao que ocorre

num objeto material ou num conjunto restrito de objetos materiais - num sistema - que esteja em

interação com um exterior arbitrariamente especificado que, mesmo sendo parte, não é objeto da

análise. Em outros termos, a esta análise não concerne o que eventualmente sucede nesse

exterior. Uma tal representação analítico-descritiva é, portanto, uma aproximação parcial e

idealizada da realidade de um fenômeno macroscópico porquanto não apenas seleciona quais

relações são levadas em conta mas também estabelece quais objetos integram o sistema e quais

fazem parte do seu exterior.

No contexto de uma teoria fenomenológica, uma idealização é uma representação

abstrata e esquemática de um objeto material, das transformações que nele ocorrem e das suas

interações com o exterior. Essa representação ideal refere-se a condições-limite da constituição

do objeto ou a comportamentos-limite das suas transformações e interações, geralmente não

realizáveis nem passíveis de verificação. Exemplos de representações ideais de objetos reais são,

dentre outros, o corpo rígido absoluto - indeformável; o corpo negro irradiador perfeito - não

transparente nem refletor; o gás ideal - modelo de comportamento de um gás a baixas pressões; o

sistema absolutamente isolado - não suscetível de qualquer interação com seu exterior. Uma

idealização particularmente importante, como será visto adiante, é a consideração de uma

transformação como uma sucessão de estados, ou seja, como sucessão de situações tão bem

caracterizadas pelo conjunto de valores das propriedades do objeto quanto a sua situação ou

estado inicial. Essa representação de uma transformação é denominada processo ideal.

Além das idealizações, outros elementos constitutivos da representação abstrata de

um fenômeno são as hipóteses, os conceitos básicos, postulados, princípios, axiomas e teoremas

e as convenções. Cada conjunto coerente desses elementos configura um modelo: do objeto ou

do sistema, do exterior, das transformações e de cada tipo de interação. O modelo completo de

um fenômeno pode ainda ser visto como uma articulação de modelos de aspectos particulares5

5 Os modelos particulares referem-se a representações qualitativamente diversas do fenômeno que se objetiva descrever e explicar. Poder-se-ia classificá-los como modelos estruturais, representativos da constituição do objeto; modelos comportamentais, representativos das relações entre as propriedades deste; e modelos funcionais, representativos das interações entre o objeto e o exterior. Esses modelos particulares são a base da representação analítico-dedutiva constituinte do modelo-síntese a que se denomina teoria.

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Page 50: Termodinamica

deste mesmo fenômeno. Tal modelo constitui uma teoria se é uma representação generalizada e

abrangente do fenômeno ou dos fenômenos de sua classe.

Uma hipótese é uma conjetura descritiva ou explicativa de uma relação real entre propriedades,

que se toma por válida mesmo que não se disponha de suficiente informação para comprová-

la[35],[62]. Frequentemente, idealizações são elementos constituintes da construção de hipóteses.

O modelo do continuum, por exemplo, é uma idealização porquanto a continuidade de

distribuição da matéria no espaço já não é uma conjetura de uma possibilidade real. Já um

determinado modelo corpuscular adota a hipótese de que existem tais ou quais partículas e

idealiza aspectos do seu comportamento; por exemplo, a de que ele é consequência de

choques perfeitamente elásticos entre corpúsculos perfeitamente rígidos.

Conceitos fundamentais são noções de uso universal ou, eventualmente, expressões do senso

comum, aceitas sem a necessidade de definição formal[55], mediante os quais é expressa a

ideia fundamental de uma hipótese6. Postulados são proposições a priori que expressam uma

certa concepção relativamente à apreensão da natureza, a partir da qual constrói-se uma

representação7. Axiomas são proposições tomadas como verdadeiras, não demonstráveis no

âmbito da representação da qual são elementos constituintes. Princípios expressam fatos

fundamentais da experiência[13]; eles assumem a forma de leis cuja validade delimita o âmbito

de uma representação8. Teoremas são assertivas logicamente deduzidas de axiomas.

Convenções são aspectos da linguagem própria em que é expressa uma representação,

servindo particularmente à quantificação e ao estabelecimento de sistemas de medição[35].

Nas ciências da natureza, básicas ou aplicadas, cada teoria fenomenológica configura

um modelo matemático de algum fenômeno[58] ou de alguma classe de fenômenos. Não obstante

ser uma abstração conceitual não inteiramente realizável ou suscetível de verificação, o modelo

constituinte de uma teoria fenomenológica deve ser suficientemente geral para descrever relações

permanentes e comuns ao fenômeno ou à classe de fenômenos que representa, e

suficientemente detalhado para tratar cada ocorrência particular destes[35]; ainda, deve ser

suficientemente simples para ser matematicamente tratável e suficientemente próximo da

realidade para ser útil[13]. A satisfação desses requisitos é essencial para que uma teoria possa

cumprir suas finalidades principais: possibilitar a dedução de relações quantificáveis entre

atributos representativos da condição do objeto e destes com atributos representativos da

condição do exterior, a elaboração de previsões quantitativas verificáveis ou comprováveis e a

6 No contexto de uma representação macroscópica de fenômenos físicos, massa elementar e volume elementar ou, respectivamente, elemento infinitesimal de massa e de volume são exemplos de conceitos fundamentais.

7 Exemplos de postulados: a distribuição da matéria como um continuum; a matéria como uma coleção de corpúsculos; o continnum espaço-tempo; a dualidade matéria-onda.

8 Por exemplo, a proposição da existência da grandeza física energia é um axioma; a proposição de sua conservação é um princípio. A independência dos princípios de conservação da massa e de conservação da energia é restrita à representação de fenômenos em que efeitos quânticos e relativísticos não são considerados.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 50

Page 51: Termodinamica

interpretação desses resultados à luz daquelas relações9. Complementarmente, assinale-se que a

previsão e a reprodução desses resultados são expressões, respectivamente, do pressuposto e

da confirmação da existência de certas relações causais nas interações entre o objeto e o seu

exterior.

Espaço, Tempo e Matéria

A representação analítica dos fenômenos físicos que ocorrem num ou em relação a

um objeto material é formulada em termos de grandezas físicas definidas e especificadas com

base, em última instância, na quantificação das noções de espaço, tempo e matéria. Estas são

noções a priori, são conceitos fundamentais não definíveis em termos de outras noções já antes

empiricamente estabelecidas.

Designa-se, por espaço, a noção de um continuum extenso, inerte e intangível, do

qual um local ou uma posição é uma singularidade, única e individual; por tempo, a noção de um

continuum corrente, progressivo e intangível, do qual um instante ou um momento é, similarmente,

uma singularidade única e individual; e, por matéria, a noção de um continuum extenso e ativo,

que assume uma forma tangível, da qual um objeto material elementar é uma singularidade, única

e individual, ou assume uma forma intangível, um campo físico criado por este objeto em cada

local ou posição de seu espaço circundante10. Pode-se conceber um espaço vazio e um

transcorrer temporal sem eventos; pode-se, também, conceber um continuum material com o qual

ou em relação ao qual nada ocorre. É impossível, porém, conceber um continuum material num

espaço não existente e sem um transcorrer temporal, assim como é impossível conceber um

evento, uma ocorrência ou a sua representação sem um suporte material. Qualquer evento ocorre

sempre num ou em relação a um objeto material. As noções de espaço e de tempo precedem,

portanto, a noção de matéria e, em especial, a noção de objeto material. Esta, por sua vez,

precede a noção de evento. Por suposto, um evento precede a possibilidade de sua observação e

consequente representação.

9 No entanto, deduções ou transformações operadas sobre o modelo matemático constitutivo de uma teoria fenomenológica não podem acrescer ou eliminar significados implícita ou explicitamente considerados nas idealizações, hipóteses, conceitos fundamentais, postulados, axiomas e princípios dos quais resulta.

10 Algumas representações são formuladas em termos da noção de ponto material ao invés de objeto material elementar. Cada um destes, assim como cada local e cada instante, é único e individual. Daí serem singulares. Um campo material pode ser entendido como um espaço físico de estrutura complexa, criado por um objeto material elementar e atuante no seu entorno, superposto ao espaço geométrico inerte. Por exemplo, o campo gravitacional e o campo elétrico são criados, respectivamente, por uma massa elementar e por uma carga elétrica elementar, e atuam no seus espaços circundantes. Uma teoria fenomenológica não cogita sobre a natureza nem sobre a estrutura desse espaço físico.

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Page 52: Termodinamica

Não obstante ser impossível definir espaço, tempo e matéria exclusivamente mediante

determinações quantificáveis, é possível estabelecer relações matemáticas entre locais para

quantificar distâncias espaciais11,[5]; estabelecer relações matemáticas entre percursos espaciais e

sucessões de instantes - a noção de movimento, para quantificar decursos temporais; estabelecer

relações matemáticas entre o movimento de objetos materiais em mútua interação para identificar

um determinado atributo de sua matéria constituinte – a sua massa; e, por fim, estabelecer a

quantidade da substância contida neste objeto, com base na constatação empírica da

individualidade de seu material constituinte. Assim consideradas, as noções de espaço, tempo e

matéria são a base da definição das grandezas físicas comprimento, tempo, massa e quantidade

de substância, cujas expressões matemáticas são as variáveis primárias da representação

analítica dos fenômenos macroscópicos12.

Espaço

O fundamento empírico que conduz à formulação de uma expressão matemática que

quantifica a noção de espaço é a experiência cognitiva que permite identificar locais num

continuum espacial e a possibilidade de estabelecer, entre locais, relações não causais puramente

geométricas13. Sobre tal fundamento, postula-se um espaço euclidiano14 ⵟn, 0 < n ≤ 3, homogêneo

e isotrópico. Por homogêneo entende-se que não há particularidade individual que diferencie cada

local além da evidência empírica de que cada um é uma singularidade distinta naquele continuum

espacial; por isotrópico, que não há particularidade individual que diferencie cada percurso

espacial além da evidência empírica de que cada um corresponde a uma certa concatenação de

locais.

Um local ou uma posição é um ponto no espaço. Um ponto não tem dimensão; sua

11 Estritamente, estas relações matemáticas não são definições de grandezas ou conceitos físicos, ainda que sejam eventualmente denominadas “definições operacionais”. De fato, tais relações são prescrições procedurais que objetivam, mediante medição ou cálculo, a quantificação de noções a priori, indefiníveis por natureza. As variáveis decorrentes desta matematização são chamadas primárias quando introduzidas “em primeiro lugar”, sem o pressuposto de outras variáveis; são chamadas secundárias quando suas prescrições operacionais são construídas como relações entre variáveis primárias [40].

12 Até este ponto, os termos espaço, tempo e matéria foram usados para designar noções a priori; aqui, passam a designar e ser consideradas como variáveis primárias de qualquer representação. Não fosse assim, uma representação compreenderia apenas variáveis cujos significados conceituais seriam exclusivos de si mesma ou comuns a outras representações também isentas daquelas variáveis primárias. Neste caso, ter-se-ia tão somente um sistema tautológico de conceitos e relações, que não constituiria, de fato, uma representação, pois não haveria possibilidade de estabelecer sua conexão com os fenômenos reais alegadamente representados nem haveria a consequente possibilidade de sua verificação empírica.

13 Locais de um continuum espacial apenas podem ser identificados relativamente a um sistema de referência. “Fisicamente, um sistema de referência é um conjunto de objetos cujas distâncias mútuas pouco variam no tempo, em termos comparativos, tais como as paredes de um laboratório ou as estrelas fixas.....“[60].

14 Neste texto, em que não são considerados efeitos relativísticos ou quânticos, a descrição e a representação do espaço são feitas mediante a geometria euclidiana. Esta geometria é uma construção lógico-matemática de caráter axiomático, fundada sobre conceitos abstratos e intangíveis - ponto, linha, reta, ângulo, plano etc. - que não têm significado físico direto. A singularidade espacial de cada local e as relações entre locais são caracterizadas geometricamente apenas por estes elementos.

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Page 53: Termodinamica

extensão é nula. Uma linha é um espaço unidimensional ⵟ1. Entre dois pontos, há uma infinidade

de segmentos de linha com formas e extensões arbitrárias. Um comprimento L é a medida da

extensão do segmento de linha delimitado por dois pontos; ou seja, é uma medida da quantidade

de espaço unidimensional contido neste segmento. Por definição, a distância entre dois pontos é o

segmento de linha de menor comprimento. No espaço euclidiano, este segmento é o de uma linha

reta.

A medida ou a quantificação de uma distância pode ser determinada com uma régua.

Uma régua é um objeto material com marcações ao longo de uma linha reta riscada sobre sua

extensão. As marcações contíguas são equidistantes; a distância entre duas dessas marcações

define a unidade de medida de comprimento Lu de uma certa escala [L], ou seja, Lu 1 [L≙ ]. A

medição de um comprimento consiste na verificação do número {L} de unidades de comprimento

existente entre os dois pontos. A especificação de um comprimento L tem a forma:

[2.1] L = {L} [L] .

Em outros termos, o comprimento é um atributo quantificável de uma linha, que pode

ser considerada como um conjunto de segmentos lineares elementares, configurados de tal forma

que a extensão da linha equivale à adição das extensões destes seus segmentos elementares

constituintes. Se estes segmentos são finitos, tem-se

[2.2] L =∑i=1

m

Li ,

onde Li denota o comprimento do i-ésimo de m segmentos elementares unidimensionais. Se os

segmentos elementares são infinitesimais, tem-se

[2.3] L =∫0

L

dL .

Uma superfície é um espaço bidimensional ⵟ2. A área A é a medida da extensão da

região de uma superfície delimitada por uma linha fechada; ou seja, é uma medida da quantidade

de espaço bidimensional contido nesta região. A medição de uma área consiste na verificação do

número {A} de áreas unitárias contidas numa dada região superficial. Este número é função da

unidade arbitrada. Por definição, a unidade de área Au de uma certa escala [A] é a extensão do

recorte delimitado, numa superfície plana, por um quadrado cujos lados são segmentos de reta de

comprimentos iguais à unidade de comprimento Lu, ou seja, Au = 1 [A] ≙ Lu Lu = 1 [L]2. A

especificação de uma área A tem a forma:

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Page 54: Termodinamica

[2.4] A = {A} [A] = {A} [L]2 .

Em outros termos, a área é um atributo quantificável de uma superfície, que pode ser

considerada como um conjunto de superfícies elementares, configuradas de tal forma que a área

da superfície equivale à adição das extensões destas superfícies elementares constituintes. Se

estas superfícies são finitas, tem-se

[2.5] A =∑i=1

m

A i ,

onde Ai denota a área da i-ésima de m superfícies elementares bidimensionais. Se as superfícies

elementares são infinitesimais, tem-se

[2.6] A =∫0

A

dA .

O volume V é a medida da extensão de uma região tridimensional ⵟ3, delimitada por

uma superfície fechada; ou seja, é uma medida da quantidade de espaço tridimensional contido

nesta região. Essencialmente, a medição de um volume consiste em contar o número {V} de

volumes unitários contidos numa dada região espacial. Este número é função da unidade

arbitrada. Por definição, a unidade de volume Vu de uma certa escala [V] é a extensão da região

espacial delimitada por um cubo de faces planas, cujas arestas são segmentos de reta de

comprimentos iguais à unidade de comprimento Lu, ou seja, Vu = 1 [V] ≙ Lu Lu Lu = 1 [L]3. A

especificação de um volume V tem a forma:

[2.7] V = {V} [V] = {V} [L]3 .

Em outros termos, o volume é um atributo quantificável de uma região espacial que

pode ser considerada como um conjunto de regiões espaciais elementares, configuradas de tal

forma que o volume da região equivale à adição das extensões destas regiões elementares

constituintes. Se estas regiões são finitas, tem-se

[2.8] V =∑i=1

m

V i ,

onde Vi denota o volume da i-ésima de m regiões elementares tridimensionais. Se as regiões

elementares são infinitesimais, tem-se

[2.9] V =∫0

V

dV .

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Page 55: Termodinamica

De forma equivalente, pode-se identificar o limite inferior de integração nas equações

[2.3], [2.6] e [2.9] com um ponto, que é um espaço de dimensão nula, ou como um espaço,

respectivamente, uni-, bi- e tridimensional que tem, por definição, extensão nula.

Tempo

O fundamento empírico que conduz à formulação de uma expressão matemática que

quantifica a noção de tempo é a experiência cognitiva que permite identificar instantes num

continuum temporal e a possibilidade de ordenar uma sequência de instantes mediante uma

relação causal, segundo a qual para cada agora há um imediato antes e um imediato depois15. A

cronometria - a medida do tempo - baseia-se na idealização de um movimento isocinético e

isomórfico de um objeto material num espaço tridimensional[45]. Por isocinético designa-se o

movimento no curso do qual o objeto percorre iguais distâncias em intervalos de tempo de igual

duração; por isomórfico, aquele em que as posições ocupadas pelo objeto se repetem em

intervalos temporais também de igual duração.

Como saber se, ao cabo de intervalos temporais de mesma duração, as distâncias

percorridas são iguais e os mesmos locais se repetem, se esta duração é justamente aquela que

deve ser medida? Em termos operacionais, a questão é resolvida mediante a observação de

eventos naturais que se perceba, ainda que aproximadamente, como associados à ocorrência de

movimentos isocinéticos e isomórficos16. Instrumentos podem ser construídos e regulados para

que nestes se repitam, sempre, o mesmo número de iguais configurações espaciais entre

ocorrências sucessivas daquele fenômeno natural – tais como oscilações de um pêndulo,

repetições de marcações associadas a uma sequência de números num relógio, inversões da

posição de uma ampulheta etc.

A separação temporal entre dois instantes é um intervalo; a quantidade de tempo

desse intervalo é uma duração. Numa certa escala [t], um intervalo de tempo de duração unitária,

tu 1 [≙ t], é operacionalmente definido como aquele que corresponde a uma repetição de uma

condição espacial característica de um instrumento tomado para cronômetro. A escala é

construída mediante a adoção arbitrária de uma condição de referência - um ponto-zero - e de

marcações que se sucedem ao cabo de intervalos de duração unitária17. A medição da duração t

15 Pode-se distinguir o antes do depois mediante o princípio da causalidade. A causa ocorre antes; o efeito, depois. 16 As estações do ano, a alternância noite-dia, o surgimento do planeta Vênus (estrela matutina, estrela d'alva) ao amanhecer e o

movimento estelar são fenômenos naturais em que tais condições são aproximadamente verificadas.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 55

Page 56: Termodinamica

de um intervalo temporal18 consiste, então, em contar o número {t} de intervalos de duração

unitária existentes entre dadas ocorrências de um fenômeno. Este número é função da unidade

arbitrada. A especificação da duração t de um intervalo de tempo tem a forma19:

[2.10] t = {t} [t] .

Em outros termos, um intervalo de tempo pode ser considerado como um conjunto de

intervalos temporais elementares, configurados de tal forma que a duração do intervalo equivale à

adição das durações destes seus intervalos elementares constituintes. Se estes intervalos são

finitos, tem-se

[2.11] t =∑i=1

m

t i ,

onde ti denota a duração do i-ésimo de m intervalos temporais elementares. Se os intervalos

elementares são infinitesimais, tem-se

[2.12] t =∫0

t

dt .

Ao contrário das equações [2.3], [2.6] e [2.9], o limite inferior de integração na equação

[2.12] não é necessariamente um valor-limite logicamente decorrente do fundamento empírico da

medida do decorrer do tempo. O instante-zero da medida de um intervalo temporal é sempre

arbitrariamente convencionado.

A cronometria fundamenta-se numa relação específica entre uma distância percorrida

e o intervalo transcorrido – a relação que caracteriza um movimento isocinético e isomórfico.

Implicitamente, em termos operacionais, a quantificação da extensão de intervalos temporais

baseia-se no conceito de velocidade20.

18 A rigor, o símbolo representativo de um intervalo temporal e de uma duração deveria ser t; t deveria denotar um instante ou um momento. Dado que a medição do tempo é sempre expressa por uma escala de intervalo, que não se refere a um ponto-zero “natural” mas a um ponto-zero convencionado, e para simplificar a notação, sempre que não houver margem para ambiguidade, denota-se igualmente por t um intervalo de tempo, uma duração e um instante. O significado específico de cada situação é dado pelo contexto.

19 A adoção do símbolo t para representação da variável tempo pode causar alguma confusão com os símbolos usualmente utilizados para representação da variável temperatura - T, t ou θ. Quando estes símbolos estiverem presentes numa mesma equação, os seus significados específicos são dados pelo contexto.

20 A noção de velocidade precede, em muitos séculos, o estabelecimento da expressão matemática que a define como propriedade derivada das grandezas elementares comprimento (espaço unidimensional) e tempo. Nos jogos olímpicos da antiguidade, por exemplo, a especificação da velocidade era feita em termos de rápido ou lento; os comprimentos, em termos de pés e braças. Percorrer uma dada distância em mais ou menos tempo era consequência do ser rápido ou do ser lento. O tempo aparece, então, como grandeza derivada das grandezas fundamentais comprimento e velocidade. Observa-se, aqui, alguma analogia com a noção da grandeza temperatura, cuja especificação, na antiguidade, era feita em termos dos qualificativos quente, temperado ou frio. Esta gradação é comparativa e, por certo, subjetiva.

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Page 57: Termodinamica

Em cada instante t, a posição de um objeto material em movimento é dada pelo seu vetor

posição r. A velocidade linear v é a medida da distância r percorrida pelo objeto durante um

intervalo temporal t. Este é o significado conceitual da grandeza velocidade. A expressão

matemática de tal significado representa a velocidade linear como o valor limite da distância r

percorrida durante um intervalo temporal indefinidamente pequeno, t → 0, ou seja, v lim≙ t 0

r/t. O valor da velocidade é expresso em função das unidades arbitradas para as medidas

da distância e do tempo, v = {v} [v] = {v} [L] [t]-1, onde {v} é o módulo do vetor velocidade.

Como se observa, a possibilidade objetiva de medição de distâncias espaciais e de

intervalos temporais está condicionada à utilização de objetos materiais, os instrumentos de

medição. Na verdade, as prescrições da geometria e da cronometria seriam não mais que apenas

procedimentos abstratos se estes não pudessem ser referidos a fenômenos reais, vale dizer,

referidos a ocorrências repetitivas com e em objetos materiais dados. É nesse sentido, repete-se,

que as representações matemáticas das noções de espaço e tempo adquirem o caráter de

grandezas físicas e tornam-se as variáveis primárias da representação analítica de fenômenos

empíricos.

Matéria - Massa

A matéria é uma noção a priori, indefinível em termos de variáveis já antes definidas. A

expressão matemática da qual resulta a quantificação desta noção não pode ser deduzida nem

inferida de fatos da experiência. Sendo, porém, impossível conceber a matéria num espaço não

existente e sem um transcorrer temporal, tal expressão deve conter, em última instância, uma

relação específica entre as variáveis primárias espaço e tempo.

Se a matéria assume a forma tangível de um objeto material, o fundamento empírico

que conduz à formulação daquela expressão matemática é a experiência cognitiva que permite

constatar que as interações recíprocas que imprimem movimento a um par de objetos materiais21

ou que alteram a condição corrente de seus movimentos impõem-lhes acelerações colineares e

de sentidos opostos22. Em outros termos, tal formulação resulta de uma elaboração teórica que

tem como fundamento empírico a possibilidade de correlacioná-la às consequências cinemáticas

das interações mútuas entre objetos materiais.

21 O conceito de objeto material será tratado na próxima seção. O conceito de interação será tratado mais adiante.22 Aqui, não se cogita sobre a natureza dessas interações recíprocas, se de origem mecânica, elétrica ou magnética. Nem sobre

como representá-las. Exemplos de tais interações recíprocas são as que ocorrem entre dois objetos que se chocam, entre um foguete e o gás que expele, entre um canhão e o projétil que dispara, entre uma estrela e seus planetas, entre um planeta e seus satélites, entre objetos eletricamente carregados e entre objetos magnetizados.

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Page 58: Termodinamica

Em relação a um referencial para o qual são nulas as componentes dos vetores-

aceleração, a e ao, nas direções normais à linha reta que une os objetos, cada componente não

nula, a(r, t) e ao(r, t), representa a intensidade local e instantânea da aceleração de cada objeto.

As acelerações têm sentidos opostos, de modo que o valor numérico da razão ao / a é negativo.

Por outro lado, como os objetos pré-existem às interações, a eles podem ser associados atributos

quantificáveis cujos valores lhes são próprios, inerentes aos materiais23 de que são constituídos e

invariantes em relação a eventual ocorrência das interações. Mach[39] definiu a razão entre os

valores de um desses atributos, em cada objeto material, como o valor negativo do inverso da

razão entre as intensidades locais e instantâneas das acelerações que lhes são respectivamente

impressas em decorrência de suas interações mútuas, ou seja:

[2.13] MMo = −

ao

a .

M e Mo são os valores deste atributo quantificável, denominado massa do objeto e representativo

dos materiais de que são constituídos os objetos. Como a razão entre os valores das massas dos

objetos é invariante, a razão entre as intensidades das acelerações deve ser também invariante

mesmo na circunstância em que as interações variem espacial ou temporalmente. Em conclusão,

para que essa razão seja independente das posições e dos movimentos dos objetos, suas

respectivas acelerações devem ser medidas em relação a um referencial inercial24.

Em termos newtonianos, a massa é definida como a quantidade de matéria contida num objeto;

o seu valor é dado pelo produto do volume pela densidade. Esta definição é redundante, pois a

densidade é, e só pode ser, definida com a quantidade de massa por unidade de volume.

Portanto, na segunda lei de Newton, a definição da grandeza força baseia-se numa grandeza

essencialmente não definida, a massa. Agora, expressa na forma M a = Mo ao, a equação [2.13]

representa uma combinação das segunda e terceira leis de Newton [31], não sendo requerida,

para sua proposição, a introdução da grandeza força. As acelerações a e aº devem ser

medidas em relação a um referencial inercial. Nesse referencial, porém, um objeto material

move-se em movimento retilíneo uniforme, ou seja, sem aceleração, a = 0, quando livre de

interações com terceiros objetos que sejam também representadas pela equação [2.13]. Recai-

se, então, numa redundância: a validade da proposição exige a satisfação de uma condição

cujo critério de verificação pressupõe a sua própria aplicação.

Não menos redundante é a definição proposta por Weil[61] que, implicitamente, pressupõe o

23 Por enquanto, é bastante reconhecer que a constituição material específica de um objeto pode ser empiricamente inferida quando comparada à constituição material de um outro. Compare-se, por exemplo, dois objetos de mesmo volume, constituídos, porém, um de uma certa madeira, outro de um dado metal.

24 Seja um segundo referencial, com aceleração aR em relação ao primeiro inicialmente adotado. Neste outro referencial, a razão entre as acelerações dos objetos seria dada por ( ao – aR ) / ( a – aR ) ≠ ao / a, se aR ≠ 0. Segue que o requisito de invariância exige que segundo referencial não seja acelerado em relação ao primeiro.

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Page 59: Termodinamica

princípio de conservação da quantidade de movimento: se dois objetos materiais que se

movem com velocidades colineares, de sentidos opostos e de igual intensidade, medidas em

relação a um referencial inercial, colidem inelasticamente e coalescem num único objeto de tal

modo que a velocidade deste é nula, então são iguais os valores das massas dos objetos.

Similarmente ao caso anterior, a redundância consiste no requisito de um referencial inercial,

cuja verificação pressupõe a noção de massa. A integração da equação [2.13], na forma M a =

Mo ao, resulta em M ∆v = Mo ∆vo, sendo v e vo os vetores velocidade dos objetos materiais e v e

vo suas respectivas intensidades. Considerados os requisitos da definição, chega-se a:

[2.14]MMo =− vo

v .

Se v = - vo, tem-se M = Mo. Desta forma, também de forma similar procedimento anterior,

medidas exclusivamente cinemáticas permitem, pelo menos em princípio, o cálculo da razão

entre os valores das massas dos objetos.

Em estrito sentido lógico-matemático, as equações [2.13] e [2.14] não são definições,

posto que apenas estabelecem, para um par de objetos, serem numericamente iguais as razões

entre os valores de duas grandezas cujos significados conceituais são inteiramente distintos[9].

Estas relações são designadas definições operacionais porquanto tão somente estabelecem uma

prescrição procedural mediante a qual, pelo menos em princípio, pode ser determinada a razão

entre os valores das massas dos objetos. A especificação da grandeza massa tem a forma:

[2.15] M = {M} [M] .

Para efeito de quantificação, pode-se arbitrar uma certa escala [M], na qual a massa Mo de um

objeto material adotado como referência tenha o valor unitário {M} = 1, ou seja, Mo = Mu 1 [M≙ ].

Nessa escala, o valor da massa M do outro objeto será, então, dado pela razão {M} = - ao / a. Se

as acelerações tiverem iguais intensidades, o valor da massa é o mesmo para o par de objetos.

Matéria - Substância

Objetos materiais macroscópicos podem ser empiricamente identificados e entre si

distinguidos em função da natureza específica de sua matéria constituinte. A distinção entre o

ferro e o cobre, entre o álcool e a água, por exemplo, é uma evidência empírica. Por substância

designa-se a noção a priori, indefinível, do constituinte específico de um dado objeto material.

Como antes, discute-se como expressar matematicamente esta noção, em termos de um atributo

quantificável e inerente a esta substância.

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Page 60: Termodinamica

Seja um par de objetos materiais, constituídos por substâncias distintas, cujas massas

têm igual valor, M = Mo, mantido constante. Estes objetos são postos sob condições ambientais

invariantes; ou seja, no qual nada varia, no tempo ou no espaço. É uma constatação empírica

que, sob tais condições, em geral são distintos os valores de seus respectivos volumes, V ≠ Vo.

Cogita-se, então, que à substância constituinte de cada objeto deve ser próprio e inerente um

certo atributo quantificável - a sua quantidade de substância -, cujo valor guarda certa correlação

com o valor do respectivo volume. A forma desta correlação não é deduzida nem inferida de fatos

da experiência; ela é estabelecida mediante uma elaboração teórica cujo fundamento empírico é a

possibilidade de medir ou calcular os valores dos volumes de objetos materiais. Postula-se definir

a razão entre os valores N e No desse atributo, em cada objeto material, como sendo igual à razão

entre os valores V e Vo dos respectivos volumes, ou seja:

[2.16]NNo =

VVo .

Se os objetos são constituídos pela mesma substância e se os valores dos volumes forem iguais,

V = Vo, a equação [2.16] torna-se uma identidade, N ≡ No; os objetos contêm, então, a mesma

quantidade de substância.

Em estrito sentido lógico-matemático, tal como antes, a equação [2.16] não é uma

definição, posto que apenas estabelece, para um par de objetos, serem numericamente iguais as

razões entre os valores de duas grandezas cujos significados conceituais são inteiramente

distintos. Designada uma definição operacional, ela tão somente estabelece uma prescrição

procedural mediante a qual, pelo menos em princípio, pode ser determinada a razão entre os

valores das quantidades de substância dos objetos.

Posto que a massa e a quantidade de substância são atributos da substância de que é

constituído um objeto material, a sua razão é também um atributo da mesma. Define-se, então, a

massa por unidade de quantidade de substância, M, dada por

[2.17] M ≙ MN

,

cujo valor é próprio e característico da constituição específica de cada substância. Esse atributo é

também chamado massa substantiva do constituinte específico de um objeto material. Levando

em conta que M = Mo, da combinação das equações [2.16] e [2.17] resulta que a razão entre as

massas substantivas dos constituintes específicos de dois objetos é dada por

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 60

Page 61: Termodinamica

[2.18]MM o =

Vo

V .

A especificação da grandeza quantidade de substância, N, tem a forma

[2.19] N = {N} [N] ,

onde {N} é o valor ou intensidade de N, expresso na unidade [N] de uma certa escala. Para efeito

de quantificação, pode-se arbitrar uma substância de referência para constituição de um dos

objetos e adotar como unitário o valor de sua quantidade de substância, quando expresso numa

certa escala [N], ou seja, nesta escala {N} 1 e N≙ o = Nu 1 [N≙ ]. Se este objeto tem uma massa

Mo = {Mo} [M], da equação [2.17] resulta {Mo} = {Mo}. Vale dizer, expressos nesta escala, são

iguais os valores numéricos da massa e da massa substantiva do objeto. Da equação [2.16]

segue que o valor da quantidade de substância N do outro objeto é dado pela relação {N} = V / Vo

= {V} / {Vo} .

Em princípio, portanto, para qualquer substância podem ser determinados os valores

da quantidade de substância, N, e da massa substantiva, M, em função de valores medidos ou

calculados dos volumes V e Vo, mantidas invariantes as condições ambientais e sob a condição

de igualdade de suas massas. A base deste procedimento é puramente fenomenológica. Sua

efetivação requer apenas a adoção, por convenção, da substância e das condições ambientais de

referência.

É possível valer-se do modelo corpuscular de representação da matéria (tangível) para propor

um procedimento para determinação da massa substantiva. Neste modelo, objetos materiais

macroscópicos, de quaisquer substâncias, são representados como formados por idênticos

corpúsculos elementares. Não se cogita sobre a natureza destes corpúsculos25. Como unidade

de contagem, pode-se arbitrar que, ao invés do número de corpúsculos, é contado o número de

conjuntos destes, cada um dos quais composto por uma certa quantidade de corpúsculos, por

exemplo, uma dezena, uma dúzia, uma centena, um milhar... Cada objeto contém, então, um

certo número mínimo de conjuntos, aquele que corresponde ao requisito de caracterização

macroscópica da substância que o constitui. Assim, objetos de mesmo volume constituídos por

substâncias distintas compreendem quantidades distintas de conjuntos de corpúsculos

elementares. De modo que os valores das massas desses objetos são também distintos.

Aspectos desse modelo corpuscular são úteis, embora não essenciais, à formulação da teoria

fenomenológica desenvolvida neste texto. Por esta razão, eles são aqui discutidos com algum

25 Sob a concepção do continuum, objetos elementares são, em termos matemáticos, elementos diferenciais. Já sob a concepção corpuscular, lida-se com elementos discretos, genericamente denominados partículas ou corpúsculos. A Teoria Cinética dos Gases adota o termo moléculas sem que haja referência estrita e direta ao seu significado químico.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 61

Page 62: Termodinamica

detalhe.

Seja um par de objetos materiais com massas M e Mo, constituído por substâncias distintas.

Cada objeto compõe-se de um certo número de conjuntos de corpúsculos elementares. Se M⊘

e Mo⊘ são as massas das quantidades mínimas de conjuntos que caracterizam cada

substância, em cada objeto há n e no desses conjuntos, respectivamente, em que

[2.20a] n = MM⊘

,

[2.20b] no = Mo

M⊘o .

O valor calculado pela equação [2.20] é, então, necessariamente um múltiplo inteiro (≥ 1) do

número mínimo de conjuntos de corpúsculos necessários à caracterização macroscópica da

substância constituinte de cada objeto. Como cada conjunto contém uma quantidade arbitrada

de corpúsculos, o número de corpúsculos elementares contidos em cada objeto é obtido pela

produto, respectivamente, de n e no por aquela quantidade arbitrada.

Da combinação das equações [2.20a] e [2.20b] com a equação [2.17], resulta que, em cada

objeto, o número de conjuntos de corpúsculos por unidade de quantidade de substância é

[2.21a]nN=

MM⊘= 1

N⊘ ,

[2.21b] no

No =M o

M⊘o =

1N⊘

o ,

onde N⊘ e No⊘ denotam as quantidades de substância nos conjuntos de contagem dos

corpúsculos elementares. Mas, os corpúsculos elementares são idênticos e independem da

natureza da substância. Segue, então, N⊘ = No⊘ , de modo que

[2.22] nN= no

No .

A conclusão, portanto, é que o número de corpúsculos elementares por unidade de quantidade

de substância é o mesmo para todas as substâncias.

Agora, levando em conta as equações [2.21a] e [2.21b], resulta

[2.23]MM o =

M⊘

M⊘o .

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Page 63: Termodinamica

Em princípio, portanto, arbitrada uma substância de referência, isto é, definidos Mo⊘ e Mo, o

valor da massa substantiva, M, de uma outra substância pode ser determinado em função do

valor da massa da quantidade mínima de conjunto que a caracterizam26. Embora as equações

[2.18] e [2.23] traduzam concepções incompatíveis de representação da matéria, elas são a

base de procedimentos operacionais que conduzem ao mesmo resultado.

Finalmente, combinando o resultado dado pela equação [2.22] com o postulado inicialmente

estabelecido, equação [2.16], chega-se a

[2.24] nV= no

Vo .

Vale dizer, objetos materiais compostos de substâncias distintas, porém, de mesma massa,

contêm o mesmo número de corpúsculos por unidade de volume. Este resultado é uma

generalização da hipótese de Avogrado27, segundo a qual, sob iguais condições de

temperatura e pressão, o número de moléculas por unidade de volume é o mesmo para todos

os gases28.

Para um gás, a relação funcional entre os valores da quantidade de substância, N, do volume,

V, da pressão, p, e da temperatura, T, pode ser determinada experimentalmente. Quando

extrapolada para a condição-limite N / V 0 ou p 0, a tendência do comportamento inferido

pode ser representada pela relação

[2.25] p V = N ℜ T ,

onde designa a constante universal dos gases, cujo valor pode ser determinado com base

em dados experimentais. A equação [2.25] é representativa do chamado modelo do gás ideal.

Por outro lado, mediante a Teoria Cinética dos Gases29, deduz-se que, para um gás ideal, o

26 No âmbito microscópico, utilizam-se espectrógrafos para medir, com grande precisão, valores de pesos atômicos e massas moleculares das substâncias.

27 Lorenzo Romano Amedeo Carlo Avogrado di Quaregna e di Cerreto (1776 – 1856, Turin, Itália) – químico italiano, considerado o fundador da teoria atômico-molecular ou da físico-química, como veio a ser denominada; concebeu o modelo segundo o qual gases são constituídos por moléculas e estas, por átomos, a que denominava moléculas elementares; estabeleceu a fórmula da água como H2O, ao invés de HO e mostro que gases podem ser formados por moléculas que contêm mais de um átomo, como H2, O2, Cl2; em 1811, propôs a chamada hipótese de Avogrado; em 1858, Stanislao Cannizzaro, desenvolveu um sistema de determinação de pesos atômicos e moleculares com base naquela hipótese, tendo-o apresentado em 1860, no Primeiro Congresso Internacional de Química, em Karlsruhe, Alemanha; a hipótese de Avogrado, que não fora aceita inicialmente, teve, então, sua validade reconhecida; experimentos posteriores provaram sua validade para gases mantidos a pressões suficientemente baixas e temperaturas suficientemente altas.

28 Sem perda de rigor ou continuidade da formulação aqui desenvolvida, embora as grandezas pressão e temperatura ainda não estejam definidas, é suficiente recorrer aos conhecimentos de Física Geral que, pressupõe-se, são de domínio do leitor.

29 No âmbito da Teoria Cinética dos Gases, o modelo do gás ideal é formulado a partir de uma descrição idealizada do movimento aleatório e das interações recíprocas dos objetos elementares constituintes de um gás. Nos termos aqui empregados, são adotadas as seguintes hipóteses: (1) um gás é um objeto material macroscópico contido pela parede de seu vaso continente; (2) este objeto macroscópico compõe-se de um grande número de objetos materiais elementares, idênticos entre si, com massas de igual valor; (3) o volume próprio do conjunto de objetos elementares é desprezível em comparação com o volume do vaso continente; (4) a distância entre os objetos materiais elementares é muito maior do que a dimensão linear característica do seu movimento; (5) o movimento destes objetos é aleatório, de modo que constantemente eles colidem entre si e com a parede do

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Page 64: Termodinamica

número de corpúsculos, n, e os valores do volume, V, da pressão, p, e da temperatura, T,

mantêm a relação dada por

[2.26] p V = n kB T ,

onde kB denota a constante de Boltzmann. As equações [2.25] e [2.26] são similares. Enquanto

a primeira é de base empírica, formulada sobre o pressuposto do modelo do continuum, a

segunda é de base estatística, cujo pressuposto é o modelo corpuscular. Da combinação

dessas equações, resulta

[2.27]nN= ℜ

kB.

O significado deste resultado é que o número de corpúsculos por unidade de quantidade de

substância independe do gás e depende apenas da unidade adotada para expressar o valor da

quantidade de substância, [N].

Objeto Material

Por objeto material designa-se um algo macroscópico extenso e tangível, distinguível e

passível de representação mediante seus atributos. Por atributo entende-se um predicado ou uma

característica macroscópica própria de um objeto material. Por certo, estes enunciados são

tautológicos: a noção de objeto material recorre à noção de atributo; esta, pressupõe a noção de

objeto material. Não há como evitá-lo, pois estas noções não são definíveis em termos de outras

noções ou de conceitos já antes empiricamente estabelecidos.

As especificações dos atributos de um objeto material distinguem-no em relação a

seus similares. Há atributos cujas especificações são apenas qualitativas; outros atributos têm

especificações quantitativas. Constituição e conformação são atributos cujas especificações são

qualitativas - por exemplo, o material e a forma do objeto30. A extensão espacial é um atributo de

especificação quantitativa. O valor do volume ou a área superficial do objeto, por exemplo, são

medidas de sua extensão espacial.

Um objeto material pode ser representado de forma meramente descritiva ou de forma

vaso continente; (6) são desprezíveis as interações entre os objetos e entre estes e a parede, exceto quando há colisões; (7) estas colisões são perfeitamente elásticas; (8) o movimento dos objetos materiais elementares é newtoniano, a energia cinética e a quantidade de movimento se conservam; (9) efeitos relativísticos e efeitos quânticos não são considerados.

30 As especificações qualitativas de certos atributos podem ser quantificadas mediante a utilização de escalas ordinárias [ver item Escalas de Medição, adiante].

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Page 65: Termodinamica

analítica. A representação descritiva é feita apenas mediante atributos observáveis do objeto, ou

seja, através daqueles cujas especificações são diretamente acessíveis à observação – em última

instância, aos sentidos ou à percepção. A representação analítica é feita por meio de atributos que

expressam conceitos próprios de uma teoria; suas especificações decorrem de inferência ou de

cálculo, e também da observação, se tal teoria tem base empírica. Exemplo: a experiência

sensorial permite verificar a forma de um objeto material; também se este torna-se mais frio ou

mais quente; ou se ele expande ou contrai. Ou seja, a observação permite uma descrição do seu

comportamento. É, porém, uma inferência determinar, mediante medição, o valor do seu volume e

da variação de sua temperatura; e resulta de cálculo determinar o valor da variação de sua

energia. Neste caso, estabelecidos os conceitos dos atributos volume, temperatura e energia, é

necessário definir procedimentos operacionais mediante os quais são feitas suas especificações.

Em princípio, a representação completa de um objeto material macroscópico requer a

especificação de todos os seus atributos. Dado que cada objeto tem um número indeterminado de

atributos, uma tal representação é praticamente irrealizável ou é muito complexa, extensa e pouco

útil. De fato, ela é desnecessária pois, de cada vez, é suficiente identificar os atributos relevantes

à representação de um fenômeno ou de alguma classe de fenômenos macroscópicos.

Pressupondo que, no âmbito fenomenológico, tais atributos sejam identificáveis pelo menos em

princípio, a observação empírica - sistemática, metódica e reiterada - é o critério objetivo de

inferência de relevância. Para a análise termodinâmica de fenômenos termofísicos, por exemplo,

geralmente cor, odor e forma não são atributos relevantes. Não obstante, a cor é um atributo

relevante quando puder ser biunivocamente associada à temperatura do objeto. Analogamente,

quando uma massa de gás é forçada a escoar através de um bocal, a forma deste dispositivo -

especificamente, o estreitamento na seção transversal à direção do fluxo - é um atributo relevante

pois, dependendo da redução de pressão que impõe ao gás, lhe induz uma certa variação de

temperatura31. A relevância de um atributo refere-se, portanto, restritivamente a determinada

representação de um objeto ou de uma classe de objetos materiais no contexto da representação

de um fenômeno ou de uma classe de fenômenos. Em conclusão, cada representação analítica

viável é sempre parcial e orientada.

Atributos Globais e Atributos Locais

Alguns atributos expressam noções intrinsecamente relacionadas à totalidade espacial

31 Aqui, referência é feita ao chamado efeito Joule-Thomson, a ser tratado adiante, que associa a variação da temperatura à variação da pressão de um gás em escoamento num canal que tenha uma contração intensa e localizada de sua seção transversal. A temperatura do gás poderá aumentar ou diminuir em função da condição inicial e da queda de pressão imposta. Em termos teóricos, este escoamento é dito isoentálpico. Na terminologia técnica da Termodinâmica Aplicada, o procedimento descrito é denominado processo de estrangulamento.

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Page 66: Termodinamica

de um objeto material32, sendo designados atributos globais. Outros atributos têm significados

intrinsecamente locais. Suas especificações podem variar de local a local sobre a extensão do

objeto. A distribuição das especificações espaço-temporais de cada atributo local configura o que

se designa um perfil ou um campo. A forma, o volume e a massa, por exemplo, são atributos

globais já que se referem à totalidade de um objeto; já a tonalidade cromática, a velocidade linear,

a temperatura e a pressão são atributos locais, sendo comum a menção a um campo de pressão,

a um perfil de temperatura e a um perfil de velocidade linear.

A especificação de um atributo de um objeto material é sempre instantânea e pode

variar no decurso do tempo. A Figura 2.1 mostra um objeto material em dois instantes, t e t + Δt. A

variação da especificação de um atributo global típico é simbolicamente representada pela

variação da forma ou da área total do objeto, enquanto a variação da especificação de um atributo

local típico é simbolicamente representada pela gradação do sombreamento, do negro ao cinza

claro. Num dado instante, t ou t + Δt, a especificação deste atributo local pode variar de local a

local sobre a extensão do objeto; para uma mesma posição (+), assinalada na figura, a tonalidade

no instante t pode ser distinta daquela no instante t + Δt.

É uma constatação empírica que, sob certas circunstâncias, as especificações dos

atributos locais eventualmente tendem a tornar-se uniformes ao longo da extensão espacial de um

objeto material. Exemplos: com o passar do tempo, tendem a anular-se as diferenças de pressão,

de temperatura e de concentração mássica inicialmente existentes num objeto material sem

32 Por intrínseco denota-se um atributo de um objeto - ou uma característica de um atributo - que lhe é essencial e inerente, sendo ainda completamente independente de quaisquer outros objetos ou atributos ou, ainda, de circunstâncias ou contextos condicionantes destes. Um atributo de um objeto - ou uma característica de um atributo - que não é essencial ou inerente é dito extrínseco. Por exemplo, a massa é um atributo intrínseco de um objeto material, mas o peso é um atributo extrínseco porquanto seu valor depende da intensidade local do campo gravitacional.

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Figura 2.1. Variação da especificação de atributos globais (forma e área) e de atributos locais [sombreamento na posição (+)] .

t

t + Δt

Page 67: Termodinamica

interação com outros objetos. Por vezes, esta uniformidade é suposta, de fato sendo uma

aproximação idealizada da situação real. Exemplo: no objeto material da Figura 2.2.a, a gradação

do sombreamento representa simbolicamente variações espaciais e temporais da especificação

de um atributo local típico. Perceptível no instante t, a especificação é localmente variável, mas

esvanece até que, no instante t + Δ , - t torna se uniforme. Outro exemplo: distintas fases de uma

substância podem coexistir estavelmente quando são iguais os valores de suas respectivas

temperaturas e pressões, ainda que sejam distintos os valores de suas densidades mássicas. Na

Figura 2.2.b, esta dupla condição de uniformidade espacial é simbolicamente representada pela

gradação da tonalidade. À esquerda, ela é uniforme e igual nas duas regiões, tal como os valores

da pressão e da temperatura das fases. À direita, ela é uniforme em cada região, mas são

distintas entre as regiões, tal como os valores das densidades mássicas das fases.

Rigorosamente, a densidade mássica e a pressão em cada fase são uniformes apenas na

ausência da ação gravitacional e, para a última, se é plana a interface das fases, como aquela

mostrada na figura.

Mais adiante, serão tratadas as circunstâncias sob as quais as especificações de

atributos locais tendem à uniformidade e assim se mantêm. É suficiente, por ora, ter em conta

que, sob tais circunstâncias, as especificações de atributos locais passam a ser uniformes sobre a

extensão do objeto. De modo que, tal como as especificações de atributos globais, elas passam a

referir-se à totalidade do objeto material.

Condição de um Objeto Material

A condição de um objeto material é aquela definida pelas especificações de todos os

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[a] [b]

Figura 2.2. Uniformização da especificação de atributos locais: [a] objeto de constituição material homogênea; [b] objeto de constituição material heterogênea.

t

t + Δt

Page 68: Termodinamica

seus atributos relevantes. Segue que um objeto material encontra-se numa condição apenas se

as especificações desses atributos referirem-se à sua totalidade. As especificações dos atributos

globais do objeto satisfazem sempre este requisito. Para atendê-lo, porém, as especificações dos

atributos locais devem ser uniformes sobre a extensão do objeto. Portanto, a condição de um

objeto material é determinada ou determinável apenas num instante ou numa sucessão de

instantes em que é atendido este requisito de uniformidade.

É uma constatação empírica que, encontrando-se um objeto material numa dada

condição, as especificações de seus atributos não são todas independentes entre si. Vale dizer,

as especificações de alguns atributos podem ser determinadas em função das especificações de

outros. Como exemplos: é impossível arbitrar simultaneamente valores para o volume, a pressão

e a temperatura de uma dada massa de gás; são interdependentes os valores da pressão e da

temperatura de uma massa de certa substância na situação em que duas ou três fases coexistem

estavelmente. Se um objeto é esférico e tem um dado diâmetro, o seu volume não pode ser fixado

arbitrariamente; também não é arbitrário o comprimento da aresta de um objeto cúbico de certo

volume. No entanto, a especificação do comprimento característico ou do volume não determina a

forma do objeto, se ela é esférica ou cúbica. A forma, que é um atributo de especificação

qualitativa, é, neste contexto, um atributo independente.

Desta forma, cada representação de um objeto material pode ser formulada mediante

um certo conjunto de atributos independentes. Para um conjunto de atributos independentes, a

especificação de um deles não determina a especificação de qualquer outro deste conjunto; as

especificações de todos eles determinam as especificações dos demais atributos relevantes do

objeto material. Os atributos independentes são também chamados atributos primitivos; o seu

conjunto é chamado base da representação.

Segue que, numa representação formulada em termos de m atributos relevantes, a

condição ₡Ø de um objeto material Ø é, de fato, perfeitamente determinada ou determinável pelo

conjunto [...ℂ ] das especificações de seus n (n < m) atributos independentes - pressupondo-se

satisfeito o requisito de uniformidade das especificações dos atributos locais. Posto que as

especificações podem variar no decurso do tempo, tal condição é instantânea. Tem-se, então,

genérica e simbolicamente,

[2.28] ₡Ø = ₡Ø (t) = ₡ (Ø, t) ≙ [..., ℂ Ai (Ø, t), ...] , i = 1, n; n < m ,

onde Ai denota a especificação instantânea do i-ésimo atributo independente da representação. A

determinação das especificações dos atributos dependentes decorre de m-n relações funcionais,

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genérica e simbolicamente expressas por33

[2.29] Aj (Ø, t) = Aj [..., Ai (Ø, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m.

Aqui, Aj denota a especificação instantânea do j-ésimo atributo dependente da representação.

Assim, à condição instantânea ₡Ø (t) do objeto material Ø corresponde o conjunto inequívoco das

especificações instantâneas Ai (Ø, t), i = 1, m, de todos seus atributos relevantes, tanto globais

como locais, sejam eles de natureza qualitativa ou quantitativa.

Objeto Material Elementar

Um objeto material elementar é uma “porção tangível”[58] da matéria constituinte de um

objeto material, cujas dimensões espaciais são muito reduzidas em relação às dimensões

espaciais deste objeto. Não se cogita sobre a natureza ou sobre a estrutura de sua matéria

constituinte em termos de componentes ainda mais elementares. Por definição, portanto, objetos

materiais elementares são indivisíveis. Sua divisão implicaria considerar componentes estruturais

tão mais elementares que, tomados individualmente, já não caracterizariam macroscopicamente a

matéria constituinte do objeto34.

Postula-se que um objeto material elementar é homogêneo e isotrópico e que, sobre

sua extensão, são uniformes as especificações dos atributos locais. Tal uniformidade é postulada

para cada objeto material elementar, mas não para o conjunto dos objetos materiais elementares

que eventualmente constituem o objeto material macroscópico. Ou seja, a uniformidade não é

exigida para toda a extensão deste objeto. Na Figura 2.3, a gradação do sombreamento

representa, em termos simbólicos, a variação da especificação de algum atributo local sobre a

extensão do objeto material Ø. No objeto material elementar ⊘, ela é uniforme. Por exemplo, num

objeto material elementar há um único valor da velocidade linear, da densidade mássica, da

temperatura e da pressão. O conceito de objeto material elementar é um importante instrumento

metodológico a ser sistematicamente utilizado na formulação da teoria da Termodinâmica

apresentada neste texto. Este conceito adequa-se tanto à representação de um objeto material

macroscópico como sendo constituído por um número finito destes objetos, discretos e

33 As equações [2.28] e [2.29] representam apenas relações lógicas, assim expressas para esquematização sintética dos conceitos introduzidos. Alguns dos atributos A sequer são quantificáveis e nem denotam grandezas físicas. Este simbolismo, portanto, não representa relações matemáticas, no sentido de prestarem-se a quantificações e a operações de cálculo.

34 Apenas gera confusão formulações do tipo: “...uma região elementar suficientemente grande para conter muitas moléculas … mas ainda suficientemente pequena para que seja considerada um ponto no espaço … ou para ser usada como elemento de integração...”. Formulações como estas têm pouco sentido. De um lado, no âmbito do continuum não se cogita sobre moléculas; de outro lado, variáveis macroscópicas, tais como pressão e temperatura, não são definíveis no âmbito das dimensões microscópicas nem utilizadas para descrição do comportamento molecular.

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Page 70: Termodinamica

indivisíveis, quanto à sua representação como um continuum material indefinidamente divisível.

Em termos matemáticos, a idealização de um objeto material elementar permite

considerar que, em cada instante t, um objeto material elementar ⊘ encontra-se num local

associado a um vetor posição r⊘. Neste local, em cada instante, há apenas um objeto material

elementar. Há, portanto, uma correspondência biunívoca entre um objeto material elementar e o

local do espaço por ele ocupado, em cada instante. Valem as relações de reciprocidade:

[2.30a] r⊘ = r (⊘, t) e

[2.30b] ⊘ = ⊘ (r⊘, t) .

As especificações dos atributos de um objeto material elementar são instantâneas,

referidas a um instante .t Tendo em conta a equação [2.30], as especificações desses atributos

são também locais, referidas ao local de vetor posição r. Assim,

[2.31] ∏i = ∏i (⊘, t) = ∏i (r⊘, t) , i = 1, m ,

representa a especificação local e instantânea de ∏i, qual seja, do i-ésimo dentre os m atributos

relevantes do objeto material elementar ⊘. Desta forma, também aos atributos globais de um

objeto material elementar é possível fazer-se referência a especificações locais.

Deve ser bem entendido o significado conceitual da idealização que designa por local e

instantânea a especificação dos atributos de objetos materiais elementares. Esta idealização

consiste em extrapolar, para dimensões arbitrariamente pequenas, o conceito e a especificação

de atributos que são definidos exclusivamente tendo em conta objetos materiais de dimensão

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Figura 2.3. Objeto material e objeto material elementar.

Ø⊘

Page 71: Termodinamica

finita. Vale dizer, o objeto material elementar não se põe como uma realidade natural, mas

como um artifício conceitual utilizado na construção de uma teoria matemática [6] destinada a

representar o comportamento de objetos macroscópicos reais.

Em termos físicos, a noção de local não deve ser entendida no estrito sentido geométrico de

um ponto espacial sem dimensão, mas da posição onde se encontra um objeto elementar cuja

dimensão espacial característica é muito pequena relativamente àquela do objeto material do

qual é parte constituinte. Por extensão, a variação espacial da especificação de um atributo não

é entendida como uma variação de ponto para ponto, naqueles termos geométricos, mas de

objeto elementar para objeto elementar.

Em termos analíticos, por outro lado, o conceito de objeto material elementar estende-se até o

limite de uma região espacial de extensão nula. Vale dizer, um objeto material elementar ⊘ é

um elemento infinitesimal do objeto material Ø, de volume indefinidamente pequeno até o limite

V 0, solidariamente com L 0 e A 0, sendo L um comprimento característico e A a área

de sua superfície35. Nestes termos, são efetivamente locais as especificações dos atributos de

um objeto material elementar; e, se referidas a um intervalo de tempo indefinidamente

pequeno, no limite em que t 0, também são efetivamente instantâneas. Reciprocamente, a

noção de que os volumes dos objetos materiais elementares reduzem-se até o limite de uma

extensão nula é coerente com a noção de que um conjunto de objetos materiais elementares

constrói o continuum constituinte do objeto material macroscópico; e que as especificações de

cada um de seus atributos distribuem-se continuamente sobre a extensão deste.

Segue que, sempre e intrinsecamente, um objeto material elementar ⊘ encontra-se

numa condição local e instantânea ₡⊘ perfeitamente determinada ou determinável pelo conjunto

[...ℂ ] das especificações locais e instantâneas de seus n atributos independentes. Tem-se, então,

genérica e simbolicamente,

[2.32] ₡⊘ = ₡⊘ (t) = ₡ (⊘, t) = ₡ (r⊘, t) = [..., ℂ Ai (r⊘, t), ...] , i = 1, n ,

onde ∏i denota a especificação instantânea do i-ésimo atributo independente da representação.

Complementarmente, as especificações dos atributos dependentes são dadas por m-n relações

funcionais, simbólica e genericamente representadas por36

[2.33] Aj (r⊘, t) = Aj [..., Ai (r⊘, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m,

35 Este conceito exclui os casos em que o limite V 0 corresponde aos limites L 0 e A valor finito. Exemplo: não constitui um objeto material elementar a película de espessura infinitesimal e área superficial finita que encerra uma massa de líquido, antes contida num volume finito (uma gota, digamos), agora esparramada sobre uma superfície sólida.

36 Sobre a natureza das relações expressas pelas equações [2.31], [2.32] e [2.33], aplicam-se as mesmas restrições relacionadas às equações [2.28] e [2.29].

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Page 72: Termodinamica

onde Aj denota a especificação instantânea do j-ésimo atributo dependente. À condição local e

instantânea (₡ ⊘, t) = ₡ (r⊘, t) de um objeto material elementar ⊘ corresponde, portanto, um

conjunto inequívoco das especificações locais e instantâneas de seus atributos relevantes, sejam

estes de natureza qualitativa ou quantitativa.

As especificações dos atributos locais de um objeto material podem sofrer descontinuidades na

superfície envolvente da região espacial por ele ocupada e em superfícies singulares que

eventualmente a atravessam. Tais superfícies são designadas fronteiras ou interfaces. Por

exemplo, porções coexistentes de água líquida e de vapor d'água podem ser tratadas como

objetos materiais vizinhos ou como partes distintas de um mesmo objeto material. O que

caracteriza cada uma destas porções são as especificações de alguns de seus atributos

[tipicamente, os valores da densidade mássica]. Fisicamente, alguma fração de material líquido

passa continuamente a ser vapor e vice-versa. Na região em que isso ocorre, os atributos

dessa fração deixam gradativamente de ter especificações típicas de líquido e passam a ter

aquelas típicas do vapor - e vice-versa. Pode-se, no entanto, extrapolar para o interior desta

região as especificações típicas de cada porção e estabelecer que estas são válidas até uma

superfície arbitrariamente definida como a interface dos meios. Então, de um lado desta

interface as especificações serão típicas da água líquida; do outro, típicas do vapor d'água. Na

interface, haverá descontinuidade.

Verificação Empírica – Permanência

Por definição, as especificações instantâneas dos atributos de objetos materiais

elementares referem-se à sua totalidade espacial. No caso de atributos locais, tais especificações

devem ser uniformes sobre toda a extensão do objeto elementar. Para efeitos de verificação

empírica, indaga-se sobre os tamanhos do objeto dito elementar e do intervalo temporal além dos

quais tornam-se sem sentido os requisitos de totalidade e de uniformidade e a consideração de

uma observação como instantânea; e sobre aqueles aquém dos quais perde sentido as noções de

continuum e de atributo macroscópico. Tais requisitos de mensurabilidade impõem, portanto, a

necessidade de alguns critérios de permanência, como são chamados, que determinem limites às

dimensões espaciais do objeto material elementar e ao tempo de observação. Estes limites devem

assegurar alguma permanência espacial e alguma permanência temporal para as especificações

dos atributos nos termos dos quais se representa a condição local e instantânea do objeto tomado

como elementar.

Considere-se que estes requisitos de permanência são atendidos na situação limite de

um volume elementar V⊘, submetido à observação no decurso de um intervalo temporal elementar

t⊘. A condição é local, então, quando um objeto material elementar tem volume V V⊘ ou,

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 72

Page 73: Termodinamica

solidariamente, área A A ⊘ e comprimento L L ⊘. A condição é instantânea se observada no

decurso de um intervalo temporal t t⊘. Efetivamente, os valores das dimensões características

V⊘, A⊘ e L⊘ e do tempo característico t⊘ dependem, conjunta e restritivamente, não só do objeto

material do qual o objeto material elementar é constituinte, mas também das circunstâncias da

ocorrência do fenômeno considerado.

Em termos práticos, também a capacidade de apreensão do observador, ou seja, a

resolução do instrumento de medida é circunstância determinante da possibilidade de caracterizar

como local e instantânea a observação mensurável de atributos de objetos materiais. Portanto, as

dimensões espaciais de um objeto material elementar e o tempo característico de observação de

um fenômeno são determinações ad hoc, restritivamente definidas de modo a que as

especificações dos atributos que os descrevem possam ser consideradas locais e instantâneas.

Como ilustração, considere-se um objeto material granular, sendo ℓ o tamanho médio dos

grãos. O objeto encontra-se em movimento retilíneo e é submetido a um procedimento que

consiste em impor-lhe uma perturbação de frequência ƒ. Constata-se que a posição z = z(t) do

objeto pode ser representada por uma relação da forma:

[2.34] z = a + b t + c t2 ,

onde t é o tempo e são constantes os coeficientes a, b e c. Quais são os requisitos para que se

possa tratar o coletivo de grãos como um continuum e utilizar o procedimento de medição para

estabelecer a condição local e instantânea do objeto?

Os parâmetros característicos do procedimento de medição são o comprimento de onda λ e a

velocidade λ ƒ da pertubação que se propaga no objeto granular. O tempo médio necessário

para que a pertubação atravesse cada grão é ℓ / (λ ƒ). Sem perda de generalidade, supõem-se

iguais a distância média entre grãos e o tamanho médio destes e iguais o tempo médio de

deslocamento da pertubação através de um grão e deste ao seu vizinho.

Para que o material granular possa ser tratado como um continuum é necessário que o

comprimento de onda λ exceda o comprimento médio conjunto de um grão e da distância deste

ao seu vizinho, 2ℓ, e que o tempo de resolução37 do instrumento de medição, Δt, exceda o

tempo requerido para que a pertubação atravesse este comprimento conjunto, 2ℓ / (λ ƒ).

Devem, assim, ser satisfeitos um requisito espacial um requisito temporal, respectivamente:

[2.35a]2 ℓ≫ 1 ,

37 Tempo de resolução é o intervalo temporal mínimo necessário para efetivação de uma medida de tempo, sendo utilizado como um critério de qualidade dessa medida.

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Page 74: Termodinamica

[2.35b] λ ƒ Δt2 ℓ

≫ 1 .

Pelo contrário, se λ / (2 ℓ) ~1 ou ( λ ƒ Δ t ) / (2 ℓ) ~1, a individualidade dos grãos influencia a

medição. Neste caso, procedimentos e resultados baseados no modelo do continuum não têm

precisão ou mesmo significado.

Com relação à condição local e instantânea do objeto, considere-se o instante (t + Δt) e a

posição (z + Δz). Da equação [2.34], resulta:

[2.36] Δz = (b + 2c t) Δ t + c (Δt)2 .

A velocidade é definida como v Δz / Δ≙ t. Segue, então, que a velocidade do objeto é:

[2.37] v = b + 2c t + c Δ t .

Para que esta equação forneça o valor instantâneo da velocidade, o seu último termo deve ser

um infinitésimo de ordem superior, desprezível em relação ao primeiro termo. Tem-se, portanto,

[2.38] c Δ t b + 2c ≪ t .

Levando em conta esta condição, a equação [2.36] é reduzida a

[2.39] Δz ≈ ( b + 2c t ) Δ t .

Para que esta equação represente uma condição local, Δt deve atender ao requisito dado pela

equação [2.38] e Δz deve ser interpretado como a dimensão linear característica de um objeto

material elementar típico do objeto granular.

Combinando as equações [2.35b] e [2.38], chega-se aos valores-limite do intervalo de tempo

requerido para que o objeto seja tratado como um continuum e a sua condição seja

considerada instantânea:

[2.40] 2 ℓλ ƒ≪ Δt ≪ 1

cb 2 c t .

Combinando as equações [2.39] e [2.40], chega-se aos valores-limite da distância Δz para que

o objeto granular seja tratado como um continuum e que a sua condição seja considerada local:

[2.41] 2 ℓλ ƒb 2 c t ≪ Δz ≪ 1

cb 2 c t 2 .

Se t = 0, com c > 0, os valores-limite indicados nas equações [2.40] e [2.41] são invariantes no

tempo. Sendo, então, Δz interpretado como a dimensão linear L⊘ característica de um objeto

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 74

Page 75: Termodinamica

material elementar representativo do objeto granular, e Δt o tempo t⊘ característico do

processo de medição, resulta:

[2.42a] 2 ℓλ ƒ≪ t⊘ ≪

bc ,

[2.42b] 2 ℓ bλ ƒ

≪ L⊘ ≪b2

c .

A ordem de grandeza dos parâmetros t⊘ e L⊘ pode ser estimada num exemplo numérico. Para

tanto, sejam a = 10 mm, b = 20 mm/s e c = 5 mm/s2 os valores dos coeficientes da equação

[2.34], ℓ = 4 mm o tamanho médio dos grãos, ƒ = 40 kHz a frequência da pertubação e λ ƒ =

800 m/s a velocidade desta no objeto granular. Resulta, então, λ / (2 ℓ) = 5, que atende ao

requisito da equação [2.35a]; o tempo de resolução deve situar-se entre os limites 10 -5 s ≪ t⊘

4 s e a dimensão característica de um objeto material elementar, ≪ 2 10-3 mm L≪ ⊘ 80 mm,≪

por exemplo, t⊘ ≈ 10-2 s e L⊘ ≈ 10-1 mm.

Grandezas Físicas

Grandezas físicas são atributos qualitativamente distinguíveis e quantitativamente

determináveis de objetos materiais, dos materiais constituintes destes objetos ou das interações

entre objetos materiais. Em outros termos, uma grandeza física é qualquer atributo de um objeto,

de uma substância e de uma interação entre objetos materiais que possa ser percebido e medido

sem mudança de sua identidade. Por exemplo, as grandezas físicas volume, massa e força são

atributos representativos, respectivamente, de um objeto, de seu material constituinte e de uma

interação entre objetos materiais.

Nem sempre é fácil determinar se um atributo de um objeto material é uma grandeza física.

Alguns atributos são considerados como se fossem, embora de fato não sejam grandezas

físicas. Nestes casos, o que se considera uma grandeza física representa, de fato, a percepção

subjetiva de um observador, que se manifesta através da reação de seus órgãos sensoriais ao

estímulo que provém de algum efeito externo. Isto ocorre, por exemplo, com a sensação de

quente ou frio ou com a cor de um objeto: a variabilidade das percepções individuais evidencia

tal subjetividade. Tais percepções não podem ser medidas, mas apenas comparadas38.

38 A utilização de escalas numéricas para expressar quantitativamente a percepção ou a intensidade de certos atributos estimula o equívoco de tratá-los como grandezas físicas. Como será visto adiante, tais escalas não são propriamente expressões de medição, no sentido da quantificação de grandezas físicas, mas a tentativa de quantificar a percepção de um evento físico específico mediante uma gradação convencionada e compartilhada por um conjunto de observadores.

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Page 76: Termodinamica

Para um dado observador, a percepção de um certo espectro de absorção da luz pode sempre

corresponder a uma mesma cor; mas há distintos espectros que podem ser percebidos como

de uma mesma cor. A distintos observadores, uma amostra de uma solução de permanganato

de potássio pode parecer rósea, negra ou um dentre vários tons púrpura. Tal variação é função

não só da concentração da solução, do comprimento de onda da luz que a atravessa e da

posição dos máximos no seu espectro de absorção, como também da percepção subjetiva de

cada um deles. Ou seja, a relação entre um espectro de absorção e uma cor não é biunívoca.

A cor da solução não é, portanto, uma grandeza física.

A definição de uma grandeza física compreende três declarações. A primeira é de

natureza qualitativa e estabelece o seu significado conceitual. A segunda é a expressão

matemática de tal significado39. Conceitualmente, uma grandeza física implica a noção – uma

apreensão, seguida de uma representação - de uma qualidade de um objeto, de seu material

constituinte ou de um fenômeno que ocorre na natureza. Esta noção é primária se não é expressa

em termos de outras que a precedem; ou é uma relação entre noções precedentemente

estabelecidas. Sua expressão matemática a representa mediante uma variável primária ou

mediante uma relação entre variáveis primárias; tal expressão define a dimensão da grandeza40. A

terceira declaração é de natureza quantitativa e estabelece a sua validade empírica. Ela trata de

aspectos operacionais da definição e consiste da especificação da grandeza, expressa por um

número vinculado a uma unidade. Este número é determinado por uma operação de cálculo ou de

medição; ele representa uma intensidade ou um valor referido a uma escala, cuja unidade é

adotada por convenção.

A especificação de uma grandeza física G é expressa na forma

[2.43] G = {G } [G ] .

Aqui, {G } denota a intensidade ou o valor numérico da grandeza G, expressa numa unidade [G ]41.

O valor numérico de uma grandeza física é sempre um múltiplo ou um submúltiplo de seu valor

unitário, {Gu } = 1, ou seja,

[2.44a] Gu 1 [≙ G ] ,

39 Frequentemente, em exposições sobre a teoria da Termodinâmica, são confundidos os significados conceituais de grandezas físicas e as suas expressões matemáticas representativas. Quando isto ocorre, os termos mediante os quais se procura definir o significado conceitual da uma grandeza apenas traduzem, em outras palavras, a sua expressão matemática. Dessa confusão decorre uma apreensão insuficiente dos conceitos e uma aplicação automática e irrefletida do formalismo matemático que os representa.

40 A representação das unidades das grandezas físicas em termos das dimensões fundamentais espaço, tempo e massa segue uma proposição original de J. Fourier, em 1822.

41 A descrição de uma grandeza física como o produto entre um valor numérico e uma unidade de medida segue uma proposição original de J.C. Maxwell, em 1873.

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Page 77: Termodinamica

[2.44b] G = {G } Gu .

Este valor é sempre um número real, que tem significado físico apenas se estiver associado a

uma unidade e a uma condição de referência. O símbolo <G > denota a dimensão da grandeza

física, não sendo associada a qualquer unidade particular.

Grandezas Primitivas e Grandezas Derivadas

Como assinalado, no âmbito de uma dada representação fenomenológica, a descrição

de um objeto material requer a especificação de um certo conjunto de atributos independentes.

Por grandezas físicas primitivas são designados os atributos quantificáveis de um objeto material,

entre si independentes, necessários a construção de determinada representação analítica de um

ou de certa classe de fenômenos macroscópicos. Alguns autores[27],[11] adotam uma definição mais

restritiva: grandezas físicas primitivas são atributos quantificáveis cujos valores idealmente

correspondem ao resultado instantâneo de uma medição. Volume, pressão e temperatura são

exemplos destas grandezas. Por contraste, são designadas derivadas as grandezas físicas das

quais apenas se determinam valores de suas variações, calculados em função de medições de

grandezas primitivas, realizadas em distintos instantes. Por suposto, tais medições pressupõem

uma transformação na condição do objeto considerado. Energia e entropia são grandezas físicas

das quais apenas valores de suas variações podem ser determinados.

Grandezas Direta e Indiretamente Mensuráveis

O valor de uma grandeza física diretamente mensurável, num objeto material, pode

ser determinado mediante comparação direta com o valor desta mesma grandeza num outro

objeto assumido como padrão ou como instrumento de medida. Por exemplo, os valores do

comprimento e da massa são diretamente medidos, respectivamente, por uma fita métrica e por

uma balança de braços iguais; o valor da temperatura de um material incandescente ou de uma

chama pode ser medido por um termômetro ótico mediante comparação de cores. Idealmente, a

operação de medição não deve afetar a situação ou condição do objeto sobre o qual é efetuada,

no curso da qual este deve manter-se inerte ou passivo. Neste caso, o valor instantâneo da

grandeza independe do procedimento de medição empregado e do seu valor em qualquer outro

instante.

Tal requisito não é sempre satisfeito. Há grandezas cujos valores são determinados

mediante uma efetiva interação entre um objeto e o objeto tido como instrumento de medida. Tais

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Page 78: Termodinamica

grandezas são indiretamente mensuráveis. Em geral, os seus valores são determinados mediante

uma expressão matemática representativa de alguma relação-modelo entre esta grandeza e uma

grandeza diretamente mensurável do instrumento de medição. Eventualmente, esses valores são

determinados analogicamente pelo próprio instrumento, no curso mesmo da medição. Numa

balança de mola, por exemplo, a lei de Hooke é a relação-modelo entre a força-peso, cujo valor se

quer determinar, e a deformação lienar-elástica da mola; o deslocamento de um sensor

fotoelétrico ou a carga sobre um transdutor de pressão são utilizados por uma balança eletrônica

para determinar o valor do peso de um objeto material; medições da temperatura com um

termômetro de mercúrio são analógicas, pressupondo determinada relação-modelo entre a

temperatura e o volume e a pressão do mercúrio. A distinção entre grandezas direta e

indiretamente mensuráveis é relevante em termos práticos, não sendo essencial para a

construção da teoria.

Grandezas Globais e Grandezas Locais

Por grandezas globais são designadas as grandezas físicas cujos valores referem-se

à totalidade espacial do objeto material. Os valores dessas grandezas podem variar no decurso do

tempo, de modo que eles têm sempre uma referência material e uma referência temporal,

[2.45] G = G (Ø, t) .

Sem perda de generalidade, para um objeto material elementar ⊘ a referência material dos

valores de uma grandeza física assume a forma

[2.46a] G = G (⊘, t) .

Considerando a equação [2.30], tem-se

[2.46b] G = G (r⊘, t) ,

em que r⊘ denota o vetor posição que localiza o objeto material elementar e t o tempo.

Por grandezas locais são designadas as grandezas físicas cujos valores podem variar

de local a local sobre uma dada extensão espacial e, também, no decurso do tempo,

[2.47] G = G (r, t) .

A distribuição espacial dos valores locais das grandezas locais configura o que se designa um

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 78

Page 79: Termodinamica

perfil ou um campo. Quando estes valores referem-se a locais sobre a extensão de um objeto

material, são equivalentes as equações [2.46b] e [2.47]. O conceito de objeto material elementar

permite expressar os valores de grandezas físicas globais ou locais em termos de uma variável

espacial e de uma variável temporal.

O valor local e instantâneo de uma grandeza física é único. Essa unicidade decorre da

definição da grandeza física como atributo distinguível e quantificável de um objeto material ou de

seu material constituinte. A unicidade temporal implica que, num local de vetor posição r, valores

distintos de uma grandeza física referem-se necessariamente a distintos instantes:

[2.48] se G (r, t1) ≠ G (r, t2), então, t1 ≠ t2 .

A unicidade espacial implica que valores distintos, instantâneos e simultâneos, de uma grandeza

física referem-se necessariamente a distintos locais:

[2.49] se G (r1, t) ≠ G (r2, t), então, r1 ≠ r2 .

Há quatro caracterizações gerais, típicas do comportamento temporal e espacial dos

valores de uma grandeza física. Uma grandeza física é dita transiente ou dinâmica os seus

valores locais variam no decurso do tempo,

[2.50] G = G (r, t);

ou permanente ou estática se os valores locais são temporalmente invariantes,

[2.51] G = G (r, t) = G (r);

ela é dita uniforme se os seus valores são espacialmente invariantes,

[2.52] G = G (r, t) = G (t);

e homogênea se os seus valores são temporal e espacialmente invariantes,

[2.53] G = G (r, t) = constante.

Grandezas Aditivas

A extensão é um atributo global e quantificável de uma região espacial, representada

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Page 80: Termodinamica

pela grandeza física comprimento L, área A ou volume V se esta região é, no espaço euclidiano

ⵟn, uni-, bi- ou tridimensional, respectivamente. Uma região espacial pode ser considerada como

um conjunto de regiões espaciais elementares, configuradas de tal forma que a extensão total da

região espacial equivale à adição das extensões destas suas regiões elementares constituintes.

Por esta razão, o comprimento, a área e o volume são grandezas físicas ditas aditivas.

Se as regiões espaciais elementares são finitas, tem-se

[2.54a] L =∑i=1

m

Li ,

[2.54b] A =∑i=1

m

A i ou

[2.54c] V =∑i=1

m

V i ,

onde Li, Ai e Vi denotam o comprimento, a área e o volume da i-ésima de m regiões elementares,

respectivamente, uni-, bi- e tridimensionais. Se as regiões elementares são infinitesimais, tem-se

[2.55a] L =∫0

L

dL ,

[2.55b] A =∫0

A

dA ou

[2.55c] V =∫0

V

dV .

O conceito de aditividade é, agora, generalizado: uma grandeza física G = ℰ é dita

aditiva quando o seu valor, numa dada região espacial, resulta da adição dos valores que lhe

corresponde nas regiões elementares constituintes daquela região. Tem-se

[2.56] ℰ =∑i=1

m

ℰi .

Aqui, ℰi denota o valor instantâneo da grandeza na i-ésima região elementar, que é uma fração

finita da região espacial considerada. Se a região elementar é infinitesimal, o valor instantâneo da

grandeza é um infinitésimo, dℰ. Neste caso, o valor da grandeza aditiva, naquela região espacial,

corresponde a

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Page 81: Termodinamica

[2.57] ℰ =∫0

dℰ .

O valor dado pela equação [2.56] ou [2.57] é global e instantâneo, sendo sempre um

número real, 0 ≤ {ℰ} < + ∞, função da extensão da região espacial considerada. Em particular, se

a extensão da região espacial reduz-se a zero, reduz-se também a zero o valor da grandeza. Se a

região é espacialmente tridimensional, o valor da grandeza é função do seu volume. Ele é função

do comprimento ou da área superficial de uma região apenas se for possível conformá-la, ainda

que idealmente, como um espaço uni- ou bidimensional. Portanto, são entre si excludentes as

relações ℰ = ℰ(L, t), ℰ = ℰ(A, t) e ℰ = ℰ(V, t). Por exemplo: uma certa quantidade de líquido

esparramada sobre um plano conforma-se como uma película de grande superfície e pequena

espessura; embora o valor do volume não mude, a área superficial varia significativamente em

função da forma assumida. Películas, assim como interfaces, placas, faixas e fitas têm muito

pequenas áreas seccionais em relação às suas áreas superficiais, Asec << A, e são, em várias

situações, idealmente representadas como objetos espacialmente bidimensionais. Já as

espessuras de arames, filamentos, fios, cabos e hastes são muito pequenas em relação aos

respectivos comprimentos, ℓ << L. Em várias situações, estes objetos são representados

idealmente como espacialmente unidimensionais.

Sem perda de generalidade, na região espacial ocupada por um objeto material pode-

se fazer coincidir cada região espacial elementar com um objeto material elementar. A massa e a

quantidade de substância são atributos globais desses objetos materiais, representados pelas

grandezas físicas aditivas ℰ = M e ℰ = N, respectivamente. Se cada objeto material elementar é

uma fração finita do objeto material, a equação [2.56] assume, então, a forma:

[2.58a] M =∑i=1

m

M i ou

[2.58b] N =∑i=1

m

Ni .

Se cada objeto material elementar é uma fração infinitesimal do objeto material, a equação [2.57]

assume a forma

[2.59a] M = ∫0

M

d M ou

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Page 82: Termodinamica

[2.59b] N =∫0

N

d N .

Por vezes, caracteriza-se como aditiva a grandeza física cujo valor é proporcional à

quantidade de massa ou de substância de um objeto material. Vale dizer, o somatório indicado na

equação [2.56] e a integração indicada na equação [2.57] são equivalentemente processados

sobre a extensão espacial de uma região e sobre a extensão material de um objeto. Se a região é

tridimensional, resultam

[2.60a] ℰ = ℰ(V,..., t) ≡ ℰ(M,..., t) e

[2.60b] ℰ = ℰ(V,…, t) ≡ ℰ(N,..., t) .

Além de ser eventualmente dependente de algumas outras variáveis e do tempo, o valor global e

instantâneo da grandeza aditiva ℰ é expresso em função do volume e, equivalentemente, em

função da massa ou da quantidade de substância. O conceito de aditividade aqui adotado não

pressupõe tal equivalência nem ela lhe é necessariamente decorrente. Por exemplo, considere-se

uma fonte de energia radiante. A quantidade total de energia que, num dado instante, encontra-se

contida no espaço circundante desta fonte é equivalentemente proporcional ao volume deste

espaço e à quantidade de um gás ali encerrado, mantidas invariantes as demais condições. Mas

não há tal equivalência se, no dado espaço, produz-se vácuo.

Grandezas Específicas - Densidades

Uma grandeza física dita específica é definida como uma densidade espacial ou como

uma densidade material de uma grandeza aditiva. As densidades espaciais são geralmente

definidas em termos volumétricos; em certos casos, porém, em termos superficiais ou lineares. As

densidades materiais são definidas em termos mássicos ou em termos molares.

A densidade volumétrica ρvℰ de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre

os valores desta grandeza e do volume da região tridimensional elementar que a contém42. Para

que o seu valor seja local, deve-se ter

[2.61] vℰ ≙ lim

V 0

ℰV= ∂ ℰ

∂ V= ∂ ℰ

∂ V∣ ... .

42 Considera-se que a distinção entre regiões espaciais elementares finitas ou infinitesimais já está suficientemente esclarecida. Idem em relação a objetos materiais elementares finitos ou infinitesimais. Na sequência, exceto ocasionalmente, o formalismo será desenvolvido apenas com base em elementos infinitesimais.

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Page 83: Termodinamica

No processo de limite V 0, se ℰ = ℰ(V,....), exceto o volume V, os valores das demais variáveis

(…) são mantidos constantes.

A densidade superficial ρAℰ de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre

os valores da grandeza e da área da região bidimensional elementar que a contém. O seu valor

local é dado por

[2.62] ρAℰ ≙ lim

A → 0

ℰA

= ∂ℰ∂ A

∣ (...)

Analogamente à equação [2.61], no processo de limite A 0, se ℰ = ℰ(A,....), exceto a área A, os

valores das demais variáveis (…) são mantidos constantes.

A densidade linear ρLℰ de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre os

valores da grandeza e do comprimento da região unidimensional elementar que a contém. O seu

valor local é dado por

[2.63] Lℰ ≙ lim

L 0

ℰL= ∂ ℰ

∂ L∣ ... .

Também aqui, no processo de limite L 0, se ℰ = ℰ(L, ....), exceto o comprimento L, os valores

das demais variáveis (…) são mantidos constantes.

Dado que os valores da grandeza aditiva ℰ assim como, respectivamente, os valores

do volume V, da superfície A e do comprimento L são instantâneos, resulta que os valores das

densidades, definidos pelas equações [2.61], [2.62] e [2.63], são locais e instantâneos, ou seja,

ρvℰ(r, t), ρA

ℰ(r, t) e ρLℰ(r, t).

As densidades volumétricas são mais comumente utilizadas. Em geral, densidades superficiais

são usadas quando objetos físicos são representados como bidimensionais; por exemplo,

placas, películas e superfícies interfaciais. Já as densidades lineares são usadas quando

aqueles objetos são representados como unidimensionais, como no caso de cabos, filamentos

e barras delgadas. Como generalização, considere-se uma região espacial, geometricamente

representada em termos de uma superfície característica de área A e, na sua direção

perpendicular, de um comprimento característico de extensão ℓ. Esta região pode ser

idealizada como bidimensional se ℓ2 / A <<< 1; e como unidimensional, se ℓ2 / A >>> 1.

Se a grandeza aditiva é a massa, ℰ = M, resulta, da equação [2.61], a densidade

volumétrica de massa, usualmente chamada massa específica,

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Page 84: Termodinamica

[2.64] VM = V =

∂ M∂ V∣ ... .

Para a quantidade de substância, ℰ = N, resulta da equação [2.61] a densidade volumétrica de

quantidade de substância, também chamada densidade volumétrica molar,

[2.65] ρVN = ρ̄V =

∂ N∂ V

∣ ( ...) .

De modo análogo às equações [2.64] e [2.65], tem-se a densidade superficial de massa,

[2.66] AM = A =

∂ M∂ A∣ ...

e a densidade superficial de quantidade de substância ou densidade superficial molar,

[2.67] AN = A =

∂ N∂ A∣ ... .

Também de forma análoga às equações [2.64] e [2.65], a densidade linear de massa é dada por

[2.68] LM = L =

∂ M∂ L∣ ...

e a densidade linear de quantidade de substância ou densidade linear molar é

[2.69] LN = L =

∂ N∂ L∣ ... .

Os valores locais e instantâneos das densidades espaciais - ρVℰ, ρA

ℰ e ρLℰ - são, no

caso geral, transientes ou dinâmicos, ρℰ = ρℰ(r, t). Nos termos das equações [2.51] a [2.53], estes

valores podem ser permanentes ou estáticos, ρℰ = ρℰ(r); uniformes, ρℰ = ρℰ(t); ou homogêneos,

ρℰ = cte. O valor de uma densidade espacial refere-se globalmente a uma extensão espacial

apenas se ele for uniforme ou homogêneo sobre tal extensão. Sendo esta região ocupada por um

objeto material Ø, este é o valor da densidade no objeto. Não obstante, frequentemente as

densidades espaciais de uma grandeza aditiva são definidas como a razão entre o valor globalℰ

da grandeza e o valor da extensão da região espacial que a contém - um volume, uma área ou um

comprimento. Por exemplo, é comum definir a densidade volumétrica de uma grandeza aditiva ℰ

como ρVℰ = /V. Este é, de fato, um valor médio, coincidente com os valores locais apenas sob aℰ

condição, explícita ou implícita, de que seja satisfeito o requisito de uniformidade ou de

homogeneidade.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 84

Page 85: Termodinamica

A densidade mássica de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre os

valores desta grandeza e da massa do objeto que a contém. De forma análoga à equação [2.61],

tem-se

[2.70] εℰ = limM 0

ℰM= ∂ ℰ

∂ M∣ ... .

No processo de limite M 0, se ℰ = ℰ(M,....), exceto a massa M, os valores das demais variáveis

(…) são mantidos constantes. Similarmente, a densidade molar é definida com a razão entre o

valor da grandeza e o valor da quantidade de substância do objeto que a contém, ou seja,

[2.71] εℰ = limN 0

ℰN= ∂ℰ

∂ N∣ ... .

No processo de limite N 0, se ℰ = ℰ(N,....), exceto a quantidade de substância N, os valores

das demais variáveis (…) são mantidos constantes.

No entanto, os valores de ∂ /ℰ ∂M e ∂ /ℰ ∂N não são necessariamente locais, posto que

os respectivos processos de limite podem ocorrer num volume finito. Exemplo: no processo de

evacuação de um gás encerrado num recipiente de volume finito e invariante, os limites ℰ/M

quando M 0 e ℰ/N quando N 0 não são valores locais, mas valores globais associados ao

volume do recipiente. Os valores das densidades mássicas são, porém, necessariamente locais

se forem definidos em termos de razões entre os valores locais de densidades espaciais. Assim,

referida ao volume, para ter um valor local, a densidade mássica εℰ43 da grandeza ℰ deve ser

definida como

[2.72] εℰ ≙Vℰ

VM .

Pois, sendo locais e instantâneos os valores das densidades volumétricas ρVℰ e ρV

M , a sua razão é

também local e instantânea, ou seja, εℰ = εℰ(r, t). Similarmente, a densidade molar, usualmente

designada grandeza específica molar, se referida ao volume do objeto material elementar, é dada

pela razão

[2.73] εℰ ≙Vℰ

VN .

43 Usualmente, as grandezas específicas são representadas pelas letras minúsculas correspondentes às letras maiúsculas que representam as respectivas grandezas aditivas. Em alguns casos, essa regra não é observada em favor de outros símbolos consagrados pelo uso. O símbolo de uma variável molar traz uma barra sobre o símbolo da correspondente variável mássica.

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Page 86: Termodinamica

Assim definida, o valor da densidade molar é, também, local e instantâneo. Para fenômenos

físicos cuja representação é feita mediante objetos materiais bidimensionais, as densidades

mássicas e molares são referidas à área desses objetos, respectivamente,

[2.74] εℰ ≙Aℰ

AM e

[2.75] εℰ ≙Aℰ

AN .

Já para fenômenos cuja representação é feita mediante objetos materiais unidimensionais, as

densidades mássicas e molares são referidas ao comprimento destes, respectivamente,

[2.76] εℰ ≙Lℰ

LM e

[2.77] εℰ ≙Lℰ

LN

.

Independentemente da representação espacial dos objetos materiais, das equações [2.72], [2.74]

e [2.76] resultam valores da grandeza ℰ por unidade de massa; das equações [2.65], [2.75] e

[2.77], resultam valores da grandeza ℰ por unidade de quantidade de substância. De forma

análoga às densidades espaciais, os valores locais e instantâneos das densidades materiais são,

no caso geral, transientes ou dinâmicos. Para as densidades mássicas tem-se, por exemplo, εℰ =

εℰ(r, t). Alternativamente, eles podem ser permanentes ou estáticos, εℰ = εℰ(r); uniformes, εℰ =

εℰ(t); ou homogêneos, εℰ = cte. Apenas quando os valores das densidades materiais forem

uniformes ou homogêneos sobre a extensão do objeto material considerado, as equações [2.76] e

[2.77] têm os mesmos significados físicos, respectivamente, das equações [2.70] e [2.71] pois,

neste caso, estas últimas equações indicam, de fato, valores médios sobre a extensão espacial do

objeto material considerado.

Quando a grandeza aditiva é o volume, ℰ = V, da equação [2.72] resulta o valor local e

instantâneo da densidade mássica de volume ou volume específico,

[2.78] εV = = 1V

M =1V

.

Da equação [2.77] resulta o valor local e instantâneo da densidade molar de volume ou volume

específico molar,

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 86

Page 87: Termodinamica

[2.79] εV = = 1V

N =1V

.

De forma análoga, quando a grandeza aditiva é a área, ℰ = A, da equação [2.74] resulta o valor

local e instantâneo da densidade mássica de área ou área específica,

[2.80] εA = = 1A

M =1A

.

Da equação [2.75] resulta, agora, o valor local e instantâneo da densidade molar de área ou área

específica molar,

[2.81] εA = = 1A

N =1A

.

Finalmente, quando a grandeza aditiva é o comprimento, ℰ = L, da equação [2.76] resulta o valor

local e instantâneo da densidade mássica de comprimento ou comprimento específico,

[2.82] εL = = 1ρL

M = 1ρL

.

Da equação [2.77] resulta, agora, o valor local e instantâneo da densidade molar de comprimento

ou comprimento específico molar,

[2.83] ε̄L = ̄ =1ρL

N =1ρ̄L

.

O conjunto de designações e símbolos das grandezas específicas é apresentado na

Tabela 2.1.. Como indicado, algumas delas recebem também outras designações, consagradas

pelo uso. Nesta tabela, constam as dimensões dessas grandezas e suas unidades no Sistema

Internacional.

Tabela 2.1. Grandezas específicas. Densidades. Unidades SI.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 87

Page 88: Termodinamica

Grandezas EspecíficasDensidades espaciais Símbolo Dimensão Unidades SI

densidade volumétrica

da grandeza extensiva ℰ ρ

Vℰ

L -3

[

ℰ] / m3

de massa*) ρ

VM

M L -3

k

g / m3

de substância ρ

VN

N L -3

k

mol / m3

densidade superficial

da grandeza extensiva ℰ ρ

Aℰ

L -2

[

ℰ] / m2

de massa ρ

AM

M L -2

k

g / m2

de substância ρ

AN

N L -3

k

mol / m2

densidade linear

da grandeza extensiva ℰ ρ

Lℰ

L -1

[

ℰ] / m

de massa ρ

LM

M L -1

k

g / m

de substância ρ

LN

N L -1

k

mol / m

Densidades materiais Símbolo Dimensão Unidades SIdensidade mássica

da grandeza extensiva ℰ εℰ

M -1

[

]ℰ / kg

de volume**)

L

3 M -1

m3 / kg

de superfície L

2 M -1

m2 / kg

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 88

Page 89: Termodinamica

de comprimento

L M -1

m

/ kg

densidade molar

da grandeza extensiva ℰ ℰ

N -1

[

ℰ] / kmol

de volume***) L3 N-1

m3 / kmol

de superfície L2 N-1

m2 / kmol

de comprimento L N-1

m

/ kmol Uso mais comum: *) massa específica; **) volume específico mássico; ***) volume específico molar.

Grandezas Intensivas – Campos Termodinâmicos

Uma grandeza física, G = , é dita intensiva se os seus valores forem intrinsecamente

locais e instantâneos,

[2.84] = ( r, t) .

Uma grandeza intensiva pode ser de natureza escalar, vetorial ou tensorial. Os seus valores

definem um campo; a distribuição espaço-temporal desses valores é o perfil do campo; o seu

valor local e instantâneo, a intensidade de campo, pode ser qualquer número real, - ∞ < { } < + ∞.

Há campos cuja ação vai além da extensão do objeto material que o origina, estando

presente também em locais de seu espaço circundante44. Tal são os casos, por exemplo, de um

campo elétrico e de um campo gravitacional. A Fig. (2.4) mostra o intensidade local do campo

gravitacional, = g(r), criado por uma esfera de raio R com massa homogeneamente distribuída.

44 Pode-se dizer que um campo representa a modificação causada por um objeto material no espaço que ocupa e naquele que o circunda. O espaço não é, portanto, uma vazio geométrico inerte, mas um objeto físico de estrutura complexa. No âmbito de uma teoria macroscópica da Termodinâmica, de caráter fenomenológico, não se cogita sobre a natureza deste objeto.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 89

Page 90: Termodinamica

Figura 2.4. Intensidade do campo gravitacional no interior e no exterior de uma esfera homogênea de raio R.

Algumas grandezas intensivas têm significado físico apenas sobre a extensão de um

objeto material. A velocidade, a temperatura e a pressão são exemplos deste tipo de grandeza.

Os seus valores existem apenas em locais sobre a extensão de um objeto material Ø, vale dizer,

cada valor local está sempre associado a um objeto material elementar ,⊘

[2.85] = ( r, t) = ( r⊘, t) = ( ⊘, t) , ⊘ ∈ Ø.

O campo de atuação de uma grandeza intensiva é, no caso geral, transiente ou

dinâmico, = ( r, t). Alternativamente, o campo pode ser permanente ou estático, = ( r);

uniforme, = ( t); ou homogêneo, = cte. É possível associar a um objeto material Ø um único

valor de uma grandeza intensiva apenas se o respectivo campo de atuação for uniforme, caso em

que = ( Ø, t), ou se ele for homogêneo, quando, então, = ( Ø).

Dado que tanto as grandezas intensivas quanto as grandezas específicas têm valores

locais e instantâneos, em que os seus respectivos conceitos as diferencia? Em certa medida, é

arbitrária a caracterização de determinadas grandezas como intensivas, pois elas poderiam ser

também caracterizadas como grandezas específicas. Por exemplo, usualmente considerada uma

grandeza intensiva, a velocidade pode ser considerada uma densidade mássica de quantidade de

movimento. Similarmente, a segunda potência da velocidade pode ser considerada a densidade

mássica de energia cinética. Como será visto mais adiante, há uma clara distinção conceitual se

consideradas as situações em que distintos objetos materiais encontrem-se em mútuo equilíbrio.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 90

0

g(r)

R r

Page 91: Termodinamica

Tal como na situação de coexistência de fases distintas de uma dada substância. Essa situação

de equilíbrio é caracterizada pela igualdade dos valores das grandezas intensivas [temperatura e

pressão, no exemplo] entre os objetos, embora possam ser desiguais os valores das grandezas

específicas[24] [no exemplo: volume específico, massa específica, energia interna específica].

Grandezas Extensivas

Uma grandeza física G = λℰ é dita extensiva se uma função λ(r, t) que multiplica o

valor de uma grandeza aditiva ℰ em cada região elementar de uma região espacial, igualmente

multiplica o valor da grandeza referente à totalidade desta região de uma região espacial. Assim,

se cada região elementar é uma fração infinitesimal desta região, tem-se

[2.86] ∫0

λ dℰ = λ ∫0

dℰ = λ ℰ .

Esse requisito de extensividade é satisfeito apenas quando a função λ é espacialmente invariante,

ainda que possa variar em relação ao tempo, λ = λ(t). Vale dizer, a função λ deve ser uniforme

sobre a extensão espacial considerada. Tipicamente, a função λ(r, t) representa uma grandeza

intensiva ou uma grandeza específica. Em particular, quando λ = 1, a equação [2.86] redunda a

equação [2.57].

Satisfeito o requisito de extensividade, o produto λ ℰ expressa também uma grandeza

global aditiva. De acordo com as definições adotadas, não são equivalentes os conceitos de

extensividade e de aditividade45, pois uma grandeza física aditiva é extensiva apenas sob a

circunstância particular da uniformidade da função λ(r, t), enquanto toda grandeza física extensiva

é aditiva.

Por vezes, caracteriza-se como extensiva a grandeza física cujos valores são iguais

frações do seu valor global para iguais frações do volume ou da massa do objeto material. Como

visto, porém, este critério de divisibilidade aplica-se apenas sob condições de uniformidade da

densidade volumétrica ou da densidade mássica da grandeza considerada. Quando, então, ele é

equivalente ao requisito de extensividade. Obviamente, tal equivalência não é sempre satisfeita.

Bastante mais adiante, neste texto, serão introduzidas as grandezas entalpia, energia livre de

Gibbs e energia livre de Helmholtz, aqui genericamente representadas por , ℰ definidas sob a

forma geral

45 Outros autores[27] adotam conceitos diversos para a aditividade e a extensividade.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 91

Page 92: Termodinamica

[2.87] ℰ = ℰA + λ ℰB ,

onde ℰA e ℰB representam distintas grandezas aditivas e λ representa uma grandeza de

campo. A grandeza λ ℰB e, por consequência, a grandeza serão ℰ aditivas e, neste caso,

também extensivas apenas se for satisfeito o requisito de extensividade. Por exemplo, para

uma região espacial ocupada por um objeto material, se ℰA = U representa o valor global e

instantâneo da energia interna, ℰB = V o valor global e instantâneo do volume e λ = p o valor

local e instantâneo da pressão, apenas se este valor for uniforme sobre a extensão do objeto a

expressão U + p V representa o valor global e instantâneo de sua entalpia H.

Propriedades e Estado

Uma grandeza física que seja atributo de um objeto material é designada propriedade

desse objeto ou de seu material constituinte, G = ∏, se o seu valor refere-se à totalidade de sua

extensão espacial ou de sua extensão material46. O comportamento de uma propriedade é dito

permanente ou estático se este valor é temporalmente invariante; e transiente ou dinâmico se,

pelo contrário, ele varia no decurso do tempo.

Nestas circunstâncias, uma grandeza local (intensiva ou específica) é caracterizada

como uma propriedade apenas quando o seu valor for uniforme sobre a extensão do objeto.

Temperatura, pressão e massa específica, por exemplo, são ditas propriedades de um objeto

material apenas se tal requisito for satisfeito. Pelo contrário, uma grandeza global (aditiva ou

extensiva) é, sempre, propriedade do objeto, pois o seu valor refere-se, por definição, à totalidade

de sua extensão. Por exemplo, o volume é uma propriedade do objeto; a massa é propriedade de

sua matéria constituinte; existe um valor da entalpia (energia interna mais o produto do volume

pela pressão) apenas se o valor da pressão for uniforme sobre a extensão do objeto material.

O valor de uma propriedade, obtido por medição, deve ser referido ao instante desta e deve ser

independente de medidas realizadas em outros instantes, assim como do instrumento de

medida e de outros objetos presentes no seu ambiente circundante[26]. Por exemplo, a

velocidade média de translação de um objeto material, definida como a razão entre o seu

deslocamento entre duas posições espaciais e o intervalo de tempo transcorrido, não é uma

propriedade do objeto, pois o seu valor depende de medições realizadas em instantes distintos.

No entanto, se o intervalo temporal é infinitesimal, o valor limite da razão entre os valores do

deslocamento e do intervalo de tempo, quando este tende a anular-se, é local e instantâneo. A

46 Propriedade: aquilo que é próprio, particular. Fosse admitida a possibilidade de variação do valor de uma propriedade sobre a extensão do objeto material, tal denominação seria semanticamente inconsistente.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 92

Page 93: Termodinamica

velocidade instantânea de translação é uma propriedade do objeto.

Por estado designa-se a condição de um objeto material definida pelo conjunto dos

valores instantâneos de todas as suas propriedades. O estado ⵟ de um objeto material é, pois,

determinado ou determinável apenas num instante ou numa sucessão de instantes em que sejam

uniformes os valores das grandezas locais utilizadas para sua descrição; quando, então, estas

grandezas são propriedades do objeto. Dois ou mais estados de um objeto material são idênticos

se determinados por conjuntos idênticos dos valores instantâneos de todas as suas propriedades.

Formulada em termos de suas propriedades, a descrição de um objeto material é

menos abrangente do que aquela em que são especificados também atributos gerais do objeto,

ou seja, do que aquela que também compreende atributos não quantificáveis e que sequer são

grandezas físicas. O estado de um objeto material é, portanto, uma representação parcial e

quantificável de sua condição geral; que pode ser expressa em termos matemáticos.

No contexto de tal representação, prescrever arbitrariamente valores para algumas

das propriedades implica estabelecer os valores das demais. Vale dizer, a prescrição dos valores

destas propriedades define o estado do objeto. Por esta razão, elas são chamadas propriedades

independentes da representação, também designadas grandezas de estado, variáveis de estado

ou parâmetros de estado. O conjunto de propriedades independentes define o que também se

designa um sistema (termodinâmico) de coordenadas – ou a base de um dada representação

termodinâmica.

Um dado conjunto de grandezas físicas é composto pelas propriedades independentes de certa

representação de um objeto material se a prescrição de um valor para qualquer delas não

implica estabelecer o valor de qualquer outra propriedade deste conjunto; e se a prescrição de

valores de todas elas implica necessariamente estabelecer os valores das demais propriedades

do objeto.

Agora, a equação [2.28] aplica-se à representação de um objeto material Ø formulada

em termos de m atributos relevantes. Se tais atributos são propriedades do objeto, o seu estado

ⵟØ é perfeitamente determinado ou determinável pelo conjunto [...ℂ ] dos valores das n (n < m)

propriedades independentes da representação. Dado que estes valores podem variar no decurso

do tempo, tal estado é instantâneo. Genérica e simbolicamente, tem-se

[2.88] ⵟ Ø = ⵟ Ø (t) = ⵟ (Ø, t) ≙ [..., ℂ ∏i (Ø, t), ...] , i = 1, n; n < m ,

em que ∏i denota o valor instantâneo da i-ésima propriedade independente da representação. De

forma similar à equação [2.29], para os valores das propriedades dependentes há m-n relações

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 93

Page 94: Termodinamica

funcionais, genérica e simbolicamente expressas por

[2.89] ∏j (Ø, t) = ∏j [..., ∏i (Ø, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m.

Aqui, ∏j denota o valor instantâneo da j-ésima propriedade dependente da representação. Estas

relações são chamadas equações de estado ou funções de estado. Deve-se ter em conta que, na

equação [2.89], pode-se permutar as variáveis, de modo que qualquer propriedade dependente

pode passar a ser independente e vice-versa.

Por exemplo, num objeto material monofásico constituído por uma massa M de um gás sujeito

a interações termomecânicas, a evidência experimental sugere que são propriedades

independentes duas dentre as propriedades: volume, V, pressão, p, e temperatura, T. Segue,

da equação [2.89], que a terceira é propriedade dependente, determinada mediante uma

equação de estado, ou seja, T = T [M, V, p], p = p [M, V, T] ou V = V [M, p, T]. Como será visto

adiante, a forma desta relação é estabelecida empiricamente, com base em resultados de

medição, ou como resultado deduzido da adoção de modelos ad hoc. O modelo do gás ideal é

um destes.

Objetos materiais elementares encontram-se, sempre e intrinsecamente, num certo

estado, local e instantâneo. Pois, por definição, os valores instantâneos de todas as grandezas

físicas locais que são atributos destes objetos referem-se a sua totalidade espacial ou material.

Ou seja, todas estas grandezas são também propriedades do objeto material elementar.

Assim, numa representação formulada em termos de m propriedades relevantes, o

estado local e instantâneo ⵟ⊘ de um objeto material elementar ⊘ é perfeitamente determinado ou

determinável pelo conjunto [...ℂ ] dos valores locais e instantâneos de suas n (n < m) propriedades

independentes. Genérica e simbolicamente, tem-se

[2.90] ⵟ⊘ = ⵟ⊘ (t) = ⵟ (⊘, t) = ⵟ (r⊘, t) = [..., ℂ ∏i (r⊘, t), ...] , i = 1, n ,

em que ∏i denota o valor local e instantâneo da i-ésima propriedade independente do objeto

material elementar. Complementarmente, os valores das propriedades dependentes são dadas

por m-n relações funcionais, genérica e simbolicamente representadas por

[2.91] ∏j (r⊘, t) = ∏j [..., ∏i (r⊘, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m,

onde ∏j denota o valor local e instantâneo da j-ésima propriedade dependente. Ao estado local e

instantâneo ⵟ(⊘, t) = ⵟ(r⊘, t) de um objeto material elementar ⊘ corresponde um conjunto

inequívoco dos valores locais e instantâneos das propriedades relevantes da representação.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 94

Page 95: Termodinamica

No âmbito fenomenológico, as funções de estado são geralmente construídas sobre

base empírica, a partir de dados experimentais, ou mediante modelos ad hoc que idealizam

representações parciais e simplificadas do comportamento do objeto ou do seu material

constituinte. Mediante uma função de estado o valor de uma dada propriedade dependente, num

dado instante, pode ser determinado a partir do valores das propriedades independentes, neste

mesmo instante. Não importa, então, quais foram os processos que trouxeram o objeto ao estado

em que se encontra num dado instante. Não obstante, para os chamados materiais com memória

a função de estado requer também informação sobre estados assumidos em instantes anteriores

ao atual. Na formulação aqui desenvolvida, não se cogita das transformações que ocorrem em

tais materiais.

Transformação: Processo e Mudança de Estado

Ocorre uma transformação num objeto material quando há alteração de sua condição

corrente. Vale dizer, uma transformação ocorre se há variação na especificação de atributos do

objeto. Uma transformação resulta numa mudança de estado quando há variação dos valores de

grandezas físicas dentre aquelas que definem o estado do objeto, ou seja, dentre aquelas que são

suas propriedades. Vale dizer, uma mudança de estado é o resultado de uma transformação

entre condições bem definidas, caracterizáveis como estados do objeto.

Processo é a designação dada ao curso de uma transformação que leva um objeto

material de determinado estado inicial a um certo estado final. No curso de uma transformação, os

valores instantâneos das propriedades aditivas do objeto permanecem sempre determinados ou

determináveis. Não se mantém, porém, sobre a extensão do objeto, a uniformidade dos valores de

grandezas intensivas ou específicas. Por exemplo, numa transformação no curso da qual varia o

volume de um gás, o valor deste pode ser medido a cada instante; ao longo da extensão espacial

ocupada pelo gás, porém, o valor da pressão deixa de ser uniforme e o valor da massa específica

pode deixar de sê-lo, de modo que, sem que haja valores únicos que lhes possam ser associados,

estas grandezas não são, nestas circunstâncias, caracterizáveis como propriedades do objeto.

Não se aplica, portanto, a equação [2.88] nem é válida a equação [2.89]. Também não se aplica o

conceito de grandeza extensiva pois, se a função λ(r, t) representa uma destas grandezas,

também não é válida a equação [2.86]. Nestes termos, como construir a representação analítica

de um processo?

Referido a um objeto material elementar constituinte do objeto, o processo é a

sucessão de estados que tal objeto assume no curso de uma transformação que o leva do estado

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 95

Page 96: Termodinamica

inicial, comum a todos os demais objetos materiais elementares, até o estado final, também

comum a todos. Os processos percorridos pelos objetos elementares são, porém, em geral

distintos entre si. Como conclusão, a implicação é que a variação dos valores das propriedades

dependentes não é afetada pelo curso do processo ao qual cada objeto material elementar esteve

de fato submetido.

Para ilustração, estende-se o exemplo acima, no qual uma dada massa de gás é conduzida de

um estado inicial, com volume Vi e pressão pi , a um estado final, com volume Vf e pressão pf .

Nestes estados, a massa do gás está homogeneamente distribuída sobre os respectivos

volumes e, de acordo com a equação de estado, T = T [M, V, p], os respectivos valores da

temperatura estão também determinados.

Considere-se, então, que o gás está submetido a uma ação de compressão num conjunto

cilindro-pistão – ver Figura 2.5. O pistão é impelido na direção do fundo do cilindro, de modo

que a distância entre a superfície interna deste e a superfície do fundo do cilindro é uma função

do tempo, ou seja, ℓ = ℓ(t). Para cada instante, a multiplicação da distância ℓ pela área A

daquelas superfícies equivale ao volume V, ocupado pelo gás no instante considerado, V = V(t)

= ℓ . A. No curso desta ação, medidas da pressão, feitas simultaneamente por instrumentos

com suficiente resolução em distintos locais ao longo de uma reta perpendicular àquelas

superfícies, indicam valores decrescentes da pressão, da face interna do pistão ao fundo do

cilindro. Na figura, estes valores são representados, de forma simbólica, para diferentes

instantes entre aquele que corresponde ao estado inicial i da massa de gás e aquele em que o

estado final f então se estabelece. Em cada instante, não há um único valor da pressão que

possa ser associado à massa de gás. Ou seja, para a totalidade da massa do gás é impossível

descrever analiticamente o curso do processo.

Imagine-se, então, objetos materiais elementares de mesma massa e, em cada estado inicial

ou final, de mesmo volume – uma mesma fração da massa do gás e uma mesma fração do

volume ocupado pelo gás, Vi e Vf, respectivamente. Segue que, de acordo com a equação de

estado, T = T [M, V, p], os respectivos valores da temperatura estão também determinados. No

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 96

i0 V

p

i

f

f

Page 97: Termodinamica

curso da ação de compressão, cada objeto material elementar está submetido a um processo

bem definido, ou seja, cada processo corresponde a uma sequência bem definida de valores

da pressão e do volume. A circunstância notável é que, para o conjunto de objetos materiais

elementares, são entre si idênticos os seus estados iniciais e os seus estados finais, embora

sejam entre si distintos os processos a que tais objetos foram submetidos. A conclusão é,

então, que a variação dos valores das propriedades dos objetos materiais elementares, entre o

estado inicial e o estado final, é independente do curso específico do processo a que cada um

destes foi submetido. Esta variação corresponde àquela do objeto material macroscópico.

Considerando, então, da diferenciação da equação [2.89] ou [2.91], resulta a variação

infinitesimal do valor da j-ésima propriedade dependente,

[2.92] dΠj =∑i=1

n ∂Πj

∂Πi∣ (...) dΠi , j = n+1, m ,

em que, nas derivadas parciais, exceto para a propriedade ∏i, mantêm-se constantes os valores

das demais propriedades independentes, (…). Agora, como esta variação independe do curso da

transformação, a diferencial d∏j é exata. Caso em que, para uma transformação que conduza o

objeto material de um estado ⵟ1 a um estado ⵟ2, a variação do valor da propriedade ∏j é dada por

[2.93] ∫1

2

d Πj = Πj ,2 −Π j ,1 = ΔΠj , j = n+1, m .

Matematicamente, a condição necessária e suficiente para que d∏j seja uma diferencial exata é a

igualdade das derivadas parciais mistas – teorema de Schwarz. Ou seja,

[2.94]∂2 Π j

∂Πk ∂Π i=

∂2 Π j

∂Πi ∂Πk, i = 1, n; k = 1, n; k ≠ i; j = n+1, m.

Recorde-se que quaisquer n propriedades dentre as m que compõem a representação podem ser

tomadas como variáveis independentes. De modo que as equações [2.92] a [2.94] são gerais,

válidas qualquer propriedade. Na equação [2.94], é indiferente a ordem de diferenciação.

Como será tratado adiante, de especial interesse é a representação do estado e da

mudança de estado de um objeto material feita mediante m propriedades, sendo duas das quais

independentes. A equação [2.91] assume a forma:

[2.95] ∏j = ∏j [ ∏1, ∏2 ] , j = 3, m ,

enquanto, da equação [2.94], segue

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 97

Page 98: Termodinamica

[2.96]∂2 Π j

∂Π2 ∂Π1=

∂2 Πj

∂Π1 ∂Π2, j = 3, m.

Neste caso, demonstra-se que, entre as derivadas parciais, é válida a relação

[2.97] (∂ Π j∂Π 1

) Π2(

∂ Π1∂Π 2

) Π j(

∂ Π2∂Π j

) Π1= − 1 , j = 3, m.

Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 98

Page 99: Termodinamica

Parte II: FORMULAÇÃO

Antonio MacDowell de Figueiredo - Parte II: FORMULAÇÃO - 28/03/11- 21:28:56 99

Page 100: Termodinamica

Parte III: APLICAÇÃO

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Índice RemissivoAmontons, G..................................43Ar........................................................

Ar deflogisticado, oxigênio............37Ar fixo, dióxido de carbono.........36p.Ar flogisticado, azoto, nitrogênio 36p.Ar inflamável, hidrogênio..............38Ar perfeito, ar de fogo, ar vital.......36

Becher, J.J.......................................35Black, J...........................................36Cavendish, H..................................36Combustão..........................................

Explicações metafísicas......................Terra combustível............................35yin - yang.........................................35

Flogístico...........................................Conceito...........................................36Teoria...............................................37

Descartes, R....................................30Energia................................................

Conservação.......................................Princípio..........................................12

Entropia..............................................Crescimento.......................................

Princípio..........................................12Espaço.........................................51p.

Área................................................53Comprimento.................................53Volume...........................................54

Fahrenheit, D.G..............................44Galeno, C........................................38Galileo Galilei..........................31, 41

Grandezas físicas............................75Dimensão.......................................76Especificação.................................76Grandezas de estado.......................93

Helmont, J.B. van...........................36Interações............................................

Relação causal................................11Kelvin, Lord.....................................7Lavoisier, A.-L...............................37Leonardo da Vinci..........................28Lomonosov, M.V...........................36Macquer, P.J...................................37Massa substantiva...........................60Matéria............................................51

Massa.............................................58Massa substantiva...........................60Quantidade de substância...............60

Metodologia........................................Causa-e-efeito................................32Experimentum crucis......................30Hipótese científica..........................31Sistema ideal isolado......................33

Newton, I........................................32Objeto Material...............................64

Atributos........................................64Atributos relevantes.........................65

Objeto Material Elementar.............69Condição local e instantânea...........71

Philon..............................................39Philon de Bizantium.......................35

Pressão................................................Barômetro......................................41

Priestley, J......................................37Rutherford, D..................................36Sagredo, G.F...................................41Santoro Sanctorius..........................40Scheele, K.W..................................36Sistema...............................................

Ideal...............................................33Isolado............................................33

Stahl, G.E.......................................35Temperatura........................................

Conceito.........................................39Sensação de quente ou frio.............38Termometria.............................38, 40Termômetro........................................

Escala Fahrenheit............................45Escala termométrica........................40Pontos fiduciais...............................42Pontos fixos.....................................42Propriedades termométricas............39Substâncias termométricas..............42

Termoscópio..............................39pp.Tempo.......................................51, 55

Cronometria...................................55Duração...........................................55Intervalo...........................................55

Termodinâmica...................................Escopo............................................23Objeto...............................................8

Torricelli, E....................................41Warltire, J.......................................37

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