Território Do Brincar - Diálogo Com Escolas
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7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas
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Acupe, BA
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TERRITRIO DO BRINCARDILOGO COM ESCOLAS
RENATA MEIRELLES (ORG.)
Altamira, PA
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PREFCIO ............................................................................................................................................. 9ANA LUCIA VILLELA
Colocando o p na estrada... ..............................................................................................................13
O Territrio do Brincar em um encontro com o educador ......................................................................17Renata Meirelles
Filmando Crianas .............................................................................................................................23David Reeks
Territrio sem fronteiras ...................................................................................................................29Fernanda Heinz Figueiredo
O olhar antropolgico por dentro da infncia .....................................................................................37Adriana Friedmann
O brincar na comunidade ....................................................................................................................47Ute Craemer
Culturas populares, brincar e conhecer-se .........................................................................................51Soraia Chung Saura
Dilogos e experincias: pontes que conectam pessoas e territrios .....................................................61ANA CLUDIA ARRUDA LEITE
SUMRIO
Acupe, BA
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Dilogos e experincias: pontes que conectam pessoas e territrios 7TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS6O br incar na escola ..........................................................................................................................71Sandra Eckschmidt
Ningum to grande que no possa aprender n em to pequeno que no p ossa ensinar ..........................77Luiza Lameiro
NUFRAGOS E PIRATAS DO APRENDIZADO ...................................................................................................83Gandhy Piorski
Territrio da ini ciao .....................................................................................................................91Marcos Ferreira-Santos
os autores ......................................................................................................................................103
foto
Alto de Santa Maria, ES
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Numa tarde de 2011, ainda no pequeno escritrio no Brooklin onde ficava o Alana, em So Paulo,Renata Meirelles e David Reeks apareceram para uma reunio. Ns conhecamos o trabalho da Re-nata em prol das brincadeiras e s abamos que ela viria pe dir nosso apoio para algum novo projeto deles.
Ela entrou na sala um pouco tensa, como se no fssemos antigas conhecidas... Talvez no fssemos
mesmo, mas tamanha era a minha familiaridade com ela, que me causou certo estranhamento ter o
casal to srio na minha sala, apesar do largo sorriso dos dois. Eu tambm tinha trazido Marcos, meu
marido, na poca comeando a trabalhar quase que integralmente no Alana.
Renata, para mim, era antes de mais nada uma bandeirante (Movimento Bandeirante) e a irm da Dani.Quando a conheci, Dani e eu ramos fadinhas e ela, um pouco mais velha, j era B1 o que na poca
era uma diferena enorme. Apesar de no me encontrar muito com Renata, o fato de termos sido
bandeirantes juntas e ter algumas amigas em comum fez dela uma figura querida e quase ntima para
mim. E, como sempre suspeitei, termos convivido juntas na infncia em meio natureza e cercadas de
pessoas que acreditavam na liberdade de ser ou seja, na potncia de cada criana no poderia ter
feito de ns pessoas com objetivos macro diferentes.
E ali estvamos, os dois casais com causas semelhantes, numa mesa-redonda. Renata e David convi-
daram o Centro de Educao Infantil (CEI) Alana para participar de um projeto com outras escolas para
PREFCIO
ANA LUCIA villela
Praia de Tatajuba, CE
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PREFCIO 11TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS10investigar, trocar experincias e refletir sobre brincadeiras a partir de uma viagem de dois
anos que eles fariam pelo Brasil, com seus dois filhos pequenos.
A ideia era linda. To linda que o Marcos se virou para mim com aquele olhar cmplice (e
megalomanaco) que s vezes trocamos e disse: E se ajudarmos esta histria a acontecer
de um jeito que tenha um impacto maior ainda?. E logo emendou: Vamos fazer, no ape-
nas seis, mas todas as escolas pblicas e particulares do pas viajarem com vocs?.
E assim foi. Nasceu o projeto com as escolas parceiras (e este livro e os DVDs que o acom-
panham so o resultado disso), uma associao do Alana com a Maria Farinha Filmes,
para fazer o longa metragem Territrio do Brincar, e outros projetos que ainda esto porvir todos voltados para a nossa misso de honrar a infncia (e, consequentemente, a
humanidade), incentivando e deixando as crianas brincarem.
Simplesmente brincar. Ns, educadores, sabemos a fora desse fazer/ser/estar. Por isso, convidamos
pensadores que, generosamente, nos emprestaram seus olhares para enriquecer e ampliar ainda mais
essa certeza. Este livro rene artigos inspiradores que nos mostram o brincar em toda sua inteireza,
como gesto espontneo, livre, potico, antropolgico, individual e cultural tudo ao mesmo tempo.
Que este material nos ajude a encontrar mais fora na luta pelo reconhecimento da importncia do
brincar e para que possamos cultivar um olhar cada vez mais aguado, atento e sensvel para os gestos
de nossas crianas.
Ana Lucia VillelaPresidente do Instituto Alana
Junho/2015
Simplesmente brincar.
Ns, educadores,
sabemos a fora
deste fazer/ser/estar.
Por isso, convidamos
pensadores que,
generosamente, nos
emprestaram seus
olhares para enriquecer
e ampliar ainda maisessa certeza.
Oiteiros, MA
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Colocando o p na estrada...
O Territrio do Brincar trouxe algo grandioso,
que mostrar o que o Brasil... este Brasilzo...
tem como brincadeira. O que as crianas fazem,
do que elas brincam, que lugar esse!
Parceiros do projeto
Oprojeto Territrio do Brincar um trabalho de escuta, intercmbio de saberes, pesquisa, registroe difuso da cultura infantil, correalizado com o Instituto Alana.Entre abril de 2012 e dezembro de 2013, os documentaristas Renata Meirelles e David Reeks visitaram
comunidades rurais, indgenas, quilombolas, grandes metrpoles, serto e litoral, a fim de revelar o pas
por meio dos olhos das crianas brasileiras. Registraram em filmes, fotos, textos e udios as sutilezas
da espontaneidade do brincar, apresentadas do ponto de vista das crianas. Um intercmbio no qual
pesquisadores e crianas se encontraram no fazer e no brincar, sempre aprendendo um com o outro.
Durante esse percurso, o Territrio do Brincar olhou para as crianas fora do contexto escolar em dife-
rentes comunidades, buscando apreender e compreender como elas vivenciam suas infncias, brincam
e se expressam quando esto em liberdade e so as protagonistas das narrativas que criam e das
experincias que vivem.
Ao mesmo tempo, o Territrio firmou parceria com seis escolas de educao infantil e ensino funda-
mental de So Paulo e Santa Catarina, que contriburam para olhar para as crianas nesses espaos.
Praia de Tatajuba, CE
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Colocando o p na estrada... 15TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS14e refletiram com Renata e David ao longo da jornada do Territrio do Brincar; de dois filmes: os curtas
produzidos em cada regio visitada e que foram utilizados nos encontros mensais com as escolas; e
do documentrio baseado no dilogo do Territrio do Brincar com as seis escolas parceiras.
A produo desse documentrio foi um desafio. Alm de apresentar o rico processo de reflexo e for-
mao, seu objetivo compartilhar a experincia e os materiais produzidos pelo Territrio do Brincar
com outros educadores, gestores, pais e demais interessados, mostrando como uma proposta sensvel
e potica pode provocar, questionar e sensibilizar nosso modo de ver a criana na escola.
So elas: CEI Alana (SP), Colgio Oswald de Andrade (SP), Colgio Sidarta (SP), Es-
cola Vera Cruz (SP), Escola Casa Amarela (SC) e Escola Viverde (SP).
Por meio de videoconferncias mensais e com base em um rico material compos-
to de vdeos, textos e udios especialmente preparados para esses encontros, o
dilogo transitou por diversos temas, como a diversidade cultural de nosso pas e
as inmeras infncias possveis; o brincar livre, espontneo e, portanto, autno-
mo; a construo de brinquedos pelas crianas; o medo; as memrias da infncia
dos adultos; os aprendizados no contexto familiar e
nas manifestaes populares, entre tantos outros.
As reflexes, suscitadas em territrios to distantes,
convidaram os educadores a se assumir pesquisado-
res em seu territrio: a escola!
A cada nova comunidade a que chegava, o Territrio mostrava nas es-
colas as crianas brincando da forma mais genuna: com a gua, a terra,
o ar e o fogo. Brincar de construir com o serrote ou o faco. Brincar nas
manifestaes populares, correndo das caretas ou do Boi. Brincando
com grandes ou pequenos, foi assim que as crianas compartilharam
como aprendem na escola da vida.
Aps o primeiro ano de parceria, o Territrio do
Brincar props um desafio: aprofundar e exercitar
o olhar pesquisador do educador para a observao
do brincar dentro da escola. Entre tantas possibilidades, a brincadeira de casinha
foi a escolhida! E assim cada escola observou, coletou, registrou e refletiu sobre
essa brincadeira to presente no cotidiano da infncia, olhando e escutando suasprprias crianas.
Foram dois anos de intensas trocas de experincias, reflexes e aprendizados en-
tre o Territrio do Brincar e os educadores, a equipe de coordenao e a direo
dessas escolas. A fim de apresentar e compartilhar essa parceria, com o desejo de
que esse processo possa frutificar em mais e mais escolas, ampliando o olhar dos
educadores para o brincar pelo Brasil afora, elaboramos este material. Ele com-
posto de um livro com textos do grupo inspirador de pensadores que dialogaram
O Territrio do Brincar
mostra que tem escola l
fora, tem escola na praa,
na beira do mar, embaixo da
rvore... A escola maior
do que quatro muros e
professores. O Territrio nos
mostrou a escola da vida.
Parceiros do projeto
Eu acho fundamental o
dilogo, a conversa. Seria
bom se pudesse acontecer
em outras escolas o que
aconteceu com a gente,
com esta parceria. Foram
momentos de parada, de
reflexo sobre o brincar, a
criana, a infncia. Tudo
foi fundamental.
Parceiros do projeto
Acho que o Territrio tem
de ser uma coisa viva, ser
eterno, e no acharmos
que agora, aps esses dois
anos, ele acabou! Que ele
esteja presente em tudo, que
possamos lev-lo de pessoa
para pessoa, de professor
para professor, de pai para
pai, em todos os lugares que
a gente puder lev-lo.
Parceiros do projeto
Praia de Tatajuba, CE
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O Territrio do Brincar emum encontro com o educador
Renata Meirelles
Oprojeto Territrio do Brincar, em correalizao com o Instituto Alana, tem vrias fren-tes de atuao, entre elas, uma parceria com escolas. Quando eu e David Reeks assumimoso desejo de voltar para a estrada e ampliar a pesquisa sobre o brincar das crianas brasileiras
uma prtica que fazamos juntos desde 20 01 , a primeira ideia foi e stabelecer parcerias com escolas
que desejassem olhar para aspectos essenciais do brincar infantil.
Uma parceria na qual o dilogo fosse o meio e o fim de todo o processo. Planejamos encontros mensais
por meio de teleconferncias, que trariam os acontecimentos decorrentes do vnculo construdo com as
pessoas, em campo. No seria possvel prever quais temas seriam tratados, mas era necessrio acreditar
na fora do encontro e na potncia da criana falar de si mesma. Seis instituies Escola Vera Cruz (So
Paulo, SP), Escola Viverde (Bragana Paulista, SP), Colgio Sidarta (Cotia, SP), Colgio Oswald Andrade
(So Paulo, SP), CEI Alana (So Paulo, SP), Escola Casa Amarela (Florianpolis, SC) confiaram nessa
proposta e firmaram o compromisso de abrir uma janela para ver o que fazem as crianas fora da escola,
para reconhecer as diversas vertentes culturais que regem o Brasil e para ampliar as discusses sobre
educao e cultura. Com parceiros dessa magnitude, nos sentamos confiantes para ganhar a estrada.
O roteiro de viagem priorizou o interior do pas para que pudssemos conhecer crianas que es-
tivessem sob menor influncia das distraes da vida contempornea e, dessa forma, enxergar
So Gonalo do Rio das Pedras, MG
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O Territrio do Brincar em um encontro com o educador 19TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS18independentemente da regio geogrfica? Como ir
alm da transmisso do patrimnio cultural, que,
apesar de importante, no alcana o dilogo com
a fora do imaginrio infantil? Qual o eco que a
liberdade infantil faria ressoar no cotidiano de cada
educador? Inmeras perguntas acompanharam in-
sistentemente a jornada do Territrio do Brincar.
Nos primeiros encontros virtuais, as vozes dos
educadores nos chegavam com um tom de espan-
to e encanto, misturados com um claro desejo de
transmitir a seus alunos o que o Territrio do Brin-
car estava conhecendo. Reproduzir as brincadeiras
nas aulas, contar o que comem aquelas crianas,
como so seus ambientes, suas festas, suas his-
trias e expresses, eram relatos frequentes do
que acontecia nas escolas, sempre acompanhados
de perguntas que, certamente, se tornariam matria-prima para as aulas seguintes. Do lado de c,
corramos para no deixar escapar nada que pudesse alimentar esses questionamentos.
Com o passar do tempo e aos poucos, essas crianas que faziam coisas aparentemente to diferen-
tes foram ocupando o espao de representantes de aspectos humanos absolutamente reconhecveis
em qualquer criana, seja ela de onde for. O que essas crianas apresentavam em seus brinquedos e
brincadeiras estava para alm de um produto cultural interessante era um processo do imaginrio
recorrente em todos ns.
Temas como medo, intimidade, potncia, autonomia e liberdade apareciam constantemente nas brinca-deiras observadas pelo Territrio do Brincar, e os educadores precisavam encontr-los no brincar dentro
da escola. Como isso ocorre entre seus alunos?
Relatos intensos de um olhar atento e sensvel eram habituais nas teleconferncias. Aproximar-se das
semelhanas ainda mais potente do que falar das diferenas, disse uma educadora do Colgio Sidar-
ta. Quando o foco est nos gestos, possvel ver outras coisas para alm do gesto. a repetio e a
inteno dos gestos que nos interessam. Pela espontaneidade se consegue chegar ao imaginrio, pois
ele diz de todos ns, afirmou uma educadora da Escola Vera Cruz.
seus gestos e seu imaginrio com a nitidez necessria aos nossos olhos. Queramos
nos aproximar dessas crianas que pouco aparecem nos meios de comunicao, e
sabamos que percorrer o interior deste pas seria, de alguma forma, como chegar ao
interior de ns mesmos.
Samos decididos a focar no que de mais potente cada criana tem a mostrar, restabe-
lecendo dignidade aos seus atos, e, ao mesmo tempo, a lapidar nosso olhar para os
gestos sutis. Os problemas que rodeiam a infncia existem aos montes, mas, para alm
deles, h inmeras belezas e potncias vividas intensamente em todo o Brasil. Optamos
conscientemente por enxergar pela lente do belo, pois, como nos dizem Allan Kaplan e
Sue Davidoff (2014, p. 12), o modo como enxergamos se torna extremamente impor-
tante no que diz respeito ao mundo que criamos atravs desse enxergar.
Enquanto os adultos que encontrvamos pelo caminho insistiam em nos dizer que as crianas no
brincam mais, elas, por sua vez, nos revelavam um brincar vigoroso e potente. O adulto dizendo NO
e as crianas nos apresentando um SIM muito rico em elementos culturais e de imaginrio extraordi-
nrio. Uma contradio constante que revela a perda do lastro entre o que fazem as crianas e o que
enxergam os adultos.
Agarrados ao que apreendamos das
espontaneidades infantis, s inmeras
referncias tericas e s parcerias com
pesquisadores em especial ao rigoroso
estudo do imaginrio infantil de Gandhy
Piorski , o desafio era conseguir co-
municar aos educadores dessas escolas
parceiras a essncia das crianas. Mascomo no cair em relatos culturais que
apresentam o outro como diferente e
geram um distanciamento da realidade?
Como apresentar as intenes dos ges-
tos das crianas para que fiquem eviden-
tes as equivalncias de necessidades,
Enquanto os adultos
que encontrvamos
pelo caminho
insistiam em nos
dizer que as crianas
no brincam mais,
elas, por sua vez,
nos revelavam
um brincar vigoroso
e potente.
Altamira, PA
Colgio Viverde, Braganca Paulista, SP
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O Territrio do Brincar em um encontro com o educador 21TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS20Esse processo de olhar, refletir e dialogar baseado naquilo que nos ensinavam as crianas fortaleceu
em todos ns aspectos que foram muito alm dos educacionais, e frutificou crenas que j habitavam
os recnditos de nossos desejos. Somos seres plenos de v ida e no podemos deixar que nos distraiam
disso. preciso estar no presente, no aqui e agora, para conseguir escutar a criana e, consequente-
mente, a ns mesmos.
Referncias BibliogrFIcasBACHELARD, Gaston. A potica do devaneio. So Paulo: Martins Fontes, 1988.
KAPLAN, Allan; DAVIDOFF, Sue. O ativismo delicado: uma abordagem radical para mudanas. Cidade do Cabo, frica
do Sul: Proteus Initiative, 2014. Disponvel em http://www.institutofonte.org.br/sites/default/files/O%20Ativis-
mo%20Delicado%20-%20Final%20PDF%20version%202014.pdf. Acesso em 04/05/2015.
LARROSA, Jorge; LOPES, Jos; S. M. TEIXEIRA, Ins A . C. Olhar a infncia. InA infncia vai ao cinema. Belo Horizonte:
Autntica, 2006.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visvel e o invisvel. So Paulo: Perspectiva, 2005.
Percebemos que nosso dilogo era pautado pelo olhar que temos das crianas. Assu-
mimos, ento, que a proposta era entender a criana universal, e no a regional. Como
nos prope Merleau-Ponty(2005), olhar a criana requer se guiar para alm e aqum
das teorias. Um tom potico e profundo precisava ser alcanado se quisssemos que a
intencionalidade dos gestos infantis invadisse cada um de ns. Afinal, um excesso de
infncia um germe de poema, como bem nos lembra Gaston Bachelard (1988, p. 95).
Ou, como revelou uma educadora do Colgio Oswald: O potico cria imagens que fazem
conexes com inmeras outras, e d sentido.
Isso nos exigia a liberdade de no buscar respostas, mas nos deixar levar pelas aes e pelas expresses
infantis, em uma atitude de aprendiz das crianas. Ou ainda melhor, aceitamos que:
a criana que educa o adulto a olhar as coisas pela primeira vez, sem os hbitos do olhar constitudo. Wim
Wenders diz de um olhar sem opinies, sem concluses, sem explicaes. De um olhar que simplesmente
olha. E isso, talvez, seja o que perdemos. como se tudo que vemos no fosse outra coisa seno o lugar so-
bre o qual projetamos nossa opinio, nosso saber e nosso poder, nossa arrogncia, nossas palavras e nossas
ideias, nossas concluses. como se fssemos capazes de olhares conclusivos, de imagens conclusivas.
como se nos desse a ver tudo coberto de explicaes. (Larrosa, Lopes, Teixeira, 2006, p. 11-29)
O processo de escuta estava claro para cada participante da parceria. A criana est sempre fa-
zendo os mesmos gestos, mas, quando a olhamos de uma forma diferente, o brincar ganha po-
tencialidade e credibilidade, afirmou uma educadora do Colgio Sidarta. Olhar de novo o que j
conhecido, o que est por perto, re-ver. E isso as crianas fazem diariamente, acrescentou uma
educadora do CEI Alana.
Entre tantas descobertas, existiu um ponto primordial: As reflexes e os olhares foram para alm
do dia a dia nas escolas, e retornaram para si, para olhar o prprio eu, revelou uma educadora da
Escola Casa Amarela.
Quando conseguimos atingir o encontro conosco, a partir do que nos apresentaram as crianas, as
amarras institucionais foram questionadas e cada educador sentiu reverberar em si sua prpria voz.
J no eram mais as crianas que nos regavam de foras para seguir, mas sim a voz interna e singular
dos educadores, alimentados pelo brincar das crianas. As descobertas acontecem de dentro para
fora, quando j esto semeadas, acordadas. O olhar autnomo a conquista de si mesmo, declarou
uma educadora da Escola Viverde.
O potico cria imagens
que fazem conexes
com inmeras outras,
e d sentido.
Parceiros do projeto
Araua, MG
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Filmando Crianas
David Reeks
Em 2001, eu era jovem, apaixonado e talvez confiante demais quando fui convidado porRenata Meirelles, minha namorada na poca, para conhecer as entranhas da Amazniae a infncia que brota l uma aventura que no consegui recusar, apesar das minhas
irrisrias qualificaes. Foi por meio desse convite que iniciei minha aventura com o vdeo.
Nessa viagem, meu papel seria o de registrar as crianas que encontrssemos pelo cami-
nho. No demorou para que eu sentisse o peso da responsabilidade de tal empreitada.
Pensei: No sei filmar e nunca lidei com crianas.
Renata me tranquilizava, dizendo que tudo ia dar certo. Mesmo assim, eu passei a pesqui-
sar o mximo que pude. Na poca, informaes sobre tcnicas de filmagem e pedagogia
do brincar ainda eram mais fceis de encontrar em livros do que na internet. Em um belo
dia, depois de muitas semanas de pginas viradas, cheguei a um texto intitulado DirigindoCrianas. D para imaginar meu alvio?
Na primeira pgina havia a foto de um microfone direcional aqueles compridos com um
tigre de pelcia abraando-o. O leitor podia inferir que o uso do tigre era um truque para
quebrar o gelo diante de qualquer criana, e o resto seria fcil. Pronto, depois de semanas
pesquisando exaustivamente como filmar crianas e lidar com elas, essa foi a primeira pista que encontrei
de como fazer as duas coisas juntas, o que me levou seguinte concluso: filmar e lidar com crianas
algo que no se aprende em livros.
Imagine que voc
nunca tenha parado
para pensar em como
filmar crianas. Ou pior,
talvez voc nunca tenha
pego em uma cmera
que filma, mesmo a
de um celular, com a
inteno de criar um
registro para alm de
uma memria familiar.
Bem, voc estariaexatamente no lugar
em que eu estava
14 anos atrs.
Acupe, BA
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Filmando Crianas 25TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS24dramento perdem em dobro: perdem a chance de estar inteiramente juntos no presente e, j que tal
presena foi abandonada, perdem a chance da lembrana. Se temos o cuidado de registrar, temos de
desenvolver o cuidado de organizar e de recontar. Seno, estamos apenas nos escondendo ou nos
ausentando do presente.
Essa questo do ser ausente no era to clara no incio do projeto Bira Brincadeiras Infantis da
Regio Amaznica, em 2001. s vezes, eu sentia culpa por estar apontando a cmera para algum. A
presena da cmera criava, ao meu ver, um desequilbrio que me incomodava demais, como se eu es-
tivesse invadindo a situao por ter introduzido esse elemento artificial. No podemos negar o poder
que se exerce quando se opta por filmar qualquer coisa, especialmente pessoas.
Ecoavam em mim lies de histria de quando eu estava na 7 srie: soube que existiam vrias naes
indgenas nos Estados Unidos que no se deixavam fotografar porque temiam ter suas almas roubadas.
Essa lembrana dialogava com a sensao que me invadia diante das pessoas que eu captava eu
queria, nem que fosse um pouco, registrar a alma daqueles que estavam sendo filmados. No houve
dvidas de meu desejo de registrar o que h de mais vivo e interessante nas pessoas, e essa culpa
comeou a me atrapalhar.
Consegui compartilhar minha angstia com
outro documentarista que conheci no meio
da viagem, em Santarm, no Par. Nosso en-
contro foi rpido, mas mudou meu jeito de
conviver com a cmera em campo. Segundo
ele, aquele que filma deve sentir gratido pela
permisso de captar a imagem de algum. E a
pessoa que est sendo filmada deve se sentir
valorizada pela escolha de ser o foco do fo-tgrafo. Ao ouvir isso pela primeira vez, pen-
sei que era apenas um truque mental, e nada
mudaria. Mas a angstia j atrapalhava o su-
ficiente minha vontade de filmar portanto,
os registros do projeto. Aceitei essa mudana
de postura internamente. Criei uma espcie
de mantra: Olho porque admiro. Quero te ver
me oferecer o que tem de melhor. Claro que
Peguei a cmera e, com Renata ao m eu lado, comecei a filmar crian-
as antes da nossa partida para a Amaznia. Aqui fica minha primeira
dica: nada, nada mesmo, mais til do que tentar e errar. E espero
que o restante deste relato, de uma experincia de 14 anos filmando
crianas, seja um pouco mais til do que um tigre de pelcia.
Uma dica que aprendi de forma dura foi a questo de rever o material
de filmagem.Quem tem milhares de fotos no computador e nunca as
viu pe um dedo aqui! Pois bem, na Amaznia, em 2001, a cmera
que eu usava tinha fitas que gravavam durante uma hora. No Arqui-
plago do Bailique, no Amap, usamos trs fitas na primeira semana
da viagem e comeamos a assisti-las dentro da prpria cmera.
Ns nos emocionamos com es ses primeiros registros; eram a concre-
tizao de algo que havamos sonhado por tanto tempo! Mas o prazer
durou pouco: as imagens s quais assistimos tinham artefatos digitais
e erros bem feios apareciam diante de nossos olhos. Descobrimos que
nossa cmera estava danificando as fitas quando eram rebobinadas
para ser assistidas. Ento, passamos o restante dos seis meses de
viagem sem poder rever o material produzido 90 horas colhidas em
cinco estados. Quando fomos edit-lo, percebemos diversos erros re-
correntes que poderiam ter sido evitados se houvesse a chance de
assistir s filmagens, como a insistncia em enquadramentos chatos, a
falta de cenas de contexto, a interrupo repetida da ao das crianas
e ajustes desnecessrios para cenas que j estavam boas.
Bem, hoje em dia no precisamos mais nos preocupar com fitas da-nificadas, e a possibilidade de assistir ao que registramos imediata. O importante dedicar tempo
para contemplar o que fizemos e perceber o que nos agrada, o que bonito, o que teramos orgulho
de mostrar para algum e depois... tentar recriar esses aspectos positivos em futuras filmagens.
Pense em quanto tempo usamos, filmando e tirando fotos, nesta poca to digital. Podemos consi-
derar que, quando algum assume essa tarefa, se ausenta, no mnimo um pouquinho, do presente
tem de focar em algo e se distrair do resto. Se no voltar para ver o que fez, para organizar as imagens
e recriar uma narrativa do que estava sendo visto, tanto quem filma quanto seu sujeito de enqua-
Alto de Santa Maria, ES
So Gonalo do Rio das Pedras, MG
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Filmando Crianas 27TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS26
humana ou natural, o que mais me preocupa ser capaz de registr-la de maneira que
possibilite recriar aquele momento para quem no estava l. Brincadeira boa es sa. E no
na brincadeira que as pessoas se sentem inteiras?
Nesse desafio, nessa brincadeira, eu sou um eterno aprendiz, sempre me alimentando de
novidades. E transmito, para quem filmo, meu respeito pela sabedoria que a pessoa vai me
oferecer e minha humildade diante da cena. Eu no sei qual o melhor jeito de filmar,
at chegar o momento de ape rtar a tecla Rec. E mesm o assim preciso estar confortvel o
suficiente para mudar minhas estratgias.
No entanto, quando estamos tratando de crianas, estamos falando de seres que muitas
vezes no se expressam pela palavra. Conseguimos ver uma imensa quantidade de verdade
em uma mo, um dedo, um olhar, uma postura; pois so poucos os gestos infantis que no
expressam uma inteno verdadeira, que so jogados ao lu. E como deix-las espont-neas diante de uma cmera a fim de que esses ge stos floresam? Com um tigre de pelcia?
Creio que importante reforar que tudo se inicia com vnculos afetivos. Na grande maioria das cenas
filmadas pelo Territrio do Brincar, eu e Renata j conhecamos as crianas, j brincvamos com elas
sem cmeras e j havamos estabelecido respeito mtuo. s vezes, esse respeito se constri em segun-
dos, com um sorriso ou com um brilho nos olhos. Independentemente de como criamos v nculos, o que
a maioria das crianas filmadas pelo nosso projeto viu em mim no foi apenas um operador de cmera,
mas, sim, um cara com sotaque, que sabe brincar e que, em determinados momentos, tambm filma.
Nesse desafio,
nessa brincadeira,
eu sou um eterno
aprendiz, sempre
me alimentando
de novidades. E
transmito, para quem
filmo, meu respeito
pela sabedoria que a
pessoa vai me oferecer
e minha humildade
diante da cena.
eu no falava essas palavras, mas era isso que eu precisava sentir. Alis, sinto isso at hoje, quando
aponto a cmera para algum. Em alguns casos, at j verbalizei essa ideia.
O ato de filmar uma relao cujas regras so criadas por ambas as partes. Se o operador de uma c-
mera est desconfortvel atrs da lente, o sujeito do enquadramento pode refletir isso diante dela. Se o
fotgrafo est sentindo culpa por filmar, no promover boas sensaes em quem est sendo filmado.
Se o operador de cmera presencia uma cena e tem vergonha de film-la, a cena nunca ser registrada.
E, se o fotgrafo no reconhece o poder que a cmera traz para a relao, ele pode passar a abusar
dela, mesmo que inconscientemente. Pedir pessoa filmada para fingir que a cmera no est l ou
filmar sem permisso um equvoco, a negao do desequilbrio que de fato existe.
No mundo da captao documental, o que mais queremos que nossos sujeitos se sintam, e at ajam,
como se a cmera no estives se presente. Queremos o espontneo, a verdade, pois so com eles,
limpos de rudos externos, que os espectadores se identificam. E, quando um espectador se identifica,
cria um vnculo afetivo com aquilo que est vendo. Esse vnculo faz o espectador pensar em si, que
justamente o ponto pelo qual o registro ganha fora.
Voltando ao mantra do respeito se o operador
de cmera se sente honrado em poder filmar quem
quer que seja, isso transmitido para a pessoa. Ao
invs de criar uma relao txica, cria-se uma rela-
o de respeito, de maravilhamento, de esperana.
Nesse sentido, a cmera se torna uma ferramenta
fundamental para registrar o encontro algo inte-
gral para essa relao.
Com esse respeito e o acmulo de centenas dehoras de material, ao longo dos anos, cheguei
concluso que filmar a parte do processo de cria-
o de um documentrio que mais me agrada. Eu
me sinto inteiro. Brinco com a cmera, com suas
possibilidades de enquadramento, de movimento
e de ngulo; mas tambm brinco com as pessoas
que filmo, com as situaes que se apresentam
diante de mim. Como escolhi lidar com a beleza,Alto de Santa Maria, ES
Pancas, ES
2
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TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS28
Territrio sem fronteirasAs imagens do Territrio do Brincar
como janela de experincia
Fernanda Heinz Figueiredo
Ouso do audiovisual na educao e nas prticas pe-daggicas no propriamente uma novidade. Masa expanso de sua produo e do acesso a essa lingua-
gem na sociedade traz consigo a necessidade de repen-
sar e encontrar outros modos de registro, compreenso e
transmisso de contedos que esto cada dia mais dispo-
nveis a todos.
Por um lado, nas concepes mais formais de educao,
vemos o cinema e o audiovisual serem muito utilizados para
fins didticos e informativos. O que se costuma buscar em
tais processos uma aparente eficincia na transmisso deinformao e de contedo, a se r posteriormente mensura-
da pelas avaliaes de que o nosso sistema educacional se
faz valer. Esse enfoque dado pelo universo escolar acaba
se restringindo ao contedo das histrias, dando menos
nfase a outros aspectos que compem a experincia e a
beleza do cinema, como a esttica, a fotografia, a msica,
a estrutura narrativa e a estratgia da abordagem.
Entre dunas de areias brancas, sopram
mar e vento. Entramos em um casebre
rstico, simples, aberto, de cho de
cimento queimado. Ouvimos o som
do vento, o som de isopor sendo
serrado. Aos poucos, identificamos
um burburinho de crianas. Vemos
os cabelos balanarem, os corpos
vigorosamente apoiados no cho.
As mos serram, esculpem, encaixam,
costuram, mostram aprendizes e
mestres. A respirao calma, aconcentrao e a destreza artes so
evidentes. O corpo est entregue.
So crianas do Cear que, nascidas
barqueiras, realizam de forma potica
um baile de criao.
Cenas do Territrio do Brincarem
Tatajuba CE
Altamira, PA
3130
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7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas
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Territrio sem fronteiras 31TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS30Mesmo conhecendo o trabalho da dupla h algum
tempo, foi apaixonante observar, por meio do mate-
rial gravado, os gestos, as falas e as construes das
crianas, que nos mostram o quanto o universo da
cultura da infncia continua vivo.
A esttica, a beleza e as crianas retratadas no so
o estopim da paixo por essas imagens. O que mais
cativa, do meu ponto de vista, sua verdade e sua
simplicidade. Pelas imagens do Territrio do Brincar
acessamos um mundo to fascinante quanto desco-nhecido: o imaginrio da criana.
Ao contrrio
Cada um sua maneira e em seu papel Renata, com seu olhar de educadora, brincante, pes-quisadora e me; David, com seu olhar estrangeiro, de uma habilidade fotogrfica que s um serbrincante e musical como ele capaz de alcanar desenvolveu ao longo dos anos um modo prprio
de documentar as crianas, sua cultura e brincadeiras, estabelecendo uma relao direta e um dilogo
vivo por meio de sua linguagem ldica, simples e verdadeira.
Em outro projeto e documentrio da dupla, em parceria com a jornalista Gabriela Romeu, o Disque Qui-
lombola, isso fica evidente. A conversa e a troca com as crianas descendentes de quilombolas de con-
textos diversos se deu pela brincadeira do telefone de lata. Brincando com o telefone as crianas fizeram
perguntas, se abriram, falaram sobre seus modos de vida e crenas. Essa forma de conversa-entrevista
por meio de brincadeira funcionou de tal maneira que foi usada por Renata e David no percurso do
Territrio do Brincar.
Diverte-me lembrar da fala de Renata, quando preparava uma pauta para a locuo da srie de mini-
documentrios do Territrio do Brincar. Indagada sobre como conseguir uma resposta espontnea e
verdadeira das crianas, Renata disse com tranquilidade: Tem que perguntar ao contrrio. Sempre que
penso nessa afirmao, acabo na mesma pergunta: como assim, ao contrrio? Seria o oposto do que
normalmente faz o adulto, que muitas vezes confunde as crianas? Penso em minha filha de 9 anos
tentando decifrar nossa inteno em meio a tanta ironia: Vocs esto falando ao contrrio?.
A valorizao da linguagem audiovisual como potencial de experincia na sua qualidade existencial
(Larrosa, 2002, p. 27) refreando os anseios de definir e medi r o que aprendemos tem a capacidade
de ampliar nossos horizontes, nossa liberdade para enxergar, fruir, nos emocionar e pensar sobre filmes
de acordo com a nossa cultura, desejos e valores. A beleza da li nguagem audiovisual, assim como a de
outras linguagens artsticas, est justamente em permitir uma viagem individual complexa e muitas
vezes misteriosa, que pode, ou no, ser compartilhada com os outros.
Durante o percurso do projeto Territrio do Brincar, um dilogo potico, e ao mesmo tempo direto, inten-
so e muitas vezes penoso por que no? , foi estabelecido com educadores e escolas, aproximando
todos, por meio da experincia da linguagem audiovisual, da experincia da infncia vivida por crianas
de vrias partes do Brasil. Essa aproximao se fez verdadeira e to intensa, do meu ponto de vista, jus-
tamente porque o carter experiencial do processo de pesquisa de campo e do registro em si foi sendocompartilhado e vivenciado por seus idealizadores e coordenadores: Renata Meirelles e David Reeks.
Como documentarista, me e eterna criana, me interessa particularmente o processo construdo pelo
casal a partir de um resgate e de uma apropriao real das brincadeiras, do imaginrio infantil e das
linguagens expressivas da criana, sem as quais no nos sentiramos to prximos delas.
Tive o privilgio de me debruar sobre parte do material produzido nessa profunda jornada ao encontro
da criana brasileira quando fui convidada por eles para editar uma srie do Territrio do Brincar, para
crianas, com 26 miniepisdios.
Crrego da Velha de Baixo, MGAltamira, PA
33 32
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Territrio sem fronteiras 33TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS32
Brincadeira viva
Oprojeto Territrio do Brincar contribuiutambm para uma importante consta-tao: a de que crianas, por todo o Brasil,
inclusive em grandes centros urbanos, conti-
nuam brincando e muito. possvel, assim,
refletir mais sobre nossas falas e parar de re-
petir o que quase virou um perigoso mantra:
que hoje a criana no brinca mais. O ser hu-
mano nasce, cresce, se conhece e aprende
brincando. As brincadeiras so a experincia
e a experimentao por excelncia!
Vivendo em um mundo extremamente polu-
do de informao e de excessos, so raros
os momentos de vivncia da experincia. Filsofos de outras pocas, como o alemo Walter Benjamin
(1987), nos alertaram sobre os problemas e a pobreza do excesso de informao e da falta de expe-
rincia. O espanhol Jorge Larrosa (2002 , p. 21) aprofundou, por meio de artigos e obras, a importncia
do saber pela experincia:
A experincia o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. No o que se passa, no o que
acontece ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porm, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece... a experincia cada vez mais rara. Em primeiro lugar, pelo excesso de informao. A informao
no experincia. E mais, a informao no deixa lugar para a experincia, ela o contrrio da experincia,
quase uma antiexperincia.
Larrosa tambm nos levou a aprofundar a relao entre cinema e experincia. O cinema, o bom cinema,
por suas caractersticas e construo, nos oferece justamente a ch ance de viver, de ultrapassar, de ser
tocado pela experincia. Por se relacionar com outras linguagens artsticas, como literatura, pintura,
fotografia, msica e artes cnicas, a stima arte uma forma de expresso de altssimo impacto.
O registro de imagens por uma cmera e as narrativas cinematogrficas podem provocar construo,
desconstruo, ruptura, mudana de paradigmas. comum assistir a um filme que nos leva no apenas
Criana e criao
Essa forma direta e verdadeira de abordar a criana me levou a um outro lugar, a um outrosentir e estar. Eu me senti prxima dos pequenos caadores, artesos, cozinheiros. E tivea oportunidade de me reconectar minha infncia, de perceber minhas filhas e suas criaes
de outra forma, com mais respeito e admirao.
Hoje, me sinto capaz de enxergar melhor, com olhos de ver, sentir, dar valor e deixar ser as
crianas caadoras, as cozinheiras, as construtoras de brinquedos, as costureiras, as pintoras
que esto em minha casa e ao meu redor.
A profundidade e o respeito da cmera de David Reeks nos permitem vivenciar a experincia da in-
fncia em uma outra dimenso. Nessas imagens e nesses sons percebemos e reconhecemos meninos
e meninas realizando a plenitude e a beleza do imaginrio da infncia. Dotados das habilidades que
uma boa dose de liberdade e brincar pleno lhes deu, impressiona a completa sinergia com a natureza
e a apropriao de instrumentos considerados adultos. Observamos o quase indizvel, o poder de
criao da criana.
Diante disso, as angstias, o de-
saparecimento da infncia, o con-
sumismo, a erotizao precoce e
o mundo virtual e eletrnico tor-
nam-se insignificantes. O que
mostrado pela sua poesia e pelas
sensaes desencadeadas nos
leva a uma outra forma de olhar a
criana, de perceber a cultura e arealidade da infncia em contex-
tos e culturas distantes. E essa
vivncia da experincia da infn-
cia por meio da experincia do
cinema desencadeia uma recone-
xo com a nossa identidade , com
a diversidade do povo brasileiro.
E essa vivncia
da experincia da
infncia por meio
da experincia do
cinema desencadeia
uma reconexo com
a nossa identidade,
com a diversidade
do povo brasileiro.
Altamira, PA
Abadia, MG
Territrio sem fronteiras 35TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS34
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Territrio sem fronteiras 35TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS34
Assistir a um bom filme e observar essa movimentao fundamental para alimentar nossa utopia e
cuidar de ns, educadores, pais, crianas, artistas pessoas que assumem responsabilidade pela in-
fncia, pelo desenvolvimento humano e pelo mundo.
Gosto muito da frase da filsofa poltica Hannah Arendt (2000, p. 247): A educao o ponto em que
decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e, com tal gesto,
salv-lo da runa que seria inevi tvel no fosse a renovao e a vi nda dos novos e dos jovens. Poucos
lugares como o cinema s o to inspiradores e propcios para viver o amor pelo outro.
Vamos agora aproveitar tal riqueza cinematogrfica, antropolgica, potica, educacional e afetiva que
a equipe que realizou essa longa e prazerosa expedio est nos oferecendo!
Referncias bibliogrFIcasARENDT, Hannah. A crise na educao. In Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2000.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e tcnica, arte e poltica. Ensaios sobre literatura e histria da
cultura. So Paulo: Brasiliense, 1987.
LARROSA BONDA, Jorge. Notas sobre a experincia e o saber de experincia. Revista Brasileira de Educao, Jan/
Fev/Mar/Abr 2002 N 19.
NICHOLS, Bill. Introduo ao Documentrio. Campinas: Papirus, 2005.
a refletir sobre o que vemos, mas a mudar nosso olhar e at nosso comportamento. O
poder da linguagem prpria do cinema vai muito alm da tcnica envolvida e da construo
da obra, vai muito alm de educar e influenciar.
As imagens e a construo narrativa do filme Territrio do Brincarnos inquietam e fascinam
tambm por sua essncia potica. Bill Nichols (2005, p. 138), um dos principais pensado-
res de estudos de cinema nos Estados Unidos, diz que esse tipo de documentrio potico
nos d uma possibilidade de conhecimento por meio do estado de nimo, do tom e da
relao de afeto. E essa uma ferramenta poderosa para a reflexo e formao.
Se por um lado somos bombardeados por uma enxurrada de contedos de todos osgneros supostamente qualificados para a TV como documentrios, reality shows e
pretensas sries de experincia, mas que na verdade no transmitem nada , o do-
cumentrio de Renata e David resgata e reconcilia o cinema documentrio com o bom cinema e
remonta s origens do cinema documental ligado pesquisa etnogrfica e ao fascnio das pesquisas
antropolgicas sobre povos e culturas.
Utopia e responsabilidade
Retomando o tema cinema e educao, eu vejo um momento particularmente feliz e crescente dasociedade se organizando na busca de novas formas de aprendizagem, de reflexo, de formao,que abrem mo do uso exclusi vo do nosso aparato cognitivo e vo ao encontro de formas artsticas e,
portanto, mais sensveis.
E o cinema agua o desejo, mobiliza os sonhos e amplifica as possibilidades em torno dessa outra
forma de aprendizagem e formao. So muitos os lanamentos de filmes, dentro e fora do circuito
tradicional, exibies nos mais variados espaos, formais e no formais, e at mostras, como a Ciranda
de Filmes1, que geram um movimento que cresce e que est sensibilizando, articulando e mobilizando
pessoas de diferentes realidades e aptides para as causas da infncia e da educao.
1 Primeira mostra de filmes do Brasil com foco em infncia e educao. Foi coordenado por Patrcia Dures e AnaClaudia Leite.
Fazer do gigantesco
aparelho tcnico
do nosso tempo o
objeto das inervaes
humanas essa
a tarefa histrica,
cuja realizao d
ao cinema o seu
verdadeiro sentido.
Walter Benjamin
Jaguaro, RS
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7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas
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O olhar antropolgico por dentro da infnciaAdentrando nas casinhas das crianas
Adriana Friedmann
Olhares atentos pela fresta da janela da vida das crianas
Encantamento, alegria, surpresa, cumplicidade, compaixo,
impulso de estar junto, curiosidade. Essas so algumas das
emoes que possvel experimentar quando observamos
crianas nos seus habitats. Mas importante saber que,
quando chegamos perto, comeamos a brincar, danar, cantar,
pintar ou conversar com elas, algo mudou naquele mundinho
que era s delas antes de a gente aparecer.
Olhar antropolgico, olhar pesquisador, olhar curioso, olhar inquieto. O lhar do olho, do corpo, docorao e da cabea. E tantas emoes e pensamentos abrindo espao dentro do nosso ser.Para incio de conversa, preciso entender o que antropologia: uma cincia social que estuda os seres
humanos e, com base em um olhar sensvel, orgnico, microscpico, observa seus comportamentos,
Entre Rios, MA
O olhar antropolgico por dentro da infncia 39TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS38
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7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas
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O olhar an ropolgico por den ro da infncia 39ERRI RIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS38Reconhecer essas aptides e potencializ-las um dos grandes desafios dos educadores. Isto respei-
tar a singularidade de cada criana.
importante compreender que as crianas chegam ao mundo com uma herana biolgica; possuem
identidade, temperamento e essncia nicos e diversos; e crescem em contextos familiares e comuni-
trios multiculturais, que influenciam seu desenvolvimento como seres humanos.
Compreender a complexidade do ser humano e saber que suas razes e as bases de sua formao
acontecem j desde o ventre materno e se prolongam de forma muito intensa e fundante nos primei-
ros anos de vida fundamental para o desafio de educadores, professores e instituies que acolhem
crianas pequenas.
A delicadeza de olhar para as crianas
Quando se fala em olhar, observar, escutar crianas, adentramos um uni-verso muito delicado, muito ntimo, pelo qual, antes de mais nada, pre-cisamos ter grande respeito e reverncia. O universo das crianas sagrado.
E, nesse sentido, so necessrias muita delicadeza e a humildade de ver-
dadeiramente nos curvarmos e pedir licena para adentrar os espaos
sagrados infantis.
Para chegar a esse movimento, h um longo percurso essencial na trajet-
ria dos educadores: perceber a importncia de criar tempos e espaos de
autonomia e liberdade de expresso, de escolha e movimento para as crian-
as. Professores e educadores, temos sido formados para propor, intervir,
sugerir, ensinar.
A abordagem que o olhar e a postura antropolgicos propem tomar dis-
tncia, observar, silenciar e respeitar o outro exige um trabalho anterior
do educador consigo mesmo: compreender que nem sempre, nem de forma
automtica, suas intervenes ou propostas constituem garantia de que a
criana ir se transformar, aprender alguma coisa ou se desenvolver.
Uma confisso: sempre me
inquietou, desde minha
adolescncia, poca na qual
comecei a trabalhar com
crianas, o quanto elas no eram
compreendidas nem respeitadas
pelos adultos. O passado, as
vivncias e as memrias familiares
que cada um tem so muito
reveladores do adulto em que
nos transformamos. O que nos
inquieta ou nos mobiliza hoje
com relao s crianas tem
total conexo com nossa prpria
infncia. Por isso, talvez, me
tornei uma pesquisadora do
universo infantil... Com toda
delicadeza e respeito que a credito
que as crianas merecem.
gestos, expresses, culturas, rituais,
linguagens e temperamentos, mani-
festaes que acontecem no cotidia-
no dos diversos grupos.
No mbito da antropologia surgiu,
na dcada de 1980, um interesse
em olhar para os grupos infantis. Os
pensadores e as pesquisas aponta-
ram que as crianas tm linguagens
e culturas prprias, so atores so-ciais e tm voz, necessidades e inte-
resses diversos, que variam confor-
me o contexto no qual elas crescem
e se desenvolvem.
A grande diferena entre os gru-
pos infantis e outros grupos que
as crianas esto em permanente
desenvolvimento, motivo pelo qual
sua observao, sua escuta e seu
conhecimento tornam-se muito mais complexos e desafiadores. So tarefas desafiadoras tambm
porque quem observa, geralmente o adulto, j foi criana um dia: ao mesmo tempo em que observar
as crianas lhe causa estranhamento, causa ainda, em determinadas situaes, familiaridade, um
dj vu de situaes provavelmente vivenciadas na prpria infncia.
Alm disso, deparamos com o fato de que crianas pequenas, como os bebs, no falam e se mani-festam por meio de outras linguagens expressivas, a saber: brincadeira, expresso musical, artstica,
corporal, gestual, entre outras. Outras expresses do estado da arte das crianas se m anifestam em
forma de doenas, atitudes, reaes, temperamentos, todas elas falas absolutamente reveladoras e
simblicas do universo infantil.
Essas expresses perduram no decorrer de toda a vida do ser humano, mesmo depois da aquisio da
linguagem verbal falada e escrita. Cada indivduo tem maior facilidade de expresso por meio de uma
ou de outra linguagem, mas, infelizmente, elas vo sendo deixadas de lado no decorrer da e scolarizao.
Alto de Santa Maria, ES
O olhar antropolgico por dentro da infncia 41TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS40
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4140Olhar pode evocar tambm a ideia de cuidar. Quem olha no necessariamente v.
E quem observa est se colocando a servio de (ob-servar), atitude de real mer-
gulho e respeito, tambm a partir das percepes do observador. E do silncio.
Assim, o que se v o que se ! Diferentes adultos podem observar a mesma
criana ou o mesmo grupo infantil e, certamente, os olhares e as percepes sero
diferentes: cada um v desde o seu interior e enxerga aquilo que faz parte do seu
repertrio emocional, das memrias afetivas da sua prpria infncia e dos seus
valores e parmetros. Por isso, olhar crianas de forma antropolgica implica uma
profunda tica e respeito por elas e uma autntica conexo com nosso ser e com
as emoes que vm tona durante as observaes.
Assumir um olhar antropolgico implica, de forma constante, se colocar na pele do outro, acolher, ler
o mundo das crianas desde o lugar delas, em dilogo com as nossas percepes adultas e com a nossa
criana interior. No tarefa fcil, pois significa um permanente e profundo processo de autoconhecimen-
to, uma conexo e presena, colocando as crianas nossa frente; implica silenciar nossos impulsos e
ouvir nossos insights. Trabalho para uma vida!
de casa!
Quando algum quer nos fazer uma visita ou passar pela nossa casa, costumaavisar, se anunciar e pedir licena para entrar. Dessa mesma forma respei-tosa, ns devemos chegar s casinhas na vida das crianas , o lugar mais
sagrado, secreto e ntimo que elas tm; lugar onde existem rituais, esconderijos,
tesouros; espaos e tempos que guardam mundos dentro de mundos, fantasias,prolas e muitas emoes.
Quando adentramos o mundo de um outro, interferimos: mesmo com a mai or de-
licadeza que possamos ter nesse noss o movimento, interrompemos, modificamos
de alguma forma a cena e o processo do outro. No somente o estrangeiro
que tenta se familiarizar com sua c hegada a um territrio estranho, mas tambm
as crianas visitadas acabam mudando o que faziam para receber o visitante.
E quando voc achar que
encontrou a resposta ou a
explicao... a, sim, duvide!
Certamente h muito mais
a descobrir por trs e
por baixo!
Chegamos de surpresa
ou fazendo barulho?
Pregamos um susto nas
crianas ou nos anunciamos?
Atravessamos suasbrincadeiras ou as
observamos de longe?
Brincamos junto e nos
tornamos crianas por
alguns momentos?
Podemos? Devemos?
A postura antropolgica muito mais sugere a necessidade de nos abrirmos para aprender com os ou-
tros e dos outros das crianas: apreender e sentir suas realidades, seus momentos, seus valores,
seus jeitos de ser e viver suas infncias naquelas oportunidades em que, de perto, temos o privilgio
de acompanhar esses retalhos de sua vida.
H um movimento discursivo, nos dias atuais, de escuta e participao infantil que virou moda e, por
isso mesmo, muito perigoso. importante compreender que ouvir as crianas no significa fazer
suas vontades essa uma forma bastante simplista de compreender o que o olhar antropolgico.
Por outro lado, devemos distinguir o que olhar, ver, observar
e o significado de participao infantil: crianas entendidas
como atores sociais e protagonistas de seus cotidianos.
Comecemos nos debruando sobre essa ltima ideia: as crian-
as serem protagonistas ou participarem tem muito mais a ver
com um movimento espontneo que parte delas no que se
refere a opinar, expressar o que pensam, vivem e sentem, do
que com o fato de o adulto induzi-las, com base em pergun-
tas ou em provocaes, participao e ao protagonismo. A
participao infantil acontece espontaneamente em algumas
culturas menos patriarcais, nas quais as crianas j crescem
mais autnomas e com maior independncia em relao aos
adultos. Historicamente, no o caso dos grupos infantis em
grande parte dos contextos culturais no Brasil.
Dar voz s crianas significa oportunizar tempos e espaos nos
quais elas possam falar, dizer, expressar-se de forma espon-
tnea, por meio de suas li nguagens verbais e no verbais, seussentimentos, percepes, emoes, momentos, pensamentos.
E o que significa ouvir, escutar as crianas? Podemos ouvir e
no escutar. Escutar tem a ver com estar presente, conter a
tendncia que ns, adultos, temos de querer entender; e ter a
coragem de entrar por inteiro no universo das crianas a partir
das nossas impresses, sensaes e percepes.
Altamira, PA
O olhar antropolgico por dentro da infncia 43TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS42
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O fato de as crianas se expressarem por meio de mltiplas linguagens constitui desafio maior para
aqueles que querem tornar seus olhares sensvei s e apurados para com o mundo das di versas infncias
e crianas; para aqueles que querem conhecer, reconhecer, experimentar e tentar ler essas diversas
linguagens expressivas: musicais, corporais, ldicas, artsticas, gestuais, verbais.
Tesouros infantis, dirios antropolgicos
H quem filme, fotografe, grave, escreva, esboce, pinte, desenhe, coloque
msica e movimento ou expresse poeticamente o que percebe, sente e vquando observa crianas em seus habitats. Qualquer meio vlido, desde que
registremos o que vemos, ouvimos e sentimos.
As relaes que estabelecemos como observadores-antroplogos no esto
isentas de conflitos, j que nem sempre nossa presena e nosso olhar so bem-
-vindos: as crianas das diversas culturas podem sentir nossos olhares como um
controle, o que talvez iniba sua espontaneidade! H, aqui, uma relao assim-
trica estabelecida, porque, por mais que haja a inteno de respeitar e pedir
licena para entrar no mundo das crianas, ns, adultos, no pertencemos a
ele: somos estrangeiros, diferentes.
Para que essa aproximao seja real e o adulto observador no seja nem fan-
tasma nem heri, um equilbrio necessrio, por meio do qual tanto as
crianas observadas quanto os adultos observadores se aproximem, em um
dilogo mais humano e verdadeiro. O fato de o adulto j ter sido criana um
dia pode ser uma ponte possvel para a conversa.E quando samos do campo da observao? Quando deixamos nossos escritos
e nossas percepes descansando, e voltamos para eles mais tarde? O que acontece? Por que essa
releitura importante? aqui que se torna possvel entender o que era das crianas e o que era da
nossa criana interior, que fica tocada quando em silencioso contato com outras. Podemos entender o
que desperta em ns determinada criana, suas reaes, suas expresses e vivncias. Mas precisamos
discriminar o que a realidade dela e o que se mistura com as nossas experincias internas, passadas
e/ou presentes: o que projetamos nas crianas observadas e o que elas projetam em ns.
Religio significa religao com
o ser mais profundo. As crianas
so profundamente religiosas,
religadas, independentementeda religio externa oficial na
qual foram orientadas por sua
famlia ou comunidade. Ns,
adultos, nos desconectamos
dessa profunda conexo
interna. Para nos religarmos a
ela, precisamos nos reconectar
antes com o nosso ser
profundo, com a nossa essncia.
com as crianas e junto delas
que temos essa oportunidade.
Entrar no templo delas
se elas permitirem a
possibilidade do resgate da
nossa religio (re-ligao),
compreendendo a sacralidade
da religiosidade delas.
Como antroplogo, eu s sei que nada sei...
Ser ou tornar-se antroplogo, pesquisador, observador dos universos infan-tis no depende unicamente de ter estudado antropologia. necessrio,sim, compreender os conceitos fundantes desta cincia so cial a fim de assimilar
que o ponto de partida dessas viagens acontece desde um outro territrio:
a paisagem do outro. Entender que a postura totalmente diferente da de um
educador-professor-ensinante.
O antroplogo no chega para ensinar algo, mas para aprender; no aparece
para intervir, mas para silenciar, respeitar e acolher. O olhar antropolgicorelaciona-se muito mais com tomar distncia e conhecer os diversos univer-
sos infantis (tantos quanto os grupos, as culturas, os contextos e as prprias
crianas); e tambm se relaciona com evocar o tempo de infncia do pesqui-
sador adulto. Relaciona-se muito mais com o conhecer as diversidades das
realidades infantis e a complexidade das profundezas dos seus mundos inte-
riores do que com interferir ou querer corrigir ou julgar. O olhar antropolgico
relaciona-se muito mais com o observador ficar em contato com suas prprias emoes, percepes
e diversas vozes internas do que
com interpretar e querer nomear
ou classificar aquilo que as crian-
as expressam.
Assim, para poder observar e escu-
tar as crianas, necessrio que o
observador-pesquisador-educador
se dispa de pr-conceitos e de verda-des absolutas e se abra para o dife-
rente, para tudo aquilo que lhe causa
estranheza, para que aprenda novas
linguagens e adentre outras culturas.
Ou para corroborar e evocar aquilo
que lhe to familiar, porque tam-
bm o vivenciou em sua infncia...
O antroplogo como um
viajante que chega a um pas
estrangeiro: no conhece a lngua,
os costumes, os segredos, os
cdigos ou os lugares sagrados
daquela populao.
O antroplogo um estranho que
precisa aprender a se comunicar
com os habitantes daquele grupo.
O olhar antropolgico para as
casinhas das crianas as vidasdas crianas exige abertura
para o novo e para aprender sua
lngua, seu dialeto e, talvez, se
elas permitirem, partilhar dos
seus segredos e esconderijos.
Alto de Santa Maria, ES
O olhar antropolgico por dentro da infncia 45TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS44
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Paisagens infantis
A s viagens antropolgicas aos mundos das crianas, percur-sos por diversas trilhas e o contato com inmeras paisagensinfantis comeam pela possibilidade de visitar seus espaos e tem-
pos de brincadeiras, de esconderijos, de solides, de espontanei-
dades; seus recreios, seus cadernos, suas produes. Visitar suas
casinhas, acompanhar seus percursos, descobrir suas preferncias,
se maravilhar com suas descobertas; se sensibili zar com suas dores,
se encantar com seus saberes. Rolar com elas, brincar junto, pintar
junto. Viver intervalos de suas vidas com elas e reviver os da nossa
infncia, em um voltar a ser criana por alguns instantes.
Para que essas brechas sejam p ossveis, como professores-educado-
res no podemos temer abrir as janelas da autonomia, da liberdade
de tempos sem relgio e de espaos cujas paredes sejam constru-
das pelos tijolos da fantasia e da imaginao infantis, a fim de que
as crianas vivam plena e significativamente suas infncias.
Qualquer ser humano sensvel
ao outro pode tornar-se
antroplogo. Mas para os
educadores talvez seja um
desafio maior, pois necessrio
mudar nosso ponto de vista
e descer do nosso pedestal
de ensinantes para o de
aprendentes. Mudar a
convico de que temos
o poder, ou os caminhospara ensinar ou interferir no
processo de desenvolvimento
das crianas, para a certeza de
que fundamental conhec-las
profundamente a fim de adequar
propostas, espaos e atividades.
Mas que fique claro:
no se trata de abrir ou de criar esse tempo-espao
na vida das crianas para que possamos observ-las.
Trata-se de oferecer possibilidades de elas viverem
de forma inteira suas infncias para que a essncia
particular de cada uma possa se manifestar, se
religar com suas profundezas, se reconhecer!
E, se elas se abrirem para nos acolher, a sim, ser
privilgio aprender das suas vidas!!!
So Paulo, SP
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O brincar na comunidadeUma comunidade se transforma com a arte ldica
Ute Craemer
Fazendo uma pesquisa sobre a etimologia da palavra brincar, encontrei algo surpre-endente: ela nica, no derivada de nenhuma raiz. Achei isso significativo, pois obrincar algo sui generis, to essencial para os seres vivos que no necessita ser derivado
de nada. O brincar !
Ser que conseguimos imaginar uma criana sem brincar? Ser que conseguimos imagi-
nar uma casa, uma escola, uma comunidade, qualquer espao sem a alegria das crianas
brincando? Imaginar essa ausncia d at um arrepio na pele! Seria um lugar estril, seco,
de plstico, artificial e a criana e os adultos se tornariam seres com alma ressecada,
sem fantasia, sem possibilidade de se expressar. Resumindo: teramos um ser humano sem
expresso e, por conseguinte, um espao sem vida.
A criana a expresso mais pura e espontnea da fora vital, a fora divina da vida, da
criao. Criar juntar o mundo material, transformando-o por meio do mundo imaginativo
de nossa alma. Como e xpressa Schiller (1992): entre o impulso da forma e o impulso da vida, surge algo
maior o impulso ldico. Brota da fora de criao que reside em ns, como uma centelha divina. O
ser humano humano na medida em que ele cria de dentro para fora: cria pensamentos, sentimentos,
aes. E o incio dessas criaes o brincar. Impedir ou reduzir o brincar livre e espontneo significa
Ser que conseguimos
imaginar uma criana
sem brincar? Ser
que conseguimos
imaginar uma casa,
uma escola, uma
comunidade, qualquer
espao sem a
alegria das crianas
brincando? Imaginar
essa ausncia d at
um arrepio na pele!
Altamira, PA
O brincar na comunidade 49TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS48
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inventam brincadeiras e jogos. Uma comunidade se humaniza por meio dessa vida brincante
das crianas. E, mais ainda, se a ela juntamos outra fonte de criatividade: a arte! Msica, a
Santa Ceia, a Folia de Reis, a Festa da Lanterna levando luz escurido.
Uma comunidade se transforma com a arte ldica. Por qu? Porque um espao de moradia s
se torna uma comunidade no sentido de lcus de uma vida comunitria na medida em que
ele seja preenchido de vida de maneira condizente com o humano que existe no ser humano.
Uma favela, por exemplo, no deveria ser s um lugar de moradia (precria), um aglomerado
de casas com gente trabalhando fora, mas um lugar de vida humanizada. S quando l se
desenvolve a vida com a presena ativa de crianas, jovens e adultos , ela se torna verda-
deiramente humana, uma comunidade viva de seres humanos.
J imaginaram uma criana com um violino na mo saindo de um barraquinho e se encontran-
do com outra, tambm com um violino, e outra, com um violoncelo todas indo para uma
escola de msica no meio de uma favela? E quando algum se aproxima, j escuta os sons de uma
msica clssica ou de um reisado? Imaginemos como a arte pode mudar o cli ma de uma favela! De um
conjunto, de um condomnio...
Da mesma forma que o ser humano, uma comunidade tem um corpo fsico suas casas, seus cami-
nhos, vielas, escadarias. Tambm tem um corpo vital, criado aos poucos: a vida ali flui como o sangue
em nosso corpo, carregado de alimento. Uma comunidade torna-se um organismo vivo: com corpo
fsico, corpo vital e alma, com uma identidade. Esse processo acontece no decorrer de um longo tempo
graas aos esforos dos seres humanos. Um processo contnuo de transformao, com suas conquistas
e decepes como toda a vida...
Tudo isso tem seu incio com o nen brincando com suas prprias mos; as crianas brincando livre-
mente, sem muito material, sem muitos brinquedos, usando sua fantasia e transformando a si prpriase ao seu entorno. E o apogeu se vivencia na arte, nos mutires comunitrios, nas festas...
Referncias bibliogrFIcasSCHILLER, F.Cartas sobre a educao esttica da humanidade. So Paulo: EPU, 1992.
SAINT-EXUPERY, A. Terra dos homens. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1975.
Uma comunidade se
humaniza por meio
dessa vida brincante
das crianas. E,
mais ainda, se a ela
juntamos outra fonte
de criatividade: a arte!
Msica, a Santa Ceia,
a Folia de Reis, a Festa
da Lanterna levando
luz escurido.
reduzir o potencial de cada ser de se tornar
cada vez mais humano. Alm disso, o brin-
car mistura idades, sexos, povos, culturas
assim, ele se torna contemporneo. Por
isso, o brincar criativo faz parte dos direitos
humanos universais.
Precisa pouco para essa vontade intrnse-
ca da criana vir tona. Um pedacinho de
pau pode tornar-se um barco, um celular,
uma mamadeira. Juntado com alguns pre-gos, pode virar um banquinho para a casa
de boneca, pode virar TUDO! Alguns panos
se transformam em boneca, em esconderi-
jo, em palhao, em... O adulto tem apenas
a tarefa de organizar o espao criativo para
que a fantasia da criana possa ser nutrida.
Apesar da tentao do tablet, dos jogos
eletrnicos, do celular, das redes sociais, as crianas que bom! continuam brincando. Pode estar
mais difcil, talvez, achar um ambiente propcio para a brincadeira, mas essa necessidade intrnseca da
criana consegue resistir seduo hipnotizante dos meios eletrnicos. to fcil produzir um coelho
de Pscoa na tela to mais difcil cri-lo de feltro, de l ou numa pintura de autoria. Mas o que
acontece na alma da criana duradouro: a alegria de ter vencido um desafio. o obstculo que faz
nascer o ser humano, como disse Saint Exupry, em seu livro Terra dos homens.
A alegria de criar com as prprias mos se transmite na casa, na escola, na praa pblica, na comunida-
de, na favela. Esses espaos se t ransformam, desenrijessem-se, contrabalanam a tendncia quadrada,
endurecedora de uma comunidade, como um conjunto habitacional, um condomnio espaos criados
base do medo , praas pblicas que muitas vezes servem ao vcio.
No trabalho da favela Monte Azul1pudemos perceber como cada vez mais a dura vida das pessoas
aliviada pelos gritos de alegria das crianas quando correm, brincam, pulam na piscininha da mina,
1 Saiba mais em: www.monteazul.org.br. Acessado em 19/3/2015
Alto de Santa Maria, ES
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Culturas populares, brincar e conhecer-se
Soraia Chung Saura
Conhece-te a ti mesmo. Essa frase, base da filosofia socrtica1, esteve inscrita dizem que
em letras de ouro na via de entrada do Orculo de Delfos, um local frequentado, por muitas
geraes, para conhecer o presente e o futuro. Dedicado a Apolo, deus da luz, do sol, da verdade e
da profecia, o Conhece-te a ti me smo tornou-se inspirao para a construo da filosofia platnica,
sendo herana reflexiva at os dias de hoje2. Ele nos indicava um importante caminho: para conhecer a
verdade e o futuro, comece por voc mesmo.
Creio que o t rabalho de campo do projeto Territrio do Brincar, realizado com critrio e profundidade
nos locais onde esteve inserido 3, intenta mostrar, entre tantos repertrios passveis e possveis da in-
fncia, a busca dessa verdade e do autoconhecimento que as crianas realizam, capaz de transform-
-las em seu prprio Ser de Sujeito. Na verdade, todos ns buscamos isso de inmeras formas, em
jornada viva desde a infncia: conhecer-nos mais e melhor e, assim, encontrar nosso lugar no mundo.Professores ou crianas, procuramos decifrar nossos prprios mistrios e enigmas, nossas emoes e
1 Do filsofo grego Scrates, 479-399 a.C.2 Esse conhecimento notadamente atrelado ao pensamento e razo. Aqui, utilizamos a expresso para desig-nar um tipo de saber que no dissocia mente e corpo, mas integra aspectos do inteligvel e do sensvel.3 Considero o projeto Territrio do Brincar extremamente cuidadoso na coleta de materiais de campo. O processoenvolveu, a cada etapa, longos perodos de permanncia junto s famlias e s comunidades, estabelecendo vncu-los profundos e imensa cumplicidade com as crianas.
Acupe, BA
Culturas populares, brincar e conhecer-se 53TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS52
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a manuteno a recriao, a ressignificao e a transformao. Traduzindo, mantendo-se seus ele-
mentos intrnsecos, as expresses populares podem ser realizadas em qualquer lugar, ainda que com
variaes do formato de sua origem.
A tradio importante no para ser mantida, mas repetida, mesmo com variaes, como exerccio
de aprofundamento. Explico: nosso encontro com o mesmo de novo e de novo importante para
a elaborao de questes latentes. Ainda que uma festa se repita anualmente, ela nunca ser expe-
rienciada pelos participantes como a anterior. A festa pode ser a mesma, mas o mundo no mais o
mesmo, e as pessoas tambm no so mais as mesmas.
Nas sociedades ocidentais , as festas das culturas populares so, a cada ano, m ais valorizadas e reco-
nhecidas. Trazem diferentes perspectivas para o mundo contemporneo festejar a vida, integrando a
morte. Tudo, com poucos recursos, mas de maneira sublime, enfeitando o espao e colorindo o mundo.
Repetem-se anualmente para exercitarmos a temporalidade de maneira incorporada, e no externa
nossa existncia.
O ano cclico onde voltamos ao mesmo ponto mais velhos, mais sbios, tendo errado e acertado
nos faz experienciar um movimento de eterno retorno, a fim de atuarmos com substancialidade e
sentimentos provocados no contato com o outro, as maravilhas e os assombros de nossas
emoes, mente e corpo. Qui, desvendar onde nosso ser se revela em potncia e, assim,
devolv-la ao mundo.
Ao olharmos para nossa brasilidade, revela-se nossa humanidade: somos um povo rico e di-
verso, reconhecidamente alegre e festivo, a despeito dos dissabores. Festas e manifestaes
populares espalham-se lindamente por todo o territrio nacional, celebrando, sobretudo, o
fato de estarmos vivos em um mundo repleto de mistrios insolveis. Terrenos embandeira-
dos, fogueiras descomunais, barraquinhas de comidas elaboradas, cantorias que atravessam
noites, danas habilidosas, a viso de brilhos e luzes em noites enluaradas e estreladas. Reis,
rainhas, santos, bichos e monstros misturam-se animadamente em inumerveis terrenos.
Embora muito heterogneas, as culturas populares no s no Brasil como no mundo e
quaisquer que sejam apresentam um arcabouo imaginal comum, que facilmente identifi-
camos na estrutura de todas elas. Isso porque, indepe ndentemente do meio no qual estejam
inseridas ainda que dialoguem em profundidade com a realidade, com o ambiente e com a
cultura local , as manifestaes operam com temas comuns humanidade em geral.
So consideradas tradicionais por causa de ssas caractersticas atemporais. To antigas que no pode-
mos precis-las historicamente. Alm de se perderem na histria linear dos povos, no se localizam em
uma geografia definida. Esto em muitos lugares, sob muitas diferentes formas, praticadas em muitas
sociedades, ainda que com variaes de regras, roupagens, formas e estilos.
As pesquisas nos levam ao incio de uma humanidade que pensa e repensa suas relaes com a natu-
reza e sua simbologia, dialogando em profundidade com as questes fundamentais da conscincia do
homem, s quais a cincia ainda no conseguiu responder: Quem somos?, Para onde vamos?, O
que fazemos aqui?. Assim, dizemos de um alicerce enraizado que no pertence a esse ou quele povo,
mas humanidade em geral, por estar situado no legado de seu patrimnio imaginrio.
A ideia de tradicional est recorrentemente associada de preservao e ao antigo. Mas o que nos
mostra o movimento dessas expresses culturais que esse patrimnio biocultural no est a para ser
preservado a partir de sua existncia longeva. Quando se preserva, guarda-se, imobiliza-se, petrifica-
-se. Quer-se como est, e no de outra maneira. Ao contrrio da ideia de imobilidade, a diversidade de
possibilidades das festas nos mostra um universo dinmico e ativo, em constante mutao, recorrente,
de forma no unificada e ainda a ser desvendado. Assim, a ideia de tradio sugere mais do que
Ao contrrio
da ideia de
imobilidade, a
diversidade de
possibilidades
das festas nos
mostra um universo
dinmico e ativo,
em constante
mutao,
recorrente, deforma no unificada
e ainda a ser
desvendado.
So Luiz, MA
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to do medo e scravido. Para Aristteles, a virtude est no meio termo entre a fraqueza e o combate
(Chau, 1995). Mas s com repetio, aprofundamento e crescimento podemos elabor-los no corpo:
vivendo-os. Experienciar uma manifestao apenas uma vez n o suficiente para acessar esse Territ-
rio do Brincar, que nos levar s entranhas do Conhece-te a ti mesmo.
Muito me agrada que as expresses p opulares adentrem os muros escolares, seja nas aulas de educa-
o fsica, por meio da temti ca da cultura corporal do movimento, seja nos festejos juninos. Acho mui-
to bonito que as crianas aprendam, anualmente, diversas danas de repertrios diferentes. Concordo
que so uma graa, em fora e beleza, os elementos estticos das festas que invadem as quadras das
escolas. Mas sinto um dissabor ao pensar que, muitas vezes, as crianas esto tendo contato apenas
com elementos tcnicos e cnicos das manifestaes (aprender a tocar, cantar e danar, por exemplo),deixando de lado o motivo principal conhecer-se em forma e potncia, desafiar-se, provocar-se e
trabalhar-se ao longo dos anos com o que a manifestao oferece. Esse me parece ser o principal
aprendizado das manifestaes e do brincar.
Foi o educador Tio Rocha quem disse: Como se a escola, querendo mostrar aos seus alunos a
imensido e o impacto do azul do mar, trouxesse um pouco de gua salgada em uma garrafinha pet.
Muito se pode dizer do mar por meio de uma amostra de suas guas. Mas nada se pode apreender da
experincia e da vivncia do mar. Assim, reitero: as festas das manifestaes populares
no esto no mundo para ser apenas apresentadas ou vistas por uma plateia embora
isso seja muito belo e gratificante. Elas esto para ser vividas em todas as suas dimense s.
Mas como se faz para viv-las em um contexto que no o delas, por exemplo, em um
grande centro urbano ou em uma escola? So muitos os contedos contidos em cada mani-
festao popular. So tantos que parece im possvel reproduzi-los em um contexto diferente
de onde ela se origina. E se resolvermos fazer o Nego Fugido da Bahia? Reproduzir a festa
das Caretas de Acupe? O Bumba meu boi do Maranho? A Folia de Reis mineira? O Cavalo
Marinho pernambucano? Cada uma possui seu repertrio particular, com linguagens e con-
tedos prprios. Mas todas elas atuam em tradio, demarcao cclica e temporal, com
envolvimento de toda a comunidade, sempre com elementos do sagrado, exploratrias de
mistrios e encantarias da vida, alm de serem muito, muito bonitas.
s vezes, arriscamos fazer uma manifestao sem conhec-la em profundidade, apenas
nos familiarizando com seus passos de dana, estilo musical e cantoria. Mas, se ano a ano
a repetimos, ano a ano todos aprenderemos. Ano a ano, um pouco mais. E de ano em ano,
Como se a escola,
querendo mostrar
aos seus alunos a
imensido e o impacto
do azul do mar,
trouxesse um pouco de
gua salgada em uma
garrafinha pet. Muito sepode dizer do mar por
meio de uma amostra
de suas guas. Mas
nada se pode apreender
da experincia e da
vivncia do mar.
Tio Rocha
aprofundamento na matria humana.
Se todos os anos realizarmos, com
profundidade, jogos, festas e rituais,
os transformaremos em uma tradio.
A tradio integra o tempo: todo ano,
de novo e de novo. Assim que as
festas e os jogos tornam-se orgnicos
(importantes, como manter-se vivo) e
carregados de sentido (dando signifi-
cado nossa existncia).
Conhece-te a ti mesmo premissa
do exerccio de repetio, do mesmo
jogo, da mesma brincadeira, da mes-
ma festa. Um bom exemplo so as
imagens do Territrio do Brincar, seu
registro minucioso de duas emblem-
ticas manifestaes baianas: o Nego
Fugido e as Caretas de Acupe. No passa despercebido a quem as assiste, o terror diante dos bichos
e dos homens, expresso em olhos de crianas pequenas e ainda menores. Enrodilham-se apavoradas
no pescoo de suas mes, tias e madrinhas. Choram com autenticidade comovente. Ainda assim, pro-
tegidas nos braos familiares, anseiam olhar para o motivo de seu pavor. Mostram que medo e fascnio
so confrades de uma mesma vivncia, um nos atrai e o outro nos mantm apartados: tm medo, mas
anseiam olhar. um par correligionrio no des afio humano da existncia. No-quero-mas-quero.
Crianas um pouco mais velhas j se imbuem de coragem e enfrentamento: ousam chegar mais perto
e cutucar as feras, para logo depois correr em louca debandada. Haver um dia em que se tornaroamigas de seus algozes, iro segurar-lhes a mo fascinadas, investigando suas roupagens e o que
vai por dentro. E um dia vestiro as fantasias monstruosas, aterrorizando outras crianas, que pode-
ro viver, desse modo, a superao de medos, pesadelos e dramas internos. A coragem e a valentia
brotando do mais fundo do seu ser. O enfrentamento e o receio, propulsores aos quais estamos
submetidos desde muito cedo.
Nunca o mesmo aquele que, nas narrativas e nos dramas humanos sejam eles literrios, fantsticos
ou reais , enfrentou monstros e perigos e a eles sobreviveu. Espinosa j dizia que o no enfrentamen-
Entre Rios, MA
Culturas populares, brincar e conhecer-se 57TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS56
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7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas
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falta. Identificamos deficincias para logo
tentar suprimi-las. H inferncia de me-
lhorar no outro uma habilidade que ele
no tem, e para a qual muitas vezes o
educando no demonstra sequer interes-
se. A atuao dos mestres, no entanto,
ser sempre em favor do potencial da
pessoa: reforando interesses, habilida-
des manifestas, encorajando mergulhos
na sua fora interna e motriz, atuando
em favor da conscincia desejante que seapresenta. As deficincias so sistemati-
camente ignoradas por eles.
O mestre assim o mais experiente, com
sensibilidade para perceber as nuances
de uma vida que desperta, independen-
temente da idade. Aprendizes, somos
todos. O mestre abraa os processos de passagem, as preparaes, o tempo individual de cada um.
Nunca tem pressa com o discpulo. A tcnica aprender a tocar, cantar, danar, e tudo o que envolve o
folguedo e sua vivncia corporal no o principal. Ele est a servio da revelao das potencialidades
e, com base ni sso, de seu aprofundamento e elaborao.4
Todos eles, mestres, quando indagados como fazem para ensinar, respondem invariavelmente que no
ensinam:
No ensino. Fao junto. No tem necessariamente o ensinar, voc aprende muito mais vendo, estando junto,tocando junto, danando, vivendo. Depoimento de Tio Carvalho 5
4 Vale salientar que essas potencialidades no so nicas nem estanques. Variam e modificam-se, podem sermltiplas e sempre atreladas a aspectos relativos, como histrias de vida e outros fatores individuais da pessoa.Por isso, o saber do mestre um saber de sensibilidade: muitas vezes o prprio aprendiz no reconhece em sisua potncia.5 Tio Carvalho mestre de Bumba meu boi, mentor da brincadeira em So Paulo, no Morro do Querosene, naZona Oeste da cidade. Dirige o Grupo Cupuau, tendo formado muitos educadores, artistas, danarinos e interessa-dos na arte.
de festa em festa, de dana em dana, teremos uma tradio. E para todos que a vivenciam o que
inclui estudo, preparao, festa, jogo, brincar, reelaborao para de novo fazer, e assim por diante o
maior presente pode ser a profecia de Delfos: Conhece-te a ti mesmo. Cada ano, um pouco mais e
melhor. Grafada em gloriosas letras douradas no ser que se digna a olhar de frente para ela.
Mensagem dada, eu no posso abandonar o texto sem antes m encionar o condutor principal da brinca-
deira, educador por excelncia: o mestre. Invariavelmente uma pe ssoa mais velha aquela que s abe
mais, porque viveu mais , o que j lhe garante autoridade e respeito na estrutura de uma tradio.
Encontramos, mundo afora, tantos mestres quanto expresses populares. So muitos. E, de tanto bus-
car compreender essa figura emblemtica, esse personagem-educador, j o considero um arqutipo-
-educador. Os mestres so verdadeiros doutores da educao.Uma de suas caractersticas a reconhecida autoridade, pois, alm de conduzir a brincadeira, so tam-
bm uma liderana comunitria. Assim, so consultados no s a respeito do que se relaciona aos fes-
tejos, mas tambm sobre as grandes decises do coletivo onde esto inseridos. Sabem tudo das can-
torias e dos rituais, e isso refere-se ao contedo pedaggico e tcnico e de tcnica eles entendem.
Na hora da festa, cantam, conduzem, organizam. So os primeiros a chegar, os ltimos a sair, como
professores comprometidos no cuidado com as crianas. M as no nos contedos, precisamente, que
reside o seu saber. Chamam ateno, sobretudo, suas reconhecidas sensibilidade e intuio. Sabem
decifrar enigmas dos dramas humanos. Inferem e arriscam. Mas, ouso dizer que o modusoperandidos
mestres populares est sobretudo na generosidade de sua maestria e ess a inclui silncio e paci ncia.
Esses mestres, tal e qual seu arqutipo, identificam potncias no grupo de pessoas com o qual tra-
balham. E atuam em favor dessas capacidades. di sso que voc gosta? i sso que voc quer?, eles
investigam. Sinalizam o caminho para o interior do educando por meio das potencialidades demonstra-
das, que diferente de mostrar o caminho a ser seguido, ou apenas ensinar um repertrio.
O mestre vale-se do repertrio tcnico que tem nas mos para atuar em favor da potncia que enxergano educando. Ele propicia um mergulho interno que gera maiores ou diferentes percepes