Território Do Brincar - Diálogo Com Escolas

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  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    Acupe, BA

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    TERRITRIO DO BRINCARDILOGO COM ESCOLAS

    RENATA MEIRELLES (ORG.)

    Altamira, PA

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    PREFCIO ............................................................................................................................................. 9ANA LUCIA VILLELA

    Colocando o p na estrada... ..............................................................................................................13

    O Territrio do Brincar em um encontro com o educador ......................................................................17Renata Meirelles

    Filmando Crianas .............................................................................................................................23David Reeks

    Territrio sem fronteiras ...................................................................................................................29Fernanda Heinz Figueiredo

    O olhar antropolgico por dentro da infncia .....................................................................................37Adriana Friedmann

    O brincar na comunidade ....................................................................................................................47Ute Craemer

    Culturas populares, brincar e conhecer-se .........................................................................................51Soraia Chung Saura

    Dilogos e experincias: pontes que conectam pessoas e territrios .....................................................61ANA CLUDIA ARRUDA LEITE

    SUMRIO

    Acupe, BA

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    Dilogos e experincias: pontes que conectam pessoas e territrios 7TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS6O br incar na escola ..........................................................................................................................71Sandra Eckschmidt

    Ningum to grande que no possa aprender n em to pequeno que no p ossa ensinar ..........................77Luiza Lameiro

    NUFRAGOS E PIRATAS DO APRENDIZADO ...................................................................................................83Gandhy Piorski

    Territrio da ini ciao .....................................................................................................................91Marcos Ferreira-Santos

    os autores ......................................................................................................................................103

    foto

    Alto de Santa Maria, ES

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    Numa tarde de 2011, ainda no pequeno escritrio no Brooklin onde ficava o Alana, em So Paulo,Renata Meirelles e David Reeks apareceram para uma reunio. Ns conhecamos o trabalho da Re-nata em prol das brincadeiras e s abamos que ela viria pe dir nosso apoio para algum novo projeto deles.

    Ela entrou na sala um pouco tensa, como se no fssemos antigas conhecidas... Talvez no fssemos

    mesmo, mas tamanha era a minha familiaridade com ela, que me causou certo estranhamento ter o

    casal to srio na minha sala, apesar do largo sorriso dos dois. Eu tambm tinha trazido Marcos, meu

    marido, na poca comeando a trabalhar quase que integralmente no Alana.

    Renata, para mim, era antes de mais nada uma bandeirante (Movimento Bandeirante) e a irm da Dani.Quando a conheci, Dani e eu ramos fadinhas e ela, um pouco mais velha, j era B1 o que na poca

    era uma diferena enorme. Apesar de no me encontrar muito com Renata, o fato de termos sido

    bandeirantes juntas e ter algumas amigas em comum fez dela uma figura querida e quase ntima para

    mim. E, como sempre suspeitei, termos convivido juntas na infncia em meio natureza e cercadas de

    pessoas que acreditavam na liberdade de ser ou seja, na potncia de cada criana no poderia ter

    feito de ns pessoas com objetivos macro diferentes.

    E ali estvamos, os dois casais com causas semelhantes, numa mesa-redonda. Renata e David convi-

    daram o Centro de Educao Infantil (CEI) Alana para participar de um projeto com outras escolas para

    PREFCIO

    ANA LUCIA villela

    Praia de Tatajuba, CE

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    PREFCIO 11TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS10investigar, trocar experincias e refletir sobre brincadeiras a partir de uma viagem de dois

    anos que eles fariam pelo Brasil, com seus dois filhos pequenos.

    A ideia era linda. To linda que o Marcos se virou para mim com aquele olhar cmplice (e

    megalomanaco) que s vezes trocamos e disse: E se ajudarmos esta histria a acontecer

    de um jeito que tenha um impacto maior ainda?. E logo emendou: Vamos fazer, no ape-

    nas seis, mas todas as escolas pblicas e particulares do pas viajarem com vocs?.

    E assim foi. Nasceu o projeto com as escolas parceiras (e este livro e os DVDs que o acom-

    panham so o resultado disso), uma associao do Alana com a Maria Farinha Filmes,

    para fazer o longa metragem Territrio do Brincar, e outros projetos que ainda esto porvir todos voltados para a nossa misso de honrar a infncia (e, consequentemente, a

    humanidade), incentivando e deixando as crianas brincarem.

    Simplesmente brincar. Ns, educadores, sabemos a fora desse fazer/ser/estar. Por isso, convidamos

    pensadores que, generosamente, nos emprestaram seus olhares para enriquecer e ampliar ainda mais

    essa certeza. Este livro rene artigos inspiradores que nos mostram o brincar em toda sua inteireza,

    como gesto espontneo, livre, potico, antropolgico, individual e cultural tudo ao mesmo tempo.

    Que este material nos ajude a encontrar mais fora na luta pelo reconhecimento da importncia do

    brincar e para que possamos cultivar um olhar cada vez mais aguado, atento e sensvel para os gestos

    de nossas crianas.

    Ana Lucia VillelaPresidente do Instituto Alana

    Junho/2015

    Simplesmente brincar.

    Ns, educadores,

    sabemos a fora

    deste fazer/ser/estar.

    Por isso, convidamos

    pensadores que,

    generosamente, nos

    emprestaram seus

    olhares para enriquecer

    e ampliar ainda maisessa certeza.

    Oiteiros, MA

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    Colocando o p na estrada...

    O Territrio do Brincar trouxe algo grandioso,

    que mostrar o que o Brasil... este Brasilzo...

    tem como brincadeira. O que as crianas fazem,

    do que elas brincam, que lugar esse!

    Parceiros do projeto

    Oprojeto Territrio do Brincar um trabalho de escuta, intercmbio de saberes, pesquisa, registroe difuso da cultura infantil, correalizado com o Instituto Alana.Entre abril de 2012 e dezembro de 2013, os documentaristas Renata Meirelles e David Reeks visitaram

    comunidades rurais, indgenas, quilombolas, grandes metrpoles, serto e litoral, a fim de revelar o pas

    por meio dos olhos das crianas brasileiras. Registraram em filmes, fotos, textos e udios as sutilezas

    da espontaneidade do brincar, apresentadas do ponto de vista das crianas. Um intercmbio no qual

    pesquisadores e crianas se encontraram no fazer e no brincar, sempre aprendendo um com o outro.

    Durante esse percurso, o Territrio do Brincar olhou para as crianas fora do contexto escolar em dife-

    rentes comunidades, buscando apreender e compreender como elas vivenciam suas infncias, brincam

    e se expressam quando esto em liberdade e so as protagonistas das narrativas que criam e das

    experincias que vivem.

    Ao mesmo tempo, o Territrio firmou parceria com seis escolas de educao infantil e ensino funda-

    mental de So Paulo e Santa Catarina, que contriburam para olhar para as crianas nesses espaos.

    Praia de Tatajuba, CE

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    Colocando o p na estrada... 15TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS14e refletiram com Renata e David ao longo da jornada do Territrio do Brincar; de dois filmes: os curtas

    produzidos em cada regio visitada e que foram utilizados nos encontros mensais com as escolas; e

    do documentrio baseado no dilogo do Territrio do Brincar com as seis escolas parceiras.

    A produo desse documentrio foi um desafio. Alm de apresentar o rico processo de reflexo e for-

    mao, seu objetivo compartilhar a experincia e os materiais produzidos pelo Territrio do Brincar

    com outros educadores, gestores, pais e demais interessados, mostrando como uma proposta sensvel

    e potica pode provocar, questionar e sensibilizar nosso modo de ver a criana na escola.

    So elas: CEI Alana (SP), Colgio Oswald de Andrade (SP), Colgio Sidarta (SP), Es-

    cola Vera Cruz (SP), Escola Casa Amarela (SC) e Escola Viverde (SP).

    Por meio de videoconferncias mensais e com base em um rico material compos-

    to de vdeos, textos e udios especialmente preparados para esses encontros, o

    dilogo transitou por diversos temas, como a diversidade cultural de nosso pas e

    as inmeras infncias possveis; o brincar livre, espontneo e, portanto, autno-

    mo; a construo de brinquedos pelas crianas; o medo; as memrias da infncia

    dos adultos; os aprendizados no contexto familiar e

    nas manifestaes populares, entre tantos outros.

    As reflexes, suscitadas em territrios to distantes,

    convidaram os educadores a se assumir pesquisado-

    res em seu territrio: a escola!

    A cada nova comunidade a que chegava, o Territrio mostrava nas es-

    colas as crianas brincando da forma mais genuna: com a gua, a terra,

    o ar e o fogo. Brincar de construir com o serrote ou o faco. Brincar nas

    manifestaes populares, correndo das caretas ou do Boi. Brincando

    com grandes ou pequenos, foi assim que as crianas compartilharam

    como aprendem na escola da vida.

    Aps o primeiro ano de parceria, o Territrio do

    Brincar props um desafio: aprofundar e exercitar

    o olhar pesquisador do educador para a observao

    do brincar dentro da escola. Entre tantas possibilidades, a brincadeira de casinha

    foi a escolhida! E assim cada escola observou, coletou, registrou e refletiu sobre

    essa brincadeira to presente no cotidiano da infncia, olhando e escutando suasprprias crianas.

    Foram dois anos de intensas trocas de experincias, reflexes e aprendizados en-

    tre o Territrio do Brincar e os educadores, a equipe de coordenao e a direo

    dessas escolas. A fim de apresentar e compartilhar essa parceria, com o desejo de

    que esse processo possa frutificar em mais e mais escolas, ampliando o olhar dos

    educadores para o brincar pelo Brasil afora, elaboramos este material. Ele com-

    posto de um livro com textos do grupo inspirador de pensadores que dialogaram

    O Territrio do Brincar

    mostra que tem escola l

    fora, tem escola na praa,

    na beira do mar, embaixo da

    rvore... A escola maior

    do que quatro muros e

    professores. O Territrio nos

    mostrou a escola da vida.

    Parceiros do projeto

    Eu acho fundamental o

    dilogo, a conversa. Seria

    bom se pudesse acontecer

    em outras escolas o que

    aconteceu com a gente,

    com esta parceria. Foram

    momentos de parada, de

    reflexo sobre o brincar, a

    criana, a infncia. Tudo

    foi fundamental.

    Parceiros do projeto

    Acho que o Territrio tem

    de ser uma coisa viva, ser

    eterno, e no acharmos

    que agora, aps esses dois

    anos, ele acabou! Que ele

    esteja presente em tudo, que

    possamos lev-lo de pessoa

    para pessoa, de professor

    para professor, de pai para

    pai, em todos os lugares que

    a gente puder lev-lo.

    Parceiros do projeto

    Praia de Tatajuba, CE

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    O Territrio do Brincar emum encontro com o educador

    Renata Meirelles

    Oprojeto Territrio do Brincar, em correalizao com o Instituto Alana, tem vrias fren-tes de atuao, entre elas, uma parceria com escolas. Quando eu e David Reeks assumimoso desejo de voltar para a estrada e ampliar a pesquisa sobre o brincar das crianas brasileiras

    uma prtica que fazamos juntos desde 20 01 , a primeira ideia foi e stabelecer parcerias com escolas

    que desejassem olhar para aspectos essenciais do brincar infantil.

    Uma parceria na qual o dilogo fosse o meio e o fim de todo o processo. Planejamos encontros mensais

    por meio de teleconferncias, que trariam os acontecimentos decorrentes do vnculo construdo com as

    pessoas, em campo. No seria possvel prever quais temas seriam tratados, mas era necessrio acreditar

    na fora do encontro e na potncia da criana falar de si mesma. Seis instituies Escola Vera Cruz (So

    Paulo, SP), Escola Viverde (Bragana Paulista, SP), Colgio Sidarta (Cotia, SP), Colgio Oswald Andrade

    (So Paulo, SP), CEI Alana (So Paulo, SP), Escola Casa Amarela (Florianpolis, SC) confiaram nessa

    proposta e firmaram o compromisso de abrir uma janela para ver o que fazem as crianas fora da escola,

    para reconhecer as diversas vertentes culturais que regem o Brasil e para ampliar as discusses sobre

    educao e cultura. Com parceiros dessa magnitude, nos sentamos confiantes para ganhar a estrada.

    O roteiro de viagem priorizou o interior do pas para que pudssemos conhecer crianas que es-

    tivessem sob menor influncia das distraes da vida contempornea e, dessa forma, enxergar

    So Gonalo do Rio das Pedras, MG

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    O Territrio do Brincar em um encontro com o educador 19TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS18independentemente da regio geogrfica? Como ir

    alm da transmisso do patrimnio cultural, que,

    apesar de importante, no alcana o dilogo com

    a fora do imaginrio infantil? Qual o eco que a

    liberdade infantil faria ressoar no cotidiano de cada

    educador? Inmeras perguntas acompanharam in-

    sistentemente a jornada do Territrio do Brincar.

    Nos primeiros encontros virtuais, as vozes dos

    educadores nos chegavam com um tom de espan-

    to e encanto, misturados com um claro desejo de

    transmitir a seus alunos o que o Territrio do Brin-

    car estava conhecendo. Reproduzir as brincadeiras

    nas aulas, contar o que comem aquelas crianas,

    como so seus ambientes, suas festas, suas his-

    trias e expresses, eram relatos frequentes do

    que acontecia nas escolas, sempre acompanhados

    de perguntas que, certamente, se tornariam matria-prima para as aulas seguintes. Do lado de c,

    corramos para no deixar escapar nada que pudesse alimentar esses questionamentos.

    Com o passar do tempo e aos poucos, essas crianas que faziam coisas aparentemente to diferen-

    tes foram ocupando o espao de representantes de aspectos humanos absolutamente reconhecveis

    em qualquer criana, seja ela de onde for. O que essas crianas apresentavam em seus brinquedos e

    brincadeiras estava para alm de um produto cultural interessante era um processo do imaginrio

    recorrente em todos ns.

    Temas como medo, intimidade, potncia, autonomia e liberdade apareciam constantemente nas brinca-deiras observadas pelo Territrio do Brincar, e os educadores precisavam encontr-los no brincar dentro

    da escola. Como isso ocorre entre seus alunos?

    Relatos intensos de um olhar atento e sensvel eram habituais nas teleconferncias. Aproximar-se das

    semelhanas ainda mais potente do que falar das diferenas, disse uma educadora do Colgio Sidar-

    ta. Quando o foco est nos gestos, possvel ver outras coisas para alm do gesto. a repetio e a

    inteno dos gestos que nos interessam. Pela espontaneidade se consegue chegar ao imaginrio, pois

    ele diz de todos ns, afirmou uma educadora da Escola Vera Cruz.

    seus gestos e seu imaginrio com a nitidez necessria aos nossos olhos. Queramos

    nos aproximar dessas crianas que pouco aparecem nos meios de comunicao, e

    sabamos que percorrer o interior deste pas seria, de alguma forma, como chegar ao

    interior de ns mesmos.

    Samos decididos a focar no que de mais potente cada criana tem a mostrar, restabe-

    lecendo dignidade aos seus atos, e, ao mesmo tempo, a lapidar nosso olhar para os

    gestos sutis. Os problemas que rodeiam a infncia existem aos montes, mas, para alm

    deles, h inmeras belezas e potncias vividas intensamente em todo o Brasil. Optamos

    conscientemente por enxergar pela lente do belo, pois, como nos dizem Allan Kaplan e

    Sue Davidoff (2014, p. 12), o modo como enxergamos se torna extremamente impor-

    tante no que diz respeito ao mundo que criamos atravs desse enxergar.

    Enquanto os adultos que encontrvamos pelo caminho insistiam em nos dizer que as crianas no

    brincam mais, elas, por sua vez, nos revelavam um brincar vigoroso e potente. O adulto dizendo NO

    e as crianas nos apresentando um SIM muito rico em elementos culturais e de imaginrio extraordi-

    nrio. Uma contradio constante que revela a perda do lastro entre o que fazem as crianas e o que

    enxergam os adultos.

    Agarrados ao que apreendamos das

    espontaneidades infantis, s inmeras

    referncias tericas e s parcerias com

    pesquisadores em especial ao rigoroso

    estudo do imaginrio infantil de Gandhy

    Piorski , o desafio era conseguir co-

    municar aos educadores dessas escolas

    parceiras a essncia das crianas. Mascomo no cair em relatos culturais que

    apresentam o outro como diferente e

    geram um distanciamento da realidade?

    Como apresentar as intenes dos ges-

    tos das crianas para que fiquem eviden-

    tes as equivalncias de necessidades,

    Enquanto os adultos

    que encontrvamos

    pelo caminho

    insistiam em nos

    dizer que as crianas

    no brincam mais,

    elas, por sua vez,

    nos revelavam

    um brincar vigoroso

    e potente.

    Altamira, PA

    Colgio Viverde, Braganca Paulista, SP

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    O Territrio do Brincar em um encontro com o educador 21TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS20Esse processo de olhar, refletir e dialogar baseado naquilo que nos ensinavam as crianas fortaleceu

    em todos ns aspectos que foram muito alm dos educacionais, e frutificou crenas que j habitavam

    os recnditos de nossos desejos. Somos seres plenos de v ida e no podemos deixar que nos distraiam

    disso. preciso estar no presente, no aqui e agora, para conseguir escutar a criana e, consequente-

    mente, a ns mesmos.

    Referncias BibliogrFIcasBACHELARD, Gaston. A potica do devaneio. So Paulo: Martins Fontes, 1988.

    KAPLAN, Allan; DAVIDOFF, Sue. O ativismo delicado: uma abordagem radical para mudanas. Cidade do Cabo, frica

    do Sul: Proteus Initiative, 2014. Disponvel em http://www.institutofonte.org.br/sites/default/files/O%20Ativis-

    mo%20Delicado%20-%20Final%20PDF%20version%202014.pdf. Acesso em 04/05/2015.

    LARROSA, Jorge; LOPES, Jos; S. M. TEIXEIRA, Ins A . C. Olhar a infncia. InA infncia vai ao cinema. Belo Horizonte:

    Autntica, 2006.

    MERLEAU-PONTY, Maurice. O visvel e o invisvel. So Paulo: Perspectiva, 2005.

    Percebemos que nosso dilogo era pautado pelo olhar que temos das crianas. Assu-

    mimos, ento, que a proposta era entender a criana universal, e no a regional. Como

    nos prope Merleau-Ponty(2005), olhar a criana requer se guiar para alm e aqum

    das teorias. Um tom potico e profundo precisava ser alcanado se quisssemos que a

    intencionalidade dos gestos infantis invadisse cada um de ns. Afinal, um excesso de

    infncia um germe de poema, como bem nos lembra Gaston Bachelard (1988, p. 95).

    Ou, como revelou uma educadora do Colgio Oswald: O potico cria imagens que fazem

    conexes com inmeras outras, e d sentido.

    Isso nos exigia a liberdade de no buscar respostas, mas nos deixar levar pelas aes e pelas expresses

    infantis, em uma atitude de aprendiz das crianas. Ou ainda melhor, aceitamos que:

    a criana que educa o adulto a olhar as coisas pela primeira vez, sem os hbitos do olhar constitudo. Wim

    Wenders diz de um olhar sem opinies, sem concluses, sem explicaes. De um olhar que simplesmente

    olha. E isso, talvez, seja o que perdemos. como se tudo que vemos no fosse outra coisa seno o lugar so-

    bre o qual projetamos nossa opinio, nosso saber e nosso poder, nossa arrogncia, nossas palavras e nossas

    ideias, nossas concluses. como se fssemos capazes de olhares conclusivos, de imagens conclusivas.

    como se nos desse a ver tudo coberto de explicaes. (Larrosa, Lopes, Teixeira, 2006, p. 11-29)

    O processo de escuta estava claro para cada participante da parceria. A criana est sempre fa-

    zendo os mesmos gestos, mas, quando a olhamos de uma forma diferente, o brincar ganha po-

    tencialidade e credibilidade, afirmou uma educadora do Colgio Sidarta. Olhar de novo o que j

    conhecido, o que est por perto, re-ver. E isso as crianas fazem diariamente, acrescentou uma

    educadora do CEI Alana.

    Entre tantas descobertas, existiu um ponto primordial: As reflexes e os olhares foram para alm

    do dia a dia nas escolas, e retornaram para si, para olhar o prprio eu, revelou uma educadora da

    Escola Casa Amarela.

    Quando conseguimos atingir o encontro conosco, a partir do que nos apresentaram as crianas, as

    amarras institucionais foram questionadas e cada educador sentiu reverberar em si sua prpria voz.

    J no eram mais as crianas que nos regavam de foras para seguir, mas sim a voz interna e singular

    dos educadores, alimentados pelo brincar das crianas. As descobertas acontecem de dentro para

    fora, quando j esto semeadas, acordadas. O olhar autnomo a conquista de si mesmo, declarou

    uma educadora da Escola Viverde.

    O potico cria imagens

    que fazem conexes

    com inmeras outras,

    e d sentido.

    Parceiros do projeto

    Araua, MG

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    Filmando Crianas

    David Reeks

    Em 2001, eu era jovem, apaixonado e talvez confiante demais quando fui convidado porRenata Meirelles, minha namorada na poca, para conhecer as entranhas da Amazniae a infncia que brota l uma aventura que no consegui recusar, apesar das minhas

    irrisrias qualificaes. Foi por meio desse convite que iniciei minha aventura com o vdeo.

    Nessa viagem, meu papel seria o de registrar as crianas que encontrssemos pelo cami-

    nho. No demorou para que eu sentisse o peso da responsabilidade de tal empreitada.

    Pensei: No sei filmar e nunca lidei com crianas.

    Renata me tranquilizava, dizendo que tudo ia dar certo. Mesmo assim, eu passei a pesqui-

    sar o mximo que pude. Na poca, informaes sobre tcnicas de filmagem e pedagogia

    do brincar ainda eram mais fceis de encontrar em livros do que na internet. Em um belo

    dia, depois de muitas semanas de pginas viradas, cheguei a um texto intitulado DirigindoCrianas. D para imaginar meu alvio?

    Na primeira pgina havia a foto de um microfone direcional aqueles compridos com um

    tigre de pelcia abraando-o. O leitor podia inferir que o uso do tigre era um truque para

    quebrar o gelo diante de qualquer criana, e o resto seria fcil. Pronto, depois de semanas

    pesquisando exaustivamente como filmar crianas e lidar com elas, essa foi a primeira pista que encontrei

    de como fazer as duas coisas juntas, o que me levou seguinte concluso: filmar e lidar com crianas

    algo que no se aprende em livros.

    Imagine que voc

    nunca tenha parado

    para pensar em como

    filmar crianas. Ou pior,

    talvez voc nunca tenha

    pego em uma cmera

    que filma, mesmo a

    de um celular, com a

    inteno de criar um

    registro para alm de

    uma memria familiar.

    Bem, voc estariaexatamente no lugar

    em que eu estava

    14 anos atrs.

    Acupe, BA

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    Filmando Crianas 25TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS24dramento perdem em dobro: perdem a chance de estar inteiramente juntos no presente e, j que tal

    presena foi abandonada, perdem a chance da lembrana. Se temos o cuidado de registrar, temos de

    desenvolver o cuidado de organizar e de recontar. Seno, estamos apenas nos escondendo ou nos

    ausentando do presente.

    Essa questo do ser ausente no era to clara no incio do projeto Bira Brincadeiras Infantis da

    Regio Amaznica, em 2001. s vezes, eu sentia culpa por estar apontando a cmera para algum. A

    presena da cmera criava, ao meu ver, um desequilbrio que me incomodava demais, como se eu es-

    tivesse invadindo a situao por ter introduzido esse elemento artificial. No podemos negar o poder

    que se exerce quando se opta por filmar qualquer coisa, especialmente pessoas.

    Ecoavam em mim lies de histria de quando eu estava na 7 srie: soube que existiam vrias naes

    indgenas nos Estados Unidos que no se deixavam fotografar porque temiam ter suas almas roubadas.

    Essa lembrana dialogava com a sensao que me invadia diante das pessoas que eu captava eu

    queria, nem que fosse um pouco, registrar a alma daqueles que estavam sendo filmados. No houve

    dvidas de meu desejo de registrar o que h de mais vivo e interessante nas pessoas, e essa culpa

    comeou a me atrapalhar.

    Consegui compartilhar minha angstia com

    outro documentarista que conheci no meio

    da viagem, em Santarm, no Par. Nosso en-

    contro foi rpido, mas mudou meu jeito de

    conviver com a cmera em campo. Segundo

    ele, aquele que filma deve sentir gratido pela

    permisso de captar a imagem de algum. E a

    pessoa que est sendo filmada deve se sentir

    valorizada pela escolha de ser o foco do fo-tgrafo. Ao ouvir isso pela primeira vez, pen-

    sei que era apenas um truque mental, e nada

    mudaria. Mas a angstia j atrapalhava o su-

    ficiente minha vontade de filmar portanto,

    os registros do projeto. Aceitei essa mudana

    de postura internamente. Criei uma espcie

    de mantra: Olho porque admiro. Quero te ver

    me oferecer o que tem de melhor. Claro que

    Peguei a cmera e, com Renata ao m eu lado, comecei a filmar crian-

    as antes da nossa partida para a Amaznia. Aqui fica minha primeira

    dica: nada, nada mesmo, mais til do que tentar e errar. E espero

    que o restante deste relato, de uma experincia de 14 anos filmando

    crianas, seja um pouco mais til do que um tigre de pelcia.

    Uma dica que aprendi de forma dura foi a questo de rever o material

    de filmagem.Quem tem milhares de fotos no computador e nunca as

    viu pe um dedo aqui! Pois bem, na Amaznia, em 2001, a cmera

    que eu usava tinha fitas que gravavam durante uma hora. No Arqui-

    plago do Bailique, no Amap, usamos trs fitas na primeira semana

    da viagem e comeamos a assisti-las dentro da prpria cmera.

    Ns nos emocionamos com es ses primeiros registros; eram a concre-

    tizao de algo que havamos sonhado por tanto tempo! Mas o prazer

    durou pouco: as imagens s quais assistimos tinham artefatos digitais

    e erros bem feios apareciam diante de nossos olhos. Descobrimos que

    nossa cmera estava danificando as fitas quando eram rebobinadas

    para ser assistidas. Ento, passamos o restante dos seis meses de

    viagem sem poder rever o material produzido 90 horas colhidas em

    cinco estados. Quando fomos edit-lo, percebemos diversos erros re-

    correntes que poderiam ter sido evitados se houvesse a chance de

    assistir s filmagens, como a insistncia em enquadramentos chatos, a

    falta de cenas de contexto, a interrupo repetida da ao das crianas

    e ajustes desnecessrios para cenas que j estavam boas.

    Bem, hoje em dia no precisamos mais nos preocupar com fitas da-nificadas, e a possibilidade de assistir ao que registramos imediata. O importante dedicar tempo

    para contemplar o que fizemos e perceber o que nos agrada, o que bonito, o que teramos orgulho

    de mostrar para algum e depois... tentar recriar esses aspectos positivos em futuras filmagens.

    Pense em quanto tempo usamos, filmando e tirando fotos, nesta poca to digital. Podemos consi-

    derar que, quando algum assume essa tarefa, se ausenta, no mnimo um pouquinho, do presente

    tem de focar em algo e se distrair do resto. Se no voltar para ver o que fez, para organizar as imagens

    e recriar uma narrativa do que estava sendo visto, tanto quem filma quanto seu sujeito de enqua-

    Alto de Santa Maria, ES

    So Gonalo do Rio das Pedras, MG

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

    14/55

    Filmando Crianas 27TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS26

    humana ou natural, o que mais me preocupa ser capaz de registr-la de maneira que

    possibilite recriar aquele momento para quem no estava l. Brincadeira boa es sa. E no

    na brincadeira que as pessoas se sentem inteiras?

    Nesse desafio, nessa brincadeira, eu sou um eterno aprendiz, sempre me alimentando de

    novidades. E transmito, para quem filmo, meu respeito pela sabedoria que a pessoa vai me

    oferecer e minha humildade diante da cena. Eu no sei qual o melhor jeito de filmar,

    at chegar o momento de ape rtar a tecla Rec. E mesm o assim preciso estar confortvel o

    suficiente para mudar minhas estratgias.

    No entanto, quando estamos tratando de crianas, estamos falando de seres que muitas

    vezes no se expressam pela palavra. Conseguimos ver uma imensa quantidade de verdade

    em uma mo, um dedo, um olhar, uma postura; pois so poucos os gestos infantis que no

    expressam uma inteno verdadeira, que so jogados ao lu. E como deix-las espont-neas diante de uma cmera a fim de que esses ge stos floresam? Com um tigre de pelcia?

    Creio que importante reforar que tudo se inicia com vnculos afetivos. Na grande maioria das cenas

    filmadas pelo Territrio do Brincar, eu e Renata j conhecamos as crianas, j brincvamos com elas

    sem cmeras e j havamos estabelecido respeito mtuo. s vezes, esse respeito se constri em segun-

    dos, com um sorriso ou com um brilho nos olhos. Independentemente de como criamos v nculos, o que

    a maioria das crianas filmadas pelo nosso projeto viu em mim no foi apenas um operador de cmera,

    mas, sim, um cara com sotaque, que sabe brincar e que, em determinados momentos, tambm filma.

    Nesse desafio,

    nessa brincadeira,

    eu sou um eterno

    aprendiz, sempre

    me alimentando

    de novidades. E

    transmito, para quem

    filmo, meu respeito

    pela sabedoria que a

    pessoa vai me oferecer

    e minha humildade

    diante da cena.

    eu no falava essas palavras, mas era isso que eu precisava sentir. Alis, sinto isso at hoje, quando

    aponto a cmera para algum. Em alguns casos, at j verbalizei essa ideia.

    O ato de filmar uma relao cujas regras so criadas por ambas as partes. Se o operador de uma c-

    mera est desconfortvel atrs da lente, o sujeito do enquadramento pode refletir isso diante dela. Se o

    fotgrafo est sentindo culpa por filmar, no promover boas sensaes em quem est sendo filmado.

    Se o operador de cmera presencia uma cena e tem vergonha de film-la, a cena nunca ser registrada.

    E, se o fotgrafo no reconhece o poder que a cmera traz para a relao, ele pode passar a abusar

    dela, mesmo que inconscientemente. Pedir pessoa filmada para fingir que a cmera no est l ou

    filmar sem permisso um equvoco, a negao do desequilbrio que de fato existe.

    No mundo da captao documental, o que mais queremos que nossos sujeitos se sintam, e at ajam,

    como se a cmera no estives se presente. Queremos o espontneo, a verdade, pois so com eles,

    limpos de rudos externos, que os espectadores se identificam. E, quando um espectador se identifica,

    cria um vnculo afetivo com aquilo que est vendo. Esse vnculo faz o espectador pensar em si, que

    justamente o ponto pelo qual o registro ganha fora.

    Voltando ao mantra do respeito se o operador

    de cmera se sente honrado em poder filmar quem

    quer que seja, isso transmitido para a pessoa. Ao

    invs de criar uma relao txica, cria-se uma rela-

    o de respeito, de maravilhamento, de esperana.

    Nesse sentido, a cmera se torna uma ferramenta

    fundamental para registrar o encontro algo inte-

    gral para essa relao.

    Com esse respeito e o acmulo de centenas dehoras de material, ao longo dos anos, cheguei

    concluso que filmar a parte do processo de cria-

    o de um documentrio que mais me agrada. Eu

    me sinto inteiro. Brinco com a cmera, com suas

    possibilidades de enquadramento, de movimento

    e de ngulo; mas tambm brinco com as pessoas

    que filmo, com as situaes que se apresentam

    diante de mim. Como escolhi lidar com a beleza,Alto de Santa Maria, ES

    Pancas, ES

    2

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    TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS28

    Territrio sem fronteirasAs imagens do Territrio do Brincar

    como janela de experincia

    Fernanda Heinz Figueiredo

    Ouso do audiovisual na educao e nas prticas pe-daggicas no propriamente uma novidade. Masa expanso de sua produo e do acesso a essa lingua-

    gem na sociedade traz consigo a necessidade de repen-

    sar e encontrar outros modos de registro, compreenso e

    transmisso de contedos que esto cada dia mais dispo-

    nveis a todos.

    Por um lado, nas concepes mais formais de educao,

    vemos o cinema e o audiovisual serem muito utilizados para

    fins didticos e informativos. O que se costuma buscar em

    tais processos uma aparente eficincia na transmisso deinformao e de contedo, a se r posteriormente mensura-

    da pelas avaliaes de que o nosso sistema educacional se

    faz valer. Esse enfoque dado pelo universo escolar acaba

    se restringindo ao contedo das histrias, dando menos

    nfase a outros aspectos que compem a experincia e a

    beleza do cinema, como a esttica, a fotografia, a msica,

    a estrutura narrativa e a estratgia da abordagem.

    Entre dunas de areias brancas, sopram

    mar e vento. Entramos em um casebre

    rstico, simples, aberto, de cho de

    cimento queimado. Ouvimos o som

    do vento, o som de isopor sendo

    serrado. Aos poucos, identificamos

    um burburinho de crianas. Vemos

    os cabelos balanarem, os corpos

    vigorosamente apoiados no cho.

    As mos serram, esculpem, encaixam,

    costuram, mostram aprendizes e

    mestres. A respirao calma, aconcentrao e a destreza artes so

    evidentes. O corpo est entregue.

    So crianas do Cear que, nascidas

    barqueiras, realizam de forma potica

    um baile de criao.

    Cenas do Territrio do Brincarem

    Tatajuba CE

    Altamira, PA

    3130

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    Territrio sem fronteiras 31TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS30Mesmo conhecendo o trabalho da dupla h algum

    tempo, foi apaixonante observar, por meio do mate-

    rial gravado, os gestos, as falas e as construes das

    crianas, que nos mostram o quanto o universo da

    cultura da infncia continua vivo.

    A esttica, a beleza e as crianas retratadas no so

    o estopim da paixo por essas imagens. O que mais

    cativa, do meu ponto de vista, sua verdade e sua

    simplicidade. Pelas imagens do Territrio do Brincar

    acessamos um mundo to fascinante quanto desco-nhecido: o imaginrio da criana.

    Ao contrrio

    Cada um sua maneira e em seu papel Renata, com seu olhar de educadora, brincante, pes-quisadora e me; David, com seu olhar estrangeiro, de uma habilidade fotogrfica que s um serbrincante e musical como ele capaz de alcanar desenvolveu ao longo dos anos um modo prprio

    de documentar as crianas, sua cultura e brincadeiras, estabelecendo uma relao direta e um dilogo

    vivo por meio de sua linguagem ldica, simples e verdadeira.

    Em outro projeto e documentrio da dupla, em parceria com a jornalista Gabriela Romeu, o Disque Qui-

    lombola, isso fica evidente. A conversa e a troca com as crianas descendentes de quilombolas de con-

    textos diversos se deu pela brincadeira do telefone de lata. Brincando com o telefone as crianas fizeram

    perguntas, se abriram, falaram sobre seus modos de vida e crenas. Essa forma de conversa-entrevista

    por meio de brincadeira funcionou de tal maneira que foi usada por Renata e David no percurso do

    Territrio do Brincar.

    Diverte-me lembrar da fala de Renata, quando preparava uma pauta para a locuo da srie de mini-

    documentrios do Territrio do Brincar. Indagada sobre como conseguir uma resposta espontnea e

    verdadeira das crianas, Renata disse com tranquilidade: Tem que perguntar ao contrrio. Sempre que

    penso nessa afirmao, acabo na mesma pergunta: como assim, ao contrrio? Seria o oposto do que

    normalmente faz o adulto, que muitas vezes confunde as crianas? Penso em minha filha de 9 anos

    tentando decifrar nossa inteno em meio a tanta ironia: Vocs esto falando ao contrrio?.

    A valorizao da linguagem audiovisual como potencial de experincia na sua qualidade existencial

    (Larrosa, 2002, p. 27) refreando os anseios de definir e medi r o que aprendemos tem a capacidade

    de ampliar nossos horizontes, nossa liberdade para enxergar, fruir, nos emocionar e pensar sobre filmes

    de acordo com a nossa cultura, desejos e valores. A beleza da li nguagem audiovisual, assim como a de

    outras linguagens artsticas, est justamente em permitir uma viagem individual complexa e muitas

    vezes misteriosa, que pode, ou no, ser compartilhada com os outros.

    Durante o percurso do projeto Territrio do Brincar, um dilogo potico, e ao mesmo tempo direto, inten-

    so e muitas vezes penoso por que no? , foi estabelecido com educadores e escolas, aproximando

    todos, por meio da experincia da linguagem audiovisual, da experincia da infncia vivida por crianas

    de vrias partes do Brasil. Essa aproximao se fez verdadeira e to intensa, do meu ponto de vista, jus-

    tamente porque o carter experiencial do processo de pesquisa de campo e do registro em si foi sendocompartilhado e vivenciado por seus idealizadores e coordenadores: Renata Meirelles e David Reeks.

    Como documentarista, me e eterna criana, me interessa particularmente o processo construdo pelo

    casal a partir de um resgate e de uma apropriao real das brincadeiras, do imaginrio infantil e das

    linguagens expressivas da criana, sem as quais no nos sentiramos to prximos delas.

    Tive o privilgio de me debruar sobre parte do material produzido nessa profunda jornada ao encontro

    da criana brasileira quando fui convidada por eles para editar uma srie do Territrio do Brincar, para

    crianas, com 26 miniepisdios.

    Crrego da Velha de Baixo, MGAltamira, PA

    33 32

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    Territrio sem fronteiras 33TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS32

    Brincadeira viva

    Oprojeto Territrio do Brincar contribuiutambm para uma importante consta-tao: a de que crianas, por todo o Brasil,

    inclusive em grandes centros urbanos, conti-

    nuam brincando e muito. possvel, assim,

    refletir mais sobre nossas falas e parar de re-

    petir o que quase virou um perigoso mantra:

    que hoje a criana no brinca mais. O ser hu-

    mano nasce, cresce, se conhece e aprende

    brincando. As brincadeiras so a experincia

    e a experimentao por excelncia!

    Vivendo em um mundo extremamente polu-

    do de informao e de excessos, so raros

    os momentos de vivncia da experincia. Filsofos de outras pocas, como o alemo Walter Benjamin

    (1987), nos alertaram sobre os problemas e a pobreza do excesso de informao e da falta de expe-

    rincia. O espanhol Jorge Larrosa (2002 , p. 21) aprofundou, por meio de artigos e obras, a importncia

    do saber pela experincia:

    A experincia o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. No o que se passa, no o que

    acontece ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porm, ao mesmo tempo, quase nada nos

    acontece... a experincia cada vez mais rara. Em primeiro lugar, pelo excesso de informao. A informao

    no experincia. E mais, a informao no deixa lugar para a experincia, ela o contrrio da experincia,

    quase uma antiexperincia.

    Larrosa tambm nos levou a aprofundar a relao entre cinema e experincia. O cinema, o bom cinema,

    por suas caractersticas e construo, nos oferece justamente a ch ance de viver, de ultrapassar, de ser

    tocado pela experincia. Por se relacionar com outras linguagens artsticas, como literatura, pintura,

    fotografia, msica e artes cnicas, a stima arte uma forma de expresso de altssimo impacto.

    O registro de imagens por uma cmera e as narrativas cinematogrficas podem provocar construo,

    desconstruo, ruptura, mudana de paradigmas. comum assistir a um filme que nos leva no apenas

    Criana e criao

    Essa forma direta e verdadeira de abordar a criana me levou a um outro lugar, a um outrosentir e estar. Eu me senti prxima dos pequenos caadores, artesos, cozinheiros. E tivea oportunidade de me reconectar minha infncia, de perceber minhas filhas e suas criaes

    de outra forma, com mais respeito e admirao.

    Hoje, me sinto capaz de enxergar melhor, com olhos de ver, sentir, dar valor e deixar ser as

    crianas caadoras, as cozinheiras, as construtoras de brinquedos, as costureiras, as pintoras

    que esto em minha casa e ao meu redor.

    A profundidade e o respeito da cmera de David Reeks nos permitem vivenciar a experincia da in-

    fncia em uma outra dimenso. Nessas imagens e nesses sons percebemos e reconhecemos meninos

    e meninas realizando a plenitude e a beleza do imaginrio da infncia. Dotados das habilidades que

    uma boa dose de liberdade e brincar pleno lhes deu, impressiona a completa sinergia com a natureza

    e a apropriao de instrumentos considerados adultos. Observamos o quase indizvel, o poder de

    criao da criana.

    Diante disso, as angstias, o de-

    saparecimento da infncia, o con-

    sumismo, a erotizao precoce e

    o mundo virtual e eletrnico tor-

    nam-se insignificantes. O que

    mostrado pela sua poesia e pelas

    sensaes desencadeadas nos

    leva a uma outra forma de olhar a

    criana, de perceber a cultura e arealidade da infncia em contex-

    tos e culturas distantes. E essa

    vivncia da experincia da infn-

    cia por meio da experincia do

    cinema desencadeia uma recone-

    xo com a nossa identidade , com

    a diversidade do povo brasileiro.

    E essa vivncia

    da experincia da

    infncia por meio

    da experincia do

    cinema desencadeia

    uma reconexo com

    a nossa identidade,

    com a diversidade

    do povo brasileiro.

    Altamira, PA

    Abadia, MG

    Territrio sem fronteiras 35TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS34

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    Territrio sem fronteiras 35TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS34

    Assistir a um bom filme e observar essa movimentao fundamental para alimentar nossa utopia e

    cuidar de ns, educadores, pais, crianas, artistas pessoas que assumem responsabilidade pela in-

    fncia, pelo desenvolvimento humano e pelo mundo.

    Gosto muito da frase da filsofa poltica Hannah Arendt (2000, p. 247): A educao o ponto em que

    decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e, com tal gesto,

    salv-lo da runa que seria inevi tvel no fosse a renovao e a vi nda dos novos e dos jovens. Poucos

    lugares como o cinema s o to inspiradores e propcios para viver o amor pelo outro.

    Vamos agora aproveitar tal riqueza cinematogrfica, antropolgica, potica, educacional e afetiva que

    a equipe que realizou essa longa e prazerosa expedio est nos oferecendo!

    Referncias bibliogrFIcasARENDT, Hannah. A crise na educao. In Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 2000.

    BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e tcnica, arte e poltica. Ensaios sobre literatura e histria da

    cultura. So Paulo: Brasiliense, 1987.

    LARROSA BONDA, Jorge. Notas sobre a experincia e o saber de experincia. Revista Brasileira de Educao, Jan/

    Fev/Mar/Abr 2002 N 19.

    NICHOLS, Bill. Introduo ao Documentrio. Campinas: Papirus, 2005.

    a refletir sobre o que vemos, mas a mudar nosso olhar e at nosso comportamento. O

    poder da linguagem prpria do cinema vai muito alm da tcnica envolvida e da construo

    da obra, vai muito alm de educar e influenciar.

    As imagens e a construo narrativa do filme Territrio do Brincarnos inquietam e fascinam

    tambm por sua essncia potica. Bill Nichols (2005, p. 138), um dos principais pensado-

    res de estudos de cinema nos Estados Unidos, diz que esse tipo de documentrio potico

    nos d uma possibilidade de conhecimento por meio do estado de nimo, do tom e da

    relao de afeto. E essa uma ferramenta poderosa para a reflexo e formao.

    Se por um lado somos bombardeados por uma enxurrada de contedos de todos osgneros supostamente qualificados para a TV como documentrios, reality shows e

    pretensas sries de experincia, mas que na verdade no transmitem nada , o do-

    cumentrio de Renata e David resgata e reconcilia o cinema documentrio com o bom cinema e

    remonta s origens do cinema documental ligado pesquisa etnogrfica e ao fascnio das pesquisas

    antropolgicas sobre povos e culturas.

    Utopia e responsabilidade

    Retomando o tema cinema e educao, eu vejo um momento particularmente feliz e crescente dasociedade se organizando na busca de novas formas de aprendizagem, de reflexo, de formao,que abrem mo do uso exclusi vo do nosso aparato cognitivo e vo ao encontro de formas artsticas e,

    portanto, mais sensveis.

    E o cinema agua o desejo, mobiliza os sonhos e amplifica as possibilidades em torno dessa outra

    forma de aprendizagem e formao. So muitos os lanamentos de filmes, dentro e fora do circuito

    tradicional, exibies nos mais variados espaos, formais e no formais, e at mostras, como a Ciranda

    de Filmes1, que geram um movimento que cresce e que est sensibilizando, articulando e mobilizando

    pessoas de diferentes realidades e aptides para as causas da infncia e da educao.

    1 Primeira mostra de filmes do Brasil com foco em infncia e educao. Foi coordenado por Patrcia Dures e AnaClaudia Leite.

    Fazer do gigantesco

    aparelho tcnico

    do nosso tempo o

    objeto das inervaes

    humanas essa

    a tarefa histrica,

    cuja realizao d

    ao cinema o seu

    verdadeiro sentido.

    Walter Benjamin

    Jaguaro, RS

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    O olhar antropolgico por dentro da infnciaAdentrando nas casinhas das crianas

    Adriana Friedmann

    Olhares atentos pela fresta da janela da vida das crianas

    Encantamento, alegria, surpresa, cumplicidade, compaixo,

    impulso de estar junto, curiosidade. Essas so algumas das

    emoes que possvel experimentar quando observamos

    crianas nos seus habitats. Mas importante saber que,

    quando chegamos perto, comeamos a brincar, danar, cantar,

    pintar ou conversar com elas, algo mudou naquele mundinho

    que era s delas antes de a gente aparecer.

    Olhar antropolgico, olhar pesquisador, olhar curioso, olhar inquieto. O lhar do olho, do corpo, docorao e da cabea. E tantas emoes e pensamentos abrindo espao dentro do nosso ser.Para incio de conversa, preciso entender o que antropologia: uma cincia social que estuda os seres

    humanos e, com base em um olhar sensvel, orgnico, microscpico, observa seus comportamentos,

    Entre Rios, MA

    O olhar antropolgico por dentro da infncia 39TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS38

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

    20/55

    O olhar an ropolgico por den ro da infncia 39ERRI RIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS38Reconhecer essas aptides e potencializ-las um dos grandes desafios dos educadores. Isto respei-

    tar a singularidade de cada criana.

    importante compreender que as crianas chegam ao mundo com uma herana biolgica; possuem

    identidade, temperamento e essncia nicos e diversos; e crescem em contextos familiares e comuni-

    trios multiculturais, que influenciam seu desenvolvimento como seres humanos.

    Compreender a complexidade do ser humano e saber que suas razes e as bases de sua formao

    acontecem j desde o ventre materno e se prolongam de forma muito intensa e fundante nos primei-

    ros anos de vida fundamental para o desafio de educadores, professores e instituies que acolhem

    crianas pequenas.

    A delicadeza de olhar para as crianas

    Quando se fala em olhar, observar, escutar crianas, adentramos um uni-verso muito delicado, muito ntimo, pelo qual, antes de mais nada, pre-cisamos ter grande respeito e reverncia. O universo das crianas sagrado.

    E, nesse sentido, so necessrias muita delicadeza e a humildade de ver-

    dadeiramente nos curvarmos e pedir licena para adentrar os espaos

    sagrados infantis.

    Para chegar a esse movimento, h um longo percurso essencial na trajet-

    ria dos educadores: perceber a importncia de criar tempos e espaos de

    autonomia e liberdade de expresso, de escolha e movimento para as crian-

    as. Professores e educadores, temos sido formados para propor, intervir,

    sugerir, ensinar.

    A abordagem que o olhar e a postura antropolgicos propem tomar dis-

    tncia, observar, silenciar e respeitar o outro exige um trabalho anterior

    do educador consigo mesmo: compreender que nem sempre, nem de forma

    automtica, suas intervenes ou propostas constituem garantia de que a

    criana ir se transformar, aprender alguma coisa ou se desenvolver.

    Uma confisso: sempre me

    inquietou, desde minha

    adolescncia, poca na qual

    comecei a trabalhar com

    crianas, o quanto elas no eram

    compreendidas nem respeitadas

    pelos adultos. O passado, as

    vivncias e as memrias familiares

    que cada um tem so muito

    reveladores do adulto em que

    nos transformamos. O que nos

    inquieta ou nos mobiliza hoje

    com relao s crianas tem

    total conexo com nossa prpria

    infncia. Por isso, talvez, me

    tornei uma pesquisadora do

    universo infantil... Com toda

    delicadeza e respeito que a credito

    que as crianas merecem.

    gestos, expresses, culturas, rituais,

    linguagens e temperamentos, mani-

    festaes que acontecem no cotidia-

    no dos diversos grupos.

    No mbito da antropologia surgiu,

    na dcada de 1980, um interesse

    em olhar para os grupos infantis. Os

    pensadores e as pesquisas aponta-

    ram que as crianas tm linguagens

    e culturas prprias, so atores so-ciais e tm voz, necessidades e inte-

    resses diversos, que variam confor-

    me o contexto no qual elas crescem

    e se desenvolvem.

    A grande diferena entre os gru-

    pos infantis e outros grupos que

    as crianas esto em permanente

    desenvolvimento, motivo pelo qual

    sua observao, sua escuta e seu

    conhecimento tornam-se muito mais complexos e desafiadores. So tarefas desafiadoras tambm

    porque quem observa, geralmente o adulto, j foi criana um dia: ao mesmo tempo em que observar

    as crianas lhe causa estranhamento, causa ainda, em determinadas situaes, familiaridade, um

    dj vu de situaes provavelmente vivenciadas na prpria infncia.

    Alm disso, deparamos com o fato de que crianas pequenas, como os bebs, no falam e se mani-festam por meio de outras linguagens expressivas, a saber: brincadeira, expresso musical, artstica,

    corporal, gestual, entre outras. Outras expresses do estado da arte das crianas se m anifestam em

    forma de doenas, atitudes, reaes, temperamentos, todas elas falas absolutamente reveladoras e

    simblicas do universo infantil.

    Essas expresses perduram no decorrer de toda a vida do ser humano, mesmo depois da aquisio da

    linguagem verbal falada e escrita. Cada indivduo tem maior facilidade de expresso por meio de uma

    ou de outra linguagem, mas, infelizmente, elas vo sendo deixadas de lado no decorrer da e scolarizao.

    Alto de Santa Maria, ES

    O olhar antropolgico por dentro da infncia 41TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS40

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    4140Olhar pode evocar tambm a ideia de cuidar. Quem olha no necessariamente v.

    E quem observa est se colocando a servio de (ob-servar), atitude de real mer-

    gulho e respeito, tambm a partir das percepes do observador. E do silncio.

    Assim, o que se v o que se ! Diferentes adultos podem observar a mesma

    criana ou o mesmo grupo infantil e, certamente, os olhares e as percepes sero

    diferentes: cada um v desde o seu interior e enxerga aquilo que faz parte do seu

    repertrio emocional, das memrias afetivas da sua prpria infncia e dos seus

    valores e parmetros. Por isso, olhar crianas de forma antropolgica implica uma

    profunda tica e respeito por elas e uma autntica conexo com nosso ser e com

    as emoes que vm tona durante as observaes.

    Assumir um olhar antropolgico implica, de forma constante, se colocar na pele do outro, acolher, ler

    o mundo das crianas desde o lugar delas, em dilogo com as nossas percepes adultas e com a nossa

    criana interior. No tarefa fcil, pois significa um permanente e profundo processo de autoconhecimen-

    to, uma conexo e presena, colocando as crianas nossa frente; implica silenciar nossos impulsos e

    ouvir nossos insights. Trabalho para uma vida!

    de casa!

    Quando algum quer nos fazer uma visita ou passar pela nossa casa, costumaavisar, se anunciar e pedir licena para entrar. Dessa mesma forma respei-tosa, ns devemos chegar s casinhas na vida das crianas , o lugar mais

    sagrado, secreto e ntimo que elas tm; lugar onde existem rituais, esconderijos,

    tesouros; espaos e tempos que guardam mundos dentro de mundos, fantasias,prolas e muitas emoes.

    Quando adentramos o mundo de um outro, interferimos: mesmo com a mai or de-

    licadeza que possamos ter nesse noss o movimento, interrompemos, modificamos

    de alguma forma a cena e o processo do outro. No somente o estrangeiro

    que tenta se familiarizar com sua c hegada a um territrio estranho, mas tambm

    as crianas visitadas acabam mudando o que faziam para receber o visitante.

    E quando voc achar que

    encontrou a resposta ou a

    explicao... a, sim, duvide!

    Certamente h muito mais

    a descobrir por trs e

    por baixo!

    Chegamos de surpresa

    ou fazendo barulho?

    Pregamos um susto nas

    crianas ou nos anunciamos?

    Atravessamos suasbrincadeiras ou as

    observamos de longe?

    Brincamos junto e nos

    tornamos crianas por

    alguns momentos?

    Podemos? Devemos?

    A postura antropolgica muito mais sugere a necessidade de nos abrirmos para aprender com os ou-

    tros e dos outros das crianas: apreender e sentir suas realidades, seus momentos, seus valores,

    seus jeitos de ser e viver suas infncias naquelas oportunidades em que, de perto, temos o privilgio

    de acompanhar esses retalhos de sua vida.

    H um movimento discursivo, nos dias atuais, de escuta e participao infantil que virou moda e, por

    isso mesmo, muito perigoso. importante compreender que ouvir as crianas no significa fazer

    suas vontades essa uma forma bastante simplista de compreender o que o olhar antropolgico.

    Por outro lado, devemos distinguir o que olhar, ver, observar

    e o significado de participao infantil: crianas entendidas

    como atores sociais e protagonistas de seus cotidianos.

    Comecemos nos debruando sobre essa ltima ideia: as crian-

    as serem protagonistas ou participarem tem muito mais a ver

    com um movimento espontneo que parte delas no que se

    refere a opinar, expressar o que pensam, vivem e sentem, do

    que com o fato de o adulto induzi-las, com base em pergun-

    tas ou em provocaes, participao e ao protagonismo. A

    participao infantil acontece espontaneamente em algumas

    culturas menos patriarcais, nas quais as crianas j crescem

    mais autnomas e com maior independncia em relao aos

    adultos. Historicamente, no o caso dos grupos infantis em

    grande parte dos contextos culturais no Brasil.

    Dar voz s crianas significa oportunizar tempos e espaos nos

    quais elas possam falar, dizer, expressar-se de forma espon-

    tnea, por meio de suas li nguagens verbais e no verbais, seussentimentos, percepes, emoes, momentos, pensamentos.

    E o que significa ouvir, escutar as crianas? Podemos ouvir e

    no escutar. Escutar tem a ver com estar presente, conter a

    tendncia que ns, adultos, temos de querer entender; e ter a

    coragem de entrar por inteiro no universo das crianas a partir

    das nossas impresses, sensaes e percepes.

    Altamira, PA

    O olhar antropolgico por dentro da infncia 43TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS42

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    O fato de as crianas se expressarem por meio de mltiplas linguagens constitui desafio maior para

    aqueles que querem tornar seus olhares sensvei s e apurados para com o mundo das di versas infncias

    e crianas; para aqueles que querem conhecer, reconhecer, experimentar e tentar ler essas diversas

    linguagens expressivas: musicais, corporais, ldicas, artsticas, gestuais, verbais.

    Tesouros infantis, dirios antropolgicos

    H quem filme, fotografe, grave, escreva, esboce, pinte, desenhe, coloque

    msica e movimento ou expresse poeticamente o que percebe, sente e vquando observa crianas em seus habitats. Qualquer meio vlido, desde que

    registremos o que vemos, ouvimos e sentimos.

    As relaes que estabelecemos como observadores-antroplogos no esto

    isentas de conflitos, j que nem sempre nossa presena e nosso olhar so bem-

    -vindos: as crianas das diversas culturas podem sentir nossos olhares como um

    controle, o que talvez iniba sua espontaneidade! H, aqui, uma relao assim-

    trica estabelecida, porque, por mais que haja a inteno de respeitar e pedir

    licena para entrar no mundo das crianas, ns, adultos, no pertencemos a

    ele: somos estrangeiros, diferentes.

    Para que essa aproximao seja real e o adulto observador no seja nem fan-

    tasma nem heri, um equilbrio necessrio, por meio do qual tanto as

    crianas observadas quanto os adultos observadores se aproximem, em um

    dilogo mais humano e verdadeiro. O fato de o adulto j ter sido criana um

    dia pode ser uma ponte possvel para a conversa.E quando samos do campo da observao? Quando deixamos nossos escritos

    e nossas percepes descansando, e voltamos para eles mais tarde? O que acontece? Por que essa

    releitura importante? aqui que se torna possvel entender o que era das crianas e o que era da

    nossa criana interior, que fica tocada quando em silencioso contato com outras. Podemos entender o

    que desperta em ns determinada criana, suas reaes, suas expresses e vivncias. Mas precisamos

    discriminar o que a realidade dela e o que se mistura com as nossas experincias internas, passadas

    e/ou presentes: o que projetamos nas crianas observadas e o que elas projetam em ns.

    Religio significa religao com

    o ser mais profundo. As crianas

    so profundamente religiosas,

    religadas, independentementeda religio externa oficial na

    qual foram orientadas por sua

    famlia ou comunidade. Ns,

    adultos, nos desconectamos

    dessa profunda conexo

    interna. Para nos religarmos a

    ela, precisamos nos reconectar

    antes com o nosso ser

    profundo, com a nossa essncia.

    com as crianas e junto delas

    que temos essa oportunidade.

    Entrar no templo delas

    se elas permitirem a

    possibilidade do resgate da

    nossa religio (re-ligao),

    compreendendo a sacralidade

    da religiosidade delas.

    Como antroplogo, eu s sei que nada sei...

    Ser ou tornar-se antroplogo, pesquisador, observador dos universos infan-tis no depende unicamente de ter estudado antropologia. necessrio,sim, compreender os conceitos fundantes desta cincia so cial a fim de assimilar

    que o ponto de partida dessas viagens acontece desde um outro territrio:

    a paisagem do outro. Entender que a postura totalmente diferente da de um

    educador-professor-ensinante.

    O antroplogo no chega para ensinar algo, mas para aprender; no aparece

    para intervir, mas para silenciar, respeitar e acolher. O olhar antropolgicorelaciona-se muito mais com tomar distncia e conhecer os diversos univer-

    sos infantis (tantos quanto os grupos, as culturas, os contextos e as prprias

    crianas); e tambm se relaciona com evocar o tempo de infncia do pesqui-

    sador adulto. Relaciona-se muito mais com o conhecer as diversidades das

    realidades infantis e a complexidade das profundezas dos seus mundos inte-

    riores do que com interferir ou querer corrigir ou julgar. O olhar antropolgico

    relaciona-se muito mais com o observador ficar em contato com suas prprias emoes, percepes

    e diversas vozes internas do que

    com interpretar e querer nomear

    ou classificar aquilo que as crian-

    as expressam.

    Assim, para poder observar e escu-

    tar as crianas, necessrio que o

    observador-pesquisador-educador

    se dispa de pr-conceitos e de verda-des absolutas e se abra para o dife-

    rente, para tudo aquilo que lhe causa

    estranheza, para que aprenda novas

    linguagens e adentre outras culturas.

    Ou para corroborar e evocar aquilo

    que lhe to familiar, porque tam-

    bm o vivenciou em sua infncia...

    O antroplogo como um

    viajante que chega a um pas

    estrangeiro: no conhece a lngua,

    os costumes, os segredos, os

    cdigos ou os lugares sagrados

    daquela populao.

    O antroplogo um estranho que

    precisa aprender a se comunicar

    com os habitantes daquele grupo.

    O olhar antropolgico para as

    casinhas das crianas as vidasdas crianas exige abertura

    para o novo e para aprender sua

    lngua, seu dialeto e, talvez, se

    elas permitirem, partilhar dos

    seus segredos e esconderijos.

    Alto de Santa Maria, ES

    O olhar antropolgico por dentro da infncia 45TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS44

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    Paisagens infantis

    A s viagens antropolgicas aos mundos das crianas, percur-sos por diversas trilhas e o contato com inmeras paisagensinfantis comeam pela possibilidade de visitar seus espaos e tem-

    pos de brincadeiras, de esconderijos, de solides, de espontanei-

    dades; seus recreios, seus cadernos, suas produes. Visitar suas

    casinhas, acompanhar seus percursos, descobrir suas preferncias,

    se maravilhar com suas descobertas; se sensibili zar com suas dores,

    se encantar com seus saberes. Rolar com elas, brincar junto, pintar

    junto. Viver intervalos de suas vidas com elas e reviver os da nossa

    infncia, em um voltar a ser criana por alguns instantes.

    Para que essas brechas sejam p ossveis, como professores-educado-

    res no podemos temer abrir as janelas da autonomia, da liberdade

    de tempos sem relgio e de espaos cujas paredes sejam constru-

    das pelos tijolos da fantasia e da imaginao infantis, a fim de que

    as crianas vivam plena e significativamente suas infncias.

    Qualquer ser humano sensvel

    ao outro pode tornar-se

    antroplogo. Mas para os

    educadores talvez seja um

    desafio maior, pois necessrio

    mudar nosso ponto de vista

    e descer do nosso pedestal

    de ensinantes para o de

    aprendentes. Mudar a

    convico de que temos

    o poder, ou os caminhospara ensinar ou interferir no

    processo de desenvolvimento

    das crianas, para a certeza de

    que fundamental conhec-las

    profundamente a fim de adequar

    propostas, espaos e atividades.

    Mas que fique claro:

    no se trata de abrir ou de criar esse tempo-espao

    na vida das crianas para que possamos observ-las.

    Trata-se de oferecer possibilidades de elas viverem

    de forma inteira suas infncias para que a essncia

    particular de cada uma possa se manifestar, se

    religar com suas profundezas, se reconhecer!

    E, se elas se abrirem para nos acolher, a sim, ser

    privilgio aprender das suas vidas!!!

    So Paulo, SP

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    O brincar na comunidadeUma comunidade se transforma com a arte ldica

    Ute Craemer

    Fazendo uma pesquisa sobre a etimologia da palavra brincar, encontrei algo surpre-endente: ela nica, no derivada de nenhuma raiz. Achei isso significativo, pois obrincar algo sui generis, to essencial para os seres vivos que no necessita ser derivado

    de nada. O brincar !

    Ser que conseguimos imaginar uma criana sem brincar? Ser que conseguimos imagi-

    nar uma casa, uma escola, uma comunidade, qualquer espao sem a alegria das crianas

    brincando? Imaginar essa ausncia d at um arrepio na pele! Seria um lugar estril, seco,

    de plstico, artificial e a criana e os adultos se tornariam seres com alma ressecada,

    sem fantasia, sem possibilidade de se expressar. Resumindo: teramos um ser humano sem

    expresso e, por conseguinte, um espao sem vida.

    A criana a expresso mais pura e espontnea da fora vital, a fora divina da vida, da

    criao. Criar juntar o mundo material, transformando-o por meio do mundo imaginativo

    de nossa alma. Como e xpressa Schiller (1992): entre o impulso da forma e o impulso da vida, surge algo

    maior o impulso ldico. Brota da fora de criao que reside em ns, como uma centelha divina. O

    ser humano humano na medida em que ele cria de dentro para fora: cria pensamentos, sentimentos,

    aes. E o incio dessas criaes o brincar. Impedir ou reduzir o brincar livre e espontneo significa

    Ser que conseguimos

    imaginar uma criana

    sem brincar? Ser

    que conseguimos

    imaginar uma casa,

    uma escola, uma

    comunidade, qualquer

    espao sem a

    alegria das crianas

    brincando? Imaginar

    essa ausncia d at

    um arrepio na pele!

    Altamira, PA

    O brincar na comunidade 49TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS48

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    inventam brincadeiras e jogos. Uma comunidade se humaniza por meio dessa vida brincante

    das crianas. E, mais ainda, se a ela juntamos outra fonte de criatividade: a arte! Msica, a

    Santa Ceia, a Folia de Reis, a Festa da Lanterna levando luz escurido.

    Uma comunidade se transforma com a arte ldica. Por qu? Porque um espao de moradia s

    se torna uma comunidade no sentido de lcus de uma vida comunitria na medida em que

    ele seja preenchido de vida de maneira condizente com o humano que existe no ser humano.

    Uma favela, por exemplo, no deveria ser s um lugar de moradia (precria), um aglomerado

    de casas com gente trabalhando fora, mas um lugar de vida humanizada. S quando l se

    desenvolve a vida com a presena ativa de crianas, jovens e adultos , ela se torna verda-

    deiramente humana, uma comunidade viva de seres humanos.

    J imaginaram uma criana com um violino na mo saindo de um barraquinho e se encontran-

    do com outra, tambm com um violino, e outra, com um violoncelo todas indo para uma

    escola de msica no meio de uma favela? E quando algum se aproxima, j escuta os sons de uma

    msica clssica ou de um reisado? Imaginemos como a arte pode mudar o cli ma de uma favela! De um

    conjunto, de um condomnio...

    Da mesma forma que o ser humano, uma comunidade tem um corpo fsico suas casas, seus cami-

    nhos, vielas, escadarias. Tambm tem um corpo vital, criado aos poucos: a vida ali flui como o sangue

    em nosso corpo, carregado de alimento. Uma comunidade torna-se um organismo vivo: com corpo

    fsico, corpo vital e alma, com uma identidade. Esse processo acontece no decorrer de um longo tempo

    graas aos esforos dos seres humanos. Um processo contnuo de transformao, com suas conquistas

    e decepes como toda a vida...

    Tudo isso tem seu incio com o nen brincando com suas prprias mos; as crianas brincando livre-

    mente, sem muito material, sem muitos brinquedos, usando sua fantasia e transformando a si prpriase ao seu entorno. E o apogeu se vivencia na arte, nos mutires comunitrios, nas festas...

    Referncias bibliogrFIcasSCHILLER, F.Cartas sobre a educao esttica da humanidade. So Paulo: EPU, 1992.

    SAINT-EXUPERY, A. Terra dos homens. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1975.

    Uma comunidade se

    humaniza por meio

    dessa vida brincante

    das crianas. E,

    mais ainda, se a ela

    juntamos outra fonte

    de criatividade: a arte!

    Msica, a Santa Ceia,

    a Folia de Reis, a Festa

    da Lanterna levando

    luz escurido.

    reduzir o potencial de cada ser de se tornar

    cada vez mais humano. Alm disso, o brin-

    car mistura idades, sexos, povos, culturas

    assim, ele se torna contemporneo. Por

    isso, o brincar criativo faz parte dos direitos

    humanos universais.

    Precisa pouco para essa vontade intrnse-

    ca da criana vir tona. Um pedacinho de

    pau pode tornar-se um barco, um celular,

    uma mamadeira. Juntado com alguns pre-gos, pode virar um banquinho para a casa

    de boneca, pode virar TUDO! Alguns panos

    se transformam em boneca, em esconderi-

    jo, em palhao, em... O adulto tem apenas

    a tarefa de organizar o espao criativo para

    que a fantasia da criana possa ser nutrida.

    Apesar da tentao do tablet, dos jogos

    eletrnicos, do celular, das redes sociais, as crianas que bom! continuam brincando. Pode estar

    mais difcil, talvez, achar um ambiente propcio para a brincadeira, mas essa necessidade intrnseca da

    criana consegue resistir seduo hipnotizante dos meios eletrnicos. to fcil produzir um coelho

    de Pscoa na tela to mais difcil cri-lo de feltro, de l ou numa pintura de autoria. Mas o que

    acontece na alma da criana duradouro: a alegria de ter vencido um desafio. o obstculo que faz

    nascer o ser humano, como disse Saint Exupry, em seu livro Terra dos homens.

    A alegria de criar com as prprias mos se transmite na casa, na escola, na praa pblica, na comunida-

    de, na favela. Esses espaos se t ransformam, desenrijessem-se, contrabalanam a tendncia quadrada,

    endurecedora de uma comunidade, como um conjunto habitacional, um condomnio espaos criados

    base do medo , praas pblicas que muitas vezes servem ao vcio.

    No trabalho da favela Monte Azul1pudemos perceber como cada vez mais a dura vida das pessoas

    aliviada pelos gritos de alegria das crianas quando correm, brincam, pulam na piscininha da mina,

    1 Saiba mais em: www.monteazul.org.br. Acessado em 19/3/2015

    Alto de Santa Maria, ES

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    Culturas populares, brincar e conhecer-se

    Soraia Chung Saura

    Conhece-te a ti mesmo. Essa frase, base da filosofia socrtica1, esteve inscrita dizem que

    em letras de ouro na via de entrada do Orculo de Delfos, um local frequentado, por muitas

    geraes, para conhecer o presente e o futuro. Dedicado a Apolo, deus da luz, do sol, da verdade e

    da profecia, o Conhece-te a ti me smo tornou-se inspirao para a construo da filosofia platnica,

    sendo herana reflexiva at os dias de hoje2. Ele nos indicava um importante caminho: para conhecer a

    verdade e o futuro, comece por voc mesmo.

    Creio que o t rabalho de campo do projeto Territrio do Brincar, realizado com critrio e profundidade

    nos locais onde esteve inserido 3, intenta mostrar, entre tantos repertrios passveis e possveis da in-

    fncia, a busca dessa verdade e do autoconhecimento que as crianas realizam, capaz de transform-

    -las em seu prprio Ser de Sujeito. Na verdade, todos ns buscamos isso de inmeras formas, em

    jornada viva desde a infncia: conhecer-nos mais e melhor e, assim, encontrar nosso lugar no mundo.Professores ou crianas, procuramos decifrar nossos prprios mistrios e enigmas, nossas emoes e

    1 Do filsofo grego Scrates, 479-399 a.C.2 Esse conhecimento notadamente atrelado ao pensamento e razo. Aqui, utilizamos a expresso para desig-nar um tipo de saber que no dissocia mente e corpo, mas integra aspectos do inteligvel e do sensvel.3 Considero o projeto Territrio do Brincar extremamente cuidadoso na coleta de materiais de campo. O processoenvolveu, a cada etapa, longos perodos de permanncia junto s famlias e s comunidades, estabelecendo vncu-los profundos e imensa cumplicidade com as crianas.

    Acupe, BA

    Culturas populares, brincar e conhecer-se 53TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS52

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

    27/55

    a manuteno a recriao, a ressignificao e a transformao. Traduzindo, mantendo-se seus ele-

    mentos intrnsecos, as expresses populares podem ser realizadas em qualquer lugar, ainda que com

    variaes do formato de sua origem.

    A tradio importante no para ser mantida, mas repetida, mesmo com variaes, como exerccio

    de aprofundamento. Explico: nosso encontro com o mesmo de novo e de novo importante para

    a elaborao de questes latentes. Ainda que uma festa se repita anualmente, ela nunca ser expe-

    rienciada pelos participantes como a anterior. A festa pode ser a mesma, mas o mundo no mais o

    mesmo, e as pessoas tambm no so mais as mesmas.

    Nas sociedades ocidentais , as festas das culturas populares so, a cada ano, m ais valorizadas e reco-

    nhecidas. Trazem diferentes perspectivas para o mundo contemporneo festejar a vida, integrando a

    morte. Tudo, com poucos recursos, mas de maneira sublime, enfeitando o espao e colorindo o mundo.

    Repetem-se anualmente para exercitarmos a temporalidade de maneira incorporada, e no externa

    nossa existncia.

    O ano cclico onde voltamos ao mesmo ponto mais velhos, mais sbios, tendo errado e acertado

    nos faz experienciar um movimento de eterno retorno, a fim de atuarmos com substancialidade e

    sentimentos provocados no contato com o outro, as maravilhas e os assombros de nossas

    emoes, mente e corpo. Qui, desvendar onde nosso ser se revela em potncia e, assim,

    devolv-la ao mundo.

    Ao olharmos para nossa brasilidade, revela-se nossa humanidade: somos um povo rico e di-

    verso, reconhecidamente alegre e festivo, a despeito dos dissabores. Festas e manifestaes

    populares espalham-se lindamente por todo o territrio nacional, celebrando, sobretudo, o

    fato de estarmos vivos em um mundo repleto de mistrios insolveis. Terrenos embandeira-

    dos, fogueiras descomunais, barraquinhas de comidas elaboradas, cantorias que atravessam

    noites, danas habilidosas, a viso de brilhos e luzes em noites enluaradas e estreladas. Reis,

    rainhas, santos, bichos e monstros misturam-se animadamente em inumerveis terrenos.

    Embora muito heterogneas, as culturas populares no s no Brasil como no mundo e

    quaisquer que sejam apresentam um arcabouo imaginal comum, que facilmente identifi-

    camos na estrutura de todas elas. Isso porque, indepe ndentemente do meio no qual estejam

    inseridas ainda que dialoguem em profundidade com a realidade, com o ambiente e com a

    cultura local , as manifestaes operam com temas comuns humanidade em geral.

    So consideradas tradicionais por causa de ssas caractersticas atemporais. To antigas que no pode-

    mos precis-las historicamente. Alm de se perderem na histria linear dos povos, no se localizam em

    uma geografia definida. Esto em muitos lugares, sob muitas diferentes formas, praticadas em muitas

    sociedades, ainda que com variaes de regras, roupagens, formas e estilos.

    As pesquisas nos levam ao incio de uma humanidade que pensa e repensa suas relaes com a natu-

    reza e sua simbologia, dialogando em profundidade com as questes fundamentais da conscincia do

    homem, s quais a cincia ainda no conseguiu responder: Quem somos?, Para onde vamos?, O

    que fazemos aqui?. Assim, dizemos de um alicerce enraizado que no pertence a esse ou quele povo,

    mas humanidade em geral, por estar situado no legado de seu patrimnio imaginrio.

    A ideia de tradicional est recorrentemente associada de preservao e ao antigo. Mas o que nos

    mostra o movimento dessas expresses culturais que esse patrimnio biocultural no est a para ser

    preservado a partir de sua existncia longeva. Quando se preserva, guarda-se, imobiliza-se, petrifica-

    -se. Quer-se como est, e no de outra maneira. Ao contrrio da ideia de imobilidade, a diversidade de

    possibilidades das festas nos mostra um universo dinmico e ativo, em constante mutao, recorrente,

    de forma no unificada e ainda a ser desvendado. Assim, a ideia de tradio sugere mais do que

    Ao contrrio

    da ideia de

    imobilidade, a

    diversidade de

    possibilidades

    das festas nos

    mostra um universo

    dinmico e ativo,

    em constante

    mutao,

    recorrente, deforma no unificada

    e ainda a ser

    desvendado.

    So Luiz, MA

    Culturas populares, brincar e conhecer-se 55TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS54

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    to do medo e scravido. Para Aristteles, a virtude est no meio termo entre a fraqueza e o combate

    (Chau, 1995). Mas s com repetio, aprofundamento e crescimento podemos elabor-los no corpo:

    vivendo-os. Experienciar uma manifestao apenas uma vez n o suficiente para acessar esse Territ-

    rio do Brincar, que nos levar s entranhas do Conhece-te a ti mesmo.

    Muito me agrada que as expresses p opulares adentrem os muros escolares, seja nas aulas de educa-

    o fsica, por meio da temti ca da cultura corporal do movimento, seja nos festejos juninos. Acho mui-

    to bonito que as crianas aprendam, anualmente, diversas danas de repertrios diferentes. Concordo

    que so uma graa, em fora e beleza, os elementos estticos das festas que invadem as quadras das

    escolas. Mas sinto um dissabor ao pensar que, muitas vezes, as crianas esto tendo contato apenas

    com elementos tcnicos e cnicos das manifestaes (aprender a tocar, cantar e danar, por exemplo),deixando de lado o motivo principal conhecer-se em forma e potncia, desafiar-se, provocar-se e

    trabalhar-se ao longo dos anos com o que a manifestao oferece. Esse me parece ser o principal

    aprendizado das manifestaes e do brincar.

    Foi o educador Tio Rocha quem disse: Como se a escola, querendo mostrar aos seus alunos a

    imensido e o impacto do azul do mar, trouxesse um pouco de gua salgada em uma garrafinha pet.

    Muito se pode dizer do mar por meio de uma amostra de suas guas. Mas nada se pode apreender da

    experincia e da vivncia do mar. Assim, reitero: as festas das manifestaes populares

    no esto no mundo para ser apenas apresentadas ou vistas por uma plateia embora

    isso seja muito belo e gratificante. Elas esto para ser vividas em todas as suas dimense s.

    Mas como se faz para viv-las em um contexto que no o delas, por exemplo, em um

    grande centro urbano ou em uma escola? So muitos os contedos contidos em cada mani-

    festao popular. So tantos que parece im possvel reproduzi-los em um contexto diferente

    de onde ela se origina. E se resolvermos fazer o Nego Fugido da Bahia? Reproduzir a festa

    das Caretas de Acupe? O Bumba meu boi do Maranho? A Folia de Reis mineira? O Cavalo

    Marinho pernambucano? Cada uma possui seu repertrio particular, com linguagens e con-

    tedos prprios. Mas todas elas atuam em tradio, demarcao cclica e temporal, com

    envolvimento de toda a comunidade, sempre com elementos do sagrado, exploratrias de

    mistrios e encantarias da vida, alm de serem muito, muito bonitas.

    s vezes, arriscamos fazer uma manifestao sem conhec-la em profundidade, apenas

    nos familiarizando com seus passos de dana, estilo musical e cantoria. Mas, se ano a ano

    a repetimos, ano a ano todos aprenderemos. Ano a ano, um pouco mais. E de ano em ano,

    Como se a escola,

    querendo mostrar

    aos seus alunos a

    imensido e o impacto

    do azul do mar,

    trouxesse um pouco de

    gua salgada em uma

    garrafinha pet. Muito sepode dizer do mar por

    meio de uma amostra

    de suas guas. Mas

    nada se pode apreender

    da experincia e da

    vivncia do mar.

    Tio Rocha

    aprofundamento na matria humana.

    Se todos os anos realizarmos, com

    profundidade, jogos, festas e rituais,

    os transformaremos em uma tradio.

    A tradio integra o tempo: todo ano,

    de novo e de novo. Assim que as

    festas e os jogos tornam-se orgnicos

    (importantes, como manter-se vivo) e

    carregados de sentido (dando signifi-

    cado nossa existncia).

    Conhece-te a ti mesmo premissa

    do exerccio de repetio, do mesmo

    jogo, da mesma brincadeira, da mes-

    ma festa. Um bom exemplo so as

    imagens do Territrio do Brincar, seu

    registro minucioso de duas emblem-

    ticas manifestaes baianas: o Nego

    Fugido e as Caretas de Acupe. No passa despercebido a quem as assiste, o terror diante dos bichos

    e dos homens, expresso em olhos de crianas pequenas e ainda menores. Enrodilham-se apavoradas

    no pescoo de suas mes, tias e madrinhas. Choram com autenticidade comovente. Ainda assim, pro-

    tegidas nos braos familiares, anseiam olhar para o motivo de seu pavor. Mostram que medo e fascnio

    so confrades de uma mesma vivncia, um nos atrai e o outro nos mantm apartados: tm medo, mas

    anseiam olhar. um par correligionrio no des afio humano da existncia. No-quero-mas-quero.

    Crianas um pouco mais velhas j se imbuem de coragem e enfrentamento: ousam chegar mais perto

    e cutucar as feras, para logo depois correr em louca debandada. Haver um dia em que se tornaroamigas de seus algozes, iro segurar-lhes a mo fascinadas, investigando suas roupagens e o que

    vai por dentro. E um dia vestiro as fantasias monstruosas, aterrorizando outras crianas, que pode-

    ro viver, desse modo, a superao de medos, pesadelos e dramas internos. A coragem e a valentia

    brotando do mais fundo do seu ser. O enfrentamento e o receio, propulsores aos quais estamos

    submetidos desde muito cedo.

    Nunca o mesmo aquele que, nas narrativas e nos dramas humanos sejam eles literrios, fantsticos

    ou reais , enfrentou monstros e perigos e a eles sobreviveu. Espinosa j dizia que o no enfrentamen-

    Entre Rios, MA

    Culturas populares, brincar e conhecer-se 57TERRITRIO DO BRINCAR DILOGO COM ESCOLAS56

  • 7/23/2019 Territrio Do Brincar - Dilogo Com Escolas

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    falta. Identificamos deficincias para logo

    tentar suprimi-las. H inferncia de me-

    lhorar no outro uma habilidade que ele

    no tem, e para a qual muitas vezes o

    educando no demonstra sequer interes-

    se. A atuao dos mestres, no entanto,

    ser sempre em favor do potencial da

    pessoa: reforando interesses, habilida-

    des manifestas, encorajando mergulhos

    na sua fora interna e motriz, atuando

    em favor da conscincia desejante que seapresenta. As deficincias so sistemati-

    camente ignoradas por eles.

    O mestre assim o mais experiente, com

    sensibilidade para perceber as nuances

    de uma vida que desperta, independen-

    temente da idade. Aprendizes, somos

    todos. O mestre abraa os processos de passagem, as preparaes, o tempo individual de cada um.

    Nunca tem pressa com o discpulo. A tcnica aprender a tocar, cantar, danar, e tudo o que envolve o

    folguedo e sua vivncia corporal no o principal. Ele est a servio da revelao das potencialidades

    e, com base ni sso, de seu aprofundamento e elaborao.4

    Todos eles, mestres, quando indagados como fazem para ensinar, respondem invariavelmente que no

    ensinam:

    No ensino. Fao junto. No tem necessariamente o ensinar, voc aprende muito mais vendo, estando junto,tocando junto, danando, vivendo. Depoimento de Tio Carvalho 5

    4 Vale salientar que essas potencialidades no so nicas nem estanques. Variam e modificam-se, podem sermltiplas e sempre atreladas a aspectos relativos, como histrias de vida e outros fatores individuais da pessoa.Por isso, o saber do mestre um saber de sensibilidade: muitas vezes o prprio aprendiz no reconhece em sisua potncia.5 Tio Carvalho mestre de Bumba meu boi, mentor da brincadeira em So Paulo, no Morro do Querosene, naZona Oeste da cidade. Dirige o Grupo Cupuau, tendo formado muitos educadores, artistas, danarinos e interessa-dos na arte.

    de festa em festa, de dana em dana, teremos uma tradio. E para todos que a vivenciam o que

    inclui estudo, preparao, festa, jogo, brincar, reelaborao para de novo fazer, e assim por diante o

    maior presente pode ser a profecia de Delfos: Conhece-te a ti mesmo. Cada ano, um pouco mais e

    melhor. Grafada em gloriosas letras douradas no ser que se digna a olhar de frente para ela.

    Mensagem dada, eu no posso abandonar o texto sem antes m encionar o condutor principal da brinca-

    deira, educador por excelncia: o mestre. Invariavelmente uma pe ssoa mais velha aquela que s abe

    mais, porque viveu mais , o que j lhe garante autoridade e respeito na estrutura de uma tradio.

    Encontramos, mundo afora, tantos mestres quanto expresses populares. So muitos. E, de tanto bus-

    car compreender essa figura emblemtica, esse personagem-educador, j o considero um arqutipo-

    -educador. Os mestres so verdadeiros doutores da educao.Uma de suas caractersticas a reconhecida autoridade, pois, alm de conduzir a brincadeira, so tam-

    bm uma liderana comunitria. Assim, so consultados no s a respeito do que se relaciona aos fes-

    tejos, mas tambm sobre as grandes decises do coletivo onde esto inseridos. Sabem tudo das can-

    torias e dos rituais, e isso refere-se ao contedo pedaggico e tcnico e de tcnica eles entendem.

    Na hora da festa, cantam, conduzem, organizam. So os primeiros a chegar, os ltimos a sair, como

    professores comprometidos no cuidado com as crianas. M as no nos contedos, precisamente, que

    reside o seu saber. Chamam ateno, sobretudo, suas reconhecidas sensibilidade e intuio. Sabem

    decifrar enigmas dos dramas humanos. Inferem e arriscam. Mas, ouso dizer que o modusoperandidos

    mestres populares est sobretudo na generosidade de sua maestria e ess a inclui silncio e paci ncia.

    Esses mestres, tal e qual seu arqutipo, identificam potncias no grupo de pessoas com o qual tra-

    balham. E atuam em favor dessas capacidades. di sso que voc gosta? i sso que voc quer?, eles

    investigam. Sinalizam o caminho para o interior do educando por meio das potencialidades demonstra-

    das, que diferente de mostrar o caminho a ser seguido, ou apenas ensinar um repertrio.

    O mestre vale-se do repertrio tcnico que tem nas mos para atuar em favor da potncia que enxergano educando. Ele propicia um mergulho interno que gera maiores ou diferentes percepes