Tese Ana Valeria Beserra Costa

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 1 O MITO EM “ A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

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    O MITO EM A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGADE

    JOO GUIMARES ROSA

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    DEDICATRIA

    Aos meus avs sertanejos,

    Fortunato Bernardo e

    Maria Francisca.

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    RESUMO

    O objetivo deste trabalho analisar como Joo Guimares Rosa reinterpreta o

    mito clssico de Dionsio em A hora e vez de Augusto Matraga; ltima novela de

    Sagarana. A estrutura mtica que possui a novela confirma-se no s pela trajetria

    de queda e ascenso de Matraga que a identifica com o mito clssico grego (alm de

    outras narrativas como a biografia de So Francisco de Assis), como tambm pelos

    elementos mticos intrnsecos na narrativa.

    Nessa reinterpretao mtica tambm podemos reconhecer, na nova postura

    de Matraga, um comportamento histrico do Brasil dos anos 30 e 40. Assim, temos,

    na atualizao do mito dionisaco, a racionalizao do mesmo quando podemos

    enxergar nele uma discusso histrica em torno do Coronelismo vigente da poca.

    Matraga, ao regenerar-se, deixa exemplo de comportamento para cada indivduo de

    seu povoado na sua trajetria de renascimento (vis mtico) e, nesse novo

    comportamento, traz um incio de nova ordem para o Coronelismo local (vis

    histrico).

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    ABSTRACT

    The object of this paper is analyze how Joo Guimares Rosa recomprehends

    the classic myth of Dionisio in A hora e vez de Augusto Matraga; the last tale of

    Sagarana. The mythical structure that the tale has confirms itself not even because of

    the career of falling and rise of Matraga which identifies with the classic greek myth

    (besides, it is possible to compare the story to other ones, as the biography of So

    Francisco de Assis), but also because of the mythical elements in the tale.

    In this mythical recomprehension we can recognize, in the new life of Matraga,

    a historical behavior of Brazil in the 1930s/1940s. So, we have, in this up-to-date

    reading of Dionisios myth, the rationalization of itself when we can see a historical

    discussion about the current Coronelismo. Matraga, when he rises, is an example of

    behavior for each person from his village in his career of rising (in a mythical line)

    and, in this new behavior, he brings in a beginning of a new order to the traditional

    Coronelismo (in a historical line).

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    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS..............................................................................................p.06

    INTRODUO........................................................................................................ p.07

    1. CONSIDERAES ACERCA DO MITO1.1. Breve comentrio conceitual ........................................................................p.101.2. Declnio do mito .............................................................................................p.141.3. Permanncia do mito .....................................................................................p.16

    2. MITO EM MATRAGA2.1. Trajetria mtica .............................................................................................p.192.2. Matraga e a hagiografia de So Francisco de Assis...................................p.382.3. Elementos mticos .........................................................................................p.44

    3. MATRAGA E O BRASIL DA POCA ................................................................p.603.1. Nh Augusto: afirmao do Coronelismo local ..........................................p.623.3. Augusto Matraga: reconhecimento de um mundo misturado ...............p.66

    CONCLUSO .........................................................................................................p.70

    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................p.73

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Dr. Marcus Vinicius Mazzari, pela orientao precisa e pela

    generosidade.

    Ao professor Dr. Luiz Roncari e professora Dra. Ana Paula Pacheco, pelas

    sugestes e incentivos durante o exame de qualificao.

    A todo o pessoal do Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada

    da USP, com especial deferncia ao Luiz, responsvel pela rea de ps, pela

    simpatia, generosidade e eficincia.

    Ao Newton da seo de alunos da graduao, pela simpatia e incentivo.

    amiga de sempre Andrea Rodsi, pelo incentivo constante.

    Devo CAPES a Bolsa de Estudos concedida.

    Ao meu marido, pelo eterno companheirismo e apoio.

    minha querida me e aos meus irmos que mesmo de longe sempre

    apoiaram este trabalho.

    A Deus pela vida abenoada que me tem dado e por tudo que possvel

    agradecer.

  • 7

    INTRODUO

    Desde sua estria no campo literrio em 1946, Joo Guimares Rosa tem sido

    considerado um dos maiores escritores da literatura brasileira. Sua rica obra

    compreendida em cinco livros publicados em vida e dois com publicao pstuma

    apresentam-nos, como j dizia lvaro Lins1 num ensaio pioneiro sobre Sagarana,

    uma nova tcnica de representao artstica: a regional e a universal.

    O serto brasileiro (regional/histrico) toma espao em suas narrativas como

    pano de fundo para os dramas da vida humana. Sua arte ficcional de representar a

    realidade sertaneja (nas descries, no registro dos costumes, na fidelidade

    linguagem e cultura populares, nas sutis divises de classes) vale-se sempre de um

    outro plano menos claro que vai alm do corriqueiro e convencional da vida do cho

    (universal/mtico), fazendo-nos muitas vezes ouvir os conselhos da narrativa, seja

    num ensinamento moral, seja numa sugesto prtica, seja num provrbio ou numa

    norma de vida2.

    Logo, uma das principais dificuldades para o crtico literrio est em classificar

    a obra desse escritor e enquadr-la no hall artstico-literrio das escolas do Brasil.

    Da encontrarmos diversas linhas de anlise na tradio da crtica rosiana.

    Desta obra, destacamos, para este trabalho, a ltima novela de Sagarana, A

    hora e vez de Augusto Matraga. Nossa anlise da novela posiciona-se dentro da

    linha mtico-religiosa com um diferencial: tambm traz uma outra linha analtica, a

    histrico-social, que se oporia primeira. De fato, algumas vezes, notamos que a

    posio tomada pelos crticos de Rosa fixa-se em um desses plos, estabelecendo,

    assim, linhas estanques que no se complementam ou convergem.

    A proposta aqui deter-nos mais extensivamente na estrutura mtica que, ao

    nosso ver, possui a novela mais especificamente, uma estrutura de atualizao do

    1 LINS, lvaro. Uma grande estria In : COUTINHO, Eduardo F. (seleo de textos) Guimares Rosa, Riode Janeiro, Ed. Civilizao Brasileira, 1991. (Coleo Fortuna Crtica)2 BENJAMIN, Walter. O narrador. Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov In : Obras escolhidas.Magia e Tcnica, Arte e Poltica. So Paulo, Brasiliense, 1998.

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    mito dionisaco de regenerao , tentando mostrar tambm que essa estrutura pode

    denunciar um comportamento histrico-social do Brasil dos anos 30 e 40.

    Para tanto, no primeiro captulo, comentamos brevemente alguns conceitos

    sobre mito, baseados em mitlogos selecionados, tendo em vista a determinao do

    caminho a ser percorrido pelo trabalho; ou seja, nossa nfase ser dada no aspecto

    mtico-religioso da novela, porm mostrando que o mesmo pode ser complementado

    com o aspecto histrico-social, j que nos basearemos no conceito de que o mito,

    apesar de seu declnio com o surgimento da filosofia, permanece at nossos dias,

    trazendo em si prprio questionamentos fundamentais para o homem moderno

    inserido numa sociedade transformada que exige do mito tambm respostas prticas

    no mbito de seu convvio social.

    Desde j importante deixarmos claro que no enxergamos mito e histria em

    lados opostos e divergentes. Pelo contrrio, pensamos que a histria pode ser

    discutida no mito quando este, aps seus momentos de pice e declnio, teve de se

    transformar para atender s perspectivas do homem moderno. A questo est na

    atualizao e na racionalizao do mito; sua reelaborao atravs dos sculos

    necessariamente carrega reflexes sobre o homem, seus conflitos internos e sua

    interveno no mundo, j que essas foram as exigncias trazidas pelo

    aperfeioamento das relaes humanas.

    Dessa forma, o segundo captulo se fixar na atualizao do mito de

    regenerao; de que maneira Rosa reelabora o mito dionisaco no sertanejo Augusto

    Matraga, rastreando desde aspectos mais latentes, como a trajetria de queda e

    ascenso do personagem, at os elementos mticos mais intrnsecos que percorrem

    a narrativa, como a mudana de nome, a marca de ferro e a identificao com a

    natureza. Esse segundo momento, portanto, vem a ser o cerne mesmo do trabalho j

    que a estrutura mtica da narrativa o nosso foco principal.

    Todos esses elementos ajudam-nos a compreender melhor como Rosa

    reinterpreta o mito clssico de Dionsio num personagem cuja realidade a do serto

    brasileiro, com toda sua aspereza e, ao mesmo tempo, sua fora de renovao,

    utilizando-se, ento, no s do simbolismo da queda e ascenso, como tambm

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    aspectos sutis (nome, marca e natureza), mas de papel relevante no conjunto da

    narrativa.

    Seguindo a idia de permanncia do mito e sua racionalizao, o terceiro

    captulo tenta trazer uma denncia social contida na novela: na trajetria mtica do

    personagem h a problemtica do Coronelismo vigente no serto brasileiro. O

    primeiro Augusto como afirmao desse sistema (Coronel Augusto Esteves) e o

    segundo (Augusto Matraga) como reconhecimento do convvio do poder informal

    (Coronelismo) com o formal (senso de justia adquirido em sua regenerao).

    Essa mudana de comportamento, fruto de seu renascimento, reflete a

    mudana social pela qual passava o pas desde a dcada de 30; a mudana, ento,

    serve no s para o indivduo Matraga, como tambm para o povoado, j que traz

    uma atitude diferente dos moldes do costume local. Portanto, no podemos deixar de

    apontar essa reflexo histrica na trajetria mtica de Matraga.

    Com a leitura dos trs captulos, o trabalho prope, assim, uma anlise que,

    apesar de ter como centro a linha mtico-religiosa, tambm permite uma

    complementao ou dilogo com outra linha histrico-social, tentando uma anlise

    que, distanciando-se um pouco de uma postura extrema de opostos, possa

    acrescentar algo novo na rica tradio crtica sobre a obra de Joo Guimares Rosa.

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    1. CONSIDERAES ACERCA DO MITO1.1.Breve comentrio conceitual

    Apesar da questo do mito ser de fundamental importncia para o trabalho

    presente, no nosso objetivo definir o que mito, tendo em vista a complexidade

    de seu conceito. Porm, passa a ser relevante uma breve discusso em torno de

    algumas vises de mitlogos aqui escolhidos pela importncia dentro da crtica e

    pela seriedade com que tratam o assunto.

    Partindo de uma viso mais moderna, ao designarmos uma narrativa como

    sendo mtica, geralmente, seguindo o senso comum, estamos nos referindo a uma

    histria no verdadeira, carregada de crenas e difundida pela tradio oral o que

    faz do mito um trao marcante no folclore de um povo. Esse conceito do mito nos

    tempos modernos d-se justamente pela transio ocorrida entre uma poca oral e

    outra escrita.

    Sabemos que nesse mundo oral encontrava-se o mito que ainda possua,

    segundo Vernant3, a magia da palavra e seu poder ilusrio. Na ordem da fala, as

    narrativas mticas eram transmitidas oralmente num exerccio de audio que difere

    do exerccio da leitura. Aquele exerccio era carregado de subjetividade e crenas e,

    por isso, ligado ao sagrado/religioso, ao passo que este ltimo baseia-se no fator

    racional do pensamento humano.

    Na linha do conceito de histria sagrada, Eliade4 diz que o mito histria

    viva/verdadeira que revela as origens do mundo e do prprio ser humano; a

    narrativa da criao, de um tempo primeiro, no qual tudo e todas as coisas passaram

    a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha,

    uma espcie vegetal, um comportamento humano, uma instituio.5O homem

    colocado aqui como produto dos eventos passados, deixando de lado o conceito de

    que mito narrativa falsa ou subjetiva demais para ser levada em considerao.

    3 VERNANT, Jean-Pierre. Razones del mito In: Mito y sociedad en la Grecia antigua, Madrid, SigloVeintiuno Editores AS, 1987.4 ELIADE, Mircea. A estrutura do mito vivo In: Mito e Realidade, So Paulo, Ed. Perspectiva, 2000.5 ELIADE, Mircea. Op. cit. p. 11.

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    Essa histria verdadeira estava intrinsecamente ligada ao homem desde seus

    primrdios. Da Era Paleoltica (do homem caador) Era Neoltica (do homem

    agricultor), o homem soube distinguir o papel do logos e do mito em sua vida: aquele

    para as tcnicas da caa e da agricultura e este para a reconciliao com os animais

    e com a terra nos fatos trgicos da vida.

    Em livro recente, Karen Armstrong6 diz que um mito, portanto, verdadeiro

    por ser eficaz, e no por fornecer dados factuais, ou seja, se nos fora a mudar

    coraes e mentes, nos d novas esperanas e nos impele a viver de modo mais

    completo, um mito vlido, um mito vivo ser essa veracidade que, no correr

    dos tempos, como veremos, declinar.

    O poder de transformao do mito ainda notado nos ritos de iniciao, que

    remontam Era Paleoltica, em sociedades tradicionais atuais. Os jovens tribais

    devem passar por privaes, que incluem dores fsicas e marcas no corpo (tatuagens

    ou circuncises), que os transformaro em homens adultos esse um processo

    de morte e renascimento7 que transformar o jovem para sempre.

    O mito, portanto, era (ou ) parte do dia-a-dia das pessoas, mais

    explicitamente nos primrdios histricos ou ainda em comunidades isoladas e

    tradicionais de nossa Era Moderna, posicionando-se, em todo caso, como algo

    necessrio ao homem.

    Outra viso que tambm traz a idia de necessidade do mito elaborada por

    Jolles8, em seu estudo particular das Formas Simples, no qual coloca o Mito como

    produto desse desejo do homem de questionar o mundo, obtendo desse

    questionamento uma resposta, ou seja, quando o universo se cria assim para o

    homem, por pergunta e resposta, temos o Mito (a Forma Simples literria) que se

    apresenta em suas atualizaes isoladas nos mitos ou narrativas.

    6 ARMSTRONG, Karen. Breve histria do mito. So Paulo, Companhia das Letras, 2005.7 ARMSTRONG, Karen. Op. cit. p.34.8 JOLLES, Andr. O Mito In : Formas Simples, So Paulo, Editora Cultrix, 1930.

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    Nunca existiu uma verso nica e ortodoxa de um mito. medida que

    as circunstncias mudam, precisamos contar as histrias de modo

    diferente, para expor sua verdade intemporal. 9

    Esse reelaborar fruto da imaginao humana que questiona e cria; Mito

    criao, diz Jolles; a resposta para os questionamentos humanos no que se refere

    ao surgimento do mundo e seus seres.

    Esses questionamentos so naturais ao ser humano independente da poca

    histrica que recortemos, pois o homem sempre aspirou estar acima da condio

    humana. Para isso, fazemos uso de nossa capacidade mental de criarmos histrias

    que nos expliquem e nos situem no mundo.

    (...)desde a origem mais remota inventamos histrias que permitem

    situar nossas vidas num cenrio mais amplo e nos do a sensao de

    que a vida, apesar de todas as provas caticas e arrasadoras emcontrrio, possui valor e significado.10

    Ento, temos o mito aqui ligado ao pensamento humano num ato de pergunta

    e resposta; ligao um tanto natural e, assim, no to distante de nossa estrutura de

    pensamento. Vernant, ao se referir aos estudos mitolgicos, diz que a dificuldade ou

    complexidade em tal atividade d-se exatamente pelo fato de o mito ser natural ao

    pensamento ocidental, como o aprendizado da lngua materna. Ou seja, o mito est

    to enraizado em nossas estruturas de pensamento que se torna difcil o

    distanciamento necessrio para estud-lo cada nio aprende sin aprecibirse de

    ello, escuchando y repitiendo la tradicin como aprende su lengua materna, son tanto

    menos perceptibles cuanto ms naturales, ms immediatas parecen.11

    9 ARMSTRONG, Karen. Op. cit. p.1510 ARMSTRONG, Karen. Op. cit. p.0811 VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p. 188.

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    Portanto, mesmo o senso comum tendo eleito como conceito mais difundido o

    de que o mito uma narrativa falsa, ligada a uma era remota onde o pensamento

    racional propriamente dito no havia ainda se desenvolvido, a estrutura mental mtica

    ainda persiste como caracterstica mais humana do que perece ser, independente de

    pocas, ou seja, estamos falando aqui de estruturas mentais e no mais de crenas

    o homem deixou de crer piamente nas narrativas mticas, mas mantm suas

    estruturas mesmo no ato do raciocnio lgico.

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    1.2. Declnio do Mito

    Precisamos nos remeter Grcia Antiga para entendermos de uma melhor

    maneira como se deu esse declnio do mito, pois as transformaes ocorridas l a

    partir do sculo VII a.C. ocasionaram a transio do pensamento mtico, at ento

    vigente e que baseava toda a vida humana, para o pensamento cientfico-filosfico.

    Na Grcia Micnica, a sociedade baseava-se na figura mtica do rei divino,

    superior a todas as coisas, detentor de um saber sagrado e oculto senhor do

    tempo. As terras eram coletivas e patriarcais (chamados genos), organizadas em

    aldeias com sua vida prpria.

    Com a chegada dos drios ao Peloponeso, cai toda a estrutura do imprio

    micnico, desaparecendo, ento, a figura de base: o rei divino, o que causa um

    desequilbrio social, ou seja, torna-se necessria a reconstituio dessa sociedade:

    a busca de um equilbrio, de um acordo, far nascer, num perodo de desordem,

    uma reflexo moral e especulaes polticas que vo definir uma primeira forma de

    sabedoria humana12. Temos, portanto, um primeiro passo para a formao futura

    de um pensamento racional/cientfico.

    A estrutura patriarcal e agrria comea a perder foras, abrindo espao para o

    que chamaremos de cidade-Estado ou a polis, o que exige reflexes em torno dessa

    nova formao social que difere bastante do antigo genos. Logo, as principais

    questes surgidas so colocadas em praa pblica para discusso e conhecimento

    de todos, ou seja, inicia-se o processo de tornar pblico o que antes era sagrado e

    de domnio apenas do rei divino.

    Os principais centros filosficos, como podemos chamar, surgidos na Grcia

    antiga foram Mileto e feso que se formaram com a fuga de aqueus e jnios da

    invaso dria para as ilhas e as costas da sia Menor.

    Devido s suas posies geogrficas um tanto estratgicas, esses centros

    desenvolveram muito bem o comrcio, trazendo junto com esse desenvolvimento as

    expanses tcnicas conseqentes e a moeda nas transies comerciais. O homem

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    passa a ter, de certa forma, um domnio tcnico e matemtico de seu cotidiano, de

    sua vida; as explicaes para a resoluo de problemas passam a ser experimentais

    e, logo, racionais.

    Essas mudanas no ficam apenas no dia-a-dia desses povos, mas sero a

    base das mais simples s mais complexas questes existenciais humanas, como a

    poltica. As leis passam a ser escritas, j que a mentalidade humana necessitava de

    resolues mais concretas, mais exatas e que estivessem ao alcance de sua

    inteligncia ou exerccio racional as pessoas no mais podiam ver os deuses da

    mesma maneira que seus ancestrais os viam13.

    Com isso, d-se, como podemos perceber, um maior distanciamento daquele

    pensamento mtico e oral que mediava toda a antiga organizao social e mental dos

    homens. Na transio da oralidade para o advento da escrita, temos uma mudana

    de pensamento crucial para o declnio do mito que j no comporta as explicaes

    suficientes e convincentes sobre os problemas humanos e, portanto, sociais.

    Essa nova mentalidade, segundo muitos historiadores, no teria origem

    exclusiva grega, devido aos contatos pr-existentes com o Oriente (na Grcia

    Micnica) que teria influenciado e transmitido ao povo grego um princpio de

    racionalidade; ou seja, com a Grcia teria nascido sim um pensamento cientfico-

    filosfico, uma razo grega, fruto das circunstncias e do processo histrico da

    mesma e filha da cidade.

    12 VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, So Paulo, Difel/Difuso Editorial S.A., 1977.2a edio. Traduo de sis Borges B. da Fonseca.13 ARMSTRONG, Karen. Op. cit. p. 57.

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    1.3. Permanncia do pensamento mtico

    Na filosofia, o mito racionalizado. Essa frase do mitlogo Cornford, citado

    por Vernant14, talvez possa explicar-nos o porqu dessa permanncia do mito nos

    dias atuais no que ainda haja crena nas narrativas mticas em nossos centros

    urbanos, como havia na Grcia Antiga, mas que ainda podemos notar uma estrutura

    mtica no pensamento ocidental herdada da antiga era da tradio oral.

    Segundo Cornford, a razo no surgiu com os filsofos de Mileto ou feso.

    Esses primeiros pensadores teriam discursado com a mesma viso mtica original,

    ou seja, teriam se utilizado da mesma lgica mtica: um plano real (separao da

    terra das guas, por exemplo) e um plano imaginrio (gerao dos deuses no tempo

    primordial). Nessa mesma lgica estariam os primeiros discursos filosficos quando

    discute, por exemplo, a questo da alma e do corpo ou do divino e do fsico.

    As noes fundamentais em que se apia esta construo dos jnios:

    segregao a partir da unidade primordial, luta e unio incessante dos

    opostos, mudana cclica eterna, revelam o fundo do pensamento mtico onde

    enraza a sua cosmologia. Os filsofos no precisaram inventar um sistema de

    explicao do mundo: acharam-no j pronto.15

    Ou seja, o que de novo os filsofos jnios trazem a colocao do problema,

    o que antes o mito no o fazia; passam a discutir a ordem natural do mundo a partir

    das primeiras idias mticas. Portanto, os primeiros pensadores vo, na verdade,

    discutir o que o mito j colocava, vo racionalizar o mito.

    14 VERNANT, Jean-Pierre. Do mito razo In : Mito e pensamento entre os gregos, So Paulo, DifusoEuropia do livro, Edusp, 1973. p. 298.15 VERNANT, Jean-Pierre. Op. cit. p.298.

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    Dessa forma, no perdemos completamente a estrutura bsica do mito,

    muito pelo contrrio; conforme Eliade16 relata, o pensamento mtico no sumiu por

    inteiro, havendo resistncias nas mais diversas formas de manifestao: nas reas

    rurais dos interiores das sociedades podemos notar com bastante freqncia a

    importncia dada s narrativas mticas que ainda so passadas de gerao em

    gerao.

    No s em manifestaes tipicamente mticas, mas tambm em

    comportamentos. Eliade nos traz como exemplo o Cristianismo que se fundamenta

    na imitao e seguimento dos passos de seu modelo maior Jesus Cristo para, assim,

    obter a salvao da alma, alm de ter nos santos do Catolicismo o reflexo da

    influncia dos deuses mticos o mito da cristandade vlido pela sua eficcia de

    transformao.

    Ser de bastante relevncia o tema da religiosidade neste trabalho; portanto,

    estudaremos o papel do fator religioso nas sociedades e, obviamente, no corpus

    literrio escolhido , mas o nosso ponto de vista parte de uma viso do religioso

    como sendo um comportamento estruturalmente mtico. Vemos que a religio (ou o

    comportamento religioso) uma das manifestaes mticas, isto , no vemos

    religio e mito como pontos estanques e divergentes, pois entendemos que o

    comportamento humano baseia-se em estruturas mticas, cabendo, dentre elas, a

    religiosidade.

    Tambm temos como uma sobrevivncia do mito, mesmo que seja atravs de

    um registro bastante diferente do mito original, o discurso literrio. O que impressiona

    primeira vista o fato de que os mitos gregos foram, a partir da Renascena e

    sobretudo a partir do sculo XVII, os textos mais reinterpretados pelos escritores.

    Segundo Martinon17, eles (os mitos) fazem parte da definio da literatura.

    Segundo Karen Armstrong, tm sido os escritores e artistas, e no os lderes

    religiosos, a penetrar no vcuo para tentar a reaproximao com a sabedoria

    mitolgica do passado. Ela cita Picasso, Eliot, Joyce, Borges, Gnter Grass, talo

    16 MIRCEA, Eliade. Sobrevivncias e camuflagem dos mitos In : Mito e Realidade, So Paulo, Perspectiva,2000.17 MARTINON, Jean-Pierre. O mito da literatura In : Atualidade do mito (Traduo de uma coletnea deartigos publicados na revista Esprit, no 402, abril de 1971). So Paulo, Livraria Duas Cidades, 1977.

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    Calvino, entre outros, como romancistas e artistas que desafiaram a hegemonia do

    logos ao combinar elementos realistas com outros inexplicveis, e a racionalidade

    atual com a lgica mtica dos sonhos e contos de fadas.18

    Assim, desde a pura crena nos mitos (ainda vigente em comunidades mais

    distantes dos grandes centros) at o registro literrio (de domnio central nas

    cidades), o pensamento mtico no desapareceu para dar lugar filosofia. Ele

    permanece em nossas maiores e menores esferas sociais sob suas formas

    atualizadas e racionalizadas, seguindo as linhas de Jolles e Cornford

    respectivamente.

    Joo Guimares Rosa no deixou de ser um desses novos elaboradores do

    mito. Das vrias vertentes existentes na fortuna crtica da obra do autor, uma das

    mais exploradas a viso mtico-religiosa de sua obra, da qual destacamos, para

    este trabalho, a novela A hora e vez de Augusto Matraga de Sagarana.

    Nela podemos afirmar que temos uma atualizao do mito de regenerao ou

    renascimento, ao passo que tambm temos a sua racionalizao quando traz, por

    entre essa estrutura mtica, fatos histricos/empricos do Brasil da poca. Nosso

    objetivo, portanto, rastrear toda essa estrutura da novela, considerando seus

    principais elementos de atualizao e racionalizao do mito.

    18 ARMSTRONG, Karen. Op. cit. p.118.

  • 19

    2. MITO EM MATRAGA

    2.1. Trajetria mtica

    Iniciando pelo que h de mais latente na novela, observamos que a trajetria

    de vida de Matraga assemelha-se com o que chamamos de mito de regenerao ou

    renascimento dentro de Sagarana, no encontramos nenhuma outra novela na

    qual houvesse um processo de transformao de fato do personagem central, alis,

    dentro da obra roseana, talvez, possamos afirmar que esta a nica narrativa que

    trabalha esse tema19.

    Em A hora e vez de Augusto Matraga, o personagem central vivencia vrias

    fases durante sua trajetria de reconstruo fases vividas na idade j adulta, pois a

    novela nos traz Matraga j casado, com filha e com um status herdado da famlia, ou

    seja, Matraga possui apenas o que foi deixado pelo pai como seu legado.

    Nesse percurso, notamos trs grandes passos dados pelo personagem que

    podem ser imaginados numa escala que comea numa postura radical de coronel e

    termina em outra postura transformada miticamente.

    Primeira Fase

    Sua primeira fase mostrada na narrativa, traz o homem sem rdeas, detentor

    de um resqucio do coronelismo paterno, ou, usando, um vocbulo muito comum na

    novela Corpo Fechado, ele o valento do Crrego do Murici. Em cenrio sagrado

    leilo inicial , Matraga nos apresentado na narrativa pelos vrios adjetivos

    atribudos a sua pessoa:E, a, de repente, houve um deslocamento de gentes, e nh Augusto, alteado,

    peito largo, vestido de luto, pisando p dos outros e com os braos em tenso,

    19 Da a posio de destaque que se encontra a novela perante a crtica literria.

  • 20

    angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema,

    e ps-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o

    leiloeiro Tio:

    _ Cinqenta mil-ris!... 20(p.325)

    Notamos a importncia dada ao fsico de Matraga e sua voz de meio-dia que

    berra, quase como algum animal de porte (poderamos pensar no boi, animal to

    contemplado por Rosa).

    E mesmo em cenrio sagrado, Matraga arremata a Sariema sob os protestos

    do leiloeiro Tio, sublinhando sua figura de homem sem detena ou, utilizando aqui

    um termo de Jolles21, figura de anti-santo, pautada na violncia.

    Devemos deixar claro aqui que, mesmo classificando essa fase de Matraga

    como sendo a fase do anti-santo, o nosso personagem no deixa de ser religioso

    (segundo seus preceitos) em nenhum momento da narrativa. Apesar da contradio,

    aps a reclamao do leiloeiro Tio, pedindo mais respeito pelas coisas santas,

    Matraga que consegue acalmar o povo: Sino e santo no pagode, povo! Vou no

    certo... Abre, abre, deixa o Tio passar!. Tambm , mais adiante, j com o prmio

    em mos (Sariema), ao passar pela porta da igreja nh Augusto parou, tirando o

    chapu e fazendo o em-nome-do-padre.

    Logo, poderamos acrescentar que esse anti-santo pode assim ser

    considerado aos olhos do povo do Murici, quando Matraga ainda representa para a

    populao local um coronel defensor de seus interesses, capaz de matar quem ele

    achar conveniente tanto assim que a gente direita no participa desse fim de

    leilo, somente as moas e a multido encachaada de fim de festa.

    Mesmo no tendo rdeas, Matraga possui uma posio familiar social, como

    dissemos inicialmente: sua esposa, Dionora, e filha, Mimita. pelo discurso indireto

    livre que o narrador nos traz os pensamentos de Dionora (personagem de raciocnio

    20 Os trechos selecionados para citaes neste trabalho foram retirados de ROSA, Joo Guimares. Sagarana,20a ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1977.21 JOLLES, Andr. A Legenda In : Formas Simples, So Paulo, Editora Cultrix, 1930.

  • 21

    mais sensato e lgico22) e, atravs deles, conhecemos um pouco mais desse anti-

    santo.

    Fora assim desde menino, uma meninice louca e larga, de filho nico de

    pai pancrcio. (p.329)

    Etimologicamente23, o termo pancrcio significa exerccio de luta a socos.

    J, na Legenda urea24, temos, curiosamente, um So Pancrcio, e, l, o termo

    recebe outros sentidos:

    Pancrcio vem de pan, que significa tudo, de gratus, agradvel, e citius,

    depressa, portanto pronto para ser todo agradvel, porque assim o foi

    desde a juventude. O glossrio diz que pancras quer dizer rapina e designa

    tambm uma pedra de diferentes cores, enquanto pancranarius submetido

    tortura, e com efeito ele capturou muitas almas cativas, foi submetido aotormento do aoite e decorado com toda sorte de virtudes. (p.456)

    Diante de tais possveis significaes, podemos sublinhar a etimolgica, luta

    de socos, e uma das legendrias, submetido tortura, pois nelas encontramos eco

    da trajetria de Matraga. Esse filho de pai pancrcio, alm de herdar seu legado

    financeiro, herdou, digamos, sua tendncia violncia e ao fracasso.

    Paulo Carneiro Lopes25, em sua leitura crist da novela, diz que, nessa

    primeira fase de Matraga, estaramos diante da representao do deus do

    patriarcalismo que rege conforme o mundo-mercado, ou seja, todas as relaes, 22 FRANCO, Maria Sylvia. A vontade santa In : Trans/Form/Ao, So Paulo, n.2., 1975.23 CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionrio etimolgico Nova Fronteira da Lngua Portuguesa. 2a ed. Rio deJaneiro, Nova Fronteira, 1996.24 DE VARAZZE, Jacopo. (trad. do latim) Legenda urea (Legendae Sanatorum) vidas de santos, So Paulo,Companhia das Letras, 2003.

  • 22

    mesmo as humanas ou sagradas, baseiam-se no valor da mercadoria a prpria

    Sariema, a esposa e filha e os capangas poderiam ser as mercadorias de Matraga.

    De certa forma, Lopes acerta quando traz a idia do mundo-mercado em que

    a matria concreta mais valorizada do que as coisas espirituais, pois, nesse incio,

    Matraga no se volta totalmente ao religioso; a religiosidade at aqui parece-nos ser

    apenas parte obrigatria e oficial da vida pblica e no parte ntima de seu ser.

    Estabelecendo um paralelo, poderamos nos lembrar de importantes figuras

    do meio religioso que tambm passaram, de uma certa maneira, por essa fase do

    mundo-mercado. Seriam elas: Santo Agostinho, que se volta, em seu incio,

    filosofia e, So Francisco, que, mais prximo de Matraga, volta-se ao materialismo

    de fato claro que notamos uma diferena entre os dois religiosos citados e

    Matraga, ou seja, o nosso personagem, apesar desse afastamento de uma

    religiosidade, no deixa de ser uma pessoa religiosa; diramos que o fator religioso

    nunca desaparece na narrativa, ele ter, sim, momentos de sutil presena (que o

    caso da primeira fase de Matraga) e de pices mais efervecentes (segunda fase) at

    estabelecer-se numa constante e numa transformao que acompanhar a pessoa

    de Matraga26.

    Mas, a semelhana no pode deixar de ser apontada, principalmente em

    relao a So Francisco o que vamos analisar mais de perto em texto especfico.

    Desta primeira fase, ficamos com a imagem do homem do poder local que

    quer o domnio sobre tudo. Porm, como seu fiel Quim Recadeiro tenta avisar,

    Matraga inicia sua trajetria de queda a casa estava caindo.

    _ Mal em mim no veja, meu patro Nh Augusto, mas todos no lugar esto

    falando que o senhor no possui mais nada, que perdeu suas fazendas e

    riquezas, e que vai ficar pobre, no j-j... E esto conversando, o Major mais

    outros grandes, querendo pegar o senhor traio. Esto espalhando... (...)

    esto dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher

    25 LOPES, Paulo Csar Carneiro. Utopia crist no serto mineiro: uma leitura de A hora e vez de AugustoMatraga de Joo Guimares Rosa. Rio de Janeiro, Vozez, 1997.26 Ponto que ser melhor estudado mais adiante.

  • 23

    casada, e mais que que nem cobra m, que quem v tem de matar por

    obrigao... (p.333)

    Mesmo com os avisos, Matraga couro ainda por curtir e, ao invs de tirar

    umas frias na vida27, nosso personagem vai de encontro luta de socos (uma

    das significaes para a palavra pancrcio, como vimos) que o faz cair barranco

    abaixo.

    Antes de passarmos segunda fase de Matraga, interessante observarmos

    mais de perto a cena da surra. Antonio Candido28, referindo-se ao romance de Rosa,

    diz haver entre os jagunos um cdigo estrito, que dita as regras de entrada e de

    sada dos mesmos, bem como uma espcie de rito de iniciao existente entre eles.

    Em se tratando de Riobaldo, Candido afirma que ser atravs do pacto com o diabo

    que o personagem ter a certeza de sua capacidade para liderar o grupo, o que

    provoca nele uma mudana do ser no caso de Riobaldo, ele passa a ter a astcia e

    a ferocidade que antes lhe faltavam para ocupar tal lugar.

    O iniciado, pela virtude das provas a que se submete, renasce praticamente,

    havendo um grande nmero de sociedades que fazem a iniciao consistir na

    simulao da morte seguida de ressurreio.29

    Com a perda de tudo, a surra levada pelos ex-capangas e, principalmente, a

    marca de ferro em sua pele30, Matraga estaria sendo iniciado para um novo

    nascimento que acarretar tambm em uma mudana do ser, uma transformao da

    pessoa de Matraga.

    27 Estamos diante dos conselhos da narrativa que permeiam toda a novela BENJAMIN, Walter. O Narrador.28 CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos In : Tese e Anttese. So Paulo, Ed. Nacional, 1971.29 CANDIDO, Antonio. Op. cit. p.133.30 O que vamos analisar mais de perto em texto especfico.

  • 24

    Ainda observando a cena, vemos que nela, alm de seus antigos capangas

    protagonizarem a ao, dado destaque figura do capiau de testa peluda que

    amava a Sariema do leilo da cena primeira da narrativa.

    Sua entoada sintetiza o que era agora Augusto Matraga aps a surra:

    Sou como a ema,

    Que tem penas e no voa... (p.335)

    Outro personagem que tambm tem a sua desforra dentro de Sagarana

    Vinte-e-Um da novela Duelo. Sua situao um pouco diferente em relao ao

    capiauzinho de A hora e vez: ele havia sido ajudado por Cassiano e, aps a morte

    deste, Vinte-e-Um promete matar Turbio, o procurado por Cassiano. Portanto, em

    nossa novela, o capiauzinho tem sua desforra pessoal, pois foi a ele prprio que

    Matraga havia prejudicado, e, em Duelo, Vinte-e-Um faz o servio pelo respeito e

    admirao que tem pelo mandante do crime. Mas, em todo caso, apontamos aqui a

    importncia dada por Rosa figura do capiau antes enfraquecido e explorado e

    depois reconhecido no seu ato de vingana.

    Assim, encerramos a primeira fase de Matraga com a cena violenta de sua

    surra protagonizada pelos antigos capangas e pelo capiauzinho antes humilhado

    esse seria o pice do fator violncia dentro da novela.

  • 25

    Segunda Fase

    Damos incio segunda fase de Matraga quando o casal de pretos

    samaritanos recolhe o corpo maltrapilho cado porta de sua tapera. Matraga ainda

    no tem conscincia de sua pessoa e seu estado num primeiro momento quando

    delira em meio s dores da surra, mas, assim que retoma sua idia, ele deseja viver

    e pensar, j que agora v-se s consigo mesmo.

    O personagem, nesse incio de transformao, toma conscincia de sua

    situao, ou melhor, de sua queda; reconhece que havia cado num fundo de

    abismo, em outro mundo distante (p.338). Esse recomeo marcado pelo choro

    solto de desabafo de, digamos, renascimento31 o personagem sente-se desolado,

    sem proteo e impotente, chegando a chamar pela me como uma criana que

    comea seus primeiros passos, mas ainda sente-se insegura.

    Mas, segundo ele, s havia uma nica coisa que ainda poderia reconquistar:

    sua salvao atravs do perdo dos pecados at ali cometidos. Para tanto, temos,

    neste momento, a figura do padre como representante oficial do religioso e espcie

    de conselheiro conhecido do local32. Observemos que, para a moderao de seus

    instintos violentos (tpicos, como vimos, na sua primeira fase), o fator religioso atinge

    agora seu maior momento, pois Matraga vai se pautar no que o padre diz.

    (...)Pois, agora, por diante, cada dia de Deus voc deve trabalhar por trs, e

    ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gnio: faa de conta

    que ele um poldro bravo, e que voc mais mandante do que ele...

    (...)

    Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida um dia de capina com sol

    quente, que s vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E voc ainda 31 Flaubert conta em Trs Contos a histria do So Julio o Hospitaleiro. Nela, o personagem tambm passapelas mesmas fases de Matraga e, na fase de queda, So Julio, ao ouvir a profecia do veado que havia matado(Maldito!Maldito!Maldito!Um dia, corao feroz, assassinars teu pai e tua me!), um desgosto, uma tristezaenorme invadiu-lhe a alma e, pondo as mos no rosto, chorou copiosamente por longo tempo (p.60). Aps ochoro, Julio resolve no ser mais a pessoa que havia sido at aquele momento.

  • 26

    pode ter muito pedao bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez:

    voc h de ter a sua. (p.339)

    Segundo Girard33, o religioso fator fundamental para o equilbrio das

    sociedades: o religioso transforma a violncia em uma ameaa transcendente e

    sempre presente, que exige ser apaziguada tanto por meio de ritos apropriados

    quanto de uma conduta modesta e prudente (p.172)

    Matraga, seguindo as orientaes do padre, vai usar de uma violncia interna,

    digamos, para apaziguar a violncia externa: modere esse mau gnio: faa de conta

    que ele um poldro bravo, e que voc mais mandante do que ele... Nessa luta

    interna, Matraga inicia sua negao da primeira fase (o anti-santo) com uma intensa

    mudana no seu comportamento.

    Notamos que Matraga tem que sentir-se numa posio ainda superior a algo

    (poldro bravo) para que possa distanciar-se de sua antiga fase ou modo de vida,

    pois, o que lhe fere no ter mais a sua homncia e, pelo menos, diante dessa

    violncia transfigurada em bicho bravio, Matraga pode ainda ser o mais mandante.

    Outro aspecto apontado por Girard o perigo que as sociedades vivenciam na

    falta de uma hierarquia, ou seja, onde a diferena est ausente, a violncia que

    ameaa34. Matraga, ao perder sua posio social, no era mais superior a ningum,

    tornando-se igual aos seus capangas, o que caracterizou-se como um momento

    propcio para a queda, e para no haver a violncia recproca, Matraga tem de

    domin-la atravs tambm de uma violncia interna pautada no religioso a religio

    tem sempre um nico objetivo: impedir o retorno da violncia recproca35

    Alguns crticos vem essa religiosidade de Matraga como sendo apenas

    crist. De fato, podemos notar muitos dos princpios cristos (catlico cristo) na

    novela, mas seria inadequada uma anlise baseada apenas no Cristianismo j que a

    32 O padre no s ouve e aconselha Matraga, como tambm achou de ensinar preta um enxofre e tal para ogogo dos frangos, e aconselhou o preto a pincelar gua de cal no limoeiro, e a plantar tomateiros e ps demamo. (p.339)33 GIRARD, Ren. A violncia e o sagrado. So Paulo, Ed. Universidade Estadual Paulista, 1990.34 GIRARD, Ren. Op. cit. p.77.35 GIRARD, Ren. Op. cit. p.75.

  • 27

    novela mostra indcios que comprovam o contrrio36 isso ficar mais evidente

    quando tratarmos da identificao de Matraga com a natureza em texto especfico.

    Esse incio de reconstituio de si mesmo d-se longe do arraial do Muric, d-

    se no serto (ao Norte). Aqui temos o tema bastante explorado por Rosa: a

    travessia humana vocbulo que encerra Grande Serto: Veredas. Matraga

    resolve distanciar-se do Muric para rever sua vida. No s em A hora e vez temos

    essa travessia, mas tambm em outras novelas de Sagarana como O Burrinho

    Pedrs, A volta do marido prdigo, Duelo, Minha gente e Conversa de bois.

    Em todas elas a travessia conota alguma mudana, mas apenas em A hora e vez

    teremos mudana do ser, mudana de valores internos do personagem.

    Para Guimares Rosa, no h, de um lado, o mundo e, de outro, o homem

    que o atravessa. Alm de viajante, o homem a viagem objeto e sujeito da

    travessia, em cujo processo o mundo se faz.37

    nesse sentido objeto e sentido da travessia que Matraga chega no

    Povoado do Tombador, negando qualquer lembrana do que havia sido e feito.

    Seguindo as orientaes do padre, ele cansava o corpo e a idia no trabalho pesado

    para que as tentaes no ocupassem lugar na sua vida. Ficou longe de armas, do

    fumo, das cantigas, das mulheres, das conversas a figura do santo comeava a

    delinear-se: Mas todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e

    compreender deixaram para depois (p.341). A fala do padre virava agora espcie de

    refro (Cada um tem sua hora e a sua vez: voc h de ter a sua) repetido sempre

    que preciso.

    Desta forma, o que chamamos aqui de segunda fase caracteriza-se num forte

    momento do religioso e no incio de transformao do anti-santo para o santo que se

    realizar de fato na terceira fase. 36 Maria Sylvia Franco, em seu ensaio A Vontade Santa In : Trans/Form/Ao. SP, no 2, 1975, aponta umaabjurao da f crist em A hora e vez. Segundo ela, Matraga se vale da religiosidade, fazendo o bem aoprximo em benefcio de si mesmo e no por amor ao prximo um dos maiores princpios cristos.

  • 28

    Terceira Fase

    Mas, como tudo mesmo muito pequeno, e o serto ainda menor, surge o

    Tio da Thereza no Povoado do Tombador, mensageiro de ms notcias sobre a

    famlia de Matraga e seu fiel Quim, e, com esta visita surpresa, inicia-se o que

    chamamos de terceira fase.

    Com a visita, Matraga torna-se outro. As notcias haviam-no perturbado de tal

    forma que, com aquilo de que antes ele conseguia esquecer-se e afastar-se, agora

    necessitava conviver diariamente. Como j dissemos, a perda de sua valentia era o

    que mais lhe feria38, e, com a visita de Tio, Matraga quer voltar a ser quem era.

    E, com a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal-feitas, uma

    vontade sem calor no corpo, s pensada: como que, se bebesse e cigarrasse,

    e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua fora de homem

    e seu acerto de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros

    sabiam viver. (p.345)

    Os pensamentos tentadores, que antes nem surgiam por negar qualquer

    contato com o que lembrasse o passado, so refreados novamente nas falas do

    padre e no sentimento de no querer desperdiar toda a penitncia j paga.

    Tenho de ficar pagando minha culpa, penando aqui mesmo, no sozinho. J

    fiz penitncia estes anos todos, e no posso ter prejuzo deles! Se eu quisesse

    esperdiar essa penitncia feita, ficava sem uma coisa e sem outra... Sou um

    desgraado, me Quitria, mas o meu dia h-de chegar!... A minha vez...

    (p.346)

    37 NUNES, Benedito. A viagem In : O dorso do tigre, SP, Perspectiva, 1969. (p.179)38 Essa perda poderia comprometer, segundo a viso de Matraga, at a sua entrada no cu: Desonrado,desmerecido, marcado a ferro feito rs, me Quitria, e assim to mole, to sem homncia, ser que eu possomesmo entrar no cu?!... (p.345)

  • 29

    Portanto, o desejo de violncia, nesta terceira fase, retorna (ainda em

    pensamento), sendo regulada pelo religioso na idia do domnio do poldro bravo e

    da chegada de sua libertao. Podemos observar que agora nem a violncia e nem o

    religioso se sobressaem, ou seja, ambos esto juntos em potencialidades iguais o

    que ocorria contrariamente, como vimos, nas primeira e segunda fases.

    O Matraga mtico (santo) comea a se delinear com mais intensidade nesta

    fase j que podemos observar, de fato, mudana do ser e no apenas negao do

    passado, pois j no precisava fugir dos velhos hbitos; o sentimento aqui de

    alegria intensa do personagem, numa fuso das fases e num entendimento de

    mundo nunca antes experimentado convivncia dos velhos (o fumo, a preguia)

    com os novos valores (o trabalho, a reza).

    Porm, Matraga havia de passar por sua maior tentao, tentao

    corporificada na figura de Joozinho Bem-Bem, ou seja, o seu desejo de voltar a ter

    seu poder e seu respeito era apenas pensado, mas, parece que o pensamento toma

    forma humana. Podamos esperar que, com uma vida mais regrada e medida,

    Matraga negasse um tipo como o valente Bem-Bem; todavia, a tentao colocada

    para dentro de casa por gentileza e admirao ao hspede39.

    Alguns crticos vem, representado na figura de Bem-Bem o oposto de

    Matraga, sendo este o representante do Bem e aquele o do Mal isso explicaria o

    duelo final da novela. Mas, o que temos na narrativa a identificao dos dois

    personagens no respeito de um pelo outro.

    O senhor, mano velho, a modo e coisa que assim meio diferente, mas eu

    estou lhe prestando ateno, este tempo todo, e agora eu acho, pesado e

    pago, que o senhor mas pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos-da-

    guarda combinaram, e isso para mim o sinal que serve. (p.354)

    Essa identidade d-se num mbito de amizade entre dois valentes,

    entendedores de briga, pois Matraga tambm possua sua gente no arraial do Murici.

    39 Poderamos pensar aqui tambm no mito da hospitalidade ou do bom samaritano.

  • 30

    Logo, o olhar de Bem-Bem para Matraga no s de reconhecimento de sua

    bondade, como tambm de ver naquele homem, agora entregue ao trabalho, um

    antigo guerrilheiro ferrugem em bom ferro.

    Os dois personagens, como entendedores de briga, fazem parte do sistema

    de jagunagem sertanejo que Rosa quer representar. A complexidade desse sistema

    melhor demonstrada e trabalhada em Grande Serto: Veredas40. L, os vrios

    bandos que guerreiam entre si trazem toda a engrenagem que conduz as regras do

    sistema: quem entra, quem sai e quem permanece no bando. O guerrear, no serto,

    faz-se necessrio.

    Matraga, apesar de ter adquirido novos valores em busca de sua salvao,

    no deixa de reconhecer no amigo sua valentia e sua honra como chefe. Os novos

    valores, portanto, so cabveis e exigidos apenas a Matraga o seu objetivo

    individual e extremamente subjetivo; no exigido de Bem-Bem que ele seja uma

    pessoa diferente, ele valorizado no que .

    O jaguno no um assassino: ele um soldado numa guerra; o jaguno no

    mata: ele guerreia; o jaguno no rouba: ele saqueia e pilha.41

    Essa dbia imagem do jaguno a de saqueador, mas no bandido

    remonta, como j observaram vrios crticos, desde Cavalcanti Proena42, ao

    romance de Cavalaria. Mesmo o sistema sertanejo no seguindo o padro ideal dos

    poemas e romances de Cavalaria43, a regra fundamental deve ser seguida: a

    lealdade justamente a que foi perdida por Matraga.

    Parece-nos que, com a perda de tudo, nosso personagem aproxima-se mais

    do Cavaleiro medieval no que toca ao fator religioso. Como sabemos, a Cavalaria

    tinha nos princpios cristos a sua base e a sua defesa para suas atitudes, e Matraga 40 No romance de Rosa, Joozinho Bem-Bem reaparece como modelo a ser seguido por Z Bebelo: SeuJoozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ningum nunca pde decifrar como ele por dentro consistia.41 GALVO, Walnice Nogueira. As formas do falso. So Paulo, Perspectiva, 1986. p. 1842 PROENA, Cavalcanti. Dom Riobaldo do Urucuia, cavaleiro dos campos gerais In : Trilhas do GrandeSerto.

  • 31

    ir, em sua reconstituio a partir de sua segunda fase, sempre se pautar no

    religioso para atingir seus objetivos.

    E, como nas demais vezes, mesmo essa tentao sendo mais intensa que as

    outras e, por isso, muito mais chamativa, nosso personagem tambm resiste

    mesma ainda pautado no religioso, porm esse fator parece tonar-se, a partir de

    agora, apenas um hbito corriqueiro, ao contrrio da segunda fase; h uma

    acomodao da vida, acomodao do religioso e da violncia.

    E a fora da vida nele latejava, em ondas largas, numa tenso confortante,

    que era um regresso e um ressurgimento. Assim, sim, que era bom fazer

    penitncia, com a tentao estimulando, com o rasto terreno conquistado, com

    o perigo e tudo. Nem penou mais em morte, nem em ir para o cu; e mesmo a

    lembrana de sua desdita e reveses parou de atorment-lo, como a fome

    depois de um almoo cheio. Bastava-lhe rezar e agentar firme, com o diabo

    ali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente por

    hbito, quase, era que ia repetindo:

    _ Cada um tem a sua hora, e h-de chegar a minha vez! (grifos meus

    p.356-357)

    Portanto, j podemos enxergar diferenas existentes entre as trs fases que

    estamos tentando delimitar neste trabalho. Temos uma primeira fase com predomnio

    do anti-santo e de sua violncia, uma segunda na qual a violncia d lugar ao fator

    religioso e uma terceira, a estudada neste texto atual, na qual a violncia retorna (ou

    o desejo dela), mas o religioso tambm no perde sua importncia, havendo, assim,

    essa acomodao que dissemos entre os dois fatores.

    Dessa acomodao, surge a vontade de sair do Povoado do Tombador em

    busca de sua hora e vez. relevante apontar que, apesar de parecer que a novela

    nos traz uma viso bastante fatalista da vida (sinais do destino que haviam de

    43 CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos In : Tese e Anttese. So Paulo, Ed. Nacional, 1971.

  • 32

    ocorrer)44, h tambm a vontade e astcia de Matraga em todas as suas decises

    tomadas: desde a primeira vontade de pensar, quando retomou a conscincia aps

    a surra, passando pela vontade de distanciar-se para melhor pensar, pelas negaes

    s tentaes, at o desejo de sair, sem planos certos, em busca de sua vez. Assim,

    na novela, parece haver fatalismo e vontade prpria do personagem Pro cu eu

    vou nem que seja a porrete...

    Em seu trajeto de volta, a figura do cego que encontra pelo caminho pode

    sintetizar essa situao de vontade e destino juntos. O destino de Matraga poderia

    ser entendido na impossibilidade de enxergar do cego, ou seja, na impossibilidade de

    prever muitos dos fatos decisivos de sua vida. Ao passo que sua vontade entende-se

    no desejo do cego de retornar ao seu local de nascimento, pois, de fato, era o que

    Matraga tambm queria: ir ao encontro de sua hora e vez segundo a vontade de seu

    guia.

    Alm disso, h algumas semelhanas entre os dois personagens: ambos

    esto retornando ao seu lugar de origem (mesmo Matraga no tendo plena

    conscincia disso) e so guiados segundo a vontade dos animais-guias (jumento de

    Matraga e o bode do cego).

    Quanto aos animais, observamos que um possui uma conotao mais

    sagrada, devido s passagens bblicas (jumento que carregou Cristo) e outro mais

    violenta na figura do bode expiatrio (sofrimento). Sabemos que o bode possui vrias

    significaes desde a poca inicial do Cristianismo, havendo nele a insgnia do

    judasmo45e, por conseguinte, uma conotao de excluso. O jumento sagrado

    encontra-se, portanto, com o bode condenado nos seus respectivos caminhos de

    volta ao comeo.

    Esse caminho de regresso de Matraga ditado por um animal sagrado nos faz

    lembrar que o primeiro personagem protagonista de Sagarana um burrinho, em O

    burrinho pedrs, cuja funo maior, na novela, era salvar a vida de dois vaqueiros

    da enchente do rio na volta fazenda do Major Saulo, havendo tambm, de certa

    44 Como por exemplo: o aparecimento do Tio da Thereza no povoado longnquo, o retorno regio do Murici deacordo com as vontades do sagrado animal, o reencontro com Bem-Bem.45 Lembrando Gil Vicente, em O Auto da Barca do Inferno, temos a figura do judeu com um bode s costas que rejeitado por ambas as barcas e condenado a vagar sem destino pelo cais das almas.

  • 33

    forma, um retorno ao incio da obra na figura do animal sagrado numa unio da

    primeira com a ltima narrativa obra cclica46.

    Pensando no objetivo maior de nosso personagem, a salvao, tanto o seu

    jumento, quanto o burrinho Sete-de-Ouros, possuem a mesma tarefa: guiar a vida de

    quem est na montaria na direo de sua salvao. Em O burrinho pedrs, quando

    os vaqueiros esto de frente com a enchente na dvida de seguir ou retornar,

    deixado para o burrinho a deciso de continuarem ou no a viagem: O burrinho

    quem vai resolver: se ele entrar ngua, os cavalos acompanham, e ns podemos

    seguir sem susto. Burro no se mete em lugar de onde ele no sabe sair!(p.61) De

    fato, o burrinho sara do lugar alagadio, mas os demais vaqueiros no, ou seja, o

    burrinho retorna ao seu coxo (lugar de origem), salvando a vida de Bad e, de

    carona, a de Francolim tambm sendo puxado pelo rabo. O jumento de Matraga

    retorna, segundo sua vontade, ao arraial do Murici (origem), levando nosso

    personagem ao encontro de sua hora e vez.

    essa travessia de volta, tambm casual, que proporciona o reencontro com

    Joozinho Bem-Bem que, apesar de convidar novamente Matraga para fazer parte

    do grupo, ocupando o lugar do falecido Juruminho, ter de enfrentar o nosso

    personagem antes de matar a famlia do assassino de seu capanga.

    Ao observar as splicas do velho em defesa da famlia, Matraga, em nome de

    um senso de justia adquirido em sua trajetria de reconstruo, parte em sua

    defesa, desafiando o amigo Joozinho Bem-Bem.

    No chamaramos o episdio de duelo por no haver aqui lados opostos; cada

    um possui sua razo Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o

    concertar consertado. Mas cada um s v e entende as coisas dum seu modo.

    (GS:V) Do ponto de vista de Bem-Bem, aquela era a nica maneira de honrar seu

    jaguno e de honrar sua pessoa e sua autoridade sobre os demais Seno, at

    quem mais que havia de querer obedecer a um homem que no vinga gente sua,

    morta de traio? , para Matraga, aquilo seria inaceitvel, j que o velho estava

    pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria E o que vocs esto

    querendo fazer em casa dele coisa que nem Deus no manda e nem o diabo no 46 A questo da marca de ferro outro elemento que liga as duas narrativas de Sagarana, unindo suas pontas, que

  • 34

    faz! O desentendimento, ento, d-se entre os objetivos divergentes dos

    personagens e no na relao dos dois que, como vimos, era amistosa.

    A vez de Matraga era a volta de seu reconhecimento, de sua homncia, sendo

    regrada pelo religioso agora. com a morte que consegue recuperar sua honra: _

    Perguntem quem a que algum dia j ouviu falar no nome de Nh Augusto Esteves

    das Pindabas!

    De certa forma, a astcia do brigador de ofcio retoma seu lugar, porm, a

    pessoa de Matraga j no a mesma da primeira fase que analisamos, ou seja, as

    suas atitudes passam a ser medidas de acordo com novos valores adquiridos o

    poldro bravo continua vivo, mas sob as rdeas de um novo nh Augusto: o mtico

    Augusto Matraga na figura do santo.

    As vidas dos santos no ignoram semelhante gnero de variao e no

    raro um santo comear a existncia como contra-santo. (...) Tais santos talvez

    sejam, justamente, os mais prximos para o comum dos mortais.47

    Nessa religiosidade caracterizada tambm na trajetria do anti-santo para o

    santo, encontra-se a atualizao do mito de regenerao em A hora e vez o heri

    regenerado de Rosa; o heri dionisaco de Rosa.

    Por caminhos diversos, podemos reconhecer outras narrativas que se

    encaixariam nesse processo de queda e regenerao, sob a ressalva de que podem

    no representar exatamente a mudana de ser que temos em A hora e vez. Para

    tanto, selecionamos trs delas para nossos comentrios.

    ser analisada mais adiante.47 JOLLES, Andr. A Legenda In : Formas Simples, So Paulo, Cultrix, s/d. p. 54

  • 35

    O prprio Guimares Rosa registra, num relato breve, a histria de Maria

    Mutema em Grande Serto: Veredas. Nela, Maria Mutema, aps ter matado o

    marido, tenta livrar-se do pecado cometido indo igreja para sua confisso; mas,

    ainda l, ela causa maldade: mente para o padre dizendo que havia matado o marido

    por ter se afeioado a ele. O padre fica doente de desgosto falece tambm. Aps

    um longo tempo sem aparecer na igreja, Maria Mutema surge na missa, em tempo

    de misso. impedida pelo sacerdote de adentrar igreja, mas, mesmo com o

    impedimento imposto, confessa publicamente todos os seus feitos e pede perdo a

    todos e a Deus. O povo se comove e junto dela passa a rezar Mesmo, pela

    arrependida humildade que ela principiou, em to pronunciado sofrer, alguns diziam

    que Maria Mutema estava ficando santa (p.197)

    Pela breve passagem contada por Je Bexiguento para Riobaldo, notamos

    que para o personagem Maria Mutema tambm dado o ttulo de santa aps a

    mudana de sua conduta e do arrependimento de seus atos, mesmo tendo um

    passado manchado de anti-santa. Mais uma vez a religiosidade fator fundamental

    para a virada e reconquista de si perante o povo e Deus.

    O mesmo trajeto de queda e ascenso vivenciado por Jos na narrativa

    bblica. Jos no ter uma vida de anti-santo obviamente, mas ter de cair

    literalmente no fundo do poo para depois reerguer-se. Filho mais novo e mais

    querido de Jac e Raquel, vendido pelos irmos ao comandante da guarda oficial

    de Fara, local onde Jos ser mordomo e mais tarde, por armadilha da esposa de

    Fara, preso no fundo de um poo, juntamente com outros dois oficiais. Em sua

    estadia na priso, Jos interpreta os sonhos dos companheiros, fato que chega aos

    ouvidos de Fara e, desejando saber o significado de um de seus sonhos, retira Jos

    da priso e concede-lhe a administrao do Egito.

    Os meios pelos quais houve a queda de Jos no so os mesmos,

    evidentemente, dos de Matraga. Como dissemos, Jos no foi um anti-santo.

    Estamos diante de um relato bblico e, segundo Auerbach48, temos de levar em

    considerao o segundo plano presente na narrativa, ou seja, nem tudo na narrativa

  • 36

    bblica explicado com clareza, deixando sempre algo oculto. Portanto, o porqu da

    queda de Jos no explicado e no foi por sua causa ou por seus feitos que ele

    caiu; o reflexo da grandeza divina estaria justamente na trajetria de vida dos

    personagens bblicos que passam da humilhao a uma rica evoluo49.

    Outra narrativa, contada por Flaubert50, pode tambm ser um exemplo de

    renovao de vida. Julio, filho de pais ricos, cresce com todos os requintes

    necessrios e todos os seus desejos realizados em um castelo, cercado de

    bosques, na encosta de uma colina. Ao seu nascimento, seus pais tiveram

    pressgios e previses de desconhecidos acerca do futuro de seu filho. Ainda recm-

    nascido, o narrador o compara ao Menino-Jesus. Cresce freqentando a igreja

    assiduamente junto com os pais e dentro dela que floresce seu verdadeiro mpeto

    de vida desregrada, matando um rato que h dias aparecia na parede da igreja. A

    partir da, seus dias seriam gastos em matanas de animais que tomaram

    propores drsticas. De um veado negro, que com as flechas do matador havia

    perdido sua famlia, Julio ouve o que aconteceria futuramente: assassinaria seu pai

    e sua me, o que realmente acontece. Ao final da narrativa, Julio exclui-se do

    mundo que conhecia, para resignar-se consigo mesmo, trabalhando em prol dos

    outros (pr sua existncia a servio dos outros) na mais profunda misria. Encontra

    um homem maltrapilho que, do outro lado da margem do rio51, pede-lhe ajuda. Julio

    o traz at sua tapera onde ele mata sua sede, sua fome e seu frio com o calor do

    corpo nu de Julio, sendo este arrebatado, segundo a narrativa, aos ces com

    Jesus Nosso Senhor.

    Mais semelhante vida de Matraga, Julio ou So Julio (consta na Lagenda

    urea) percorre o caminho de queda e regenerao tambm sob os ttulos de anti-

    santo para santo, pois, de fato, possua uma vida sem rumos que encontra sua vez

    no arrebatamento divino.

    48 AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses In : Mimesis. A representao do realismo na literaturaocidental. So Paulo, Perspectiva, 1971.49 AUERBACH, Erich. Op. cit. p.15.50 FLAUBERT, Gustave. A lenda de So Julio, o Hospitaleiro In : Trs contos, So Paulo,Melhoramentos, 1999.51 O que nos lembra a terceira margem do rio de Rosa.

  • 37

    Regenerar-se, nessas narrativas, incluindo A hora e vez, implica o fator

    religioso como um comportamento mtico tambm, pois, entendemos que ser

    atravs dele que os personagens alcanam o objetivo maior: seu antigo

    reconhecimento. Como observado no captulo 1, a nossa viso est centrada nesse

    comportamento mtico, seja atravs do religioso ou no; assim, em todas essas

    narrativas, principalmente A hora e vez, enxergamos uma estrutura mtica (Mito) na

    atualizao do mito de regenerao (mito), conforme distingue Jolles trajetria de

    queda e ascenso.

  • 38

    2.2. Matraga e a hagiografia de So Francisco de Assis

    Com o objetivo maior de aproximar a trajetria de vida de Augusto Matraga

    com a de So Francisco, de incio, iremos utilizar dois registros biogrficos do santo:

    um autorizado pela igreja contido na Legenda urea e outro no autorizado citado

    por Walnice Galvo52 em ensaio dedicado A hora e vez.

    Legenda urea53

    O registro ureo traz um santo que, na sua juventude, vivia na vaidade e preso

    ao materialismo do mundo. Esse jovem no chamava-se ainda Francisco; ele ainda

    era Joo o primeiro nome do santo. Quando o Senhor serviu-se do chicote da

    enfermidade para corrigi-lo e transform-lo subitamente em outro homem, Joo

    passou a chamar-se Francisco por vrios motivos (tambm relatados na Legenda

    urea num total de sete), entre eles, indicar os resultados que devia obter, quer

    dizer, dar a conhecer que ele e seus filhos deviam tornar francos e livres muitos

    escravos do pecado e do demnio (p.836).

    Em uma das vezes em que estava na igreja a orar, uma imagem de Cristo lhe

    disse: Francisco, v reconstruir minha casa que, como v, est toda destruda

    (p.837). A partir de ento, ele vendeu todas as suas riquezas para dar igreja;

    comeou a andar com e como os mendigos e misturar-se aos leprosos, fazendo da

    pobreza a sua senhora.

    Muitas outras pessoas o acompanharam nessa nova vida: Ele escreveu uma

    regra evanglica para si e para seus irmos presentes e futuros (p.838). Tambm

    houve vrios milagres durante sua vida e aps sua morte que so relatados na

    Legenda urea.

    52 GALVO, Walnice Nogueira. Matraga: sua marca In Mitolgica rosiana, So Paulo, Ed. tica, 1978. Afonte biogrfica utilizada por Walnice consta em: KAZANTIZAKIS, Nikos. Saint Francis. 2a ed. New York,Ballantine Books Inc., 1969.53 DE VARAZZE, Jacopo. Op. cit.

  • 39

    Em uma de suas vises divinas, ele teria adquirido os estigmas conforme os

    ferimentos do Cristo crucificado, mas as escondia de todos; elas s puderam ser

    vistas depois de sua morte.

    Seu contato ntimo com a natureza tambm destacado no relato. Esse

    contato era estritamente religioso: chama todos os animais de irmos (p.843). Diz

    um dos acontecimentos: Ele encontrou uma multido de aves e saudou-as como

    criaturas racionais: Minhas irms aves, vocs devem louvar muito seu Criador que

    as revestiu de penas, que lhes deu asas para voar, que concedeu a vocs a pureza

    dos ares e que sem pedirem cuida de vocs54.

    Porm, o escravo de Deus como tambm chamado adoece dos olhos de

    tanto chorar; passa por uma operao da qual no sentiu dor alguma. A Legenda

    urea no esclarece se o santo curou-se com a interveno mdica ou se piorara,

    pois, mais ao final da biografia, dito que Francisco fica profundamente doente (no

    se sabe de que exatamente). Antes de morrer, pediu para ser colocado sobre a terra

    nua, chamou para junto de si todos os irmos e fazendo a imposio das mos sobre

    todos eles abenoou-os, e como na ceia do Senhor deu a cada um deles um

    pequeno bocado de po55.

    Notamos que o relato autorizado pela igreja prende-se detalhadamente ao seu

    foco: a santidade de Francisco, relatando em todo o texto muitos milagres

    concedidos pelo santo. Mas, quanto sua vida ainda em jovem ou quanto aos seus

    pais, no temos muitas informaes at mesmo a doena que finaliza a vida de

    Francisco no esclarecida. Mesmo assim, podemos apontar semelhanas com a

    vida de nosso sertanejo Matraga, porm, antes disso, vamos ao relato no

    autorizado utilizado por Walnice transcreveremos fielmente o registro feito por

    Walnice, pois este j est muito bem resumido.

    54 DE VARAZZE, Jacopo. Op. cit. p.844.

  • 40

    So Francisco, de Kazantzakis (por Walnice Galvo)

    O santo ali aparece como um jovem rico, que passava as noites em farras ou

    fazendo serenatas para sua namorada, a futura Santa Clara fundadora da Ordem

    das Clarissas. Francisco sente, todavia, os opostos que lutam dentro dele: o pai rico

    e materialista e a me devota e pia; ou, diz ele, o embate entre Deus e o Diabo, a luz

    e a escurido, o bem e o mal, ou a carne e o esprito. Querendo encontrar Deus,

    quem o encontra primeiro o Irmo Leo, que lhe conta o conselho que recebera de

    um anacoreta: Deus um abismo. Salte! Se no tem coragem, v para casa, case-

    se e assente. A historinha d idia do sentido da santidade como o caminho mais

    difcil e menos conhecido, desajustador e sem paz de esprito; Deus algo que se

    conquista, e com muita dificuldade, para alm de imprevistos sofrimentos. Depois de

    uma doena, em que atormentado por alucinaes, inclusive pela morte que o

    agarra e lhe diz que no tem mais tempo para cuidar de se salvar, Francisco volta a

    si ouvindo uma cano de ninar cantada pela me e se sente como se fosse um

    beb e tivesse nascido de novo. Pede me que conte como na juventude fugira

    para seguir os passos do heresiarca Pedro de Lyon, e como a famlia a impedira e a

    casara em seguida. Ao ouvi-la, Francisco sente o sangue da me nas veias. Logo

    aps, ainda muito doente, tem a primeira viso. Um homem andrajoso, imundo, todo

    ferido, aparece e lhe ordena que cuide dele, lave-o e o alimente; ele obedece, e v

    que o homem tem marcas de ferro em brasa nas tmporas, chagas nas mos e nos

    ps, e na testa uma ferida em forma de cruz. Aps ser tratado, vai embora, tendo

    revelado que ambos so irmos e a face de um reflete a do outro. Uma vez so,

    parte tambm Francisco, no sem antes ter levado em sonhos um empurro para se

    apressar; o Irmo Leo viu os hematomas causados pelo golpe no ombro. Ao partir,

    recomenda me que escreva atrs do trptico da crucificao que tem em casa:

    No dia 24 de setembro de 1206 meu filho Francisco renasceu.

    A primeira viso uma previso. So Francisco vai-se tornar um homem

    andrajoso, imundo, coberto de ferimentos; ter uma molstia nos olhos que o deixar

    quase cego, pois de seus olhos purga um matria sanguinolenta, e como terapia lhe

    aplicaro ferro em brasa nas tmporas; morrer estigmatizado: a imitatio culmina

    55 DE VARAZZE, Jacopo. Op. cit. p.846.

  • 41

    numa identitas. A marca em forma de cruz na testa ser obtida quando, acometido

    pela tentao, na pessoa de uma mulher nua a quem chama de Irm Prostituta e a

    quem converte, parte para uma alta montanha nevada onde vai enfrentar seus

    demnios. Despido, flagelando-se, debate-se dias e noites em cima da neve, at cair

    para frente, desmaiado. E ele sente, assustado, o portento: pergunta ao Irmo Leo,

    sem t-la tateado ou visto, qual a forma do ferimento; e uma cruz; e ele

    compreende.

    Quase ao trmino de sua curta vida (1181/82 1225/26), consumido pelas

    privaes, So Francisco lembra ao Irmo Leo que o corpo humano, de braos

    abertos, uma cruz, e que nessa cruz que Cristo foi crucificado. Nas experincias

    msticas, roga a Cristo que lhe permita sentir no corpo e na alma o sofrimento que

    ele sentiu na Paixo. Segundo algumas verses, So Francisco j seria

    estigmatizado nos ltimos anos de vida; segundo outras, s no momento da morte.

    Entretanto, no se deve esquecer de que, apesar das privaes, da

    estigmatizao, da busca deliberada do sofrimento, So Francisco o santo que

    deixou a maior lio de felicidade. Aceitava, louvava e proclamava a beleza e o valor

    de tudo o que existe, cada pssaro, cada estrela, a Lua, o Sol, o fogo. Consta que,

    antes de morrer, pediu desculpas ao Irmo Corpo por t-lo mortificado com vistas

    salvao da alma. Deve ser lembrada a alegria com que recebeu a chegada da

    morte e como o espantava que as pessoas presentes chorassem e se lamentassem.

    Diz-se que, nesse momento, seu rosto resplandecia56.

    De uma maneira diferenciada, a biografia no autorizada de So Francisco

    traz-nos mais detalhes sobre sua vida, sua converso, explicando-nos sua trajetria

    de regenerao com mais clareza que o relato anterior.

    56 GALVO, Walnice Nogueira. Op. cit. pp.56/57.

  • 42

    As semelhanas entre So Francisco e Augusto Matraga podem ser

    observadas nos dois registros utilizados aqui. Segundo a Legenda urea, Francisco

    no era o nome de batismo do santo, seu nome real era Joo. O santo sofre, junto

    com sua mudana de ser, uma mudana de nome, e nosso personagem rosiano

    tambm: de nh Augusto ao mtico Matraga curioso que a narrativa no

    autorizada no traz essa informao.

    Com um novo nome, Francisco inicia sua converso enfrentando uma doena,

    da qual se recupera como se estivesse nascendo de novo, ouvindo a cano de

    ninar de sua me como Matraga, aps a surra (que teria o mesmo sentido da

    doena), recupera-se das dores, ouvindo tambm as cantigas de fim de tarde da

    preta samaritana que o socorreu57.

    Recuperado e decidido a reconstruir a igreja perdida de Cristo, Francisco ter

    de afastar muitas tentaes (relatadas em ambos os registros citados) atravs do

    religioso, adquirindo uma nova maneira de ver a vida. Matraga tambm ter de negar

    muitos convites e a vontade de voltar a ser o anti-santo do incio, possuidor de honra

    e respeito perante o povo. Sua arma tambm ser o fator religioso.

    Abrindo um parnteses neste momento, vale frisar que, como vimos, a

    religiosidade de Matraga possui um sentido mais subjetivo ou individual, o que

    contraria a religiosidade de So Francisco, pois o santo ter de recuperar a igreja de

    Cristo, o que traz um sentido coletivo para essa tarefa; So Francisco vai escrever

    uma regra evanglica para si e para seus irmos presentes e futuros, enquanto

    Matraga quer a sua salvao da alma, quer o seu lugar no cu.

    Para tanto, o caminho da salvao visto como um caminho rduo e o mais

    difcil tanto por So Francisco (Deus um abismo. Salte! Se no tem coragem, v

    para casa, case-se e assente), como por Matraga (E s ento foi que ele soube de

    que jeito estava pegado sua penitncia, e entendeu que essa histria de se

    navegar com religio, e de querer tirar sua alma da boca do demnio, era a mesma

    57 Procurando um sentido mais profundo do canto, encontramos algumas definies significativas para nossoestudo. Segundo CHEVALIER, Jean e CHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos, Rio de Janeiro, Ed.Jos Olympio, 1995, o canto o smbolo da palavra que une a potncia criadora sua criao, (...). Em relao msica e isso demonstra a Antigidade da tradio o canto primordial: a msica, mesmo sagrada, apenasuma tcnica, (...). p. 176. O canto, para as duas vidas aqui aproximadas, traz um novo ser no sentido derecomeo, de volta ao princpio (ciclo).

  • 43

    coisa que entrar num brejo, que, para a frente, para trs e para os lados, sempre

    dificultoso e atola sempre mais p.356)

    Para a travessia desse caminho, outro elemento se evidencia: a marca ou, no

    caso de So Francisco, o estigma. Essa semelhana, juntamente com a mudana de

    nome, aponta uma espcie de separao do ser, ou seja, uma espcie de

    diferenciao dessas vidas como uma espcie de escolhidos ou eleitos.58.

    Suas vidas (a de Matraga e a de So Francisco) se identificam na mudana de

    ser que h na passagem do anti-santo ao santo, do mundo material ao mundo

    humilde, conforme a perciso e a situao histrica que envolve cada um.

    58 Os dois elementos citados neste trecho (a marca e o nome) sero melhor analisados mais adiante.

  • 44

    2.3. Elementos mticos

    Mudana de nome

    Acompanhando a trajetria de vida de Matraga, notamos que o personagem

    apresenta uma mudana de nome no decorrer da narrativa. Apesar de termos, nas

    palavras iniciais da novela, os trs nomes de nosso personagem nh Augusto,

    Augusto Esteves e Augusto Matraga , apenas um predominar no enredo: Augusto.

    Antes de observarmos o sentido de cada um deles, interessante deter-nos

    nos sentidos de Augusto, presente em todos os nomes de nosso personagem. Paulo

    Carneiro Lopes59, de maneira sucinta, traz alguns desses sentidos:

    Em sua raiz latina aug traz consigo a idia de aumento, de crescimento. E

    desta raiz que nasce auctoritas, de onde vem autoridade e autoritarismo. E

    ela tambm que est na origem do ttulo honorfico Augustus, que, em 27 da

    era crist, foi concedido pelo senado ao imperador Otvio, passando a fazer

    parte de seu nome e dos demais imperadores que o sucederam. At ento,

    Augustus era ttulo dedicado aos deuses. E, a partir desse momento, o

    imperador passou a ser considerado uma divindade. Na verdade, foi a partir

    de ento que se consolidou o Imprio Romano. Todos os poderes civis e

    religiosos estavam concentrados em suas mos. Otvio Augusto era o

    sacerdote supremo, o primeiro cidado do Estado, chefe do Senado e

    comandante absoluto do exrcito. Auguste, o advrbio derivado de augustus,

    pode ser traduzido por reverentemente ou religiosamente.

    De posse desses sentidos, podemos dizer que nosso personagem, em sua

    fase inicial, era possuidor do autntico Augustus, a autoridade em pessoa, a de

    maior poder local. J a partir de sua segunda fase, aps a queda, o Augustus passa

    59 LOPES, Paulo Csar Carneiro. Op. cit. p.89.

  • 45

    a ser quase irnico por no haver mais o status passado. Mas, ento por que o nome

    permanece? No decorrer da novela entendemos o motivo: o personagem passa a ter

    uma importncia diferenciada dessa autoridade sem limites; os novos valores

    adquiridos (os quais j vimos) faz com que Matraga continue sendo um Augustus,

    um santo Augusto Matraga na autoridade de novo ser.

    Segundo o Dicionrio de Smbolos60, para os egpcios da Antigidade, o

    nome pessoal bem mais que um signo de identificao. uma dimenso do

    indivduo. Se pensarmos em Matraga, podemos identificar as dimenses de cada

    nome, conforme Walnice Galvo61 j indicara: nh Augusto numa dimenso

    individual ou nome usado em seus relacionamentos; Augusto Esteves numa

    dimenso social que traz as razes familiares e da seu status; e Augusto Matraga

    numa dimenso mtica com o nome do santo, conforme j considerado pelo povo

    local.

    A dimenso deste ltimo (mtica) vai sendo constituda na prpria trajetria de

    vida do personagem, que somente nomeado Matraga em dois momentos: no incio

    e no fim da novela, fechando-a ciclicamente. Lembra ainda Walnice Galvo que esse

    ciclo comandado tambm pelo ttulo da novela: A hora e vez de Augusto Matraga.

    Ento, temos uma narrativa cclica dentro tambm de uma obra igualmente cclica,

    lembrando a identificao observada anteriormente entre a primeira e a ltima

    novelas de Sagarana.

    Do nome Matraga temos possveis significaes. Poderamos lembrar da

    palavra francesa matraque que significa porrete. Brinquedo ou instrumento religioso

    que faz barulho, a matraca, ressaltando aqui que ao sonorizarmos o fonema /c/ em

    /g/, temos o nome grego trags (bode), o qual, por sua vez, faz meno aos rituais

    de sacrifcio do bode expiatrio e prpria presena na palavra tragdia62. Indo mais

    adiante, tragdia possui o significado literal de canto do bode. E, originalmente, era

    com esse canto que se acompanhavam os ritos do sacrifcio de um bode nas festas

    60 CHEVALIER, Jean et CHEERBRANT, Alain. Op. cit. p. 64161 GALVO, Walnice Nogueira. Op. cit. p.63.62 GALVO, Walnice Nogueira. Op. cit. p. 62

  • 46

    de Dionsio63, o que identificaria Matraga ao mito dionisaco do renascimento ou,

    como estamos chamando aqui, de regenerao64.

    Outro sentido possvel para o nome Matraga seria a referncia que o mesmo

    faz s maitacas de presena constante na narrativa. Nesse sentido do som das

    maitacas, tambm podemos associar o barulho da casa no enfrentamento final de

    Augusto Matraga com Joozinho Bem-Bem:

    _ pa! Nomopadrofilhospritossantamin! Avana, cambada de filhos-da-me,

    que chegou minha vez!..

    E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida fumaa

    dos tiros, (...) (p.367 grifos meus)

    A respeito da correlao do som da palavra com o som das aves, o Dicionrio

    de Smbolos diz:

    O nome de uma coisa o som produzido pela ao das foras moventes que

    o constituem (p.641)

    Assim, Matraga seria o nome ou o som resultante dessa ao interior, ou seja,

    da transformao do ser pela qual passou, ecoando como pano de fundo o som das

    aves migratrias, das quais as mais citadas e mais sonoras so as maitacas.

    Nessa transformao ou renascimento, Matraga destaca-se dentre as demais

    pessoas do vilarejo. Levi Strauss, citado por Walnice Galvo65, diz que a mudana de

    nome implica numa separao dos eleitos, principalmente em se tratando dos

    personagens bblicos:

    63 CHEVALIER, Jean. Op. cit. p.13464 relevante tambm lembrarmos do encontro de Matraga com o cego guiado por um bode antes de seaproximar do arraial do Muric em sua travessia de reencontro.65 GALVO, Walnice Nogueira. Op. cit. p. 52

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    Jeov diz a Abro que ele, mulher e prognie tero favor perptuo bem como

    a possesso perptua da fabulosa terra de Cana. Muda o nome de Abro

    para Abrao e o de Sarai para Sara, a mudana de nome acompanhando toda

    iniciao e significando uma apartao do comum para pertencer aos eleitos.

    Outros so os exemplos bblicos como o neto de Abrao, Jac que se

    chamar Israel; Saulo se tornar Paulo; Simo que ter outro nome acrescentado a

    esse: Cefas que significa Pedro, e, no como personagem bblico, mas como

    religioso, j citado anteriormente, temos Joo que vir a ser Francisco.

    Como sinal de mudana, em todos esses casos, o nome passa a ser

    diferenciado do que j existia66, passa a ser mtico.

    66Outro exemplo que traz a mudana de nome junto da mudana de ser de seu possuidor notado em BerlinAlexanderplatz, de Dblin. Seu heri, Franz Biberkopf recupera-se de um vida marginal, passando por um

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    A marca de ferro

    Com o objetivo maior de estudar os significados embutidos na marca de

    Matraga, Walnice Galvo inicia seu ensaio voltando o olhar Antigidade Clssica

    na qual iniciou-se um interesse maior pelo estudo de emblemas muito da literatura

    de fico, em poesia ou em prosa, fica indecifrvel se no se recorre a essa

    simbologia to conhecida durante tantos sculos.67

    Concentrando-se na marca de ferro de Matraga um tringulo inscrito numa

    circunferncia , Walnice vai analisar o significado do tringulo e o significado da

    circunferncia, e o significado da relao entre ambos.68

    O tringulo da marca mnimo polgono possvel dentro da geometria teria

    um significado cristo em um dos maiores dogmas da Igreja: a unio das figuras do

    Pai, do Filho e do Esprito Santo, da a repetio do nmero trs na Liturgia. Walnice

    lembra ainda que o dogma trinitrio originou-se do dogma cristolgico. Jesus Cristo

    a nica revelao de Deus na histria, e aos que desejam identificar-se com ele s

    resta a imitao. (p.45) E desde a Idade Mdia os assuntos sagrados j eram

    organizados inclusive em Ordens; a arte e a Liturgia andavam juntas e os signos

    rigidamente predeterminados.

    Portanto, o nmero trs consagrou-se, com o tempo, como o nmero que

    designa todas as coisas espirituais, mesmo antes do cristianismo nas religies

    pags. Deus teria, assim, marcado toda a sua criao numa natureza trplice.

    Interessa reter que, seja nos mitos pagos, seja no cristianismo, o ser

    portador da marca divina, e essa marca tridica. (p.46)

    A circunferncia, por sua vez, designa a forma geomtrica mais simples e o

    polgono mais complexo, dado que constitudo do maior nmero possvel de lados. processo de maturao, e recebe outro nome: Franz Karl, ascendendo, como diz Walter Benjamin (A crise doromance), ao cu das personagens romanescas.67 GALVO, Walnice Nogueira. Op. cit. p.43

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    Pode trazer tambm a idia de movimento repetido, ou seja, de retorno ao ponto de

    partida que tambm ser ponto de chegada.

    O emblema completo teria ligao ntima com o destino de Matraga j que o

    mesmo foi marcado na carne; algo que levar por toda a vida. Walnice lembra da

    primeira marca bblica em Caim e a conhecida marca ou cicatriz de Ulisses pela qual

    reconhecido em seu retorno ao lar.

    A marca na carne tambm sinal de eleio quando se trata de uma marca

    de pertena. Mas, pode ser considerada tambm uma marca ignominiosa, de

    desonra, cujo portador criminoso ou escravo. Cristo teria tido primeiramente uma

    marca de desonra, ignominiosa aos olhos do povo (ele foi crucificado como

    criminoso), mas transformou essa mesma marca em marca de pertena, de eleito, o

    que, segundo Walnice, acontece tambm com Matraga.69

    Sua via-crucis identifica-se, como vimos, com a vida de So Francisco o

    primeiro estigmatizado do catolicismo. Como dito, a marca tridica vem do desejo de

    imitao de Cristo. E o mesmo desejo de So Francisco da imitatio a identitas.

    Quanto a Matraga, vemos que, no desejo de salvao da alma, sua morte

    assemelha-se morte expiatria de Cristo, substituindo a morte do velho em nome

    de novos