Tese Completa II

146
UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Departamento de letras UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DE UM AUTO DE GIL VICENTE Isa Alexandra Marques da Silva Dissertação de Mestrado em Estudos Ibéricos Covilhã 2009

description

Cultura

Transcript of Tese Completa II

  • UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

    Departamento de letras

    UMA NOVA INTERPRETAO DE UM AUTO

    DE GIL VICENTE

    Isa Alexandra Marques da Silva

    Dissertao de Mestrado em Estudos Ibricos

    Covilh

    2009

  • I

  • UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

    Departamento de letras

    UMA NOVA INTERPRETAO DE UM AUTO

    DE GIL VICENTE

    Isa Alexandra Marques da Silva

    Dissertao de Mestrado em Estudos Ibricos, apresentada

    Universidade da Beira Interior para a obteno do grau de Mestre

    em Estudos Ibricos, sob a orientao da professora Doutora

    Reina Marisol Troca Pereira

    Covilh, 18 de Junho de 2009

  • Dedico este trabalho a toda a minha famlia, que

    sempre me apoiou ao longo de todo o meu caminho,

    Ao meu namorado, um grande amigo especial e

    dedicado, e a Deus que iluminou os meus

    pensamentos.

  • II

    NDICE

    PREFCIO .................................................................................................................... III

    INTRODUO ............................................................................................................... 7

    CAPTULO I PANORAMA HISTRICO DO TEATRO PORTUGUS ........... 15

    CAPTULO II ALMEIDA GARRETT E O TEATRO PORTUGUS ................ 27

    2.1. Consideraes gerais acerca do teatro ............................................................. 27

    2.2. O contributo de Garrett como interventor no teatro portugus ....................... 35

    2.3. Os factores responsveis pela presena de Bernardim Ribeiro e de Gil Vicente

    no teatro .................................................................................................................. 46

    CAPTULO III ADESO DO PBLICO OBRA UM AUTO DE GIL

    VICENTE ........................................................................................................................ 63

    CAPTULO IV ANLISE ESTILSTICA E IDEOLGICA DE UM AUTO DE

    GIL VICENTE ................................................................................................................ 66

    4.1. Algumas consideraes acerca do teor de Um Auto de Gil Vicente .............. 107

    4.2. Outras personagens ........................................................................................ 110

    4.3. Didasclias e Apartes a sua importncia .................................................... 112

    CONCLUSO .............................................................................................................. 114

    BIBLIOGRAFIA GERAL .......................................................................................... 117

    WEBIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 122

    ANEXOS .......................................................................................................................... I

  • III

    PREFCIO

    Neste trabalho, intitulado Uma nova interpretao de Um Auto de Gil Vicente,

    cedo lugar a uma reflexo sumria em torno da histria do Teatro, como ponto de

    partida para a tragicomdia vicentina, denominada As Cortes de Jpiter, sobre a qual

    Garrett introduz o seu Auto de meditao cultural.

    A partir do exemplo garrettiano, aproveitamos a oportunidade para ressaltar,

    especialmente, o grande deficit do nosso Pas na poca do autor, do qual podemos

    verificar ainda alguns reflexos na actualidade, nomeadamente no mbito de alguns casos

    de iliteracia e analfabetismo.

    De facto, ainda hoje, detemos uma populao com dificuldades na descodificao

    da mensagem e leitura do texto literrio, tornando-se difcil incutir no pblico-alvo uma

    posio crtica face a uma abordagem especfica, que se pretenda transmitir numa

    determinada obra.

    Deste modo, dedicamo-nos a um tema no mbito do contexto teatral, a fim de,

    atravs do exemplo, empreendedor de Garrett, demonstrar a necessidade de tomarmos

    uma atitude, no sentido de tentarmos inovar a nossa cultura, recorrendo a uma

    reciclagem e uma posterior mudana, ambas efectuadas, sempre que o contexto o

    exigir, para que no deixemos morrer o nosso patrimnio cultural lingustico e, com ele,

    a civilizao, como acontecera, na poca que o autor pretendeu pr em evidncia.

    Ao longo do tratamento do tema inerente ao trabalho efectuado, contamos com o

    apoio de vrias fontes bibliogrficas em diversas bibliotecas, que satisfizeram dvidas

    pertinentes, bem como curiosidades, que tivemos a oportunidade de incluir ao longo do

    trabalho, embora de forma sucinta.

    Agradecimentos: professora Doutora Reina Pereira, querida orientadora, que eu

    admiro e que dedicou parte de seu tempo a apoiar-me; que me indicou o trajecto a

    percorrer, sem deixar de mostrar o seu sorriso, a sua simpatia, a sua prontido e a sua

    compreenso, proporcionando-me, com a sua eloquncia, o acesso a novos caminhos do

    conhecimento. Agradeo tambm a todos os professores do Departamento de Letras,

    por quem sempre senti e sentirei a maior estima, considerao e uma grande admirao.

    Aproveito tambm para agradecer a todos os funcionrios das Bibliotecas, que

    consultei, pela sua prestabilidade, eficincia e simpatia.

  • 7

    INTRODUO

    A palavra teatro relaciona-se etimologicamente com o vocbulo grego theastai1, o

    qual aponta para o olhar e para o contemplar com entusiasmo, sugerindo-nos, assim, o

    local onde tem lugar a representao de uma determinada pea.

    O teatro define-se, deste modo, como a arte, que resulta da representao de uma

    pea por um actor, ou por um elenco de actores, os quais interpretam um enredo, um

    tema, ligado a uma histria, contando com o apoio dos responsveis pela parte tcnica e

    toda uma equipa coordenadora, responsvel por todos os detalhes necessrios

    preparao devida de uma representao dramtica.

    De facto, a arte de representar no mais do que a maravilhosa forma, que aborda

    actos sublimes, como o acto de contemplar, admirar, apreciar, observar, imaginar,

    sonhar, meditar, viajar, entre muitos outros que nos embebem num universo parte,

    cujo deleite origina um momento sempre considerado curto, do ponto de vista

    emocional, que se encontra envolto pela possibilidade de evaso, que nos abre o

    caminho para a aquisio de novos conhecimentos, de uma nova cultura, constituindo

    efeitos grandiosos e enriquecedores ao nosso interior cognoscvel.

    O teatro, desde os seus primrdios at aos dias de hoje, tem vindo a incidir sobre o

    objectivo de divertir, criticar e, sobretudo, suscitar o desabrochar das emoes,

    causando reaces, quer de lgrimas, quer de riso.

    Ainda que os momentos hilariantes de uma pea sejam fugazes, acabamos sempre

    por eterniz-los no nosso pensamento, atribuindo ao aspecto mais pertinente, um lugar

    de destaque, o que significa que depositmos a devida ateno ao assunto visado, tendo

    retirado aquilo que brotou de mais importante da pea a mensagem. com base nesta

    perspectiva que o dramaturgo Brech introduz a noo de teatro pico, baseado na

    posio de distanciao que preciso manter, perante aquilo que a mensagem

    incutida pela pea nos sugere, para que o espectador possa manter o seu discernimento e

    evitar, assim, ser dominado pelo efeito de alienao, que anularia o primeiro.

    O interesse por esta arte to elucidativa do mundo que nos rodeia, na realidade

    sempre existira, embora tenha sido com contornos diferentes, ou seja, o teatro j tinha

    1 Vide Livete Gonzaga, Teatro, alternativa de formao e cidadania na EJA (Educao de jovens e adultos), arquivo baseado em Augusto Boal, Teatro do Oprimido - e outras poticas polticas, Civilizao

    Brasileira, Rio de Janeiro, 2005, p.11.

  • 8

    tido as suas manifestaes no perodo medieval com representaes corteses

    acompanhadas de mmica, mas s no sculo XVI com Gil Vicente adquirira o seu

    suporte escrito com as suas vrias peas, resultantes do aproveitamento ldico e

    pedaggico do teatro.

    Garrett apoia-se neste exemplo para compor o seu Auto vicentino, no qual nos

    fornece uma reflexo subtil acerca do estado do teatro da poca, onde Gil Vicente

    desempenhar, em simultneo a funo de personagem, interagindo com outras

    personagens, sendo digno de destaque a personagem Bernardim Ribeiro, que recebe,

    igualmente, esse estatuto duplo.

    Muitos aspectos viriam a ser mudados no nosso teatro, nomeadamente pela perda

    de independncia nacional, (1580-1640) pois dvamos primazia aos modelos

    estrangeiros, faltando-nos composies dramticas originais. Para alm deste problema,

    havia ainda o obstculo resultante da enorme taxa de analfabetismo e a incorrecta

    administrao do dinheiro pelos governantes, que no investiam na arte.

    Ao encontro da necessidade de colmatar esta dura realidade civilizacional, surge

    Garrett, o qual toma uma srie de medidas com vista a formar novos actores, que

    escasseavam, e incentivar a criao de peas originais, atravs da concesso de prmios

    s melhores, tentativas que sofreram alguns danos, provenientes de um longo caminho

    que teve de ser percorrido, com alguns solavancos.

    Porm Garrett consegue asfaltar esse trajecto irregular, conferindo-lhe uma

    identidade, que surge retratada no Auto vicentino, que rene todos os predicados

    indispensveis feitura de um bom teatro, que surge comprovado pela enorme aceitao

    da obra pelo pblico, aquando da sua publicao em 1838.

    Deste modo, o autor de Cato torna-se um modelo a seguir, representando uma

    grande influncia para os acadmicos de Coimbra. Essa preponderncia surge reforada,

    mais tarde, por Ramalho Ortigo, que emite o seguinte juzo de valor:

    " foi ele o primeiro que, por meio dos seus livros nos deitou nos copos e nos fez beber o vinho da mocidade

    2, acrescentando ainda, que: [] foi com ele que ns

    aprendemos a estimar a beleza, a amar a liberdade, a compreender as artes e a

    querer o progresso3.

    2 Cf. Jorge de Sena, Estudos de Literatura Portuguesa I, edies 70, Lisboa, 2001, p.135.

    3 Vide Sobre Garrett disse-se in http://www.prof2000.pt/users/esjdinis/biblioteca/almeida%20garrett.doc.

  • 9

    No seguimento das consideraes de Ramalho Ortigo, Vitorino Nemsio,

    relativamente ao seu papel no teatro, refere: Garrett tem uma predileco constante e

    fiel por tudo que o que diz respeito ao palco4.

    A afirmao de Vitorino Nemsio vem confirmar o enorme empenho e interesse

    do autor pelo teatro, facto que surge espelhado no Auto de Gil Vicente, que Garrett

    considera como uma Pedra lanada no edifcio do nosso teatro, que j chamou outras

    muitas, confessando ainda que tem f que h-de ir crescendo o monte e se h-de vir

    rematar o edifcio5.

    Esta revelao traduz uma posio de comprometimento de Garrett em combater o

    atraso cultural do nosso Pas, no mbito do teatro, aceitando, assim, o desafio que lhe

    fora confinado no seu cargo de Inspector-Geral dos teatros, funo que levar a cabo

    com enorme desempenho.

    Aps todas estas reflexes acerca de Garrett no nos restam dvidas quanto ao seu

    valor, merecendo um trabalho elaborado, com vista a pormenorizar o seu desempenho

    produtivo no contexto do teatro em Portugal.

    Deste modo, no mbito da abordagem do mundo imenso, que o teatro abarca,

    passaremos a referir a contextualizao histrica do teatro portugus, tendo em conta

    todo um conjunto de aspectos voltados para as manifestaes existentes desde a

    Antiguidade Clssica at Idade Mdia, evidenciando, nomeadamente, o teatro grego

    na sua incidncia em valores morais, que se pretendiam ser retratados luz do bom

    exemplo, sendo as ms aces criticadas nas comdias com o riso, na base do lema

    ridendo castigat mores, isto , rindo castigam-se os costumes e, na Tragdia atravs

    do sofrimento, ambos, com vista regenerao das aces.

    No que diz respeito ao teatro de Roma, evidenciaremos os seus elementos tambm

    de modo sucinto, por forma apenas a verificar aquilo que distingue a tragdia da

    comdia, passando essa diferena pelo facto de se cultivarem ambas e se dar especial

    importncia tambm mmica. No obstante a grauitasque caracterizava o povo

    Romano, a festiuitas e o italum acetumencontravam-se igualmente presentes.

    4 Idem, ibidem.

    5 Vide consideraes de Garrett, Introduo in obra integral Um Auto de Gil Vicente, edio Porto

    Editora, Porto, 2005, pp. 15-16.

  • 10

    Manifestaes dramticas como os fesceninos, as atelanas, os mimos e as stiras eram

    disso exemplo.6

    Aps a referncia ao teatro na Grcia e em Roma, de forma a fornecer uma leve

    panormica daquilo que fora esta maravilhosa arte no perodo da Antiguidade Clssica,

    daremos lugar ao mesmo no contexto da Idade Mdia, onde referirei os vrios gneros

    que existiam, bem como a consistncia e o modo de funcionamento de cada um deles.

    Seguidamente passaremos a desenvolver as tendncias teatrais existentes no seio

    do teatro de ordem profana e palaciana, atendendo definio de cada uma delas, s

    quais acrescentaremos gneros, que historiadores franceses acreditaram ter existido,

    recebendo as denominaes de Farsa e Sottie, relativamente aos quais procederemos ao

    esclarecimento da sua importncia.

    Uma vez que se torna importante a referncia s manifestaes teatrais que

    precederam ao aparecimento da verdadeira arte teatral, evidenciaremos, igualmente, o

    contributo escasso de Anrique da Mota, representante da mais antiga manifestao

    teatral, para seguidamente concluirmos, de forma justificada, com o papel

    preponderante de Gil Vicente, a respeito do qual passaremos a apresentar a importncia,

    as suas influncias advindas de figuras de referncia no contexto espanhol e do perodo

    medieval, a organizao da sua obra, pelos seus filhos, aniquilada, parcialmente, pela

    aco da Inquisio, aps a sua morte, aquando da reedio das suas peas, compiladas

    em 1586.

    De este autor s poderiam resultar discpulos, dos quais salientaremos alguns, a

    fim de fazer notar a qualidade deficitria das suas criaes, que mais no so que

    simples imitaes do seu Mestre.

    Para alm de darmos a conhecer toda a sua importncia e a dos seus seguidores,

    tambm passaremos a referir, ainda que de forma breve, o desempenho de outras figuras

    importantes no mundo literrio, que tambm se evidenciam neste contexto,

    nomeadamente Cames, S de Miranda e Antnio Ferreira, ainda que no de forma

    exclusivamente centrada neste gnero especfico. Com efeito, uma vez que foram

    personalidades que se destacaram noutros gneros, tornar-se- importante destacar Gil

    Vicente, para traduzir mais claramente um maior aprimoramento no mbito do teatro.

    Terminada toda esta contextualizao breve, mas esclarecedora do percurso

    evolutivo do teatro, desde a Antiguidade Clssica at ao perodo do nosso dramaturgo

    6 Vide Nair de Castro Soares, Literatura Latina. Guia de estudo. Antologia, ed. Autor, Coimbra, 1996.

  • 11

    de referncia, introduziremos um novo captulo, relativo ao contexto do teatro

    enquadrado numa outra poca, ligada vivncia de Almeida Garrett, autor do Auto que

    serve de objecto a esta dissertao.

    Em primeira instncia, faremos um brevssimo balano acerca do estado do teatro

    do nosso Pas, no contexto do sculo XVI, para dar a conhecer o quanto nos

    encontrvamos retidos, no que toca liberdade de voar sem pouso certo no contexto

    das criaes teatrais, devido ainda presena do Tribunal do Santo Ofcio e da

    dominao vincada da cultura espanhola, que tinha vindo para Lisboa, condicionando

    esta a nossa dependncia cultural e lingustica e aquela, a qualidade e diversidade das

    peas, no que toca ao extremo cuidado que requeria quanto aos temas escolhidos,

    evidenciando mais uma vez Gil Vicente no contexto dos problemas que, a reedio

    pstuma das suas peas, enfrentara na sequncia dessa imposio.

    Na sequncia destes aspectos torna-se propcio enumerarmos alguns locais, onde

    tinham lugar algumas das representaes, a fim de reflectir acerca das precrias

    condies que existiam no sculo XVI, pois existia apenas o ptio de Borratm, o

    acesso parcial ao Hospital de Todos-os-Santos, concedido por Filipe II em resposta a

    um local para as Comdias. Outro dos locais que existiu para o teatro fora o ptio das

    Arcas, considerado o mais escolhido no sculo XVII, o qual sofrera os danos de um

    incndio, sendo reconstrudo antes do surgimento do terramoto. Tambm no referido

    sculo, evidenciamos Francisco Manuel e a sua Farsa O Fidalgo Aprendiz, que s mais

    tarde fizera sentir a sua importncia.

    Estas referncias relativas aos entraves que existiram ao longo destes sculos,

    quer relativamente aos condicionalismos normativos da poca, quer em relao s

    condies existentes nos locais de representao, visa preparar o leitor para concluir que

    mesmo com as tentativas de empenho, o sculo XVII no constitura a soluo, mas sim

    uma fissura, o que justificado pela persistncia dos problemas culturais de um

    Portugal demasiadamente voltado para as questes blicas, para a cultura de outros

    Pases e para uma falta de iniciativa em apostar na administrao financeira voltada para

    a regenerao da nossa cultura, dificultada tambm pela ausncia de um grande nome

    do Teatro e da pera, Antnio Jos da Silva, que enfrentara o poder condenativo da

    Inquisio.

    No mbito do sculo XVIII, o mais importante constou no desenvolvimento do

    gosto italiano pela pera.

  • 12

    Para alm de todos estes aspectos negativos, surgiram ainda neste perodo

    histrico medidas caricatas, como a exigncia de actores apenas de um s sexo e peas

    portuguesas, acompanhadas de intervenes em lngua italiana.

    De seguida passaremos a referir, igualmente, a predominncia, no sculo XIX, de

    alguns entremezes, farsas populares, chamando a ateno para o facto de nem todas

    serem impressas, pois algumas eram apenas representadas, devido precria qualidade

    das mesmas. Outras formas de teatro incidiram sobre os chamados elogios de

    natureza poltica.

    O percurso oscilatrio do teatro portugus volta a sofrer uma quebra, motivada

    por vrios factores de natureza histrico-poltica. No entanto a Inquisio j tinha

    acabado e estvamos sob a dominao de uma Constituio Liberal, o que j facilitaria

    uma distribuio mais equitativa dos direitos da populao e uma abordagem livre dos

    temas. Porm os conflitos entre liberais e absolutistas ainda continuaram.

    Todos estes aspectos preparam o caminho para algumas referncias ao sculo

    XIX, a fim de evidenciar o papel de Garrett em todo este contexto, por forma a

    esclarecer a ndole dos problemas enfrentados por si na sua poca.

    Nesta altura, os locais de representao teatral continuam sem as mnimas

    condies, sendo, portanto, provisrios.

    Garrett recebe o cargo de Inspector Geral dos teatros, facto que abordaremos ao

    pormenor, no que respeita s suas medidas de resposta, no captulo seguinte.

    Assim, seguir-se- o papel de Garrett como interventor neste mbito, onde aps

    uma introduo breve sua biografia, na qual ressaltaremos a sua formao acadmica,

    os seus ideais polticos, as suas obras, as suas influncias, as suas paixes, passando

    pela referncia a uma srie de situaes, ocorridas ao longo da sua vida, a fim de

    justificar, de certa forma, a sua aptido para o cargo, procederemos abordagem do

    tema que abre um novo captulo, no qual, para alm das medidas e das solues

    apresentadas, acrescentaremos ainda as etapas enfrentadas pelo autor at

    concretizao do seu objectivo.

    Deste modo, comearemos por justificar o surgimento do convite ao autor para o

    desempenho do cargo, para evidenciar o seu enorme entusiasmo e empenho pelo

    mesmo, que o levara a criar um Conservatrio dividido em trs sectores confinados a

    uma formao multidisciplinar de complementaridade pedaggica, passando tambm

    pela concesso de prmios aos autores de peas originais e pela formao de actores e

  • 13

    seguros, iniciativas que o obrigaram a lidar com alguns dissabores, provenientes de

    insinuaes relacionadas com o fornecimento de subsdios desiguais aos teatros

    provisrios.

    Para alm destes inconvenientes, muitos outros Garrett teria de enfrentar, os quais

    se prendem com o maior obstculo: a formao cultural insuficiente do pblico.

    Porm Garrett avana na sua iniciativa de criao do Auto de referncia,

    inspirando-se na tragicomdia As Cortes de Jpiter de Gil Vicente e apoiando-se na

    lenda dos amores de Bernardim Ribeiro, factos cuja presena passaremos a justificar

    pela voz do autor.

    Seguidamente referiremos, na abertura de um outro captulo, uma reflexo sob a

    forma de balano pelo autor, onde nos revela um sentimento de revolta pelo facto de

    peas traduzidas constiturem a maior causa de atraso do nosso Pas, de forma a destacar

    ainda mais o significado preponderante do Auto.

    De seguida passaremos a expor, primeiramente, o alvo de crtica visado pela pea,

    o seu tempo histrico, os estudiosos que se encontraram a favor da obra e aqueles que

    sustentaram uma posio contrria.

    Posteriormente, apresentaremos as razes que se encontraram por detrs da

    escolha de Bernardim Ribeiro e de Gil Vicente pelo autor no seu Auto, onde lhes

    confere um estatuto duplo de personagem/autor, para evidenciar, luz de uma relao

    intertextual com as Viagens, as estratgias do autor para captar a ateno do leitor.

    Aps a tomada de conhecimento do mtodo de trabalho de Garrett,

    abordaremos, de forma desenvolvida a lenda do amor de Bernardim pela Infanta, na

    perspectiva de vrios estudiosos, nas suas vrias posies, quer de adjuvantes, quer de

    oponentes, a fim de elucidar sobre a raiz de onde brotou o interesse do autor na sua

    abordagem, no podendo deixar de passar pela biografia de Bernardim Ribeiro,

    protagonista da lenda, a respeito da qual se far vrias consideraes diferenciadas, uma

    vez que se trata de um assunto sem uma base slida em que nos possamos apoiar.

    Referidas todas estas abordagens desenvolvidas em torno da lenda, como base do

    Auto e da biografia de Bernardim, ser feita uma referncia sua obra, intitulada

    Saudades, j que fora retomada por Garrett na sua pea, a fim de satisfazer algumas

    dvidas relativas descodificao dos anagramas, que vo ao encontro dos amores do

    poeta.

  • 14

    Seguidamente passaremos a abordar a biografia de Gil Vicente, que Garrett

    tambm integra na sua obra e que, tal como a anterior, tambm se apresenta ambgua.

    Desta forma, finalizaremos o captulo, concluindo, luz de inferncias, todo um

    conjunto de razes que ter conduzido o autor utilizao de tais mtodos e de que

    forma os aplicara na pea, de maneira a obter uma boa receptividade, cedendo o lugar a

    uma reflexo acerca do factor lenda de que se servira, para melhor esclarecer a

    escolha da verso relacionada com amor por Dona Beatriz, em detrimento do amor pela

    sua prima, Joana Zagalo.

    Para alm de toda a importncia confinada aos factores referidos, cederemos lugar

    a uma receita referida por Garrett nas Viagens, a qual reflecte alguns pontos presentes

    no Auto, que passaremos a confrontar, de forma a concluir a inteno que o autor teve

    em destacar aquilo que era preciso mudar no nosso Pas, atravs da sua pea,

    acrescentando ainda, de um modo mais concreto e directo, a importncia do papel de

    Gil Vicente em todo o seu esplendor dramtico, sem deixar de ter em conta a sua

    biografia.

    Aps toda uma abordagem em torno do maravilhoso mundo do teatro, efectuado

    por Garrett, s resta assistir aos louros recebidos pelo xito da estreia do Auto

    vicentino, iniciando, para esse fim, um novo captulo, onde procederei abordagem do

    enorme sucesso que teve, servindo de paradigma exemplar e aplaudido

    entusiasticamente pelo pblico.

    Com toda a receptividade positiva que acolhera a pea garrettiana, outras obras

    foram criadas e outros impedimentos surgiram, nomeadamente no que toca

    propriedade literria.

    Assim, de forma a confirmar tudo aquilo que foi referido, relativamente aos

    captulos que abordaremos nesta dissertao, passaremos a introduzir um ltimo

    captulo, dedicado anlise do assunto central, objecto de toda a pesquisa a pea: Um

    Auto de Gil Vicente.

  • 15

    Captulo I

    PANORAMA HISTRICO DO TEATRO PORTUGUS

    A histria do nosso teatro apresenta algumas vicissitudes, tendo passado por

    vrias fases ao longo do seu percurso evolutivo.

    O teatro ao longo da Antiguidade Clssica7, na Grcia, transmitiu sentimentos,

    valores e comportamentos, ridicularizados na comdia ou castigados na tragdia, onde

    se evidenciava a influncia dos deuses sobre os homens.

    Por outras palavras, as situaes evidenciadas pelas personagens serviam de

    exemplo ao pblico, quer atravs do riso, quer atravs do sofrimento, para que, assim,

    as pessoas fossem conduzidas a uma profunda introspeco, de forma a libertarem-se,

    atravs da depurao dos sentimentos.

    As representaes teatrais inseriam-se em celebraes, que honravam o deus

    Dionsio.

    Em Roma tambm tinham lugar as tragdias e as comdias, ainda que com

    algumas diferenas. A msica, os trajes e a linguagem corporal, ainda que na

    actualidade no possamos dispor de muitas informaes, teriam uma grande

    importncia, auxiliando e complementando a palavra.

    7Na Antiguidade Clssica, celebravam-se cerimnias em honra do Deus Dionsio, por meio de danas,

    constituindo o verdadeiro receptculo para o surgimento do teatro na Grcia. Nessas festas, para alm de

    danar, tambm cantavam os ditirambos, que consistiam em cantos corais de carcter apaixonado, que

    poderiam ser alegres ou sombrios. Uma vez que se tratava do deus do vinho e da fertilidade, os

    participantes, nesses momentos festivos, acabavam, naturalmente, embriagados.

    O sculo V a.C. vive o seu momento cultural, mais preponderante com a tragdia. Os temas que eram

    retratados prendiam-se com os problemas existentes nas relaes dos homens entre si e com os deuses,

    relacionados com vrias temticas, como o desrespeito para com as divindades, que eram retratadas em

    pblico, por ocasio das festas dionisacas. As representaes trgicas integravam-se em cerimnias de

    teor cvico e religioso, podendo qualquer membro da plis, assistir, facto que inclua os pobres, que

    adquiriam os seus bilhetes no theoricon, que incidia numa espcie de fundo comum. As peas trgicas

    eram constitudas por um prlogo, para que o autor pudesse expor as circunstncias especficas e o mito,

    que tinha nomeado para passar a pblico. De seguida eram introduzidos os prodos, onde o coro tomava o

    lugar da orquestra, seguindo-se os vrios episdios, ligados pelos cantos e danas do coro.

    A tragdia, segundo Aristteles, na sua obra intitulada Potica, pode ser definida como aquela que [] se serve da aco e no narrao, e que, por meio da compaixo e do temor, provoca a Katharsis de tais

    paixes. Assim, segundo Stephen Halliwel, na Potica aristotlica, podemos resumir a tragdia sobre uma base moralista ou didctica, atravs da qual, nos ensina a dominar os sentimentos conducentes ao

    sofrimento, podemos inserir, igualmente, a base da Katharsis, ligada ao fortalecimento da resistncia

    emocional, diminuindo, assim, a nossa vulnerabilidade, a base de moderao, de forma a encontrar um

    equilbrio e, por ltimo, a base incidente sobre a funo libertadora da Katharsis.

    No que concerne comdia, a sua funo incidiu na crtica poltica e nas referncias a factos ou a

    temas conhecidos e figuras importantes, com finalidade crtica.

  • 16

    Na Idade Mdia, o teatro caracterizou-se pelo seu entretenimento, alegrando as

    festas com cenas burlescas.

    Neste perodo surgiram, pois, tambm, algumas manifestaes, onde tinham lugar

    diversas representaes figurativas com contornos profanos, palacianos, religiosos e

    populares, com a participao de jograis8 e jogralesas, que recitavam e danavam, tendo

    sido estes os nossos primeiros actores. Para alm destes esboos, houve igualmente a

    presena do teatro castelhano, representado por alguns poetas, nomeadamente por Juan

    del Encina.

    Uma das manifestaes teatrais mais antigas que ocorrera no perodo medieval

    portugus remonta ao ano de 1193, correspondendo a um documento baseado numa

    doao de terras no lugar de Canelas, da freguesia de Poiares do Douro, concedidas por

    D. Sancho I ao jogral Bonamis e a seu irmo Acompaniado, com vista a pagar um

    arremedilho, que os dois irmos tinham representado na sua Corte, sendo constatada

    no ano de 1222 a Bonamis e aos legatrios de seu irmo por D. Afonso II.

    As manifestaes teatrais de ordem religiosa e popular, com contornos profanos,

    procuravam entreter as festas populares ou a nobreza, constituindo um momento de

    lazer e diverso com cenas de carcter burlesco, aludindo a cenas da vida de Cristo ou

    de Santos, atravs dos quais se transmitiam valores religiosos. Porm s alguns temas

    sobreviveram em alguns motivos festivos, em toda a Europa medieval, algumas

    representaes, segundo os franceses, se denominam de Mistrios, Milagres, Laudes e

    Moralidades.

    Nos primeiros tinham lugar temas como a adorao dos pastores, ou a viagem dos

    Reis Magos, ou a paixo e Ressurreio de Cristo; nos segundos, dava-se lugar aos

    milagres preconizados por algum santo ou Virgem; nos terceiros, cantavam-se cnticos

    de louvor a Deus e aos santos, sendo dialogadas e, por vezes, com interveno de

    msica e actores vestidos a rigor. Relativamente s moralidades, as personagens de

    forma alegrica ou personificada, representavam os vcios e virtudes.

    8 Os jograis eram associados a uma origem no nobre, estando a sua funo associada tarefa de cantar e

    tocar as composies dos trovadores. Porm, estudos vieram mostrar que o jogral alm dessa tarefa de

    divulgador de feira, praa ou corte, poderia estar ao servio de um trovador ou outro jogral, ou actuar

    independente, recolhendo o repertrio de vrios trovadores, que constituam uma pequena biblioteca de

    rolos, que o acompanhavam.

    Os trovadores eram de origem nobre e encontravam-se envoltos numa arte de galanteria, devida s

    damas, atravs de composies de amor, ou de maledicncia no caso das composies satricas.

  • 17

    Estas representaes tiveram lugar, inicialmente, dentro da igreja, para que os

    fiis percebessem melhor a mensagem incutida no carcter abstracto dos ensinamentos

    religiosos, passando mais tarde a ocorrer fora da mesma sobre um estrado dividido em

    vrios compartimentos, para serem percorridos pelas personagens gradualmente ao

    longo de uma representao dramtica. Este facto ficou a dever-se ao carcter profano

    das manifestaes teatrais, constituindo um declnio no seio do teatro, conferindo-lhe

    um carcter popular, alheado dos formalismos consuetudinrios e passando a dirigir-se a

    um pblico-alvo iletrado.

    No que concerne s manifestaes de ordem profana e palaciana, destacam-se os

    arremedilhos, os momos e os entremezes, os quais consistiam em representaes

    jocosas, de carcter profano existentes no perodo medieval.

    Os primeiros consistiam na combinao entre a declamao e a mmica,

    enfatizando mais a fbula contada pelos jograis ao pblico, o qual se compunha tanto

    por pessoas humildes, como os camponeses, como por fidalgos. Outras formas de

    representao, preconizada pelos jograis, consistiam na imitao, de forma burlesca, de

    pessoas ou acontecimentos, ridicularizando-lhes o semblante.

    O auge do arremedilho teve lugar nos sculos XIII e XIV e, apesar de no ser

    permitido a presena na corte de mais de trs jograis, a verdade que, neste perodo fora

    excedido o limite imposto pelo regimento de 1250 da casa real. Porm, mais tarde, com

    o surgimento da imprensa no ano de 1454 e o aparecimento do livro, a importncia do

    papel dos jograis regrediu.

    Os entremezes caracterizavam-se por um sentido mais especfico, correspondendo

    a episdios particulares e a aces cmicas, sendo vrios aqueles que eram

    representados na mesma festa. Os temas alegricos de pendor aristocrtico eram

    apresentados por figuras que legendavam o significado subjacente. De entre as figuras

    tnhamos os momos, que representavam recorrendo mmica, tendo inicialmente

    incidido no uso de mscaras, ou no disfarce do prprio actor. Eram representadas

    figuras como fidalgos, pajens e por vezes o prprio monarca em festividades rgias,

    constituindo temas provenientes de novelas de cavalaria em que os episdios e os

    personagens eram evidenciados por meio de uma aco mimada, danada e por vezes

    recitada.

    Outras manifestaes teatrais que cremos terem existido, de acordo com os

    historiadores franceses, a farsa e a sottie. Ambas de carcter satrico, distinguem-se

  • 18

    pelo facto de a primeira ser mais popular e centrar-se nos factos e indivduos e a

    segunda centrava-se na crtica de ordem poltica e construtiva, integrando, como

    protagonistas os parvos que correspondiam a tipos ou instituies sociais.

    Relativamente ao teatro castelhano, contamos com o contributo de Juan del

    Encina, que associava s suas obras pastoris os autos e mistrios religiosos, aludindo a

    questes morais, nos quais utilizava a lngua sayagueza, convertida pelo mesmo nos

    vrios falares do oriente peninsular, na reproduo fidedigna do ambiente pastoril.

    As representaes de ordem religiosa sofreram alguns entraves oriundos dos

    princpios da igreja e das suas autoridades, que proibiam qualquer representao alusiva

    a factos bblicos, pois o povo nas festas, ao desempenhar o papel, quer de auditrio,

    quer de oficiante, tendeu irreverncia, evidenciada pelos cantos e pelos actos.

    Outras manifestaes pr-teatrais, para alm das j referidas, passam por alguns

    trechos de Anrique da Mota no Cancioneiro de Garcia de Resende, os quais, de acordo

    com a observao de Andre Crabe Rocha, so como uma criana que balbucia

    primeiro de depois articula9, partilhando da mesma opinio Antnio Jos Saraiva e

    Rodrigues Lapa. Na posio contrria encontra-se Leite de Vasconcelos, que publica as

    trovas de Anrique da Mota a um alfaiate de D. Diogo, sobre um cruzado que lhe

    furtaram no Bombarral, concluindo, a partir das mesmas, o facto de se encontrar

    perante as mais antigas peas do teatro portugus10, abrindo portas para a explorao

    de todo o resto da sua obra na ptica dramtica.

    Deste modo, o teatro portugus encontra-se, desde a nacionalidade at aos fins do

    sculo XV, na primeira fase, passando segunda com Anrique da Mota11

    , que

    compusera apenas alguns trechos dialogados com contornos chocarreiros no

    9 Cf. Lus Francisco Rebello, O primitivo teatro portugus, Editora Biblioteca Breve, Amadora, 19842, p.

    67.

    10

    Idem, p.65.

    11

    Anrique da Mota, poeta palaciano dos sculos XV e XVI, desempenhou a funo de juiz e comps

    peas, como O Processo de Vasco Abul, o qual se encontrava relacionado com a rea judicial, em que se

    tratava de decidir se a personagem principal iria ter direito a recuperar um colar, que tinha oferecido a

    uma bailarina popular. Outras peas incidiram no Pranto do Clrigo, na Farsa do Alfaiate, na Farsa do

    Hortelo e nas Lamentaes da Mula.

    As farsas referidas encontravam-se ligadas reproduo carnavalesca de situaes, que aconteciam.

    Anrique da Mota, a partir de tais factos, exerce uma aco de julgamento sobre algum elemento de

    carcter ridculo. As personagens-tipo, como o clrigo beberro, o cristo-novo roubado, do hortelo

    caricato no seu aspecto exterior, ainda que orgulhoso daquilo que faz, conferem dinamismo s peas. Cf.

    Antnio Jos Saraiva, Oscar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, Editora Porto Editora, 10 edio,

    s.d., p. 158ss.

  • 19

    Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, que, atravs das Trovas a um clrigo sobre

    uma pipa de vinho que se lhe foi pelo cho, faz-nos lembrar O Pranto de Maria Parda.

    Uma terceira fase correspondente ao uso pleno da fala12, que diz respeito ao

    autor desta ltima pea.

    Cremos ter nascido o teatro nos primrdios do sculo XVI, devido indicao

    cnica que se encontra presente na primeira pea vicentina, intitulada Auto da Visitao,

    representado no ano de 1502 nos Paos de Lisboa. Nela vem referido o facto de essa

    pea ter sido a primeira coisa que o autor fez13 e que em Portugal se representou14,

    sendo confirmado pelo desconhecimento de obras escritas pr-vicentinas.

    Deste modo, Gil Vicente marca uma nova viragem no nosso teatro, contribuindo,

    com o seu gnio dramtico, para a sua edificao, aproveitando algumas aprendizagens

    implcitas pelo seu convvio palaciano e as manifestaes teatrais precedentes,

    incluindo, deste modo, o carcter ldico e pedaggico e partindo de exemplos,

    derivados das clogas de Juan del Encina15

    e Lucas Fernandez16

    e das comdias de

    Torres Naharro17

    , concedendo o suporte escrito ao patrimnio dramatrgico, onde

    12

    Cf. Lus Francisco Rebello, op. cit., p. 67.

    13 Cf. Lus Francisco Rebello, Breve Histria do Teatro Portugus, Editora Europa Amrica, Lisboa, 2000

    5, p. 16.

    14

    Idem, ibidem. 15

    Juan del Encina ter nascido, provavelmente, no ano de 1468 e morrido no ano de 1530. Era judeu e filho de um sapateiro, tendo tido, no entanto uma formao acadmica adequada em Salamanca, o que lhe

    permitira ser msico. Teve o privilgio de ser beneficiado da proteco do duque de Alba, conferindo-lhe

    o direito de representar peas no seu Palcio no perodo natalcio.

    A oportunidade de se formar e de fazer representaes em locais conceituados, como o Palcio, t-lo-

    transformado numa figura de grande renome no contexto do teatro moderno.

    Em suma, no seu carcter artstico, podemos destacar a msica, a poesia e o teatro, tendo conferido a

    este ltimo, o aproveitamento do drama medieval e a linguagem popular.

    As obras que se destacam so: oito clogas, vilancetes tradicionais, pastoris, religiosos e profanos, onde

    predomina o popular, que cede lugar ao erudito.

    16

    Fernandez nascera em 1474 e morrera em 1542, tendo desempenhado, em vida, a funo de sacerdote e professor de msica como Juan Del Encina. O primeiro d seguimento cultura medieval, presente em

    vrias clogas, de acordo com o ambiente pastoril, que era caracterstico neste tipo de composies

    poticas. Outras obras onde cultivara a continuidade do esprito medieval, fora, sobretudo, em duas farsas do Nascimento e O Auto da Paixo, destinado a ser representado, este ltimo, em locais religiosos,

    como as Catedrais.

    17

    De Bartolom Naharro apenas h conhecimento de que ter estudado talvez em Salamanca, desempenhando, posteriormente, a funo de sacerdote em Roma sob as ordens de Clemente VII,

    momento que aproveita para se dedicar composio das suas obras, que apresentar apenas aos

    eclesisticos, facto que contribuiu para um atraso nas inovaes introduzidas.

  • 20

    podemos encontrar situaes burlescas, de crtica social e de transmisso de valores

    cristos.

    Todavia Gil Vicente retomou dentre as manifestaes medievais, para alm do seu

    carcter ldico, algumas formas dramticas, como o arremedilho, formando a partir da

    a farsa, na qual surgem presentes resqucios dos goliardos18

    , destacando-se o Pranto de

    Maria Parda, o Velho da Horta, o Clrigo da Beira e o Auto das Fadas.

    Entre o ano de 1502 e 1536, o nosso dramaturgo foi, portanto, autor, encenador e

    actor de aproximadamente cinquenta autos, sendo a maior parte compilada por seus

    filhos Lus e Paula Vicente, que procederam sua edio em 1562 e sua reedio no

    ano de 1586, a qual sofreu grandes alteraes causadas pela interveno da Inquisio,

    pois baseava-se em satirizar temas comuns, inerentes a figuras sociais, algumas

    influentes como o clero, embora com alguma subtileza. Os filhos do dramaturgo

    procederam diviso de toda a obra em quatro tipologias diferentes, a saber: obras de

    devoo, comdias, tragicomdias e farsas, apresentando, porm, algumas discrepncias

    na ligao entre cada pea, relativamente aos temas correspondentes a cada uma.

    O nosso Pas abre-nos a porta a um mundo literrio novo, que se caracteriza pelo

    surgimento do perodo da Renascena, tambm conhecido pela denominao

    Renascimento, abandonando, assim, o velho mundo feudal.

    Gil Vicente e Cames transmitem-nos precisamente um teatro que se integra na

    passagem de um perodo que se encontra a terminar para outro que se encontra a iniciar.

    Gil Vicente, atravs do convvio nas Cortes de D. Joo II e D. Manuel ir sofrer

    algumas influncias advindas dos seres palacianos a que assistia.

    As suas manifestaes teatrais iniciam-se em autos pastoris, passando por farsas

    de carcter burlesco e por comdias e tragicomdias.

    A sua obra herdou dos entremezes palacianos alguns temas nas suas comdias e

    tragicomdias, destinando mais tarde as primeiras, de carcter cavaleiresco, ao

    entretenimento da Corte. As segundas encontravam-se revestidas de um carcter

    No que toca sua produo dramtica, comps primeiros dons a Palas, seis comdias, que agrupara,

    um Dilogo del Nacimiento e algumas poesias profanas e religiosas em metros curtos, cujos temas

    incidem na veia satrica ao ambiente romano, que lhe causara alguns problemas com a Inquisio.

    Em suma, Naharro uma figura artstica, que cultiva a comdia, proveniente do retrato de alguns

    elementos ficcionais, contornados por elementos de teor verdico e a comdia satrica ao servio apenas

    da realidade objectiva.

    18

    Clrigos desfavorecidos, sem o apoio da igreja, tornavam-se vagabundos de esprito provocador. Andavam pelas tavernas e pelas portas das Universidades, cantando e recitando poemas ousados, ou

    satricos, debruando-se estes, sobre a corrupo da Igreja.

  • 21

    aristocrtico e alegrico em tom de cntico e assentes na crtica filosfica da sociedade

    ou de episdios de farsa.

    um dramaturgo que, embora tenha bebido algumas influncias importantes

    decorrentes do perodo medieval no que toca s representaes litrgicas, aos

    arremedilhos, aos entremezes populares e aos momos cortesos, nunca deixou de estar

    atento s mudanas do perodo quinhentista. Cultiva a comdia erudita, diferenciando-se

    dos autos sacramentais do barroco espanhol. Gil Vicente, graas sua grande

    determinao, graas ao seu gnio inconfundvel, graas sua persistncia no auto e na

    comdia, ambos de carcter popular, com que revestiu o nosso teatro, e graas sua

    recusa em adoptar novos modelos dramatrgicos, constitui a sua tentativa de integrao

    na esttica renascentista.

    O contributo de Gil Vicente reforado pelos pontos de vista de Antnio Jos

    Saraiva19

    , que o considera como o representante mais eloquente do velho teatro

    moribundo em Portugal, e Mrio Martins, que relativamente s suas obras considera a

    crista triunfante de uma vaga at ento de pouca altura, mas que j vinha de longe, do

    corao da Idade Mdia20.

    Um bom exemplo no poderiam deixar de ter os discpulos de Gil Vicente. De

    entre os mais populares, destacam-se Antnio Ribeiro Chiado, o mulato Afonso lvares

    e o cego madeirense Baltasar Dias.

    A continuidade marcada pelos seus seguidores encontrou-se muito longe de

    inovar e engrandecer ainda mais os autos vicentinos, pois basearam-se na imitao e na

    repetio, que em alguns casos atingira o plgio, contribuindo para o esvaziamento do

    contedo polmico vicentino, regredindo cada vez mais a sua escola, que passa a conter

    meros dilogos padro entre personagens transformadas em tipos que se movem de

    um lado para o outro sob um nome genrico de fidalgo, escudeiro, entre outros.

    Relativamente aos temas dos seus seguidores, os predominantes so autos religiosos,

    assentes na vida dos santos, ao passo que em Gil Vicente so as moralidades que

    ocupam lugar de destaque entre aqueles, tendo escrito apenas um de carcter religioso,

    intitulado Auto de So Martinho. Deste modo ficaram a faltar as caractersticas mais

    marcantes de Gil Vicente, como a intencionalidade dramtica, o denso lirismo e a

    19

    Cf. Lus Francisco Rebello, O primitivo teatro portugus, op. cit., p. 18. 20

    Idem, ibidem.

  • 22

    violenta crtica, passando-se a uma inteno elogiosa, que defende, de forma evidente,

    as hierarquias da igreja.

    Cames (1524 1580), por sua vez, vai beber os seus temas a dramaturgos da

    Antiguidade Clssica, como Plauto, ao passo que a estrutura e a linguagem dos seus

    autos so herdadas de Gil Vicente.

    Lus de Cames, autor de uma grandiosa obra pica intitulada Os Lusadas, em

    que enobrece o povo portugus e os seus grandes feitos pela Ptria, rumo descoberta

    de novas terras, no campo do teatro no se destacou de igual forma. Escrevera trs

    peas: o Auto dos Anfitries, o Auto de Filodemo, publicados, pela primeira vez, em

    1587 na Primeira Parte dos Autos e Comdias Portuguesas, e o Auto de El-rei Seleuco,

    sendo este ltimo descoberto entre os manuscritos do Conde de Penaguio em 1645,

    acabando por permanecer anexado numa edio, relativa s Rimas da sua autoria,

    segundo nos consta Tefilo Braga.21

    No que respeita aos temas e ao tratamento das personagens, Cames herdara-os

    de Gil Vicente. Os seus temas retratam a natureza com base numa posio superior

    vontade dos deuses e s convenes sociais, conferindo-lhe, por esta razo, um esprito

    renascentista, ao qual acrescentou um esprito medieval, pois aliou o auto, aclamado por

    Gil Vicente, aos temas mitolgicos dos grandes nomes greco-romanos.

    Retomando a influncia de Plauto, acima referido, torna-se pertinente acrescentar

    ainda, no seguimento do paradigma, a compatibilidade existente entre as personagens

    deste e as personagens de Cames, presentes no Auto dos Anfitries, embora outras

    tenham sido adicionadas, como Calisto, Feliseu e Aurlio com seu Moo. Outra

    semelhana diz respeito personagem Almena, correspondente personagem Alcmena

    plautina.

    Outras caractersticas do teatro de Cames prendem-se com a escolha da

    personagem Jpiter, para desempenhar o papel de profetizar os acontecimentos que

    tero lugar na pea, o aproveitamento do cmico, encarnado no duplo, que se efectuar

    com Mercrio, na figura de Ssia e de Jpiter, na figura de Anfitrio, no Auto dos

    Anfitries, onde aproveitar tambm para parodiar pelo caminho do ridculo, o qual

    atingir, quer o grotesco, quer a faccia discretamente graciosa. Nesse auto, o autor dar

    primazia ao tema do amor e ao carcter equitativo das paixes.

    21

    Cf. Jos Oliveira Barata, Histria do Teatro Portugus, Editora Universidade Aberta, 1991, pp. 175-

    -176.

  • 23

    Outro aspecto a ressaltar do teatro camoniano tem que ver com o uso da

    redondilha maior que, segundo J. Voisine,22

    ter sido para o perfeito equilbrio entre o

    esprito popular e o esprito aristocrtico.

    Para alm da questo da forma, deparamo-nos com a abordagem da temtica

    mitolgica, verificando-se a pardia da mesma, com aplicaes caricaturais, que

    contribuam para uma certa desconstruo da sua essncia, isto , os elementos que a

    contemplavam desarmonizavam-se, atingindo o ridculo.

    O objectivo de Cames em suscitar o riso nos espectadores, atravs da

    transformao do mito, tornava-se difcil para o entendimento daqueles no que tocava

    ao carcter histrico de que tendia a afastar-se, no entanto era possvel seguir

    rigorosamente o seu teor, se as suas figuras representativas, no se encontrassem alheias

    ao idealismo, que existia sua volta. Deste modo, apareciam embebidas em sentimentos

    terrenos e subestimadas pelos caracteres fracos dos humanos, chegando a atingir a

    banalidade e a torpeza, caractersticas que conferiam s personagens, supostamente

    divinas, um carcter humano.

    A forma de tratamento do tema mitolgico, efectuada por Cames, desde logo

    transmitiu o seu carcter inovador, contrastando com a ideia que os espectadores tinham

    do mesmo, facto que esteve na origem de uma fraca aceitao das suas peas.

    Todo este percurso dramatrgico evidencia-nos o seu fugaz interesse de um

    Cames ainda estudante.

    Personagem contornvel, no respeitante introduo da dramaturgia de pendor

    clssico em Portugal fora S de Miranda. No ano de 1528 regressara de uma estadia em

    Itlia, encontrando-se embebido em grandes nomes, seus contemporneos, tais como:

    Sannazarro, Ariosto, Bembo e Ruccellai.

    S de Miranda (1481-1558) inicia-se na comdia em prosa, intitulada Os

    Estrangeiros, que ter sido escrita aps o seu regresso de Itlia. Cremos ter surgido

    entre 1526 e 1528, sendo publicada em Coimbra em 1559.

    Dez anos mais tarde ter escrito a comdia Os Vilhalpandos, que ter ido a

    pblico em 1560. Ambas as comdias foram, pois, editadas aps a sua morte.

    22

    Vide J. Voisine, Amphitrion dans le theater europen de la Renaissance, in Bulletin de lAssociation G. Budet, n3, 4 srie, 1954, p.81.

  • 24

    Para alm destas peas s restara uma outra intitulada Clepatra, que no passara

    de um reduzido excerto de uma tragdia em verso, limitando-se as trs peas

    totalidade da sua obra dramtica.

    S de Miranda baseou as suas comdias imitao dos Clssicos latinos Plauto e

    Terncio e o renascentista Ariosto, constituindo para o nosso Pas da poca um acto de

    extrema audcia, uma vez que a nossa tradio dramatrgica, caracterizava-se pela

    composio de peas em redondilhas, as quais Gil Vicente tinha aclamado em Portugal

    com o apoio da Corte. Por esta razo, S de Miranda, no prlogo da sua primeira

    comdia, tece uma crtica aos autos vicentinos, chocando com o dramaturgo.

    As suas comdias possuem vrios aspectos semelhantes, passando pelo respeito

    pelas regras da Comdia Clssica e pelo prlogo, que anuncia em ambas a intriga nas

    figuras personalizadas da comdia numa e da fama noutra. Esta personificao nas duas

    peas vai beber a uma outra personalidade de nome Erasmo, no seu Elogio da loucura.

    Outro aspecto importante a considerar no prlogo a revelao que S de

    Miranda faz na primeira comdia a respeito do facto de ter arremedado Plauto e

    Terncio e ter retirado de Ariosto a personagem Doutor Petrnio. Na segunda

    Comdia, volta ao aproveitamento dos temas plautinos do Soldado Fanfarro e do

    Anfitrio de Cames.

    No que se refere ao rol de temas que rondam as suas comdias, ambas inerentes a

    Itlia, destacam-se uma sociedade corrupta, a existncia de amores interesseiros e

    fingidos, a presena de alcoviteiras, frades libertinos, militares fanfarres, criados

    astutos e namorados ingnuos.

    Quanto tragdia Clepatra, at hoje no recuperada, o surgimento de uns versos

    lricos e sextilhas octossilbicas, junto do manuscrito da cloga Aleixo, fazem-se

    corresponder.

    A ttulo de concluso, podemos referir que a causa de uma fraca aceitao das

    peas mirandinas se deve ao facto de o autor ter cultivado a inovao, proveniente da

    influncia trazida de Itlia, onde decorria a comdia erudita. Esta nova tendncia

    operara de tal forma inovadora23

    , que teve de ser defendida com afinco, perante a difcil

    aceitao.

    23

    Vide GiuseppeTavani, As caractersticas nacionais das comdias de S de Miranda in Ensaios Portugueses, Lisboa, INCM, 1988, pp.414-415.

  • 25

    Ora, se num Pas como Itlia a mudana sofrera obstculos relacionados com a

    aceitao, no seria de admirar, que S de Miranda, ao tentar concretizar o mesmo

    objectivo em Portugal, enfrentasse a mesma situao. No entanto, o dramaturgo no

    desistira, demonstrando coragem na defesa da sua convico transformadora da

    Comdia.

    Outro dramaturgo de referncia da poca Antnio Ferreira nas suas peas Bristo

    e o Ocioso. Tendo permanecido algum tempo em Coimbra, tomou contacto com os

    grandes mestres, que o elucidaram acerca do Humanismo italiano24

    , passando a

    interessar-se por saber mais acerca da traduo de comdias clssicas, que se

    representavam naquele local, tendo para isso convivido com S de Miranda em Lisboa,

    em conversas relacionadas com os maiores interesses que rondavam os nossos

    intelectuais da poca, acabando por, aliado a ele, introduzir o Classicismo em Portugal.

    Outro aspecto aliado a Antnio Ferreira o facto de ter escrito as suas peas na

    nossa lngua, recusando a lngua castelhana em quaisquer dos seus versos.

    A sua Comdia intitulada Bristo, em prosa, fora escrita em Coimbra e dedicada ao

    prncipe D. Joo, sendo a nica publicada ainda em vida. A pea retrata o tema da

    existncia de vrios pretendentes para uma moa, arrastando ideais interesseiros de pais

    pobres que desejavam fazer o casamento de suas filhas por mera convenincia, casando-

    -as com filhos de burgueses de maior hierarquia social. Os fanfarres, os alcoviteiros, os

    intriguistas so outros temas entre outros, imitando o Soldado Fanfarro de Plauto, tal

    como S de Miranda na comdia Vilhalpandos.

    A comdia Cioso, tambm escrita em Coimbra e dividida igualmente em cinco

    actos, trata os temas habituais relacionados com convenincias matrimoniais, o marido

    ciumento, o isolamento da esposa do ciumento, entre outros temas, parecendo

    assemelhar-se s comdias mirandinas.

    Porm, foi com a tragdia Castro que obteve maior receptividade. Esta obra

    suprema, escrita na nossa lngua, manifestou novidade na sua composio em verso

    branco decassilbico, onde evidenciou o nosso sentimento trgico e fatalista, nas figuras

    do infante e futuro rei D. Pedro com Ins de Castro, no qual o amor no tem foras para

    resistir s razes de Estado. constituda por quatro actos, compostos por vrias cenas,

    com a interveno dos coros, que executam uma aco dramtica de grande significado.

    24 O Humanismo italiano foi um movimento intelectual que se manifestara durante o sculo XIV, no final da Idade Mdia e atingiu uma maior consistncia no Renascimento, assente na reviso dos modelos

    artsticos da Antiguidade Clssica, sendo encarados como a afirmao da autonomia humana.

  • 26

    Apesar de tratar-se de uma tragdia moldada pelos cnones das tragdias da

    Antiguidade Clssica, o seu autor Antnio Ferreira abstrai-se do fatalismo trgico

    transcendente, que controlava as figuras mitolgicas, passando a adquirir um

    imanentismo de cariz humanista que se adequa melhor aos sentimentos cristos.

    Por outras palavras, Antnio Ferreira transforma dramaticamente um episdio

    inerente histria ptria, em vez de se limitar elaborao repetitiva de mitos clssicos

    ou temas bblicos, evitando assim de basear-se no habitual de todas as outras tragdias.

  • 27

    Captulo II

    ALMEIDA GARRETT E O TEATRO PORTUGUS

    2.1. CONSIDERAES GERAIS ACERCA DO TEATRO

    O nosso Pas encontrava-se dominado por uma srie de condicionalismos,

    ocorridos nos sculos XVI, XVII e XVIII, que impediram a nossa evoluo cultural,

    facto que pela sua importncia, no mbito do teatro, ser abordado neste captulo,

    contando com o contributo e desempenho de Garrett, num captulo subsequente.

    Portugal, na segunda metade do sculo XVI, encontra-se sob a dominao

    castelhana e cingido autoridade do Santo Ofcio. Esta situao afectou ainda mais, de

    forma directa o esplio que o dramaturgo Gil Vicente nos deixou, uma vez que, na

    reedio pstuma das suas peas, compiladas pelos seus filhos, se assistiu perda de

    algumas delas.

    Porm, muitos retratos de membros da sociedade, nas suas peas, foram

    denominados de forma categorial, sendo referidos, por exemplo, atravs de uma das

    suas caractersticas fsicas aliada ao seu estatuto desempenhado socialmente. Este facto

    ter contribudo para assegurar algumas das peas.

    A presena castelhana, por seu turno, vem com os seus artistas mais proeminentes

    at Lisboa, comeando por se afirmar, interferindo com o desenvolvimento de um teatro

    que se pretendia original.

    A corte filipina encontrava-se em Lisboa, revestida de cmicos espanhis que se

    apelidavam de mogigangas. Representavam sobre o Ptio de Borratm, denominado

    igualmente por Mouraria, o qual j existia desde o ano de 1588, data em que Filipe II

    permitira o acesso parcial ao Hospital de Todos-os-Santos, para dar lugar

    representao de comdias, evitando assim alguns ataques de telogos importantes.

    Para alm do ptio referido havia ainda o ptio das Arcas, considerado de certa

    forma o centro do teatro portugus durante o sculo XVII, at sua destruio

    provocada por um incndio por volta do ano de 1698. Fora depois reconstrudo

    enquanto Hospital, acabando por prolongar-se at ao surgimento do terramoto de

    175525

    .

    25

    Vide Lus Francisco Rebello, Breve Histria do Teatro Portugus, op. cit., p.69.

  • 28

    Deste modo, o nosso teatro encontrava-se em declnio, assente na infecundidade

    de dramas originais e afundado em imitaes.

    Em 1640, o nosso Pas comea por recuperar alguma autonomia, sendo de

    ressaltar Francisco Manuel de Melo na sua farsa O Fidalgo Aprendiz, passado cerca de

    seis anos, constituindo uma obra de referncia no sculo XVII. No entanto, a verdade

    que as influncias que tnhamos sofrido e a redefinio de novos itinerrios s mais

    tarde que se manifestam claramente.

    Assim, poderemos considerar o sculo XVII um fosso na evoluo do teatro

    portugus, pois a maior parte das obras deste perodo foi redigida em latim ou

    castelhano, contribuindo para a perda da nossa independncia, alargada ao nosso maior

    patrimnio de identidade a lngua. Tambm o fanatismo de D. Sebastio contribura

    para o atraso do teatro no nosso Pas, pois provocara o desvio da ateno dos

    portugueses para questes blicas e para a religio, distanciando-os da cultura teatral.

    Outro aspecto conducente ao nosso atraso, prendeu-se com o Salvatrio,

    denominao atribuda pelo povo s propostas exageradas de compresso de despesas,

    apresentadas pelo Ministro da fazenda, Antnio Jos de vila, as quais Garrett tentara

    refutar numa das suas consideraes parlamentares da Cmara dos Deputados de 1841,

    datada de 15 de Julho, relacionadas com a Discusso da Lei da Dcima.

    Nesse mesmo ano, a fim de evitar despesas, tentaram fechar o Conservatrio de

    Arte Dramtica.

    A Comisso Externa colocara algumas propostas conducentes reduo de

    despesas, que sendo mal aceites, deram origem ao termo Salvatrio, revestido de ironia

    e carcter depreciativo.

    Garrett no acata as propostas, colocando-se numa posio oposta, em que afirma

    o seguinte:

    Resolvi votar contra os Srs. Ministros desde que os vi adoptar em globo e sem distino todas as propostas da Comisso Externa; algumas das quais so to

    absurdas, to incoerentes, to filhas de um esprito mesquinho de retroaco e

    obscurantismo [] propostas tais que s por aberrao mental podiam sair de to conspcua congregao de homens como so []. Garrett finaliza, considerando: estou persuadido que grande nmero de membros desta Cmara, daqueles mesmo que alguma oposio tm feito aos Srs. Ministros, ho-de abandonar a

    oposio, e ho-de votar por uma verdadeira salvao do Estado. Esta sim, que a

    salvao deveras: - o mais Salvatrio! 26

    26

    Vide Mrio Gonalves Viana, Poesia e Teatro - Ensaio Preambular, (Seleco e Notas), Clssicos

    antigos e modernos, srie B, Editora Livraria Figueirinhas, Porto, 1944, n.1, pp. 189-190.

  • 29

    No sculo XVIII, nos reinados de D. Joo V e de D. Jos, desenvolve-se o gosto

    pela pera27

    . Este novo tipo de espectculo, proveniente de Itlia, entusiasma bastante o

    primeiro, levando-o a encaminhar para l os msicos mais marcantes da sua corte para

    melhor se aprimorarem nas suas aprendizagens, destacando-se Francisco Antnio de

    Almeida, que tinha composto a pera La Pazienza di Socrate, constituindo a primeira

    cantada no nosso Pas em pleno Carnaval no ano de 1733, e Antnio Teixeira, na sua

    msica composta para peras joco-srias de Antnio Jos da Silva, tambm autor da

    pea Judeu. Este ltimo representa no contexto dramatrgico a personalidade mais

    importante, situada entre Gil Vicente e Garrett, tendo sido condenado fogueira pela

    Inquisio, devido questo judaica retratada na sua pea.

    A presena do Tribunal do Santo Ofcio causou um grande entrave no nosso

    teatro. Em 1780, Pina Manique interferiu no pedido de licena do empresrio Paulino

    Jos da Silva, que orientava o teatro que surgia na Rua dos Condes. Para representar

    as peas, tornava-se necessrio, que fossem primeiro vistas e examinadas no tribunal

    da Mesa Censria, para serem julgadas no que toca religio e aos bons costumes28,

    sendo levadas a pblico luz de uma segunda condio de serem exibidas por homens,

    27

    Apesar do surgimento tardio deste gnero teatral, a verdade que foi muito bem acolhido em Portugal, aps a Restaurao. Todavia, h algum tempo, o msico Domenico Scarlatti, italiano,compositor de

    serenatas, j se encontrava no nosso Pas, representando um, entre muitos dos estrangeiros, que se sentia

    aliciado pela possibilidade de obter lucros nas festas de corte.

    Em 1735 assistimos instalao definitiva de uma companhia italiana, que se instala em Lisboa, sob a

    direco de Alessandro Paghetti, que cremos ter tido contacto com Francisco Antnio de Almeida, autor

    de La Pazienza di Socrate, a qual foi cantada no Pao da Ribeira em 1733.

    As condies materiais do nosso Pas foram melhorando gradualmente, de forma a receber mais

    conveniente a pera maneira de Itlia. Contudo, tambm assistimos mesma cantada em portugus,

    com um protagonismo que chegara a atingir os elementos da corte e outras camadas sociais, que passaram

    a adquirir o gosto pela mesma.

    Outros autores de pera surgiram no nosso Pas, destacando-se Metastsio e Goldoni, sendo o trabalho

    deste ltimo, aquando a sua ida a Paris, muito requisitado pelo nosso embaixador, que lhe encomendara

    algumas das suas obras. Para alm destes autores, tambm recebemos, em catadupla, outros autores,

    bailarinos, arquitectos, cengrafos e coregrafos.

    Perante toda uma positiva receptividade, contudo, o nosso envolvimento foi tardio, como j referimos,

    facto que se deve aos encargos econmicos, que uma iniciativa desta dimenso acarretava.

    Portugal encontrava-se, assim, predisposto a receber tendncias novas do estrangeiro, continuando a

    existir as tradues e a perda de originalidade. Na altura em que se apreciava a pera italiana, surgiam,

    em simultneo, tradues de O Tartufo, Athalie ou O Bourgeois Gentilhomme.

    A aceitao da arte francesa de um Molire, de um Voltaire, de um Corneille e de um Racine, por sua

    vez, no foi acolhida equitativamente por todos, sendo os mais receptivos os nobres.

    A primeira representao que tivemos deste teor ocorreu em homenagem a Lord Tirawley, diplomata

    ingls, que desejava assistir a uma obra em portugus. Assim, Alexandre de Gusmo traduz Le Mari

    Confundu, esclarecendo tratar-se de uma adaptao ao gosto portugus, a qual estreara em 1737, em

    Lisboa. Segundo Jorge de Faria, a arte francesa em Portugal ter comeado de forma mais veemente, na

    segunda metade do sculo XVIII.

    28

    Cf. Lus Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Portugus, op. Cit., p. 25.

  • 30

    pelo que no pode haver receio de que aconteam aqueles distrbios que so inevitveis,

    quando se renem muitas pessoas de ambos os sexos29.

    Nesta linha de pensamento, D. Maria, a rainha piedosa, pela sua tendncia

    solidria e pelo seu fanatismo religioso, concordou com a medida, mantendo-a at ao

    ano de 1799, altura em que Jos de Paula, personalidade ligada ao mundo do teatro,

    conseguiu invalid-la.

    Antes de a lei ser anulada, no ano de 1787, William Beckford assiste

    representao de uma pea com a presena apenas de actores masculinos, provocando-

    -lhe um sentimento de indignao, que evidencia em carta. Tomemos um excerto, a fim

    de avaliarmos o carcter caricato que os preceitos da poca obrigavam. Beckford30

    comenta:

    o drama causou-me mais enfado que divertimento. O teatro baixo e acanhado, e os actores, porque no h actrizes, so inferiores a todo o critrio. Tendo ordens

    absolutas da rainha afastado do palco cnico as mulheres, os papis atinentes a

    estas so representados por mancebos. Julgai que agradvel efeito esta

    metamorfose produzir, especialmente nos bailarinos. Ali se v uma robusta

    pastora trajando as cndidas vestes originais, de macia barba aveludada e

    proeminente clavcula, colher flores com um punho capaz de derrubar o gigante

    Goliath, um rancho de leiteiras, seguindo as suas enormes pegadas, aos pontaps s

    saias a cada passo. Tais meneios e saltos desconcertados, tais trejeitos e olhos,

    nunca eu tinha visto, nem espero tornar a ver na minha vida.

    Para alm desta condicionante, agravante do nosso teatro, juntou-se uma outra lei

    em 1812, que defendia que algumas peas portuguesas deveriam ser em msica e era

    lngua italiana, de forma a aceder aos britnicos, acelerando ainda mais a

    desnacionalizao do nosso Pas.

    Quanto aos vrios temas polmicos que se procuravam exprimir atravs das peas,

    todos eles eram referidos metaforicamente, de forma a conservar a descrio pretendida,

    derivado da censura inquisitria.

    No teatro, a pouca evoluo que se operara foi surgindo a um ritmo lento. Os

    rcades manifestaram-se contra a influncia da pera italiana e o teatro de cordel. Estas

    formas de teatro direccionavam-se a um pequeno grupo social que decaa, ou seja, a um

    povo inculto.

    29

    Idem, ibidem. 30

    Idem, p.26.

  • 31

    Na pera italiana do sculo XVIII, por algum tempo, os papis consignados a

    mulheres eram representados por homens, que eram sujeitos a amputao sexual, para

    que a voz se tornasse melodiosa, recebendo a denominao de Castrati.

    Uma nova Arcdia surgira no ano de 1790. Prolongou-se a tendncia

    neoclassicista, escrevendo-se dramas alegricos, elogios dramticos e tragdias feitas

    em verso, onde o assunto que imperava dizia respeito Antiguidade.

    No final do sculo XVIII, estimava-se uma mdia de 80% da populao

    analfabeta, representando, na prtica quase a totalidade, pois s existia uma populao

    de cerca de trs milhes de pessoas. Os rcades dedicavam-se tragdia de ideais

    cvicos, de acordo com o neo-classicismo e a comdia de moralidade burguesa.

    As formas dramticas que imperam at ao primeiro quartel do sculo XIX

    passam pelos entremezes e farsas populares, sendo umas apenas impressas e outras

    representadas. Este facto deve-se, de acordo com Tefilo Braga, ao facto de faltarem:

    os criadores do drama nacional; no se passava das meras tradues ou imitaes das Tragdias de Arnaud ou Voltaire; porm as aluses polticas enlouqueciam as

    plateias, que estavam atentas a escutar os elogios dramticos, espera em que

    pudessem prorromper em estrondosos aplausos. 31

    Deste modo conclumos, que os elogios eram de natureza poltica, revestidos de

    aco dramtica e dialogados entre personagens alegricas, histricas e mitolgicas em

    simultneo, como por exemplo a glria, a inveja e as figuras histricas como Afonso

    Henriques, entre outras imagens de referncia, surgindo por ocasio de festas oficiais. O

    perodo auge destas manifestaes dramticas deu-se entre 1790 e 1895.

    A partir do ano de 1807, o teatro em Portugal sofre um abrandamento nas suas

    representaes, marcado pela primeira invaso francesa e a consequente fuga da corte

    para o Brasil, seguindo-se ainda a ocupao inglesa factores que condicionaram uma

    mudana mais rpida no seio da vida econmica e social no nosso Pas. O Brasil

    atingira a sua independncia econmica, suscitando uma grande mudana nas

    mentalidades burguesas, que se encontravam envoltas de ideais liberais que imperavam

    em Frana com a Revoluo relativa ao ano de 1789.

    Em 1820 d-se a revoluo liberal com vista a barrar a ocupao estrangeira e

    assim atingir a liberdade e acabar com o feudalismo na economia do Pas.

    31 Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Romntico, 1838-1869, Editora Biblioteca Breve, Amadora, 1980

    1, pp. 22-23.

  • 32

    Dois anos mais tarde, o Pas passa a reger-se sob o regime de uma Constituio

    Liberal. A Inquisio tinha sido suprimida, permitindo a liberdade de expresso escrita,

    podendo ter lugar na imprensa qualquer obra alusiva a quaisquer temas.

    No entanto, os conflitos polticos ainda no tinham acabado. No perodo entre os

    anos de 1823 e 1850, surgem conflitos entre liberais e absolutistas devido a questes

    relacionadas com a aquisio de bens feudais, que se encontravam na posse da igreja e

    da nobreza e que tanto precisavam os burgueses, para contornar a perda dos lucros

    provenientes da ligao comercial com o Brasil, aquando da sua dependncia.

    Aps a Revoluo de Setembro no ano de 1836, as leis de personalidades como

    Mouzinho da Silveira e Joaquim Antnio de Aguiar acabaram com os direitos

    senhoriais, reorganizaram a diviso administrativa do Pas, acabando com as ordens

    religiosas, nacionalizando-lhes os bens. Deste modo, encontrvamo-nos perante uma

    sociedade revestida de uma pequena burguesia, constituda por artesos e camponeses.

    Para alm das mudanas ocorridas nos campos social, administrativo, poltico e

    econmico, tambm as reas da educao e da cultura sofreram uma transformao, que

    comeou por ser operada por Almeida Garrett, que tinha sido encarregado de tomar

    medidas no sentido de organizar um teatro nacional, para que nos enriquecssemos no

    que toca ao civismo e moral, isto , fazer com que o teatro fosse um marco de

    referncia cultural a seguir pela nao.

    Todavia, essa funo exigia de Garrett a capacidade de ultrapassar diversos

    obstculos, como a situao em que se encontrava o estado da nossa literatura

    dramtica, que tinha sido violada pelos trabalhos sem significado dos poetas trgicos e

    pelas chocarrices dos autores de entremezes denominados de cordel, que conduziram

    o nosso Pas ao mago da decadncia cultural.

    O Teatro do Salitre e o Teatro da Rua dos Condes eram dois conhecidos locais de

    representao dramtica. O primeiro, situado em Lisboa, constitua um local desprovido

    de conforto e das mnimas condies, sendo comparado por Anselmo Braancamp Jnior

    a uma baiuca32 onde tinha lugar a classe nfima da sociedade33 e ali s as falas

    cmicas de carcter mais obsceno e as mais desonestas que acolhiam uma maior

    receptividade por parte do pblico, sendo as nicas aplaudidas. Relativamente ao

    32 Cf. Lus Francisco Rebello, Breve Histria do Teatro Portugus, op. cit., p.93. 33

    Vide Anselmo Braamcamp Jnior, Crnica Literria de Coimbra, n2, 18404, s.p.

  • 33

    segundo, tratava-se de um local provisrio de representao, considerado por Costa

    Cascais, uma espelunca imunda e carunchosa34.

    Para alm da ausncia de qualidade das representaes teatrais, tambm havia

    outro problema, que se relacionava directamente com a falta de candidatos devidamente

    instrudos e propensos vida artstica. De facto, a taxa de analfabetismo no nosso Pas

    j era bastante elevada na poca, atrasando o avano cultural.

    Deste modo, os actores existentes, de acordo com o referido nos jornais da poca,

    eram aqueles que passavam o dia trabalhando com o martelo ou sentados na tripea e

    as mais das vezes se apresentavam em cena embriagados35.

    O Teatro de S. Joo, localizado na cidade do Porto, tambm no escapou

    decadncia. A composio dos dramas eram incumbidos a homens incultos e

    despreparados e as peas eram entregues representao por uma companhia que

    actuava vrias vezes com os seus actores bbados. Deste modo concluimos que no

    havia actores, pois ningum manifestava vontade em seguir as artes, considerada uma

    profisso condicionada pela poca. Colocava-se a questo acerca de quem estaria

    disponvel para ser o autor da composio dos dramas para aqueles actores, pois

    ningum se queria sujeitar a desempenhar um trabalho de noites sem um elenco altura.

    Assim, as nicas composies que existiam eram tradues mal feitas, originando uma

    linguagem bastarda e amalgamada de portugus e francs, repercutindo-se at ao

    surgimento da restaurao e, embora tenham surgido algumas peas portuguesas

    originais, no passaram de um simples retrato dos sucessos aterradores da nossa guerra

    civil.

    Surgiram ainda vrias tentativas, com vista a colmatar o atraso cultural, mas

    todos os esforos foram insuficientes.

    Este facto revela o enorme estado de dependncia em que se encontrava o nosso

    Pas, faltando-nos a nossa identidade lingustica.

    O nosso Pas, fora assolado por muitas vicissitudes de diversa ndole, marcadas

    pela demasiada ateno voltada para questes blicas e administrativas, que

    predominaram em detrimento do cultivo das artes, o que constitura o principal factor de

    atraso.

    34

    Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Romntico, op. cit., p. 39. 35

    Idem, ibidem.

  • 34

    O nosso Pas, na arte de representar, nunca esteve ao mesmo nvel dos outros

    Pases. Nunca tivemos uma grande afluncia de actores, como acontecia em Frana,

    Alemanha e Inglaterra, permanecamos, pois, na estagnao valorizando composies

    dramticas sem valor.

    Faltava ao nosso Pas a lei responsvel pela Inspeco dos teatros, funo que fora

    confinada a Almeida Garrett e que o autor ultrapassar atravs de uma srie de medidas

    que sero desenvolvidas no subcaptulo seguinte.

    Deste modo, o autor das Viagens inicia-se na grande empreitada da sua vida,

    que o levar a operar grandes mudanas no estado cultural do nosso Pas, as quais sero

    uma resposta ao que considera estar mal. Essas mutaes sero evidenciadas por meio

    da tomada de medidas conducentes a esse objectivo, sendo abordado todo o processo no

    captulo subsequente.

  • 35

    2.2. O CONTRIBUTO DE GARRETT COMO INTERVENTOR NO TEATRO

    PORTUGUS

    Garrett, nascido no ano de 1799, foi considerado o introdutor do romantismo em

    Portugal. O autor passara a sua infncia no Porto e nas quintas do Castelo e do Sardo,

    desfrutando de paz e serenidade, junto de duas criadas, que o ajudaram a adormecer

    luz de histrias. Estas condicionaram o seu interesse pelo patrimnio cultural popular,

    que o conduzira composio do Romanceiro.

    Com a primeira invaso francesa, Garrett foi levado a deslocar-se para os Aores,

    onde a sua educao confinada a seu tio D. Frei Alexandre da Sagrada Famlia, bispo

    da diocese. Neste perodo da sua vida, toma contacto com as humanidades clssicas,

    tomando conhecimento dos clssicos gregos e latinos, bem como dos autores franceses,

    espanhis e italianos dos sculos XVI e XVII, passando tambm por autores ingleses e

    pelo estudo da histria sagrada e retrica, mostrando j uma propenso para orador.

    Longe de se encontrar interessado pela carreira eclesistica, logo comea a entregar-se

    ao amor durante o perodo da adolescncia, originando o cultivo da poesia e comeando

    por se formar no curso de Direito em Coimbra. Aqui a sua formao cultural volta a

    sofrer influncias, entrando no campo das ideias liberais, fazendo discursos de defesa

    dos seus ideais revolucionrios e compe Odes, as quais canta. Para alm destas

    aprendizagens, comea a dedicar-se actividade de dramaturgo, que nos deixa desde j

    antever a sua ligao futura ao teatro de forma to preponderante. Escreve neste perodo

    tragdias filosficas maneira clssica com um contedo de cariz poltico, destacando-

    -se Lucrcia e Xerxes, sendo apenas Mrope a nica, que na opinio do autor deveria

    ser publicada, sendo todas elas anteriores revoluo de 1820.

    No ano seguinte fora publicada a tragdia Cato, com contornos clssicos e

    contedo liberal, tendo sido vrias vezes representada e em que Garrett participara

    como um dos actores, suscitando um grande interesse ao pblico feminino, dentre o

    qual destaca-se a admiradora Luisa Midosi com quinze anos de idade, por quem se

    apaixona e casa. Entretanto outras produes so criadas, como o poema em verso

    branco intitulado O Retrato de Vnus, com o qual enfrenta alguns problemas

    relacionados com questes morais. Com a perseguio dos liberais, o autor obrigado

    ao exlio, o que ocorrera em Inglaterra no ano de 1823. Viveu l junto de uma famlia

    rica e a nvel cultural, bebeu novas aprendizagens, nomeadamente do movimento

  • 36

    romntico ingls, tomando conhecimento de Byron e Walter Scott e, atravs destes,

    passara a interessar-se pelas influncias que ocorreram na Alemanha e perpassavam

    Frana.

    A propsito das correntes estticas, Garrett, aps todas as influncias por que

    passou ao longo da sua vida, formou uma tendncia hbrida que se manifesta nas

    formas, nos temas estticos, referncias ao nvel cultural, tornando-se invivel uma

    demarcao precisa na sua superao das fases literrias. Atravs das primeiras peas

    dramticas, relativas ao perodo de juventude do autor, podemos concluir a existncia de

    alguns resqucios neoclssicos e a tendncia para alguma susceptibilidade pr-

    romntica.

    Por outro lado, Garrett, no meio desta variedade de tendncias estticas, evidencia

    a sua tendncia de autor romntico. Porm, no se assume numa esttica literria

    especfica, uma vez que sempre prezou a sua independncia e a aquisio de um ponto

    de equilbrio entre elas, cultivando-as sem a adeso exclusiva a uma em particular.

    Assim, Garrett afirma: No sou clssico nem romntico; de mim que no tinha

    seita nem partido em poesia36.

    No que diz respeito ao romantismo, o autor evidencia-o atravs do desrespeito

    pelas regras, atravs do primado do sentimento sobre a razo, o fim de regras e

    desigualdades sociais, a mistura de gneros e a preferncia pela originalidade das obras,

    em vez da imitao de modelos tradicionais e, portanto, atravs da sua tendncia

    inovadora, elementos que fazem com que na prtica Garrett seja um autor romntico,

    mas no de um romantismo exagerado, pois essa tendncia condena-a por consider-la

    inverosmil, isto , sustenta uma posio crtica face ao ultra-romantismo, referindo-se

    nas Viagens a esses excessos da sua poca, assente naquele destempero original de um

    drama plusquam romntico, laureado das imarcessveis palmas do Conservatrio para

    eterno abrimento das nossas bocas!.37

    Tendo j desempenhado primeiramente a profisso de chefe de repartio da

    instruo no Ministrio do Reino, encontra-se neste perodo sem meios de subsistncia e

    a procurar um meio de sustento, passando a desempenhar a funo de correspondente no

    banco Laffite, na sucursal do Havre. A partir deste momento, recomea a sua actividade

    36

    Cf. Carlos Reis, Literatura Portuguesa Moderna e Contempornea, Editora Universidade Aberta, Lisboa, 1990, p. 43.

    37

    Cf. Almeida Garrett, Viagens na minha Terra, edio Amigos do Livro, Lisboa, sd., pp. 250-251.

  • 37

    literria, compondo os poemas Cames e Dona Branca, responsveis pela introduo do

    romantismo em Portugal.

    Muitas outras mudanas sero operadas na vida de Garrett. Outros exlios e outras

    influncias surgiro, bem como outros amores. O seu casamento com Lusa no tem

    seguimento e o seu divrcio, uma vez no concretizado, impossibilitar-lhe- de

    legitimar sua filha, fruto da sua relao com Adelaide Deville Pastor. Ainda com os

    seus cinquenta e quatro anos de idade, Garrett conhece um novo amor de nome Rosa

    Montufar Infante, mais conhecida pelo nome de Viscondessa da luz, que surge nos seus

    poemas.

    Estas referncias demonstram o modo intenso com que o autor se entregou ao

    amor.

    A biografia de Garrett38

    marcada por uma srie de vicissitudes e influncias que

    condicionaram o seu percurso literrio e o seu universo cultural, destacando-se tanto

    como prosador, como poeta, orador, fidalgo, diplomata, deputado e dramaturgo,

    destacando-se, deste modo, como uma das maiores personalidades de referncia da

    cultura do sculo XIX.

    No mbito do teatro que este trabalho aborda, Garrett superou-se, tendo comeado

    por projectar os primeiros esboos, neste mbito, quando tinha 15 ou 16 anos, crendo o

    seu amigo e bigrafo Francisco Gomes de Amorim, que o autor tenha escrito a tragdia

    Lucrcia com essa idade, apesar de ter sido trazida a pblico apenas nos seus vinte anos

    de idade, correspondendo ao ano de 1819.

    Com a idade referida publicao da sua pea, Garrett j centrava o seu

    pensamento sobre o teatro de uma forma convicta, referindo a seguinte reflexo:

    Os teatros, desde que da civilizao e bom gosto foram depurados, e limpos das fezes da barbaridade, comeam a ser no s a escola da boa, e ldima linguagem, e

    a moral s, e pura, mas o incentivo da glria, e o germe das virtudes sociais. 39

    Em 1838, com os seus 39 anos, criou e publicou a pea de referncia Um Auto de

    Gil Vicente, a qual assentou numa reflexo profunda acerca do teatro, a respeito da qual

    falaremos aps a abordagem de todo o trabalho de Garrett conducente mesma.

    38

    Vide J. tomaz ferreira, Prefcio in Almeida Garrett, Frei Lus de Sousa, editora Europa-Amrica, 8 edio, Lisboa, s.d, p.11 et passim.

    39 Cf. Mrio Gonalves Viana, Poesia e Teatro, op. cit., p. 62.

  • 38

    Garrett, preocupando-se com o futuro civilizacional e cultural do nosso Pas,

    resolve intervir de uma forma mais activa no panorama do teatro, atravs do seu cargo

    de Inspector dos teatros, mas como fora referido no subcaptulo anterior, no foi tarefa

    fcil.

    Deste modo torna-se importante abordar o percurso do autor at atingir a meta

    pretendida. Para que possamos compreender melhor o seu modo de actuao, falta-nos

    responder s seguintes questes: Quais as medidas que tomou e as etapas por que

    passou Garrett e qual a soluo que encontrara para dar resposta sua obra de

    iniciativa? Passemos, assim, resposta das questes colocadas, referindo,

    primeiramente como tudo comeou.

    Aps o triunfo da revoluo de Setembro no ano de 1836, Garrett inicia-se no

    renascimento cultural da arte dramtica do nosso Pas.

    Passos Manuel, colega e amigo de Garrett, assina uma Portaria rgia, convidando-

    o a implementar sem perda de tempo um plano para a fundao e organizao de um

    teatro nacional nesta capital, o qual sendo uma escola de bom gosto, contribua para a

    civilizao e aperfeioamento moral da Nao portuguesa e satisfaa aos outros fins de

    to teis estabelecimentos. 40

    A rainha D. Maria II aceitou a ideia de Passos Manuel, permitindo, assim, aps

    cerca de ms e meio o encaminhamento do projecto lei, que lanava as medidas de

    reforma do nosso teatro, sendo dentro de trs dias uma lei estabelecida, pois havia uma

    grande urgncia cultural. Garrett encarara esta necessidade como uma questo de

    independncia nacional41.

    Uma vez que os nossos governantes tinham andado, at data, preocupados com

    o estado da cultura do nosso Pas, decretada em 15 de Novembro a Inspeco-Geral

    dos teatros e espectculos Nacionais, nomeando Garrett, pelo convite de Passos Manuel,

    para o cargo no ano de 1836, o qual o encarara como uma questo pessoal indo muito

    alm da sua funo de investigar o estado dos teatros, avanando tambm para a criao

    de um conservatrio de msica, iniciativa estabelecida no ano de 1835.

    A quantidade de alunos comea a aumentar no Conservatrio dirigido por Garrett,

    o qual comeou por funcionar dividido em trs sectores, sendo um destinado escola

    dramtica, dirigida pelo actor francs Paul e acompanhada por um colega seu de nome

    40

    Cf. Lus Francisco Rebello, O Teatro Romntico, op. cit., pp. 36-37. 41

    Idem, ibidem.

  • 39

    Manuel Baptista Lisboa. O outro sector foi entregue escola da msica sob a

    responsabilidade de Domingos Bontempo e o terceiro e ltimo sector ocupou-se da

    escola de dana, mmica e ginstica especial.

    Segundo Anselmo Braamcamp Jnior, acadmico, que nos refere o estado de

    declnio do nosso teatro desde o ano de 1820, Garrett entendeu o seu novo cargo, ligado

    in