Tese Dadie Kacou Christian
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA BRASILEIRA
Um africano l Macunama: uma interpretao da rapsdia de Mrio de
Andrade com base em elementos literrios e culturais negro-africanos
DADIE KACOU CHRISTIAN
v.1
So Paulo 2007
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RESUMO: No mbito da literatura brasileira, Macunama de Mrio de Andrade uma obra
cuja complexidade formal amplamente reconhecida. Para sua abordagem, tal
complexidade leva geralmente sondagem de duas fontes principais: a Europa
(as vanguardas europias) e as culturas indgenas (explicao mtica). Nossa
tese investiga essa questo formal, uma das preocupaes da arte moderna,
recorrendo a uma literatura perifrica: a literatura negro-africana de lngua
francesa. Descobrimos que Mrio de Andrade e o escritor negro-africano
fundamentam-se na tradio e na oralidade para construir suas obras. Dessa
forma, se estabelece uma coerncia entre a obra de arte e a sociedade que a
produz. O escritor brasileiro e os escritores negro-africanos coincidem em
estabelecer uma relao entre a forma da obra de arte e a cultura, criando
assim uma nova forma de narrativa calcada na experincia cultural e no na
experincia social.
Palavras-chave: oralidade, tradio, literatura africana, literatura brasileira, literatura latino-americana.
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ABSTRACT:
Within the sphere of Brazilian literature, Mrio de Andrades Macunama is a
work of art whose formal complexity is largely acknowledge. In order to
approach such work we must take into consideration the fact that such
complexity take us usually to the probe of two main sources: Europe (the
European avant-garde) and the native cultures (mythical explanation). Our
thesis investigates this formal issue, one of the concerns of modern art. We do
this by working with a peripheric literature: a black-African French speaking
literature. In the course of our research we discovered that both Mrio de
Andrade and the black-African writers base the construction of their artistic work
in the tradition and in orality. In this way, it is established a coherence between
the work of art and the society in which it was conceived. The brazilian writer
and the black-african writers coincide in establishing a relationship between
culture and the form of the work of art, creating, by doing this, a new way of
narrating based in the cultural experience, not in the social one.
Key-words: orality, tradition, African literature, Brazilian literature, Latin-American literature.
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SUMRIO
Introduo............................................................................................. 11
1. O que literatura negro-africana?...................................................25
1. Questo terminolgica........................................................................25
2. Questo de Cnone............................................................................34
3. Gnese de uma literatura....................................................................38
II. A narrativa negro-africana e Macunama: da oralidade escrita.45
1. Oralidade, tradio e literatura...........................................................45
2. A questo lingstica...........................................................................45
3. A narrativa negro-africana e Macunama: uma problemtica formal..58
III.O realismo negro-africano e a rapsdia de Mrio de Andrade.96
1. Fundamentos scio-culturais do realismo negro-africano..............106
2. Problemtica do realismo nos pases perifricos e a metamorfose de
um gnero: o romance..........................................................................113
3. Fantstico, Realismo Mgico, Realismo Maravilhoso, Surrealismo e
realismo negro-africano: convergncias e divergncias.....................123
IV. Uma interpretao de Macunama a partir da noo de fora vital de R. Placide Tempels:.......................................................................133
1. A fora vital........................................................................................136
2. Classificao das foras....................................................................137
3. O nascimento do heri e a fora vital................................................141
4. Macunama: um heri em transe?.....................................................147
5. O Muiraquit e o aumento da fora vital...........................................150
6. A palavra e sua fora........................................................................153
7. O nome e a fora vital.......................................................................155
8. A questo Ancestral e a representao da morte.............................155
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5 - Macunama e alguns heris da literatura negro-africana: Wangrin e Sundjata............................................................................................162
5.1 Wangrin e Macunama.....................................................................162
5.2 Sundjata e Macunama....................................................................174
Concluso............................................................................................183 Anexo...................................................................................................195
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Introduo
Desde o lanamento da primeira edio em 1928, Macunama de Mrio
de Andrade - obra denominada pelo prprio autor de rapsdia - no parou de
desafiar crticos e estudiosos (os quais se debruaram sobre ela no intuito de
torn-la inteligvel). Inmeras foram as metodologias utilizadas entre as quais
se destacam: o dialogismo de Bakthin, a cano de gesta, a narrativa
picaresca, a stira menipia, o esquema elaborado por Vladimir Propp para o
conto russo de magia, a intertextualidade, sem esquecer estudos notveis
como o Roteiro de Macunama de Cavalcanti Proena, O Tupi e o Alade de
Gilda de Melo e Souza etc. Todas essas metodologias serviram de arcabouo
para tentar decifrar a enigmtica produo de Mrio de Andrade que, segundo
Darcy Ribeiro, permaneceria um mistrio1.
Para a crtica em geral, a construo do autor continua sendo um
desafio de interpretao. O prprio Mrio de Andrade teve dificuldades em
reconhecer a cara de sua criao. Depois de vrias hesitaes, definiu o livro
como rapsdia. Essa definio problemtica tornaria ainda mais estranha esta
obra na medida em que, em vez de lig-la ao romance, a aproximava de uma
prtica artstica j ultrapassada, pois sabemos que rapsdia um termo
referente a uma prtica generalizada na Grcia antiga e trazida at nossos dias
por meio das narrativas picas de Homero: a Ilada e a Odissia. Ao considerar
este abismo temporal entre a obra de Mrio de Andrade e a Grcia antiga
Carlos Eduardo Ornelas Berriel afirma em sua tese, Dimenses de Macunama:
filosofia gnero e poca, que o escritor teria realizado uma regressividade
literria.
De qualquer forma, ao publicar Macunama, Mrio de Andrade
inaugurava uma narrativa nova antes desconhecida na literatura brasileira e at
mesmo na literatura do continente sul-americano. Desse modo, um crtico
como ngel Rama pde afirmar que a produo de Mrio de Andrade poderia
ser considerada como fundadora da nova narrativa latino-americana2.
1RIBEIRO, Darcy. Liminar. In: ANDRADE, Mrio de. Macunama. 2 ed, Tel Porto Ancona Lopez (Org.) Madrid: ALLCA XX Unesco, 1996, P. XVIII. 2 Cf. RAMA, ngel. Mrio de Andrade: fundador de la nueva narrativa, In: Dialogo, n 66, Mxico, nov-dez. 1975.
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Como pesquisador da rapsdia de Mrio de Andrade desde os anos do
mestrado, quando tivemos os nossos primeiros contatos com Macunama,
pudemos analisar que um dos problemas fundamentais da crtica ao interpretar
a obra-prima deste autor o da mediao. De fato, poucos no foram os
estudiosos que confessaram como Darcy Ribeiro a complexidade desse texto.
Portanto, Macunama continua sendo uma grande indagao.
Uma anlise da fortuna crtica disponvel hoje sobre Macunama mostra
clara e nitidamente que a mediao europia parece ser a mais destacada
forma de interpretao da rapsdia. Num pas historicamente marcado por uma
grande influncia da cultura e poltica ocidentais, nada surpreendente. No
campo intelectual e, sobretudo, literrio, era evidente que as categorias
oriundas da esfera ocidental dominassem as ideologias. E, isso no passou
despercebido aos olhos da crtica literria brasileira: desde cedo, esta percebeu
o perigo de tal dependncia. A expresso de tal inquietao notou-se primeiro
em Roberto Schwarz. Na verdade, trata-se de uma problemtica levantada pela
crtica latino-americana em geral e que teve maior expresso no Brasil na voz
de Roberto Schwarz.
Segundo Schwarz, as formas e tcnicas (literrias e outras) adaptadas
nos momentos da modernizao foram em geral criadas a partir de condies
sociais diversas. Tal feito teria provocado um desajuste na civilizao brasileira.
Um desajuste que seria tambm trao caracterstico dos pases perifricos3. A
conseqncia conforme o crtico foi, na maioria das vezes, a defasagem da
aplicao dessas ideologias importadas com suas matrizes originais europias.
nessa ordem de idia que Machado de Assis, ao falar da atividade intelectual
no Brasil, j reconhecia desde o sculo XIX que o influxo externo que
determinava a direo do movimento.
Porm, Roberto Schwarz reconhece que embora indispensvel para o
desenvolvimento, o influxo externo subordina e impede o progresso. Da o
impasse do intelectual brasileiro dividido entre duas esferas culturais. Uma
dualidade j salientada por Antonio Candido como sendo linha mestra da vida
espiritual deste pas. Paulo Eduardo Arantes, em Sentimento da dialtica na
3 SCHWARZ, Roberto. Cuidado com as ideologias Aliengenas. In: O pai de Famlia e outros estudos . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 116.
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experincia intelectual brasileira, aponta tambm para essa recorrncia na
crtica brasileira.
Esse impasse em que se encontraria o intelectual brasileiro facilmente
entendido por sua postura diante das realidades de seu pas: de um lado, as
culturas indgenas e africanas, constituindo o grupo dos chamados povos
primitivos; e, de outro, os povos de origem europia, de cultura dita
requintada e civilizada. As culturas indgenas ou afro-brasileiras fariam parte
de um mundo arcaico e estariam na base do chamado atraso do Brasil. Da a
tendncia de que s a Europa poderia devolver ao pas a sua dignidade de
pas civilizado.
No mbito literrio, os crticos esto convencidos de que no h outra
soluo seno acompanhar os passos da Europa. Para Antonio Candido,
mesmo se o intelectual brasileiro deve procurar um caminho prprio, o caminho
que este pode trilhar o levar sempre em direo da Europa. No que diz
respeito aos estudos literrios, tal parece ser hoje no Brasil a postura crtica
mais difundida. Esta, porm, no resolve totalmente a problemtica da
mediao, uma questo intrnseca s literaturas perifricas.
No que diz respeito literatura latino-americana, para Eduardo F.
Coutinho, o problema no se encontraria nos escritores os quais teriam
conseguido, mediante uma tomada de conscincia, dialogar com autores do
contexto euro-norte-americano at ento utilizadas apenas como modelos.
Porm, no seu entender, o discurso sobre a literatura, apesar de uma ampla
tradio ensastica, se manteve de um modo geral prisioneiro da pespectiva
eurocntrica, erigindo como referenciais as obras produzidas na metrpole e
limitando-se a ecoar - no plano da reflexo terica - as vozes que se erguiam
nesses pases. Desse modo, prevaleceria o gosto pela novidade e a atitude
colonizada de importar a qualquer preo o produto oriundo da metrpole.
A mesma questo colocada pelo crtico Mrio Benedetti. Ao analisar a
literatura latino-americana, expressou as mesmas inquietaes e a
necessidade de se propor outro critrio de avaliao: Pois bem, deve a literatura latino-americana, em seu momento de
maior ecloso submeter-se mansamente aos cnones de uma literatura
de formidvel tradio, mas que hoje passa por um perodo de crise e
de fadiga? Deve-se medir um romance como Cien aos de soledade,
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por exemplo, com regras do nouveau roman, cuja experincia criadora
parece hoje mais ou menos ressecada? Deve-se considerar a crtica
estruturalista como a sentena inapelvel acerca de nossas letras? Ou,
ao contrrio, juntamente com nossos poetas e narradores, devemos
criar tambm nossos prprios modos de investigao, nossa avaliao
com signo particular, sados de nossa condio, de nossas
necessidades, de nossos interesses? (...) Quem ira negar a
importncia de Lvi-Strauss, de Michel Foucauld, de Roland Barthes?
Contudo, para nosso campo de meditaes, para nosso impulso, para
nossa sobrevivncia cultural enfim, possvel que sejam mais
importantes e decisivas certas exposies de Octavio Paz, de David
Vias, de Fernndez Retamar, de Ren Depestre, de ngel Rama, de
Antonio Candido, de Aim Csaire. No estou afirmando aqui que tais
estudiosos so mais profundos, mais lcidos ou mais importantes do
que os europeus acima citados, mas o certo que falam o idioma de
nossas necessidades, conhecem nossas carncias, conhecem nossas
possibilidades reais. E isto no vale s para hoje.4
A inquietao de Mario Benedetti (que compartilhamos) no significa
dizer que as literaturas dos pases perifricos devem prescindir da contribuio
europia. Essa contribuio europia no deve ser negligenciada. Ela foi fundamental para entender a importncia das vanguardas europias na
valorizao das culturas ditas primitivas. Um movimento como o surrealismo -
de Andr Breton - imprescindvel para compreender a emergncia das
literaturas dos povos latino-americanos e africanos. Contudo, por mais importante que seja, a contribuio europia no pode substituir a prpria
escala de valores desses pases.
Tal dependncia dos pases perifricos foi denunciada por Antonio
Candido como provincianismo cultural5. A conseqncia disso o descaso
que se nota em alguns crticos europeus quando se trata de analisar
manifestaes culturais oriundas de pases perifricos. Cientes de que esto
diante de literaturas menores, acreditam ser possvel interpretar ou explicar
facilmente certas obras de arte produzidas num ambiente culturalmente
diferente. 4 BENEDETTI, Mario. Necessidade de uma auto-interpretao. In: Amrica Latina em sua Literatura. Unesco. So Paulo: Editora perspectiva, 1979, p. 377. 5Cf. CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In: Amrica Latina em sua literatura. UNESCO, So Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
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Confrontados com uma obra de arte distante de suas realidades, no
hesitam em aplicar nela critrios essencialmente europeus. Assim procedem
com as produes artsticas oriundas dos paises perifricos. O procedimento
bem simples: parte-se do conhecido a cultura europia para apreender o
desconhecido, isto , a obra de arte produzida num pas perifrico. Para uma
parte da crtica francesa, por exemplo, Mrio de Andrade seria um tipo de
Rabelais e Macunama lido com referncia obra deste autor. O que
funciona a dialtica do mesmo e do outro. A crtica europia - neste caso a
francesa acaba por reduzir o livro ao gnero picaresco. Tal atitude lembra
muito bem aquilo que Tzvetan Todorov chama de etnocentrismo europeu.
Cabe tambm salientar que, na maioria das vezes, as produes latino-
americanas so rotuladas de barrocas. Foi o que aconteceu tambm com
Macunama na ocasio de sua recepo na Frana. Segundo o crtico Pierre
Rivas6, o livro de Mrio de Andrade aparece pela primeira vez nesse pas em
1979 - na Editora Flammarion - numa coleo essencialmente dedicada
Amrica Latina; a coleo Barroca. Para o leitor europeu, o Barroco j induz
uma tipologia e um contrato de leitura. Define um campo discursivo especfico
que liga a obra ao continente sul-americano e escrita barroca como estilo
desta literatura. A escolha do termo Barroco desvela a ideologia francesa sobre
a unidade e a especificidade de uma literatura ainda vista como embrionria.
Pelas dificuldades encontradas tanto pela crtica brasileira quanto pela
europia (francesa), em suas tentativas de decifrar esta obra-prima do
modernismo brasileiro, haveria necessidade de propor uma abordagem
diferente. Para ns, esta obra poderia ser considerada como melhor exemplo
da adaptao do romance e de sua reformulao em condio ps-colonial.
por isso que pretendemos mostrar o quanto a obra-prima de Mrio de Andrade
ultrapassa as fronteiras americanas postulando-se como o prottipo de
narrativa das literaturas emergentes.
Para tanto, inverteremos o foco desta investigao partindo de uma
simples constatao: a maioria da fortuna crtica disponvel sobre Macunama
costuma sublinhar a dvida do autor com a literatura europia. Gilda de Mello e
Souza sustenta que a matriz dele fundamentalmente europia. Alfredo Bosi7
6 Pierre Rivas escreveu o prefcio da edio francesa de Macunama. 7 BOSI, Alfredo. Situao de Macunama. In: ANDRADE, Mrio de. Macunama, p. 172.
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afirma, por sua vez, no ser possvel estudar esta obra sem referir-se s
vanguardas europias. Essas posturas crticas refletem muito bem a
concepo de que a Amrica latina faz parte do fenmeno civilizador do
Ocidente. Talvez seja a principal razo pela qual ngel Rama observou que
tudo o que for dito sobre o escritor na Amrica latina compromete o escritor de
qualquer lugar do mundo e, em especial, o do Ocidente8.
Entretanto, para ns, tudo que for dito sobre o escritor na Amrica Latina
compromete, em primeiro lugar, o escritor africano mais do que qualquer outro
escritor do mundo. um dos grandes objetivos desta tese. Sabemos, porm,
que a literatura brasileira e a literatura negro-africana de lngua francesa
apresentam diferenas bem ntidas cujas origens so facilmente identificadas
nos diferentes modos de colonizao que marcaram essas duas sociedades.
Porm, observamos pontos de convergncia entre ambas as literaturas que
necessitam ser pesquisados. Para isso, escolhemos Macunama, uma obra j
estudada no mestrado e que dentre os raros livros da literatura brasileira tratou
positivamente - no tempo de sua publicao - a temtica do negro e de sua
cultura. Esta tese uma oportunidade para comprovar a nossa hiptese de
que, possvel recorrer s literaturas perifricas para esclarecer pontos de
outras literaturas emergentes. A literatura negro-africana e as culturas africanas
serviro de base para verificao desta hiptese. Reconhecemos, portanto,
que tal pesquisa necessitaria uma dimenso interdisciplinar. Alm da literatura,
teremos a contribuio da antropologia, da etnologia, da sociologia, da histria,
etc.
Vrios escritos de cunho literrio ou antropolgico destacam a
importncia do povo negro na formao scio-cultural brasileira. Uma obra
importante a do escritor e socilogo francs Roger Bastide. As suas
contribuies de crtico literrio pouco destacadas pela crtica e a
monumental obra de cunho sociolgico (sobre a religiosidade afro-brasileira)
demonstram o quanto a frica permanece ainda viva dentro do Brasil. At
mesmo os historiadores brasileiros - insensveis por muito tempo a essa
realidade - comeam a despertar. Luiz Felipe de Alencastro em sua obra, O
8 Cf. RAMA, ngel. Literatura e cultura na Amrica Latina. Organizao de Flvio Aguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos. So Paulo: Edusp, 2001, p. 49.
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Trato dos Viventes: formao do Brasil no Atlntico Sul, demonstra o quanto a
histria do Brasil est atrelada ao Continente africano. Uma obra mais recente
(2003) como a de Rita Chaves, Carmen Secco e Tnia Macedo, Brasil / frica:
Como se o mar fosse mentira, refora ainda mais as evidencias da importncia
do continente africano para se apreender as realidades brasileiras.
Todas essas referncias frica so prova de que a civilizao milenar
africana transparece em diversas expresses artsticas dos povos negros
espalhados no mundo. Isso explica como depois do perodo colonial, pases
que foram mais tarde povoados por africanos tiveram suas culturas
transformadas pela presena do negro. Infelizmente, muitos destes pases
dada a miscigenao cultural nem sabem mais distinguir o que legado
africano do que no . Da a importncia de um escritor como Mrio de
Andrade no panorama brasileiro.
Reconhecendo (ainda na dcada de 20 do sculo XX) o valor da
contribuio negra na construo da identidade cultural brasileira, Mrio de
Andrade, ao publicar Macunama, tornava-se um dos primeiros autores a
subverter a literatura brasileira. Num perodo ainda fortemente marcado pelas
teorias racistas do sculo XIX, o autor no hesitou em valorizar as
contribuies indgenas e negras para expressar sua viso do Brasil.
Ultrapassou as fronteiras geogrficas de seu pas com o objetivo de captar os
elementos essenciais e constitutivos do povo brasileiro. Tais caractersticas
essenciais conforme o escritor paulista seriam encontradas nas trs raas
formadoras deste povo: a indgena, a negra e a europia, cada uma delas com
contribuies diferenciadas.
Entretanto, Mrio estabeleceu uma prioridade no seu pensamento. No
seu entender, o Brasil deveria construir uma civilizao imagem das
civilizaes solares. Desse modo, os povos ditos primitivos como os indgenas
e os negros seriam fundamentais na construo dessa civilizao solar to
almejada por ele. Da a importncia da mediao indgena ou negra na leitura e
interpretao de sua obra-prima Macunama.
A mediao indgena j foi salientada pela crtica, mas no de maneira
to sistemtica. Vrios so os estudos que apontam inmeros mitos indgenas
que foram fundamentais para a construo de Macunama. O exemplo mais
citado o clssico Roteiro de Macunama, de Cavalcanti Proena. Essa
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mediao indgena ganhou ainda mais destaque com a recente tese de
doutorado (2004) de Cludio Cuccagna intitulada Utopismo Modernista: o ndio
no ser-no-ser da brasilidade (1920-1930). Cludio Cuccagna ressalta - com
farta documentao - a importncia do elemento indgena na formao
nacional brasileira. Segundo Cuccagna, teria sido o ndio o elemento
aglutinador que torna possvel a emergncia de um povo brasileiro como
entidade homognea e equilibrada. Da a recorrncia de tal temtica desde a
tradio oitocentista at o modernismo dos anos 20 e 30. No modernismo, o
ndio teria sido o elemento de equilbrio para que o intelectual brasileiro
tentasse equacionar a problemtica da nacionalidade - uma questo recorrente
na literatura brasileira desde a poca colonial. E, para ele, Macunama e os
movimentos Anta e Antropofagia constituem bons exemplos da presena
indgena na literatura brasileira.
Outro estudo recente a enaltecer desta vez a mediao afro-brasileira
de autoria do Andr Curiati de Paula Bueno, Palhao de cara Preta: Pai
Francisco, Catirina, Mateus e Bastio, parentes de Macunama nos bumba-bois
e Folias-de-Reis-MA,PE,MG, defendida no Departamento de Letras Clssicas e
Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo em 2005. Nessa tese, Andr refaz em parte o
percurso de Mrio de Andrade na sua pesquisa sobre as danas dramticas
brasileiras. Sabemos que as manifestaes populares constituem a fora
motriz do projeto ideolgico e literrio deste escritor. Desse modo, ao retomar o projeto de Mrio de Andrade, Andr Bueno derrubaria alguns tabus referentes
a pouca relevncia da contribuio dos afro-brasileiros em sua obra. A tese de
Andr Bueno acompanhada por farta documentao comprova - mais do que, o
prprio Mrio de Andrade conseguiu mostrar as razes africanas de certas
danas dramticas antes consideradas de genuna procedncia europia.
Para tanto, em nossa abordagem, no se tratar de privilegiar esta ou
aquela mediao, seno participar do debate sobre uma obra que tem ainda
muito a nos revelar, propondo outro foco de investigao. assim que
devemos entender nossa interpretao da rapsdia de Mrio de Andrade nesta
tese. Para Antonio Candido, por exemplo, estudar literatura brasileira seria
fazer literatura comparada. Isso explica um pouco as razes que nos levaram
sondagem de uma literatura como a literatura negro-africana. Nossa
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abordagem procura fazer jus a essa idia de Antonio Candido sem contudo se
caixar no comparatismo tradicional calcado em noes como as de fontes e
influncias9. A novidade de nossa postura que, desta vez, no se trata de
recorrer s literaturas hegemnicas e sim a uma literatura tambm perifrica.
A nossa proposta que para interpretar uma obra de arte produzida num
pas fundamentalmente de cultura hbrida (como o caso do Brasil), a crtica
no poderia se limitar a uma s fonte como no comparativismo tradicional. Para
tanto, ao invs de voltar nosso olhar para a Europa que no podemos
negligenciar por ser referncia imprescindvel para qualquer literatura
resolvemos recorrer a uma literatura perifrica: a de um povo a possuir laos
histricos e culturais multisseculares com o povo brasileiro e os povos latino-
americanos, de modo geral. Trata-se da literatura negro-africana10.
Como ser possvel perceber, privilegiaremos em nossa pesquisa o eixo
Sul - Sul. Cabe salientar que nosso trabalho no a primeira tentativa de
aproximao entre a literatura negro-africana e a obra-prima de Mrio de
Andrade. Tal investigao foi realizada por Oscar DAmbrosio11. Seu estudo
sobre Macunama e o romance O Bebedor de vinho de Palmeira do nigeriano
Amos Tutuola parece ser uma das primeiras aproximaes entre uma obra da
literatura brasileira e a literatura negro-africana.
Outro trabalho mais recente privilegiando as relaes entre as duas
literaturas a dissertao de Fernanda Murad Machado, um estudo
apresentado em setembro de 2004 na Universidade Paris IV-LA SORBONNE
(Centre Internacional DEtude Francophones). Em sua pesquisa, Machado
retoma as teses das razes populares e folclricas da rapsdia ao compar-la
9 Tratava-se de um sistema hierarquizado no qual o texto fonte era sempre uma obra europia. A obra latino-americana era relegada a um nvel secundrio e enxergada como devedora da obra europia. 10 Por uma questo de metodologia e de rigor cientfico, preferimos restringir a pesquisa literatura dos pases africanos de lngua francesa em vez de abordar a literatura negro-africana em geral tema mais abrangente - o que incluiria os pases de lngua portuguesa e de lngua inglesa. No entanto, vale tambm por essas literaturas, que por serem africanas, compartilham a mesma viso de mundo com a literatura negro-africana de lngua francesa. Porm ao longo desta pesquisa, quando for possvel, podemos recorrer a fontes ligadas s literaturas africanas de lngua inglesa ou portuguesa. Gostaramos de salientar tambm que a questo da terminologia negro-africana mereceu uma ateno particular no captulo I. 11 Cf. DAMBROSIO, Oscar. Mito e Smbolo em Macunama. So Paulo: Editora Selinunte,1994.
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com o romance Ltrange Destin de Wangrin do escritor africano da Repblica
do Mali, Amadou Hampat B.
Porm, como todas as questes levantadas em nosso trabalho so
delicadas, convm lembrar algumas frases sbias enunciadas por estudiosos e
conhecedores do Brasil quanto da frica. Essas frases, de certa maneira,
balizaro nossa abordagem nesta pesquisa. As primeiras frases so do francs
Roger Bastide, um grande pesquisador da cultura afro-brasileira. Ao falar da
obra-prima de Mrio de Andrade, Bastide ressalta que h obras possveis de serem traduzidas, porm algumas como Macunama possuem um ingrediente
especial: de tal maneira que se encontram ligadas ao mais profundo da
sensibilidade tnica.12
O mesmo tipo de advertncia dado ao leitor pelo professor Fbio Leite
ao prefaciar o romance Amkoullel, o Menino Fula do escritor, Amadou Hampt
B. Afirma Leite: Procuro sempre lembrar que existem duas maneiras principais de
abordar as realidades das sociedades africanas: Uma delas que pode
ser chamada de perifrica, vai de fora para dentro e chega ao que
chamo de frica-Objeto, que no se explica adequadamente. A outra,
que prope uma viso interna, vai de dentro para fora dos fenmenos e
revela a frica Sujeito, a frica da identidade profunda, originria, mal
conhecida, portadora de propostas fundadas em valores absolutamente
diferenciais.13
Tais afirmaes soam como advertncias na medida em que nos
revelam a dificuldade de abordar algumas obras especficas produzidas em
condies ps-coloniais com os mtodos tradicionais da crtica.
Essas advertncias nos parecem de suma importncia quanto
abordagem de uma obra como Macunama. Nesta tese, procuraremos no
esquec-las para alcanarmos da melhor forma o nosso principal objetivo:
oferecer uma interpretao da obra-prima de Mrio de Andrade a partir da
literatura e das culturas negro-africanas. Para isso, algumas vezes, ser
importante mencionar dados histricos sobre a literatura negro-africana, sua
12 BASTIDE, Roger .Macunama visto por um francs. In: Revista do Arquivo Municipal, So Paulo: n106, jan.- fev. 1946. 13 Cf. B, Amadou Hampat. Amkoullel, o Menino Fula. trad. Xina Smith de Vasconcellos. So Paulo: Palas Athena: Casa das fricas, 2003.
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gnese e evoluo posterior, assim como dados culturais. Nosso intuito ao
trazer tais informaes no deixar ainda mais confuso o leitor que
desconhece a literatura negro-africana e as culturas consideradas primitivas.
Para a interpretao de Macunama, o principal referencial terico ser a
categoria de fora vital desenvolvida na obra La Philosophie Bantou de R.
Placide Tempels. Outro terico de suma importncia para nosso trabalho o
crtico uruguaio ngel Rama. Nosso trabalho tributrio de suas reflexes
tericas acerca da literatura latino-americana. O conceito de transculturao
literria fundamentado em trs pilares bsicos ser importante para configurar
a estrutura geral de nossa pesquisa. Esses pilares so: a linguagem, a
estrutura e a cosmovisa. Faremos tambm apelo a crticos como Mohamadou
Kane (Senegal) e Jacques Chevrier (Frana) para entendermos a configurao
da narrativa negro-africana.
A tese se divide em cinco captulos. No primeiro, empenhamos nossos
esforos para definir uma questo terica ainda mal resolvida entre os
estudiosos da literatura negro-africana. Trata-se do uso do adjetivo negro-
africano ou negro-africana que vem gerando algumas incompreenses e
polmicas na crtica. Enquanto uns recusam este adjetivo por ach-lo muito
redutor, outros o acham adequado aspirao dos povos negro-africanos que
reivindicam uma civilizao comum. A segunda postura a concepo
admitida geralmente pelos escritores negro-africanos assim como por seus
mais ilustres pensadores: o senegals Cheik Anta Diop14, o marfinense
Niangoran Bouah,15 Boubou Hama16do Nger, Joseph Ki-Zerbo17 do Burkina
Fasso etc. Neste captulo, procuramos sobretudo mostrar que esta polmica
14 Antroplogo, etnlogo e homem de cultura, Cheikh Anta Diop (1923-1986) o mais ilustre dos cientistas africanos. Ele formulou a tese de que a antiga civilizao egpcia era negra. Essa tese foi apresentada durante o colquio internacional organizado pela UNESCO de 28 de janeiro a 03 de fevereiro de 1974 no Cairo, no mbito da redao da obra sobre a Histria Geral da frica. O evento foi marcado pela presena dos maiores cientistas mundiais no campo da egiptologia. Suas idias abalaram as antigas concepes de que o antigo povo egpcio fosse branco ou mestio. 15 Niangoran Bouah (1935-2002), um cientista marfinense pouco conhecido no Ocidente. Ele criador da Drummulogie, estudo cientfico da linguagem do tambor falador. tambm autor de vrias publicaes sobre a frica e suas culturas. 16 Boubou Hama, poeta, filsofo e historiador 17 Joseph Ki-Zerbo, historiador, um dos intelectuais africanos que tiveram papel de destaque na elaborao pela UNESCO da Histria Geral da frica. Junto com Cheikh Anta Diop, vo renovar os estudos sobre a Histria da frica.
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no essencial porque nos parece ser simplesmente uma questo de ponto de
vista.
A seguir, abordamos a questo do cnone literrio. Um cnone que hoje
se sustenta dificilmente diante da prpria metamorfose do romance tanto na
Europa quanto nos pases perifricos. O romance enquanto gnero perdera
toda a sua rigidez formal do sculo XIX, de tal forma que alguns escritores de
literaturas no hegemnicas e no preocupadas com a questo da arte pela
arte puderam integrar o patrimnio mundial de literatura.
Terminamos o captulo com uma breve apresentao da literatura negro-
africana e de suas origens at os momentos atuais com o despontar das
literaturas ditas nacionais. Mostramos que essa literatura chamada de literatura
negro-africana de expresso francesa , na verdade, uma comarca18 literria,
ou seja, um conjunto de literaturas tendo as mesmas caractersticas.
No segundo captulo, destacamos no primeiro item, a importncia da
oralidade e das tradies orais nas literaturas emergentes. Procuramos,
sobretudo, mostrar que apesar dessa preocupao com a oralidade na
literatura negro-africana e na literatura brasileira, haveria pontos de
convergncias e pontos de afastamento entre os escritores desses pases. Na
verdade, estabelecemos a diferena entre a literatura brasileira e a literatura
negro-africana a partir da tradio oral em que se embasam os escritores
africanos e a tradio oral e folclrica em que se fundamenta, por exemplo, um
escritor como Mrio de Andrade.
No segundo item desse captulo, abordamos a questo da linguagem.
Sabemos que uma das tenses do escritor em condio ps-colonial sua
relao ambgua com a lngua herdada do colonizador. Procuramos mostrar
como essa questo pode ser mais crucial em algumas literaturas emergentes e
menos em outras. um tema relevante para nosso trabalho na medida em que
permite estabelecer a diferena que haveria, por exemplo, entre Mrio de
Andrade e o escritor negro-africano, na maioria das vezes, confrontado com
uma situao de diglossia.
O terceiro item deste captulo consagrado questo formal no
romance: uma preocupao que sempre assolou os escritores das literaturas
18 Usamos aqui o conceito de comarca literria conforme o entende ngel Rama.
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ditas emergentes. O recurso oralidade ser para estes uma maneira de
mergulhar nas suas razes culturais com o objetivo de criar um romance
original diferente do romance europeu. Esse tipo de romance foi sempre mal
entendido pois nunca se pensou que tais pases - a maioria deles de culturas
grafas - pudessem reinventar o romance. Nesse captulo, com base nas
teorias do crtico senegals Mohamadou Kane, um dos primeiros tericos
africanos a estabelecer a homologia entre a estrutura do romance africano e as
tradies orais dos povos africanos, procuramos mostrar como a rapsdia de
Mrio de Andrade no diverge tanto do romance negro-africano. Na verdade,
estabelecemos uma conexo entre a arte do escritor brasileiro e a criatividade
dos escritores negro-africanos. Desse modo, podemos dizer que ao recorrerem
tradio oral tanto os escritores negro-africanos quanto Mrio de Andrade
criaram uma nova forma de narrativa essencialmente fundamentada na
tradio oral.
Procuramos demonstrar que o recurso oralidade nas literaturas
perifricas nada tem de ingnuo da parte desses escritores.Tanto na literatura
brasileira (latino-americana) quanto na literatura negro-africana, o uso da
oralidade possui uma incidncia notvel sobre a tcnica narrativa, um fato
comum que as irmana. E essa recorrncia tradio oral no deve ser
interpretada como marca de arcasmo nem colorao de cor local.
simplesmente uma reformulao do romance em pases perifricos, e
caracterstica de modernismo. Essas literaturas, fundamentalmente hbridas, se
valem de dois cdigos: um autctone e outro importado. Contudo, o elemento
dito importado menos valorizado e a forma romanesca embasada no
elemento autctone torna-se a marca de autenticidade cultural.
O terceiro captulo da tese consagrado problemtica do realismo
nos pases perifricos. Trata-se de mostrar como o realismo, europeu se
metamorfoseia nesses pases uma vez adaptado de tal forma que o prprio
romance tambm se metamorfoseia. Abordamos a seguir a questo do
realismo negro-africano que tira a sua legitimidade de sua prpria civilizao
conforme os textos de notveis intelectuais africanos como Amadou Hampat
B, Cheikh Anta Diop, Lopold Sdar Senghor 19, etc.
19 Escritor, poeta, antigo Presidente do Senegal, um dos criadores do movimento literrio Negritude.
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Dedicamos tambm uma ateno particular questo do realismo e de
sua reformulao nos pases perifricos, fato que a crtica s vezes confundiu
com a prtica do surrealismo, ou a presena do sobrenatural, do fantstico, etc.
Tratar-se- de determinar o limite de todos esses conceitos quando aplicados
s manifestaes artsticas e culturais produzidos em pases perifricos.
Destacamos aqui o caso da obra Macunama que poderia aproximar-se ao
realismo negro-africano (uma concepo do mundo oriunda da cosmoviso
dos povos africanos, na maioria das vezes, confundida com o mito, o
fantstico, o sobrenatural etc.).
Na literatura negro-africana, o sobrenatural faz parte do quotidiano. Na
literatura latino-americana, os escritores tambm perceberam que o
surrealismo, neste continente, fazia parte do cotidiano. Salvo algumas
nuanas, que esclareceremos, esses escritores, cada qual, ao seu modo,
abordou a questo do sobrenatural ou do fantstico. Porm, acreditamos que
poucos se aproximaram da ontologia20 negro-africana definida por Senghor
como uma dualidade, porm uma dualidade nica. Foi o caso de Alejo
Carpentier e especialmente Mrio de Andrade, objeto de nosso estudo.
No quarto captulo, com base nas teorias de R. Placide Tempels sobre o
conceito de fora vital ou de energia vital, realizamos uma interpretao da
rapsdia. Essa interpretao revela a homologia que poderia existir entre o
realismo negro-africano e o tipo de realismo presente na obra-prima de Mrio
de Andrade. A partir dessa anlise pudemos concluir que se Macunama no
uma obra realista do ponto de vista ocidental, em outras culturas (na negro-
africana, por exemplo), poderia ser expresso de realismo, de tal forma que o
heri de nossa gente em vez de heri mtico poderia simplesmente encarnar
um heri em transe.
No quinto captulo, consagramos nossa investigao a uma aproximao
entre alguns heris da literatura negro-africana e o heri Macunama. Como
poderemos ver, a frica tambm possui seus heris, os quais, poderiam
tambm reivindicar o ttulo de Macunama africanos. o caso de Wangrin21 e
20 A ontologia negro-africana no admite a dicotomia entre o visvel e o invisvel. Para o negro-africano tudo isso se move numa mesma dimenso. O mundo visvel e o invisvel formam um conjunto coerente. 21 Wangrin heri de LEtrange Destin de Wangrin (O Estranho destino de Wangrin), obra de Hamadou Hampat B. (Traduo nossa)
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de Sundjata22, dois heris emblemticos da literatura negro-africana de lngua
francesa.
Ao contrrio do que se poderia pensar, a obra-prima de Mrio de
Andrade - como teremos a oportunidade de mostrar ao longo desta pesquisa
mantm laos com a literatura negro-africana, os quais podem servir de
fundamento para sua interpretao a partir das culturas e da literatura negro-
africana. Eis a finalidade principal desta tese.
I. O que literatura negro-africana?
1.1 A questo terminolgica
22 Sundjata heri da obra Sundjata ou a Epopia Mandinga do escritor Djibril Tamsir Niane.
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Quando se fala geralmente de literatura africana no Brasil trata-se
especificamente da literatura dos pases africanos de lngua portuguesa ao
passo que as literaturas de lngua francesa e de lngua inglesa permanecem
totalmente esquecidas. Comparadas s literaturas ditas hegemnicas, as
literaturas africanas ainda esto para serem descobertas. Esta uma de
nossas tarefas ao consagrar esse estudo ao Macunama e literatura dos
pases africanos de lngua francesa (mais conhecida como literatura negro-
africana de lngua francesa). Ou seja, a literatura produzida nos pases
africanos negros situados no Sul do Saara. Tal literatura, ao contrrio do que
se pode pensar, dialoga em vrios aspectos com a literatura brasileira.
Porm, antes de abordar todos esses assuntos, um dos fatores que
merece, antes de tudo a nossa ateno o da terminologia negro-africana.
um assunto que envolve tambm a questo do nacionalismo literrio nos
pases africanos. Acreditamos ser imprescindvel que o leitor tenha uma idia
clara da conotao desse termo em nosso trabalho. O que se deve entender de
fato quando utilizamos tal adjetivo ao falar de literatura negro-africana ou de
civilizao negro-africana?
Diante das novas teorias culturais (multiculturalismo e ps-colonialismo)
a reivindicar a visibilidade e a autonomia das minorias, as noes
globalizantes parecem perder suas legitimidades. o caso da terminologia
negro-africana que suscita hoje muitas interrogaes entre crticos literrios e
tericos culturais dedicados ao estudo do continente africano de modo geral.
Para tanto, vale expor as razes pelas quais decidimos manter essa
terminologia.
Considerando a existncia de uma pluralidade tnica na frica, sem
contar a permanncia de populaes de origem europia em pases como
Angola, Moambique, frica do Sul, etc., devido miscigenao decorrente da
colonizao, alguns crticos vem no uso dessa terminologia uma conotao
racial e, sobretudo, uma tentativa de homogeneizao das diversas culturas
africanas, negando assim o pluralismo cultural deste continente. O maior
expoente dessa tese , sem dvida alguma, o crtico cultural Kwame Anthony
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Appiah23. Este entende que as teorias envolvendo essa terminologia teriam
como pano de fundo a mesma ideologia de pureza racial divulgada na Europa
e que os intelectuais negro-africanos e negro-americanos queriam combater ao
promover o Panafricanismo (Importante movimento criado pelos negros
americanos cuja principal meta era o retorno para a frica, a terra ancestral).
Na verdade, as restries feitas terminologia negro-africana por
Kwame Anthony Appiah procedem da sua viso do movimento da Negritude,
crticas compartilhadas com outros intelectuais africanos24. Porm, no
podemos negar o papel histrico da Negritude no panorama literrio africano.
Esse movimento deu origem literatura negro-africana. De fato, nos anos
1930, a questo racial estava obrigatoriamente no cerne das reflexes dos
artistas negro-africanos que escreviam para denunciar a opresso colonial e ao
mesmo tempo reivindicar a autonomia de seus povos. Era legtimo que
manifestassem uma simpatia com a luta dos afro-americanos contra o poder
racista dos Estados Unidos. Os negros americanos tambm enfrentavam a
mesma situao referente negao de suas identidades. Nos Estados Unidos
quanto na frica, havia uma preocupao pela questo da identidade. Frente a
essa situao, os escritores africanos fizeram de suas literaturas um
instrumento de combate, ou seja, uma literatura engajada. Escreviam
geralmente em defesa de uma causa que acreditavam ser a do negro em geral.
A idia de uma literatura negro-africana se consolidou em torno dos ideais do
movimento da Negritude.
Em 1985, diante da abundncia das produes literrias africanas e
caribenhas, o nacionalismo literrio ser objeto de debate na Frana.
Seminrios e mesas redondas sero organizados para discutir a questo.
Pediam que os crticos opinassem sobre o assunto. A conseqncia disso foi a
diviso daquilo antes conhecido como literatura negro-africana. Alguns
ressaltaram o perigo, outros viram nisso melhor oportunidade de promover os
23 Kwame Anthony Appiah, radicado nos Estados unidos, crtico cultural e natural de Gana pas africano. A sua tese sobre a diversidade cultural africana est desenvolvida no livro: Na Casa de Meu Pai: frica na filosofia da Cultura. 24 O papel histrico da Negritude geralmente reconhecido pelos intelectuais africanos. Porm, o movimento foi alvo de duras crticas por parte de alguns escritores como Stanislas Adotevi, Frantz Fanon, Cheikh Anta Diop, Alfredo Margarido, Ren Mnil etc. Para estes, se a reao do negro contra o racismo colonial branco foi historicamente justa e legtima, ela no encontrou respostas adequadas dentro da teoria da Negritude.
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escritores de cada pas e uma libertao do jugo da Negritude. Crticos
chegaram a contestar a idia de uma civilizao africana comum esquecendo-
se de que esta poderia bem reunir vrias culturas e lnguas sem perder a sua
unidade. A maioria dos grandes escritores recusou entrar nessa polmica. Eles
reafirmaram seus desejos de se dirigir frica inteira opondo-se restrio
que impunha a classificao por nacionalidade. Alegavam no ver nenhuma
contradio entre ser, por exemplo, autor senegals e ser autor africano.
Na verdade, ao considerar a relativa juventude dos estados africanos e a
pouca consistncia de suas economias, difcil reivindicar uma literatura
verdadeiramente nacional. Isso vlido para todos os pases da frica negra
do Sul do Saara que constituem a literatura negro-africana de lngua francesa.
Porm, de acordo com a categoria de literatura como sistema de Antonio
Candido, podemos pensar a literatura negro-africana como a literatura do
conjunto desses pases, apesar da existncia das literaturas nacionais.
Vejamos a definio de Candido sobre a literatura enquanto sistema:
Convm principiar distinguindo manifestaes literrias, de literatura
propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por
denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas
dominantes duma fase. Estes denominadores so, alm das
caractersticas internas, (lngua, temas, imagem), certos elementos de
natureza social e psquica, embora literariamente organizados, que se
manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgnico da
civilizao. Entre eles se distinguem: a existncia de um conjunto de
produtores literrios, mais ou menos conscientes de seu papel; um
conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de pblico, sem
os quais a obra no vive, um mecanismo transmissor, (de modo geral,
uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto
dos trs elementos d lugar a um tipo de comunicao inter-humana, a
literatura, que aparece sob este ngulo como sistema simblico, por
meio do qual as veleidades mais profundas do indivduo se
transformam em elemento de contacto entre os homens, e de
interpretao das diferentes esferas da realidade. Quando a atividade
dos escritores de um dado perodo se integra em tal sistema, ocorre
outro elemento decisivo: a formao da continuidade literria, - espcie
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de transmisso da tocha entre corredores, que assegura no tempo o
movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo.25
Conforme Antonio Candido, para que se fale de literatura no mbito
nacional, preciso preencher pelo menos trs requisitos: a) um sistema de
obras ligadas por denominadores comuns (obra); b) a existncia de um
conjunto de produtores literrios, mais ou menos conscientes de seu papel
(autor); c) um conjunto de receptores (pblico). Como se tudo isso no
bastasse, para o crtico brasileiro, ter uma literatura nacional envolve ainda
uma continuidade histrica. Se aplicarmos essas categorias s literaturas ditas
nacionais nessa parte da frica, s poderemos concluir que, por enquanto, no
existem ainda literaturas nacionais consolidadas como, por exemplo, a
brasileira, a francesa, a inglesa etc.
Porm, da mesma forma que se fala de uma literatura latino-americana,
vrios elementos permitem falar de uma literatura negro-africana e falar desta
no singular. uma literatura que d prioridade absoluta questo da oralidade
de tal forma que a crtica literria admite hoje a existncia de uma narrativa
negro-africana fundamentada na oralidade. Portanto, analisados sob o ponto
de vista da categoria de sistema literrio de Antonio Candido, os pases
africanos de lngua francesa constituem uma comunidade lingstica com um
pblico bem amplo; existe tambm um sistema de distribuio liderado por
duas ou trs grandes Editoras, sem esquecer as editoras da grande
comunidade francesa fora do continente africano. E como uma literatura se
constri a partir de outra, esses escritores podem fundamentar-se nas obras de
escritores anteriores, os da literatura negro-africana - do perodo que
antecedeu as independncias - para constituir aquela continuidade literria sem
a qual, conforme Antonio Candido, no haveria literatura nacional.
Apesar das polmicas sobre a terminologia negro-africana, cabe
reconhecer a falta de consenso da crtica sobre a questo. Um crtico como o
francs Jacques Chvrier utiliza a terminologia Literatura negra ou literatura de
25 CANDIDO, Antonio. Formao da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia LTDA, 2000, pp. 23-24.
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frica negra de lngua francesa. Foi o caso nas seguintes publicaes:
Littrature ngre26 e Littratures dAfrique noire de langue franaise27.
Para a crtica Lilyan Kesteloot, a terminologia negro-africana a mais
adequada. Ela justifica o uso do termo como ttulo de sua obra a Antologia
Negro-africana:
Porque adotamos o ttulo Antologia Negro-africana para apresentar o
conjunto das obras literrias, tanto orais quanto escritas que
expressam a viso de mundo, as experincias e os problemas prprios
aos homens negros de origem africana? Porque no falamos de
literatura negra? E porque especificamos a raa? J se viu falar de
literatura branca ou amarela? No. preciso porm evitar o engano
que suscitaria o uso somente do adjetivo africano pois, abrangeria
abusivamente a literatura norte-africana que pertence culturalmente ao
mundo rabe. Porque negro-africano mais preciso do que negro j
que correntemente usa-se um no lugar de outro? Negro-africano indica
uma nuance geogrfica que tambm uma referncia cultural
importante. No se trata dos negros da Malsia nem os da Nova Guin,
trata-se essencialmente dos da frica que, durante sculos,
desenvolveram uma civilizao bem particular que se reconhece entre
todas. Consideramos ento a literatura negro-africana como
manifestao e parte integrante da civilizao negro-africana.28
As justificativas de Lilyan Kesteloot nos pareceriam aceitveis se o
conceito aplicado literatura negro-africana no fosse to abrangente. Porm,
ela entendeu muito bem a importncia de manter a terminologia negro-
africana, mais precisa, para designar a civilizao to particular produzida
pelos povos negros africanos. Uma civilizao particular que se reconhece
facilmente independentemente do lugar de produo. Entendemos que a isso
que Lilyan Kesteloot se refere quando estende a literatura negro-africana aos
demais pases que possuem negros nas suas populaes.
evidente que pases como Cuba, Brasil, Haiti dentre outros, no
produzem literaturas negro-africanas apesar de reconhecermos em algumas
26CHEVRIER, Jacques. Littrature ngre, Paris: Armand Colin, Collection U, 1984. 27 Idem. Littratures dAfrique noire de langue franaise. Paris : ditions Nathan Universit, s/d. 28 KESTELOOT, Lilyan. Antologie negro-africaine: panorama critique des prosateurs, potes et dramaturges noirs du xx sicle. Belgique: Marabout, 1987, p. 5-7.
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produes culturais resqucios desta civilizao29. Isso explica as semelhanas
estruturais entre as obras de arte produzidas nesses pases e as produes
negro-africanas. Esse fato nos levou a estudar a rapsdia de Mrio de Andrade
a partir de uma perspectiva totalmente diferente da habitual, uma vez que
nunca se pensou numa leitura cujo foco fosse a literatura e as culturas negro-
africanas.
Na frica, os intelectuais entenderam cedo que a literatura antes de
tudo manifestao de uma cultura: a cultura negro-africana. Outros falariam de
culturas negro-africanas. Porm, para ns, falar da frica e de suas culturas
no singular ou no plural apenas uma questo de interpretao e de ponto de
vista. No entanto, falar no singular um ponto de vista compartilhado por vrios
intelectuais africanos. Dos escritores da Negritude como Lopold Sdar
Senghor, Bernard Dadi30, Birago Diop aos escritores cientistas e filsofos
africanos como Cheikh Anta Diop, Amadou Hampat B, Hamadou Kourouma
etc. Todos reivindicaram, apesar da influncia da civilizao europia sobre as
tradies locais, um modo de ser bem especfico aos povos negro-africanos
sem exceo.
essa sensao de pertencer a um ncleo comum (a civilizao negro-
africana) que faz o escritor africano privilegiar a voz comunitria no lugar da
voz individual. Tal atitude poderia ser interpretada por um crtico ocidental
como uma forma de ingenuidade ou simplesmente algo contrrio ao progresso,
ou seja, ao modernismo. Na verdade, da mesma forma que o escritor ocidental
retrata a sua sociedade, uma sociedade capitalista e individualista, o escritor
africano mergulha na sua sociedade para subtrair aquilo que esta possui de
mais caracterstico: a vida comunitria. por isso que na literatura negro-
africana, os valores comunitrios prevalecem sobre os valores individuais.
Quando aparecem os valores individuais, sempre para expressar o choque
cultural entre a cultura ocidental e as culturas autctones. uma tenso
freqente que existe nessa literatura.
29 A questo da civilizao negro-africana um tema caro aos escritores do movimento da Negritude e, tambm ao cientista Cheikh Anta Diop, autor de vrias publicaes sobre o tema. 30 Escritor, poeta e dramaturgo natural da Costa do Marfim, um dos cones da literatura negro-africana.
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Ento quando um poeta africano canta a frica no singular no porque
este ignora a pluralidade dos povos que constitui seu continente, mas sim, pelo
sentimento ntimo de tambm pertencer a uma mesma civilizao: a civilizao
negro-africana. Quando a mesma civilizao encontra-se reproduzida em
contextos no-africanos, alguns crticos a chamam de civilizao neoafricana.
o termo usado, por exemplo, por um crtico como Janheiz Jahn31.
Jahn particularmente interessante na medida em que sendo europeu
soube entender as motivaes e as razes que levam a intelligentsia africana a
falar da frica e de suas culturas no singular. No seu livro, Las Culturas
Neoafricanas, ele mesmo usa o singular para tratar das culturas africanas e
justifica:
Este libro se intenta exponer coherentemente la cultura neoafricana. Es
una cultura que se construye sobre dos componentes. El elemento
europeo es ampliamente conocido, de tal modo que el lector lo puede
percibir sin mayores dificultades. El elemento africano tradicional ser
estudiado en mayor extensin, y ser expuesto tal como aparece a la
luz de la cultura neo-africana. Este requiere una justificacin, pues se
objetar nunca ha habido una cultura africana tradicional como unidad
total, sino solamente una pluralidad de diferentes culturas primitivas, y
para fundamentar a objecin se remite a las investigaciones ms o
menos exactas de de los etnlogos. Ahora bien, hasta cierto grado es
una cuestin de interpretacin el que se entienda una pluralidad como
unidad o no. La investigacin europea ha tenido siempre a la vista la
pluralidad sin prestar mayor atencin al denominador comn. A la luz
de la cultura neoafricana, por el contrario, lo que se acenta es la
unidad. (). El frica representada pelos etnlogos es una leyenda en
la que se crea. La tradicin africana que se muestra a la luz de la
cultura neoafricana quiz tambin es una leyenda, pero es una leyenda
en la que cree la intelligentsia africana. Y es su perfecto derecho
declarar como los autnticos, justos e verdaderos elementos de su
pasado aquellos que considera como tales. Si a un cristiano se le
pregunta por la esencia del cristianismo, remitir al mensaje evanglico
del amor al prjimo y no a la inquisicin. () Durante varios siglos, el
frica ha tenido que sufrir bajo la imagen que Europa se haba hecho
del pasado africano. Durante todo ese tiempo, la idea europea era
verdadera, es decir, eficaz. Pero el presente y el futuro son
31 Autor do livro Muntu: Las Culturas Neoafricanas.
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determinados por aquella idea que la intelligentsia africana se crea
acerca del pasado africano. De esta manera, la cultura neoafricana se
presenta como continuidad, como una legtima sucesora de la tradicin.
Slo donde el hombre se siente como heredero y sucesor, posee la
fuerza para un nuevo comienzo32.
Sabemos que pensar a frica e suas culturas no singular uma
problemtica que veio tona por causa das teorias ps-colonialistas. Essas
teorias se fundamentam na obra Orientalismo do escritor e crtico cultural
Edward Said, publicada em 1978. Nela, o autor lana as bases tericas
permitindo estudar e analisar as produes literrias das antigas colnias como
literaturas autnomas. Alguns crticos influenciados por essas teorias as
aplicaram ao continente africano. Foi o caso de Kwame Antony Appiah, um dos
tericos mais crticos da Negritude.
Conforme Kabenguele Munanaga em Negritude: Usos e Sentidos, com
respeito questo da unidade negro-africana, duas tendncias aparecem na
bibliografia especializada. O primeiro grupo baseia-se nas diferenas e encara
o continente africano como um mundo diverso culturalmente. O segundo
ultrapassa o primeiro, acha que as semelhanas nos povos africanos
apresentam uma certa unidade, uma configurao de caracteres que confere
ao continente africano a sua fisionomia prpria. Chamada civilizao no
singular, ou, para utilizar um termo mais recente, africanidade, ou ainda
africanitude, ela se limita apenas frica subsaariana, ou seja, a frica dita
negra.
Kabengele Munanga destaca como a Negritude foi muitas vezes
criticada por querer unir artificialmente povos geogrfica, histrica e
culturalmente diferentes. Porm, apesar de reconhecer que j foi ultrapassado
o tempo em que se sonhava com uma frica unida, indivisvel, preservada e
uniforme, ele confirma a existncia de uma unidade cultural entre os negros do
continente africano. Para Kabengele Munanga, apesar das diversidades
tnicas dos Estados atuais, compostos por vrios grupos de lnguas diferentes;
as etnias, na sua maioria, tiveram e tm proximidade geogrfica e contatos 32 JAHAN, Janheinz. Muntu: las culturas Neoafricanas. Mxico Buenos Aires: Editora Fondo de cultura Econmica, 1963, p. 15.
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histricos comprovados pelas migraes. A tal ponto que essa diversidade
esconde semelhanas importantes destacadas por pesquisadores e cientistas
como Leo Frobenius, M. Herkovits, F. Ratzel, H. Baumann, Denise Paulme e,
sobretudo Cheikh Anta Diop. Todos esses intelectuais mostraram que apesar
da diversidade africana, h linhas fundamentais que caracterizam a frica
como uma civilizao. Para evitar toda confuso entre os conceitos de cultura e
civilizao, observa Kabenguele Munanga no haver oposio entre ambos. A
diferena estaria no fato de que as civilizaes no constituem realidades
imediatamente perceptveis para as pessoas que delas participam. Cada
cultura concreta seria ligada a uma sociedade determinada, cujos membros
teriam dela a conscincia. Porm, delimitar civilizao seria tarefa exclusiva de
cientistas, afirmou K. Munanga.
Resumindo, no que diz respeito essencialmente ao uso literrio da
terminologia negro-africana, acreditamos que esta questo deve ser tratada no
mbito da histria das literaturas africanas em geral e, assim, se justifica
amplamente ao fazer referncia a um conjunto de pases africanos negros (em
nossa tese, essencialmente, os de lngua francesa). Esses pases
desenvolveram literaturas cujos traos comuns constituem o que o crtico ngel
Rama, ao referir-se s literaturas do continente sul-americano, denominou
como comarca33 literria. A comarca literria representaria ento um conjunto
de literaturas que teriam as mesmas caractersticas.
Ao focalizar o continente sul-americano em suas pesquisas, ngel Rama
no ignorava as diferenas entre os mundos da herana lusitana e os da
herana espanhola, nem lhe escaparam as contribuies africanas e indgenas.
No entanto, ele estava convencido de que, alm destas diferenas, era
possvel concretizar - com fundamento - a idia de uma histria comum das
literaturas e das culturas da Amrica Latina.
Acreditamos tambm que foram os mesmos motivos (idias de uma
histria comum das literaturas e das culturas), no que diz respeito literatura
dos pases africanos negros de lngua oficial francesa que levaram a crtica
33 O conceito de comarca literria est desenvolvido na obra ngel Rama organizada pelos professores Flvio Aguiar & Sandra Guardini T. Vasconcelos e publicada pela EDUSP em 2001.
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Lylian Kesteloot34, a recusar a terminologia ps-colonial no lugar da
terminologia negro-africana. Segundo a crtica, essa terminologia estaria
fundamenta na existncia de uma civilizao, ou seja, de especificidades que
se encontrariam nas crenas, costumes e na experincia histrica -
escravatura, colonizao e independncia - destes povos. Portanto, o uso
dessa terminologia teria um respaldo histrico importante que no seria
possvel negligenciar ou apagar de repente.
Seguindo as trilhas do crtico ngel Rama, podemos afirmar que a
literatura negro-africana pode ser estudada como uma comarca literria com
respaldo histrico e cultural. No entanto, pensar em uma literatura negro-
africana tambm refletir sobre o cnone literrio numa perspectiva ps-
colonial.
1.2 Questo de cnone
A palavra cnone tira sua origem da tradio religiosa catlica. Aplicada
literatura religiosa era o conjunto de livros reconhecido pela igreja como parte
da Bblia. Os livros que no entravam no cnone eram simplesmente
considerados no autnticos. Como podemos reparar, falar de cnone falar
de seleo, ou seja, separar o que seria verdadeiro do falso. O mesmo termo
foi usado na literatura por transferncia semntica com o intuito de estabelecer
uma forma de hierarquizao das literaturas e por conseqncia dos escritores.
Pertence ao cnone todo escritor reconhecido como tal pelas instituies
legitimadoras como as escolas, os diversos prmios literrios, as academias de
letras, etc.
34 Lylian Kesteloot uma especialista reconhecida da literatura negro-africana. Pesquisadora no instituto literrio da Universidade de Dakar (IFAN) e encarregada de um seminrio no CIEF (Literatura francfona) na Sorbonne Paris IV. Ela j publicou uma antologia da literatura negro-africana.
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Com relao literatura em geral, as regras de uma literatura cannica
sempre foram ditadas pelo Ocidente por intermdio das instituies
legitimadoras cuja representao por excelncia o prmio Nobel de
Literatura. Porm, nunca na histria da literatura universal, o cnone foi to
questionado como em nossa poca moderna (mais ou menos desde os anos
1920 at hoje). O vento de liberdade que soprou sobre o mundo no sculo XX
com a emergncia poltica e cultural da maioria das antigas colnias, de grupos
minoritrios dos prprios centros hegemnicos, abalou os fundamentos deste
cnone. O multiculturalismo, uma das correntes que surgiu dessa inquietao
profunda, prope o direito expresso de todas as minorias.
Portanto, se o cnone no desapareceu totalmente enquanto modo de
seleo literria devido existncia dos prmios, das academias e dos demais
modos de legitimao, ele perdeu a sua rigidez na medida em que vrias
literaturas ditas menores comearam a ser consideradas dignas de interesse
como o caso das literaturas emergentes.
Diante da emergncia dessa diversidade literria a idia de uma Europa
toda poderosa, centro de uma cultura mundial, comea a perder flego.
neste contexto de total inquietao que surge das profundezas dos mares
como um deus olmpico, o ltimo defensor de um cnone hoje questionado:
trata-se do crtico americano Harold Bloom. Em o Cnone Ocidental, ele mostra
claramente sua hostilidade diante de uma idia da expanso do cnone. Na
seleo dos vinte e seis livros que serviram de base para o estabelecimento do
seu cnone ocidental, o critrio base de sua seleo a estranheza, ou seja,
algo que todas as obras cannicas teriam em comum:
Com a maioria desses vinte e seis escritores, tentei encarar
diretamente a grandeza: perguntar o que torna cannico o autor e a
obra. A resposta, na maioria das vezes, provou ser a estranheza, um
tipo de originalidade que ou no pode se assimilada ou nos assimila de
tal modo que deixamos de v-la como estranha. [...] Quando se l pela
primeira vez uma obra cannica, encontra-se mais um estranho, uma
surpresa misteriosa, do que uma realizao de expectativas. Assim
lidos, tudo que A divina comdia, Paraso perdido, Fausto Parte Dois,
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Hadji Murad, Peer Gynt, Ulysses tm em comum, seu mistrio, sua
capacidade de fazer-nos sentir estranhos em casa. 35
Para sustentar tais idias, Harold Bloom elabora um mtodo que
denomina a teoria da influncia. Segundo esta teoria, uma literatura no se cria
do nada. Um romance s poderia ser criado inspirado em outro romance
porque seu autor bebeu nas guas de outro, estabelecendo assim uma
tradio literria. Para Bloom, a literatura no deveria ter outra preocupao a
no ser a prpria literatura. Todas as demais preocupaes, sobretudo sociais,
no fariam parte dos papis da literatura. Assim descarta tambm a crtica de
conotao marxista que estabelece elos entre literatura e sociedade.
Cabe salientar que apesar das diversas formas de literatura que
encontramos hoje, Harold Bloom faz parte - como o destaca to bem a crtica
moambicana Ana Malfada Leite dos crticos ou tericos que acreditam ainda
ser possvel construir a literatura numa espcie de zona incontaminada da
ideologia atribuindo para essa um prestgio especial isolada de outras formas
de discurso36.
Harold Bloom no pra a. Sob as alegaes de que se um cnone
existe para pr limites, desqualifica em sua seleo da literatura cannica
todas as literaturas dos pases ps-coloniais e dos grupos minoritrios como o
feminismo e as produes escritas de nfase social. Assim, se insurge contra
os multiculturalistas e toda a crtica apoiando uma literatura mais democrtica:
O Cnone Ocidental, apesar do ilimitado idealismo dos que gostariam de abri-lo, existe precisamente para impor limites, para estabelecer um padro de medida que
tudo, menos poltico ou moral.37
Ao acompanhar as trilhas do pensamento deste crtico, podemos
facilmente deduzir que para ele, as literaturas dos pases ps-coloniais ou
perifricos seriam simplesmente manifestaes no-literrias, ou seja,
35 BLOOM, Harold. O Cnone Ocidental. Trad. Santarrita Marcos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 12-13. 36 Cf. LEITE, Ana Mafalda: Literaturas Africanas e Formulaes Ps-Coloniais. Maputo: Imprensa Universitria, 2003. 37 LEITE, Ana Mafalda: Literaturas Africanas e Formulaes Ps-Coloniais. Maputo: Imprensa Universitria, 2003, p. 42
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subliteraturas, na medida em que a maioria delas reivindica sua filiao a uma
tradio oral ao passo que a literatura europia se fundamentaria em uma
tradio escrita. Sob esse ngulo, apenas uma literatura seria digna de
interesse: a literatura ocidental.
A busca de autonomia imprescindvel para as literaturas emergentes
no foi sempre bem vista (como demonstra muito bem o crtico Harold Bloom).
Uma anlise das relaes internacionais mostra claramente que esta atitude
no s um fenmeno literrio. Nas demais reas como a poltica e a
economia, o fenmeno menos mascarado ao passo que nas artes e na
literatura se configura de forma mais sutil. Essa atitude comea porm a ser
desmascarada.
Segundo Ana Mafalda Leite38, haveria muitas atitudes subjacentes nas
formulaes discursivas em relao frica. Uma delas a paternal talvez
ainda com resqucios coloniais, que enxerga o outro com distncia e tolerncia,
mas sem reconhecer de fato sua maturidade e autonomia. Nessa perspectiva,
discutir o cnone significaria questionar um sistema de valores institudo por
grupos detentores de poder cultural, que legitimam um repertrio, com um
discurso por vezes globalizante. Esta questo est ligada, como j salientamos,
excluso de uma produo oriunda de grupos minoritrios, nos centros
hegemnicos e de uma produo literria oriunda dos pases que passaram
pela colonizao.
Uma das grandes contribuies tericas para refletir sobre a
problemtica do cnone foi do crtico Edward Said, cujas propostas sobre as
literaturas ps-coloniais estabeleceram os fundamentos tericos da existncia
de tradies literrias calcadas nas tradies locais e cujo resgate seria
indispensvel.
As propostas de Said salientam a importncia da variante em relao
norma. Na literatura brasileira cuja problemtica da cpia das fontes europias
foi sempre questionada, a crtica j reconhece a sua formao genuinamente
brasileira. Ou seja, em ambiente novo, o que era classificado como cpia
passara por um processo de adaptao que a torna muito diferente da original.
38 Ibid., Passim.
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Isso foi possvel graas dialtica entre o local e o universal (como o ressalta
bem o crtico Antonio Candido) e segundo a teoria de transculturao de ngel
Rama.
Outro ponto importante a destacar nessa questo de cnone, o da
avaliao e valor das literaturas ditas emergentes. So aspectos problemticos
na busca de critrios para institucionalizao destas literaturas. De que lugar
crtico escreve, por exemplo Harold Bloom na sua atribuio de mrito ou de
estranheza? Ou seja, quais seus fundamentos tericos quando julga ser uma
literatura cannica ou no?
Para Ana Mafalda Leite, a avaliao e o valor, tal como o sentido, no
so qualidades intrnsecas, mas nascem da relao entre o objeto e certos
critrios estticos e institucionais. Ao rebater a corrente crtica que s privilegia
fontes escritas Leite ressalta que no deixa de ser pertinente que quem tem
laos mais estreitos com a oralidade tem uma apreciao diversa daqueles que
secularmente evocam a tradio escrita.
Segundo essa crtica, haveria nas literaturas das antigas colnias uma
espcie de reivindicao formal fruto de uma tradio cultural e tambm de
uma necessidade de criao de novos campos literrios. Nesse nterim, as
propostas resultam numa enunciao por muitas vezes desconhecida, do ponto
de vista crtico ocidental. Dessa forma, no de estranhar se um crtico como
Harold Bloom julga essas literaturas desprovidas de valor literrio.
Na maioria das vezes, o crtico ocidental pouco acostumado a tais
literaturas tende a julg-las, ou pouco cultas, ou desprovidas de novidade,
simplistas, mesmo imperfeitas. Para Ana Mafalda Leite que denomina essas
literaturas de mutantes, elas podem despistar o olhar que procura a
reproduo dos seus prprios modelos. Um aviso que vale tanto para a
narrativa negro-africana como para um romance como Macunama.
As literaturas emergentes sobretudo as literaturas africanas - com
resultado combinatrio de narrativas tradicionais orais oferecem, na verdade,
alternativas maneira de construir a estrutura narrativa, ao inclurem muitas
formas oriundas da oralidade como o provrbio, o canto, o conto, a
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dramatizao, etc. Isso ser exemplificado no estudo consagrado ao
Macunama e a narrativa negro-africana nesta tese.
Deste modo, depois de definir o que entendemos por negro-africano e,
antes de abordarmos a questo do romance negro-africano e Macunama -
como prticas romanescas que surgem em condies ps-coloniais, isto ,
como reformulao ou re-escrita e no continuao de prtica discursiva
europia -, realizaremos uma pequena digresso com o objetivo de apresentar,
de maneira sumria, a literatura negro-africana.
1.3 Gnese de uma literatura.
Sem mencionar uma data exata, o nascimento poltico e literrio dos
povos negro-africanos de pases de lngua francesa (do ponto de vista da
histria ocidental) inicia-se durante a primeira metade do sculo XIX com a
expanso colonial. Portanto, se o continente africano possui uma civilizao
oral milenar, a literatura escrita uma questo que surge no sculo XX. Deste
modo, comparada literatura escrita brasileira, uma literatura ainda jovem.
As primeiras manifestaes literrias so escritas pelos colonizadores.
Trata-se da chamada literatura colonial de conotao muito mais etnolgica do
que propriamente literria e marcada por um ponto de vista unilateral: a viso
do colonizador. O negro era representado de maneira caricatural e
desumanizado. Era simplesmente o primitivo, ou seja, aquele que deveria ser
catequizado e civilizado.
Da fase colonial, chegamos literatura indgena39. Esse perodo
marcado pela publicao de Batouala, o romance que ser considerado por
grande parte da crtica como o precursor da literatura negro-africana. De fato,
Batouala, escrito em 1921 por Rn Maran40, foi neste mesmo ano
39 a literatura produzida pelos negro-africanos antes das independncias. 40 Ren Maran (1887-1969) nasceu na Martinica. Criado na Frana, se torna administrador de colnia. Na frica, escreve seu primeiro romance, Batouala. Por ter sido o primeiro negro a escrever contra o regime colonial, foi considerado como precursor do romance negro-africano pelos criadores do movimento da Negritude.
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contemplado com o prmio literrio francs Goncourt41. Apesar desse
reconhecimento internacional, o autor sofreu perseguies por parte da
administrao colonial. Seu nico delito seria ousar descrever, em um estilo
realista, os danos da colonizao na organizao poltica e social dos povos
africanos. Nesse romance, Rn Maran conseguia expor de maneira clara os
motivos - naquela poca ainda mascarados - da empreitada colonial, isto , a
explorao econmica.
Porm, apesar da importncia do romance de Ren Maran, por si s,
ele no explica a emergncia da literatura negro-africana. Houve outros fatores
entre os quais vale mencionar a criao da Negritude (primeiro movimento
literrio para a emancipao dos povos africanos colonizados), a influncia dos
movimentos literrios da vanguarda internacional como o surrealismo e o
cubismo sobre os poetas e escritores africanos e a dos negro-americanos que
pregavam o panafricanismo42. Cada um desses acontecimentos, como
veremos, teve papel decisivo na consolidao da literatura negro-africana.
Com a expanso colonial, os europeus introduziram um sistema de
ensino (a Escola) no continente africano. O objetivo era formar colaboradores
para facilitar o processo de colonizao cultural e a explorao econmica.
Alguns jovens viajavam Europa para concluir os estudos (no caso das
colnias francesas, para a Frana).
Nesse nterim, surgia nos anos quarenta, num contexto mundial, uma
gerao de intelectuais que lanava o movimento Negritude43. Eram eles Aim
Csaire, da Martinica, Lon Gontran Damas da, Guiana francesa e Lopold
Sedar Senghor do Senegal. Esses futuros cones da Negritude encontravam-se
na Frana como estudantes de seus respectivos pases. Naquela poca, Paris
- a capital literria mundial e local privilegiado das vanguardas internacionais
estava em grande ebulio. Era a vez da frica e das culturas ditas primitivas.
Pintores como Pablo Picasso, Georges Braque, Matisse etc. fundamentando-se
41 O Prmio Goncourt faz parte ainda hoje do universo literrio francs. 42 Importante movimento criado pelos negros americanos cuja principal meta era o retorno para a frica, a terra ancestral. 43 A Negritude enquanto movimento literrio e de emancipao poltica surge com esses trs intelectuais. Porm, se o movimento teve como bandeira a luta pela emancipao social e poltica do negro em geral, a vertente literria do movimento se desenvolveu muito mais nos pases africanos de lngua francesa.
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na arte africana, realizavam uma verdadeira revoluo na arte europia. Na
msica era o tempo do jazz afro-americano de origem africana. Na literatura,
um escritor como Blaise Cendrars lanava a Antologia negra de contos e
poemas e os pequenos contos africanos para crianas brancas. Philippe
Soupault, um surrealista, escrevia um romance intitulado Negro branco.
Guillaume Appollinaire, no seu famoso poema zone evocava os fetiches da
Oceania e da Guin.
Semelhantemente aos modernistas brasileiros que descobriram o Brasil
a partir de Paris, os jovens poetas africanos perceberam em Paris elementos
que atestavam da existncia de uma cultura e civilizao essencialmente
negras. Nos vanguardistas, principalmente nos surrealistas, encontravam
elementos de identificao. O surrealismo recusava o racionalismo ocidental
predominante na arte e na literatura. Expressava uma revolta geral diante dos
valores da sociedade burguesa, colocando em primeiro lugar a criao
artstica, o inconsciente e a magia. Em Paris, havia contatos permanentes entre
os jovens africanos e os poetas surrealistas. A aproximao ao surrealismo
explicava-se tambm pelo fato de que, a escrita surrealista ia ao encontro da
fala africana: ruptura com a versificao, uso do ritmo interior, alternando entre
tempo fraco e tempo forte, quebrando a estrutura rtmica do verso clssico. O
legado desse movimento na poesia negro-africana ser a prtica do verso livre
e a expresso da revolta contra o sistema colonial.
Essa revolta expressa na poesia dos poetas da Negritude era
conseqncia tambm do contato com os escritores negro-americanos. No
entanto, essa influncia afro-americana seria muito mais ideolgica do que
literria. Naquela poca, os negros americanos pregavam o Panafricanismo,
um movimento cujo propsito era reunificar os negros de todos os continentes.
O Panafricanismo ser bastante importante para compreender o quadro
ideolgico e poltico em que se desenvolveu a Negritude literria: tomada de
conscincia racial, afirmao da africanidade dos negros do mundo, recusa
assimilao e aculturao. Nomes emblemticos da luta racial na sociedade
americana, como William Du Bois e Marcus Garvey sero vistos como
referncias pelos futuros criadores da Negritude.
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Do conjunto dessas influncias surgir a Negritude, um movimento que
pretendia opor-se teoria da tbula rasa usada pelo Ocidente para justificar a
colonizao e, segundo a qual os negros eram sem cultura e sem civilizao. A
Negritude se definia como a afirmao dos valores culturais dos negros. Para
um crtico como Jean-Paul Sartre, constitua um movimento dialtico cuja tese era a afirmao terica e prtica da superioridade do branco e a posio da
Negritude como anttese, ou seja, a negao da negao do negro. A
Negritude foi um movimento que teve grande impacto sobre todos os escritores
negro-africanos em geral nos anos que antecederam as independncias dos
pases africanos de lngua francesa, inglesa e portuguesa.
Em realidade, tal movimento no almejava s negar a tese da pretendida
superioridade racial europia. Para Senghor, um de seus fundadores, o
objetivo principal era construir um mundo sem preconceito racial. No entanto,
estava consciente de que antes de chegar a esta fase construtiva, era
necessrio destruir todas as teses mentirosas alegadas pelo homem europeu
para inferiorizar o negro e justificar a colonizao. Da o trao guerreiro deste
movimento que tambm buscou a conciliao e reconciliao entre todos os
povos. O intuito do movimento era trazer sua contribuio na construo de
uma civilizao do universal e no na construo de uma civilizao
universal, caso da moderna civilizao globalizada atual. Escreve Kabengele
Munanga:
O exame da produo discursiva dos escritores da Negritude permite
levantar trs objetivos essenciais: buscar o desafio cultural do mundo
negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial,
lutar pela emancipao de seus povos oprimidos e lanar o apelo de
uma reviso das relaes entre os povos para que se chegasse a uma
civilizao no universal como a extenso de uma regional imposta
pela fora, seno uma civilizao do universal, encontro de todas as
outras, concretas e particulares44.
A poesia (mais do que o romance) ser a forma de expresso
privilegiada pelos escritores negro-africanos na fase de lutas contra a opresso
44 Cf. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Editora tica: So Paulo, 1988. p.43-44.
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do colonizador. O poema traduzia melhor essa revolta. Para eles, a expresso potica no devia ser limitada a uma simples questo formal, mas sim vincular-
se a uma corrente ideolgica, isto , uma poesia militante que permitisse
avaliar o mundo e, ao mesmo tempo, preservar a memria cultural africana.
Isso demonstra a conscientizao do poeta negro-africano e sua funo
histrica na luta pela independncia poltica de seu pas contra a aculturao e
assimilao passivas. Guy Tirolien, em seu poema intitulado: Senhor no quero mais ir escola deles rebela-se contra a escola, fundamento da
civilizao ocidental e instrumento por excelncia de aculturao e de
assimilao. Vejamos:
Senhor! Estou cansado.
Nasci cansado.
E muito andei desde o cantar do galo.
E bem alta a colina que leva para a escola deles.
Senhor, no quero mais ir escola deles,
Por favor, faa com que eu no volte mais para l (...) 45
Durante muito tempo a escola foi vista de maneira ambgua pelos
intelectuais africanos. Ora como sinnimo de progresso, isto , como forma de
superar as contradies das prprias sociedades tradicionais africanas, ora tida
como a maior ameaa sobrevivncia dessas sociedades. No poema de Guy
Tirolien, a escola sinnimo de ameaa.
O terceiro momento da literatura negro-africana dominado por temas
engajados e recorrentes como: a revolta e denncia da explorao colonial, a
destruio das sociedades tradicionais, a afirmao de uma civilizao negro-
africana, a nostalgia de uma frica ancestral, a viso de um mundo multirracial
com a contribuio cultural africana, a opresso colonial, o perdo, a paz, as
tradies. A mulher smbolo da me - frica, etc.
45 Cf. KESTELOOT, Lilyan. Antologie negro-africaine: panorama critique des prosateurs, potes et dramaturges noirs du xx sicle. Belgique: Marabout, 1987, p. 137. (Traduo nossa).
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Vejamos trechos de dois poemas que exemplificam alguns desses
temas. O primeiro poema de autoria do poeta marfinense Bernard Dadi
aborda a temtica racial. O poeta agradece a Deus por ter sido criado negro:
Agradeo-lhe meu Deus,
por ter-me criado negro,
por ter feito de mim,
a soma de todas as cores,
posto na minha cabea o mundo.
O branco uma cor de circunstncia.
O negro a cor de todos os dias.
E levo o mundo desde a primeira tarde46 (...)
O segundo poema diz respeit