TESE - edição - _O amor de... · Índice O espectador emancipado pág. 2 Mimese pág. 8 Crítica...
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Índice
O espectador emancipado pág. 2
Mimese pág. 8
Crítica e forma pág. 14
O mestre ignorante pág. 18
Uma poesia pervertida pág. 24
Alcibíades pág. 28
Conhece-te a ti mesmo pág. 34
O efeito pág. 38
O olho de Alcibíades e a igualdade do reflexo pág. 43
Bios pág. 48
Falar das obras dos homens pág. 51
Conclusão pág. 54
Bibliografia pág. 59
2
O espectador emancipado
Rancière propõe-se, em O espectador emancipado, preencher o vazio encontrado na
reflexão em torno da questão da emancipação intelectual no domínio teatral. Contudo,
seria necessário retomar esta discussão num sentido mais alargado, albergando de raiz
o conjunto de práticas que se reúnem sobre a noção de “espectador”. Só assim,
segundo Rancière, se pode discutir a questão da emancipação intelectual dentro do
universo de uma arte crítica.
O espaço de uma arte engajada vai encontrar, com Rancière, um outro modo de
pensar a emancipação. Arte e política vão definir um espaço que, não negando o
legado de uma arte empenhada, vai envolver no próprio tecido real um certa atitude
crítica.
A questão do espectador emancipado surge alinhada com questões debatidas em
O mestre ignorante, ligando o debate acerca da pedagogia e da lógica de uma
igualdade de inteligências à proposta de um outro teatro:
“As numerosas críticas a que o teatro deu azo ao longo de toda a história podem de facto ser reconduzidas a uma fórmula essencial. Chamar-lhe-ei o paradoxo do espectador.” 1
Segundo Rancière o problema do espectador define, no seu centro, o problema de
uma divisão. Esta fractura de raiz é a guia do vasto conjunto de teorias e estéticas
teatrais mencionadas por Rancière que, na sua perspectiva, não se conseguem, apesar
do seu esforço, libertar dessa lógica instituída já desde Platão.
Platão é definido então como o motor desta divisão, ao qual, segundo Rancière,
todo um conjunto de críticas teatrais recorre consoante variações particulares. A
divisão Platónica entre arte e conhecimento implica a já conhecida discussão em torno
da mimesis, onde o problema do espectador é definido a partir da diferença
fundamental entre ver e conhecer.
É esta a divisão mãe de toda a lógica de um conjunto de propostas para um crítica
teatral, nomeadamente para Brecht e o Teatro épico, Artaud com o Teatro e o seu
duplo e Guy Debord com a sua A Sociedade do espectáculo. Tal divisão implica a
distinção entre ver e conhecer, onde o jogo teatral se desenvolve dentro de uma lógica
1 Rancière, O espectador emancipado, pág. 8.
3
pedagógica, onde quem vê desconhece o que o autor expõe e onde o espectador se
apercebe da sua própria ignorância.
“Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir.” 2
Ora sabemos, por Platão, que olhar é diferente de conhecer e com isso pressupõe-
se um princípio claro, que quem “encontra” esta diferença pode colmatá-la e com isso
definir um espaço político e emancipador para um novo teatro. Esta é a lógica da
estéticas teatrais já mencionadas, com as devidas diferenças, evidentemente. Contudo,
segundo Rancière esta é também a possibilidade de definir o lugar de uma virada de
posição, onde as regras desta divisão podem ser redefinidas.
Não se trata mais da distinção entre ver e conhecer, nem mesmo da definição do
teatro como o lugar onde “gente ignorante é convidada a ver homens que sofrem.” 3
Rancière vem propor um novo espaço cuja possibilidade pressupõe uma igualdade de
inteligências e consequentemente vai permitir pensar a emancipação fora da crítica da
mimesis.
A crítica Platónica da mimesis, como definição de um ética da estética 4, permite
pensar uma nova arte que deve ser crítica. Mas, ao articular o problema da mimesis
(ou da representação) enquanto princípio alienador, Platão opõe conhecimento a
ignorância e acção a passividade. O ponto de partida da concepção do teatro de
Rancière é precisamente a crítica dessas oposições, i.e. a crítica de toda a arte crítica
(como a de Brecht ou Artaud) que pressupõe e faz uso de tais oposições.
Platão pensa o teatro com base numa cisão entre quem faz e quem vê, e com isso,
segundo Rancière, cria o princípio de um embrutecimento intelectual inerente à
lógica pedagógica do mestre educador, como aquele que ocupa o seu lugar na
definição do lugar do outro; pela demonstração da ignorância do aluno. Assim, o
pedagogo define-se como mestre, não permitindo a emancipação do aluno. 5
Rancière expõe a passagem da lógica do reconhecimento da arte como ilusão,
como o espaço da alienação por excelência, para a formação de um outro princípio,
possível apenas pela constatação dessa divisão; um teatro onde se solicita a actividade
2 Rancière, O espectador emancipado, pág. 8. 3 Rancière, O espectador emancipado, pág. 8. 4 No sentido encontrado na República, como a definição do papel da arte e dos limites da sua acção. 5 “As lições do mestre e os exercícios que dá a fazer têm por finalidade reduzir progressivamente o abismo que os separa” Rancière, O espectador emancipado, pág.16.
4
de quem vê. Esta solicitação da actividade do espectador permite pensar o teatro para
além da ilusão, como o lugar da resolução de uma condição, como o lugar da
mudança de perspectiva. Contudo, as lógicas desta participação também se encontram
corrompidas pela promessa de uma certa educação pela arte, ou de uma educação do
povo, nas palavra de Rancière.
Como se podem então definir as premissas para um novo teatro – entendamos
teatro como o conjunto de artes que definem um espectador – depois da rotura com o
paradigma da ilusão e depois também de uma certa tendência pedagógica?
É precisamente no tipo de pedagogia proposta por Rancière que encontramos
resposta; na enunciação de um novo modo de definir parâmetros para a divisão
Platónica, num paradigma pós-mimético:
“Deste modo forçá-lo-emos a trocar a posição de espectador passivo pela de
alguém que conduz uma investigação ou uma experiência científica, alguém que observa os fenómenos e investiga as respectivas causas.” 6
Falamos do paradigma de uma certa lógica de distanciação como uma análise
formal do dispositivo teatral onde determinado conteúdo deve ser transmitido. Um
raciocínio onde parece possível prever o lugar do espectador, de o definir. Ora é esta a
lógica embrutecedora e segundo Rancière será precisamente este o problema da
proximidade e distanciação que este vai articular segundo as propostas de Brecht e
Artaud.
Estes programas teatrais procuram a modificação de um ponto de vista, e, para tal,
propõem um jogo de alteridades que corrompe a própria intenção inicial para uma
mudança de perspectiva. Por jogo de alteridades entenda-se; uma relação assimétrica
de poder – o tipo de assimetria que Rancière condena por isolar cada “eu” envolvido
nessa relação e, em particular, por criar um espectador estático, que acolhe
passivamente o que lhe ensinam. Contudo, aqueles programas propõem, apesar de
obedecerem à mesma vontade de transformar, noções muito distintas do lugar do
espectador e segundo parâmetros radicalmente opostos definem a sua própria lógica
de alteridades: no caso de Brecht está em causa, segundo Rancière, a criação de uma
distância analítica onde o espectador deve indagar sobre as acções de determinado
acontecimento; enquanto em Artaud está em causa um dissolução da distância entre
causas e efeitos segundo um perspectiva primitivista, quase mágica. 6 Rancière, O espectador emancipado, pág. 11.
5
Resta colocar a pergunta acerca da relação do tal legado Platónico e o modo como
cada uma destas estéticas teatrais se relaciona com este. Rancière adianta a ideia de
transformação de uma comunidade, onde o novo lugar activo levanta a possibilidade
de uma transformação efectiva de uma comunidade através do teatro. Este já não
reflecte imagens enganadoras de uma representação ilusória, mas sim a realidade
concreta trazida para o palco, e o palco como lugar de uma purificação, no caso de
Artaud, ou de uma educação, no caso de Brecht.
“O teatro acusa-se a si mesmo de tornar os espectadores passivos e de assim trair
a sua essência de acção comunitária. Como consequência outorga-se a missão de inverter os seus efeitos e de expiar os seus erros, devolvendo aos espectadores a posse da consciência e da actividade que lhes cabe.” 7
Este nó cego de que Rancière fala refere precisamente a dificuldade implícita de
uma certa lógica emancipadora, que parece encontrar, do lado de lá, a sua própria
negação. Ou seja, de que modo se pode propor uma dimensão emancipadora da arte
pela definição constante de limites, entre quem sabe e quem ignora? E de que modo
se pode pensar a arte como pedagogia tal como as propostas como a de Brecht e de
Guy Debord, sem se afirmar simultaneamente o seu papel demagógico?
Esta divisão Platónica transporta consigo a lógica de um princípio embrutecedor,
que segundo Rancière impede a própria eficácia de uma proposta emancipadora da
arte. Em O espectador emancipado articula-se já o ponto central para o papel
emancipador da arte, pensado ainda dentro dos limites de uma certa lógica Platónica.
Eis que surge a hipótese central de O mestre ignorante: a hipótese de uma
igualdade de inteligências. Aqui, o conhecimento não obedece a uma lógica
mestre/discípulo, o conhecimento é antes uma capacidade básica da nossa percepção
do mundo. O mestre deixa de aparecer como aquele que domina o conhecimento e
transmite uma determinada orientação e um determinado jogo de preenchimento, e
passa a ser aquele que constata precisamente que o ignorante não é aquele que ignora
que ignora, mas sim aquele que tem a capacidade de comparar as suas experiências
com outras e de construir , na sua singularidade, um determinado percurso intelectual:
7 Rancière, O espectador emancipado, pág. 1.
6
“O ignorante progride comparando o que descobre com aquilo que já sabe, ao sabor do acaso de encontros, mas também segundo a regra aritmética, a regra democrática que faz da ignorância um menor saber.” 8
A ignorância, não é, portanto, o oposto de saber, mas apenas uma dada posição
numa escala de saber/ ignorar. E, assim, a emancipação aparece agora como uma
igualdade entre inteligências; não é que estas sejam necessariamente iguais, apenas
que podem entender-se como se fossem iguais. A emancipação é vista, não como
mudança de posição, ou paradigma, mas como aventura intelectual, como um
processo de tradução e comparação perpétua, sempre singular.
Deste modo, a lógica das estéticas teatrais de atitude reformadora surge em total
acordo com a lógica embrutecedora do pedagogo, onde o pressuposto de uma divisão
reforça precisamente a distância que procura ser suprimida..
A proposta central de O espectador emancipado é a possibilidade se de pensar a
emancipação fora da definição de um limite. Segundo Rancière, é necessário
desconfiar deste princípio central segundo o qual a lógica da emancipação tende a ser
pensada. Deste modo está implícita a ideia de que a leitura Platónica da divisão entre
ver e conhecer é preterida em favor da hipótese de uma igualdade. Esta igualdade
surge como tentativa de resolução do perfil pedagógico cuja origem é traçada em
Platão (por Rancière). A possibilidade de uma igualdade de inteligências antevê,
deste modo, a idealização de um espaço crítico onde não existe distinção de poder
entre quem sabe e quem desconhece.
“O que é que permite declarar inactivo o espectador sentado no seu lugar (...)?” 9
Segundo Rancière a emancipação só é possível se se levantar a hipótese de que
desconhecimento não é sinonimo de ignorância. O espectador não é mais aquele que
deve ser instruído, mas aquele que vê, pensa e articula o que vê com o que pensa na
sua experiência singular.
Esta nova dimensão pedagógica procura determinar o valor emancipador da arte
fora de uma lógica embrutecedora, ou seja, para lá de um enquadramento, de uma
estrutura formal que articula sempre um dentro e um fora: um que sabe e um que não
8 Rancière, O espectador emancipado, pág. 17. 9 Rancière, O espectador emancipado, pág. 2.
7
sabe e que deve passar a conhecer, como um espaço relacional em que cada particular
tem relação com um geral.
O problema do legado crítico das propostas teatrais mencionadas resume-se ao
facto de, apesar de tentarem definir, segundo um princípio anti-platónico, um teatro
sem “verdades únicas”, não se conseguirem emancipar de um outro princípio de raiz
Platónica: o de uma alteridade entre quem sabe, “o filósofo soberano”, e quem não
sabe, o “ignorante”. Mantém-se, deste modo, um princípio de verdade, que, apesar de
não ser único, mimetiza os mesmos problemas identificados em Platão.
Um novo espectáculo, que até certo ponto serve de metáfora para um espaço de
diálogo em igualdade, parte assim da simples hipótese de igualdade entre todas as
inteligências. Esta igualdade, quando levantada como hipótese, corrige imediatamente
qualquer tentativa de pensamento causal onde a emancipação fosse apenas o outro
lado da moeda do pensamento crítico.
O pensamento Platónico surge assim como matriz negativa de um pensamento
sobre a representação, o teatro e mais especificamente o espectador. Pensamento este
a que Rancière atribui uma postura pedagógica embrutecedora.
8
Mimese
É na República que encontramos o centro do debate mimético Platónico acerca dos
contornos de uma dimensão pedagógica da arte, através do reconhecimento de um
poder intrínseco da arte que solicita uma definição, um controle da sua acção.
O termo mimesis implica o reconhecimento da mímica, da actividade do corpo de
imitar, de se assemelhar, ou de se fazer passar por. O termo grego encontra uma forte
afinidade com a dimensão teatral de toda a acção humana. 10
Segundo Stephan Halliwell em The Aesthetics of mimesis, as tensões entre arte e
natureza, imitação e criatividade, ilusão e idealismo, têm origem na tradição da
mimesis como um todo, alertando para a compreensão de que o próprio conceito é
intrinsecamente ambíguo e por isso define em si um conjunto de discussões sobre arte
e a sua relação com o mundo. Deste modo, a história da crítica da mimesis pode ser
vista como o conjunto de debates acerca da representação e do modo como esta é
apreendida.
O início deste debate é a polaridade de uma visão da arte como reflexão do
mundo e de uma outra, que atribui à arte um valor intrínseco e organizacional
implícito às suas propriedades, enquanto objecto mimético. Ou, se quisermos,
segundo Halliwell, a oposição entre “reflexão”e “simulação”: de um lado a divisão
Platónica que referimos e de outro a visão da arte enquanto mecanismo de simulação
de uma realidade que é em si intangível 11. O valor intrínseco da mimesis surge assim
no debate entre o poder da arte enquanto formador de consciência e o da arte
enquanto formação do sentido do mundo.
Em A propósito da mimesis, Filomena Molder define os contornos desta
dualidade. O mote para estas duas perspectivas apresenta, no primeiro caso, o
exemplo de Piet Mondrian e da sua busca por um valor intrínseco das formas, como
“a busca de um desenho interior”. Este reflecte a tendência para pensar a
representação como busca de verdade, ou de uma razão das formas que só pode ser
encontrada para lá delas mesmas.
10 Mimesis incorporates a response to reality that is believed to exist outside and independently of art. It engages with this reality, and has the capacity to promote and enlighten the understanding of it. (Halliwell, The Aesthetics of mimesis, pág. 23) 11 These contrasting positions point respectively towards aesthetics of a) realism, and b) fictional coherence. a) Aesthetic values converge with life values, b) purely formal and sui generis satisfaction. (Haliwell, The Aesthetics of mimesis, pág 22)
9
O segundo exemplo expõe a visão Aristotélica de um reconhecimento da mimesis
como mecânica intrínseca do mundo, como a capacidade de bem identificar as
semelhanças, de dividir, organizar, de descobrir o mundo nas coisas.
“Roger Caillois estabelece uma relação projectiva entre esses gigantescos blocos
de pedra (os “monumentos megalíticos”), ousadamente elevados e a embriaguez de uma espécie que se ergueu: um quadrúpede vertical, que adquiriu por este preço – a libertação, para as tarefas ainda insuspeitáveis, do que já eram os braços e as mãos: a solidão.” 12
A visão Aristotélica da mimesis parece apoiar um certo reconhecimento passível
de se identificar com a igualdade das inteligências de Rancière, na medida em que
identifica no homem um tipo de capacidade cognitiva passível de articular tudo. 13
Platão identifica a mimesis como a capacidade de formação de uma
subjectividade, como mecanismo intrínseco a toda a aprendizagem. Embora a visão
não se distancie da concepção Aristotélica, o problema surge de uma outra
perspectiva: como a educação dos jovens . Está em causa a definição, segundo uma
lógica pedagógica, de um modelo educativo para a construção da Cidade 14.
A arte surge enquadrada na continuidade deste processo maior. Está em causa
definir os parâmetros de uma arte ao serviço da República e através do
reconhecimento do seu valor e poder intrínsecos, a definição de uma ética da arte.
Mas o debate acerca da representação (talvez a melhor tradução do termo),
encontra-se profundamente enraizado na teoria filosófica Platónica e será a República
o lugar da consolidação das suas teses.
A crítica da mimesis surge, à semelhança de outras dimensões da actividade
humana, pensada sob o princípio Platónico de verdade. A teoria ontológica de Platão
encaminha sempre para um esvaziamento das coisas, numa busca transcendental pela
verdade e pelas coisas em si.
A divisão do mundo entre fenómenos sensíveis e formas inteligíveis (“númenos”)
faz da existência terrena um mero lugar de passagem pela vida, e deste modo, o
compromisso da filosofia (e talvez também da arte) é o de indagar constantemente o
lugar de sombras onde nos movemos e pensar constantemente em função de um em si
cuja distância se pode apenas esperar ver ligeiramente reduzida. 12 Molder, A propósito da mimesis, pág. 69. 13 Ainda longe de um princípio democrático? 14 Ou não te apercebeste de que as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a inteligência? (Platão, República, III 395d.)
10
A mimesis como o centro do debate acerca da representação não pode assim
deixar de transportar toda a teoria Platónica dos graus do ser, já que no centro da sua
discussão se levantam questões seminais acerca da verdade, da mentira, do
fingimento, e da formação dos espíritos. Platão não pode assim deixar de pensar a
verdade como um em si, como objectivo último, unívoco, um bem último de
aspiração.
Platão compreendeu que a aprendizagem tem o seu fundamento na identificação.15
É a partir deste reconhecimento que podemos identificar a divisão Platónica entre ver
e conhecer, já que a arte envolve o processo cognitivo. Este deve, por conseguinte,
segundo uma lógica de emancipação, ser enquadrado pedagogicamente, ou seja, deve
ser controlado.
É deste modo que Platão define, pela boca de Sócrates, a visão do poeta
pedagogo: uma visão da arte ao serviço de uma ética, de uma moral, para o bem
comum.
“Se a fábula é mentira (ainda que nela se possam encontrar algumas verdades misturadas) e se é a mentira que precocemente se ensina – pela projecção nos deuses e heróis das fraquezas humanas: emoções desregradas, sentimentos vis, acções vergonhosas – corrompe-se, degrada-se, pelo objecto imitado, aquele a quem se ensina.” 16
Não podemos deixar de verificar que Platão encontra na arte o problema depois
identificado por Rancière: o de que toda a arte tem de raiz uma certa responsabilidade,
pois a sua acção sobre quem vê não é neutra, mas profundamente activa naquilo que
define.
Neste sentido, toda a arte implica nos seus extremos a adesão e simultaneamente a
libertação do que se dá a ver. Deste modo, como se pode pensar uma arte crítica sem a
definição de uma ética? E consequentemente, como se pode pensar uma ética da arte
sem pressupor um princípio de alteridade, i.e. um elemento de coerção?
Segundo Halliwell podemos identificar em Platão a preocupação com o
enquadramento da actividade mimética a partir da tese de uma verdade em si, através
da identificação de um conjunto de discussões acerca do estatuto da representação.
Duas linhas de acção surgem nos diálogos: A primeira centra-se na relação complexa
15 Molder, A propósito da mimesis, pág. 69 16 Molder, A propósito da mimesis, pág.70.
11
entre as representações e as características do mundo que estas representam; a
segunda nas implicações psicológicas da representação.
Na Apologia, Sócrates menciona o facto de os tragediógrafos serem vistos como
sábios e de, ao serem questionados acerca do sentido da sua própria actividade, seriam
incapazes de oferecer respostas verdadeiras. O ponto do argumento assenta no facto
de ser identificado um poder na produção mimética que não pode deixar de ser
compreendido, diagnosticado e controlado.
Deste modo, relevam daqui duas conclusões: por um lado, o facto de que os
artistas compõe os seus poemas não a partir do conhecimento mas da inspiração; e por
outro, o de não haver qualquer tipo de base para a crença no poder e reconhecimento
da autoridade dos poetas.
Não se trata de um desmascaramento do poeta mas antes de uma constatação de
que este não conhece a verdade. De resto, surge um duplo ponto de vista na Apologia,
pois se, por um lado se questiona a autoridade do poeta, desmascarando a sua
capacidade de escrutínio, por outro a arte pode e até participa da capacidade de
articular ideias de valor.
O termo mimesis surge primeiramente no Crátilo, onde, segundo Halliwell, se
pergunta acerca da relação entre o mundo representado e o mundo real e se reflecte
sobre a relação entre o mundo dentro da representação e a sua relação com o mundo
exterior.
A relação é feita através do problema da linguagem, já que o mundo é representado
através da linguagem e só se tem acesso ao visível e não às coisas elas mesmas. Ou
seja, as palavras, por si mesmas, não permitem conhecer a essência das coisas, mas
antes designam um mundo sensível. Estabelecem uma relação de imagem/objecto, em
detrimento de uma relação directa com os o sentido das coisas.
O Crátilo ajuda a distinguir entre o trabalho do poeta e o do filósofo, já que
Sócrates refere já no final do diálogo o facto de que só a essência das coisas pode
satisfazer o filósofo e não apenas a visibilidade das imagens na linguagem. Surge
então, de um modo seminal, a distinção entre o poeta e o filósofo, como operadores
em campos distintos. Surge também a ideia de que a verdade filosófica teria de
transcender todo o tipo de representação, tornar-se independente, ou se quisermos,
aceder directamente às coisas em si.
Podemos deste modo concluir que não está em causa a defesa de uma verdade em
arte, mas precisamente o oposto, o reconhecimento de que o poeta não necessita de
12
verdade, apesar de, por acidente e sem possuir um saber, poder às vezes partilhar dela
(i.e. ter uma “opinião verdadeira” sem ter um “saber”). .
Como mencionado, será na República que iremos encontrar o enquadramento
mais definitivo da teoria Platónica da mimesis. Na discussão central da obra encontra-
se o problema do enquadramento da actividade mimética para o projecto de uma nova
República. Está em causa, na continuidade do reconhecimento do forte poder desta
actividade e da sua incapacidade de saber e comunicar a verdade, a definição dos
limites da sua acção.
Está em causa a educação dos jovens e dos guardiães da cidade. Deste modo, a
discussão traz consigo, ao tratar o problema da mimesis, questões sobre educação,
cultura, política e psicologia. Como Rancière diagnostica, a mimesis é uma actividade
que envolve todo o enquadramento de uma pedagogia e, numa certa continuidade da
tradição Platónica, perpetua a sua discussão.
Parece portanto muito difícil pensar o papel da arte sem se pensar em que
enquadramento ela opera. Não está mais em causa o encarar a arte como uma
actividade isolada em si, mas reconhecer que ela só existe na tensão entre sua suposta
independência e os indícios da sua provável dependência.
“Through their Works the poets say or mean certain things, convey ideas about
an attitude to the world that can in turn impress themselves on the minds of their audiences, specially the soft, malleable minds of the young men, though not theirs alone.” 17
No III livro da República encontramos um dos, senão o mais central,
constrangimentos impostos à poesia. Trata-se da distinção entre mimesis e diegesis. A
diferença está, após o reconhecimento da inviabilidade da verdade da poesia, em
enquadrar a actividade mimética em termos de capacidade. Opõe-se, deste modo, o
drama à narração. Já que a narração torna claro o ponto de vista do sujeito implicado,
assumindo toda a clareza de argumentos sem solicitar um “fazer-se passar por”, ou
um iludir. 18
O poeta é aquele que procede a uma ocultação, que alimenta a mentira. Contudo,
o ponto central continua a ser a questão do efeito da mimesis, da sua implicação para
17 Halliwell, The Aesthetics of mimesis, pág. 49-50 18 O julgamento baseia-se no processo de dissimulação que o autor fabrica, através do discurso directo, técnica que consiste em tornar-se semelhante àquele que se quer representar e que conduz à ilusão de que o texto é protagonizado por outro que não o autor. (Molder, A propósito da mimesis, pág. 71)
13
o carácter, no reconhecimento do forte poder do drama. Enquadra-se então na crítica
da veracidade dos poetas a autoridade desse poder.
A proposta do livro III da República procede, pois, através da comparação entre
mimesis e diegesis, ao enquadramento da actividade do poeta. A sugestão parte da
ocultação do poeta e promove uma poesia criada sem imitação. Liberta-se a poesia da
sua ilusão, da qual resta o jogo realista dos diálogos, que pela força de uma retórica
pode construir e informar uma boa conduta – para iluminação dos espíritos jovens.
Na utilização do modo dramático existe uma modelação, um fazer-se passar por.
Contudo, no modo narrativo as histórias podem adoptar um ponto de vista claro e
objectivo, podem tecer um julgamento ou formular uma forma de pensar e ver o
mundo.
A proposta para uma poesia narrativa parece implicar a necessidade de incorporar
uma crítica filosófica, directamente no interior da poesia. O projecto Platónico
encontra assim “pela boca de Sócrates” a justificação da criação de uma nova poesia
ao serviço da filosofia. Podemos então olhar para este ponto do debate em torno da
mimesis simultaneamente como crítica e profundo reconhecimento – Figura exemplar
de uma arte crítica?
Que advém então do reconhecimento de uma dimensão literária da crítica
Platónica? E, já agora, quais as consequências deste reconhecimento na crítica tecida
por Rancière e a sua concepção de uma nova possibilidade crítica da arte?
14
Crítica e forma
Como Halliwell explica em The Aesthetics of mimesis, o ponto essencial da crítica
Platónica do espectáculo encontra motivo no forte poder da poesia. O ponto central
deste poder é a comoção, a identificação, que segundo Platão determina o poder do
poeta sobre a audiência ou o leitor. O forte poder concedido à narrativa questiona
precisamente o poder e a veracidade de um discurso que é por natureza coercivo. Que
não é neutro, mas que antes molda e transforma as crenças dos espectadores.
Segundo Halliwell, este é resultado de um duplo movimento que, pela boca de
Sócrates, define a forma de uma crítica que apesar de filosófica é também literária.
Está em causa o facto de a própria República ser concebida com uma forma, uma
intencionalidade e um reconhecimento que, apesar de filosófico, é também poético.
Os preceitos definidos na crítica são tomados à letra nesta nova forma com o
argumento claro de cada personagem — por vezes sem, outras com “mímica”? 19
“Tenho de o dizer – confessei eu –. E contudo, uma espécie de dedicação e de respeito que desde a infância tenho por Homero impede-me de falar.”20
Como Halliwell ajuda a confirmar, o tratamento da mimesis enquanto “crítica do
espectáculo” pode ser entendido ele mesmo como um processo de emancipação,
como o reconhecimento de um amor (a Homero no caso de Platão). Mas esta crítica (a
da mimesis) pode também ser concebida como auto-crítica — ou mesmo como uma
contradição performativa.
Note-se que está em causa o encontro entre uma visão do mundo e o projecto para
uma nova visão do mundo. Esta concepção utópica encontra-se no encalço de uma
nova realidade a partir da modificação de uma outra. Emancipação surge aqui, não
como corte, mas como uma redefinição dos limites de um enamoramento que não
acaba, apenas se modifica.
Como Halliwell mostra, a crítica Platónica da mimesis pode ser definida através
de uma distância que é a da relação entre poesia e filosofia, como o desprendimento 19 Plato’s arguments are presented in a form – a Socrates dialogue of inexhaustibility subtlety – that is itself deeply imaginative, and self-consciously so; second, because they contain overt acknowledgements of the pleasures of poetry. Both these points direct us toward a broader observation of substantial significance, namely that all of Plato’s dealings with poetry came from a position not of uncomprehending hostile towards, but profound appreciation of, as well as extensive indebtedness to, the traditions of poetry themselves. (Halliwell, The Aesthetics of mimesis, pág. 55) 20 Platão, República, pág. 452.
15
de uma visão do mundo em detrimento de uma nova. O espírito trágico e a visão
trágica do mundo surgem enquanto sobre-identificação no teatro que, sem o
reconhecimento devido, molda e define a mente do ouvinte.
Mas não podemos conceber esta rotura, ou vontade crítica, sem entender
primeiramente a existência de uma relação profunda, reforçada pela noção de forma
poética que apesar do formato diegético (e, por vezes, simplesmente mimético)
continua presente em Platão. Parece estar em causa a definição de uma nova forma
como reconhecimento de uma outra. O carácter mimético embrutecedor não permite a
emancipação nem mesmo a procura da definição de um novo lugar activo e afirmativo
no mundo.
Segundo Halliwell, para conceber o conceito de mimesis temos de compreender a
dívida de Platão à literatura da sua época. A construção da teoria Platónica da mimesis
assenta portanto na vontade de emancipação da arte através do reconhecimento
profundo do seu poder.
O conceito de mimesis pode então ser definido, embora reconhecido como crítica
às artes e à actuação mimética como um todo integrante da actividade humana, como
criação de um espaço outro; a crítica da mimesis ocorre como criação de um outro
tipo de mimesis que é o próprio texto crítico e que, assim, ao reflectir criticamente
sobre o que é uma representação do mundo, i.e. ao criticar a mimesis, não deixa por
isso de ser mimesis.
A grande dificuldade põe-se no momento em que a crítica procura uma forma, se
define também como forma. Assim, procura-se um princípio de divisão perpétuo,
como modelo de crítica, como relação intricada entre um poder e uma virtude.
Se por um lado a crítica da mimesis Platónica define a possibilidade de
emancipação através da análise cuidadosa desta actividade enquanto parte integrante
do comportamento humano, por outro não pode deixar de indiciar uma emancipação
ela mesma. É na escrita que encontramos este duplo movimento, já que os diálogos
Platónicos não deixam de prestar um grande reconhecimento à arte e à representação
ao mesmo tempo que tecem uma crítica contra estas — de tal modo que são eles
próprios arte e representação, mimesis.
Assim, podemos afirmar que, no processo da crítica, Platão não deixa de
engendrar ele mesmo uma outra forma de mimesis, ou se quisermos, uma outra forma
de representar o mundo. Este elemento paradoxal permite pensar a emancipação num
duplo sentido: no da vontade crítica por um lado e por outro no da vontade artística.
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Molder vem corroborar esta visão. Em o Pensamento morfológico de Goethe,
Molder começa por introduzir a ideia de uma prosa pensativa, como a questão da
formulação do pensamento que não pode ser dissociada de uma forma. A forma surge
então como crítica,, como transformação figurada na palavra e na prosa.
Na introdução à obra, Molder ajuda a pensar a crítica Platónica enquanto forma,
enquanto posicionamento e efectivação de um pensamento crítico. Logo de início,
refere-se a consciência dos problemas da prosa filosófica, e articulam-se, em torno de
Platão, as dificuldades inerentes à materialidade da filosofia. Surge então, através de
Platão, a questão do reconhecimento dos perigos do texto escrito, perigos
semelhantes aos que afectam toda arte, de resto: Em suma, pode dizer-se que “existe
um elemento ficcional nos textos de Platão.” 21
“Outra natureza do texto não-mimético, raciocionante, pensativo, dado que não procura qualquer acordo patético, antes procura por combate estabelecer um acordo. i.e., desenvolvendo-se por argumentação interna, regulada, e procura que o leitor tome parte no perfazer da sua consequência consigo mesmo, partilhando a inquietação no interior de regras de jogo estritas.” 22
Esta dialéctica, como jogo para um acordo, não consegue, como acabamos de ver,
fugir à lógica de uma forma, ou se quisermos de um meio. A forma do conhecimento
é também ela produtora de conhecimento. Contudo, e segundo Molder, é na lógica de
uma prosa pensativa, que a filosofia encontra também espaço para a sua formulação,
para o seu acontecimento.
Os diálogos Platónicos dão conta do que acabamos de dizer, eles próprios são um
pensamento e uma forma em acção que não se podem dissociar. Deste modo, e
segundo a lógica da emancipação, não deixam de recriar os dilemas da sua própria
crítica. 23
Eles são uma forma de escrita que procura ser crítica ao mesmo tempo que se
critica a si própria. Deste modo existe uma ambiguidade própria na sua construção, já
que eles imitam os mesmos males que procuram criticar.
Os diálogos Platónicos, e a República por excelência, dão conta deste paradoxo,
que para, segundo uma lógica de emancipação, se desembaraçarem da liberdade
21 Molder, Pensamento morfológico de Goethe, pág. 24. 22 Molder, Pensamento morfológico de Goethe, pág. 25. 23 (...) no texto pensativo, a metáfora dirige-se sempre para a constituição conceptual, numa tentativa de controlar a própria energia formativa da linguagem, em vez de se deixar conduzir por ela, como acontece na poesia. (Molder, Pensamento morfológico de Goethe, pág. 26.)
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abusiva dos sentidos forçam uma lógica pedagógica. O efeito não pode deixar de ser
outra forma de mimesis.
“O diálogo Platónico é, pois, isso ainda – e acentue-se o carácter definitivo e surpreendente deste ainda – um texto de natureza mimética (procurando restituir o diálogo vivo, erótico, dirigido a um interlocutor particular), animado por uma intenção salvadora, (...).” 24
A proposta de uma igualdade de inteligências não pode esquecer este facto, de
que na proposta retórica não deixa de estar presente uma certa interioridade, uma
certa batalha íntima, que é a da crítica, ou se quisermos, a da filosofia. A lógica
embrutecedora só existe na constatação de uma diferença. A exposição de uma
diferença é em si mesma a não habilidade de reconhecer esta batalha interna, íntima.
A grande dificuldade está em por um lado reconhecer a argumentação Platónica
como uma forma paradoxal, que enquanto filosofia faz usa dos efeitos produzidos
pelo que procura criticar, envolvendo assim o leitor (esse outro tipo de espectador)
num percurso crítico.
Reconheço, deste modo, a utilidade que Rancière encontra na crítica Platónica.
Contudo, seria ainda necessário averiguar esta nova complexidade do próprio texto
Platónico – essa arte crítica que, reproduzindo os efeitos que critica, os intensifica e
que não deixa de pensar (talvez) uma proposta de igualdade como espaço de
emancipação que até ao momento só podemos antever boicotado – talvez como uma
forma de ironia?
24 Molder, Pensamento morfológico de Goethe, pág. 26.
18
O mestre ignorante
Em 1818, Joseph Jacotot,
professor de literatura francesa em Lovaina, viveu uma aventura intelectual.25
Joseph Jacotot, professor na universidade de Lovaina, nos Países Baixos, desenvolveu
uma experiência pedagógica. Encontrava-se deportado num país cuja língua
desconhecia. Era-lhe então pedida a difícil tarefa de ensinar literatura a um conjunto
de alunos cujo conhecimento de Francês era escasso, se não mesmo inexistente. A
experiência de Jacotot procurava colmatar um potencial problema de comunicação. A
solução foi encontrada na escolha de uma tradução bilingue de Telémaco.
Foi então solicitado aos alunos, com a ajuda de um intérprete, que aprendessem a
primeira metade do livro que tinham em mãos. Essa primeira metade cujo sentido se
perdia por causa de um língua que desconheciam.
Contudo, a experiência teria sido um sucesso. De facto os alunos não só
compreenderam Telémaco, como comentaram Telémaco; um Telémaco sui géneris
aprendido por amadores. 20 A experiência de Jacotot teria assim permitido antever um
certo princípio universal da capacidade de aprender. O facto de os alunos terem
aprendido quase sozinhos procura agora, nas palavras de Ranciére, o reconhecimento
de um novo princípio pedagógico. Este surge por oposição à lógica de uma pedagogia
explicativa que conduz o aluno por um conjunto de retóricas embrutecedoras.
Jacotot vem então confirmar a noção de que, através de um elemento exterior,
Telémaco neste caso, se poderia ver confirmado um princípio igualitário de uma
educação livre de didáctica. Este novo mestre viria assim a ser chamado mestre
ignorante, cuja actividade não está em explicar o que sabe, mas antes em dar a
descobrir, na vontade do aluno, aquilo que ele próprio desconhece. Eis a radicalidade
da experiência: um ignorante poderia ensinar o que ele próprio desconhece.
“Tal foi a revolução que a experiência do acaso provocou no seu espírito.” 26
25 Rancière, O mestre ignorante, pág. 7. 20 (...) esperavam-se barbarismos horríveis, de uma impotência talvez absoluta. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 8) 26 Rancière, O mestre ignorante, pág. 8.
19
O sucesso de tal experiência seria imprevisível e a verdadeira revolução
apresentou-se sem aviso: “Seriam então todos os homens capazes de compreender
virtualmente o que outros haviam feito?” 27 A lógica pedagógica teria sido posta em
causa, os seus princípios rectificados.
O alcance da experiência estaria ainda por compreender. Jacotot não havia
explicado nem ortografia, nem as conjugações — os alunos haviam aprendido
sozinhos “a combiná-las, para fazer, por sua vez, frases em Francês.” 28 A questão
essencial procurava razão para a existência de explicações, de um mestre, já que a
revolução deste amadorismo viria a esmagar o lugar do pedagogo tal como era
conhecido.
Rancière explicita a diferença: o mestre é aquele que sabe reconhecer a distância
entre a matéria e o aluno, que reconhece assim, também, a distância entre aprender e
compreender; o explicador é o que reconhece esta distância, mas suprime-a e toma-a
dentro da sua lógica pedagógica exibindo-a constantemente. 29
Falamos de uma lógica de aprendizagem que não necessita de um mestre
explicador, que reconhece a distância entre saber e conhecer, já que a alteridade
definida pelo explicador é ela mesma o reconhecer desta distância que embrutece o
aluno, que apenas lhe ensina o que não sabe e expõe o que ignora através de um juízo.
É isto que a experiência pedagógica de Jacotot vem pôr em causa; o aluno é capaz de
aprender segundo uma outra lógica, que parece, pelo menos até agora, livre e
verdadeiramente emancipadora.
Está em causa o reconhecimento de que a habilidade de conhecer não depende de
uma lógica explicadora: esta é inata, por assim dizer. Aquilo que Jacotot fez foi expor
um terceiro elemento que viria a propor uma pedagogia comparativa, exterior e
independente. Contudo, seria necessário averiguar a neutralidade deste terceiro
elemento, verificar a sua independência.
Telémaco surge então, na lógica de Jacotot, como um terceiro elemento. Como
elemento de neutralidade onde o aluno pode sem hierarquias procurar conhecer, com
as suas ferramentas, um sentido para o que tem em mãos. O ponto central do
argumento permanece, se não se propuser metafórico, na possibilidade da igualdade e
27 Rancière, O mestre ignorante, pág. 8. 28 Rancière, O mestre ignorante, pág.10. 29 O explicador é aquele que coloca e abole a distância, que a exibe e absorve no seio da palavra. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 11)
20
neutralidade do aprender que se assume como profundamente democrático,
profundamente de todos. Este é o argumento de Rancière:
“É o explicador que precisa do incapaz e não o contrario, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar qualquer coisa a alguém é, sobretudo, demonstrar-lhe que não a consegue compreender por si próprio. Antes de ser um acto do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido entre os espíritos sabedores e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e estúpidos.” 30
Rancière esclarece o lado inaugural do acto de explicar como o decreto de um
começo que omite o conhecer como recomeçar perpétuo. A moral do explicador é
assim a transposição de uma moral para o aluno, um posicionar de alteridade pelo
decreto de uma fronteira.
A experiência de Jacotot permite-nos pensar esta fronteira. A sua proposta antevê
a igualdade das inteligências ao afirmar a aptidão inata para compreender. Esta
compreensão surge como acto de tradução, como habilidade singular de verificar as
coisas sem lhes impor uma razão.31 O aluno é antes de mais “um ser de palavras” 32
O que estará em causa na experiência de Jacotot é a constatação de que é possível
aprender sem mestre explicador, constatar a possibilidade de se aprender sozinho quer
pelo próprio desejo quer pela força das contingências. Os alunos tinham aprendido
sem mestre explicador, mas Jacotot desempenhou, de todo o modo, um papel.
É então que se assume a lógica do terceiro elemento: Ranciére, pela experiência
de Jacotot, é levado a afirmar a independência deste terceiro elemento, do livro, como
teste da independência do aluno. Mas que outro tipo de condicionante é este? Que
Telémaco é este que não impõe também uma lógica, que não embrutece e não
ensombra essa suposta autonomia?
Contudo, reside ainda na experiência de Jacotot o reconhecimento de uma
afinidade, de uma proximidade qualquer entre o mestre e o aluno que parece
transversal a qualquer modelo pedagógico. A igualdade das inteligências tem que ver
com esta afinidade, com este reconhecimento de vontade a vontade que procura uma
outra lógica pedagógica, a do livro no caso de Jacotot. Aqui, este elemento externo
30 Rancière, O mestre ignorante, pág. 13. 31 Nada existe atrás da página escrita, nenhum fundo duplo que precise do trabalho de uma outra inteligência, a do explicador; nada de língua do mestre, língua da língua em que as palavras e as frases têm o poder de dizer a razão das palavras e das frases de um texto. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 15) 32 Rancière, O mestre ignorante, pág. 17.
21
nivela as inteligências, diluindo a autoridade. É este o ponto de Rancière, a assunção
de uma pedagogia emancipadora.
A oposição é simples: “a prática dos pedagogos apoia-se na oposição entre ciência
e a ignorância; a comparação não se estabelece mais entre os métodos, mas entre duas
utilizações da inteligência, de duas concepções de ordem intelectual.” 33
O reconhecimento desta nova pedagogia assenta na confiança, na capacidade
intelectual de todo o ser humano e assume no seu cerne a constatação de que nada
existe a ensinar. O mestre ignorante é, pois, aquele que, pela sua habilidade de
condução do aluno, o ajuda a compreender o caminho da sua emancipação, que ele
próprio busca, trilho que ele próprio percorre.
Este novo método pressupõe assim um jogo de emancipações, com a convicção de
uma suposta liberdade. Ora, existe aqui uma enorme dificuldade. O pressuposto de
que para emancipar o aluno é necessário, por um lado, ser-se emancipado, e por outro,
solicitar a capacidade, a inteligência do aluno.
Apesar de se compreender esta nova forma de pedagogia como afirmação de uma
liberdade, como a possibilidade de qualquer um se emancipar através da constatação
de uma igualdade das inteligências, abolindo assim a coerção do explicador, não
podemos deixar de reconhecer o seu carácter profundamente utópico.
Comecemos então pelo argumento base desta nova problemática: “A de não
existir homem na terra que não tenha aprendido qualquer coisa por si próprio, sem
explicador.” 34 Para Jacotot está em causa a emancipação como a possibilidade de
todos, “o homem do povo”, poderem tomar consciência da sua condição e a
compreensão do potencial intelectual dentro de cada indivíduo como a habilidade de
fazer uma escolha, de se emancipar.
“À inteligência que dormita em cada pessoa, bastará dizer: Age quod agis, continua a fazer o que fazes, aprende o facto, imita-o, conhece-te a ti mesmo, é este o caminho da natureza.” 35
O ensino universal é isto mesmo, a capacidade de reconhecer que a aprendizagem
é um processo de tradução, como a habilidade de conhecer algo e relacionar isso com
tudo o resto. A explicação é a sua oposição extrema, já que promove a distância,
33 Rancière, O mestre ignorante, pág. 19. 34 Rancière, O mestre ignorante, pág. 21. 35 Rancière, O mestre ignorante, pág. 22.
22
admite uma alteridade, submete quem aprende a uma lógica unívoca. O raciocinar
surge então como mutilação, como amputação de uma liberdade. 36
A ordem explicadora é alterada, num volte face abrupto onde se reconhece o papel
do aluno em detrimento do papel do mestre. Não que ele não esteja lá, a acompanhar
o processo de aprendizagem do aluno, porque em grande medida este desconhece o
que tem para aprender .
O segredo de uma nova didáctica ao serviço de uma lógica emancipadora não
pode mais que reconhecer que o caminho do aluno não é o caminho do mestre. Este
não deixa de conduzir a investigação correndo o risco de moralizar a descoberta: “que
vês? Que pensas? Que fazes? E assim sucessivamente até ao infinito,” 37 pergunta o
mestre. 38
Até que ponto não falamos de um certo tipo de complacência, até que ponto não
se aceita esta igualdade como modo que não pode deixar de evocar, de trazer assim os
mesmos problemas que procura resolver? A meu ver, trata-se antes de uma
problematização e não de uma proposta definitiva. Fala-se, talvez, de uma outra
lógica pedagógica, à semelhança do que tratamos anteriormente – de uma outra
mimesis? Ainda assim, assiste-se a uma ideia de comum, de igualdade. 39
É importante fazer uma distinção: De um lado temos a afirmação de uma lógica
igualitária da inteligência; e de outro a dimensão pedagógica que alerta para tal. Não
podemos confundir as diferenças e os limites de cada uma destas considerações
individualmente.
A segunda questão levantada (acerca da capacidade do mestre em alertar) diz
respeito a esta nova lógica pedagógica, que não pode deixar de levantar a questão
acerca de um novo embrutecimento, da imposição de uma nova dialéctica, assente em
valores outros. 26 A primeira procura reconhecer as considerações em torno daquilo a
que se pode chamar uma “concepção da linguagem”.
“Eis o que está dentro de Calipso: a potência da inteligência que está em toda a manifestação humana. A mesma inteligência faz os nomes e faz os signos das matemáticas. A mesma inteligência faz os sinais e os raciocínios. Não existem dois
36 Todo o homem que é ensinado não passa de uma metade homem. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 27) 37 Rancière, O mestre ignorante, pág. 29. 38 O preceito Délfico como matriz de uma ética do conhecimento? 39 (…) o serralheiro que chama ao O a redonda e ao L o ângulo pensa já através de relações entre as coisas. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 31) 26 O “método Jacotot” não é melhor, é outro. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 33)
23
géneros de espírito. Existe desigualdade nas manifestações da inteligência, segundo a energia mais ou menos grande que a vontade comunica à inteligência para descobrir e combinar as relações novas, mas não existe hierarquia de capacidade intelectual.” 40
O alerta não deixa de fazer convergir o poder de uma boa nova ao reconhecer o
acto de soletrar como um acto de contrição antes de ser um modo de aprendizagem.
Esta boa nova implica a dimensão emancipadora que a inteligência possui já em si. O
problema está em revelar uma inteligência a si própria, para isso acontecer serve
qualquer meio disponível. O livro, como o terceiro elemento, encontra esta dimensão
de acaso, do meio à mão. Resta a coincidência de ser um livro.
O livro e a peça de teatro são dois semelhantes a verificar a igualdade das
inteligências. Mas de que modo se desenlaça o nó de uma arte pedagógica? Até que
ponto a lógica do terceiro elemento não remete para o primeiro problema sobre o qual
nos debruçámos já, aquando da discussão acerca de uma arte crítica?
Uma nova arte crítica depende de uma nova atitude pedagógica, do mesmo modo
que uma nova pedagogia depende de uma nova arte? Ou seja, o que pode uma arte
crítica revelar sobre uma atitude pedagógica, e por outro lado, o que pode uma nova
pedagogia revelar sobre a arte?
Se em O espectador emancipado estaria em causa compreender a lógica de uma
arte pedagógica e os parâmetros de uma nova arte sob o signo da igualdade das
inteligências, em O mestre ignorante está em causa o reconhecimento da arte como
comprovação desta mesma igualdade.
Se anteriormente procuramos encontrar a emancipação dentro da própria crítica
Platónica, julgamos poder empreender a tarefa de continuar a tentar encontrar em
Platão a lógica desta mesma emancipação, já que toda a arte crítica corre o risco de
absorver o que procura contestar.
40 Rancière, O mestre ignorante, pág. 33.
24
Uma poesia pervertida
Em A sociedade do desprezo, Rancière procura definir a diferença entre razão e
inteligência. Esta definição serve o propósito de procurar fundamento para a
existência de uma pedagogia embrutecedora e a possibilidade de uma outra que seja
“ignorante”.
Uma metáfora cosmológica serve o propósito de uma ilustração desta diferença:
de um lado temos a ideia de que “todos os corpos se precipitam para um centro” 41,
que existem condições materiais que confinam os corpos a uma razão “comum”; por
sua vez, a inteligência, enquanto elemento singular, não segue as mesmas leis. Esta é,
por assim dizer, única, singular, de cada indivíduo. 42
O embrutecimento é visto assim como a lógica de um único princípio
gravitacional que invariavelmente agrega todas as inteligências. A razão, enquanto
princípio colectivo, enquanto loucura colectiva, é vista , por Rancière, como uma
paixão primordial. Esta “paixão da desigualdade” surge como a “vertigem da
igualdade” 43, esse sentimento avassalador da igualdade. Esta paixão primordial
engendra, assim, um estado de protecção, um estado de guerra permanente.
A constatação deste estado primordial bélico, desrazoável, tal como Rancière
refere, vem confirmar a imutabilidade da lógica social – essa loucura colectiva que
organiza todos os corpos. Contudo, existe, ainda assim, a possibilidade singular de
cada indivíduo. Esta possibilidade singular transporta-nos para a constatação primeira
de que só individuo é real, somente este possui vontade e inteligência.
“Assim, o mundo social não é apenas o mundo da não-razão, mas o da desrazão, isto é, de uma actividade da vontade pervertida, possuída pela paixão da desigualdade.” 44 Este estado de guerra transporta assim, por um lado, a constatação de que apenas
o individuo possui realidade, e por outro, que o todo colectivo surge como uma
desrazão colectiva cuja vontade última é o estabelecimento de uma única força
41 Ramcière, O mestre ignorante, pág.81. 42 Logo é preciso concluir que ela está somente nos indivíduos, mas que não está na sua reunião. (...) mas não existe nenhuma inteligência que presida a essa reunião. (Idem, pág.83) 43 A desigualdade não é a consequência de nada, é uma paixão primitiva. (...) A paixão pela desigualdade é a vertigem da igualdade, a preguiça perante a enorme tarefa que ela requer, o medo diante de um ser racional que se respeita a si próprio. (Idem, pág.87) 44 Rancière, O mestre ignorante, pág.83.
25
gravítica. O amor pela desigualdade surge assim como uma preguiça perante a
enorme tarefa que a igualdade requer. 45
A igualdade das inteligências surge como essa tarefa dificílima de, recorrendo à
inteligência singular, cada um se relacionar com cada outro e de procurar nesse
impulso de diferença a força para encarar a semelhança. O ponto está em, ao
defrontar-se com a prova concreta de uma semelhança entre todos os indivíduos na
sua singularidade, não se submeter a essa vontade primordial, a esse instinto de
diferença. 46
Em a Loucura retórica, Rancière menciona o debate Platónico acerca da
falsificação, desse engendramento da razão que imita o poder da verdade. A lógica
Platónica de um “em si” é então rapidamente substituída pela voz de Jacotot; não é
possível conceber mais essa coincidência das coisas com as palavras; para Jacotot não
existe linguagem da razão.
A tese de um “em si” Platónico é tomado à letra e objecta-se contra ela o
problema de uma única voz retórica – nas palavras de Racière, de uma única lei
gravítica. Ora Jacotot defende que cada sujeito falante não deve tomar o relato das
suas aventuras de espírito pela voz da verdade, já que cada sujeito falante é o poeta de
si próprio e das coisas. À retórica é então reconhecida como esse estado de guerra,
essa batalha para o aniquilamento, ou emudecimento da vontade, ou da voz, adversa.
Deste modo Rancière alerta, por um lado, para os perigos da preguiça – essa
desistência da igualdade, ou se quisermos, essa rendição a um tal instinto primordial –
e por outro, para os perigos da voz singular ao serviço da verdade. O ponto está antes
em reconhecer a voz desperta, por oposição à preguiça, como o poder de cada relato
em relação consigo e com os outros.
Contudo, a promoção de uma igualdade só reforça mais a desigualdade. Prova
apenas que qualquer alternativa é menos razoável que a existente. A retórica é vista
então como projecto de uma razão que nada faz pela igualdade e que promove a
desigualdade como um estado de “mal menor”. 47
45 Não se trata apenas que haja um princípio de bem e um princípio de mal. É, mais profundamente, que dois princípios inteligentes não fazem uma criação inteligente. (Rancière, O mestre ignorante, pág.83) 46 A inteligência não mais se ocupa em adivinhar e em se fazer adivinhar. Ela tem por objectivo o silêncio do outro, (...). Rancière, O mestre ignorante, pág.89) 47 A perversão introduz-se quando esse poema se toma por outra coisa além do poema, quando pretende impor-se como verdade e forçar a acção. A retórica é uma poesia pervertida. (Rancière, O mestre ignorante, pág.91)
26
Conclui-se portanto que existe uma paixão primordial pela diferença. Essa paixão,
ou impulso, advém se quisermos, e no sentido Nietzschiano, de uma vontade de
poder. Mas Rancière atribui ainda uma outra justificação para esta paixão; esta surge
como reacção à difícil tarefa de considerar a igualdade. Essa constatação é então
invadida pela preguiça – daqui resulta o consentimento da diferença como um estado
desrazoável menos mau que um outro, novo.
Essa possibilidade de uma novidade é definida por Rancière como um espaço
utópico – esse espaço onde a voz singular corre sempre o risco de se instituir como
única. Essa voz de autoridade que traz na retórica a lógica do emudecimento, ou, nas
palavras de Rancière, de um embrutecimento.
Surge então a hipótese de, outra vez no singular, cada um desrazoar o mais
razoavelmente possível. Ou seja, a hipótese de cada um, alertado para os malefícios
de uma “voz única” e simultaneamente para a preguiça cidadã, dominar a arte de se
convencer a si próprio, de, num estado de alerta, fazer o melhor uso da sua razão
singular.
“A razão vê tudo como é; ela mostra, esconde dos olhos tanto quanto julga conveniente, nem mais, nem menos. Não é uma lição de esperteza mas de constância. Aquele que sabe permanecer fiel a si mesmo no meio da desrazão, exercerá sobre as paixões do outro o mesmo domínio que exerce sobre as suas.”48
Rancière coloca então a questão: “Estaríamos – poder-se-ia objectar – assim tão
distantes de Sócrates? Também ele ensinava, no Fedro como na República: o filósofo
pratica a boa mentira, aquela que é o justo necessário e suficiente, pois só ele conhece
a mentira.” 49. O ponto está em reconhecer que não só o filosofo reconhece a mentira,
todos têm essa capacidade de a reconhecer.
A voz de Sócrates serve assim a ilustração de uma voz soberana, que, aos olhos de
Rancière, força a lógica de uma única força gravítica. Ora, não objecto a sua leitura de
Platão, apenas constato, de acordo com o que anteriormente mencionei, que existe
um elemento ficcional nos diálogos Platónicos, i.e. que eles são obras literárias.
Utilizando as palavras de Rancière: poderá ser problemático tomar “esse poema por
outra coisa além do poema, já que a retórica é uma poesia pervertida.” 50.
48 Rancière, O mestre ignorante, pág.103. 49 Rancière, O mestre ignorante, pág.103. 50 Rancière, O mestre ignorante, pág.103.
27
Esse estado de alerta de cada um a si, como a capacidade de não sucumbir a essa
ordem desrazoável, parece não estar, como Ranciére mencionou, assim tão longe de
Sócrates – mas não esqueçamos a voz de Sócrates como personagem que até agora
suspeitamos irónico em múltiplos sentidos.
O elemento paradoxal da escrita Platónica que toma a forma que critica como
modo de produzir um efeito no leitor não pode ser esquecido. Sócrates e Platão devem
então ser vistos de um outro ângulo – o de personagem e autor, respectivamente.
Rancière objecta que a visão do rei filósofo não fez mais do que embrutecer e
antecipar uma distância, e, como ilustração, podemos até compreender a função do
argumento. Contudo, creio ser possível, e até mais profícuo, continuar a pensar a
possibilidade de haver, na obra de Platão, o elogio e o desenvolvimento de uma arte
crítica e emancipadora — uma arte que seria a do próprio diálogo platónico enquanto
obra literária.
28
Alcibíades
“And Alcibiades, instead of praising love, praises Socrates, the one unique man he has found, the man he has loved as no other.” 51
O personagem Alcibíades como personagem dos diálogos de Platão sobre a pedagogia
traz consigo um conjunto de reflexões que nos podem ajudar a compreender ainda
uma outra instância da relação pedagógica; a do enamoramento. Apesar de não ser
parte integrante do percurso argumentativo de Rancière, a questão do enamoramento
parece-nos pertinente.
Contudo, fazemos isto com o consentimento de Rancière, já que em O mestre
ignorante se refere mais que uma vez a questão do cuidado de si, assim como a
própria figura de Alcibíades. O ponto está em compreender por um lado, qual o papel
do mestre, e por outro, o do aluno e qual a relação “necessária” entre estes.
Alcibíades aparece como personagem histórico, anterior a Platão. Um jovem de
origem Aristocrática que, tendo perdido os pais precocemente, foi entregue ao
cuidado de Péricles – “Um jovem ambicioso e desmedido que acompanha a queda do
império ateniense.” 52
A figura de Alcibíades é crucial no pensamento acerca da emancipação, segundo o
pensamento do cuidado de si que Foucault põe à prova: “reorganizando toda essa
velha tecnologia do eu, expondo a primeira grande teoria do cuidado de si.” 53
A personagem Alcibíades surge em três obras diferentes; em Protágoras, com a
idade de 15 anos; no Banquete, tendo agora 35; e no Alcibíades I entre 18 e 20 anos. 54
Segundo Foucault, o personagem aparece naquela idade em que o jovem “deixa de
ser objecto de desejo erótico, momento em que deve ingressar na vida e exercer o seu
poder, um poder activo.” 55
A paradigmática relação de amor exposta em epígrafe no início deste capítulo, que
é retratada no Simpósio, confirma a profundidade da actividade deste diálogo. É a
primeira vez que Sócrates dirige a palavra a Alcibíades e logo no momento em que
este deixa de ser amado, assumindo a maturidade e deixando de ser objecto de desejo. 51 Johnson, Socrates and Alcibíades – introduction, pág. Vii. 52 Muchail, Figuras de Foucault, pág. 241. 53 Muchail, Figuras de Foucault, pág. 241. 54 Muchail, Figuras de Foucault, pág. 241. 55 Muchail, Figuras de Foucault, pág. 241.
29
Um percurso de transição da idade jovem para a idade adulta, fase de uma suposta
emancipação, da descoberta de um lugar no mundo.
No diálogo Banquete expõe-se o conjunto de declarações acerca do amor;
segundo Diotima, o verdadeiro amor ascende do amor pelos corpos belos para o amar
das almas belas, e por fim para o amar ideias belas. Ideia que acompanha a teoria
Platónica dos graus do ser em torno da consideração acerca do belo e do bom. O amor
seria assim resultado de uma aprendizagem onde o enamoramento, em processo de
refinação, encontraria satisfação apenas no amor a ideias belas. Como o amor à beleza
nela mesma, sem corpo, nem carne. 56
É então que surge a figura de Alcibíades. Este é sedutor e exuberante, envolto em
embriaguez. E ao invés de adorar o amor, este louva Sócrates, o único homem que
alguma vez amou.
“But Alcibiades´ speech does more than show how Socrates has followed
Diotima´s teaching. For Alcibiades mixes blame with his praise, and presents a version of love that we may feel more comfortable with than the austere metaphysics of Diotima.” 57 Alcibíades surge como a figura da crítica, como desvio. Se por um lado ele vem
reforçar o argumento de Diotima, pelo seu “mau exemplo” , por outro põe em causa a
própria perspectiva instituída. O amor exuberante de Alcibíades vem definir a figura
do jovem desregrado, impulsivo e tempestuoso. No entanto, Sócrates ainda não lhe
dirige a palavra. A figura de Alcibíades vem acompanhar uma promessa de
emancipação. A sua vida desregrada, impetuosa, vê-se agravada pela nobreza da sua
existência (linhagem) e através do seu comportamento não correspondido assume-se o
escândalo.
Alcibíades aparece também num importante diálogo onde se trata o problema do
auto-conhecimento, o Alcibíades I. O conhece-te a ti mesmo procura definir a figura
da emancipação, como forma de tomar lugar, de auto-domínio. Em Alcibíades I o
personagem situa-se no ponto crucial da transição para a vida adulta. Transição esta
que tornará possível o ganho da honra de participar na vida pública. Alcibíades perde
então toda a atenção merecida enquanto objecto de interesse romântico.
56 In this love for beauty itself, love for individual human beings is transcended, if not rejected. (Johnson, Socrates and Alcibiades, intro, pág. Vii.) 57 Johnson, Socrates and Alcibiades, intro, pág. Viii.
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Este outro tipo de amor não é já apenas a devoção ao mestre, mas o
reconhecimento de uma afinidade, de um enamoramento. Não está já em causa o
amor juvenil de um Banquete, mas antes este novo amor de transição, do
reconhecimento de uma igualdade. Alcibíades está quase pronto, mas, ainda em
transição, transpira indecisão.
Acerca da organização de A hermenêutica do sujeito, Salma Muchail ajuda a
estruturar, tomando Alcibíades como pano de fundo, o percurso dos seminários de
Foucault; em primeiro lugar, divide o diálogo em duas partes, sempre articulando a
importância e a atenção de Foucault em relação a esta obra. A primeira parte trata de
uma introdução ao personagem e a consequente exposição das deficiências de
Alcibíades. O ponto está na comparação deste com os seus rivais, como um teste à sua
preparação – Alcibíades reconhece a sua menoridade.
Eis que surge então a referência ao Oráculo de Delfos, o famoso conhece-te a ti
mesmo. Numa primeira instância, o preceito, e segundo Foucault, surge apenas como
conselho de prudência, reconhecendo-se a insuficiência da formação de Alcibíades. O
diálogo acaba por levar à constatação última; a ignorância da ignorância. 58A segunda
parte trata, por sua vez, duas questões; a primeira diz respeito à definição do eu; e a
segunda, em que consiste o cuidar de si.
A primeira diz respeito ao eu como objecto sobre o qual se deve exercitar a
atenção. Objecto este que simultaneamente é sujeito, de tal forma que temos aqui uma
relação do eu consigo mesmo, enquanto sujeito e enquanto objecto. Esta atenção
dedicada ao eu encaminha para a constatação de que é da Alma que se deve cuidar,
deste si, não enquanto substância, mas enquanto objecto e sujeito de acções. 59
A segunda parte articula a questão; o que é cuidar de si? A resposta surge como o
conhece-te a ti mesmo. Mas que significa este conhecimento de si enquanto
conhecimento da alma como objecto e sujeito do qual se deve cuidar? O terceiro
ponto surge na definição de uma correspondência. O cuidado de si só pode ser
praticado na reflexão de um semelhante. Este só é possível quando o olhar é dirigido
para um elemento da mesma natureza, quando se dá o reflexo da alma.
58 (…) Governar-se para bem governar os outros, à superação das deficiências da acção educativa e amorosa, à necessidade de vencer a ignorância (duplamente, em relação ao que não se sabe e à ignorância que se ignora.). (Muchail, Figuras de Foucault, pág. 242.) 59 Socrates: so man is something different from his own body? (…) Than just what is man? (…) Man is that which uses the body (…) Now, does something other than soul uses it? (Johnson, Socrates and Alcibiades, pág. 47.)
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Deste modo, é preciso constatar-se duplo, sujeito e objecto, cuja possibilidade de
auto-conhecimento é apenas possível no encontro do divino. Esta reflexão surge como
reconhecimento, aliás como conhecimento e reconhecimento de si através do
pensamento e do saber. 60
O bem último como sabedoria é a possibilidade de conhecimento de si. Como
forma de distinguir o bem do mal, o certo do errado, o verdadeiro do falso. Só
governando-se a si mesmo é que Alcibíades pode esperar governar a cidade. A prova
de maioridade é assim traduzida numa prova de auto-conhecimento, que vai do cuidar
de si até ao reconhecimento do divino com fim último no conhecimento como
possibilidade de si. Emancipação e conhecimento são assim consequentes, duas partes
do mesmo processo.
A dimensão ética da pedagogia Socrática vai, consequentemente, estar ligada ao
preceito Délfico. A necessidade do governo de si próprio é um encaminhamento
profundamente ético. Governar-se bem para melhor governar os outros, eis a máxima.
O comando político, como a vontade de Alcibíades, implica a noção definitiva de um
trabalho constante em relação a si próprio.
Esta dimensão ética não pode, inevitavelmente, ser despegada da figura do mestre.
Este ensina efectivamente o que o aluno não sabe. Expõe o ridículo da sua profunda
confiança, e aqui estamos com Rancière na sua tentativa de pensar a pedagogia para
lá da moral. Não podemos de facto esquecer Sócrates como o moralista por
excelência. No entanto, a dinâmica descrita em Alcibíades I pode alimentar o
pensamento sobre o compromisso do aluno. A aprendizagem não pode, também, em
nosso ver, ser apenas coerção.
Como Muchail ajuda a compreender, existe um elemento de enamoramento na
relação pedagógica que alimenta o veículo da explicação. Falamos da dimensão
erótica da relação professor/aluno. Esta dimensão, abrange todo o entusiasmo que vai
do mestre ao aluno e do aluno ao mestre e que solidifica esta relação de confiança.
A figura de Alcibíades está na idade onde a sua dimensão de objecto erótico se
perde, se desfaz. Este encontra-se simultaneamente num estado de promessa de
maturidade e noutro ainda, infantil. É a este estado transitório que cremos poder
aplicar o termo enamoramento. O que define a fronteira entre curiosidade e sapiência.
60 Ora, o que é este elemento? (…) Pois bem, é o elemento divino. (…) Numa palavra, é preciso olhar o elemento divino para reconhecer-se: é preciso conhecer o divino para reconhecer a si mesmo. (Muchail, Figuras de Foucault, pág. 243.)
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Podemos alegar a vontade como motor, mas uma relação tem de ser consentida, ou
melhor encontrada, já que não nos enamoramos por tudo.
“Tu sem dúvida te surpreendes, filho de Clínias, que após ter sido o primeiro dos teus enamorados, seja eu o único a não me desligar de ti enquanto os outros te abandonaram; e que, no lugar de, como eles, ter-te importunado com conversas, só depois de tantos anos em que te amo, eu te dirija a palavra.” 61
O mestre é aquele que ama o seu discípulo, não no sentido da posse, mas no
sentido da compreensão dele como potência. Como promessa, como projecção num
futuro. Deste modo, o mestre cuida que o discípulo cuide de si. O discípulo não fica
desamparado, não é deixado só a verificar a sua inteligência. Este é aliciado a
compreender a tarefa de cuidar de si como uma tarefa de todos os dias, como a tarefa
do pensar.
O papel do mestre é então levado a cabo com a maior das seriedades. Pois cuidar
que os outros cuidem de si implica alguém que cuide de quem cuida. O Deus cuida de
quem cuida que os outro cuidem, esta é a ordem dos eventos. Este encaminhar
implica o reconhecimento de uma tarefa, que aponta também ela para uma igualdade;
a de que todos cuidem de si e que simultaneamente cuidem de que os outros cuidem
de si. Trata-se de um sistema de responsabilidades e não um sistema de
responsabilizações. Só deste modo podemos compreender a afirmação de Sócrates na
Apologia a respeito das consequências do seu desaparecimento.
Ao tomar o partido de Aristóteles, Ranciére recusa-se a entrar na lição. 62 O
sistema de cuidados não significa o tomar de um ponto de supremacia, mas um
compreender das relações de poder, o compreender do poder do indivíduo como o
poder da comunidade. Este cuidado de si como tomada de responsabilidade implica o
reconhecimento profundamente humanista do conceito de emancipação como tomada
de responsabilidade de si em benefício do outro. 63
61 Alcibiades I em; Muchail, Figuras de Foucault, pág. 244. 62 É preciso, portanto, tomar o partido de Aristóteles, contra Platão: é vergonhoso para um homem razoável deixar-se abater em tribunal, vergonhoso para Sócrates ter abandonado a vitória e a sua própria vida nas mãos de Meletos, a língua dos oradores – que se aprende como todas as outras, ou mesmo mais facilmente do que qualquer outra, pois o seu vocabulário e a sua sintaxe estão presos a um circulo estreito. (Rancière, O mestre ignorante, pág. 101.) 63 A formação do politico requer a ética do cuidado de si; o cuidado de si requer a relação amorosa com o mestre; conduzindo o discípulo ao reconhecimento da divindade, o mestre cuida de quem deve cuidar de si. (Muchail, Figuras de Foucault, pág. 245.)
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Contudo, a posição do mestre é ainda a de um ente iluminado, que do divino
recebe ordens de conduta, como o que define os preceitos de uma didáctica. Mas
existe, para todos os efeitos, uma dimensão amorosa desta relação pedagogo/discípulo
que obedece a uma lógica de empatia, a uma lógica de afinidades.
A dimensão de uma pedagogia Socrática, embrutecedora, segundo Rancière,
define-se pela dependência consequente do cuidado de si. “Sócrates, o que ama, é
aquele que cuida que Alcibíades cuide de si a fim de poder bem cuidar da cidade.” 64.
Este encadeamento de dependências promete a supremacia embrutecedora do que
sabe sobre o que não sabe, e, através do reconhecimento da alma no divino, permite,
no sentido inverso, a legitimidade da voz oracular como validação da voz do mestre. 65
64 Alcibiades I em; Muchail, Figuras de Foucault, pág. 245. 65 Sócrates – Meu tutor vale mais e é mais Sábio que o teu Péricles. Alcibíades – Quem é ele, Sócrates? Sócrates – Um deus, Alcibíades, o mesmo que até ao dia de hoje não me deixou conversar contigo; é nele que me fio para dizer que só por mim, por mais ninguém te virá a (revelação). “O termo revelação encontra-se em Nota como salvação, pelo que suspeitamos de uma gralha ou de um conceito associado: Acrescentamos a referencia que Foucault faz à ideia de salvação. “Salvação de si e salvação dos outros. O termo salvação é absolutamente tradicional. Com efeito, nós o encontramos em Platão e precisamente associado ao problema do cuidado de si e do cuidado dos outros. É preciso salvar-se, salvar-se para salvar os outros. (Muchail, Figuras de Foucault, pág. 245.)
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Conhece-te a ti mesmo
Em a Razão dos iguais Rancière começa pela questão: o que é uma opinião? A
pergunta serve a apologia das múltiplas vozes singulares em detrimento da única voz.
A opinião surge então como esse espaço colectivo onde o conjunto de singularidades
é possível, onde cada opinião pede a tradução de uma outra. Mas o que faz da
igualdade das inteligências uma hipótese verosímil, se sabemos não existirem na
terra dois seres semelhantes?
O que torna possível a definição de uma diferença? O ponto está em reconhecer
a atenção, enquanto trabalho da vontade, como motor. Rancière refere que as
condições de existência de dois irmãos podem ser idênticas, mas que existem sempre
razões para um diferença, ou melhor, uma impossibilidade intrínseca de igualdade.
Falamos antes de um estado comum onde a vontade de cada um opera no sentido
de um compreensão de si, do seu esforço e da sua vontade. Rancière rejeita ainda as
duas visões moralistas possíveis: tanto a versão de uma atitude positivista de verdades
científicas, como a atitude obscura de um império espiritual. Para Rancière o ponto
importante está em reconhecer que a inteligência tem a capacidade de operar pela mão
da vontade – já que “o homem é uma vontade servida por uma inteligência.” 66.
A crítica da vontade em Rancière parte da necessidade de reconhecer uma
diferença entre esta e a razão. Deste modo, a tese das razões singulares, oposta à razão
única e soberana, encontra na vontade a confirmação de uma autonomia e com ela a
possibilidade de emancipação. A inteligência é assim vista como a habilidade de cada
um de buscar, de procurar. A vontade, por sua vez, surge como motor dessa
inteligência. 67 A vontade surge aqui, à semelhança da visão Nietzschiana, como essa
força afirmativa do sujeito, como motor da vida.
“(...) segundo os princípios do Ensino Universal, Jacotot fazia a sua própria tradução da célebre análise cartesiana do pedaço de cera : “eu quero olhar e vejo. Quero escutar e ouço. Quero tactear e o meu braço estende-se, passeia pela superfície dos objectos ou penetra no seu interior; a minha mão abre-se, desenvolve-se, estende-
66 (…) Vejo que, nos primeiros momentos de vida, eles possuem absolutamente a mesma inteligência, isto é, fazem exactamente as mesmas coisas, com o mesmo objectivo, com a mesma intenção. (...) mais tarde verei outros factos. Constatarei que essas duas inteligências já não fazem as mesmas coisas, não mais obtêm os mesmos resultados. (Rancière, O mestre Ignorante, pág. 57.) 67 A divindade da época revolucionária e imperial – a vontade, reencontra a sua racionalidade no seio do esforço de cada um sobre si mesmo. A inteligência é atenção e busca, antes de ser combinação de ideias. Vontade é potencia de se mover, de agir segundo um movimento próprio, antes de ser instância de escolha. (Rancière, O mestre Ignorante, Pág.61.)
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se, fecha-se, os meus dedos afastam-se ou aproximam-se para obedecer à minha vontade. Nesse acto do tacteio, só conheço a minha vontade de tactear. Essa vontade não é nem o meu braço nem a minha mão nem o meu cérebro nem o tactear em si. Essa vontade sou eu, é a minha alma, é a minha potencia, é a minha faculdade. Sinto essa vontade, ela está presente em mim, ela sou eu; quanto à maneira como sou obedecido, não a sinto, não a conheço senão pelos meus actos (...).” 68
A visão Cartesiana do cogito surge então como modo de pensar esse lugar
ontológico do sujeito, como esse espaço de cada um. Deste modo Rancière procura
estabelecer a lógica da inteligência singular como essa habilidade de cada um se
reconhecer. Este reconhecimento de si é apenas visível nas acções. Deste modo, é
então possível definir uma base ontológica para a tese já exposta das múltiplas forças
gravíticas, onde cada inteligência, na sua aventura singular, batalha para reencontrar o
seu estatuto ontológico, a sua liberdade individual.
Não significa isto que a tal única força gravítica não lá esteja, no seu constante
movimento magnético, a exercer a sua força nos corpos singulares, simplesmente que
esta serve de referência, como prova da perda ontológica da inteligência de cada
sujeito. É, deste modo, necessário compreender a dificuldade do reconhecimento da
igualdade das inteligências, já que este implica o esforço do reconhecimento de si nas
suas acções. Rancière é então levado a afirmar a vontade como motor, como
mecanismo de emancipação, já que eu tenho ideias quando quero.
O princípio do mal, segundo Rancière surge então como preguiça, como quebra
na atenção que deve ser constante. Esta ideia de uma extrema dificuldade da atitude
filosófica do cuidado de si encontra então uma profunda afinidade com a tese já
exposta no Alcibíades I. Este princípio do mal é então visto como infidelidade do
sujeito para consigo, como esquecimento de si.
A principal diferença – e é aqui que surge a crítica de Rancière a Sócrates,
personagem de Platão – está em reconhecer o “em si” Platónico como um bem “em
si”, em vez de um voltar a si. A principal distinção está na crítica a este “em si”
Platónico, já que este é tido como verdade última, como única força gravítica.
Deste modo, podemos identificar a crítica de Racière com a crítica Nietzschiana
da moral Socrática, na medida em que estabelece um princípio de verdade longe de
um princípio metafísico. O princípio do cuidado de si é para Rancière a noção de si
que cada inteligência deve encontrar no seu percurso como ser humano. Esta
68 Rancière, O mestre ignorante, pág. 61.
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habilidade de cada razão se manter fiel a si mesma no constante exercício de
atenção.69
A verdade é então oposta a um princípio de veracidade, que, segundo Rancière,
implica a vontade como principio de acção onde o sujeito se reconhece a si próprio.
“Este princípio de veracidade está no cerne da experiência da emancipação.” 70. Este
princípio não implica uma verdade científica, nem obscura, nem mesmo ideal, mas
antes a relação de cada um com a sua própria experiência. 71
Esta experiência da veracidade surge então, à semelhança do exercício do cuidado
de si Platónico, como possibilidade de emancipação, como despertar desse mundo de
sombras. A diferença do argumento de Rancière surge na problematização do cuidado
de si, na definição do sujeito e da relação deste com o social. Apesar de um
movimento eminentemente social, o ponto de Rancière está em afirmar a inteligência
como entidade singular e daí a sua possibilidade de emancipação. Essa entidade, ou
célula singular, é o ponto de enfoque da tese de Rancière. Apesar da necessidade
intrínseca do social, o ponto de Rancière está em definir a força afirmativa de cada
inteligência, a possibilidade de cada uma tomar o controlo da sua existência.
Existe ainda assim uma necessidade natural para o social; essa “paixão primitiva”
que deve ser combatida. Ora o combate dessa “loucura desrazoável” que é o social
deve ser travado precisamente em cada inteligência, em cada célula particular. O
cuidado de si surge como esse esforço singular por veracidade, por compreender o
seu lugar no mundo. Ora, não está em causa a definição do cuidado de si tal como
apresentado por Foucault – o seu ponto essencial é o da inexistência do eu sem o
Outro, o da necessidade intrínseca de uma relação para a definição do sujeito.
A coincidência das orbitas, como Rancière refere, define precisamente esta
possibilidade de cada si se relacionar segundo os seus próprios movimentos gravíticos
e simultaneamente a eminência da confluência embrutecedora de uma ordem comum.
Esta ordem, é, por princípio, desrazoável e deve ser encarada como espaço de
confluência pontual onde cada si, na constante análise das suas acções, se pode
emancipar pelo exercício da inteligência movida pela sua própria vontade.
69 Tropeçar não é nada; o mal está em divagar, sair do seu caminho, não mais prestar atenção ao que se diz, esquecer-se do que se é. Segue, portanto, o teu caminho. (Rancière, O mestre ignorante, Pág.64.) 70 (Rancière, O mestre ignorante, Pág.66.). 71 (...) o essencial é não mentir, não dizer que se viu quando se manteve os olhos fechados, não contar senão o que se viu, não acreditar que se deu uma explicação quando tudo o que se fez foi nomear. (Rancière, O mestre ignorante, Pág.66.).
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O método Socrático surge então como embrutecimento, já que conduz o aluno,
encaminha-o, expondo constantemente à sua ignorância – não contemplando esse
espaço singular da sua capacidade inteligente. 72 Contudo, à semelhança da discussão
acerca do cuidado de si em Alcibíades I, teríamos chegado à conclusão dos vários
passos da emancipação: Primeiramente, Sócrates refere o cuidado de si como o
reconhecimento de si como objecto e sujeito; logo, é nas acções que o sujeito se
reconhece.
Ora, Rancière utiliza precisamente esta ideia para explicar a sua teoria
cosmológica das inteligências; numa segunda instância, Sócrates refere a necessidade
de um reflexo. Este reflexo vai permitir um espelhamento do sujeito de modo a definir
uma afinidade. Esta afinidade surge como possibilidade última de emancipação, já
que só na capacidade de reconhecer um semelhante se dá essa a possibilidade.
O mestre e o aluno surgem então interligados, a possibilidade de coincidência de
cada uma das suas órbitas é um mal à espreita, de certo. Contudo, este enamoramento
é necessário, este contempla a possibilidade do aluno, (e do mestre), praticar essa
atenção de si a si. Esta relação dual não é apenas dicotómica, a meu ver;ela é
relacional e constantemente renovada. O principal problema da crítica de Rancière
assenta no facto de este não encarar os diálogos Platónicos como essa outra forma de
mimesis e encarar a figura Socrática não como figura poética, mas como porta-voz de
teses concluídas.
Ora, sabemos bem, e foi exposto no decurso deste texto, que podemos encarar os
diálogos Platónicos como arte crítica e, com isso, reconhecer a necessidade de
ferramentas intrínsecas à produção narrativa dentro dos próprios diálogos. Deste
modo, creio ser possível encarar a ironia própria dos diálogos Platónicos como modo
de crítica e, simultaneamente, como modo de produção de um efeito literário. Se por
um lado Ranciére acusa as propostas de Brecht e de Artaud de ainda vincularem o
princípio Platónico de uma divisão entre quem vê e que faz e quem vê e quem
conhece, seria então necessário reconhecer o próprio texto Platónico como esse
terceiro elemento, onde pudéssemos pôr à prova o conjunto de problemas para qual
ele nos encaminha. 72 Essa coincidência de órbitas é o que denominamos de embrutecimento. Compreendemos porque o embrutecimento é tão mais profundo quanto essas coincidências e se faz mais subtil, menos perceptível. É por isso que o método Socrático, aparentemente tão próximo do Ensino Universal, representa a forma mais temível de embrutecimento. O método Socrático da interrogação, que pretende conduzir o aluno ao seu próprio saber, é, de facto, o de um amestrador de cavalos: “ele comanda as evoluções, as marchas, as contramarchas (...). (Rancière, O mestre ignorante, pág.66.).
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O efeito
“Assim, o curso do diálogo [Platónico] não é nunca o de um pensamento que pretendesse ser abstracto ou neutro – não é nunca o de uma exposição que o autor pretendesse levar a cabo numa espécie de limbo filosófico, elevado acima do fáctico e do concreto. O curso do diálogo corresponde sempre ao fluxo das acções e reacções das personagens concretas que se encontram a viver numa dada situação, e reflecte sempre os constrangimentos impostos, bem como as possibilidades abertas, por essa situação que é ‘imitada’”. 73
Apesar de reconhecermos o problema do “em si” Socrático no Alcibíades I, não
podemos deixar de encontrar a necessidade de uma relação, mesmo que
embrutecedora. A evidência desta relação mestre/aluno dá conta de uma necessidade
de atenção a si que parece não estar distante da proposta de Rancière.
As inúmeras dimensões gravitacionais das inteligências necessitam, por assim
dizer, de uma atenção de cada um a si como um sistema de responsabilidades. O
problema da interpretação de Rancière está no pressuposto de que se pode identificar
Sócrates com Platão, ou de que Sócrates é apenas o porta-voz de Platão. . Ora os
diálogos são (e certamente Alcibíades I é), tal como no caso de Telémaco no “caso
Jacotot”, esse terceiro elemento onde cada um é levado a verificar a sua inteligência.
Por sua vez, será possível compreender, através da crítica presente nos diálogos, os
problemas inerentes à própria relação pedagógica.
Como João Constâncio nos ajuda a esclarecer, a principal razão para a crença
numa coincidência entre a crítica Socrática e a Platónica parte do princípio de que o
diálogo Platónico possui sempre um “porta-voz”. Ora, esse “porta-voz” parece
confirmar as teses defendidas por Platão, como se este assumisse claramente as suas
crenças filosóficas pela voz desse personagem. Dá-se portanto, um problema claro de
interpretação.
Segundo João Constâncio, será preciso tomar em linha de conta a existência de
uma ironia específica ao texto Platónico. E, na crença de estarmos na presença de um
exemplar paradigmático de uma poesia crítica (ou seja, na crença de que o diálogo
Platónico é uma forma de poesia crítica), será necessário compreender os níveis e as
intensidades desta ironia. 74
73 João Constâncio, Imagens e Concepções da Vida Humana em Platão, Diss., pág. 23. 74 “Nos diálogos que, supostamente, Platão terá escrito primeiro, essa personagem é sempre Sócrates; depois, em alguns diálogos, o seu papel de porta-voz é tomado por outras personagens: Parménides no Parménides, Timeu no Timeu, o Estrangeiro no Sofista, o Ateniense nas Leis. (...) O problema que
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A ironia no texto Platónico é usualmente vista como uma característica de apenas
parte do discurso Socrático, como forma de contradição própria do percurso
pedagógico da argumentação. Contudo, se solicitarmos uma leitura dos diálogos que
não procure fazer de Sócrates um herói moral, encontramos, segundo Constâncio,
uma outra forma de ironia bem menos inocente e inofensiva.
É preciso, portanto, encarar a Ironia Socrática, não apenas como um “dizer o
contrário do que se pensa”, mas antes como um nível de complexidade próprio do
modo de ser de Sócrates, como um tipo de ironia que consiste em não se revelar
inteiramente, ou, se quisermos, como um silêncio activo. A ironia Socrática pode ser
então vista, não como um modo de afirmação pela negação , mas antes como
ambiguidade.
“A sua ironia, [de Sócrates], sendo um “modo de ser”, consiste numa atitude e numa forma de comunicação que impregnam todo o discurso – e mesmo a sua acção. Uma personagem verdadeiramente irónica finge-se constantemente outra pessoa que não si mesma. (...) como alguém que sugere sempre que o seu ponto de vista real é diferente do que resulta directamente das suas palavras.” 75
O tipo de ironia aqui presente procura precisamente, segundo Constâncio, um
efeito de distanciamento. Desta forma, esta “personagem” Sócrates situa-se numa
espécie de limbo de ambiguidade. Não quer isto dizer que nenhuma das suas teses
seja partilhada por Platão, mas antes que a personagem se rege por um princípio de
“mascaramento” que é eminentemente literário, ou poético. Existe portanto um tipo
de ironia positiva na personagem Sócrates bem como nas outras personagens irónicas
dos diálogos.
O termo que surge recorrentemente (nos próprios diálogos) é o termo
“brincadeira”, ou “jogo”, mas que segundo Constâncio pode ser traduzido por “jogo
irónico”. Este “termo é utilizado não só para caracterizar a atitude desta ou daquela
personagem, mas também para caracterizar a própria natureza dos diálogos.” 76. Este
muitos leitores e comentadores de Platão tendem a não levar em linha de conta é, porém, que todas essas personagens são irónicas.” (João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 147.) 75 João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 150. 76 João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 151.
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jogo é, por assim dizer, uma forma de construção, ou uma atitude, inerente à própria
construção das personagens em função da argumentação.
Este tipo de ironia, como dissimulação, ou representação, dá indicação de que o
texto não deve ser encarado como um mero “tratado” filosófico, mas antes como uma
construção que é em si mesma artística. Deste modo, “a argumentação deve apontar
para o mais importante sem exprimir literalmente” 77 o que pretende defender, até
porque, em última instância, a própria lógica dos diálogos é construtiva, e não
proposicional. Não falamos portanto de um encaminhamento retórico apenas, mas de
uma reflexão que procura mapear um conjunto de teses importantes tornadas
disponíveis no próprio acto literário. 78
Existe assim, uma construção de um tipo de leitor, que, na tentativa de procurar
teses ou respostas definitivas em relação a determinado assunto, vê a sua tentativa
frustrada. Este outro leitor antevê-se atento – desperto para as ambiguidades próprias
da construção filosófica dos diálogos. Os diálogos necessitam de uma leitura atenta,
interrogativa – em suma, de uma leitura activa. 79
O termo “ironia” refere uma atitude complexa em relação ao próprio acto
filosófico, reconhece-o como uma construção. Esta construção obedece ela própria a
critérios miméticos. É esta outra forma de mimesis, intrínseca à construção dos
diálogos, que os submete à regra da tradução. A ironia funciona então como um jogo
jocoso onde assuntos de grande seriedade são tratados. A ironia funciona, por assim
dizer, como filtro literário, permitindo ao leitor um papel activo na construção da
argumentação.
O termo “jogo”, ou “jogo irónico” não pretende descredibilizar a natureza séria
dos diálogos; em meu entender, procura antes elevar o seu carácter artístico. Este
carácter artístico permite procurar não as teses finais da teoria Platónica, mas envolver
o leitor no jogo das condições que permitem algumas dessas teses. Ou seja, o próprio
77 João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 152. 78 Só isso permite que todo o leitor que já persegue o mesmo rasto chegue por si mesmo ao mais importante, ao mesmo tempo que, desse modo, o acesso a isso permanece vedado a todo aquele que apenas segue a letra do texto e não está ele próprio empenhado numa investigação do assunto em questão. (João Constâncio, Ironia Socrática e Ironia Platónica, pág. 152.). 79 Assim, por exemplo, no sétimo livro da República – depois da discussão da alegoria do sol e da linha no livro sexto, depois da alegoria da caverna, depois destes passos tão fundamentais e geralmente tão levados à letra, – Sócrates declara que ele e os seus interlocutores não têm estado a fazer outra coisa senão a ‘brincar’, a ‘jogar’, i.e. a ironizar (536c1), e que só por breves instantes (sc. desde 535a) é que se falou um pouco “mais a sério” (536c4), esquecendo o facto de que o diálogo é uma ‘brincadeira’, um ‘jogo irónico’ (cf.536b-c).” (João Constâncio, Ironia Socrática e Ironia Platónica, pág. 153.).
41
discurso de Sócrates funciona como um discurso limitativo, “como uma negação que
deixa inteiramente em aberto o que se poderia afirmar.” 80.
Concluímos daqui que não existe apenas uma ironia Socrática, mas também uma
“Ironia Platónica; que os diálogos de Platão são ironia – que se apresentam a si
próprios como ironia.” 81. Esta dimensão irónica não é apenas negação ou
relativização das teses expostas nos diálogos, a ironia funciona como atitude crítica,
como matriz da concepção dos diálogos Platónicos como arte crítica.
É necessário, portanto, encarar os próprios diálogos Platónicos como manifestação
desse terceiro elemento onde o jogo de tradução e contra-tradução, já mencionado por
Rancière, deve existir. É necessário procurar nos próprios diálogos as suas motivações
próprias, os seus próprios movimentos libertadores e embrutecedores. A meu ver, o
poder surpreendente dos diálogos assenta na possibilidade de entendimento de um
conjunto de crenças em conversa permanente, que, apesar de não serem de todo
conciliáveis, convivem na forma de debate.
É necessário, deste modo, se quisermos olhar os diálogos para além da figura
moral Socrática, compreender que esta desempenha antes de mais um papel mediador.
Deste modo, o leitor tem acesso primeiramente ao conjunto de crenças e motivações
dos assuntos debatidos. Bem sabemos que não existe um principio democrático, ou
igualitário nos diálogos. Poderíamos afirmar, contudo, que a desigualdade intrínseca
aos diálogos é necessária.
A desigualdade entre personagens nos diálogos vai permitir um encadeamento
literário através da argumentação. Esta desigualdade pode ser então vista como um
efeito, como mecanismo literário. Este mecanismo permite um sentido dialéctico, mas
nada garante a sua literalidade. 82
80 João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 154. 81 João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 155. 82 O modo como Sócrates leva a cabo o exame destes seus interlocutores – o modo como expõe o carácter inconsistente, confuso, vazio, não fundamentado da perspectiva que orienta as suas vidas – já sabemos que é irónico. O segundo nível de ironia, porém, resulta do facto de, ao lermos e acompanharmos este exame, tendermos a identificarmo-nos com Sócrates. Fazendo-nos seguir o raciocínio e a argumentação como se estivéssemos no lugar de Sócrates, Platão produz em nós uma certa sensação de superioridade em relação aos interlocutores de Sócrates – quando, na verdade, o que está implicado no diálogo é que todos nós, os leitores de Platão, somos como os interlocutores de Sócrates, não como Sócrates: que todos nós vivemos a maior parte das nossas vidas, quando não a sua totalidade, exactamente como prisioneiros do fundo da caverna. (João Constâncio, Ironia Socrática e Ironia Platónica, pág. 153.)
42
Segundo Constâncio, “se há tese que encontramos em todos os diálogos de
Platão é provavelmente é esta: “a de que a perspectiva pré-filosófica do cidadão
comum é a doxa, é uma perspectiva de fundo de caverna, e de que a filosofia começa
por não ser mais do que o movimento Socrático de reconhecer que não se sabe (...)”.” 83. Podemos, deste modo reconciliar Platão com Rancière, na medida em que, se não
procurarmos a perspectiva de um rei filósofo na voz de Sócrates e, se não fizermos o
constante exercício de fazer coincidir Platão com Sócrates, verificamos que ambos
(Platão e Rancière) buscam a possibilidade de emancipação no foro da arte,
nomeadamente no foro de uma arte crítica.
Que indicações podemos então encontrar, acerca do cuidado de si em Alcibíades
I, que esclareçam a natureza da relação pedagógica? E, de que modo podemos
pensar, segundo uma perspectiva literária dos diálogos, a relação professor/ aluno no
seio de uma reflexão sobre o sujeito e sobre a sua emancipação?
83 João Constâncio, “Ironia Socrática e Ironia Platónica”, in Filosofia e Literatura I, Colloquia, pág. 155.
43
O olho de Alcibíades e a igualdade do reflexo
Na segunda hora do seminário de 13 de Janeiro de 1982, Michel Foucault aponta,
acerca do personagem Alcibíades, um conjunto de teses acerca do cuidado de si. Se
numa primeira instância do contexto surge o preceito do Oráculo de Delfos como
conselho de prudência, numa segunda surge como questionamento acerca das
características deste si. Mas é ainda numa terceira instância que se vão definir os
procedimentos deste cuidado, assim como o seu verdadeiro significado. Está em causa
a compreensão do cuidado de si como o conhecimento de si; como conhece-te a ti
mesmo.
Este conhecimento de si implica um retirar-se para si, um examinar-se a si mesmo.
E isto implica um desapego das sensações, das ilusões se quisermos, como fixação e
constituição de um si como potência de acção. É feita, assim, a associação entre o
conhecimento de si e o cuidado de si. Deste modo, os dois termos são consequentes
um do outro; conhecer-se a si mesmo equivale a cuidar de si – a colocar a questão de
si sobre si a cada momento.
Em Alcibíades I o reconhecimento deste si vai ser feito através da “metáfora do
olho”. Esta implica o reconhecimento de uma semelhança como possibilidade, onde o
reflexo desvenda, através de um espelhamento, a possibilidade deste si, mas sempre
em função de um Outro. A pergunta surge do seguinte modo: Em que condições é que
um olho se pode ver a si próprio? – olhando um semelhante, a alma reconhece-se
quanto maior o brilho desse reflexo no olhar do outro, quanto maior a nitidez desse
mesmo reflexo.
“After all, when someone’s eye looks at itself in the eye of someone else, when an eye looks at itself in another eye absolutely similar to itself, what does it see in the other’s eye? It sees itself.” 84
Esta atitude reflexiva implica, para além da sua dimensão metafórica, o
reconhecimento de uma afinidade, de uma semelhança como garantia de si, como
comprovação de si. A lei da boa semelhança desempenha aqui o papel do
reconhecimento de um encontro como condição da emancipação, como possibilidade
de si enquanto reflexo num Outro.
84 Foucault, The hermeneutics of the subject, pág. 69.
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A especificidade deste reflexo vai tão longe como a especificidade do seu lugar:
É na pupila que o olho se reflecte, é na fonte de visão que a visão se reconhece. Este
espelhamento serve, contudo, o reconhecimento do divino como reflexo da alma,
desta dimensão imaterial do eu. O conhecimento de si só é possível no
reconhecimento desta dimensão divina de si como jogo de afinidade com o divino.
Assim, a alma reconhece-se ao se dirigir ao divino. 85
No final de Alcibíades I, a personagem Alcibíades compromete-se a cuidar de si.
Mas entende isto como um ocupar-se com a justiça. Foucault, ajuda a esclarecer este
ponto: não existe nenhuma diferença, pois cuidar de si e cuidar da justiça equivalem-
se, são noções interdependentes.
O pensar o cuidado de si em o Alcibíades I de Platão surge então como teste à
possibilidade de uma independência, ou, se quisermos, de um processo de auto-
conhecimento. O Alcibíades I ajuda a compreender o problema do cuidado de si como
um problema do eu com o Outro, com esse elemento reflexivo que permite, mais do
que a definição, a solicitação de um olhar atento de si sobre si.
Foucault vem ajudar-nos a procurar espaço para o pensamento acerca do eu sem o
corte com o social, isto é, do social como coerção de eu. O ponto de vista do aluno é
assim o ponto de vista do sujeito, de qualquer sujeito. O “cuidado de si” surge então
como actividade profundamente enraizada numa relação a dois. Alcibíades promete,
assim, o espaço de um pensamento estético como formulação de uma ética. Esta
atenção sobre si, esta capacidade de atenção sobre si, permite encontrar um espaço
outro para uma arte crítica.
O que pode então o enamoramento dizer sobre a relação pedagógica? No nosso
entender, o enamoramento transporta consigo um elemento de casualidade, de
descoberta não premeditada. O enamoramento surge como um estado de ocupação,
onde se é levado a esse estado de vigília sobre si. Esse estado de alerta para si na sua
acção. A dimensão ética deste enamoramento levanta a profunda possibilidade de um
espaço de atenção sobre si como a apologia de um alerta permanente.
Bem sabemos das diferentes construções sociais e do anacronismo dos tempos
históricos, mas a proposta de Foucault, inspirada na cultura grega e, em particular, no
conceito grego de “cuidado de si”, aponta para um pensamento da emancipação a
85 One must know the divine in order to see oneself. (Foucault, The hermeneutics of the subject, pág. 71.).
45
partir da ideia de um bios. A ideia de uma ética como estrutura de existência sem um
sistema autoritário, sem uma estrutura disciplinar. 86
Contudo, esta possibilidade de cuidar de si e de se criar a si próprio como sujeito
não é uma escolha solitária: ela é, antes, profundamente dependente do outro. Não
falamos de um “cuidado de si” narcísico ou imaturamente independente, nem da
busca de uma verdade interior, mas sim de um estado de alerta em relação a si. Como
o verificar o conhecimento de si nas suas acções, aí onde este si se põe em causa.
Este cuidado de si, como possibilidade de emancipação aponta para um sistema de
aprendizagens, para a superação das deficiências da (sua) aprendizagem. É um
processo de reflexão sobre si, como um estado de atenção. Não está em causa o
retorno a uma origem perdida, mas a emergência de uma “natureza” distinta.
Contudo, trata-se de uma “natureza” que é aprendida, que não existia previamente. 87
“Education is imposed against the backdrop of errors, distortions, bad habits and dependencies, which have been reified since the start of life. So that it is not even a matter of returning to a state of youth or infancy where there would still have been the human being; but rather of referring to a “nature”(…) which has never had the opportunity to emerge in a life immediately seized by a defective system of education and belief. The objective of the practice of the self is to free the self, by making it to coincide with a nature which has never had the opportunity to manifest itself in it.” 88
O Outro surge como a possibilidade desta emergência, do destacamento desta
“natureza” outra, desta aptidão que se descobre em conjunto. O termo enamoramento
apoia, a meu ver, a dimensão imprevisível destas “naturezas”, cujas emergências são
em grande medida impossíveis de definir à partida. A ideia de um outro possibilita
ainda a noção de um conjunto mais vasto destas “naturezas outras” que a atenção
constrói enquanto possibilidade de emancipação. Não podemos falar mais da fronteira
entre quem sabe e quem não sabe, mas antes desse jogo de alertas que cada novo
enamoramento possibilita. O mestre Sócrates é representativo desta urgência, pois é
na dualidade que se desencadeia este processo indecifrável. Um processo de
enamoramento a dois, onde a possibilidade de um novo cuidado de si é possível.
O cuidado de si surge então como um movimento profundamente activo.
Funciona como profundo engajamento no mundo, como constituinte de um eu como
86 Foucault, The hermeneutics of the subject, the ethical stakes of the course, pág.531. 87 Foucault, The hermeneutics of the subject, the ethical stakes of the course, pág.536. 88 Foucault, The hermeneutics of the subject, the ethical stakes of the course, pág. 531.
46
sujeito das suas próprias acções, 89 funcionando assim como possibilidade de
enquadramento de si no mundo, como possibilidade de emancipação. Não falamos de
um eu absoluto. Falamos antes da possibilidade de medição do lugar que ocupamos e
do reconhecimento do sistema de necessidades em que nos situamos. 90
“The privileged relationship, fundamental to himself, must enable him [the subject] to discover himself as a member of a human community, which extends from the close bonds of blood to the entire species.” 91
O cuidado de si surge então como possibilidade de acção, de participação e
emancipação. Este é o oposto de uma contemplação passiva, este solicita a acção – é
motor. É este movimento — que vai de si a uma comunidade humana e da
comunidade a si — que constitui a possibilidade emancipadora deste cuidado. Ou
seja, é no reconhecimento de uma igualdade das inteligências, na constatação de que
todos procuram nada mais que tornar a sua voz compreendida, que se define uma
comunidade humana. Esta comunidade advém da constatação de que todo o homem
tem a mesma necessidade – nada busca mais que fazer-se entender.
O estado de vigilância em relação a si constitui então a possibilidade de
manutenção ética do reconhecimento de si no outro, constantemente. Este movimento
parece assentar na ideia da relação pedagógica enquanto estado de enamoramento, já
que, a cada novo estado, se cria um outro tipo de acção, ou, um outro tipo de
vigilância em relação à acção do próprio.
Alcibíades encontra sua grande força na ajuda que nos faz compreender a
impossibilidade de pensar fora de uma relação. Não está mais em causa a tomada de
consciência de si como motor de um revolução, mas a constatação de si como estado
criativo de auto-análise. Deste modo, existe, para além de uma relação de poder, um
estado de enamoramento que, quer de um lado, quer de outro, é difícil de definir. Não
está em causa ignorar o poder de uma revolução, ou da tomada de consciência de uma
possibilidade de si como possibilidade outra, mas antes o reconhecer de uma
complexidade da relação como motor de uma nova acção. Existe assim, se quisermos,
a constatação de uma igualdade do reflexo, de um movimento que vai do aluno ao
89 Foucault, The hermeneutics of the subject, the ethical stakes of the course, pág.536. 90 Foucault, The hermeneutics of the subject, the ethical stakes of the course, pág.538. 91 Foucault, The hermeneutics of the subject, the ethical stakes of the course pág. 538.
48
Bios
É possível afirmar uma necessidade intrínseca à desigualdade que está implicada na
dualidade, ou relação, Sócrates/Alcibíades. Mas é preciso, antes de mais, reconhecer a
natureza artística dos diálogos e, ainda mais – a sua natureza crítica enquanto forma
artística. É necessário seguir a própria proposta de Rancière de uma igualdade das
inteligências reconhecida nesse terceiro elemento – a exterioridade é a sua principal
característica.
É possível encontrar, no nosso próprio diálogo como este terceiro elemento, a
constatação de um momento de síntese dos próprios problemas levantados por
Rancière e, deste modo, procurar traduzi-los de um modo distinto. Assim sendo, não
se trata aqui de uma refutação de Rancière, mas antes de uma defesa de Platão.
A ideia aqui é que os diálogos de Platão são uma demonstração performativa de
que a filosofia é um acto de criação artística e de que a filosofia, como filosofia
crítica, necessita de “tradução” para uma forma artística — precisa de se reconhecer
numa forma artística, que, no caso de Platão, é o diálogo irónico, o diálogo como
“jogo irónico”.
Deste modo, torna-se decisivo definir a arte como a “tradução” ou mimesis de um
bios, ou seja, de uma visão do mundo concreta, vivida. . Falamos, no sentido
Aristotélico da mimesis, da sua capacidade singular de engendrar os movimentos
implícitos do mundo, e se quisermos, do pensamento.
A principal característica desta bios assenta na necessidade de uma relação. 92 Esta
ética, como estrutura de existência, não implica qualquer relação com um sistema
autoritário de valores ou mesmo uma estrutura disciplinar, mas antes com a definição
de uma necessidade da relação como espaço de uma definição de si. Deste modo, à
semelhança de Rancière, cada si possui uma inteligência própria. Esta inteligência é a
habilidade de encontrar na relação a possibilidade de si, de estar disponível para
encontrar a sua própria natureza outra. 93
92 Now this personal choice is not a solitary choice but involves the continuous presence of the other, and in multiple forms, as we will see soon. (Foucault, The hermeneutics of the subject –The ethical stakes of the course, pág. 531.) 93 What is aimed at as salvation is accomplished without any transcendence: “The self with which one has the relationship is nothing other than the relationship itself… it is in short the immanence, or better, the ontological adequacy of the self to the relationship” (dossier “Culture of the self”). (Idem, pág. 533.)
49
“What specially interests Foucault here is establishing continuities, showing how an experience is formed in which to master himself the subject no longer has to extend social schemas of domination into the relation of the self, (…), but must put to work a vigilance in which he is suspicious of his own affects (…).” 94
Deste modo, podemos olhar para Alcibíades I, como diálogo acerca do cuidado de
si, como possibilidade de emancipação. O Alcibíades I deve ser interpretado aqui
como esse terceiro elemento onde podemos reconhecer as teses expostas por Rancière
e onde podemos encontrar indícios para o pensamento sobre a emancipação que
reflectem sobretudo a necessidade de um Outro para a definição, ou auto-
determinação, do eu. Cada inteligência, cada força gravítica singular, só se define, aos
olhos de Platão e na defesa de Foucault, pela existência de Outro, precisamente.
A emancipação deve ser pensada, deste modo, como a possibilidade, não pela
existência de um outro fixo, coercivo, mas pela constante redefinição de um outro.
Não está em causa o reconhecimento de uma individualidade, ou de uma
singularidade tal como em Rancière, mas antes de uma relação. O importante no
pensamento sobre a emancipação é, deste modo, reconhecer a necessidade intrínseca
de um Outro para a definição de um si.
Sócrates não surge mais como o mestre embrutecedor por excelência, mas como a
necessidade literária por detrás do pensamento sobre a emancipação; essa personagem
que permite, precisamente, a definição ontológica, política, estética e ética de
Alcibíades. E, por analogia, esse terceiro elemento, (a obra de Platão), como o espaço
do despertar do leitor para a sua própria auto-determinação .
O cuidado de si é, desta forma, convite è acção. É aquilo que nos solicita para a
acção. Este não implica um isolamento do eu em si, mas antes o que nos permite
compreender a possibilidade de nossa acção no mundo. Deste modo, Platão
reconhece, à semelhança de Rancière, o cuidado de si como a capacidade de cada um
compreender o papel que desempenha no mundo, sempre em função de um outro – há
que reconhecer de facto esta importância essencial de um Outro.
O bios surge então como a capacidade de despertar, em cada relação, essa outra
“natureza” do eu. Não se trata de despertar uma interioridade perdida, mas antes em
reinventar essa “natureza” a cada relação. Ou antes, a capacidade desse Outro
despertar em nós algo que desconhecíamos em nós até à data. 94 Foucault, The hermeneutics of the subject –The ethical stakes of the course, pág.535 .95 O pensamento não se diz em verdade, exprime-se em veracidade. (Rancière, O mestre ignorante, pág.69)
50
Deste modo, e transpondo este pensamento para a lógica do terceiro elemento, é
necessário reconhecer a sua capacidade constante de engendramento do Outro. O
terceiro elemento, como palco de novas acções, é assim o indício máximo desta
interdependência; como a capacidade constante de despertar essa outra “natureza” do
leitor.
51
Falar das obras dos homens
Em A razão e língua, Rancière define a linguagem pelo seu carácter despedaçado.
Esta tese reitera a já mencionada lógica das “n” forças gravíticas, por oposição a uma
única força gravítica embrutecedora. Está em causa a noção de que a linguagem não é
una, nem mesmo indivisível. Esta é, primeiramente, definida pela sua multiplicidade e
pelo seu carácter arbitrário.
Este carácter fragmentado da língua vem apoiar a tese de que o homem é uma
vontade servida por uma inteligência e, deste modo, de que não existe uma verdade
única, nem uma razão única, nem mesmo um léxico ou uma linguagem fixa. Contudo,
esta “ausência de léxico” não afirma uma dificuldade da comunicação, antes pelo
contrário; implica antes que existe um esforço próprio da comunicação e que este
esforço é o que confirma, antes de mais, uma necessidade de tradução constante. 95
Retomando o caso Jacotot, a necessidade de tradução indicia, sobretudo, que as
inteligências são semelhantes. Essa semelhança garante-se na empresa que cada uma
tem de empreender, nesse esforço de se fazer entender. “A relação de dois ignorantes
com o livro, esse terceiro elemento, somente radicaliza esses esforços de todos os
instantes.” 96 . O acto da palavra, implica, então, não a transmissão de um saber, mas a
propriedade singular do acto poético. 97
Não existe, portanto, uma “Verdade”, mas antes a constante tentativa de se fazer
entender. É necessário esse exercício constante da atenção, dessa vigília de si e sobre
si como garantia de clareza e lucidez. Esta clareza só se garante enquanto houver
acção constante, fazer constante ou tradução constante: “saber não é nada, fazer é
tudo.” 98 .
O acto da palavra, é entendida por Rancière, como o lugar privilegiado da relação do
eu com o mundo. À semelhança do cuidado de si, é no acto que se dá a vigília de si;
essa atenção crucial para a definição do eu. Esta acção torna , deste modo, o acto
verbal num acto poético. Se o pensamento não precede a linguagem e se esta se
caracteriza pela sua dimensão de fragmento, o acto de tradução deve e tem de ser,
segundo Rancière, visto como um acto poético: “Quando o homem age sobre a 96 Rancière, O mestre ignorante, pág. 70. 97 Toda a palavra, dita ou escrita, é uma tradução que só ganha sentido na contra-tradução, na invenção das causas possíveis para o som que se ouviu ou para o traço escrito: vontade de adivinhar que se apega a todos os indícios, para saber o que tem a dizer-lhe um animal racional que a considera como uma alma de um outro animal racional. (Rancière, O mestre ignorante, pág.71) 98 Rancière, O mestre ignorante, pág. 71.
52
matéria, as aventuras desse corpo tornam-se a história das aventuras de seu espírito.” 99 .
Assim sendo, podemos constatar que, enquanto tarefa filosófica, o lugar
privilegiado para conhecer o homem é precisamente a análise da sua palavra. Esse
lugar da palavra do homem, ou melhor, dos homens, é precisamente a sua obra. É na
arte que se encontra essa possibilidade de um espaço emancipador, onde a pergunta
acerca de si pode e deve ser feita a todo o momento: “Falar das obras dos homens é o
meio de conhecer a arte humana.” 100 . Mas em que livros procurar?
“É preciso aprender com aqueles que trabalham o abismo entre o sentimento e a
expressão, entre a linguagem mudo da emoção e o arbitrário da língua, com aqueles que tentaram fazer escutar o diálogo mudo da alma com ela própria, que comprometeram todo o crédito de sua palavra no desafio da similitude dos espíritos.” 101
Poderemos então, após a constatação da complexidade própria dos diálogos
Platónicos, afirmar a possibilidade de reconhecimento de Platão como esse homem
que age sobre a matéria? Será que, ao reconhecer o diálogo Platónico como uma
forma de arte, não podemos, de facto, reconhecer a sua interioridade própria – a sua
batalha singular na tradução do mundo? E, em relação à dimensão profundamente
irónica dos diálogos, não podemos reconhecer esse poema como a ausência de um
outro tal como define Rancière?
Se há pouco referimos a “poesia” platónica como um “jogo irónico”, podemos
agora afirmar essa propriedade própria dos poemas, que é a dificuldade intrínseca em
se fazer entender. A palavra, pela ausência de uma razão única, define, antes de mais,
a impossibilidade de uma tese final; não será o carácter “inconstante” dos argumentos
Platónicos ao longo dos diálogos, a sua “mutabilidade” ao longo da sua obra, indício
bastante deste princípio poético?
Contudo, e se não aderirmos à nossa proposta, seremos obrigados a interpretar
Platão como um orador que nada mais pretende do que calar o diálogo constante,
esse processo de tradução perpétuo. Este pretende, acima de tudo, embrutecer, forçar,
encaminhar esse diálogo com o Outro. Esses mestre embrutecedores; “Eles nada
99 Rancière, O mestre ignorante, pág. 71. 100 Rancière, O mestre ignorante, pág. 71. 101 Rancière, O mestre ignorante, pág. 71.
53
querem dizer, querem sim comandar: ligar as inteligências, submeter as vontades,
forçar a acção.” 102.
De todo o modo, a lição emancipadora do artista é a de que todos somos artistas, é
a de que não existe uma perícia da razão, apenas uma necessidade de se fazer
entender e que, com ela, existe apenas a tentativa constante de construir na linguagem
indícios que consigam dar sinal do que se pensa e se sente em relação ao mundo. A
lição do artista é apenas esta: Não basta sentir, é necessário também partilhar o que se
sente. 103
Platão situa-se assim neste limbo, entre uma retórica embrutecedora e a
emancipação artística através do diálogo. Podemos, deste modo, olhar para ele, ora
como artista, ora como mestre, – “O artista tem necessidade de igualdade, tanto
quanto o explicador tem necessidade de desigualdade.” 104 – entre o tradutor ou
explicador, o mestre ou o ignorante.
Mas a defesa do diálogo Platónico não refuta a principal tese de Rancière acerca
da igualdade das inteligências, a sua interpretação da inteligência como uma
habilidade de se fazer compreender que passa pela verificação do outro. Neste
sentido, inteligência e igualdade são sinónimos tanto quanto razão e vontade: “Essa
sinonímia que funda a capacidade intelectual de cada homem é também aquela que
torna uma sociedade em geral possível. A igualdade das inteligências é o laço comum
do género humano, a condição necessária e suficiente para que uma sociedade de
homens exista.” 105.
102 Rancière, O mestre ignorantes, pág. 75. 103 Pode-se, então, sonhar com uma sociedade de emancipados, que seria uma sociedade de artistas. Tal sociedade repudiaria a divisão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem, entre os que possuem e os que não possuem a propriedade da inteligência. A inteligência não conhecia senão espíritos activos: homens que fazem, que falam do que fazem e que transformam, assim, todas as suas obras em meios de assinalar a humanidade que neles existe, como nos demais. (Rancière, O mestre ignorantes, pág. 78.) 104 Rancière, O mestre ignorantes, pág. 78. 105 Rancière, O mestre ignorantes, pág. 80.
54
Conclusão
Iniciámos o nosso percurso com a tese central de O espectador emancipado. Tal
como Rancière afirma, se a emancipação é possível, esta deve ser encontrada
precisamente aí onde a relação do homem com as coisas é mais intensa: na relação
entre os da mesma espécie primeiramente, mas mais ainda, com as manifestações
materiais dessa mesma espécie. A proposta de uma igualdade das inteligências
assume-se, deste modo, como um problema eminentemente estético. Ou seja, implica
precisamente a avaliação da natureza da nossa relação com as coisas no mundo e em
concreto com as obras (de arte) dos homens.
A proposta de uma igualdade das inteligências é formulada, por Rancière, através
do exemplo da experiência pedagógica de Joseph Jacotot. O seu ensaio acerca da
Educação Universal teria levado à constatação de que um método de ensino que,
pondo as ferramentas ao dispor dos alunos, dispensa a explicação de matérias e
levanta uma hipótese reveladora: a de que de facto todo e qualquer um possui essa
habilidade de aprender pela sua própria experiência, individualmente.
Esta igualdade das inteligências parte de uma distinção básica entre um método
pedagógico embrutecedor, que se define pela coerção do aluno e pela constante
demonstração da sua ignorância, e o método ignorante; este serve, por oposição ao
embrutecimento pedagógico, a definição de um método que conceba, precisamente, o
espaço da pedagogia como o espaço da emancipação por excelência. O caso Jacotot
vai possibilitar pensar a relação pedagógica como uma relação singular, como a
relação de cada um com cada outro em toda a sua heterogeneidade.
Um ponto importantíssimo do caso Jacotot é o de que a constatação de uma
igualdade das inteligências é feita, precisamente, através de um terceiro elemento.
Este terceiro elemento é o livro – um dado exterior onde cada um pode verificar a sua
autonomia e testar a sua própria vontade. O livro é o palco do teste das inteligências,
o lugar onde estas procuram perceber, traduzindo e procurando encontrar razões,
assim como palavras, para a partilha do que compreenderam.
O caso Jacotot vai servir, deste modo, como alternativa àquilo a que Rancière
chama de embrutecimento pedagógico. Este tipo de embrutecimento advém, em O
espectador emancipado, de uma reflexão em torno da representação; ao dar exemplos
daquilo que podemos considerar a tentativa máxima de radicalização do espaço
teatral, com as experiências de Bertolt Brecht, Antonin Artaud e Guy Debor, Rancière
55
procura afirmar que, apesar da tentativa de recusa da representação (i.e. da mimesis) e
da ideia de ilusão, estes incorreram num outro mal: o de definirem uma divisão ainda
mais demarcada entre quem faz e quem vê, e, deste modo, continuam a pensar numa
lógica eminentemente Platónica. Platão surge assim, enquanto a figura da pedagogia
Socrática, como uma figura do embrutecimento por excelência.
Ora, a proposta de Rancière é precisamente a oposta; para Rancière a divisão das
inteligências é o fundamento de uma alienação do individuo. A distinção entre quem
vê e quem faz, em prole de um efeito (seja ele qual for) nada mais permite que um
encaminhamento passivo e alienador. O caso de Jacotot permite pensar, precisamente,
esta figura da passividade; desse que olha, desse que lê, em suma, desse que aprende.
Este mito da passividade, que remonta à crítica Platónica da mimesis, é então
redefinido por Rancière em prole de uma actividade implícita ao acto de conhecer,
seja ele qual for.
Segundo Rancière, todo o acto de aprendizagem é activo; é necessário, portanto,
pensar para lá da distinção Platónica entre ver e conhecer. Sócrates surge, na crítica a
Platão, como paradigma máximo do embrutecimento, como aquele que nada mais faz
que “calar” a voz daquele que aprende ao expor constantemente a sua ignorância. É
necessário assim opor à pedagogia embrutecedora uma outra pedagogia: a pedagogia
“ignorante”.
Contudo, é, a meu ver, necessário questionar o próprio diálogo Platónico e
reconhecer mais intimamente os seus “movimentos” internos. Segundo Halliwell
existem, nos diálogos Platónicos, indícios de uma forte intenção artística. Ou seja, não
podemos negar a existência de uma dimensão literária, ou mesmo poética até, dos
mesmos. A crítica da mimesis é ela mesma uma forma de poesia mimética. Esta
reproduz no seu interior as próprias teses que procura criticar; nomeadamente na
República, aí onde a crítica à representação é mais definida.
É necessário, ainda, reconhecer uma ironia própria dos diálogos. Constâncio ajuda
a reconhecer que, apesar da ironia Socrática ser comummente reconhecida, existe
ainda uma outra; está em causa a constatação de que o dialogo Platónico é ele próprio
uma forma de ironia. A ironia não é aqui apenas uma forma de dissimulação, ela é
antes o próprio mecanismo intrínseco da construção dos diálogos – ela é, se
quisermos, a sua força anímica. A ironia tem o efeito potencial de emancipar o leitor,
de provocar a autonomia do “espectador” do diálogo.
56
A principal marca irónica dos diálogos, segundo Constâncio, é o facto de eles
induzirem a identificação do leitor com a figura de Sócrates, mas de, por outro lado,
esta identificação ser um passo em falso — pois a crítica dos interlocutores de
Sócrates é na verdade a crítica dos leitores do diálogo. É neste sentido que o diálogo
Platónico é um jogo (um “jogo irónico”) e, acima de tudo, um jogo com o leitor.
Assim sendo, procurei entender de que modo esta constatação permite fazer uma
defesa de Platão e indagar de que modo não existiria, na tese de Rancière, uma
interpretação precipitada dos diálogos. Para tal recorri à figura de Alcibíades em
Alcibíades I de Platão. Procurei encontrar a origem do cuidado de si tal como
Foucault o traçou em a Hermenêutica do Sujeito. Esta operação deveu-se ao facto de
no próprio discurso de Rancière se encontrar a discussão em relação ao cuidado de si
como o centro da discussão em relação à possibilidade de emancipação do sujeito.
Deste modo, procurei traçar as afinidades entre os dois pensamentos e as suas
principais diferenças. Encontrei, até certo ponto, uma diferença clara: Enquanto no
pensamento de Rancière está em causa a definição do sujeito como uma identidade
singular, enquanto uma “força gravítica” singular, por oposição a uma “única força
gravítica” total, em Platão, através da análise de Foucault, reforça-se precisamente a
necessidade de um Outro. Esse outro é, precisamente, a possibilidade de constituição
e emancipação do sujeito – e, assim, reforça-se a necessidade intrínseca de uma
relação.
A singularidade do indivíduo, tal como Rancière a descreve, não implica uma
independência extrema do eu, aliás, a lógica da força gravitacional singular aponta
para um cosmos, para um palco de outras relações gravíticas. Contudo, Rancière
concentra a sua crítica, sobretudo, na necessidade de afirmação da individualidade, do
singular, da inteligência como uma célula isolada; Rancière afirma, sobretudo, a força
afirmativa dessa célula, desse princípio singular que é a inteligência. Ora Foucault
ajuda, a partir de Platão, a reconhecer a inexistência, ou a ausência até, desse eu sem a
noção de um Outro e é esse facto, precisamente, que ele pretende demonstrar com o
termo cuidado de si.
Esta diferença, apesar do seu fraco contraste, refere apenas o facto de podermos
encontrar em Platão, sobretudo, uma necessidade de um Outro. Rancière não afirma
uma autonomia obrigatória do individuo, mas tende, contudo, a reconhecer o social
como o espaço de loucura, de uma “loucura desrazoável”, embrutecedora. A grande
afinidade entre os dois pensamentos dá-se no facto de Rancière encontrar na
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necessidade de partilha – na tradução das experiências singulares, na necessidade em
se fazer ouvir a voz própria – esse princípio natural de uma relação com o Outro.
Foucault adianta a noção do cuidado de si Platónico como um bios; como a atenção
permanente, a cada instante, a si. Este bios é precisamente o que permite a auto-
determinação do sujeito, a sua emancipação a cada momento com o Outro. Rancière
assim o vê também. Esta coincidência torna então possível a reconciliação entre
Rancière e Platão pela via de um bios; O cuidado de si é o elemento comum.
Procurei fazer a defesa de Platão contra a crítica de Rancière. Mas não posso
deixar de reconhecer que, em parte, essa crítica é justa. Os diálogos contêm teses que
implicam a desigualdade das inteligências, a assimetria da relação mestre/ discípulo, a
necessidade de hierarquias na organização política de qualquer comunidade — e, em
especial, de hierarquias fundadas na desigualdade das inteligências, do conhecimento
e do saber. O que, por outro lado, procurei mostrar foi que essas teses aparecem num
contexto muito particular — a saber, o contexto do diálogo platónico como um tipo de
obra literária que é irónica, ambígua, crítica e, por isso, igualitariamente potenciadora
da emancipação de todo e qualquer leitor ou “espectador”.
As afinidades que procurei traçar ao longo do nosso encaminhamento não
procuram – e afirmo o carácter definitivo deste não – relativizar a crítica de Rancière
àquelas teses que encontramos nos diálogos de Platão. O ponto é, em vez disso, que a
dimensão emancipadora dos diálogos de Platão permite alinhar o pensamento
Platónico com o pensamento de Rancière — sobretudo na medida em que, sendo o
diálogo platónico uma obra artística, o seu potencial emancipador é estético. Noutros
termos, podemos encontrar em Platão, como em Rancière, um olhar para a arte como
espaço de uma auto-determinação ontológica, estética e política do sujeito — a arte
como o palco do jogo crítico e, portanto, emancipador das inteligências. Deste modo,
e se os diálogos Platónicos são eminentemente artísticos, seria possível afirmar uma
certa precipitação nos argumentos de Rancière.
A conclusão que tiramos é, portanto, apenas, a de que o cuidado de si enfatiza
sobretudo a necessidade de uma relação dual (ou relacional e, portanto,
potencialmente comunitária) para a determinação do eu, e de que esta é uma tese
eminentemente Platónica. A interpretação Platónica do cuidado de si vai, portanto, ao
encontro de Rancière na definição do homem como uma vontade servida por uma
inteligência – inteligência esta que necessita de embarcar num processo constante de
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tradução e contra-tradução para que se verifique a possibilidade de uma existência
plena do eu, necessitando, precisamente, de um diálogo com o Outro.
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