Tese Final - César

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5/21/2018 TeseFinal-Csar-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/tese-final-cesar 1/194 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL CÉSAR AUGUSTO DE ASSIS SILVA Entre a deficiência e a cultura: Análise etnográfica de atividades missionárias com surdos SÃO PAULO 2010

Transcript of Tese Final - César

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    CSAR AUGUSTO DE ASSIS SILVA

    Entre a deficincia e a cultura:

    Anlise etnogrfica de atividades missionrias com surdos

    SO PAULO

    2010

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    Entre a deficincia e a cultura:

    Anlise etnogrfica de atividades missionrias com surdos

    Csar Augusto de Assis Silva

    Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em

    Antropologia Social do Departamento de

    Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,

    para a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia

    Social.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani

    SO PAULO

    2010

  • Aos meus pais

    Por tudo o que sou

  • AGRADECIMENTOS

    Quero agradecer a todas as pessoas que contriburam nessa longa jornada.

    Ao meu orientador, Jos Guilherme Cantor Magnani, por ter acreditado em meu

    potencial, desde a graduao. Agradeo tambm pelo modo generoso como me orientou,

    sempre presente, o que permitiu o meu contnuo desenvolvimento. Sem o seu constante

    estmulo etnografia este trabalho no teria sido possvel. Alm de um orientador, tive o

    prazer de ter um grande parceiro em muitas pesquisas de campo.

    Aos professores Paula Montero, Jlio Simes, Cristina Pompa e Laura Moutinho,

    pela participao valiosa nas bancas de qualificao, respectivamente, do mestrado e do

    doutorado.

    Aos funcionrios do Departamento de Antropologia, Celso, Edinaldo, Ivanete, Rose

    e Soraya.

    s minhas queridas amigas Jacqueline Teixeira e Priscila Almeida que contriburam

    at o ltimo momento com este trabalho. Vocs so minhas irms na academia e parte

    fundamental do meu processo de formao. Devo muito a vocs.

    Aos muitos colegas que esto ou que j passaram pelo NAU. Em especial, os

    vinculados ao NAU Surdos, Jacqueline Teixeira, Priscila Almeida, Laura Soares, Anglica

    Durante, Bernard Guerrieri, Fernanda Squariz, Nrishinro Mahe, Leslie Sandes, Cibele

    Assnsio e Ivo Alves. Obrigado pelas trocas, apoio e companhia.

    Aos colegas do grupo de pesquisa Estudos da Comunidade Surda (ECS), sobretudo,

    Leland McCleary, Evani Viotti, Tarcsio Leite, Andr Xavier, Carol Casatti e Renata

    Moreira. Sempre foi timo aprender com vocs.

  • Aos muitos colegas do PPGAS, especialmente Eva Scheliga, Anna Catarina, Thas

    Waldman, Enrico, Flor, Adalton, Glebson, Glucia, Adriana, Jessie Sklair, Daniel DeLucca,

    Daniela Alfonsi, Alexandre Barbosa, Gabriel Pugliese e Thas Brito.

    Ao Leonardo Siqueira Antonio, pelo apoio em assuntos de ordem grfica.

    Aos colegas que fiz em campo e tambm colaboradores desta pesquisa. Sou muito

    grato por terem partilhado um pouco de suas vidas comigo, especialmente, Ricardo Sander,

    Roberto Cardoso, Odirlei Roque de Faria, lvaro Conceio, Marco Antonio Arriens,

    Neivaldo Zovico, Juliana Fernandes, Cyntia Teixeira, Neiva Aquino, Felipe Barbosa, Ir.

    Marta Barbosa, Larissa Pissinati, Marli Celada, Eduardo Rocha, Tiago Bezerra, Sylvia Lia,

    Anah Mello e Fabiano Campos.

    Aos meus queridos grandes amigos Daniele Cristine, Jacqueline Teixeira, Maurcio

    Rodrigues, Priscila Almeida, Ricardo Ferreira, Simone Toji e Thiago Rezende. Obrigado por

    estarem sempre por perto.

    Agradeo minha famlia. Aos meus pais, Tita e Nice, aos meus irmos, Marcos e

    Rosana, minha v Ciana, ao meu cunhado Rogrio e aos meus sobrinhos Fernanda e

    Felipe. Obrigado por todo amor e apoio que vocs me do. Vocs so as pessoas mais

    importantes do mundo para mim.

    Esta pesquisa foi possvel graas ao financiamento, em diferentes momentos, da

    Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e do Conselho

    Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

  • RESUMO

    O objetivo desta reflexo empreender uma anlise sobre o processo de constituio

    da surdez como particularidade tnico-lingstica. Primeiramente, o foco privilegiado a

    comparao etnogrfica e histrica das prticas de algumas instituies religiosas - Igreja

    Catlica, Igreja Batista e Testemunhas de Jeov que tm se ocupado da atividade

    missionria com surdos. Como procedimento metodolgico, a ateno esteve voltada para a

    dimenso performativa dos rituais dessas instituies, com a inteno de revelar como elas

    produzem diferenas entre pessoas surdas e ouvintes em termos de lngua e cultura.

    Compem tambm o universo emprico, dicionrios religiosos e manuais de evangelismo

    referentes surdez. Em um segundo momento, a inteno revelar a circulao de agentes

    religiosos em outras instncias, tais como, movimento social, instituies universitrias e

    mercado (que emerge relacionado lngua brasileira de sinais libras). As trocas entre esses

    domnios religiosos e no religiosos foram constitutivas para o engendramento da surdez

    como particularidade tnico-lingstica traduzida em normatividade jurdica no interior do

    Estado-nao.

    Palavras-chave: Surdez. Lngua Brasileira de Sinas Libras. Estudos Surdos. Atividade

    missionria. Movimento Social.

  • ABSTRACT

    The aim of this study is analyze the process of deaf as ethno-linguistic particularity.

    First of all we built an ethnographic and historical comparison between the practices of some

    religious institutions - Catholic Church, Baptist Church and Jehovahs Witnesses - that have

    engaged in missionary activity with the deaf. As a methodological procedure, attention was

    focused on the performance of these institutions rituals, with the intention of revealing how

    they produce differences between deaf and hearing people in terms of language and culture.

    Also the empirical universe constitutes religious dictionaries and evangelism manuals

    relative to deaf. In a second moment, the intention is to reveal the movement of religious

    agents in other instances, such as social movements, academic institutions and markets (that

    emerge related to the Brazilian Sign Language -LBS). As will be shown, the exchanges

    between these domains religious and nonreligious were constitutive for the engendering of

    deaf as ethno-linguistic particularity in legal universe inside the nation-state.

    Key-words: Deaf. Brazilian Sign Language. Deaf Studies. Missionary activity. Social

    Movement.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................... 10

    1. LNGUA DE SINAIS E EDUCAO RELATIVA SURDEZ ............................................................ 14 2. PARADOXOS DA SURDEZ: ENTRE A DEFICINCIA E A CULTURA ............................................. 21 3. QUESTES DA TESE ................................................................................................................... 24 4. SOBRE O LEVANTAMENTO DOS DADOS EMPRICOS ................................................................. 27 5. ESTRUTURA DA TESE ................................................................................................................ 29

    1. IGREJA CATLICA E SURDEZ: NORMATIVIDADES HETEROGNEAS ................ 31

    1.1. NORMATIVIDADES HETEROGNEAS NOS RITUAIS CATLICOS ............................................ 33 1.1.1. PASTORAL DOS SURDOS SO FRANCISCO DE ASSIS: O RITO DA MISSA PARA SURDOS ............ 33 1.1.2. PASTORAL DOS DEFICIENTES AUDITIVOS DE MOEMA: AS MISSAS COM INTRPRETE DE LNGUA DE SINAIS .............................................................................................................................. 41 1.2. O PARADOXO DA IGREJA CATLICA NA SURDEZ: INCORPORAO DE NORMATIVIDADES EXTERIORES E REFERNCIA DE BASE .............................................................................................. 47 1.3. IGREJA CATLICA E EDUCAO ESPECIAL RELATIVA SURDEZ ....................................... 52 1.3.1. A HISTRIA CANNICA DA SURDEZ ...................................................................................... 55 1.4. ASSOCIAES DE SURDOS-MUDOS E A IGREJA CATLICA .................................................... 62 1.5. AS PUBLICAES DO PADRE EUGNIO OATES ..................................................................... 65 1.6. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................ 70

    2. A MISSO PROTESTANTE COM O POVO SURDO: O ENGENDRAMENTO DA SURDEZ NO REGISTRO PARTICULARISTA IGUALITRIO ............................................. 72

    2.1. O PARTICULARISMO IGUALITRIO DE LUTERANOS NA SURDEZ: A EMERGNCIA DA LINGUAGEM DE SINAIS DO BRASIL E DA COMUNICAO TOTAL ...................................................... 74 2.2. HISTRIA E DISSEMINAO DA ATIVIDADE MISSIONRIA BATISTA COM SURDOS.............. 83 2.2.1. O MINISTRIO COM SURDOS DA JUNTA DAS MISSES NACIONAIS: DA COMUNICAO TOTAL AO BILINGISMO ............................................................................................................................... 84 2.2.2. AS OFICINAS DO PASTOR MARCO ANTONIO ARRIENS COMO AGNCIA DIVULGADORA DA PERFORMANCE DA INTERPRETAO .................................................................................................. 89 2.3. CARACTERSTICAS DAS CONGREGAES BATISTAS E FUNDAMENTAO TEOLGICA DO MINISTRIO COM SURDOS ................................................................................................................. 93 2.4. A PERFORMANCE DA INTERPRETAO E A DISPOSIO DISCIPLINAR QUE SEPARA SURDOS E OUVINTES ....................................................................................................................................... 95 2.5. O EFAT SIMBOLICAMENTE OPERADO: SENDO OUVINTE PARA COM OS OUVINTES........... 102 2.6. ESCOLA BBLICA DOMINICAL E A PARTICULARIDADE LINGSTICA................................. 103 2.7. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 105

    3. A UNIVERSALIDADE DO GOVERNO DO REINO DE DEUS E A PARTICULARIDADE DAS LNGUAS: AS CONGREGAES EM LNGUA DE SINAS DA

    TESTEMUNHAS DE JEOV ..................................................................................................... 107

  • 3.1. A TEOLOGIA MILENARISTA DA TESTEMUNHAS DE JEOV: DISTINGUINDO-SE DAS DEMAIS IGREJAS CRISTS............................................................................................................................ 108 3.2. ESTTICA DA ELEIO: ORDEM E PUREZA ......................................................................... 114 3.3. A CONGREGAO EM LNGUA DE SINAIS ............................................................................ 116 3.4. USOS DA LNGUA DE SINAIS: O DICIONRIO LINGUAGEM DE SINAIS.................................. 122 3.5. DIFERENAS NO MARCADAS ENTRE IRMOS ................................................................... 126 3.6. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 129

    4. AGENTES RELIGIOSOS EM CIRCULAO: MOVIMENTO SOCIAL, INTELECTUAIS E MERCADO ................................................................................................. 131

    4.1. AS INSTITUIES RELIGIOSAS E A DENOMINADA COMUNIDADE SURDA ............................ 132 4.2. A REPRESENTAO POLTICA DA FENEIS NA CONFORMAO DA PARTICULARIDADE LINGSTICA................................................................................................................................... 138 4.3. INTELECTUAIS E A FENEIS NO ENGENDRAMENTO DA SURDEZ COMO PARTICULARIDADE LINGSTICA................................................................................................................................... 147 4.4. MOVIMENTO SOCIAL E RELIGIO: CIRCULAO SISTEMTICA. ...................................... 150 4.5. O MERCADO DA LIBRAS ....................................................................................................... 155 4.6. CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................................... 163

    CONCLUSO ............................................................................................................................... 164

    1. A SURDEZ NO REGISTRO PARTICULARISTA IGUALITRIO .................................................... 166 2. A SURDEZ NO REGISTRO UNIVERSALISTA HIERRQUICO ..................................................... 169 3. SOBREPOSIES DE FORMAES DISCURSIVAS .................................................................... 172 4. A PASTORAL DAS CONSCINCIAS: DO CORPO INDIVIDUAL POPULAO ........................... 173 5. ESTRATGIA SEM SUJEITO: A SURDEZ NO ESTADO DE EPISTEME MULTICULTURAL .......... 177

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................................... 181

  • 10

    INTRODUO

    A Associao Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Crvico Facial publicou,

    em 29 de outubro de 2009, uma nota intitulada ORL em prol da informao na TV Globo1.

    A matria em questo informava que um grupo formado por quatro mdicos

    otorrinolaringologistas Prof. Dr. Ricardo Ferreira Bento, Prof. Dr. Silvio Caldas, Prof. Dr.

    Shiro Tomita e Prof. Dr. Rogrio Hamershimidt participou de um almoo com diretores do

    Marketing Social da Rede Globo de Televiso, Luiz Erlanger e Albert Alcouloumbre, para

    conversarem sobre surdez, tema presente na novela das 18 horas da emissora, denominada

    Cama de Gato. A novela conta com um personagem, de nome Tarcsio, que era pianista e

    perdeu a audio.

    Informa o professor Dr. Ricardo Bento na nota, sobre os objetivos da comitiva que

    ele organizou:

    Entregamos uma carta ao Erlanger, assinada por dez professores doutores de vrias universidades

    federais e estaduais Prof. Dr. Rubens Vuonno de Brito Neto, Prof. Dr. Luiz Lavinsky, Prof. Dr.

    Shiro Tomita, Prof. Dr. Paulo Porto, Prof. Dr. Silvio da Silva Caldas Neto, Prof. Dr. Andr Luis

    Sampaio, Prof. Dr. Robinson Koki Tsuji, Prof. Dr. Rogrio Hamershimidt, alm de mim pedindo

    que se preste ateno no implante coclear como tendncia mundial em tratamento de surdez severa e

    profunda e que consideramos um retrocesso o uso de Libras na novela.

    Na referida reunio, os mdicos informaram aos diretores da Rede Globo os

    resultados positivos da cirurgia de implante coclear2 e o seu crescimento ao redor do mundo,

    contabilizando mais de 300 mil implantes. Informaram tambm sobre a portaria aprovada

    pelo Ministrio da Sade SUS-MS 1.287 de 1999 que garante o tratamento gratuito para

    a surdez severa e profunda, tendo j sido realizadas 3 mil cirurgias de implante coclear no

    Brasil.

    1 Disponvel em: http://www.sborl.org.br/conteudo/secao.asp?id=2092&s=51 Acesso em 09/03/2010.

    2 A cirurgia de implante coclear consiste na introduo de eletrodos na cclea com o objetivo de ativar

    artificialmente, por meio de eletrochoques, as clulas ciliadas. Esses estmulos so decodificados como sons

    pelo crebro. No Brasil, essas cirurgias so realizadas, sobretudo, nos hospitais pblicos vinculados a grandes

    universidades.

  • 11

    A carta entregue aos diretores da emissora foi encaminhada s autoras da novela,

    Duca Rachid e Thelma Guedes, para que elas obtivessem conhecimento sobre essa nova

    realidade da surdez. O objetivo da iniciativa dos mdicos foi garantir que a novela global

    passasse a informar sobre tal tratamento, influenciando positivamente a escolha das famlias

    que possuem filhos com surdez para a realizao da cirurgia do implante coclear. Afirma

    tambm o mdico na nota:

    Os telespectadores da novela que vivenciam o problema podero prejudicar a deciso de famlias

    que viro a tratarem seus filhos surdos. Temos que respeitar a vontade daqueles adultos que no

    tiveram a oportunidade de serem implantados e hoje desejam continuar surdos. Mas no se pode negar

    s crianas pequenas, que ainda no podem decidir por si prprias, o direito de serem ouvintes.

    Diante de tal posicionamento dos referidos mdicos, em que se afirmou ser o uso da

    lngua brasileira de sinais (libras)3 um retrocesso, sendo fundamental, portanto, garantir s

    crianas brasileiras com surdez a cirurgia de implante coclear para fazer valer o seu direito

    de ouvirem, outro grupo de intelectuais reagiu prontamente. Membros do Grupo de Trabalho

    Lngua de Sinais da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Lingstica

    (ANPOL) juntamente com outros especialistas em lngua de sinais4 enviaram, em 11 de

    novembro de 2009, outra carta5 aos mesmos diretores da Rede Globo, desaprovando alguns

    dos argumentos dos referidos mdicos.

    Afirmam os intelectuais da lngua de sinais:

    3 A categoria legtima atual, presente na legislao e utilizada por intelectuais, lngua brasileira de sinais,

    com abreviao libras. Apesar de geralmente ser escrita tambm como Libras ou LIBRAS, nesta anlise ser

    utilizada com fins de padronizao a grafia em caixa baixa, libras, exceto em citaes textuais em que esteja

    grafada de outro modo. Outras categorias tambm utilizadas para nomear essa lngua sempre estaro em itlico

    e referidas a contextos comunicativos e histricos bem determinados. O termo no marcado ser lngua de sinais. Quando a anlise referir-se somente ao lxico atribudo a essa lngua, se usar o termo sinal, que equivale ao termo palavra em lngua oral. 4 Assinaram essa carta: Dr. Tarcsio de A. Leite (UFSC); Dra. Ana Claudia B. Lodi (UNIMEPI); Dra. Regina

    Maria de Souza (UNICAMP); Dr. Leland McCleary (USP); Dra. Wilma Favorito (INES); Dra. Rossana Finau

    (CEFET-PR); Dra Marianne Stumpf (UFSC); Ms. Myrna S. Monteiro (UFRJ); Dra Maria Cristina Pereira

    (PUC-DERDIC-SP); Dra Ana Regina e Souza Campello (UFSC); Dr. Fernando Capovilla (USP); Dra. Maria

    Ceclia Moura (PUCSP); Dra. Sandra Patrcia do Nascimento (FENEIS-DF); Dra. Cllia Regina Ramos

    (UFRJ); Dra. Ronice M. de Quadros (UFSC). 5 Disponvel em: http://viniciusnascimentoempauta.blogspot.com/2009/11/manifestacao-de-pesquisadores-da-

    area.html /Acesso em 09/03/2010.

  • 12

    Os surdos brasileiros esto espalhados no pas e formam a Comunidade Surda Brasileira. Esses

    surdos usam a Lngua Brasileira de Sinais, reconhecida por meio da Lei de Libras 10.436, de 2002.

    uma lngua que apresenta todas as propriedades lingsticas de quaisquer outras lnguas humanas, ou

    seja, por meio dela possvel falar sobre quaisquer assuntos (desde o mais trivial at o mais

    acadmico, tcnico e cientfico).

    Em consonncia com a Declarao Universal dos Direitos Lingsticos UNESCO6,

    os referidos intelectuais afirmam que qualquer comunidade lingstica tem o direito de usar

    a sua lngua nativa. Alm disso, mencionam que conforme a Federao Mundial de Surdos,

    o Brasil um dos pases mais avanados quanto s polticas lingsticas de reconhecimento

    da lngua de sinais. Assim, conclui esse segundo grupo de intelectuais:

    Portanto, a manifestao dos otorrinolaringologistas REDE GLOBO, dizendo que a utilizao da

    Libras na novela Cama de Gato considerada um retrocesso improcedente! Pelo contrrio, a

    REDE GLOBO, como j fez em outros momentos, est incluindo uma das lnguas nacionais do pas

    em suas novelas. Fazendo isso, a REDE GLOBO, alm de incluir os surdos brasileiros, usurios da

    Libras, na sociedade, est reconhecendo o estatuto lingstico social de grupo social minoritrio que

    faz parte do pas. Essa atitude louvvel e representa, sim, uma postura atual e atenta realidade

    brasileira.

    Dando continuidade ao seu discurso marcadamente igualitrio, os intelectuais da

    lngua de sinais argumentam a favor da vantagem de ser bilnge em um mundo globalizado.

    Assim, desautorizaram qualquer sugesto mdica de que a cirurgia do implante coclear deva

    estar atrelada proibio do uso dessa lngua. Para legitimar o seu argumento, mencionam

    na referida carta outras equipes mdicas que recomendam explicitamente o uso de lngua de

    sinais na reabilitao auditiva de crianas submetidas ao implante coclear, refutando a

    posio dos mdicos.

    Assim, a controvrsia narrada demonstra de modo explcito o choque de duas

    concepes de surdez. De um lado, intelectuais vinculados ao saber mdico, professores de

    diversas instituies pblicas federais e estaduais, amparados por uma portaria do Ministrio

    da Sade, procuram garantir a publicizao da tendncia mundial no tratamento da surdez, a

    saber, a cirurgia do implante coclear. Neste caso, a lngua de sinais considerada um

    6 Disponvel em: http://www.linguistic-declaration.org/index.htm Acesso em 03/03/2010.

  • 13

    retrocesso, algo que, portanto, deveria ficar no passado, j que crianas brasileiras com

    surdez severa e profunda podem passar a ouvir. claramente perceptvel nos argumentos

    mobilizados pelos mdicos, que a surdez neste caso est enquadrada em um registro

    universalista hierrquico. Nessa concepo, o surdo um outro, que fundamentalmente no

    ouve, e que precisa ascender condio de igualdade do ouvinte, este sobretudo um ser

    humano que ouve, por meio de formas de normalizao. Atualmente, o modo mais avanado

    em termos tecnolgicos dessa normalizao se d via cirurgia de implante coclear, que

    complementada com a oralizao, a saber, o ensino da articulao oral e da leitura labial.

    Nesse caso, a desvantagem de ser surdo explcita, pois o que estrutura essa concepo a

    falta de audio, o que compromete a plena comunicao com os outros, vistos como os

    normais. Por conta disso, a lngua de sinais vista como um recurso ltimo daqueles surdos

    que no tiveram a oportunidade de se tornarem ouvintes por meio do implante coclear.

    Do outro lado esto os intelectuais que mobilizam o saber lingstico tambm

    composto em sua maioria por professores universitrios de instituies pblicas federais e

    estaduais , amparados na legislao do Estado-nao sobre a lngua de sinais e na

    conveno internacional de direitos lingsticos. Esta parte argumenta a favor da igualdade

    possvel entre surdos e ouvintes por meio do reconhecimento das particularidades

    lingsticas em questo. Longe de ser um retrocesso ou algo a ser tolerado, a libras um

    capital simblico a mais que confere vantagens sociais, disponvel, sobretudo, para as

    pessoas com surdez em tempos de globalizao. Neste caso, o implante coclear que pode

    ser tolerado (desde que ele no signifique a proibio do uso da lngua de sinais), contudo,

    ele jamais visto como algo fundamentalmente necessrio. Como deve estar claro, os

    argumentos dos intelectuais da lngua de sinais esto estruturados em um registro

    particularista igualitrio. Neste caso, o surdo um outro que fundamentalmente utiliza uma

    lngua especfica e que somente pode se tornar um igual no interior do Estado-nao por

    meio do reconhecimento de sua particularidade lingstica, j que membro de uma

    comunidade lingstica minoritria, a denominada comunidade surda brasileira7.

    7 Comunidade surda tambm uma categoria nativa e ser sempre utilizada em itlico. Geralmente ela

    utilizada para nomear a complexa rede que integra instituies diversas como escolas especiais, associaes,

    igrejas e pontos de encontro. Contudo, ela tambm categoria poltica, j que representantes polticos,

    sobretudo vinculados FENEIS, ocupam posies de porta-vozes da comunidade surda.

  • 14

    Ambos os lados da controvrsia no poupam o adjetivo brasileiro a controvrsia

    trata do surdo brasileiro, da comunidade surda brasileira e da referncia ao Brasil em

    suas argumentaes. As duas partes esto igualmente legitimadas e institucionalizadas por

    aparatos estatais diversos, sobretudo sade e educao, que desenham polticas pblicas

    especficas para a gerncia da populao com surdez, que de acordo com dados do IBGE

    2000, soma 5.735.099 pessoas, perfazendo 3,38% dos brasileiros8. Ambas esto se

    posicionando a favor de uma determinada maneira de intervir diretamente no corpo surdo,

    quer seja pelo implante coclear, quer seja pela exposio a uma lngua que pode ser

    aprendida sem fazer recurso audio, de modo espontneo. Desse modo, de maneira

    paradigmtica, o embate considerado explicita o choque de normatividades que se figuram

    como relativamente estveis com relao surdez.

    O objetivo fundamental desta tese compreender como, em um processo histrico

    recente, se performatizou a surdez afirmada como particularidade lingstica. A anlise que

    segue pretende evidenciar como se postula nas imanncias das prticas descontinuidades

    entre surdos e ouvintes, formando entre estes diferenas tidas como do plano da lngua e

    cultura. Surdo ou ouvinte, nesse caso, no um sujeito anterior s prticas que o constitui,

    mas sim uma posio produzida por meio de reiteraes sistemticas9.

    1. Lngua de sinais e educao relativa surdez

    Afirma a Lei Federal 10.436 de 24 de abril de 2002, que reconhece a libras como um

    meio oficial de comunicao:

    Art. 1 reconhecida como meio legal de comunicao e expresso a Lngua Brasileira de Sinais

    Libras e outros recursos de expresso a ela associados.

    Pargrafo nico: Entende-se como Lngua Brasileira de Sinais Libras a forma de comunicao e

    expresso, em que os sistemas lingusticos de natureza visual-motora, com estrutura gramatical prpria,

    8 A categoria utilizada pelo IBGE 2000 incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de ouvir. O

    total de pessoas com pelo menos alguma deficincia no Brasil de 24.600.256, 14,5% da populao. 9 Por conta disso, nesta anlise, as categorias utilizadas para classificar pessoas que se diferenciam pela audio

    estaro grafadas em itlico, so termos nativos referidos a contextos histricos e comunicativos bem

    determinados.

  • 15

    constituem um sistema lingustico de transmisso de idias e fatos, oriundos de comunidade de pessoas

    surdas do Brasil.

    Essa Lei foi regulamentada pelo Decreto Federal 5626, de 22 de dezembro de 2005,

    que institui uma srie de alteraes institucionais na educao em seus diversos nveis e

    tambm em agncias concessionrias de servio pblico, para fomentar o uso e a difuso da

    libras. Alm disso, o Decreto tambm faz referncia categoria cultura:

    Art. 2 Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva,

    compreende e interage com o mundo por meio de experincias visuais, manifestando sua cultura

    principalmente pelo uso da Lngua Brasileira de Sinais Libras.

    Esse dispositivo jurdico o coroamento de um processo bastante complexo que

    envolveu diversos saberes e agentes que configuraram a surdez em termos de particularidade

    tnico-lingstica. Em termos rigorosamente legislativos, ele se iniciou em 1996, com o

    projeto lei da senadora evanglica Benedita da Silva (PT-RJ). Tal projeto expresso de

    uma demanda de um movimento social liderado em grande medida pela Federao Nacional

    de Educao e Integrao de Surdos (FENEIS), com sede no Rio de Janeiro RJ, entre

    outras associaes, e conta com o apoio de intelectuais que tm fomentado h algumas

    dcadas a afirmao do estatuto de lngua natural da lngua de sinais falada no Brasil.

    As pesquisas cientficas que revelam o estatuto de lngua das lnguas so bastante

    recentes. Em 1983, no contexto da Escola Especial Concrdia Centro Educacional para

    Deficientes Auditivos, escola vinculada Igreja Evanglica Luterana do Brasil, foi

    produzida uma publicao em que se afirma o estatuto de lngua do que ento denominaram

    Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983). Integrava a equipe de publicao a

    lingista luterana Gldis Rehfeldt, bem como outros intelectuais luteranos e educadores

    catlicos vinculados a diversas escolas especiais voltadas para a surdez. Esse livro foi

    organizado por Harry e Shirley Hoemann, luteranos, e pelo padre catlico Eugnio Oates.

    desse meio que emergem, posteriormente, outras lingistas das lnguas de sinais, que atuam

    nesse campo, como Ronice Quadros (UFSC) e Lodenir Karnopp (UFRGS).

    Alm dessa linhagem de pesquisa em lngua de sinais proveniente do meio luterano,

    necessrio considerar as pesquisas vinculadas Universidade Federal do Rio de Janeiro

  • 16

    (UFRJ), levadas a cabo por Lucinda Ferreira Brito (1986, 1991, 1993). atribuda a essa

    lingista a inaugurao de uma reflexo sistemtica em lingstica das lnguas de sinais no

    Brasil. Suas publicaes se iniciaram ainda nos anos 1980 e foram capitais para o processo

    de reconhecimento da libras como lngua legtima. sob sua orientao, que emerge

    tambm a lingista Tanya de Amara Felipe de Souza (Felipe, 1992, 1993), com trabalhos de

    referncia para o reconhecimento dessa lngua.

    Em termos internacionais, esse processo de constituio de uma linha de pesquisa

    especfica na lingista tambm recente. atribudo ao norte-americano William C Stokoe

    a comprovao do estatuto de lngua natural das lnguas de sinais. Esse autor demonstrou,

    pela anlise dos sinais da American Sign Language (ASL), que as lnguas de sinais eram

    tambm lnguas naturais, uma vez que partilhavam com as lnguas orais os mesmos

    princpios de estruturao. Em Sign Language Structure, de 1960, Stokoe demonstra que

    possvel identificar nos sinais que constituem o lxico da ASL, uma combinao e

    recombinao de um nmero finito de fonemas, ou seja, de unidades desprovidas de

    significado, mas capazes de distingui-lo.

    A principal diferena entre as lnguas orais e as lnguas de sinais estaria no canal de

    expresso e recepo, j que a lngua de sinais se expressaria de modo gestual-visual, e no

    oral-auditivo. Levando em conta esse dado, Stokoe designou os fonemas das lnguas de

    sinais por quiremas (do gregro quiros mo) que, segundo o autor, teriam trs formas

    fundamentais: i) configurao de mo (forma apresentada por dedos e palma quando da

    realizao de um sinal), ii) localizao (ponto no corpo ou em frente a ele em que um sinal

    articulado) e iii) movimento (forma em que a(s) mo(s) se movem durante a produo de um

    sinal). So precisamente esses elementos que, tal como os fonemas das lnguas orais, se

    organizam em um sistema produzindo uma lngua.

    A lingstica concebe como lngua natural as lnguas que emergem de forma

    espontnea de uma comunidade de falantes. De acordo com a lingstica das lnguas de

    sinais, as lnguas de sinais so to naturais como qualquer lngua oral, pois emergiram das

    comunidades surdas e so passveis de anlise lingstica em diversos planos: fonolgico,

    morfolgico, sinttico, semntico e pragmtico. Alm disso, elas desempenham plenamente

    todas as funes lingsticas das lnguas orais, estruturando-se de modo equivalente, apesar

    de utilizar outro canal de expresso. A argumentao da ordem da fonologia parece

  • 17

    constituir o elemento primordial para o reconhecimento do estatuto de lngua de diversas

    lnguas de sinais, bem como para fomentar pesquisas lingsticas desse objeto em outros

    nveis de anlise.

    As pesquisas cientficas que afirmam o estatuto de lngua natural das lnguas de

    sinais impactam no modo como se concebe a educao de pessoas com surdez. consenso

    na bibliografia sobre o tema que h trs grandes perodos dessa educao: o oralismo, a

    comunicao total e o bilingsmo (Capovilla, 2001; Skliar, 1998). Esses perodos sero

    considerados brevemente para situar o contexto histrico desta pesquisa.

    No Brasil, at a dcada de 1980, a educao voltada para a surdez estava posta no

    que comumente se denomina oralismo. O objetivo da educao no era propriamente a

    transmisso de contedos escolares, mas, fundamentalmente, a reabilitao da surdo-mudez,

    pelo ensino da articulao oral e da leitura labial. Essa prtica pedaggica remonta o sculo

    XVIII, tendo no alemo Heinicke, educador de surdos, o seu principal expoente. comum

    na bibliografia sobre o tema a afirmao de que o processo de oralismo se consolida a partir

    do Congresso de Milo, em 1880, quando se definiu como prioritrio para a educao de

    pessoas surdas a aquisio de lngua oral (Sacks, 1999).

    O oralismo como filosofia pedaggica dominante entra em declnio com a

    emergncia da comunicao total. Nesse caso, o objetivo fundamental da educao deixa de

    ser a aquisio da lngua oral e diversos modos de comunicao passam a ser utilizados, tais

    como a lngua de sinais, a oralidade, a leitura labial, o desenho, a mmica, o teatro, e

    quaisquer outros modos de comunicao possvel na sala de aula. O importante passa a ser o

    contedo a ser transmitido, e no o modo. Como ser desenvolvido no segundo captulo, a

    publicao dos luteranos, intitulada Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983),

    tem um papel fundamental na formulao desse modelo de educao no Brasil.

    somente a partir dos anos 1990 que emergem as produes cientficas que vo

    pleitear o bilingismo como outra etapa da educao especial relativa surdez (Ferreira

    Brito, 1995; Quadros, 1997). Nas reivindicaes por uma educao bilnge, afirma-se que a

    educao de surdos teria que se dar pela aquisio da lngua de sinais como primeira lngua

    (L1), pois essa seria a lngua que a criana poderia adquirir de modo espontneo, natural,

    sem instruo especfica, diferentemente da lngua oral, que teria que ser aprendida por um

    rigoroso processo de aquisio artificial, que demanda mais tempo e uma terapia individual.

  • 18

    Tendo a criana adquirido a L1, a lngua oral seria aprendida como segunda lngua (L2), ou

    seja, essas lnguas seriam aprendidas em momentos diferentes e como disciplinas escolares

    diferentes. Esses seriam os fundamentos de educao bilnge para surdos, sendo esta a

    educao que ganhou normatividade jurdica.

    No que tange a esta reflexo, de fundamental importncia destacar como ser

    considerado o que se entende por lngua de sinais. Dois aspectos de ordem terico-

    metodolgica so centrais nesta anlise: i) objetiva-se ter uma postura etnogrfica diante da

    definio das categorias consideradas legtimas para nomear a lngua de sinais; ii) visa-se

    demonstrar como o processo de afirmao da surdez enquanto particularidade lingstica

    implicou a performatizao de uma lngua legtima, em que os seus sinais so utilizados em

    separado lngua oral.

    Diversas foram as expresses utilizadas para nomear a comunicao gestual-visual

    atribuda s pessoas com surdez nas ltimas dcadas. Nos anos 1960, padre Eugnio Oates

    utilizou os termos mmicas, gestos e linguagem das mos (Oates [1969], 1988). Nos anos

    1980, luteranos utilizam a categoria Linguagem de Sinais do Brasil (Hoemann et al, 1983).

    Tambm nos anos 1980, lingistas das lnguas de sinais utilizaram o termo lngua de sinais

    dos centros urbanos brasileiros (LSCB) (Ferreira Brito, 1986, 1993; Felipe, 1992, 1993;

    Quadros, 1994). Nos anos 1990, testemunhas de Jeov utilizaram linguagem de sinais

    (Testemunhas de Jeov, 1992) e batistas utilizaram linguagem e lngua de sinais (Junta das

    Misses Nacionais, 1991). A categoria libras parece remontar aos anos 1980, como

    comprovam os relatrios da FENEIS e, aps isso, torna-se progressivamente a partir dos

    anos 1990 a categoria utilizada amplamente por intelectuais e religiosos, at ganhar

    normatividade jurdica no sculo XXI, sendo grafada muitas vezes, como foi afirmado,

    como Libras ou LIBRAS. Essa diversidade de categorias ser contemplada no modo como

    esta tese est organizada.

    Esta reflexo visa demonstrar como, em uma reiterada disciplina nos rituais

    religiosos, se produz descontinuidades entre surdos e ouvintes por meio de marcaes de

    diferenas lingsticas. Esse processo implica tambm a performatizao da lngua de sinais

    como lngua separada da lngua oral. Tendo por fundamento terico a sociolingstica de

    Pierre Bourdieu (1998), nesta anlise, lngua no entendida como uma entidade auto-

    engendrada passvel de anlise e descrio. Trata-se de entender como, na dinmica da

  • 19

    performatizao do surdo por meio de prticas disciplinares, relaes de saber-poder

    especficas e lutas entre agentes tm emergido fronteiras simblicas que conformam uma

    lngua de sinais legtima independente do portugus.

    precisamente na luta simblica necessria para a produo de uma lngua legtima

    nacional no interior do Estado-nao, ainda em curso, que emerge a libras, entendida como

    uma entidade com gramtica prpria, como a legislao citada afirma, amparada em

    pesquisas lingsticas. Essa lngua geralmente tida como independente do portugus e

    passvel de descrio. Quadros (2004:84), partindo de uma lingstica contrastiva, explicita

    uma lista bastante elucidativa de quais seriam as diferenas entre a lngua portuguesa e a

    libras:

    (1) A lngua de sinais visual-espacial e a lngua portuguesa oral-auditiva.

    (2) A lngua de sinais baseada nas experincias visuais das comunidades surdas mediante as

    interaes culturais surdas, enquanto a lngua de sinais constitui-se baseada nos sons.

    (3) A lngua de sinais apresenta uma sintaxe espacial incluindo os chamados classificadores. A

    lngua portuguesa usa uma sintaxe linear utilizando a descrio para captar o uso de

    classificadores.

    (4) A lngua de sinais utiliza a estrutura tpico-comentrio, enquanto a lngua portuguesa evita

    este tipo de construo.

    (5) A lngua de sinais utiliza a estrutura do foco atravs de repeties sistemticas. Este processo

    no comum na lngua portuguesa.

    (6) A lngua de sinais utiliza as referncias anafricas atravs de pontos estabelecidos no espao

    que exclui as ambigidades que so possveis na lngua portuguesa.

    (7) A lngua de sinas no tem marcao de gnero, enquanto que na lngua portuguesa o gnero

    marcado a ponto de ser redundante.

    (8) A lngua de sinais atribui um valor gramatical s expresses faciais. Esse fator no

    considerado como relevante na lngua portuguesa, apesar de poder se substitudo pela

    prosdia.

    (9) Coisas que so ditas na lngua de sinais no so ditas usando o mesmo tipo de construo

    gramatical na lngua portuguesa. Assim, tem vezes que uma grande frase necessria para

    dizer poucas palavras em uma ou outra lngua.

    (10) A escrita da Lngua de sinais no alfabtica.

    O que Quadros faz um jogo de espelhos que constitui as duas lnguas, definindo

    algumas caractersticas como presentes em uma e ausentes na outra. precisamente nesse

    jogo que se purifica as caractersticas fundamentais do que consistiria a libras, como em um

  • 20

    laboratrio para usar um argumento de Latour (1994). Esse tipo de anlise possui funo

    performativa, conforma prticas que progressivamente passam a opor o que passa a ser

    entendido como duas lnguas independentes. Parece se desenhar o que Bourdieu (1982)

    chama de efeito teoria: o que a cincia afirma se performatiza em realidades sociolgicas.

    precisamente esse processo poltico e cientfico de reconhecimento de uma lngua

    de sinais particular que faz emergir progressivamente um manejo especfico de sinais visto

    como estigmatizado10

    , isto , no prestigiado, algumas vezes tido como incorreto, que seria

    o portugus sinalizado. Esse manejo consiste na desorganizao da separao clara entre o

    que seria o portugus e o que seria a libras. Seguindo os argumentos de Quadros, o que

    caracterizaria o portugus seria a sua sintaxe linear, j a libras teria uma sintaxe que faria

    uso do espao, ou seja, os sinais expressos no estariam na ordem da sintaxe linear do

    portugus. De outro modo, o denominado portugus sinalizado consistiria na expresso

    gestual-visual por meio de sinais, contudo, eles esto postos na sintaxe linear do portugus.

    Um exemplo emprico pode clarear o argumento. Em portugus, um falante pode

    dizer a frase, o cachorro entrou na casa. Em libras, entendida como uma lngua

    independente do portugus, o falante sinalizaria: CASA + CACHORRO + ENTRAR11

    , ou

    seja, i) ele construiria espacialmente a casa, utilizando as duas mos unidas pelas pontas dos

    dedos, ii) sinalizaria o cachorro, que consiste em utilizar uma mo sobre a boca e o nariz

    para marcar o focinho, por fim, iii) sinalizaria de forma direcional a ao do cachorro, com a

    mo direita entrando exatamente no espao imaginrio em que a casa foi colocada. De outro

    modo, em portugus sinalizado, um falante usaria os mesmo sinais usados na frase em

    libras, contudo, a ordem seria dada pela sintaxe linear do portugus, a saber, CACHORRO

    + ENTRAR + CASA. Essas marcaes evidentemente so situacionais e contrastiva, no

    devem ser entendidas como entidades.

    O objetivo desta tese no realizar uma descrio do que tem sido performatizado

    como a sintaxe espacial da libras, purificada do portugus e do portugus sinalizado. Isso

    10

    Bagno (2009:11-12) faz uma distino trplice da realidade sociolingstica: (1) norma-padro, que seria o

    modelo idealizado de lngua certa descrito e prescrito pela tradio gramatical normativa, e que no

    corresponderia a uma variedade falada e escrita; e num continuum (2) o conjunto das variedade prestigiadas,

    faladas pelos cidados de maior poder aquisitivo, de maior nvel de escolarizao e de maior prestgio

    sociocultural e (3) o conjunto das variedades estigmatizadas, faladas por pessoas menos escolarizadas e com

    menor poder aquisitivo. 11

    Seguindo a marcao corrente na bibliografia sobre lngua de sinais, nesta anlise, quando houver referncia

    aos sinais glosados para o portugus, a sua escrita estar grafada em caixa alta.

  • 21

    exigiria um outro investimento investigativo. Contudo, necessrio considerar que a

    disciplina corporal e espacial que permite a performatizao do surdo como pessoa usuria

    de outra lngua tem tambm performatizado a libras como lngua separada do portugus e do

    portugus sinalizado. A tenso entre essas categorias estar presente em toda a tese.

    2. Paradoxos da surdez: entre a deficincia e a cultura

    A afirmao do estatuto de lngua natural da lngua de sinais tem produzido um

    discurso em que se afirma a surdez tambm como particularidade tnica. No texto do

    Decreto citado, afirma-se que a pessoa surda compreende e interage com o mundo por meio

    de experincias visuais e que ela manifesta a sua cultura por meio da libras. Os trabalhos

    cientficos que amparam tal legislao realizam uma produo discursiva semelhante,

    utilizando uma srie de categorias das cincias sociais para conformar essa surdez, a saber,

    lngua, cultura e comunidade.

    No processo poltico e acadmico de produo da surdez como particularidade

    tnico-lingstica, a categoria legtima para classificar as pessoas com surdez usurias da

    libras tornou-se surdo, desautorizando o uso de outras categorias tais como mudo, surdo-

    mudo, surdo e mudo, mudinho, deficiente auditivo e d.a.. Nas recentes publicaes

    acadmicas que do legitimidade a essa surdez comum tambm que se use e reivindique a

    grafia Surdo (s em caixa alta), para afirmar a condio scio-antropolgica da surdez, em

    oposio categoria surdo (s em caixa baixa), que se refere condio audiolgica de no

    ouvir (Padden & Humphries, 1988:2)12

    .

    A coletividade de onde se afirma ter emergido a libras geralmente referida como a

    comunidade surda ou comunidade surda brasileira. consenso na bibliografia sobre surdez

    que o processo de constituio dessa coletividade produto de instituies totais corretivas

    que associaram pessoas com surdez (Padden & Humphries, 1988; Lane, 1992; Sacks, 1998).

    Como majoritariamente as pessoas com surdez nascem em famlias em que todos ouvem,

    cerca de 95% (Skliar, 2000:129), a forma de associao necessria para o engendramento de

    uma lngua se deu em domnios exteriores famlia. As escolas especiais, como ser

    12

    Como geralmente nesta tese a categoria surdo (em itlico) est referida a essa concepo scio-antropolgica

    da surdez, torna-se desnecessria a sua marcao em caixa alta.

  • 22

    demonstrado, constituem referncias fundamentais para a constituio dessa surdez e so

    instituies centrais na rede que se denomina comunidade surda.

    As referncias tericas que conformam essa surdez tambm afirmam que, no

    processo de constituio da comunidade surda, alm de uma lngua, emergiu uma cultura

    especfica, a cultura surda. Como o texto da lei afirma, o que caracterizaria

    fundamentalmente essa cultura seria o modo como ela se expressa em lngua de sinais e

    como ela constituda por experincias gestuais-visuais. Nesse caso, a surdez no seria uma

    deficincia, mas sim, um dado biolgico que fez conformar outra cultura13

    .

    Precisamente nesse sentido emergem reflexes acadmicas no mbito da pedagogia

    conformando o que se convenciona chamar de estudos surdos. No Brasil, uma das

    referncias fundamentais Carlos Skliar (1998), que se apropria dos estudos culturais de

    Stuart Hall para fomentar uma outra linha de reflexo, visando superar a surdez entendida

    como deficincia e vinculada educao especial. Afirma o autor:

    A nossa proposta no era, nem atualmente, a de constitu-lo [o Ncleo de Pesquisas em Polticas

    Educacionais para Surdos NUPPES] com um subproduto ou uma sub-rea temtica da educao

    especial, nem a de mant-lo dentro de uma prtica e de um discurso hegemnico da deficincia. Muito

    pelo contrrio, nos motivava a criao de um novo espao acadmico e de uma nova territorialidade

    educacional qual denominados: Estudos Surdos em Educao (1998:5)

    E explica:

    Os Estudos Surdos se constituem enquanto um programa de pesquisa em educao, onde as

    identidades, as lnguas, os projetos educacionais, a histria, a arte, as comunidades e as culturas surdas

    so focalizados e entendidos a partir da diferena, a partir do seu reconhecimento poltico. (idem,

    ibidem)

    13

    O que est em operao mais uma edio das relaes de equivalncia entre as categorias lngua e cultura.

    A proximidade entre os termos remonta uma histria de longa durao. De acordo com Norbet Elias (1994

    [1934]), a emergncia da categoria kultur, no romantismo alemo, est vinculada ao esprito de um povo,

    entendido como a sua lngua e as realizaes artsticas, intelectuais e religiosas. Tal proximidade entre lngua e

    cultura est tambm presente em alguns fundadores da antropologia e lingstica, tais como, Franz Boas,

    Edward Tylor e Max Mller. Como ser evidenciado ao longo desta reflexo, tal equivalncia reiterada nos

    recentes trabalhos cientficos e nos projetos missionrios relativos surdez.

  • 23

    O autor utiliza o termo ouvintismo para demonstrar o processo histrico de

    etnocentrismo que fundamentou a educao especial relativa surdez. Para Skliar, o

    oralismo, como filosofia e prtica pedaggica, constituiu a operacionalizao prtica de uma

    episteme centrada em uma concepo de ser humano como necessariamente ouvinte, que

    oprimiu historicamente os surdos. Desse modo, Skliar afirma a dimenso poltica dos

    estudos surdos em educao, que deve visar uma crtica a toda forma de opresso dos

    ouvintes sobre a lngua, a cultura e a identidade dos surdos. objetivo da educao reforar

    essas instncias, devendo ser retirada a educao dos surdos da educao especial relativa

    deficincia. Skliar (1998, 1999, 2000) tornou-se uma importante referncia na consolidao

    dessa educao focada na particularidade tnico-lingstica dos surdos, bem como os

    estudos surdos estabelecem trocas reiteradas com a lingstica das lnguas de sinais.

    Apesar da notvel produtividade que esses argumentos tm tido para se traduzirem

    em polticas pedaggicas e realidade sociolgica, necessrio considerar que um paradoxo

    se impe nesse processo poltico e acadmico. Embora a inteno seja retirar a educao de

    surdos da educao especial e da concepo de deficincia, como Skliar argumenta, essa

    concepo de surdez apenas pode se traduzir em termos de normatividade jurdica na

    medida em que essa produo discursiva pode se tornar legtima nos mbitos do Estado

    vinculados educao especial e aos assuntos da pessoa com deficincia.

    O reconhecimento jurdico da libras vem no bojo de um processo de constituio de

    um dispositivo jurdico de Estado que regula a populao formada por pessoas com

    deficincia, que, como foi mencionado, corresponde a 14,5% do total de habitantes do pas.

    Esse processo ocorre em diversas instncias, notadamente, educao, sade, trabalho,

    previdncia e comunicao. No que compete educao, instncia chave desta anlise,

    desde a Constituio de 1988 o Estado tem ratificado o seu compromisso com a educao de

    pessoas com deficincia nas escolares regulares, fomentando um desmonte das escolas

    especiais e conformando o que se desenha como educao inclusiva14

    . Alm disso,

    engendra-se tambm a lei de acessibilidade, que visa a superao de barreiras de toda ordem

    14

    Constituio Federal 1988, artigo 208, III; Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei Federal 8.069/90, Art.

    54, III; LDB, Lei Federal 9394/96, captulo V; Plano Nacional de Educao, Lei Feral 10.172/01, cap. 8;

    Diretrizes Nacionais para a Educao Especial na Educao Bsica, resoluo n2/2001; Declarao de

    Salamanca (1994) que afirma internacionalmente a preferncia pela educao inclusiva na escola regular.

  • 24

    (arquitetnica, comunicativa, intelectual) no domnio pblico15

    , bem como polticas

    integrativas no mercado de trabalho por meio de cotas para pessoas com deficincia nas

    empresas16

    .

    Para que a surdez como particularidade tnico-lingstica se constitusse como

    normatividade jurdica, os agentes envolvidos no processo tiveram que em diversos mbitos

    sistematicamente ratificar o estatuto de lngua natural da libras e, nesse processo, afirmaram

    a surdez como particularidade tnico-lingstico, negando qualquer concepo de

    deficincia. Contudo esse processo apenas se consolidou tendo o CORDE, Coordenadoria

    Nacional da Pessoa Portadora de Deficincia e a Secretria de Educao Especial do

    Ministrio da Educao, entre outras instncias do Estado, como interlocutores.

    Assim, a surdez afirmada como particularidade lingstica, objeto desta anlise,

    complexa, pois no se resume a uma oposio simplista entre diferena ou deficincia. Por

    um lado, essa formulao se d nesses termos, negando o termo deficiente auditivo,

    deficincia auditiva e qualquer outra concepo que se refira reabilitao ou correo. Por

    outro, ela apenas se legitima na medida em que se torna a deficincia auditiva legtima que

    precisa ser contemplada pelos domnios do Estado, sobretudo a educao. A questo relativa

    definio da surdez como deficincia ou cultura tambm percorre toda esta tese.

    3. Questes da tese

    Desde de 2002, no Ncleo de Antropologia Urbana da USP (NAU-USP)17

    sob

    coordenao do professor Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani, tem sido realizada uma

    ampla etnografia em um circuito18

    relativo surdez, formado, sobretudo, por escolas

    especiais, associaes de surdos, pontos de encontros, instituies religiosas e eventos

    15

    Lei Federal 10.098, de 19 de dezembro de 2000 16

    Lei Federal 8213/1991. 17

    Esta pesquisa alm de ser realizada no mbito do NAU-USP, tambm est relacionada ao grupo de pesquisa

    Estudos da Comunidade Surda: lngua, cultura e histria, coordenada pelo professor Dr. Leland McCleary do

    Departamento de Letras Modernas da USP. 18

    Na definio de Magnani o circuito une estabelecimentos, espaos e equipamentos caracterizados pelo exerccio de determinada prtica ou oferta de determinado servio, porm no contguos na paisagem urbana (2008:45).

  • 25

    acadmicos e polticos19

    . Em diversas pesquisas de campo, logo foi identificada uma forte

    presena de agentes religiosos na surdez, atuando em muitas instncias, a saber, no

    movimento social surdo, representado sobretudo pela FENEIS, em instituies

    universitrias, eventos polticos e tambm atuando em um mercado que se consolidou aps o

    reconhecimento jurdico da libras como lngua, que nesta anlise ser referido como

    mercado da libras.

    Essa forte presena de agentes com trajetria religiosa tambm se apresenta na mdia

    televisiva. Desde 1999, as missas da TV Cano Nova, vinculadas Renovao Carismtica

    Catlica, apresentam o intrprete no canto inferior da televiso. A partir de 2000, o mesmo

    passou a ser realizado pela Igreja Internacional da Graa de Deus, do Missionrio R. R.

    Soares, comumente classificada como neopentecostal (Assis Silva & Teixeira, 2008). Aps a

    regulamentao da libras, os agentes religiosos que j atuavam no mercado de diversas

    maneiras, tambm passaram a atuar na televiso interpretando as comunicaes oficiais do

    Estado, propagandas de partidos polticos e avisos sobre recomendao de faixa etria de

    audincia.

    Agentes protestantes e testemunhas de Jeov esto bastante presentes no mercado da

    libras, atuando sobretudo como intrpretes. De outro lado, a Igreja Catlica est relacionada

    a outros domnios, sobretudo na constituio da educao especial relativa surdez. uma

    histria de longa durao que remonta ao sculo XVI, com o padre Ponce de Lon, educador

    de surdos-mudos (como eram referidos) nobres, na Espanha, e o sculo XVIII, com o padre

    Abade LEpe, na Frana, que utilizou os sinais para a educao. No Brasil, ao longo de

    sculo XX, foram fundadas, por ordens religiosas diversas que possuem carisma para o

    cuidado e a catequese de surdos-mudos, escolas especiais para esse tipo de educao. Como

    ser demonstrado, agentes catlicos esto diretamente vinculados a constituies de

    territrios em que pessoas com surdez se associam, de onde pode emergir a lngua de sinais.

    Os agentes religiosos tambm esto muito presentes na organizao de publicaes

    que desempenham funes de dicionrios em lngua de sinais, antes mesmo de ela ter se

    consolidado com lngua natural. A Igreja Catlica produziu em 1969, o dicionrio

    Linguagem das mos, de Pe. Eugnio Oates. Em 1983, luteranos juntamente com catlicos,

    19

    Resultados parciais desta pesquisa podem ser vistas em Magnani (2003, 2007, 2008), Magnani et al (2008),

    Assis Silva & Teixeira (2008).

  • 26

    publicaram o livro Linguagem de sinais do Brasil, que traz tambm uma coleo de sinais.

    A Igreja Batista, em 1987, publicou o dicionrio Comunicando com as mos e em 1991, o

    dicionrio de sinais bblicos, O Clamor do silncio. A instituio religiosa Testemunhas de

    Jeov, em 1992, produziu o dicionrio Linguagem de sinais, reeditado em 2008.

    Recentemente, a Igreja Catlica publicou um novo dicionrio de sinais religiosos, em

    formato virtual20

    .

    Por conta dessa grande presena de agentes religiosos na surdez, a presente tese visa

    tomar como objeto etnogrfico, sobretudo, as prticas missionrias de trs instituies

    religiosas que ocupam centralidade nessa questo, a saber, a Igreja Catlica, a Igreja Batista

    vinculada Conveno Batista Brasileira e a Testemunhas de Jeov. Em menor grau, no

    captulo que trata da atividade missionria batista, tambm compe os dados da anlise o

    livro Linguagem de Sinais do Brasil, produzido pela Igreja Evanglica Luterana do Brasil

    (Hoemann et al, 1983).

    So duas as questes centrais que motivam a anlise que segue. A primeira questo

    consiste em evidenciar como as instituies religiosas consideradas em seus rituais

    performatizam descontinuidades entre pessoas que se diferenciam pela audio. A segunda

    questo consiste em evidenciar como os agentes dessas instituies realizam mediaes em

    outras instncias tidas como no religiosas.

    Tendo por base os argumentos de Mariza Peirano (2003), esta anlise no parte de

    uma concepo rgida e absoluta do ritual. pela anlise etnogrfica das trs instituies

    consideradas que o ritual ser descrito, considerando todos os elementos pertinentes para os

    objetivos desta reflexo. Sendo uma das caractersticas fundamentais do ritual a sua ao

    performativa (Tambiah, 1985:128), o que interessa a esta reflexo demonstrar a disciplina

    relativa surdez que performatiza separaes sistemticas entre corpos, lngua e cultura.

    Ser diferenciado pela audio como surdo, ouvinte ou deficiente auditivo no

    constitui um dado a priori desta anlise. O corpo, neste caso, deve ser entendido como uma

    natureza plstica, como diz Rabinow (1999) um convite manipulao, sendo necessrio

    demonstrar como, nos rituais, o corpo est sendo conformado em sua materialidade como

    diferente pela lngua e cultura. Contudo, seguindo Butler (2008), o corpo no uma natureza

    passiva ou receptculo de normas, pois, em grande medida, a agncia coletiva de corpos

    20

    Disponvel em http://www.surdosonline.com.br/ Acesso em 03/03/2010.

  • 27

    que tambm conforma esse processo, j que eles podem subverter normatizaes e as

    redefinirem21

    .

    Alm disso, necessrio considerar que a obra de Michel Foucault (1979, 1988,

    1996, 2002, 2005, 2007) bastante inspiradora para a reflexo que segue. Por conta do

    objeto desta anlise, a surdez, ser entendido como produto de prticas discursivas histricas,

    no h nesta reflexo uma dicotomia entre etnografia e histria. com a mesma postura

    etnogrfica que so considerados os dados empricos presentes nos rituais em congregaes

    religiosas, assim como nos manuais e dicionrios religiosos histricos, com a inteno de

    compreender o processo de constituio dessa surdez. Trata-se sempre de verificar como se

    marca diferena entre pessoas que so tidas como surdas ou ouvintes e como a lingstica

    incorporadas em projetos missionrios para definir disciplinas sobre corpos.

    A segunda questo perseguida por este trabalho entender como agentes religiosos

    circulam em instncias pblicas tidas como no religiosas, como exemplo, o movimento

    social, a academia e o mercado. A circulao que se visa analisar bastante dinmica. Por

    um lado, as instituies religiosas incorporam produes acadmicas sobre lngua de sinais

    que conformam as suas prticas disciplinares. Por outro, os agentes religiosos acabam por

    rotinizar determinadas prticas em suas congregaes e para alm, pois atuam em outras

    instncias, como academia, mercado e movimento social. precisamente esse trnsito entre

    instituies religiosas, movimento social, produes acadmicas e mercado que esta tese

    visa analisar, tendo por foco, sobretudo, os agentes religiosos que cruzam esses domnios.

    Esse seria precisamente o processo de mediao que as instituies religiosas realizam nessa

    questo22

    .

    4. Sobre o levantamento dos dados empricos

    Para responder questo de como os rituais performatizam descontinuidade entre

    pessoas que se diferenciam pela audio, a base emprica fundamental desta reflexo

    21

    necessrio considerar que, de acordo com a bibliografia sobre surdez, as lnguas de sinais emergem como

    produto do poder repressor ouvintista. 22

    A circulao de temas, problemas e questes entre atividade missionria, movimento indgena e cincias

    sociais, expresso em Montero et al (2006), em grande medida motivou teoricamente esta anlise etnogrfica

    das relaes entre atividades missionrias e a surdez.

  • 28

    consiste nos dados coletados por meio de pesquisa de campo nas instituies religiosas

    tomadas como objeto. Alm disso, para responder segunda questo (como agentes e

    prticas religiosas circulam em domnios tidos como no religiosos), esta pesquisa tambm

    organiza dados que revelam um cruzamento entre instituies religiosas, movimento social

    organizado, produes cientfica e o mercado da libras.

    Com referncia Igreja Catlica, os dados empricos foram coletados em duas

    pastorais, a saber, Pastoral dos Surdos So Francisco de Assis (Vila Clementino) vinculada

    Parquia So Francisco de Assis e ao Instituto Santa Teresinha e a Pastoral dos

    Deficientes Auditivos da Igreja Nossa Senhora Aparecida de Moema, localizada no bairro

    de mesmo nome. Com menor investimento, outras parquias catlicas tambm foram

    consideradas, assim como excurses, encontros, seminrios e congressos catlicos sobre

    surdez.

    No que se refere s congregaes batistas vinculadas Conveno Batista Brasileira,

    as etnografias foram realizadas nas Igrejas Batista de Vila Mariana e da Liberdade, alm de

    outras congregaes que sediaram encontros, seminrios e congressos. O curso de formao

    de intrpretes de linguagem de sinais, ministrado pelo pastor Marco Antonio Arriens, que

    possui formao teolgica batista, tambm constitui uma fonte de dados importante para a

    anlise.

    Considerando a instituio religiosa Testemunhas de Jeov, a pesquisa de campo foi

    realizada nas Congregaes em Lngua de Sinais dos Sales do Reino da Vila Carro e

    Santana, alm de visitas em algumas outras congregaes. Do mesmo modo, tambm foram

    pesquisados eventos que renem diversas congregaes, alm de uma visita ao Lar de Betel,

    em Cesrio Lange - SP, sede brasileira da instituio, onde se produz materiais e publicaes

    diversas.

    Como foi afirmado, este trabalho no concebe dicotomia entre etnografia e histria.

    Por conta disso, foram considerados em grande medida dicionrios e manuais religiosos, que

    so constantemente agenciados nas atividades missionrias analisadas. Na anlise, eles tm a

    funo de historicizar ao mximo o presente dos rituais. por conta disso que, no captulo

    sobre a Igreja Catlica, alguns dados histricos sobre a educao de surdos tornou-se

    primordial, bem como considerar as publicaes pioneiras sobre a linguagem das mos do

    padre Eugnio Oates. Do mesmo modo, no captulo sobre a atividade missionria

  • 29

    protestante, em que considerada a Igreja Batista, a publicao catlico-luterana Linguagem

    de Sinais do Brasil tambm analisada, pois ser alvo de apropriaes posteriores diversas.

    Assim como, tambm compem o universo emprico de investigao duas edies da

    publicao O Clamor do silncio.

    O segundo conjunto de pesquisa constituiu uma ampla investigao na rede que

    comumente denominada comunidade surda. Como exemplos, dados sobre as escolas

    especiais, associaes, eventos polticos e acadmicos vinculados surdez e cursos de lngua

    de sinais foram considerados. Alm disso, foram analisados documentos que revelam dados

    sobre a constituio da FENEIS. A trajetria religiosa de intelectuais tambm foi

    contemplada e a questo primordial que organizou essa pesquisa emprica foi compreender

    como os agentes religiosos circulam em diversos domnios.

    5. Estrutura da tese

    A tese est dividida em quatro captulos.

    No primeiro captulo, o foco da anlise est concentrado na Igreja Catlica. Sero

    demonstrados, sobretudo, dados empricos referentes a duas pastorais, a Pastoral dos Surdos

    So Francisco de Assis e a Pastoral dos Deficientes Auditivos de Moema. Pretende-se

    evidenciar como essa instituio em suas parquias expressa normatividades heterogneas

    relativas surdez, no que se refere ao uso de categorias classificatrias e nas corporalidades

    de seus membros. Alm disso, este captulo contempla a anlise de dados sobre a relao

    histrica de longa durao da Igreja Catlica com a surdez, expressa na educao especial,

    associaes de surdos e publicaes de padre Eugnio Oates.

    No segundo captulo, parte-se para a anlise de atividades missionrias protestantes,

    considerando, sobretudo, o ministrio com surdos das congregaes batistas. Diferentemente

    da Igreja Catlica, nessa instituio a surdez afirmada e performatizada como

    particularidade tnico-lingstica. Nesse caso, a disciplina gestada marca diferenas entre

    surdos e ouvintes em termos de lngua e cultura, o que est em plena consonncia com a

    surdez que ganhou normatividade jurdica. Alm disso, para explicar as razes histricas

    pelas quais essa disciplina foi engendrada, so consideradas trs publicaes religiosas

    uma publicao luterana, Linguagem de Sinais do Brasil, e duas edies da publicao

  • 30

    batista O clamor do silncio que revelam como instituies protestantes incorporam

    trabalhos cientficos para configurar atividades missionrias que afirmam a surdez como

    particularidade tnico-lingstica.

    No terceiro captulo, tem-se por objeto de reflexo as congregaes em lngua de

    sinais da instituio religiosa crist milenarista Testemunhas de Jeov. De modo semelhante

    a protestantes, em sua atividade missionria a surdez est plenamente performatizada como

    particularidade lingstica. Em tais congregaes, seus membros, quer sejam pessoas surdas,

    quer ouvintes, comunicam-se em lngua de sinais, bem como suas publicaes esto

    traduzidas para essa lngua e editada em vdeos. Contudo, nos rituais dessa instituio, como

    ser demonstrado, no h marcao entre pessoas que se diferenciam pela audio, nem

    tampouco qualquer afirmao da surdez como particularidade tnica, o que a diferencia das

    congregaes batistas analisadas.

    No quarto captulo, sero analisados desdobramentos em outras instncias dessas

    atividades missionrias consideradas. Ser explicitada uma intensa circulao de agentes

    religiosos em domnios como o movimento social, instituies universitrias, aparatos do

    Estado e o mercado que emerge vinculado libras, evidenciando um consenso entre muitos

    agentes que conformaram a surdez afirmada e performatizada como particularidade tnico-

    lingstica.

    Por fim, na concluso, sero retomadas as principais caracterstica da surdez

    afirmada como particularidade tnico-lingstica, analisada ao longo desta reflexo, assim

    como ser considerado como ela se traduziu em uma forma de gerncia da populao surda,

    entrando em uma regime de governamentabilidade do Estado.

  • 31

    1. Igreja Catlica e surdez: normatividades heterogneas

    A expresso effata23

    est vinculada a um milagre especfico descrito no evangelho de

    Marcos (7.31-37). Significa abra-te e, de acordo com tal passagem bblica, Cristo a

    proferiu depois de molhar com saliva os ouvidos e a lngua de um surdo-mudo, o que teria

    feito os ouvidos desse homem abrirem-se e sua lngua soltar-se. Tendo por inspirao essa

    passagem, historicamente, a surdez coloca uma questo para o cristianismo, o que tem

    originado procedimentos heterogneos de abertura nos corpos de pessoas classificadas como

    surdo-mudo, deficiente auditivo ou surdo: o que consiste a operacionalizao prtica do

    effata.

    Na Igreja Catlica, effata no usada exclusivamente quando em referncia surdez.

    Em verdade, ela est presente em um sacramento primordial da Igreja, o batismo, ritual

    universal que prov a introduo dos novos membros no que tido como o corpo mstico de

    Cristo, a prpria Igreja. Nesse sacramento, em sua verso completa, que por vezes

    facultativa, o sacerdote tocando a boca e ouvidos da pessoa, geralmente a criana,

    pronuncia: effata o Senhor Jesus que fez os surdos ouvirem e os mudos falarem lhes

    conceda que possa logo ouvir sua Palavra e professar a f para louvor e glria de Deus Pai.

    Amm24. Assim, nesse sacramento basilar, a referida categoria est vinculada ao chamado

    universal de toda humanidade ao cristianismo.

    Efat a forma como geralmente protestantes enunciam essa categoria. A slaba

    tnica no t e a segunda slaba tem pronncia fa, como est tambm na Nova

    Traduo da Linguagem de Hoje (Bblia Sagrada, 2001). De outro modo, catlicos parecem

    preferir a pronncia feta, mais prxima da pronncia em grego, com slaba tnica no e

    a segunda slaba recebe pronncia f. comum tambm em escritos catlicos a grafia

    heterognea do termo, como exemplo: ephphata, effata, effeta, efeta ou feta. Diversos so

    os agenciamentos dessa categoria por missionrios cristos, sendo utilizada para nomear

    escolas especiais, ministrios protestantes, pastorais catlicas, associaes, sites vinculados

    23

    Do grego grego 24

    Ritual de batismo, disponvel em:

    http://www.cleofas.com.br/virtual/texto.php?doc=SACRAMENTO&id=sac0998 Acesso em 24/05/2010.

  • 32

    surdez, eventos religiosos, materiais de evangelismo e catequese, estampas de bandeiras e

    camisetas, vitrais de parquias, entre outras apropriaes25

    .

    Como se pretende evidenciar nesta tese, so diversas as instituies religiosas crists

    que atuam conformando a surdez. No Brasil, nenhuma instituio parece guardar relaes de

    longa durao to extensas com a surdez como a Igreja Catlica, sendo mesmo uma histria

    bastante plural, tornando-se de difcil notificao a afirmao referente a desde quando

    atuam nessa questo. Por conta dessa profundidade histrica, as pesquisas de campo nessa

    instituio revelam que h uma heterogeneidade de normatividades em relao surdez.

    Diferentemente de prticas de protestantes e de testemunhas de Jeov, como ser

    demonstrado nos captulos 2 e 3, os quais esto plenamente conformes surdez afirmada

    como particularidade lingstica, a Igreja Catlica possui uma relao bem mais mltipla,

    em que camadas histricas de sua misso plural se evidenciam.

    As parquias catlicas pesquisadas expressam conformaes da surdez que

    geralmente so tidas como relacionadas a diferentes momentos histricos da educao

    especial de surdos: oralismo, comunicao total e bilingismo. Em seus rituais, possvel

    identificar que h pessoas surdas que se expressam exclusivamente por meio oral; outros

    utilizam sinais performatizados em estrita concordncia com a sintaxe linear do portugus;

    outros tambm se expressam por sinais, mas realizados em uma sintaxe espacial, como um

    cdigo independente do portugus.

    Por conta dessa heterogeneidade de manejos lingsticos em seus rituais, as prticas

    catlicas no expressam um pleno ajustamento s normatividades relativas surdez

    afirmada como particularidade lingstica, j que outras disciplinas parecem estar

    corporificadas em seus fiis. Alm disso, as categorias que atualmente so tidas como

    legtimas e que normatizam a surdez nem sempre esto plenamente incorporadas na fala de

    seus membros, de modo que a surdez entendida como particularidade tnico-lingstica,

    embora presente na Igreja Catlica, incorporada paulatinamente, no raro, por meio de

    prticas advindas de outras instituies, acomodando-se em meio a outras normatividades

    concorrentes.

    25

    Nesta tese, quando referida ao contexto catlico ser utilizada a categoria effata , termo que intitula o site da

    Pastoral dos Surdos do Brasil. http://www.effata.org.br/?s=apastoral Acesso em 25/05/2010,

  • 33

    Este captulo visa tratar precisamente dessa heterogeneidade de normatividades e

    dessa histria que vincula a Igreja Catlica a instituies tidas como referncias de base na

    surdez: escolas especiais e associaes. Como ser demonstrado, a multiplicidade de

    normatividades est diretamente vinculada a camadas histricas de uma misso catlica

    plural na surdez.

    1.1. Normatividades heterogneas nos rituais catlicos

    Na cidade de So Paulo h, em linhas gerais, duas formas de insero, com utilizao

    de sinais, de pessoas surdas em parquias catlicas. O primeiro modo se d por meio da

    realizao de missas especficas para surdos, sendo esta prtica mais antiga, j que algumas

    parquias e ordens catlicas esto historicamente vinculadas educao especial relativa

    surdez; o segundo modo se d pela insero de pessoas surdas em missas comuns,

    possibilitada pela presena de intrpretes, constituindo uma prtica mais recente,

    desenvolvida sob forte influncia de prticas advindas de congregaes protestantes.

    Os dados da anlise que segue esto referidos sobretudo a duas pastorais relativas

    surdez, que possuem centralidade na cidade de So Paulo. Para considerar o primeiro caso,

    as missas para surdos, a pesquisa de campo se deu na Pastoral dos Surdos So Francisco de

    Assis, vinculado Igreja So Francisco de Assis e ao Instituto Santa Teresinha. No segundo

    caso, missas comuns com intrpretes, a pesquisa de campo trata da Pastoral dos Deficientes

    Auditivos de Moema, que muitas vezes tambm se denomina Pastoral dos Surdos de

    Moema. Ambas as pastorais integram a Regional Sul 1, seguindo a diviso do pas da Igreja

    Catlica, fazendo parte de uma uma rede nacional de parquias que executam atividades de

    evangelizao e catequese com surdos algo que somente tem crescido nos ltimos anos ,

    o que denominam ser Pastoral dos Surdos do Brasil.

    1.1.1. Pastoral dos Surdos So Francisco de Assis: o rito da missa para surdos

    A Pastoral dos Surdos So Francisco de Assis, que realiza missas para surdos em

    So Paulo, data a sua fundao de 1989 e est diretamente vinculada catequese de alunos

  • 34

    surdos de duas escolas especiais relativas surdez, o Instituto Santa Teresinha (escola da

    ordem Congregao das Irms de Nossa Senhora do Calvrio) e a Diviso de Educao e

    Reabilitao dos Distrbios da Comunicao (DERDIC)26

    , tendo de fato surgido nos

    domnios desta ltima escola, e posteriormente se associado primeira. Atualmente, as

    missas dessa pastoral se realizam de modo relativamente itinerante, nos dois primeiros

    domingos do ms as missas so realizadas na Parquia So Francisco de Assis, no bairro de

    Vila Clementino, nas proximidades da DERDIC, e no ltimo domingo do ms realizada na

    capela do Instituto Santa Teresinha, no bairro Bosque da Sade.

    Por conta dessa relao com as escolas, o pblico majoritrio (no exclusivo) da

    pastoral composto por alunos e ex-alunos das duas instituies referidas, bem como

    catequistas e professores vinculados a elas. Alm disso, ele majoritariamente jovem e o

    manejo que fazem dos sinais no parece estar atrelado rigorosamente sintaxe linear da

    lngua portuguesa. Contudo, evidentemente, h excees e o portugus sinalizado, tambm

    se faz presente na performance lingstica de alguns membros. Por meio da pesquisa nessa

    pastoral, identificou-se que, quando se considera o fator gerao, h uma grande tendncia

    em pessoas surdas mais velhas e escolarizadas utilizarem os sinais em concordncia com a

    sintaxe linear do portugus. A catequista que compem essa pastoral e auxilia na realizao

    das missas, uma senhora que estudou na escola especial das Calvarianas, exemplar dessa

    performance lingstica.

    A missa para surdos apresenta exatamente a mesma estruturao de qualquer missa

    catlica apostlica romana comum, a saber: i) Ritos de Entrada (saudao sacerdotal, ato

    penitencial); ii) Liturgia da Palavra (leituras bblicas, homilia, profisso de f); iii) Liturgia

    Eucarstica (ofertrio, prefcio, orao eucarstica); iv) Ritos de Comunho (Pai Nosso, Paz

    de Cristo, Comunho); e por fim, Ritos de Despedida (avisos, despedida do sacerdote). Tal

    como todas as missas catlicas, so compostas por uma oralidade cannica rgida, definida

    mundialmente pela Santa S. Apesar de, no caso da missa para surdos, haver geralmente

    menos msicas do que as missas comuns, j que no h msicos presentes nesses rituais,

    necessrio considerar que ela no deixa de ser um ritual estruturado de modo absolutamente

    oral, em que os sinais acompanham essa oralidade.

    26

    Esta escola foi fundada em 1954, quando se denominava Instituto Educacional So Paulo (IESP). Em 1969,

    foi incorporado pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

    Fonte:http://www.pucsp.br/derdic/historico.html Acesso em 05/05/2010.

  • 35

    Quem celebra a missa um padre ouvinte, que assumidamente sabe bem poucos

    sinais. A sua fala, durante toda a missa, interpretada para os sinais, tal como se d em

    diversas denominaes protestantes. Alm disso, assim como na missa comum, a missa para

    surdos no se resume somente fala do sacerdote, pois compe o ritual um dilogo cannico

    estabelecido durante toda a missa entre este e a assemblia. Nas missas comuns,

    constituinte desse dilogo que a fala da assemblia, em resposta a do sacerdote, seja em

    unssono com algum integrante da parquia, que fala no microfone, posicionando-se

    tambm no altar. No caso da missa para surdos, uma pessoa com surdez, tambm integrante

    da parquia, usando veste ritual tal como o sacerdote, sinaliza o que costuma ser dito no

    microfone, de modo que todos copiam os seus sinais para a plena realizao do dilogo.

    Dessa forma, considerando apenas a lngua de sinais, o dilogo se d entre o intrprete (que

    traduz a fala do padre) e a pessoa surda auxiliar (que sinaliza o dito da assemblia). A

    resposta da assemblia, alm de ser sinalizada, tambm dita em portugus por pessoas

    ouvintes presentes e pessoas surdas mas oralizadas.

    A parte central da missa, a consagrao, um momento extraordinrio da missa para

    surdos. Esse a nica parte em que o sacerdote alm de falar, sinaliza conjuntamente,

    reproduzindo as palavras e os gestos de Jesus na ltima ceia. Seguindo o ritual, ergue

    posteriormente a hstia e o clice, que, de acordo com a teologia catlica, contm o corpo e

    o sangue de Cristo, momento em que todos se ajoelham ou tomam postura de reverncia.

    Nesse momento, o intrprete e a pessoa com surdez ajudante da celebrao deixam as suas

    funes de auxiliares da celebrao e se ajoelham junto com a assemblia, estando

    desobrigados da sinalizao, visto que o sacerdote o faz. Aps esse momento, em que o

    sacerdote oralizou e sinalizou a parte central do rito de transubstancializao, o intrprete e a

    pessoa com surdez auxiliar retornam para a sua posio de intermediao.

    Apesar da proximidade estrutural com a missa comum, outras especificidades do

    ritual para surdos se explicitam, a comear pela homilia, momento em que o presidente da

    celebrao fala para a assemblia, como na maior parte do ritual, em portugus, cabendo ao

    intrprete sinalizar o dito sacerdotal. Comumente, o sermo do padre trata dos textos

    bblicos lidos na parte litrgica (i - Velho Testamento na primeira leitura, ii - Novo

    Testamento na segunda leitura e, a parte principal, iii - o Evangelho), em linhas gerais, ele

    procura realizar uma mediao entre o livro sagrado e o cotidiano da assemblia. Do ponto

  • 36

    de vista meramente formal, para auxiliar o padre na referncia aos textos bblicos de modo

    inteligvel a essa assemblia, alm da interpretao para a lngua de sinais, comum que

    membros da parquia projetem alguns poucos desenhos em um telo, para ilustrar a

    passagem bblica considerada, visando tornar a explicao do padre mais visual27

    .

    Alm disso, a especificidade da composio da assemblia, o fato de ser

    majoritariamente de pessoas surdas, sempre um dado relevante no contedo de sua

    pregao. Desse modo, alm da prdica bblica catlica habitual, algumas referncias so

    reiteradas, inserindo a missa para surdos em uma histria mais geral do catolicismo. Na

    homilia comum que se faam referncias, repetidas em cada missa, a nomes de religiosos

    catlicos que trabalharam para a evangelizao dos surdo-mudos ao longo da histria, tais

    como So Francisco de Sales, Ludovico Pavoni, Felippo Smaldone, Jos Gualandi, Pedro

    Bonhome, entre outros e , sobretudo, aos nomes dos religiosos catlicos que atuaram no

    Brasil evangelizando pessoas surdas, os padres Eugnio Oates (redentorista norte-

    americano) e Vicente de Paulo Penido Bunier (diocesano, sendo o primeiro padre surdo

    brasileiro), reverenciados como os bandeirantes28

    da Pastoral dos Surdos no Brasil29

    .

    Alm dessa insero do ritual em uma histria plural da relao que remonta a

    sculos entre a Igreja Catlica e surdez, comum que a fala do sacerdote, em algumas

    missas, tome um tom poltico, ainda que brando, referindo-se s injustias sociais e

    condio de excluso das pessoas com deficincia na sociedade contempornea. Assim, em

    consonncia com ideais catlicos que se desenvolveram aps o Conclio Vaticano II, a sua

    prdica costuma incentivar a construo de uma sociedade mais justa e solidria, nesse caso,

    para surdos (ou deficientes auditivos) e tambm para as pessoas com deficincia em

    27

    O uso de desenhos na explicao de qualquer contedo para surdos faz parte da prtica pedaggica intitulada

    comunicao total, que, como foi demonstrado na Introduo, a filosofia pedaggica vigente entre o oralismo

    e o bilingismo. 28

    Categoria pela qual so referidos. 29

    Na publicao feta: Eu falo com Deus da Ordem Pequena Misso para Surdos, de origem italiana, h uma

    Ladainha dos Amigos dos Surdos (s/d:75), que citam os seguintes religiosos catlicos: So Francisco de Sales,

    So Jos Cotolengo, Beato Pedro Bonilli, Beato Joo Nepomuceno, Ludovico Pavoni, Felippo Smaldone, Jos

    Gualandi, rsola Mezzini, Antonio Prvolo, Severino Fabriani e Pedro Bonhome. Estes tambm so referidos

    como os Apstolos dos Surdos, isto , pessoas santas religiosas que teriam se dedicado ao cuidado, educao

    e catequese de surdos-mudos em diversos pases da Europa.

  • 37

    geral30

    .Tal preocupao com a condio de excluso social da pessoa com deficincia parece

    ter se tornado ainda mais presente aps a Campanha da Fraternidade de 200631

    .

    Outras especificidades do ritual da missa para surdos precisam ser consideradas.

    Quando a assemblia reza o Pai Nosso, presente em todas as missas na parte do rito de

    comunho, ela o faz com as mos em lngua de sinais, acompanhando a reza oralizada.

    Como esto com as mos ocupadas, todos aproximam os ps, tocando-se uns aos outros,

    realizando correntes nas fileiras. Ademais, como tambm de praxe em missas comuns, no

    incio ou durante a celebrao, entram pelo corredor objetos santificados do ritual, tais como

    imagens, a Bblia sagrada, os objetos da liturgia da comunho, entre outros elementos. No

    caso da missa para surdos, comum a entrada, pelo corredor, de objetos vinculados a essa

    pastoral e que ganham sacralidade, tais como bandeiras ilustradas com o braso da Pastoral

    dos Surdos e com a categoria effata expressa e bem destacada e tambm desenhos de Cristo,

    ou apenas da mo de Cristo, tocando um ouvido e operando o milagre. Alm dessas

    bandeiras, publicaes especficas para a catequese de surdos ou deficientes auditivos, que

    geralmente esto exclusivamente em lngua portuguesa, tambm costumam percorrer esse

    trajeto ritual.

    Uma das caractersticas importantes da missa para surdos a prolongada Orao

    dos fiis, tambm chamada Orao Universal ou Prece dos Irmos, momento do rito

    catlico em que os participantes podem fazer pedidos individuais em um tom geral. Esse o

    momento de intensa participao da assemblia, em que os coordenadores do rito, sacerdote

    e auxiliares, no tolhem em nada a participao pblica, deixando que ela se expresse

    exausto. O mesmo parece se processar durante a orao pela Paz, momento em que todos

    se cumprimentam e sinalizam PAZ32

    entre si. O sacerdote geralmente cumprimenta a

    totalidade da assemblia e muitos membros fazem o mesmo, sendo tal parte do rito mais

    demorada que o habitual. Nesse sentido, a missa para surdos mais uma ocasio, entre

    30

    Na fala do sacerdote, como comum na Igreja Catlica, as categorias surdo e deficiente auditivo costumam

    ser intercambiveis e mesmo a surdez relativa libras no deixa de ser, geralmente, indicializada categoria

    geral deficincia, posio anloga aos dispositivos jurdicos e mbitos do Estado. 31

    O tema da Campanha da Fraternidade de 2006 foi Fraternidade e pessoas com deficincia e teve por lema

    Levanta-se e vem para o meio (Marcos 3.3.). No texto base de tal campanha (CNBB, 2006), h um levantamento histrico que demonstra as relaes de longa durao entre a Igreja Catlica e as denominadas

    deficincias. Nessa Campanha, a Igreja firmou o seu compromisso com a evangelizao e a promoo social

    das pessoas com deficincia. 32

    O sinal de paz geralmente feito com a configurao da mo em P, em movimento de zigue-zague na altura

    do tronco (descrio pessoal).

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    outras, de encontro e sociabilidade. Como exemplo, comum que geralmente seus

    participantes cheguem antes da missa propriamente dita e no parecem ter pressa para

    comear; aps o trmino do rito, ficam conversando horas a fio, tambm sem pressa de irem

    embora da parquia, de modo que parece ser uma estratgia dos organizadores do rito

    possibilitar a sociabilidade desse pblico.

    Uma caracterstica importante da Igreja Catlica precisa ser considerada para os

    objetivos desta anlise. Os rituais que conformam os sete sacramentos33

    esto estruturados

    por uma oralidade rgida e estvel. Alm disso, a missa catlica tambm um ritual que

    possui uma padronizao dada pela oralidade cannica e uma disposio corporal da

    assemblia estritamente regulada. De igual modo, as oraes fundamentais que constituem

    as prticas catlicas, o Pai Nosso, a Ave Maria, o Credo e a Salva Rainha, apenas para citar

    as mais presentes nas missas comuns, so tambm oraes de oralidade fixa, que o fiel deve

    decorar e repetir cotidianamente. Assim, a canonicidade, a rigidez e