Tese Final em 13012015 - UFMTpela educação que me deram, permitindo-me chegar até aqui. A minha...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS REDE AMAZÔNICA DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA DOUTORADO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA KÉCIO GONÇALVES LEITE NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER CUIABÁ 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS REDE AMAZÔNICA DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA DOUTORADO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA

KÉCIO GONÇALVES LEITE

NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER

CUIABÁ 2014

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KÉCIO GONÇALVES LEITE

NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática, da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, sob orientação do Prof. Dr. Erasmo Borges de Souza Filho, na linha de pesquisa Fundamentos e Metodologias para a Educação em Ciências e Matemática, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Matemática.

CUIABÁ 2014

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Ao povo Paiter, que exemplarmente resiste, insiste e sobrevive política, social e culturalmente, travando batalhas cotidianas durante quatro décadas de contato.

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AGRADECIMENTOS

Ao Povo Paiter, em especial aos professores paiter das comunidades Gapgir, Lobó,

Lapetanha, Joaquim, Amaral e Paiter, pela hospitalidade, pelas lições de vida e pelo

compartilhamento de saberes e fazeres imemoriais que passarão a compor minhas

representações de mundo e a refletirem em minha caminhada acadêmica, em minha vida

pessoal e em minha atuação profissional.

Ao Professor Dr. Erasmo Borges de Souza Filho, pelas sábias lições acadêmicas e

de vida, pelo compartilhamento de seus saberes sobre os mundos material e espiritual, pela

paciência e pela amizade ao me orientar.

Ao Professor Dr. Rogério Ferreira e às Professoras Dra. Aparecida Augusta da

Silva, Dra. Isabel Cristina Rodrigues de Lucena, Dra. Gladys Denise Wielewsky e Dra.

Elizabeth Antônia Leonel de Moraes Martines, que gentilmente aceitaram participar da

Banca Examinadora e muito contribuíram com sugestões e apontamentos feitos desde a

qualificação.

À Professora Dra. Marta Maria Pontin Darsie, por espalhar e compartilhar

conosco o sonho de uma educação transformadora na Amazônia, encorajando-nos a trilhar

novos caminhos e a vencer grandes desafios.

Ao Professor Dr. Michael Otte, pelas valiosas lições de Filosofia e História da

Matemática que sempre farão parte de minhas reflexões como signos e referências.

Aos professores indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso, pela

oportunidade de construir novas representações sobre o mundo e sobre as relações entre

povos e culturas.

Ao Uraan, pela amizade, pela acolhida em sua casa e em sua comunidade, pelo

companheirismo, pela troca de ideias, e por me conduzir de forma especial na introdução à

cultura, à língua e ao mundo dos Paiter.

À Betty Mindlin, pelo exemplo de humanidade, pela inspiração que suas pesquisas

com os Paiter me proporcionaram e por compartilhar gentilmente seus valiosos relatórios

de campo da época do Polonoroeste em Rondônia com todos do Departamento de

Educação Intercultural da UNIR.

Aos colegas de doutorado, os reamecianos, Emerson, Marlos, Liliane, Márcia,

Nério, Vinícius, Gecilane, Mariuce, Leila, Cristiane, Eduardo, Edilberto, Guacira, Ivo,

Jéferson, Rafael, pela convivência, pela amizade, pelos estudos compartilhados e pela

ajuda nos momentos difíceis desta empreitada.

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Ao Professor Dr. Rômulo Campos Lins e ao Programa de Pós-Graduação em

Educação Matemática da Unesp – Rio Claro, por terem me aceitado como aluno especial

nos estudos de Filosofia da Educação Matemática.

À Jacqueline, pela amizade, pela alegria contagiante e por emprestar gentilmente

seu apartamento em Cuiabá ao reamecianos de Rondônia.

À Livínia, pela amizade, pela hospitalidade, pelos bolos, doces, almoços e jantas

que tornaram mais agradáveis os dias de estudos em Belém.

Aos Professores e Professoras do Programa de Pós-Graduação em Educação em

Ciências e Matemática da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática –

REAMEC-UFMT-UFPA-UEA, pelas aulas, sugestões e valiosos ensinamentos.

Aos companheiros de trabalho do Departamento de Educação Intercultural da

UNIR, Genivaldo, Edineia, Luciana, Maria Lúcia, Reginaldo, João, Cristóvão, Joaci,

Carma, Vanúbia e Gicele, pela amizade, pelo apoio, pela troca de ideias, pelas sugestões

de leituras e pelo companheirismo na formação intercultural de professores indígenas em

Rondônia e Noroeste de Mato Grosso.

Às professoras Josélia, Lediane e Jânia, por compartilharem comigo, nos últimos

anos, cada uma a seu modo, interessantes ideias e perspectivas a respeito da educação

escolar indígena, que resultaram em importantes contribuições para a construção desta

tese.

Ao meu irmão, Jáison, pela amizade, apoio e incentivo.

Aos meus pais, Dirce e Genésio, pela forma como me introduziram no mundo e

pela educação que me deram, permitindo-me chegar até aqui.

A minha esposa, Eliana, pelo amor, pelo carinho, pelo incentivo, pelo

companheirismo, pela amizade e pelas contribuições e leitura cuidadosa da versão

preliminar da tese.

A Deus, pela força, saúde e disposição em continuar a caminhada.

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RESUMO

A presente tese de doutorado busca refletir a educação matemática no campo da interculturalidade, considerando como espaço empírico a escola indígena paiter. Ideias e pressupostos enunciados em práticas discursivas de professores indígenas na projeção do ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter e suas interseções com a cultura do povo Paiter, em escolas da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, foram observados, analisados e interpretados no espaço da interculturalidade. Isso demandou investigar como a projeção de uma educação escolar diferenciada nas aldeias desse povo pode ressignificar práticas educativas tradicionais e promover uma revitalização de saberes e fazeres da tradição, em detrimento de um processo de mudanças pós-contato. Para tanto, propôs-se observar, ouvir e acompanhar professores paiter em suas práticas e afazeres contextualizados no cotidiano das escolas, das aldeias e da universidade. Teoricamente, a pesquisa baseou-se na perspectiva da Etnomatemática (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), segundo a qual, ao longo da história da humanidade, cada povo ou grupamento humano desenvolveu saberes e fazeres matemáticos próprios. Também se orientou pelos conceitos de interculturalidade e hibridismo cultural (BHABHA, CANCLINI, HALL) abordados pelos Estudos Culturais. Metodologicamente, a pesquisa caracterizou-se como sendo do tipo qualitativo de abordagem interpretativa. O estudo de caso foi adotado como método para a identificação e registro de discursos, práticas e ideias elaboradas por professores indígenas, bem como para a compreensão das relações destas ideias com a visão de mundo, a organização social e a etnicidade do povo Paiter. Verificou-se que a representação discursiva de professores paiter na projeção da introdução dos saberes matemáticos do povo na escola, além de visar a diversidade cultural para a qual contribuiriam particularmente os saberes matemáticos do povo, busca marcar posição (oposição/diferenciação) em relação a uma matemática do currículo presente na escola inserida na aldeia. Essa abordagem origina inevitavelmente tensões, relacionadas a questões de identidade cultural, descentramento cultural e hibridismo cultural, porque, ao mesmo tempo em que o processo enunciativo pressupõe a existência de uma tradição, ele introduz uma quebra no presente performativo da identificação cultural ao eleger novos significados e saberes como necessidades do presente político enquanto prática de resistência. Assim, no caso empírico dos Paiter, observa-se no espaço enunciativo representado pelo discurso dos professores, simultaneamente e de forma tensionada, um apelo às memórias de um saber matemático experienciado ou vivido “pelos mais velhos”, e o reconhecimento da necessidade do domínio da matemática escolar como estratégia de empoderamento nas relações de poder assimétricas com a sociedade envolvente. Manter uma identidade cultural paiter dentro desse processo de hibridação cultural torna-se uma preocupação política dos professores indígenas, que apontam a introdução dos saberes e fazeres matemáticos do povo na educação escolar como uma estratégia de fortalecimento identitário. Teoricamente, esse fato indica uma possível vinculação entre etnomatemática e etnicidade, ao se conceber etnomatemática não como constructo atribuído, mas como constructo reivindicado. Palavras-chave: Etnomatemática. Educação Escolar Indígena. Interculturalidade. Paiter.

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ABSTRACT

This doctorate thesis seeks to reflect mathematics education in the field of interculturality considering how empirical space the paiter indigenous schools. Ideas and assumptions set out in the discursive practices of indigenous teachers in the projection of teaching paiter mathematical knowledge and their intersections with the culture of Paiter people in schools of Terra Indígena Sete de Setembro, Rondônia, were observed, analyzed and interpreted in the field of interculturality. It demanded to investigate how the projection of a differentiated education in the villages that people can reframe traditional educational practices and promote revitalization of knowledge and practices of tradition, rather than a process of post-contact changes. For both, it was proposed to observe, listen and follow paiter teachers in their practices contextualized in daily of the schools, the villages and the university. Theoretically, the research was based on the perspective of ethnomathematics (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), according to which, throughout the history of humanity, each people or human groups developed their own mathematical knowledge. Also guided by the concepts of interculturality and cultural hybridity (BHABHA, CANCLINI, HALL) addressed by Cultural Studies. Methodologically, the research is characterized as the qualitative interpretative approach. The case study was adopted as a method for the identification and registration of discourses, practices and ideas developed by indigenous teachers as well as for understanding the relationship of these ideas with the worldview, social organization and ethnicity of Paiter people. It was found that the discursive representation of paiter teachers in projecting the introduction of the mathematical knowledge of the people at school, besides seeking cultural diversity to which especially contribute the mathematical knowledge of the people, search dial position (opposition/differentiation) in relation to a mathematical curriculum of this school included in the village. This approach inevitably creates tensions related to issues of cultural identity, cultural decentralization and cultural hybridity because, while the enunciative process presupposes the existence of a tradition, it introduces a break in the performative present of cultural identification to elect new meanings and knowledge as needs of political present while practice of resistance. Thus, the empirical case of Paiter, is observed in the enunciative space represented by the discourse of teachers, simultaneously and of tensioned form, an appeal to the memories of a mathematical knowledge experienced or lived “by the elders”, and the recognition of the need for domain school mathematics as empowerment strategy in asymmetrical power relations with the surrounding society. Ensure a paiter cultural identity within that cultural hybridization process becomes a political concern of indigenous teachers, pointing to the introduction of mathematical knowledge of the people in school education as a strategy for strengthening identity. Theoretically, this fact indicates a possible link between ethnomathematics and ethnicity, to conceive etnomathematics not as assigned construct, but as claimed construct.

Keywords: Ethnomatematics. Indigenous School Education. Interculturality. Paiter.

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EEWE TÃYÃH1 Ãh g̃obahbe tĩg sadana matemática tĩhge same mĩ nane mãtẽenãh iwekahr ana aje weitxa yele same tohta, kana iwe same mẽhnãh Paiter kabih aje mĩ, sodĩg̃ah tik mi iwe sabatiga awe kabi e. Mereitxa yele ewe tete enãpoh sodig̃ey xade sogamame same mãh akoe mĩ apugey emakobah aje tare we koy Paiter emasoe itxa yele ikinatẽh sodig̃ah mĩ, kah mawe tere same mag̃a weitxa yele nãh, sodig̃ah ey xade Paiterey karah ka Terra Indígena Sete de Setembro wa Rondônia ka ekoy ana e, kana yag̃a enãh kana tamag̃a iwe makih, ana tasaana ih alade iwe kahr weitxa yele same tohta we same tik mi ena e. Kana mawe tere nã tehr tasade g̃obahbe same itxa ewe mag̃a anĩh aite tere mi tapere de akobah ewe mag̃a ena ãh karba mĩh, ayap e mĩ amasoe tere ka akobah, matehr soe perede ewe ikin omner mae wepi awemakobah anĩh ee aje aite iwahr matemática nã yara wẽtihge tik mi aora ena e. Ayap e nã ojena kana iwe mag̃a enãh, takoe pih, kana tamag̃a enãh taitxa tamasodig̃ah ka takarah koy ayap mi universidade ka taitxa ena e. Iwe alabikãrh ag̃a ojena nem esame mĩ ena e Etnomatemática (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), eenã te baga ter paiter deor asot aut mit’i aite same itxa sogamame nã poh, soeitxa yele nã ena ama matemática nã yã we tĩg mĩ e. Ayap mi eena de eewe tãyãh intercultural mĩ itxa mũypoy soe sade awemag̃a awepitxakõy txeh ani ewe same na ani e mĩ (BHABHA, CANCLINI, HALL) weitxa yele nã we tĩhg̃e. Ete ãh sodĩhg̃e dena nane mãteenãh alade we mi ena iwe kahr ena e. Ãh senãih, xiwewame maãh, iwe mag̃a tasade we maãh ewe tayãh sodig̃ey xadewe kana pãhg̃a ãwe tar matiga paweitxa mũye telemĩ teh g̃arba same ikin paje wemĩ pawe kabi ayeh yele mĩ alade Paiter alahde masoe same ikin ewe mĩ, soeitxa g̃arba ka Paiter a aje aweikay ewe mĩh. Ete sodig̃ey jena iwe same ikin aje we mĩ ena ee ama matemática mãh ena toyaba toykoe mĩ toyasoeitxa yele mãh sodig̃ah mi ̃tara ena toyag̃a toite matxẽh mawe tar areh ena oite ãh dana e eite ãh dana e ena awe makobah ena tare (xamatage/mawetere) ee matemática sade ama sodig̃ah ka eka iwe same itxa awekabi ena e. Ayap sadena one iwe sameom neh ena takabi e, ee alade paite itxa paliyã etiga teh tasadena ee maite ka ena akobah og̃a maite ka yabekar areh mũy ite torera ladeka bo oite sa aye aweõ ani poh alade we same nã tasadena e. Ewe nekoy tasadena one g̃uya ter ena ateter iwe itxa awekabi mae eeter tasadena iwe xagut aãh ena e. Iwe same sadena aite mag̃a anate lana poreh maite matxẽ waba owepih alade we nã ena e. Ete paiter asoeitxa yele kare same dena sodig̃ey asoe mame pi ena awe kabi iwe same nã e, txuhla iwe sore iwe kane omneh “ikãyey” sade tiga teh ena merekahr takay e kana meyag̃a sogamame itxa matehr tara yara om niga we itxah takay, ayap mi yara ite maãh waba xiperemĩh xiite itxah ateneh alade iwe itxa bokirih omneh etiga. Aite itxa alade amasoeitxa yele nã ewe matxẽ toyxani ih ee xameomi matehr ite amitohr sadetiga ani ih sodig̃ey xadena ewe itxa anepamibe nã ena ani e. Ayap e nekoy toyasoeitxa yele toite nã we mag̃a toje toykobahbe nã sodig̃ah mĩ iwe mag̃a etehra yena ter toyag̃a toya paitere maõ reh toyekay a ena e yena bo soe sa ani ih soe ikin omner aje mae we pi amuk de akobah iwe mag̃a ãh tik mi maetera. Ete sodĩhg̃e same mĩ iwe same sadena ana ena e, Etnomatemática mĩ tasadena ama paitere satbimayã toyabah yele nã mag̃a, one eeter alade alaĩh iweka ewe nã same omne maãh aje we same nã, marbom eete oyana paiter ena aitere itxa ter poh yele same nã ena ama soe same ka ena awemakobah ena e. G̃oe-abikãhr: Etnomatemática. Lat emakobahwe same. Weitxa aoare same. Paiter.

1 Resumo da tese em Tupi Mondé em versão traduzida por Uraan Anderson Suruí.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Localização da Terra Indígena Sete de Setembro, território do povo Paiter ...... 69

Figura 2 – Primeiro contato oficial dos Paiter com não-indígenas, em 1969 ...................... 70

Figura 3 – Professor Joatom Suruí, ao receber o prêmio Professor Nota 10, concedido pela

Fundação Victor Civita, em 2008 ........................................................................................ 76

Figura 4 – Crianças paiter observam os mais velhos em atividade cultural na Aldeia

Gapgir .................................................................................................................................. 77

Figura 5 – Escola da Aldeia Gapgir, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ........ 149

Figura 6 – Escola da Aldeia Lobó, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ........... 150

Figura 7 – Escola da Aldeia Lapetanha, Terra Indígena Sete de Setembro,

Cacoal/RO.......................................................................................................................... 151

Figura 8 – Escola da Aldeia Joaquim, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ...... 152

Figura 9 – Escola da Aldeia Amaral, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ....... 153

Figura 10 – Escola da Aldeia Paiter, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ........ 153

Figura 11 – Diagrama de representação das relações entre as categorias de análise

de dados ............................................................................................................................. 156

Figura 12 – Quadro concebido para análise semiótica de unidades textuais ..................... 165

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Termos numéricos e quantificadores paiter ...................................................... 79

Quadro 2 – Qualificadores paiter que caracterizam objetos quanto a formas geométricas,

posições relativas, tamanhos e pesos ................................................................................... 83

Quadro 3 – Marcadores de tempo paiter para o período de um dia ..................................... 85

Quadro 4 – Caracterização dos participantes da pesquisa ................................................. 147

Quadro 5 – Informações sobre as entrevistas realizadas ................................................... 155

Quadro 6 – Unidades textuais selecionadas por categorias de análise, tematizações e

sujeitos ............................................................................................................................... 159

Quadro 7 – Análise semiótica da unidade textual E1Q2 .................................................... 168

Quadro 8 – Análise semiótica da unidade textual E2Q8 .................................................... 169

Quadro 9 – Análise semiótica da unidade textual E14Q14 .................................................. 170

Quadro 10 – Análise semiótica da unidade textual E11Q17 ................................................ 171

Quadro 11 – Análise semiótica da unidade textual E5Q6 .................................................. 173

Quadro 12 – Análise semiótica da unidade textual E4Q10 ................................................. 174

Quadro 13 – Análise semiótica da unidade textual E9Q14 ................................................. 176

Quadro 14 – Análise semiótica da unidade textual E8Q16 ................................................. 177

Quadro 15 – Análise semiótica da unidade textual E6Q3 .................................................. 179

Quadro 16 – Análise semiótica da unidade textual E3Q3 .................................................. 180

Quadro 17 – Análise semiótica da unidade textual E14Q22 ................................................ 183

Quadro 18 – Análise semiótica da unidade textual E11Q26 ................................................ 184

Quadro 19 – Análise semiótica da unidade textual E13Q9 ................................................. 185

Quadro 20 – Análise semiótica da unidade textual E1Q4 .................................................. 187

Quadro 21 – Análise semiótica da unidade textual E5Q8 .................................................. 189

Quadro 22 – Análise semiótica da unidade textual E13Q1 ................................................. 190

Quadro 23 – Análise semiótica da unidade textual E9Q15 ................................................. 192

Quadro 24 – Análise semiótica da unidade textual E8Q17 ................................................. 193

Quadro 25 – Análise semiótica da unidade textual E3Q5 .................................................. 195

Quadro 26 – Análise semiótica da unidade textual E2Q6 .................................................. 197

Quadro 27 – Análise semiótica da unidade textual E14Q12 ................................................ 199

Quadro 28 – Análise semiótica da unidade textual E11Q15 ................................................ 200

Quadro 29 – Análise semiótica da unidade textual E4Q9 .................................................. 201

Quadro 30 – Análise semiótica da unidade textual E9Q8 .................................................. 203

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Quadro 31 – Análise semiótica da unidade textual E7Q5 .................................................. 204

Quadro 32 – Análise semiótica da unidade textual E2Q1 .................................................. 206

Quadro 33 – Análise semiótica da unidade textual E14Q13 ................................................ 207

Quadro 34 – Análise semiótica da unidade textual E11Q16 ................................................ 208

Quadro 35 – Análise semiótica da unidade textual E5Q1 .................................................. 209

Quadro 36 – Análise semiótica da unidade textual E4Q5 .................................................. 210

Quadro 37 – Análise semiótica da unidade textual E9Q9 .................................................. 211

Quadro 38 – Análise semiótica da unidade textual E8Q22 ................................................. 212

Quadro 39 – Análise semiótica da unidade textual E6Q6 .................................................. 213

Quadro 40 – Análise semiótica da unidade textual E3Q2 .................................................. 215

Quadro 41 – Análise semiótica da unidade textual E2Q3 .................................................. 217

Quadro 42 – Análise semiótica da unidade textual E15Q16 ................................................ 218

Quadro 43 – Análise semiótica da unidade textual E14Q17 ................................................ 221

Quadro 44 – Análise semiótica da unidade textual E11Q20 ................................................ 223

Quadro 45 – Análise semiótica da unidade textual E5Q3 .................................................. 225

Quadro 46 – Análise semiótica da unidade textual E4Q6 .................................................. 226

Quadro 47 – Análise semiótica da unidade textual E12Q1 ................................................. 227

Quadro 48 – Análise semiótica da unidade textual E9Q10 ................................................. 229

Quadro 49 – Análise semiótica da unidade textual E1Q5 .................................................. 230

Quadro 50 – Análise semiótica da unidade textual E15Q15 ................................................ 233

Quadro 51 – Análise semiótica da unidade textual E14Q16 ................................................ 236

Quadro 52 – Análise semiótica da unidade textual E11Q19 ................................................ 238

Quadro 53 – Análise semiótica da unidade textual E13Q6 ................................................. 240

Quadro 54 – Análise semiótica da unidade textual E9Q6 .................................................. 241

Quadro 55 – Análise semiótica da unidade textual E8Q20 ................................................. 242

Quadro 56 – Análise semiótica da unidade textual E6Q5 .................................................. 244

Quadro 57 – Análise semiótica da unidade textual E2Q4 .................................................. 246

Quadro 58 – Análise semiótica da unidade textual E11Q25 ................................................ 248

Quadro 59 – Análise semiótica da unidade textual E13Q20 ................................................ 250

Quadro 60 – Análise semiótica da unidade textual E4Q7 .................................................. 252

Quadro 61 – Análise semiótica da unidade textual E2Q7 .................................................. 253

Quadro 62 – Análise semiótica da unidade textual E14Q3 ................................................. 254

Quadro 63 – Análise semiótica da unidade textual E5Q5 .................................................. 256

Quadro 64 – Análise semiótica da unidade textual E4Q3 .................................................. 256

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Quadro 65 – Análise semiótica da unidade textual E7Q1 .................................................. 258

Quadro 66 – Análise semiótica da unidade textual E3Q1 .................................................. 259

Quadro 67 – Análise semiótica da unidade textual E15Q22 ................................................ 261

Quadro 68 – Análise semiótica da unidade textual E14Q23 ................................................ 264

Quadro 69 – Análise semiótica da unidade textual E11Q30 ................................................ 265

Quadro 70 – Análise semiótica da unidade textual E13Q48 ................................................ 267

Quadro 71 – Análise semiótica da unidade textual E12Q13 ................................................ 268

Quadro 72 – Análise semiótica da unidade textual E15Q23 ................................................ 269

Quadro 73 – Análise semiótica da unidade textual E14Q24 ................................................ 272

Quadro 74 – Análise semiótica da unidade textual E11Q31 ................................................ 274

Quadro 75 – Análise semiótica da unidade textual E13Q53 ................................................ 276

Quadro 76 – Análise semiótica da unidade textual E12Q14 ................................................ 277

Quadro 77 – Análise semiótica da unidade textual E15Q5 ................................................. 279

Quadro 78 – Análise semiótica da unidade textual E15Q18 ................................................ 282

Quadro 79 – Análise semiótica da unidade textual E11Q28 ................................................ 284

Quadro 80 – Análise semiótica da unidade textual E13Q32 ................................................ 286

Quadro 81 – Análise semiótica da unidade textual E14Q20 ................................................ 287

Quadro 82 – Análise semiótica da unidade textual E11Q22 ................................................ 288

Quadro 83 – Análise semiótica da unidade textual E13Q15 ................................................ 290

Quadro 84 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de educação da

categoria de análise educação escolar indígena ............................................................... 292

Quadro 85 – Síntese de discursos referentes à tematização mudanças na educação do povo

da categoria de análise interculturalidade ........................................................................ 296

Quadro 86 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de escola da

categoria de análise educação escolar indígena ............................................................... 297

Quadro 87 – Síntese de discursos referentes à tematização importância da escola na aldeia

da categoria de análise educação escolar indígena ........................................................... 300

Quadro 88 – Síntese de discursos referentes à tematização motivações para ser professor

da categoria de análise educação escolar indígena ........................................................... 303

Quadro 89 – Síntese de discursos referentes à tematização papel do professor na aldeia da

categoria de análise educação escolar indígena ............................................................... 305

Quadro 90 – Síntese de discursos referentes à tematização o que deve ser ensinado na

escola da aldeia da categoria de análise educação escolar indígena ............................... 307

15

Quadro 91 – Síntese de discursos referentes à tematização relação entre educação escolar

na aldeia e identidade cultural da categoria de análise interculturalidade....................... 309

Quadro 92 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de etnomatemática

da categoria de análise etnomatemática ........................................................................... 311

Quadro 93 – Síntese de discursos referentes à tematização como deve ser o ensino de

matemática na escola da aldeia da categoria de análise etnomatemática ........................ 314

Quadro 94 – Síntese de discursos referentes à tematização importância de se trabalhar

com os saberes matemáticos paiter na escola da categoria de análise etnomatemática .. 317

Quadro 95 – Síntese de discursos referentes à tematização importância dos velhos para o

ensino de saberes da tradição da categoria de análise educação escolar indígena ......... 322

Quadro 96 – Síntese de discursos referentes à tematização estado da cultura paiter em cem

anos da categoria de análise interculturalidade ............................................................... 326

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LISTA DE SIGLAS

ABA – Associação Brasileira de Antropologia

ANAI – Associação Nacional de Apoio ao Índio

CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação

CIMI – Conselho Indigenista Missionário

CNE – Conselho Nacional de Educação

CNEEI – Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena

CPI/SP – Comissão Pró-Índio de São Paulo

CTI – Centro de Trabalho Indigenista

DEINTER – Departamento de Educação Intercultural

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

IGPHA – Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

LBA – Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia

MAIC – Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio

MEC – Ministério da Educação

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organização Não-Governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

OPAN – Operação Anchieta

OPIRON – Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato

Grosso

PNE – Plano Nacional de Educação

RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

REDD+ – Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação

SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão

SEDUC – Secretaria de Estado da Educação

SEIF – Secretaria de Educação Infantil e Fundamental

SIL – Summer Institute of Linguistics

SPI – Serviço de Proteção aos Índios

17

SPILTN – Serviço de Proteção e Localização dos Trabalhadores Nacionais

UCG – Universidade Católica de Goiás

UEA – Universidade do Estado do Amazonas

UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso

UFPA – Universidade Federal do Pará

UNI – União das Nações Indígenas

UNIR – Fundação Universidade Federal de Rondônia

18

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 22

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS OU UMA TENTATIVA DE COMPREENDER OS

CAMINHOS QUE LEVARAM À PESQUISA ............................................................... 28

1.1 A Infância, o Ensino Fundamental e a Iniciação ao Trabalho .................................. 30

1.2 O Magistério ............................................................................................................. 38

1.3 A Docência e a Licenciatura em Matemática ........................................................... 43

1.4 A Especialização em Educação Matemática ............................................................. 48

1.5 O Mestrado em Educação ......................................................................................... 49

1.6 O Doutorado da REAMEC ...................................................................................... 53

1.7 A Docência Universitária e a Licenciatura Intercultural .......................................... 54

1.8 A Definição da Pesquisa ........................................................................................... 55

2 ESTABELECENDO ENCONTROS OU O INÍCIO DE UMA NOVA

CAMINHADA ................................................................................................................... 65

2.1 O (re)encontro com o Povo Paiter ............................................................................ 65

2.2 Tão perto e tão longe: a consciência do desconhecimento entre vizinhos

amazônicos ...................................................................................................................... 66

2.3 Nós Mesmos e os Outros: quatro décadas de contato e resistência .......................... 68

2.4 Saberes e Fazeres Matemáticos Paiter ..................................................................... 78

2.5 O encontro com novos referenciais teóricos ............................................................. 86

3 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: FACES DA ESCOLA NA ALDEIA .......... 88

3.1 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil nos séculos XVI a XIX: a face

catequizadora e civilizatória da escola na aldeia ............................................................ 88

3.2 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no início do século XX: a face

positivista e civilizatória da escola na aldeia .................................................................. 94

3.3 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil na Ditadura Militar: a face

bilíngue e protestante da escola na aldeia ...................................................................... 97

3.4 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no período 1970-1988:

mobilização indígena e a reivindicação de uma nova face para a escola na aldeia ....... 98

3.5 Educação Escolar Indígena no Brasil Pós-Constituição de 1988: sai a FUNAI, entra

o MEC e propõe-se uma face diferenciada, bilíngue, específica e intercultural para a

escola na aldeia ............................................................................................................... 99

19

3.6 Escola na aldeia como espaço de hibridação cultural ............................................. 102

4 CULTURA E IDENTIDADE CULTURAL: A PERSPECTIVA DOS ESTUDOS

CULTURAIS .................................................................................................................... 107

4.1 Cultura: do sentido antropológico aos Estudos Culturais ....................................... 108

4.2 O conceito de hibridismo cultural ........................................................................... 114

4.3 Mudanças culturais na perspectiva do hibridismo .................................................. 115

4.4 Identidade cultural: da essência fixa à possibilidade cambiante ............................. 117

4.5 Hibridação cultural e a multiplicação de identidades ............................................. 119

4.6 A diferença como categoria mobilizadora da resistência cultural em sociedades

indígenas ....................................................................................................................... 121

4.7 A etnicidade como resultado do exercício da diferença em contextos

interculturais ................................................................................................................ 122

5 ETNOMATEMÁTICA: UMA CONCEPÇÃO TRANSFORMADORA ................ 126

5.1 Duas formas distintas de se entender Etnomatemática ........................................... 126

5.2 Etnomatemática: contextos, origens e definições ................................................... 128

5.3 Perspectivas da Etnomatemática ............................................................................. 134

6 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PRODUÇÃO E ANÁLISE DE

DADOS ............................................................................................................................. 141

6.1 Ações preliminares ao início da produção de dados ............................................... 146

6.2 Os espaços de produção de dados ........................................................................... 148

6.3 Os dados produzidos ............................................................................................... 154

6.4 Categorias de análise de dados ............................................................................... 155

6.5 O Percurso Gerativo de Sentido como simulacro metodológico ............................ 160

6.6 Dispositivo prático para análise de unidades textuais ............................................. 164

6.7 O movimento de redução dos dados ....................................................................... 166

7 UM FAZER INTERPRETATIVO SOBRE OS DADOS PRODUZIDOS: ANÁLISE

SEMIÓTICA DE UNIDADES TEXTUAIS .................................................................. 167

7.1 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de

etnomatemática da categoria de análise etnomatemática ............................................. 168

7.2 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização como

deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia da categoria de análise

etnomatemática ............................................................................................................. 183

20

7.3 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância de se

trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da categoria de análise

etnomatemática ............................................................................................................. 187

7.4 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de

educação da categoria de análise educação escolar indígena ...................................... 197

7.5 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de

escola da categoria de análise educação escolar indígena ........................................... 206

7.6 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância da

escola na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena ........................... 217

7.7 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância dos

velhos para o ensino de saberes da tradição da categoria de análise educação escolar

indígena ......................................................................................................................... 230

7.8 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização o que deve ser

ensinado na escola da aldeia da categoria de análise educação escolar indígena....... 246

7.9 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização motivações para

tornar-se professor da categoria de análise educação escolar indígena ...................... 253

7.10 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização papel do professor

na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena ...................................... 261

7.11 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização estado da cultura

paiter em cem anos da categoria de análise interculturalidade .................................... 269

7.12 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização relação entre

educação escolar na aldeia e identidade cultural da categoria de análise

interculturalidade ......................................................................................................... 278

7.13 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização mudanças na

educação do povo da categoria de análise interculturalidade ...................................... 287

8 ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO

ESCOLAR PAITER ........................................................................................................ 291

8.1 Um fazer interpretativo final sobre sínteses de discursos ....................................... 292

8.1.1 Concepções de educação ................................................................................. 292

8.1.2 Mudanças na educação do povo ...................................................................... 295

8.1.3 Concepções de escola ...................................................................................... 296

8.1.4 Importância da escola na aldeia ...................................................................... 299

8.1.5 Motivações para ser professor ......................................................................... 303

8.1.6 Papel do professor na aldeia ............................................................................ 304

21

8.1.7 O que deve ser ensinado na escola da aldeia ................................................... 306

8.1.8 Relação entre educação escolar na aldeia e identidade cultural ...................... 309

8.1.9 Concepções de etnomatemática ...................................................................... 310

8.1.10 Como deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia ......................... 314

8.1.11 Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na

escola ........................................................................................................................ 317

8.1.12 Importância dos velhos para o ensino de saberes da tradição ....................... 322

8.1.13 Estado da cultura paiter em cem anos ........................................................... 325

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 328

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 333

APÊNDICES .................................................................................................................... 341

Apêndice A – Termo de consentimento livre e esclarecido ......................................... 342

Apêndice B – Questionário de caracterização dos participantes da pesquisa ............... 343

Apêndice C – Questionário de caracterização do espaço da pesquisa .......................... 344

Apêndice D – Questionário sobre concepções de escola, educação e

etnomatemática ............................................................................................................ 345

Apêndice E – Entrevistas .............................................................................................. 346

22

INTRODUÇÃO

- Meu pequeno Suruí!

(Avô Expedito)

Assim me tratava meu avô, quando criança, ao visitar sua casa no início dos anos

1990. O saudoso velho nordestino, acolhendo-me nos braços, brincava carinhosamente

com os traços fisionômicos “indígenas” do neto, nascido na Amazônia, após a migração da

família para o Sul do Brasil e posterior fixação em Rondônia no final da década de 1970.

Duas décadas após ter minha “etnicidade” definida por meu avô, encontro-me acolhido

entre os Suruí, trabalhando, estudando, pesquisando, convivendo e aprendendo em seu

território, a Terra Indígena Sete de Setembro, localizada sobre a divisa entre os estados de

Rondônia e Mato Grosso.

Paiter é como o povo se autodefine, significando com esse nome “Gente de

verdade” ou “Nós mesmos”. Suruí foi a denominação dada por antropólogos e pela FUNAI

após o contato, ocorrido em 1969, e é como são mais reconhecidos fora de seu território,

na literatura acadêmica e na mídia. Atualmente é comum se observar, nas falas e

conversações nas aldeias, diferentes expressões de autodenominação, tais como Povo

Paiter, Povo Paiter Suruí, Povo Suruí Paiter ou Povo Suruí. Em respeito a sua

autodenominação original, utilizarei o termo Paiter para fazer referência ao povo, e paiter

como adjetivo para caracterizar o que lhe é próprio2.

Minha atual convivência com os Paiter teve início no ano de 2011, proporcionada

por condições de trabalho e de estudo. Neste ano, ingressei como professor no

Departamento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia – UNIR,

passando a integrar o corpo docente que atua no curso de Licenciatura em Educação Básica

Intercultural, voltado para a formação de professores indígenas, e no qual já se

encontravam matriculados dezessete estudantes paiter. A atuação profissional nesse espaço

passou a demandar-me novos estudos teóricos e uma vivência-campo que foram decisivos

2 Conforme Kahn e Azevedo (2004), uma convenção da Associação Brasileira de Antropologia, de 1954, estabelece que os nomes dos povos indígenas sejam escritos em maiúsculas, mas que, quando se referem às suas línguas ou quando usados como adjetivos, sejam grafados em minúsculas. Essa convenção também estabelece que os nomes não sofram flexão de número e gênero.

23

para reorientar minha formação doutoral. Tendo ingressado no doutorado com um projeto

de pesquisa relacionado à formação de professores na rede federal de educação

tecnológica, vi-me circundado por um novo universo cultural e político assim que iniciei

meu trabalho docente junto ao curso de formação de professores indígenas na

universidade. Essa nova experiência de vida, permeada de desafios oriundos da busca de

uma prática docente no âmbito da educação intercultural, tornou-se fundamental para a

definição de um novo projeto de pesquisa em minha formação doutoral, assumindo a partir

de então como objeto de pesquisa práticas discursivas de professores indígenas ao

projetarem para a educação escolar existente em suas comunidades o ensino de saberes e

fazeres próprios de suas culturas, em particular os saberes e fazeres matemáticos, dentro de

um movimento voltado para a ressignificação da própria escola na aldeia.

Por ter cursado todo o doutorado em serviço, uma vez que não me afastei de minhas

atividades funcionais na universidade, exceto nos períodos de oferta de disciplinas nos três

polos que compõem a Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática –

REAMEC (UFMT, UFPA e UEA), a vivência-campo para produção de dados que

possibilitassem um fazer interpretativo sobre o objeto de pesquisa se deu entre atividades

de outros projetos de pesquisa e de extensão, a partir do ano de 2012, vinculados à minha

atuação no Departamento de Educação Intercultural da UNIR. Desse modo, o

desenvolvimento das atividades que resultaram na presente tese, por diversos momentos,

confundiu-se com minha própria prática docente na universidade, caracterizando-se assim

a experiência vivenciada como sendo genuinamente uma formação em serviço.

Nesse sentido, a pesquisa desenvolvida no doutorado relacionou-se

fundamentalmente aos desafios surgidos ao ter que trabalhar com disciplinas de

“Etnomatemática e Temas Fundamentais em Matemática” na licenciatura intercultural,

constatando que as referências que até então trazia de minha formação acadêmica eram

insuficientes para me auxiliarem na compreensão do novo universo no qual me vi imerso

na universidade entre estudantes de dezessete povos indígenas de Rondônia e Noroeste de

Mato Grosso. A existência de diferenças culturais entre os povos indígenas,

particularidades na constituição de saberes e fazeres tradicionais, e diferentes histórias de

contato e intercâmbio são propriedades que permeiam o fazer docente em um curso de

formação de professores indígenas e impõem-nos, como formadores, grandes desafios

teóricos e práticos.

Assim, buscando superar meu desconhecimento e minha ignorância dos aspectos

que permeiam o universo da educação escolar indígena, intentei pesquisar práticas

24

discursivas dos próprios professores indígenas com os quais convivo, em particular os

professores paiter, considerando-as como janelas de acesso a ideias e pressupostos

relacionados a visões de mundo, interesses e tensões culturais em que se encontram

inseridos os sujeitos. Para tanto, busquei fundamentar teoricamente a pesquisa a partir de

um diálogo com ideias de autores das áreas de Educação Escolar Indígena, Estudos

Culturais e Etnomatemática, acrescentado assim à minha formação acadêmica novas

referências de áreas relativamente distantes daquela que caracterizava originalmente minha

formação inicial.

Como forma de apresentar o percurso teórico e metodológico até chegar aos

resultados da pesquisa, a tese está organizada em oito seções. A ordem das seções reflete,

de certa maneira, a forma mais próxima do real movimento ocorrido durante minha

formação doutoral, incluindo, intencionalmente, uma seção inicial que extrapola o restrito

período do doutorado em si, estabelecendo relações com o próprio desenrolar de minha

vida.

Assim, na primeira seção, intitulada Considerações iniciais ou uma tentativa de

compreender os caminhos que levaram à pesquisa, fugindo de certas convenções que

perfazem a escrita de textos acadêmicos ou científicos, busco refletir de forma

autobiográfica sobre minha condição de pesquisador na contemporaneidade e as escolhas

que culminaram com a realização da pesquisa de doutorado, vinculando todavia minhas

ideias e pressupostos presentes na tese a vivências experienciadas ao longo de toda a vida.

Destaco assim aspectos de minha constituição enquanto ser humano nascido no contexto

amazônico que imprimem ao texto subjetividades relacionadas a minha formação

acadêmica e política proporcionada desde muito antes da própria formação doutoral, mas

também aquelas que nesse período se aprofundaram, modificaram-se e surgiram como

elementos novos. Nesse movimento de ir criticamente ao passado e regressar ao presente,

busco apresentar de forma contextualizada e histórica a escolha por desenvolver a pesquisa

com professores paiter e a origem das questões que compõem a problemática da pesquisa e

seus objetivos.

Na segunda seção, intitulada Estabelecendo encontros ou o início de uma nova

caminhada, intento fazer uma descrição contextualizada de meu (re)encontro com o povo

Paiter, refletindo sobre o atual percurso histórico desse povo a partir do recente contato

com a sociedade não-indígena, analisando o contexto em que se deu o contato, o

desenvolvimento do pós-contato, a falência de instituições tradicionais, o movimento de

resistência cultural frente à sociedade colonizadora, e os resultados iniciais de pesquisas

25

em andamento pelos próprios professores paiter a respeito de saberes e fazeres

matemáticos de seu povo. A partir das demandas originadas nesse (re)encontro com os

Paiter, busco explicar outro encontro referente aos novos estudos teóricos com os quais me

vi envolvido na busca de compreender minimamente o universo cultural e político que

permeia a formação de professores indígenas e no qual me vi imerso a partir da atuação na

licenciatura intercultural.

Na terceira seção, intitulada Educação Escolar Indígena: faces da escola na aldeia,

analiso e descrevo, com base em referências bibliográficas, as faces que caracterizaram e

caracterizam a educação escolar entre os povos indígenas no Brasil, os diferentes objetivos

dessa educação, os principais atores e instituições que para isso convergiram em diferentes

contextos e períodos históricos. Então, a partir do atual contexto, busco discutir a escola na

aldeia como um possível espaço de hibridação cultural.

Na quarta seção, intitulada Cultura e identidade cultural: a perspectiva dos Estudos

Culturais, apresento uma análise dos conceitos de cultura e identidade cultural, refletindo

sobre a mudança de perspectiva estabelecida por teóricos dos Estudos Culturais em relação

a abordagens que caracterizaram a modernidade. Para tanto, busco explorar teoricamente

os subconceitos de interculturalidade e hibridismo cultural, apoiando-me principalmente

em autores tais como Canclini (2011), Bhabha (2010), Hall (2003; 2011) e Fleuri (2003).

Na quinta seção, intitulada Etnomatemática: uma concepção transformadora,

abordo definições, origens e contextos da Etnomatemática, bem como busco explorar as

diferentes perspectivas que caracterizam a Etnomatemática em seu desenvolvimento.

Então, intento refletir sobre a existência de saberes e fazeres matemáticos em diferentes

contextos e culturas, vinculando-os a modos próprios de pensar, fazer e produzir de cada

povo ou grupamento humano, tomando por base ideias de autores tais como D’Ambrosio

(1990, 2004, 2009, 2011), Barton (2006), Vergani (2007) e Gerdes (2002, 2010).

Na sexta seção, intitulada Aspectos metodológicos da produção e análise de dados,

descrevo as ações que precederam o início da produção de dados na vivência-campo, os

espaços dessa produção, a caracterização dos participantes e um panorama geral a respeito

dos dados produzidos. Em seguida, descrevo a forma adotada para se elegerem, a

posteriori, as categorias etnomatemática, educação escolar indígena e interculturalidade

como categorias de análise de dados, assim como busco descrever a técnica de análise de

dados adotada com aporte no percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva.

Na sétima seção, intitulada Um fazer interpretativo sobre os dados produzidos:

análise semiótica de unidades textuais, apresento as análises semióticas de setenta e sete

26

unidades textuais escolhidas do universo de dados produzidos a partir de treze

tematizações das categorias de análise relacionadas às questões da problemática de

pesquisa. A fim de se identificar os discursos presentes em práticas discursivas de

professores paiter geradas em entrevistas semiestruturadas ao longo da vivência-campo, a

análise de cada unidade textual selecionada foi realizada dentro de um quadro por nós

elaborado com aporte no percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva (ou

greimasiana). Assim, na análise de cada unidade textual, contemplaram-se no quadro de

análise a pergunta enunciada na entrevista, uma autoanálise da pergunta, com destaque

para o fazer persuasivo do pesquisador, a resposta enunciada pelo entrevistado e

considerada como um texto, a identificação de categorias semânticas eufóricas e disfóricas

e a oposição semântica fundamental presentes no nível fundamental do plano de conteúdo,

a análise da resposta no nível narrativo do plano de conteúdo a partir das categorias

semânticas e da oposição semântica fundamental e, por último, a identificação do discurso

presente no nível discursivo do plano de conteúdo.

Na oitava seção, intitulada Etnomatemática e Interculturalidade na Educação

Escolar Paiter, retomo os discursos dos professores paiter identificados na seção anterior e

os organizo em blocos de acordo com as tematizações das categorias de análise, a fim de

realizar uma análise complementar, com apoio nos principais conceitos abordados nos

referenciais teóricos adotados na pesquisa, na direção de compor uma síntese final como

resposta às questões da problemática original de investigação. Assim, busco discutir, a

partir da análise das sínteses de discursos dos professores paiter, como a introdução ao

ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter nas escolas das aldeias por eles projetada

pode contribuir para uma ressignificação de práticas pedagógicas institucionalizadas no

contexto da educação escolar indígena, e sua potencial relação com o fortalecimento

identitário e com a promoção da etnicidade do povo Paiter. Desse modo, são analisadas

trezes sínteses de discursos presentes em práticas discursivas de professores paiter

referentes a Concepções de educação, Mudanças na educação do povo, Concepções de

escola, Importância da escola na aldeia, Motivações para ser professor, Papel do

professor na aldeia, O que deve ser ensinado na escola da aldeia, Relação entre educação

escolar na aldeia e identidade cultural, Concepções de etnomatemática, Como deve ser o

ensino de matemática na escola da aldeia, Importância de se trabalhar com os saberes

matemáticos paiter na escola, Importância dos velhos para o ensino de saberes da

tradição, e Estado da cultura paiter em cem anos.

27

Por fim, apresento considerações finais sobre o desenvolvimento da pesquisa,

refletindo sobre novas perspectivas que a vivência com os professores paiter me

proporcionaram, desde uma reflexão teórica sobre a etnomatemática até uma

transformação de postura em minha própria atuação no curso de formação de professores

indígenas na universidade, ao perceber a necessária mudança quanto às preocupações que

permeiam meu fazer enquanto estudante, docente e pesquisador em Educação Matemática

na Amazônia.

28

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS OU UMA TENTATIVA DE COMPREENDER OS

CAMINHOS QUE LEVARAM À PESQUISA

Esta parte da redação da tese, embora esteja aqui no início, é a última que organizo,

após quatro anos de estudos, leituras, orientações, debates, incertezas, dúvidas, angústias,

alegrias, descobertas, medos e outros sentimentos inerentes ao processo do doutoramento.

Não era um componente previsto para a versão final do texto, mas foi se tornando quase

inevitável à medida que as palavras finais da última seção eram pensadas e escritas, e as

lembranças das sugestões, orientações e críticas recebidas ao longo do desenvolvimento da

pesquisa iam ficando cada vez mais latentes, revelando um sentimento de incompletude.

A decisão de escrever as linhas dessa seção inicialmente não foi fácil de ser tomada

porque imprimiriam à tese um caráter não muito convencional, frente ao modelo padrão

que geralmente se espera de um texto acadêmico ou científico, principalmente quanto à

impessoalidade e à neutralidade do pesquisador. A tomada de decisão foi facilitada,

entretanto, pela compreensão que me foi proporcionada ao longo dos estudos teóricos do

doutorado e do desenvolvimento da pesquisa de que, antes de ser um sujeito a observar um

objeto de investigação dado a priori, distanciado, neutro, objetivo, fragmentado, possível

de ser completamente compreendido pela aplicação de um método também dado a priori,

sinto-me isto sim parte do fenômeno pesquisado, imerso desde meu nascimento no

ambiente da pesquisa. Sinto-me tão ligado ao universo da pesquisa e por ele impregnado, a

ponto de não conseguir mais conceber que se trate de um trabalho individual, de uma

construção intelectual isolada, mas essencialmente de uma produção coletiva,

contextualizada, dela tendo participado diferentes sujeitos interligados pela história e pelo

contexto, jamais como objetos isolados de investigação. Objetos não falam, não se

manifestam, não sentem. Pessoas sim exprimem suas ideias, pensamentos, impressões,

sensações, discursos. Objetos não fazem história. A história é o resultado do fazer humano.

Pessoas, sociedades, grupos humanos fazem história e dela participam de diferentes

formas, em diferentes posições que, em muitos casos, interagem, inter-relacionam-se,

entram em conflito, complementam-se, dão origem a pessoas novas, sociedades novas,

novos grupos humanos.

29

Assim, na busca de uma explicação para o que me levou a desenvolver essa

pesquisa, questão muitas vezes levantada pelas diversas pessoas que acompanharam seu

desenvolvimento e para isso contribuíram, percebi que não bastava identificar elementos

justificantes no recorte temporal do processo de doutoramento. A docência, a Educação

Matemática, o doutorado, a Etnomatemática, a Educação Escolar Indígena, os Paiter

compõem um conjunto multidimensional da minha vida e de minha formação acadêmica

que só pode ser melhor justificado e compreendido se a ele forem acrescentados outros

momentos, personagens e outras experiências vivenciadas ao longo de toda a vida. Muitas

decisões e variados acontecimentos anteriores me levaram até o doutorado, influenciando

as escolhas que culminaram com a pesquisa realizada.

É por perceber o caráter histórico da própria tese, que sinto a necessidade de me

apresentar como sujeito na pesquisa, reconhecendo a impossibilidade de afastar a

subjetividade do pesquisador e assumindo que meu percurso de vida, minha formação

escolar, minha atuação profissional e as diversas experiências vivenciadas até o momento

influenciaram decisivamente a produção e a organização do conteúdo exposto ao longo das

seções desse trabalho. Reconheço agora, também como resultado de minha formação

acadêmica, como aprendizado proporcionado por meus humanizantes professores-

pesquisadores no processo de doutoramento, que assumir nossa subjetividade enquanto

pesquisadores e a presença dela em nossas produções, em nossa escrita, não significa

perder de vista todo e qualquer fazer que se queira científico, mas antes significa

reconhecer no próprio fazer científico seu caráter humano, contingente, impregnado de

valores, de escolhas, jamais algo neutro e completamente objetivo.

Identificar-me como sujeito amazônico de nascimento, trabalhador e estudante da

Educação Matemática nessa região também tem um peso simbólico sobre a tese. Envolver-

me com a Etnomatemática, estudar e aprender com professores indígenas novas

possibilidades teóricas de compreensão das relações interculturais possíveis de permearem

a educação escolar indígena na Amazônia imprimem ao texto uma identidade que também

deve ser considerada em sua leitura. Por tudo isso, apresento nessa seção uma síntese de

minha história pessoal de vida contextualizando-a nos espaços de minha formação,

entendendo que Ser, Estar e Pensar são estados e atos que se inter-relacionam tão

intimamente, a ponto de se poder concluir que todo texto deveria ser precedido de notas

sobre a vida do autor no contexto mesmo em que ela se dá, facilitando com isso aos outros,

ou aos outros de nós mesmos, a compreensão daquilo que fazemos, pensamos e

escrevemos. Sendo assim, passo à minha narrativa, estando ciente de que:

30

Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos significados. Assim, a narrativa não é a verdade literal dos fatos, mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode ser transformadora da própria realidade (CUNHA, 1997 apud NEVES, 2009, p. 32).

1.1 A Infância, o Ensino Fundamental e a Iniciação ao Trabalho

Segundo filho de um casal de jovens paranaenses que migraram para a Amazônia

em busca de melhores condições de vida e como alternativa de fuga das condições de

miséria que muitos trabalhadores do Centro-Sul do país foram submetidos na segunda

metade do século XX, nasci em Ji-Paraná, interior de Rondônia, em meados de 1984, onde

vivi meus dois primeiros anos. Meu pai, um bom mecânico de automóveis; minha mãe,

uma dona de casa dedicada aos filhos; meu irmão, sete anos mais velho, arteiro, mas

cuidadoso comigo, como deve ser o irmão mais velho.

Nessa época, Ji-Paraná estava recebendo milhares de migrantes, em sua maioria

trabalhadores rurais empobrecidos das regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país,

atraídos pela promessa de distribuição de terras pelo governo. Como o número de famílias

que chegavam à região era muito maior do que o número de lotes de terra distribuídos

pelos projetos de assentamento do governo, o resultado foi o intenso e desordenado

crescimento de núcleos urbanos na região, destino de muitas famílias que não conseguiram

acesso à terra e tiveram que lutar, a partir de então, pela sobrevivência nos próprios recém

criados núcleos urbanos, impossibilitados estavam de retornar às suas regiões de origem.

Meus pais, tios e avós paternos enfrentaram este último destino.

Originário de famílias de tradição protestante, durante minha infância fui iniciado

por meus pais na observância dos costumes e da cosmologia judaico-cristã, tendo minha

iniciação espiritual se submetido às regras da comunidade religiosa e da igreja. Felizmente,

embora submetido às duras regras de conduta solicitadas por meus pais, eles sempre

souberam usar do diálogo para a ação de nos educar, a mim e a meu irmão. Isso me

renderia boas reflexões mais tarde, no estudo das formas de se educar e da não necessidade

do uso da violência.

Aos dois anos de idade, mudei-me com a família para a cidade de Presidente

Médici, Rondônia, de onde guardo minhas primeiras recordações: a casa azul, a rua de

31

terra batida, os grandes bueiros de metal no pátio da prefeitura, o pé de limão e as

frondosas mangueiras no quintal de casa, o pequeno riacho do outro lado da rua.

Em meus primeiros anos de vida, não tive acesso à televisão, pois meus pais não a

possuíam. O lado positivo disso talvez tenha sido o fato de que pude descobrir o prazer da

ficção na leitura, tão logo aprendi as primeiras palavras escritas. Por ser o meu irmão sete

anos mais velho que eu, já havia acumulado uma considerável coleção de histórias em

quadrinhos, que aos poucos fui herdando e me deliciando com esse novo mundo que se

abria a mim, com suas aventuras e personagens. Assim teve início minha vida de leitor.

Passado pouco mais de um ano, novamente estávamos de mudança. Dessa vez, para

um lugar ainda mais distante, isolado e de difícil acesso. Mudamo-nos para Rondolândia,

Mato Grosso, onde passaria os próximos dez anos de minha vida, aprenderia muito e

adquiriria experiências riquíssimas para toda a vida. Rondolândia era um pequeno vilarejo,

distrito de Aripuanã, localizado na fronteira Oeste da Terra Indígena Sete de Setembro,

com apenas uma dúzia de casas, de modo que todos os habitantes se conheciam e

compartilhavam das dificuldades geradas pela total ausência do Estado, que se fazia

presente apenas nas pesquisas do Censo ou no período eleitoral, para a arregimentação de

eleitores.

As novas atividades econômicas de meus pais me proporcionaram conhecer novas

figuras humanas, com as quais ainda não havia tido contato. Meu pai, agora dono do único

velho ônibus do lugar, transportava variados tipos humanos e, hoje, revisitando minhas

memórias de impressões de infância, lembro-me dos colonos com suas expressões serenas,

porém sofridas, de peles agredidas pelo sol, esperando pacientemente à beira da sinuosa

estrada pelo ônibus de meu pai, a fim de ir à cidade mais próxima. Alguns para vender a

produção de suas terras, que incluía levar à cidade desde grãos até porcos e galinhas vivas,

outros para buscar mantimentos industrializados, remédios e ferramentas indispensáveis à

continuação da vida no campo. Minha mãe, agora a única comerciante do vilarejo, atendia

em seu pequeno comércio aos seringueiros e colonos mais próximos, mas também, e isso

muito me impressionou nos primeiros momentos, a membros dos povos indígenas Zoró e

Suruí, cujos territórios, a essa altura já demarcados, embora em proporções muito menores

do que as tradicionalmente usadas, ficavam nas proximidades. Por vezes, sempre próximo

de minha mãe, esforçava-me por entender o que os pequenos indiozinhos diziam uns aos

outros em suas brincadeiras do outro lado do balcão do “bolicho”, enquanto seus pais

pediam para embrulhar todo tipo de coisa que havia disponível para comprar. Lembro-me

também dos não indígenas que sempre acompanhavam os indígenas às compras.

32

Futuramente, já na escola, adquiriria elementos que possibilitariam uma análise crítica

desses momentos e da companhia dos “brancos” entre as comunidades indígenas.

Que representação de índio se tinha nessa época em Rondolândia? Pairava no ar

ainda a tensão dos recentes conflitos pela terra entre colonos e povos indígenas da região.

Sobre o solo do vilarejo, poucos anos atrás teriam existido aldeias, possivelmente dos

povos Paiter ou Zoró, sendo comum encontrarmos cerâmicas indígenas nas margens dos

rios onde nos banhávamos e pescávamos, assim como no solo das roças do entorno (Teria

a minha casa sido construída sobre o local de uma maloca paiter destruída há poucos anos

atrás?). Na imaginação dos pequenos, a presença dos indígenas em Rondolândia

representava perigo, pois eram “devoradores de criancinhas”, conforme insinuavam as

narrativas dos adultos. Medo foi o primeiro sentimento que tive em relação aos povos

indígenas. Sem ter os elementos teóricos para uma compreensão crítica da tragédia humana

que o encontro entre pobres não-indígenas e indígenas significava na Amazônia, a pequena

população não-indígena de Rondolândia buscava nessa época manter uma postura de

distanciamento, de diferenciação e, por vezes, de defesa sempre que o vilarejo recebia a

visita de indígenas.

Impulsionado por uma onda de migrações, o vilarejo cresceu, e já no início da

década de 1990 foi necessário construir a primeira escola para atender as crianças do lugar.

Como Rondolândia ficava isolada do restante de Mato Grosso, a escola, de uma única sala,

foi construída e assistida pelo município de Ji-Paraná, com o qual Rondolândia fazia

divisas. De início, formaram-se duas turmas de alunos de 1ª e 2ª série do Ensino

Fundamental. Como à época ainda não tivesse idade para ser matriculado, e não havia

turmas de pré-escolares, fui incentivado por minha mãe a ir à escola como ouvinte aos

cinco anos de idade. De início, tive a companhia de meu irmão, que me levava e me

ajudava a conter o choro de desespero de não sei o quê. A escola, ao mesmo tempo em que

me instigava e me empolgava, com seus cartazes na parede, fazendo-me sentir aluno, com

a pequena mochila nas costas, junto aos outros meninos maiores, assustava-me pela

ausência da segurança e do sentido de ambiente familiar que minha casa me

proporcionava. Mas esse medo logo se dissipou, graças ao carisma, atenção e dedicação de

minha primeira professora. Professora Amélia Santana, com seus gestos delicados, com

sua paciência infinita, soube conduzir a mim e a todos os alunos daquela primeira turma ao

mundo das letras, dispondo para tanto de apenas alguns cartazes, um velho quadro-negro,

algumas cartilhas e muito amor. Ao final do ano de 1990 já estava lendo e escrevendo e,

com seis anos completos, pude ser matriculado oficialmente na 1ª série em 1991. Pelos

33

dois anos seguintes, fui educado pela doce professora Amélia que me serviria de

inspiração, anos mais tarde, já como professor em sala de aula.

Com o aumento da demanda por educação escolar, a escolinha precisou ser

ampliada, o que foi feito pela própria comunidade, construindo-se outra sala, dessa vez de

pau-a-pique, e novos professores foram contratados. Para minha sorte, e a de meus amigos

de 2ª série, as lideranças políticas de Rondolândia começaram a despontar e a procurar

pelo Estado, a fim de que este pudesse oferecer maior assistência ao vilarejo. Assim, antes

que completássemos o ano de 1992, construiu-se uma nova escola, dessa vez com várias

salas de aula, um espaço para a prática de esportes e uma pequena biblioteca. Desse modo,

comecei minha 3ª série numa escola “enorme”, e, para minha tristeza, com novos

professores. Professora Amélia não mais pôde nos ensinar, pois a escola havia passado

para a responsabilidade do município de Aripuanã, que não a contratou.

Nessa época, Rondolândia ainda não possuía uma rede de energia elétrica, de modo

que as únicas casas iluminadas por lâmpadas e que possuíam aparelhos de televisão eram

aquelas com geradores movidos a motores a diesel, ligados somente a noite durante duas

ou três horas, ou energia proveniente de baterias. Isso promovia um fato curioso aos olhos

de quem era de fora, e que agora, analisando essa situação, verifico que a ausência de

energia elétrica em muitas casas não era elemento de segregação social. Curiosamente,

praticamente todas as famílias se viam representadas na reunião que se fazia a partir das 18

horas em cada um dos dois bares que possuíam televisão. Em torno dos aparelhos se fazia

uma organização de modo que, à frente, ficavam sentadas ao chão as crianças e menores,

logo atrás vinham os imediatamente maiores, também sentados ao chão, e finalmente os

adultos, acomodados em tamboretes e bancos de madeira. Integravam os telespectadores

também os professores que não trabalhavam no período noturno. A essa altura,

aproveitando de certa liberalização na minha educação religiosa, também pude começar a

assistir às primeiras telenovelas, aos primeiros telejornais e filmes, integrando o grupo de

curiosos e fascinados que se formava à noite em frente aos aparelhos de televisão em um

dos dois bares de Rondolândia. A partir de então, minhas referências se ampliaram. Novos

valores, novos padrões de comportamento veiculados pela televisão, inexistentes até então

no contexto do vilarejo, passaram a compor meu imaginário e representações de mundo.

Nos anos imediatamente posteriores, pude desfrutar dos elementos que um lugar semi-rural

pode oferecer, que inclui a tranquilidade, a proximidade entre as pessoas e o contato com a

natureza.

34

De meados da década de 1990 em diante, com a mudança de atividade econômica

de meu pai, fui iniciado no mundo do trabalho, ajudando-o na extração de madeira das

florestas nas proximidades do vilarejo. Isso incluiu, por certo período, a compra de madeira

de comunidades indígenas no entorno de Rondolândia, e essa foi minha segunda

oportunidade de contato com os povos indígenas. Durante as férias escolares, ia com meu

pai em seu velho caminhão “toreiro” para o interior dos territórios dos povos Arara ou

Suruí, onde ficávamos acampados durante dias, na companhia de integrantes das

comunidades indígenas e também de não-indígenas, realizando a extração e o comércio de

madeiras. Mais tarde, faria uma análise crítica destes momentos, percebendo que tais ações

contribuíam para a perpetuação da exploração a que os povos indígenas foram submetidos

desde a chegada dos colonizadores europeus, sendo, em particular, parte da história recente

da colonização da Amazônia. No entanto, naquela época, entendia aquela atividade como

um trabalho de subsistência, tanto para os trabalhadores não-indígenas, quanto para os

integrantes das comunidades indígenas envolvidos. A aparente abundância de floresta do

entorno de Rondolândia e a demanda de madeiras proporcionada por empresas madeireiras

de Ji-Paraná estimulavam muitos trabalhadores a trocarem suas atividades econômicas

antes ocupadas para explorar essa nova fonte de renda. Mais uma vez, as condições

materiais de existência não possibilitavam a compreensão pelos participantes indígenas e

não-indígenas de que integravam um cenário trágico composto pelo encontro de diferentes

civilizações no contexto amazônico do final do século XX. Em Rondolândia dos anos

1990, encenavam-se a tragédia cultural, a tragédia ambiental e a tragédia humana que a

exploração capitalista da Amazônia significou.

Nessa época, a representação de indígena em Rondolândia já havia mudado

significativamente. Se antes havia um distanciamento velado entre a população do vilarejo

e os povos indígenas locais, agora a relação comercial entre os dois lados dava lugar a

novas representações. A extração de madeira das terras indígenas do entorno, cujo destino

eram grandes empresas madeireiras em Ji-Paraná, estreitaram as relações, sendo a

circulação de dinheiro, bens e mercadorias um grande catalizador destas mudanças. Com o

dinheiro obtido com a venda da madeira, os indígenas vizinhos abasteciam o comércio do

vilarejo, adquirindo todo tipo de mercadoria que desejavam e encontravam, na busca de

satisfazer necessidades de consumo que o novo estilo de vida que iam adotando lhes

impunham.

Embora com meus dez anos de idade já estivesse trabalhando, meus pais nunca me

deixaram faltar à escola, e também me esforçava para que isso não acontecesse. Isso

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porque, a essa altura, já havia descoberto a curiosidade pela ciência, o gosto pela história,

pela literatura, já havia descoberto o pequeno acervo de livros na biblioteca da escola e os

lido com o prazer de quem descobre um mundo novo. Assim foi minha infância, com

acesso a tudo o que uma criança tinha direito: muitas brincadeiras e jogos esportivos,

acesso à escola, pescarias, contato com a natureza amazônica e outros povos, e muitos,

muitos livros e gibis, além da iniciação ao mundo do trabalho, com as responsabilidades

que tal ambiente nos traz.

Antes que eu pudesse concluir o ensino fundamental, impulsionados por uma crise

econômica nos negócios de meus pais, fomos obrigados, em dezembro de 1997, a nos

mudar de Rondolândia. Ficaria para traz, dessa vez, meu único irmão, agora casado e

professor. A ausência de meu irmão me faria evidenciá-lo nos anos seguintes como

referencial, influenciando minhas futuras escolhas pelo magistério como campo de atuação

profissional e de realização pessoal. Assim, no início de 1998, chego com meus pais ao

município de Nova Mamoré, Rondônia, à época uma pequena cidade com ruas de terra

batida na fronteira com a Bolívia. Embora passasse ali menos de três anos de minha vida,

esse lugar seria decisivo para minhas futuras escolhas políticas, ideológicas e profissional.

Diferentemente de Ji-Paraná, cujo conhecimento e tratamento da memória histórica

do lugar pela população migrante sofreu uma cisão, separando, na consciência dos

milhares de novos habitantes, o presente de conflitos pela terra do passado histórico

recente do lugar, por onde havia transitado a Comissão Rondon na primeira metade do

século e onde viviam sociedades e povos milenares, Nova Mamoré apresentava símbolos

que faziam a história e a memória da colonização resistir ao tempo. A estação ferroviária

de Vila Murtinho e os trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, rasgando a floresta

como tentáculos metálicos da civilização ocidental, eram monumentos que faziam ecoar no

imaginário dos habitantes locais, como testemunhas de um período recente, as cenas de

mais um capítulo trágico da história da Amazônia, palco do encontro de civilizações

subjugadas pelo interesse do capital. Proposta como contrapartida do Brasil no acordo

firmado com a Bolívia pelo Tratado de Petrópolis, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,

concluída em 1912, significou para essa porção amazônica a consolidação da colonização

dos vales do Madeira e do Mamoré e a expulsão, a escravização ou a dizimação a ferro e

fogo, literalmente, de populações indígenas inteiras, além de ter custado a vida de milhares

de trabalhadores, de diferentes nacionalidades, sucumbidos pela malária. As narrativas

populares desse período ainda se faziam muito presentes em Nova Mamoré no final do

século.

36

De início, não nos instalamos na zona urbana do município, mas no sítio de um

conhecido da família, situado a 6 km da cidade, onde meus pais dariam início a uma nova

atividade econômica: a produção de carvão em fornos de tijolo e barro. Por esse motivo,

para chegar à escola estadual Casimiro de Abreu, onde havia sido matriculado para cursar

a 8ª série, faria o pequeno percurso rural ora de bicicleta, ora de carona na velha

caminhoneta que usávamos para transportar a madeira dos pátios de serrarias aos fornos de

carvão.

Durante o primeiro ano em Nova Mamoré, surgiram-me muitos elementos novos.

Primeiramente o estilo de vida urbano que a pequena cidade já possuía e com o qual passei

a ter contato todos os dias ao chegar e ao sair da escola, com seu trânsito, com suas blitz de

trânsito inclusive, algo inexistente na pequena Rondolândia de minha infância; além disso,

os tipos humanos, a variante linguística, as novas expressões do lugar eram em muito

diferentes do que estava acostumado a ver e a ouvir. Mesmo na televisão, quando

assistindo a reportagens e programas que se passavam em diferentes lugares do país, ainda

não havia visto lugar que se comparasse a Nova Mamoré. Por se situar a 6 km da divisa

com a Bolívia, a presença do povo boliviano no lugar era intensa, tanto no comércio, que

era livre entre o nosso país e o vizinho, como nas escolas, onde havia muitos descendentes

ou migrantes bolivianos. O contato com esse novo povo faria com que ganhassem todo o

sentido as aulas de história e geografia da América Latina. Eu estava em contato direto

com os descendentes da sociedade Inca.

Na primeira ida de minha mãe ao comércio da cidade boliviana de Guayaramerín,

pude então, pela primeira vez, pisar em solo estrangeiro. Durante a pequena estadia

naquele país, observei a tudo com a máxima atenção, impregnando-me das cores vivas e

múltiplas das vestimentas daquele povo, surpreendendo-me com a simplicidade e beleza

das tranças do penteado das senhoras bolivianas (que posteriormente seriam a mim

explicadas com um quê histórico), admirando-me com o jaleco branco que todos os alunos,

ainda crianças, vestiam sobre o uniforme, numa velha sala de aula, com as janelas dando

para a calçada da rua e, principalmente, sensibilizando-me com a aparente pobreza material

e miséria infligida àquele povo, evidenciadas na precariedade do acesso aos alimentos, na

falta de saneamento básico na cidade e na expressão de sofrimento nas faces dos

trabalhadores. Levaria comigo todas essas impressões, que viriam à tona e com todo o

sentido na escola, ao ler, sob indicação de meu professor de história, Simon Oliveira, o

livro “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Aliás, professor Simon

foi um dos educadores que marcaram minha vida acadêmica e um de meus iniciadores na

37

admiração das artes, no gosto pela filosofia, pela educação e pela política. Foi também na

8ª série que conheci o professor de Matemática, Messias, que, com suas feiras e gincanas

de matemática, despertaria em mim o prazer em estudar as equações e todo o mundo que

se estabelece nas relações entre os números.

Hoje percebo o quanto esteve ausente em minha formação escolar desse período o

conhecimento sobre os povos indígenas da região de Nova Mamoré. A cidade está a

poucos quilômetros dos Wari e Urueu-wau-wau, mas nenhuma aula me foi oportunizada

sobre a história, a cultura, a vida desses povos indígenas da região. Padecem os currículos

escolares do sistema público de ensino em Rondônia de uma crônica e histórica

invisibilização das culturas e povos indígenas. Herança de um período tortuoso da

colonização da Amazônia, ainda há muito o que se avançar nas atuais políticas públicas de

educação na região. Como pesquisador e estudante amazônico da Educação Matemática,

percebo agora o quanto esses temas devem inevitavelmente permear minhas ações, assim

como a de meus pares, podendo a Etnomatemática ser uma via (multidimensional) para a

regionalização de nosso pensamento crítico e de nossas produções acadêmicas.

Ainda durante o ano de 1998, pude concluir meus estudos de música iniciados em

Rondolândia, e me tornar músico oficial, tocando clarinete na Igreja, onde finalmente fui

batizado naquele mesmo ano. Paralelamente às atividades escolares, de leitura e de lazer,

continuei a ajudar meus pais no trabalho, que agora se dava na carvoaria e no transporte

dos restos de madeira dos pátios de serrarias da cidade até os fornos de tijolo e barro

construídos no sítio em que morávamos de favor. Embora fosse um trabalho árduo e

perigoso à saúde, sobre o que havíamos inclusive feito atividades na escola que tratavam

do trabalho infantil em carvoarias, nunca fui prejudicado por ajudar meus pais, que sempre

zelaram por minha formação escolar, sendo, inclusive, em diversos momentos, dispensado

do trabalho para me dedicar às atividades extraescolares ou de simples leitura de lazer, o

que me causava certa compaixão para com meus pais, pois sabia que minha ajuda faria

falta na produção do carvão. Esse sentimento me impulsionava a me dedicar o máximo

possível nos estudos e a não desperdiçar um momento sequer nos afazeres de estudante.

Ao concluir a 8ª série, um ano havia se passado de grandes mudanças em minha

vida. Não só as mudanças de ambiente físico, mas me sentia transformado interiormente.

Grandes questionamentos haviam tomado conta de meus pensamentos e certa angústia me

havia impregnado por ter sido apresentado aos problemas da humanidade. No plano

individual, começava a brotar em mim as primeiras inquietações filosóficas do ser-no-

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mundo, e tudo passou a ser questionável, inclusive instituições tradicionalmente intocáveis

em minha educação familiar, tais como a Igreja, a Polícia e os Governos. Era o caos.

1.2 O Magistério

No início de 1999, mudamo-nos para a zona urbana de Nova Mamoré, onde eu iria

iniciar o Magistério, na escola Estadual Salomão Silva, no período noturno. A essa altura,

já não havia mais dúvidas de que preferiria o Magistério ao Ensino Médio Colegial.

Mesmo orientado por alguns professores de que não deveria cursar o Magistério por este

curso não oferecer uma “boa preparação para o vestibular”, não tive dúvidas, pois sabia, ao

conhecer o currículo do curso, que na educação teria maiores oportunidades de aprofundar

meus questionamentos e conhecer um pouco mais dos segredos do ser humano. Contou

também para essa decisão o fato de ter um irmão, em quem me espelhava, já professor, e

pelos excelentes mestres que tive durante meu ensino fundamental, em especial as

conversas que tive com professor Simon.

A transferência do sítio para a cidade deu-me a oportunidade de me tornar um

assíduo frequentador da biblioteca municipal, onde conheci a senhora Márcia, bibliotecária

e companheira no curso de Magistério. A amizade com senhora Márcia me garantiu alguns

privilégios. Após algum tempo fazendo empréstimos ou mesmo lendo no próprio espaço

junto às prateleiras de livros, consegui liberação para levar para casa, nos finais de semana,

alguns volumes que não poderiam sair da biblioteca. Foi assim que consegui ler, mesmo

sem entender muita coisa de imediato, o primeiro volume de O Capital, de Karl Marx.

Marx era uma constante nos estudos das disciplinas no Magistério, assim como

Paulo Freire, de modo que o autor que não era marxista era geralmente rejeitado pelos

professores. Mas o que se falava do pensamento de Marx eram apenas linhas gerais, que

permeavam a educação, a política e as instituições. Os conceitos de luta de classes, de

socialismo, comunismo, mais-valia, acumulação primitiva, entre outros, eram abordados a

partir de interpretações já elaboradas das obras de Marx. E naquela inquietude de

adolescente que acha que descobriu o mundo e desconfia de todos, procurei logo ir à fonte

original. Doce desilusão. Marx era “osso duro de se roer”. O volume 1 de O Capital foi

lido sim, mas às custas de pura obstinação e pela obrigação de menino petulante que se vê

diante de desafio maior que ele, pois o prazer da leitura já havia ficado nas primeiras

páginas, na análise dos primeiros períodos da obra. Essa pequena frustração permitiu dar-

me conta do quanto era ignorante e do quanto ainda não sabia. E isso tornou-se motivação

39

para me aprofundar cada vez mais nas leituras e nos estudos gerais. Agora já arriscava dar

passos em variadas áreas, que iam de história e filosofia às teorias de educação, sociologia,

psicologia e política.

Nesse momento de minha educação e de minha experiência cultural, além da

cosmologia judaico-cristã do velho mundo reproduzida no interior da família, alcançava-

me também uma matriz filosófica do velho mundo, encontro esse a mim proporcionado por

duas das principais instituições que reproduzem em nossa sociedade saberes e elementos

culturais de outros contextos, de outros tempos: a biblioteca e a escola. O poder destas

duas instituições, a escola e a biblioteca, somado ao poder de outras instituições tais como

a igreja, os meios de comunicação e o conjunto das mídias digitais globais, proporcionam

transpor no tempo e no espaço práticas culturais homogeneizantes que fazem de nós, os

sujeitos que por elas se submetem, por vezes seres desenraizados, perdidos de nossas

próprias identidades locais, senão portadores de múltiplas identidades. Estas instituições

podem fazer com que um jovem do interior da Amazônia passe a pensar a partir de

cosmologias e matrizes filosóficas idênticas às de outros jovens situados a milhares de

quilômetros de distância, falantes de outras línguas e contextualizados em outros

ambientes. Como pensar estas instituições no interior de sociedades indígenas amazônicas,

com cosmologias e sistemas de pensamento tão originalmente distintas daqueles baseados

no velho mundo? Poderia eu defender uma educação escolar nesses moldes para

comunidades indígenas da região em que nasci e vivo? Questões como essas visitam-me

constantemente em meu fazer docente, porque me fazem perceber a intensidade da

interferência que a educação escolar produziu nos rumos que minha vida tomou.

A essa altura, já praticamente não ajudava meus pais na carvoaria que havia ficado

no sítio, pois passava a maior parte do dia lendo, e à noite cursava o magistério. Com muita

sorte, continuei sendo educado pelos professores Messias, em Matemática, e Simon em

História e em Filosofia. Professor Simon, além de dar aulas no sentido stricto, sempre que

possível convidava seus alunos para uma conversa filosófica. Para mim, esses momentos

eram simplesmente mágicos, pois fazíamos viagens incríveis pelo mundo do pensamento.

Em certos momentos, ele nos orientava a observar o movimento das pessoas em suas

atividades cotidianas, a especular sobre o que aquelas pessoas acreditavam, o que faziam e

para que e quem faziam. Outras vezes, trazia um livro e líamos alternadamente, parando

em certas passagens para discutir o que havia sido lido. Um desses livros foi “O Mundo de

Sofia”, de Jostein Gaarder, que por alguns momentos me fez pensar que não passava de um

personagem sentado num banco de escola, recebendo lições de filosofia.

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Após estas incursões pela filosofia, algumas coisas passaram a ser difíceis de

aceitar como inquestionáveis e as relações com a Igreja foram ficando insustentáveis. Ao

final do primeiro ano do magistério tudo estava instável e acabei por sair da Igreja,

deixando também de tocar clarinete. Havia perdido o encantamento pela religião. O

materialismo histórico ocupava o espaço de minhas representações cosmológicas e

espirituais do mundo e passaria a influenciar, desde então, muitas de minhas escolhas

pessoais, meu percurso de formação acadêmica e minha atuação profissional.

Nessa época, abriam-se na cidade as primeiras escolas de informática, e meus pais,

num grande esforço, pois as condições financeiras da família não iam nada bem, deram-me

a oportunidade de participar de um curso de introdução ao uso do computador. Que coisa

fantástica era o computador. Não tive dificuldades com o teclado, pois havia feito um curso

de datilografia em Rondolândia. Assim, pude avançar logo para a prática, criando e

salvando arquivos, formatando discos e imprimindo textos. Estava assim criada uma

parceria que se estenderia até os dias de hoje. Agora, não me vejo sem essa máquina no

meu trabalho, em sala de aula, no lazer, na pesquisa e na produção acadêmica. Questiono-

me, às vezes, até que ponto essa dependência tecnológica proporciona um ambiente

propício a determinadas elaborações teóricas e não a outras. De todo modo, percebo o quão

importante têm sido a internet, as redes sociais e os ambientes virtuais em geral, não só

para o espaço acadêmico, mas também para as populações tradicionais, os povos

indígenas, como instância de promoção de suas culturas e também como janela de acesso a

mundos cujos limites e distâncias físicas os tornariam inacessíveis.

No início de 2000, com meus 16 anos de idade, inicio meu primeiro trabalho

remunerado, numa tornearia mecânica de um jovem boliviano, amigo de meu pai. Havia

me tornado um operário assalariado e aquilo para mim era importante tanto pela renda que

teria no final do mês para ajudar meus pais, como por estar vivenciando a teoria de Marx

na prática. E o que era mais interessante: estava do lado dos “oprimidos”. Só não tive a

oportunidade de participar de nenhuma greve durante todo o período que trabalhei ali, pois

éramos o boliviano, dono da tornearia, e eu, ajudante geral, responsável por organizar as

ferramentas, limpar as peças quebradas que iriam receber as soldas e retirar os entulhos e

pó de ferro que se acumulavam no torno. Desse modo, não houve nenhuma luta entre o

dono dos meios de produção e o trabalhador operário, afinal, éramos os dois proletários,

proletários amazônicos.

Passados seis meses daquele ano, após meu pai e minha mãe serem acometidos,

alternadamente, pela malária, a produção da carvoaria tornou-se economicamente inviável,

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o que na prática significava que não rendia mais o suficiente para a subsistência dos três

membros da família, não pagava mais os alimentos necessários a nossa sobrevivência.

Levados pelo agravamento da crise financeira da família, mais uma vez precisei me mudar

com meus pais. Dessa vez, com pesar ainda maior, pois deixava para trás grandes amigos,

mestres que haviam me iniciado num mundo totalmente novo e impressionante.

Ariquemes, Rondônia, foi nosso novo destino. A cidade era a maior dentre as que já

havia morado, desde a saída de Ji-Paraná, 13 anos antes. Pela primeira vez pude ir a um

cinema e sentir o prazer que essa arte proporciona. Mas foi em Ariquemes também que

passei a participar ativamente do movimento estudantil, ingressando no grêmio da escola.

E durante uma greve dos professores estaduais, não hesitamos, eu e meus companheiros de

movimento, a ir a todas as rádios da cidade declarar o apoio dos estudantes aos grevistas.

Chegamos mesmo a promover uma assembleia geral no Heitor Villa-Lobos, escola

estadual tradicional da cidade, com a presença em massa dos alunos, saindo em passeata

pela cidade ao final da assembleia, bradando palavras de ordem ao governador e secretário

de educação num alto falante, a essa hora emprestado pelo sindicato dos professores.

Experiências de formação política como essa às vezes marcam nosso inconsciente

de tal modo que, em nossos escritos, frente às mazelas, injustiças sociais e outros

problemas crônicos, porém históricos, de nossa sociedade sobre os quais desenvolvemos

nossas pesquisas, passamos a reproduzir certos ativismos, originalmente característicos da

panfletagem, mas que em nossos textos acadêmicos ganham contornos do Dever-Ser.

Nesse sentido, a dimensão política de nossas produções acadêmicas tende a nos transferir

da descrição para a prescrição, da contemplação para a ação. Até que ponto temos

consciência e controle sobre isso? Nesse sentido, os escritos dessa tese, os rumos que o

texto tomou, suas tonalidades políticas e conteúdos discursivos certamente estão

permeados de experiências de formação vividas anteriormente ao processo do

doutoramento, sobre os quais posso não ter consciência e controle. Ao refletir sobre

etnomatemática, educação escolar indígena e interculturalidade, não são apenas as vozes

dos diferentes autores das referências consultadas, nem somente as práticas discursivas dos

sujeitos da pesquisa que ditam os rumos e a forma final do texto, mas também toda uma

carga de experiências pessoais que imprimem indiscutivelmente à tese uma dimensão

subjetiva, permeada de minhas visões de mundo e das projeções ideológicas que faço sobre

a realidade. Essa carga de experiências certamente guarda estreitas relações com o período

de minha formação ocorrida em Ariquemes.

42

Na escola estadual Heitor Villa-Lobos, passei a integrar a última turma de

magistério, pois, em 2000, as secretarias estaduais de educação de todo o país haviam

abolido as matrículas em cursos normais de nível médio, a partir de uma interpretação da

Lei nº 9394/96. Os Últimos Moicanos, como nomeamos nossa turma, éramos grandes

sonhadores e discutíamos com entusiasmo ideias de Paulo Freire, de Vygostky e Piaget.

Não víamos a hora de concluir o curso para assumirmos uma sala de aula e colocarmos

todas aquelas teorias em prática.

Eis que os últimos dias do ano de 2000 chegavam ao fim. Eu estava estabelecido

numa nova cidade, politizado como nunca, disposto a defender a qualquer custo as causas

da educação e apaixonado como sempre pelo mundo das letras. A essa altura já havia

descoberto o caminho da biblioteca municipal, onde ficava a maior parte do tempo quando

não estava na escola, pois havia sido liberado de vez por meus pais para apenas me dedicar

aos estudos. Havia descoberto também uma classe de livros que me havia cativado: as

biografias. Che Guevara, Fidel, Hitler, Einstein, Newton, Lênin, Paulo Freire, Darwin,

Lampião, Mozart e muitos outros personagens históricos, humanistas ou não,

revolucionários ou ditadores, artistas ou educadores, passaram a me ser familiares.

Como nas demais escolas, no Heitor também tive grandes professores. Lembro-me

em especial do professor Caio, de Língua Portuguesa e Literatura, pela amizade e pelos

últimos lançamentos de livros que me emprestou. Não tinha condições de comprar os

livros “do momento”, mas professor Caio fazia questão de me emprestar os seus. Caio

também nos estimulava à produção escrita e nos mantinha sempre em contato com os

temas atuais, despertando em cada um de nós o senso crítico, que nos habilitava a produzir

textos sobre diferentes situações, sempre primando pela clareza de ideias e atenção às

regras da língua escrita.

Essa relação com a escrita me facilitou, no início de 2001, o ingresso na redação de

um jornal regional da cidade, O Vale do Jamari. Era o meu segundo trabalho remunerado,

embora na informalidade, sempre com atrasos no salário e condições de trabalho

estafantes. Minha passagem pelo jornal não durou muito, pois logo percebi que possuía

uma linhagem ideológica que feria meus princípios e concepções. Serviu-me a experiência

para comprovar as teorias críticas sobre os meios de comunicação discutidas em sala de

aula.

Em meados de 2001, saí do Vale e voltei a ser apenas o estudante engajado nos

movimentos sociais, filiei-me a um partido político de esquerda e passei a frequentar as

reuniões do partido, de movimentos de trabalhadores rurais e do movimento estudantil. À

43

essa época, estava cursando o 3º ano do magistério à tarde e o 2º ano do Colegial à noite,

pois estava preocupado em me preparar para o vestibular, estudando as disciplinas

propedêuticas desse segundo curso.

O ano de 2001 já caminhava para o final, quando dois fatos novos ocorreram em

minha formação. O primeiro foi o convite para participar de um curso de formação de

alfabetizadores de adultos, patrocinado pelo Banco do Brasil, nas linhas do método Paulo

Freire. Participei do curso com grande entusiasmo, imaginando que no próximo ano já

poderia abrir uma turma de alfabetização de adultos em meu bairro, projeto que não

concretizei por minha vida ter tomado outras direções. O segundo foi o acesso, pela

primeira vez, à internet. Aos dezessete anos de idade, pela primeira, no novíssimo

laboratório de informática da escola, acessei a rede mundial de computadores. Que

fantástico. Tinha o mundo nas mãos: imagens, sons, cenários. Era o fim das fronteiras

físicas que a natureza me impunha.

Dezembro de 2001 chegou e com ele encerrou-se um ciclo pedagógico no país. A

partir daquele momento não existiriam mais cursos de nível médio para formação de

professores no Brasil. No discurso realizado na cerimônia de formatura, como orador da

turma, ressaltei os valores com os quais havíamos nos identificado durante nossa formação,

lembrando a todos da esperança em nós depositada como agentes de transformação da

realidade social, e me esforcei em ressaltar a universalidade do papel do educador, como

cidadão do mundo, e, como tal, sensível a toda desumanidade cometida em qualquer lugar

no planeta.

1.3 A Docência e a Licenciatura em Matemática

Com o ensino médio concluído, logo surgiu uma nova oportunidade de trabalho: o

concurso público dos Correios, para a função de atendente comercial na agência de

Ariquemes. Em seguida prestei dois vestibulares, o primeiro para Direito, numa faculdade

particular em Ariquemes, e outro para Licenciatura em Matemática, na Universidade

Federal de Rondônia, Campus de Ji-Paraná. E, antes mesmo de qualquer dos resultados

serem divulgados, prestei meu primeiro concurso para professor, oferecido pela Secretaria

Municipal de Educação de Ariquemes.

Os momentos de espera pelos resultados foram angustiantes, e o que mais temia era

não ter conseguido passar no vestibular da federal. Para minha surpresa, fui aprovado em

todas as provas que fiz. O primeiro resultado a sair foi o dos Correios, mas ao me

44

apresentar para tomar posse fui avisado de que não poderia fazê-lo por ainda não ter

completado a idade mínima de 18 anos (na época, estava exatamente com 17 anos e 9

meses de vida). Tristeza momentânea, pois logo em seguida saiu o resultado do vestibular

para Direito. Havia passado, mas, na impossibilidade de conseguir uma bolsa de estudos

que financiasse o curso da faculdade particular, não me matriculei. Decepção que logo

ficou para trás, pois saiu o resultado da UNIR e eu havia sido aprovado. No momento em

que li o resultado, gostaria de agradecer aos meus grandes mestres, aos meus queridos

professores: Amélia, Simon, Messias, Caio e a todos os demais. Também me veio à

consciência o fato de que o número de inscritos teria sido bem maior do que as 40 vagas

disponibilizadas no vestibular. Mais uma vez os gargalos de nossa organização social

estariam perpetuando o sistema, impedindo o acesso de muitos ao saber, e ao poder. As

aulas na UNIR só teriam início seis meses depois, já em meados de 2002.

O resultado do concurso da prefeitura foi o último a sair, e também havia passado,

de modo que, em abril de 2002, entrei pela primeira vez numa sala de aula como professor

de uma escola em um bairro periférico de Ariquemes, o Setor 9 “de baixo”, Escola

Municipal Magdalena Tagliaferro. Que maravilhosos foram aqueles primeiros contatos

com meus alunos. Eu não estava apenas os ensinando, mas principalmente, e isso eles não

sabiam, aprendendo a cada pergunta ou situação embaraçosa em que me punham. Como

professor multidisciplinar, novamente estava em contato com todas as áreas do

conhecimento, além de estar pondo em prática as teorias da educação vistas no magistério.

Poucas semanas se passaram do início de minhas atividades docentes, veio-me o

convite da secretaria de educação para integrar uma equipe de professores destinados à

execução de um projeto de escola-polo numa região de garimpo, localizada em Bom

Futuro, distrito de Ariquemes. Como ainda não houvesse iniciado o curso na UNIR,

prontamente aceitei o convite.

Os meses em que passei trabalhando na escola municipal Padre Ângelo Spadari, no

garimpo, renderam-me riquíssimas experiências. Aquele ambiente tinha um histórico de

violência, e as crianças traziam para a sala de aula seus depoimentos, do sofrimento dos

trabalhos, dos parentes mortos em disputas violentas com vizinhos. Nesse meio, o

ambiente escolar era uma espécie de refúgio e a esperança de transformação daquele

quadro precário em que viviam. Como ficávamos durante todo o tempo no garimpo,

retornando à cidade apenas nos finais de semana, com a chegada do período de me

matricular na UNIR, precisei retornar ao trabalho em escolas da zona urbana de

Ariquemes.

45

Era chegado o mês de julho de 2002, e uma nova fase se iniciava em minha vida. A

vida de universitário me acrescentou muitos elementos novos. A organização da

universidade, o contato com professores pesquisadores, a liberdade de expressão, e,

principalmente, o fascinante mundo da Matemática me fizeram novamente obstinado pela

busca do conhecimento. Esse entusiasmo compensava todo o sofrimento que foi estudar

em uma cidade distante de casa e do ambiente de trabalho cerca de 200 km. Durante os três

primeiros semestres do curso a rotina foi dura, pois dava aulas numa escola pela manhã, à

tarde até o recreio em outra escola, de onde saia correndo para o ponto do ônibus que

levava os universitários a Ji-Paraná, de onde chegava novamente em casa às 2 horas da

manhã, para levantar às 6 horas da manhã novamente para ir trabalhar.

Ainda durante o segundo semestre de 2002 surgiu a oportunidade de ingressar em

um programa da UNIR destinado à capacitação de professores leigos, o PROHACAP, com

cursos de nível superior ofertados nos períodos de férias. Foi assim que, durante os três

primeiros semestres do curso regular de Matemática, também cursei três períodos do curso

de Letras no PROHACAP.

Como gastava muito com passagens, alimentação e demais gastos necessários a

minha manutenção no curso de Matemática, todo o salário que recebia dando aulas era

gasto em meus estudos, de modo que ainda mantinha uma dependência em relação a meus

pais, com os quais continuava morando. Fato esse que se alteraria a partir do segundo

semestre de 2003, quando participei de uma seleção do Departamento de Matemática da

UNIR para o ingresso na Iniciação Científica, ganhando uma bolsa do CNPq.

Com a oportunidade de ingressar de fato no universo da pesquisa científica, não

tive dúvidas em escolher me transferir definitivamente para a cidade de Ji-Paraná,

deixando temporariamente a sala de aula e o curso de Letras, e passando a me dedicar

exclusivamente ao curso de Matemática. Sob orientação do físico, professor Dr. Carlos

Mergulhão, fui introduzido na pesquisa experimental, no âmbito do Experimento de

Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um projeto científico de

cooperação internacional, envolvendo instituições brasileiras, americanas e europeias. Meu

projeto de iniciação científica tinha como objetivo a construção de um modelo matemático

para a estimativa dos fluxos de água entre os diferentes tipos de superfícies vegetadas na

região de Ji-Paraná e a atmosfera, a fim de se verificar as influências do desmatamento de

florestas tropicais no balanço hídrico dos solos. Os dados foram coletados numa área de

pastagem da Fazenda Nossa Senhora, a 40 km de Ji-Paraná, e na floresta da Reserva

Biológica do Jaru, a 120 km de Ji-Paraná. Para acessar a Rebio Jaru, ora íamos pelas

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estradas vicinais, ora de barco pelo rio Machado. Em momentos de instalação/calibração

dos equipamentos, ou de campanha intensiva de coleta de dados, permanecíamos

acampados por até uma semana na sede do IBAMA, localizada no interior da reserva.

Durante os dois anos de iniciação científica, recebi importantes lições, principalmente

relacionadas ao rigor científico no tratamento dos dados e ao compromisso com a produção

acadêmica.

Em meados de 2004, dava início às minhas primeiras publicações num evento

científico. E para minha grande felicidade, fui agraciado com o prêmio de melhor pesquisa

de iniciação científica na linha “mudanças de cobertura e uso da terra” durante a III

Conferência Científica Internacional do LBA, realizada em Brasília. A partir dali, criaria o

gosto e a necessidade em participar dos eventos do mundo científico e de expor os novos

resultados que iam sendo atingidos em minhas pesquisas, e pelos demais integrantes do

nosso grupo de pesquisadores de iniciação científica.

Porém, paralelamente às conquistas na universidade, cresciam as dificuldades

financeiras, pois, apenas com a bolsa de iniciação científica, tornara-se impossível cobrir

os gastos com aluguel, alimentação, transporte e livros. Foi então que, expondo minhas

dificuldades financeiras a meu orientador e aos coordenadores do LBA, recebi a

autorização para me dedicar metade do dia a alguma atividade que me rendesse divisas,

desde que isso não atrapalhasse o andamento de minha iniciação científica. A oportunidade

surgiu com um concurso da Secretaria Municipal de Educação de Ji-Paraná para professor,

com opção para se trabalhar 25 horas semanais. Passei no concurso e, em julho de 2004,

estava de volta a uma sala de aula. Só que dessa vez num lugar muito especial. Havia

escolhido dar aulas numa unidade prisional. Durante os próximos 18 meses, ensinaria

Física e Matemática numa sala de aula improvisada dentro de uma cela, na penitenciária

regional Agenor Martins de Carvalho. Essa foi outra experiência riquíssima que me fez

quebrar preconceitos, conhecer figuras fantásticas e, mais uma vez, questionar as

condições do homem no mundo.

A população carcerária da penitenciária na época era de aproximadamente 250

homens e 50 mulheres. Estas pessoas ficavam divididas entre os setores “fechado”

(pavilhões A e B) e “semi-aberto” (pavilhão C e pátio). Uma cela do pavilhão C foi

adaptada para funcionar como sala de aula. As “jegas” (camas de cimento) foram retiradas

do interior da cela e substituídas por carteiras universitárias e um quadro branco foi

instalado numa das paredes. Assim, a experiência pedagógica se deu numa cela adaptada,

com severa restrição de materiais, em razão das normas do presídio. As aulas foram

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vivenciadas como momentos de liberdade ao regime de opressão existente nas dinâmicas

estabelecidas na instituição e ocorreram de segunda a quinta-feira, com duração de três

horas por dia. Para frequentar as aulas, os alunos do “semi-aberto” eram revistados em uma

guarita e encaminhados para a sala. Os alunos do “fechado” eram retirados algemados de

suas celas, revistados e acompanhados por agentes até a sala. Após os agentes trancarem a

grade da porta, retiravam as algemas dos punhos dos alunos e ficavam de vigilância do

lado de fora da sala. Ao final da aula, os alunos eram novamente algemados, revistados e

transferidos para os seus pavilhões.

Além dos conteúdos de Física e Matemática do 1º ao 3º ano do Ensino Médio, pude

ensinar aos alunos também o jogo de xadrez. Inicialmente, percebi certa dificuldade de

alguns com as operações matemáticas elementares, justificada por eles pelo longo tempo

fora da escola. A restrição de materiais pedagógicos foi um fator de dificuldade para a

organização das aulas. Por outro lado, a presença de marceneiros, comerciantes e outros

profissionais entre os alunos facilitou o tratamento teórico de conceitos que envolviam

medidas e valores. Dos 28 alunos inicialmente matriculados, infelizmente apenas 11

concluíram as disciplinas, e isso se deve em grande parte a um fenômeno conhecido entre

os presos como “cadeia pesada”, que consiste de um misto de medo, desespero e falta de

esperanças de um futuro melhor, que, invariavelmente evolui para um quadro de

depressão.

Essa experiência proporcionou-me a oportunidade de refletir sobre preconceitos

existentes na memória coletiva e de construir um novo olhar sobre as condições de

existência do homem no mundo. O contato direto com a realidade proporcionou-me uma

visão da precariedade do sistema prisional brasileiro, e de como a prisão e as injustiças

sociais estão tão intimamente relacionadas em nosso país.

Trabalhando meio período no presídio e estudando a graduação à noite, pude

concluir minha iniciação científica, tendo, antes disso, participado de eventos na UNIR, e

de um evento científico em Manaus, onde apresentei os resultados finais de minha pesquisa

no II Congresso de Estudantes e Bolsistas do LBA em 2005.

Durante a graduação, tive a oportunidade de ingressar no movimento estudantil

universitário, sendo que nos anos de 2004 e 2005 integrei o Diretório Central dos

Estudantes (DCE) da UNIR, participando, juntamente com mais dois companheiros, da

Coordenação de Assuntos Acadêmicos e Científicos. No DCE, e participando em reuniões

dos estudantes e em reuniões da própria UNIR, pude conhecer parte do jogo político e dos

48

meandros do poder que movem a instituição universitária, alterando assim

significativamente a representação que até então eu fazia da academia.

Paralelamente à minha graduação e ao ensino no presídio (a partir de 2006, numa

escola municipal urbana) e às atividades de pesquisa no LBA, pude desenvolver três

monitorias em Álgebra Linear e Análise Real na UNIR, Campus de Ji-Paraná. Sob

orientação do professor Fernando Cardoso, esses momentos foram riquíssimos para minha

formação, pois me permitiram experimentar a docência universitária, o contato com o

ensino superior, envolvendo complicadas demonstrações matemáticas e complexas

fundamentações teóricas e conceituais.

No penúltimo semestre da graduação, sob orientação de meus professores, inscrevi-

me e fui aceito com bolsa para participar da Escola de Verão promovida pelo

Departamento de Matemática da UFPE. Assim, passei os dois primeiros meses de 2006 em

Recife, como aluno de verão, cursando a disciplina Análise na Reta, ministrada pelo

professor Marivaldo Pereira Matos, da UFPB. Por ter obtido rendimentos suficientes no

curso, fui agraciado com uma bolsa para cursar o mestrado em Matemática na UFPE, com

início no próximo semestre. No entanto, ao concluir a graduação, estava certo de que

escolheria a área de educação para continuar meus estudos, o que me fez abdicar do

mestrado em Recife. Tratou-se de mais uma decisão pessoal carregada de representações

ideologizadas do mundo. As experiências que até então havia tido com o estudo da

“matemática acadêmica” na universidade, em contraste com a “formação humanística” que

havia recebido até ali, geraram-me representações emocionalmente e politicamente

negativas das formas e características que o tratamento dado à matemática e seu ensino

assumiam na academia. O resultado disso foi um sentimento de grande distanciamento

entre minha formação enquanto professor de matemática e minha atuação profissional. A

Educação Matemática surgiu em minha vida, nesse contexto, como uma atraente forma de

reconciliar os estudos em matemática (e sobre a matemática) com uma atuação mais crítica

e engajada no mundo.

1.4 A Especialização em Educação Matemática

Com o término da graduação, em meados de 2006, todas as questões levantadas na

licenciatura sobre os problemas no ensino de matemática no Brasil ainda povoavam meus

pensamentos. A Educação Matemática já despertava em mim o interesse pela pesquisa e

pelo aprofundamento no estudo de temas que extrapolavam os limites da própria

49

matemática. Essa inquietação me levaria a me inscrever no Curso de Pós-graduação Lato

Sensu em Educação Matemática da UNIR e, em agosto de 2006, estava de volta às salas de

aula da universidade. No curso, pude me aprofundar mais na pesquisa em educação,

diversificando as leituras sobre as diferentes tendências em Educação Matemática. Com a

ajuda de minha orientadora, professora Ângela Ferreira, desenvolvi uma investigação sobre

possíveis relações entre o domínio da linguagem verbal e a aprendizagem da matemática.

Na pesquisa, procuramos, a partir dos estudos de Vygotsky em alguns de seus

principais conceitos sobre a relação entre linguagem e pensamento, e da Teoria dos

Registros de Representação Semiótica de Raymond Duval, problematizar uma abordagem

metodológica no ensino da matemática que enfatizasse as características de linguagem dos

seus objetos. O caráter conceitual e o elevado nível de abstração de seus objetos seriam

características da matemática escolar que requereriam um domínio mínimo de registros de

representação semiótica nos tratamentos e conversões necessárias à sua compreensão e

aprendizagem. Como resultado, acreditamos ter proposto uma solução ao que é conhecido

na literatura como Paradoxo de Duval, valendo-nos para isso de elementos da teoria

vygotskyana. Em janeiro de 2008, defendi a monografia intitulada “Relações entre o

domínio da linguagem verbal e a aprendizagem da Matemática”.

1.5 O Mestrado em Educação

No levantamento de material bibliográfico durante a especialização, tive acesso às

pesquisas sobre semiótica e didática da matemática do professor Michael Friedrich Otte,

pesquisador do Instituto de Didática da Matemática da Universidade de Bilefeld –

Alemanha, professor visitante na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e

referência internacional sobre filosofia, epistemologia e didática da matemática. Ao

descobrir que professor Otte orientava alunos no mestrado em Educação da UFMT, na

linha de pesquisa Educação em Ciências e Matemática, interessei-me em ingressar no

curso.

Desse modo, aguardei a abertura do edital do Programa de Pós-Graduação em

Educação da UFMT, o que ocorreu em setembro de 2007, para o qual me candidatei, na

esperança de, se aceito, instalar-me em Cuiabá e dar continuidade aos meus estudos. Após

passar pelas fases da seleção, fui aprovado para ser orientado pelo professor Otte. Assim,

em março de 2008, recém casado e cheio de entusiasmo, mudei-me para Cuiabá, dando

início aos meus estudos no mestrado. No primeiro mês do curso, fui contemplado com uma

50

bolsa da Capes, o que possibilitou de fato minha dedicação integral aos estudos e à

pesquisa.

O primeiro ano no mestrado foi intenso, proporcionando-me grande

amadurecimento intelectual. A necessidade de aprofundamento teórico e de fundamentação

de ideias em disciplinas do curso exigiu-me intensa dedicação a leituras e estudos, de

modo que minha presença nas bibliotecas setoriais e central da UFMT passou a ser

constante. Estava de volta às leituras em filosofia, sociologia, história e educação. Por

diversos momentos, a sensação era de que os dias não eram longos o bastante para serem

suficientes aos estudos a serem realizados.

Além do rico ambiente acadêmico proporcionado pela UFMT, as seções semanais

com meu orientador foram momentos de extremo aprendizado. Professor Otte, mesmo

sendo referência internacional em sua área de pesquisa, demonstrou grande humildade e

enorme paciência ao me orientar, não abdicando todavia do rigoroso jeito de ser dos

alemães, principalmente com horários e datas. Em diversas situações da orientação, vieram

à tona os diferentes estilos de comportamento, mesmo no ambiente acadêmico, que tendem

a caracterizar, grosso modo, alemães e latino-americanos. Por mais de uma vez, professor

Otte chamou-me a atenção para o acentuado tom político que meus escritos insistiam em

assumir.

No final do primeiro semestre de 2008, implementamos de fato nossa pesquisa, que

teve por objetivos discutir o papel da metáfora para a representação e comunicação de

ideias matemáticas e identificar implicações que uma abordagem da matemática com foco

na metáfora poderia promover à Educação Matemática.

Durante o mestrado, participei, com produção, em eventos científicos, regionais e

nacionais, expondo resultados parciais de minha pesquisa, e pude assistir a seminários e

palestras das principais referências em Educação Matemática no país. Esses foram

momentos de muito aprendizado, os contatos estabelecidos me renderam parcerias que

duram até hoje. Percebi então, nessa época, que a escolha pelos estudos e atuação em

Educação Matemática era um caminho sem volta, não só pela completa identificação com

a área, mas porque minha formação acadêmica também ganhava contornos de formação

profissional na área, que futuramente me levaria de volta ao mundo do trabalho.

Devido ao intenso ritmo de produção dos alunos e dos professores de nossa linha de

pesquisa, ao final de 2008, já havíamos concluído as disciplinas do curso, restando apenas

um estágio docência e um seminário para meados de 2009, e nossa pesquisa já se

encontrava bem encaminhada. Foi nessa época que surgiu uma nova oportunidade que

51

produziria mudanças em minha vida. Trata-se do concurso público para professor de

matemática oferecido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de

Rondônia – IFRO, com vaga para o Campus Ji-Paraná. Vislumbrei assim a possibilidade

de retornar à minha terra natal para trabalhar em uma instituição federal de ensino.

Inscrevi-me no concurso e, em fevereiro de 2009, fui nomeado para tomar posse na nova

instituição. Para isso precisei da autorização de meu orientador, uma vez que implicaria

retornar a Ji-Paraná, distanciando-me das atividades do mestrado. Professor Otte, muito

compreensivamente, aceitou minha vinda para Ji-Paraná, com a condição de que eu

retornasse a Cuiabá pelo menos uma vez por mês para orientação e apresentação dos

resultados alcançados na pesquisa.

Deste modo, em março de 2009, eu estava de volta à sala de aula em minha cidade

natal. Durante todo o ano, além de trabalhar com disciplinas de matemática e estatística em

cursos técnicos integrados ao Ensino e Médio e subsequentes ao Ensino Médio, participei

de comissões para elaboração de projetos de curso, projetos de pesquisa e outras atividades

relacionadas à implantação do IFRO – Campus Ji-Paraná. Sentia-me agora não mais

apenas um estudante, mas também um trabalhador em Educação Matemática, porque os

estudos teóricos e os aprendizados construídos ao longo da formação, agora interferiam

diretamente no meu fazer pedagógico. Sabia que as aulas que ministrava não se resumiam,

simplesmente, ao ensino de números e equações. Tratava-se de algo muito mais amplo.

Tratava-se de assumir a diferença entre ensinar matemática e educar pela matemática em

um contexto amazônico, com todas as consequências que tal ato proporciona.

Entre abril e junho de 2009, realizei estágio docência na disciplina Variáveis

Complexas do curso de Licenciatura em Matemática da UNIR – Campus de Ji-Paraná, sob

orientação do professor Marlos Albuquerque, em cumprimento aos requisitos do mestrado

em Educação da UFMT. Em dezembro de 2009, minha dissertação estava pronta para

qualificação, o que ocorreu mediante banca de avaliação composta por meu orientador,

pela professora Dra. Gladys Denise Wielewski (UFMT) e professora Dra. Tânia Maria

Mendonça Campos (UNIBAN).

Na dissertação, fizemos primeiramente uma análise da evolução histórica de

concepções a respeito da relação entre linguagem e conhecimento, tomando como

principais referências ideias de Aristóteles, Cícero, Descartes, Leibniz, Hobbes e

Condillac, com destaque para o status epistemológico privilegiado atribuído à Matemática

no início da Idade Moderna. Em seguida, resgatamos concepções de metáfora em

diferentes períodos históricos e situamos tais concepções no panorama das relações entre

52

linguagem e conhecimento científico ao longo da história do pensamento ocidental.

Identificamos que a distância entre retórica e conhecimento aumentou significativamente

com o advento do pensamento moderno, para voltar a se reduzir na passagem dos tempos

modernos ao tempo contemporâneo, quando surgiram teorias de metáfora que sugerem que

todo o conhecimento humano está ancorado em perspectivas metafóricas.

Tais teorias, principalmente da matriz norte-americana de Max Black, Donald

Davidson e George Lakoff, fornecem a base para se conjecturar que toda exposição de

ideias matemáticas é essencialmente metafórica. Tomando como fundamentação este

arcabouço teórico, exploramos implicações para a Educação Matemática geradas por uma

abordagem da Matemática na perspectiva da metáfora. Como resultados, verificamos que

tal abordagem possibilita imediata mudança paradigmática no tratamento dado ao ensino

da Matemática no que diz respeito à representação e comunicação de seus objetos,

apontando-se para uma relativização da objetividade da Matemática. Verificamos também

uma possibilidade de valorização da linguagem figurada como forma de representação e

comunicação dos objetos matemáticos, uma possibilidade de reconhecimento da

subjetividade e da contingência do conhecimento matemático, e uma possibilidade de

reconhecimento do caráter cultural e social de toda teoria matemática.

Em 4 fevereiro de 2010, no auditório do Instituto de Educação da UFMT, realizei a

defesa da dissertação intitulada “Metáfora e Matemática: a contingência em uma disciplina

escolar considerada exata”, sob avaliação da mesma banca examinadora da qualificação e

com presença dos colegas de mestrado da linha de pesquisa Educação em Ciências e

Matemática. Alcançava, naquela data, um estágio de minha formação acadêmica e

profissional que extrapolava todas as expectativas construídas até poucos anos atrás.

Quando se nasce na Amazônia e aqui se vive, nossas possibilidades de estudos e formação

acadêmica e científica tendem a se limitar às escassas oportunidades que as instituições

locais podem oferecer. Não obstante a diversidade humana, cultural, biológica, linguística

e de toda ordem de fenômenos sociais ou naturais que caracterizam a região, os

investimentos em universidades e institutos de pesquisa amazônicos são invariavelmente

subdimensionados em relação aos de instituições de outras regiões brasileiras. Isso tolhe,

consideravelmente, os sonhos de muitos jovens amazônicos de se dedicarem aos estudos

científicos e à atuação profissional nessa área.

Por outro lado, ao conseguir romper com esse gargalo geopolítico do ensino

superior brasileiro, com a oportunidade de conclusão de um curso de mestrado, passei a

sentir um estranhamento da minha formação em relação ao meu próprio solo natal. Nesse

53

sentido, passei a perceber na prática e em minha atuação docente que, embora minha

formação acadêmica a essa altura tivesse ganho em universalidade, tendo estudado

filosofia e epistemologia da matemática a partir de referências clássicas do velho mundo,

pouco havia avançado no sentido de conhecer e compreender melhor o espaço regional e as

relações sociais, políticas, econômicas e culturais que por aqui, na Amazônia, se

estabelecem. Esse sentimento foi se convertendo em inquietação, de modo que a

continuação dos estudos passou a ser um projeto de vida novamente.

1.6 O Doutorado da REAMEC

Desde os tempos do mestrado, eu vinha acompanhando as discussões sobre a

criação e implantação da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

(REAMEC), um projeto de grande escala para a formação de pesquisadores vinculados a

instituições amazônicas de ensino superior. Assim, ao ingressar no IFRO, procurei a Pró-

Reitoria de Pós-Graduação a fim de que verificassem a possibilidade de inclusão do

Instituto Federal de Rondônia na rede. O IFRO entrou em contato com a coordenação da

REAMEC e, após reuniões do colegiado, tal inclusão foi aceita.

Motivado pela situação de implantação em que se encontravam os Institutos

Federais de Educação no país, decidi inscrever-me no doutorado com o projeto de pesquisa

“Formação de professores para a educação em ciências e matemática em institutos federais

de educação, ciência e tecnologia: pressupostos teóricos e condicionantes reais”. A

intenção era investigar uma possível problemática originada pela potencial contradição

entre a demanda imposta pela Lei nº 11.892/08, ao exigir a oferta de formação de

professores através de cursos de licenciatura nos Institutos Federais, e a tradicional

ausência de estudos e referências que discutissem formação de professores nas instituições

da rede federal de educação profissional e tecnológica, em particular a formação

regionalizada na Amazônia. Investigar essa potencial problemática parecia relevante

porque as instituições da rede federal de educação profissional e tecnológica ofereciam,

tradicionalmente, formação de trabalhadores em áreas técnicas e tecnológicas, de modo

que o perfil acadêmico predominante dos docentes que compunham seus quadros podia

estar distante daquele requerido para a formação de professores em cursos de formação

inicial ou continuada.

54

Tendo ingressado no doutorado no final de 2010 com esse projeto, não seria ele,

todavia, executado porque outra grande mudança ocorreria em minha vida, provocando

uma alteração nos rumos de minha formação acadêmica e atuação profissional.

1.7 A Docência Universitária e a Licenciatura Intercultural

À medida que o IFRO ia sendo implantado e assumindo características que

tradicionalmente definem as instituições da rede federal de educação tecnológica no país,

fui percebendo um certo estranhamento entre os planos e projetos que imaginava

desenvolver na instituição e a identidade que a própria instituição foi assumindo. Esse

estranhamento se aprofundou quando me vi impossibilitado de desenvolver plenamente

projetos de pesquisa e extensão, em razão da desproporcional carga horária que me era

exigida na dimensão ensino em sala de aula. Percebi então que, embora os institutos

federais estivessem equiparados, legalmente, às universidades, a dinâmica acadêmica de

funcionamento destas instituições diferenciava-se em muito dos espaços universitários,

com os quais sonhava um dia trabalhar. Restava-me assim buscar por outros espaços que

me proporcionassem uma maior identificação profissional. A universidade despontava

nesse cenário como a instituição onde de fato poderia realizar as atividades de ensino,

pesquisa e extensão, com maior liberdade de escolha e decisão.

Assim, em meados de 2010, ao receber a notícia de que a Universidade Federal de

Rondônia (UNIR) estava com edital de concurso público aberto, com vaga para professor

de Matemática, no Departamento de Educação Intercultural (DEINTER) do Campus de Ji-

Paraná, motivei-me a inscrever-me no concurso. Além de almejar melhores condições de

trabalho para o desenvolvimento acadêmico e profissional, a possibilidade de ingressar

como docente na universidade era desafiadora, porque trabalharia em um curso inovador,

voltado para a formação de professores indígenas, o que certamente me proporcionaria um

universo completamente novo de aprendizados. Vislumbrei ali a possibilidade de voltar a

estudar, pesquisar e atuar profissionalmente e plenamente no contexto amazônico,

respondendo em parte as angústias que me acompanhavam desde a conclusão do mestrado.

Mas o que eu sabia de formação de professores indígenas ou de educação escolar

indígena? Havia estudado genericamente temas relativos à Etnomatemática, porém apenas

como uma das tendências em Educação Matemática. Nenhuma experiência concreta, de

pesquisa ou de docência havia experimentado ainda nesse campo com povos indígenas.

Essa inexperiência iria pesar muito na decisão de trocar de instituição. Tive seis meses para

55

pensar sobre isso, período em que consultei meus ex-professores na UNIR, recebi o

incentivo e o apoio das pesquisadoras da área de educação escolar indígena e

companheiras de trabalho no IFRO, Jânia Paula e Lediane Felzke, e o incentivo decisivo da

professora da UNIR, Edineia Isidoro, então coordenadora do Curso de Licenciatura em

Educação Intercultural.

Encorajado por todas essas pessoas, finalmente ingressei como docente na UNIR,

em fevereiro de 2011. Era um novo momento que se iniciava em minha trajetória

acadêmica e de vida, mas intimamente ligado a um momento anterior, situado há nove

anos atrás, quando nessa mesma instituição havia ingressado como estudante de graduação.

Conviver com meus ex-professores, agora como companheiros de trabalho, foi outra

experiência nova e riquíssima em minha vida, que tem me oportunizado muito aprendizado

e profundas reflexões sobre o ser docente, a relação professor-aluno, o que representamos

na vida das pessoas e o impacto que nossas ações como professores e como pesquisadores

produzem no futuro daqueles que nos estão próximos.

Estas reflexões têm me proporcionado compreender o potencial que tem a educação

para transformar o ser humano e o meio em que vivemos. Essa compreensão nos impõe,

como estudantes e pesquisadores em Educação Matemática na Amazônia, a grande

responsabilidade de contribuir com nosso trabalho para a reconstrução das relações que se

estabeleceram historicamente nesse espaço nos âmbitos culturais, políticos, econômicos,

sociais e ambientais. Nesse sentido, a decisão de ingressar na UNIR e trabalhar com

formação de professores indígenas não poderia ter sido mais acertada. Sinto-me de volta,

enquanto ser amazônico e como pesquisador, às minhas origens, e não há sensação melhor

do que atuar em uma instituição com a oportunidade e a liberdade de imergir na

complexidade cultural deste universo tão diverso que é a região em que vivemos.

1.8 A Definição da Pesquisa

Quando ingressei no corpo docente do Departamento de Educação Intercultural da

UNIR, o Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural já havia iniciado, no ano

de 2009, visando formar professores indígenas em nível superior para atuarem nas escolas

existentes em suas respectivas comunidades. Então, quando comecei minhas atividades de

ensino, pesquisa e extensão no curso, 124 estudantes já se encontravam matriculados,

representando 17 povos distintos, de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso, a saber: Paiter,

Zoró, Gavião, Karitiana, Djeoromitxi, Cinta Larga, Arara, Sabanê, Aikanã, Tupari, Kanoé,

56

Makurap, Poruborá, Cabixi, Arikapu, Wari e Karipuna. As diferenças linguísticas, culturais

e étnicas dos estudantes tornavam as salas de aula um microuniverso bastante

representativo do que realmente é essa parte da Amazônia, ao mesmo tempo em que

elevavam exponencialmente a complexidade do fazer pedagógico docente. Os primeiros

momentos de atuação no curso me proporcionaram aprendizados que, em vinte e oito anos

de vida, ainda não havia experimentado. A invisibilidade imposta aos povos e culturas

indígenas pelos sistemas de ensino aos quais fui submetido ao longo de minha formação

escolar desfazia-se agora em um ritmo que eu não dava conta de assimilar totalmente na

velocidade que uma completa compreensão me exigia. Essa situação me fez, por diversas

vezes, recorrer aos colegas mais experientes e com eles aprender a como dialogar

minimamente com tamanha diversidade cultural em sala de aula.

Dentre os estudantes matriculados, dezoito eram paiter, todos homens, com os quais

passei a conviver, por meio da relação professor/aluno na universidade, mas também em

outros momentos, incluindo-se a orientação em projetos de iniciação científica nas aldeias

e de trabalhos de conclusão de curso de graduação. Para mim, essa convivência significou

um reencontro após duas décadas do primeiro convívio com esse povo na Rondolândia de

minha infância, de suas visitas ao comércio de minha mãe e de minhas estadias na Terra

Indígena Sete de Setembro, durante a exploração de madeiras com meu pai. Seriam

algumas daquelas crianças paiter das brincadeiras atrás do balcão do bolicho de minha mãe

meus alunos agora? Certamente não éramos os mesmos. A história tratou de dar rumos

distintos às vidas de cada um, ao mesmo tempo em que nos forneceu elementos para

modificar essencialmente as representações que fazemos uns dos outros no presente, e a

representação de nós mesmos a partir do outro, nessa relação de alteridade, às vezes

constrangedora, que a atual convivência nos impõe.

Digo constrangedora porque constrangimento é um sentimento comum que passou

a fazer parte do meu fazer docente no curso. A relação entre matemática e formação de

professores indígenas tem sido para mim tão problemática e questionadora de princípios,

valores e atitudes, que às vezes o meu pensar sobre o fazer docente praticado com os

estudantes leva-me para os limites da consciência moral que as relações interculturais,

quando buscadas conscientemente, impõem-nos muito severamente. E quanto mais me

aprofundo no estudo das relações históricas estabelecidas entre colonizadores e povos

indígenas amazônicos, quanto mais a convivência com meus alunos insiste em trazer para

o presente o passado miserável que a história da humanidade proporcionou neste espaço

sobre o qual pisamos hoje, mais se impõe sobre mim a pele do colonizador e o sentimento

57

de ser parte de um enredo de transgressão e homogeneização cultural que ainda não teve

fim.

Como lidar com isso? Como superar os extremos identitários que a relações

interculturais nos impõem? O peso da história recente se faz tão presente que parece que,

por mais que nos viremos pelo avesso, por mais que rasguemos nossas peles e dela

retiremos todo e qualquer vestígio que remeta à herança da colonização, ainda assim

continuamos impregnados dos ranços que caracterizaram essa parte da história humana no

mundo.

Na tentativa de contornar minimamente esse constrangimento, minha prática

pedagógica no curso tem se orientado pela perspectiva da educação intercultural, segundo

a qual a educação escolar deve ser promovida a partir do diálogo entre diferentes saberes,

reconhecendo e valorizando as culturas e as tradições dos sujeitos envolvidos no processo.

Essa perspectiva, quando assumida no contexto da educação escolar indígena, pressupõe

educar a partir da promoção do diálogo entre saberes e fazeres indígenas, cultural e

historicamente situados, e saberes e fazeres não indígenas, também cultural e

historicamente situados. Nesse contexto, uma problemática originou-se em minhas

atividades docentes: durante a oferta de disciplinas de “Etnomatemática e Temas

Fundamentais em Matemática”, o diálogo entre o saber matemático acadêmico e os saberes

matemáticos tradicionais dos discentes indígenas tornou-se inviabilizado, dada a escassez

de pesquisas e registros destes saberes tradicionais, ou mesmo o desconhecimento parcial

pelos acadêmicos dos saberes e fazeres matemáticos de seus próprios povos.

Surgiu-me então a constatação de que, não obstante a multiplicidade de povos

indígenas existentes na região, com suas diferentes línguas e modos de vida, existem

poucas pesquisas realizadas sobre seus saberes e fazeres matemáticos, sendo raros os

estudos regionais dessa natureza, entre os quais se destaca por sua relevância o trabalho de

Silva (2008) com o povo Gavião, da Terra Indígena Igarapé Lourdes, localizada no

município de Ji-Paraná. Em particular, há uma relativa ausência de pesquisas regionais

naquela que caracterizaremos mais à frente como a primeira fase da Etnomatemática,

iniciada na década de 1970, fase em que a preocupação dos pesquisadores centrou-se na

identificação, no registro e na tradução de diferentes matemáticas, social e culturalmente

contextualizadas.

Na medida em que aprofundei as discussões em sala de aula com os estudantes

indígenas, a partir de referenciais teóricos tais como D’Ambrosio (2009, 2011), Gerdes

(2002, 2010), Ferreira (2002) e Vergani (2007), fomos percebendo que, além da relativa

58

inexistência de registros dos saberes matemáticos tradicionais dos povos indígenas em

Rondônia, a continuidade, a revitalização e a reprodução destes saberes, assim como das

línguas, estão em risco, em diferentes graus, uma vez que as novas gerações, inseridas em

dinâmicas educacionais externas às comunidades e oriundas das relações com a sociedade

envolvente, distanciam-se de suas culturas e perdem, consequentemente, características

que lhes garantiriam a manutenção de suas identidades como membros de sociedades

específicas e detentoras de fazeres e saberes próprios. Em particular, tem ocorrido em

menor ou maior grau a perda da própria língua materna.

Motivado por essa problemática, e na dupla condição de trabalhador e estudante da

Educação Matemática na Amazônia, escolhi como contexto para meus projetos de pesquisa

e extensão as relações entre educação escolar indígena e saberes e fazeres matemáticos,

cultural e historicamente situados em Rondônia, como contribuição mínima para a

superação da pequena quantidade de estudos e pesquisas em Etnomatemática na região.

Assim, passei a orientar os acadêmicos matriculados em minhas disciplinas, e em projetos

de pesquisa e extensão, para a introdução em atividades práticas de registro de saberes e

fazeres matemáticos presentes na oralidade e na memória dos membros mais velhos de

suas comunidades, considerando-se estes como os depositários do patrimônio cultural

imaterial que constituem os saberes e fazeres de seus povos. Resultaram destas atividades

práticas alguns registros iniciais sobre termos numéricos, sistemas de medida e geometrias

paiter.

Sobre o significado, a importância e a dimensão social e política destas atividades,

é significativa a fala de uma liderança paiter, registrada em uma de minhas visitas à aldeia

Gapgir:

Essa iniciativa de vocês como universidade me deixa mais motivado e fortalecido diante da pressão cultural externa, que cada dia faz com que o Povo Paiter Suruí deixe de valorizar seus próprios conhecimentos e tradições imemoriais, como danças, cantos e festas e como atividades, como fazer maloca tradicional, arte em geral dos Paiter (LP1∗

– Aldeia Gapgir).

Como os acadêmicos indígenas paiter já são professores contratados pela Secretaria

Estadual de Educação para atuarem nas escolas existentes nas aldeias, atualmente se

∗ Visando preservar a identidade dos participantes da pesquisa, adotaremos os códigos LPi e PPi em substituição a seus nomes, respectivamente para Liderança Paiter (LP) e Professor Paiter (PP), sendo o índice i indicativo da ordem de registro das falas nos momentos de observação participante ou de entrevistas semiestruturadas ao longo da pesquisa.

59

observa um interesse e uma preocupação em introduzirem em suas escolas o ensino de

saberes e fazeres matemáticos do povo, a exemplo do que já ocorre com a língua materna,

a arte e a história. E aqui se situa uma questão central, ou seja, trata-se de duas dimensões

diferentes, mas que se complementam. Embora aparentemente alfabetizar na língua

materna seja uma coisa, estabelecida em uma dimensão, e introduzir as práticas

matemáticas na escola seja outra, dada em outra dimensão, é possível postular uma

interseção entre essas práticas, gerando questionamentos tais como: Como fazer? Isto é,

como valorizar e introduzir os saberes matemáticos paiter na alfabetização? Como a

interseção dessas dimensões pode ressignificar as práticas pedagógicas em curso?

Essa preocupação em grande medida se acentuou a partir de discussões e estudos

teóricos realizados pelos professores indígenas no curso de formação oferecido pela

universidade. Como dito acima, atividades práticas de registros de saberes e fazeres

matemáticos paiter foram realizadas, resultando em um material mínimo para a introdução

destes saberes em sala de aula nas escolas das aldeias.

A esse respeito, é representativa do atual estágio em que se encontra o movimento

dos professores paiter a fala do jovem docente que, ao participar de um projeto de iniciação

científica visando a sistematização de dados iniciais sobre termos numéricos, marcadores

de tempo e geometria do povo Paiter, iniciou a produção de material didático para a

introdução destes saberes em suas aulas, em turmas das séries iniciais do Ensino

Fundamental na escola da aldeia:

Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de suma importância, porque o conhecimento matemático que conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje, trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional, conhecimento milenar que foi passado de geração em geração. Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma matemática não indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior é até mesmo de questão de identidade cultural paiter (PP1 – Aldeia Gapgir).

Porém, não obstante a motivação e o interesse pelo ensino de saberes e fazeres

matemáticos tradicionais, existe uma carência de orientações metodológicas e práticas para

a introdução destes saberes em escolas indígenas. Orientações gerais tais como as contidas

60

no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (BRASIL, 1998) servem

mais como princípios norteadores das práticas do que como sugestões de metodologias

propriamente ditas. Um dos motivos para isso é a diversidade de povos indígenas

existentes no Brasil, o que proporciona a existência de uma multiplicidade de saberes e

fazeres, inviabilizando deste modo, por exemplo, a produção de materiais didáticos

nacionais para escolas indígenas.

Desse modo, uma nova problemática surgiu em minha atuação docente, qual seja a

de que não bastava identificar ou registrar saberes e fazeres matemáticos indígenas, se não

há uma produção teórica que fundamente práticas pedagógicas de professores indígenas

em diferentes contextos e culturas, superando inclusive a disciplinarização desses saberes

ao serem inseridos nas escolas de suas comunidades. Desse modo, cada experiência de

introdução ao ensino de saberes e fazeres matemáticos tradicionais em escolas indígenas

do país configura-se em um ineditismo, porque, como é de se esperar, as práticas e

metodologias adotadas nestas experiências devem ser fundamentadas e permeadas pela

visão de mundo, a cosmologia, os mitos, os rituais, o modo de produção material e a

organização social de cada povo. Qualquer prática que não leve em consideração tais

aspectos, ao final será homogeneizadora, e não atenderá aos princípios que se espera de

uma educação escolar indígena diferenciada, quanto às particularidades de cada cultura e à

autonomia de cada povo.

Diante de tal quadro, passa a integrar implicitamente minha postura e meus atos

como formador não-indígena de professores indígenas uma questão de alteridade, a partir

da qual assumo como necessidade não apenas conhecer a cultura do outro, mas também

aceito que meus conhecimentos e minhas representações das relações sociais e do mundo

tornem-se passíveis de mudanças. Nesse sentido, corroboro com a perspectiva de Maria do

Carmo Santos Domite, ao afirmar que,

[...] quando pensamos a relação formador não indígena e professor indígena – o qual, por sua vez, estará orientando/formando a criança e o adolescente indígena –, todos os educadores, em especial aqueles formadores de professores externos a sua cultura, deveriam se imbuir da atitude de alteridade, procurando construir no encontro com o “outro” diferente uma transformação em seus conhecimentos e representações culturais (DOMITE, 2009, p. 187).

61

Diante de tal contexto, inédito em minha vida, no qual minha atuação profissional

confundiu-se com o meu fazer enquanto pesquisador, exigindo-me novas reflexões, novas

posturas e ações, uma nova maneira de compreender o outro e a mim mesmo, procurei

retomar minha formação doutoral. Percebi então que meus referenciais teóricos, por

necessidade advinda da atuação docente no curso de formação de professores indígenas,

haviam mudado substancialmente daquele com o qual eu elaborei o projeto de pesquisa

original para ingresso na REAMEC. Não fazia mais tanto sentido pesquisar formação de

professores na rede federal de educação tecnológica, quando o universo que passou a

circundar-me era completamente outro, com outras demandas, exigindo-me outras

reflexões, outros olhares.

O que poderia ser basicamente uma exigência formal do processo de doutoramento,

a construção de uma tese, passou a se confundir com a própria necessidade de

sobrevivência nesse novo espaço de minha atuação, nesse entre-lugar, onde o encontro de

culturas diferentes exige, impõe e ordena que se aprendam elementos práticos e teóricos

completamente novos, novas referências. Fui buscar estas referências no estudo da

Interculturalidade, da Educação Escolar Indígena e da Etnomatemática. Não tinha a

esperança de encontrar respostas prontas e pré-concebidas em tais referenciais para

orientar o meu fazer pedagógico e de pesquisa, porque, pela experiência própria que estou

vivenciando, não se encontram respostas mágicas, receitas, prontuários, modelos que deem

conta do processo complexo que é a formação de professores indígenas. Daí a pesquisa, em

cada caso, ser tão necessária e elementar.

Diante dessa problemática, redefini meu projeto de pesquisa no doutorado, com o

objetivo de explorar localmente as relações entre interculturalidade, educação escolar

indígena e etnomatemática, assumindo a necessidade de compreender tais relações a partir

de práticas discursivas dos próprios sujeitos, estudantes e professores indígenas, com os

quais convivo atualmente no ambiente acadêmico, na universidade e nos espaços

tradicionais das aldeias. Estabelecia-se, assim, um novo objeto de pesquisa, relacionado a

concepções e ideias de professores indígenas presentes em práticas discursivas, ao

projetarem para as escolas de suas aldeias novos elementos, novas práticas, em especial,

uma nova forma de abordar a matemática escolar. Certamente não seria um “objeto”

isolado e livre de minha própria atuação no curso, como professor de matemática, visto que

os sujeitos das práticas discursivas são também meus alunos, orientandos em trabalhos de

conclusão de curso, bolsistas em projetos de extensão. Também não seria uma pesquisa de

mão única, no sentido de buscar somente compreender parcialmente o que o outro pensa,

62

por que pensa e o que faz, por que faz, mas também compreender o meu próprio fazer,

minhas próprias concepções, reorientar minhas ações. Tal é a natureza que a pesquisa

passou a assumir, que em certos momentos não se distinguiu o que era minha atuação

docente no curso, o professor, o orientador ou o pesquisador de doutorado.

Se por um lado estava evidente a necessidade de reorganizar minha pesquisa no

doutorado, por outro não foi tão fácil situar formalmente o novo projeto dentro do

programa. Houve a necessidade de trocar de linha de pesquisa e também de orientador.

Assim, passei da linha de formação para a de fundamentos, e professor Michael Otte, como

primeiro orientador, gentilmente aceitou a troca de orientação. A partir de então, professor

Erasmo Borges passou a me orientar na pesquisa, numa parceria que certamente renderá

mais frutos acadêmicos do que a tese, tal é o conjunto de novas ideias que surgiram desde

então, a partir de suas compreensões teóricas e de suas experiências com o universo

indígena.

Dada a inviabilidade de se investigar simultaneamente concepções e ideias

subjacentes presentes em práticas discursivas de professores indígenas de diferentes etnias,

em diferentes e distantes espaços, houve a necessidade de escolher um povo para a

realização da pesquisa. Por uma afinidade que possivelmente as memórias de infância e o

inconsciente explicam, mas também por condições de trabalho, escolhi trabalhar com o

povo Paiter, na medida em que também me senti “escolhido”. A terra indígena Sete de

Setembro, território do povo Paiter, foi a primeira a que tive a oportunidade de visitar na

condição de professor da UNIR. Desde minha primeira visita à aldeia Gapgir, da Linha 14,

situada no município de Cacoal, Rondônia, em 21 de janeiro de 2012, senti-me acolhido

pela comunidade, por suas lideranças, e passei a acompanhar as lutas e desafios

enfrentados por esse povo. Desde então, outras visitas se seguiram, incluindo a estadia em

diferentes aldeias do território paiter, durante atividades de pesquisa e de extensão

vinculadas ao Departamento de Educação Intercultural da UNIR. Dos dezoito estudantes

paiter inicialmente matriculados nesse curso, um desistiu. Dos dezessete restantes, por

questões de acessibilidade às aldeias ou por disponibilidade, dez aceitaram participar como

sujeitos na pesquisa, sendo residentes das aldeias Gapgir, Amaral, Lapetanha, Joaquim,

Lobó e Paiter. Dentre eles, dois são do clã Gapgir, seis são Kaban e dois são Gamep.

Uma vez definidos o local e os sujeitos, a proposta de pesquisa justificou-se pela

necessidade de estudo e investigação de ideias presentes em práticas discursivas em

construção por professores indígenas voltadas para a projeção do ensino de saberes e

fazeres matemáticos paiter em escolas nas aldeias, bem como pelo interesse em se

63

identificar os fundamentos de tais práticas discursivas como intenções e pressupostos.

Espera-se que os resultados da pesquisa possam contribuir com a construção de subsídios

teóricos e práticos à implantação de novas experiências formais de ensino escolar em

comunidades indígenas, em interseção com saberes e fazeres da tradição de tais

comunidades, na perspectiva da Etnomatemática, e que tais subsídios possam contribuir

com a formação de professores indígenas em Rondônia e em outras regiões.

Nesse contexto, em consonância com a linha de pesquisa Fundamentos e

Metodologias para a Educação em Ciências e Matemática, assumimos o seguinte

problema de pesquisa: Que motivações e ideias subjazem às atuais práticas de professores

paiter voltadas para a revitalização de saberes e fazeres matemáticos tradicionais

significativos para a cultura paiter nas escolas das aldeias? Que problematizações isto

pode produzir para a ressignificação de práticas pedagógicas institucionalizadas nas

escolas das aldeias, que priorizam a matemática escolar em detrimento dos saberes da

tradição paiter?

Frente a essas problemáticas, estabelecemos como objetivo geral da pesquisa

compreender, na perspectiva da Etnomatemática, ideias, pressupostos e seus fundamentos

utilizados por professores indígenas na projeção do ensino de saberes e fazeres

matemáticos paiter e suas interseções com a cultura do povo Paiter, em escolas da Terra

Indígena Sete de Setembro, em Rondônia. Como desdobramento, elegemos os seguintes

objetivos específicos: 1) identificar os afazeres dos professores indígenas contextualizados

na escola, na aldeia e na universidade que tenham relações com o ensino de saberes e

fazeres matemáticos paiter; 2) estudar ideias, concepções e motivações que fundamentam

as práticas destes professores vinculadas à seleção, organização e ensino de saberes e

fazeres matemáticos de seu povo; e 3) analisar problematizações que estas práticas podem

produzir no processo de ressignificação de outras práticas pedagógicas já instituídas nas

escolas das aldeias.

Tendo o projeto de pesquisa definido, aprofundei-me nos estudos bibliográficos

relacionados ao povo Paiter, à Educação Escolar Indígena, aos Estudos Culturais e à

Etnomatemática, e paralelamente também dei início à produção de dados. As seções

seguintes desta tese apresentam os resultados das pesquisas bibliográfica e de campo

realizadas ao longo dos três últimos anos, que se caracterizaram como uma fase de minha

vida na qual tive o privilégio de conviver com pessoas que me proporcionaram

aprendizados que surtirão efeitos sobre o resto de minha vida. Como marcas impressas

sobre meu ser a partir da convivência com os Paiter, tenho agora elementos práticos e

64

teóricos para ressignificar a brincadeira de meu avô Expedito ao me chamar de Suruí no

início dos anos 1990. Na convivência com os professores paiter, tornei-me membro de um

um clã e ganhei um nome na língua paiter dado por PP2. Agora sou Gapgir e meu nome

em paiter é Soesamekar (o curioso ou o perguntador).

Infelizmente, minhas limitações teóricas e técnicas em relação à escrita

impossibilitam-me de registrar todas as impressões vivenciadas no decorrer da pesquisa

com o povo Paiter, os pensamentos e ideias expressas pelos professores paiter, as reações e

emoções que as entrevistas às vezes traziam à tona. Em todo caso, a riqueza das falas dos

professores, a respeito das quais meu fazer interpretativo através de uma técnica de análise

delimitada em uma pesquisa qualitativa é apenas uma das possíveis aproximações, ficarão

disponíveis nos apêndices da tese, como um testemunho e um retrato de um momento

histórico de construção de um pensamento crítico pelos professores paiter na

ressignificação da educação escolar existente em suas comunidades.

65

2 ESTABELECENDO ENCONTROS OU O INÍCIO DE UMA NOVA

CAMINHADA

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa que resultou nesta tese de doutorado,

três encontros se destacam em minhas vivências como instâncias significativas de

produção de conhecimentos. O primeiro deles sem dúvida foi o meu reencontro com o

povo Paiter, após anos de uma primeira convivência com membros da comunidade em

minha infância. O segundo, de caráter teórico, resultou do encontro com novos conceitos e

ideias sobre etnomatemática, educação escolar indígena e interculturalidade proporcionado

pelos estudos teóricos que a pesquisa demandou. O terceiro encontro se caracterizou como

a descoberta do percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva, como técnica auxiliar

na análise de dados produzidos na pesquisa.

É a partir desses três encontros, entendidos também como momentos de uma nova

caminhada em minha vida, em particular em minha formação acadêmica, que busco

organizar as próximas seções dessa tese.

2.1 O (re)encontro com o Povo Paiter

Após duas décadas de uma convivência com membros do povo Paiter em minha

infância, tive a oportunidade de retornar à Terra Indígena Sete de Setembro a partir de um

convite de um orientando de iniciação científica para visitar sua comunidade, a aldeia

Gapgir. Foi nesse espaço que o cacique LP1 me recebeu em 21 de janeiro de 2012, durante

minha primeira visita à aldeia como professor do Departamento de Educação Intercultural

da UNIR. Ali, fui introduzido de forma muito especial na história dos Paiter, por meio de

relatos de LP1, hoje um senhor de 59 anos, um jovem de 15 anos à época do contato.

Nesse mesmo espaço, em diferentes momentos, pude assistir a atividades culturais

tradicionais de arco e flecha, dança e canto, participar de reuniões, oficinas e outras

atividades cotidianas da comunidade.

Sentados em bancos tradicionais paiter (iamah) dentro de uma das malocas

(labmoy), conversamos por longas horas sobre diversos assuntos, que permearam

narrativas do contato, desafios enfrentados pelo povo na atualidade, projetos e parcerias

66

institucionais, e saberes matemáticos do povo Paiter. Um dos filhos de LP1 é estudante do

curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural na Universidade Federal de

Rondônia, e meu orientando em um projeto de iniciação científica sobre saberes e fazeres

matemáticos paiter. Na oportunidade da primeira visita à Gapgir, conversamos também

sobre a pesquisa em andamento, os resultados obtidos e a importância dos mesmos para a

educação escolar na aldeia.

Enquanto uma fina chuva caía do lado de fora da maloca, na manhã do dia 21 de

janeiro de 2012, dentro dela conversávamos eu, LP1 e seu filho, meu orientando e

intérprete, entrecortados aqui e acolá por uma criança que passava brincando, ou pela

oferta de grãos de milho assados em brasas por duas mulheres paiter ao fundo da maloca,

esposas de LP1. Os Paiter são poligínicos, isto é, os homens podem ter duas ou três

mulheres, apesar dessa prática estar em extinção por serem condenadas pelas igrejas de

diferentes denominações inseridas atualmente nas aldeias. Há relatos de velhos que, após

anos de convivência com suas esposas, foram induzidos pelas igrejas a irem ao cartório da

cidade casarem-se “oficialmente” com apenas uma delas.

Ainda nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, LP1 convidou-me para conhecer sua

roça. Seguimos então por um estreito caminho por entre a floresta, acompanhados de outra

liderança da comunidade, LP2, com seu arco e flecha, e uma professora da UNIR, também

do Departamento de Educação Intercultural. Partimos a Nordeste da clareira das malocas, e

percorremos cerca de 300 metros distantes da aldeia. Chegamos então a uma clareira ainda

maior que a anterior, encontrando ali uma plantação de milho, cará e amendoim. Estes

produtos fazem parte da base alimentar dos Paiter desde antes do contato, sendo que outros

alimentos tradicionalmente cultivados são mandioca, batata doce, mamão, inhame e

banana vermelha (mocoba owa). Após o contato, novos produtos passaram a integrar a

produção para subsistência e para fins comerciais nas aldeias, com destaque para novas

variedades de mandioca, milho híbrido, feijão, arroz, abóbora, novas variedades de banana,

cana de açúcar e café.

2.2 Tão perto e tão longe: a consciência do desconhecimento entre vizinhos

amazônicos

Eu nasci em um local distante duas horas da roça de LP1. Moro no mesmo local

atualmente. No entanto, até aquele dia, com meus 28 anos de idade, ainda não havia estado

naquele lugar. Tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Essa é a sensação de ter nascido na

67

Amazônia e aqui viver, mas manter relações sociais tão distantes com os conterrâneos que

aqui já viviam há bem mais tempo que os meus ancestrais diretos.

Que distinção pode marcar um recém nascido que vem ao mundo em um hospital à

margem direita do Rio Machado, na cidade de Ji-Paraná dos anos 1980, no interior de

Rondônia, e outro recém nascido que vêm à luz no interior de uma maloca paiter no

mesmo período, em um local distante duas horas do anterior? Naturalmente, nenhuma. É a

mesma humanidade, essencialmente a mesma espécie, potencialmente o mesmo ser. No

entanto, o desenrolar da vida de cada um desses seres humanos vincula-se ao peso da

história, que trata de dar caminhos diferentes aos que são originalmente e potencialmente

iguais. O destino de cada um, definido muito mais pelo passado e pelo presente, do que por

um determinismo futuro já traçado, tende a tomar rumos diferentes já nos primeiros dias de

vida, tão logo sejam submetidos às âncoras culturais de seus pais e da sociedade local onde

vivem.

Eu poderia ter nascido paiter, se o local de minha concepção e de meu nascimento

tivesse sido transferido cento e cinquenta quilômetros a Nordeste do Hospital Cosme e

Damião. Se assim tivesse ocorrido, eu falaria uma língua do tronco Tupi, da família

Mondé, e pertenceria a um dos clãs paiter Gapgir, Gamep, Makor ou Kaban. Durante

minha infância teria ouvido meu pai, minhas mães, tios e avós contarem histórias dos

antepassados, das guerras com outros povos, os Zoró, os Cinta-Larga, os Cabeça-Seca, os

brancos. Teria ouvido dizer que os conflitos com estes últimos fizeram meu povo sair de

terras próximas a Cuiabá e se dirigir para o Noroeste no tempo de algumas gerações

anteriores à minha. Teria ouvido que, na origem da humanidade, Palop transformou os

ossos que sobraram dos últimos paiter na morada das onças em paiter novamente.

Conheceria a história do Gavião Real e saberia por que a lua tem uma parte clara e outra

manchada.

Se eu tivesse nascido paiter, possivelmente teria casado com uma sobrinha materna,

teria participado da festa do Mapimaí como parte da metade da aldeia ou da metade da

floresta e saberia construir minha própria casa, manusear arco e flecha, bater timbó no rio.

Possivelmente também saberia confeccionar e tocar flautas e, com alguma sorte, saberia

entoar meus próprios cantos e falar com os espíritos. Também teria estudado com

professores não-indígenas, aprendido a língua portuguesa, entrado em contato com a

cultura do branco, escolhido por minha comunidade para ser professor na escola construída

em minha aldeia.

68

Se assim fosse, provavelmente eu teria cursado o Magistério Indígena do Projeto

Açaí, organizado pelo Governo do Estado de Rondônia, e ingressado na Licenciatura em

Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, juntamente com

professores de mais dezesseis povos indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso.

Na universidade, teria realizado muitas leituras, entrado em contato com novas ideias,

entre elas algumas que dizem respeito à educação matemática e, em particular, à

etnomatemática. Tendo a oportunidade, teria ingressado em algum projeto de iniciação

científica para realizar pesquisas sobre os conhecimentos do meu povo. Possivelmente,

teria convidado então meu orientador para conhecer minha comunidade, minha família,

meu território.

Devido às condições históricas e às duas horas de distância entre os locais de

concepção e de nascimento, não pude ser o estudante universitário paiter a convidar o seu

orientador de iniciação científica para a visita a sua comunidade. Mas, também, com

alguma sorte, e devido às mesmas condições históricas, expostas parcialmente na seção

anterior dessa tese, pude ser o orientador convidado, tendo iniciado a partir de então uma

convivência que resultou em muitos aprendizados sobre o povo e com o povo Paiter.

2.3 Nós Mesmos e os Outros: quatro décadas de mudanças e resistências

Os Paiter vivem atualmente na divisa entre os estados de Rondônia e Mato Grosso.

Seu atual território, a Terra Indígena Sete de Setembro (Figura 1), com área de 247.870

hectares, demarcada em 1976 e homologada em 1983, estende-se do município de

Cacoal/RO, ao Sul, até o município de Rondolândia/MT, ao Norte. Sua língua é do tronco

Tupi, da família Mondé. Com uma população de 1130 pessoas (FUNASA, 2010),

distribuem-se em 20 aldeias, concentradas às margens do território, estrategicamente

situadas para impedir a invasão de posseiros e de colonos que, desde a década de 1970,

adentram a terra indígena, incentivados pelas políticas oficiais de “ocupação” da Amazônia

ou à procura de madeira.

De organização clânica, os Paiter compõem-se de quatro subgrupos patrilineares e

exogâmicos: Gapgir, Gamep, Makor e Kaban, sendo que este último formou-se a partir do

casamento de um membro do clã Gamep com uma mulher do povo Cinta-Larga, seus

vizinhos, em tempos imemoriais.

69

Figura 1 – Localização da Terra Indígena Sete de Setembro, território do povo Paiter.

(Fonte: LABGET – Laboratório de Geomática e Estatística – UNIR, 2013)

O contato oficial dos Paiter com a sociedade nacional ocorreu no ano de 1969, ao se

encontrarem com uma expedição de atração (Figura 2) comandada pelo sertanista Apoena

Meirelles e seu pai, Francisco Meirelles, na sede do posto Sete de Setembro da FUNAI,

fundado em 7 de setembro de 1968 (daí o nome da terra indígena). Mindlin (1985) relata

que, nesse encontro, facões foram oferecidos de presente aos índios, em sinal de paz, mas

que, todavia, o momento foi marcado por tensões dos dois lados. Ainda hoje, as narrativas

nas aldeias relembram detalhes desse dia marcante para o povo, não só por terem iniciado

ali o conhecimento de um mundo novo e muito diferente do seu, mas também por ter sido

aquele o início de sofrimento, perda e morte. O nome atribuído pelos Paiter ao local é

Nambekó dabadaki bah, que se traduz em Português como o local dos facões pendurados.

Desde então, durante os 44 anos de contato e de convivência com a sociedade

envolvente, muitas transformações ocorreram na vida desse povo, desde o modo de

organização e produção material, até a realização de rituais e outras práticas tradicionais

vinculadas ao modo de vida paiter anteriormente existente. Em grande medida, estas

mudanças foram intensificadas pela presença de instituições tais como igrejas e escolas no

70

território paiter, e por força das relações econômicas estabelecidas com a sociedade

envolvente.

Figura 2 – Primeiro contato oficial dos Paiter com não-indígenas, em 1969. Foto: Jesco von Puttkamer/Acervo IGPHA-UCG.

Betty Mindlin, a primeira pesquisadora a conviver com os Paiter a partir de 1979,

relatou, uma década após o contato, as intensas modificações provocadas no modo de vida

do povo pelo choque com a fronteira econômica expandida pela ocupação empresarial da

Amazônia e pela explosão demográfica do então recém criado estado de Rondônia. A

pesquisadora fez o seguinte relato em sua tese de doutorado:

O período de pesquisa foi de muita mudança para os Suruí. Em 1979, quase não usavam dinheiro, a alimentação era a tradicional, e havia poucos bens industrializados. De 1981 em diante, passaram a ser pequenos produtores de café para o mercado (herdaram dos colonos invasores expulsos os lotes de café cultivado), embora continuassem com as atividades econômicas de antes, festas e rituais. O tempo de trabalho aumentara muito. Vários Suruí já tinham contas em banco, os hábitos de consumo se alteravam (MINDLIN, 1985, p. 15).

As mudanças pelas quais o povo Paiter passou a partir dos anos 1970, assim como

muitos outros povos indígenas da Amazônia, deveram-se principalmente às drásticas

transformações sociais, econômicas e ambientais às quais a região Norte do país foi

submetida a partir desse período. Até então, em particular para o caso dos Paiter, as

atividades econômicas voltadas à exploração intermitente de recursos naturais na região,

principalmente a borracha, não haviam interferido significativamente em seu modo de

vida, seja porque os colonizadores migrantes ainda eram em número relativamente

71

pequeno, seja porque os próprios Paiter evitassem o contato, migrando de um ponto a outro

dentro da floresta ainda praticamente intacta.

Porém, a construção da rodovia Cuiabá-Porto Velho, concluída em 1968,

inicialmente BR-29 e posteriormente BR-364, como parte das políticas de expansão de

mercados para a indústria nacional, de acesso a matérias primas na Amazônia e de

descentralização populacional do litoral do país, desencadeou o desmatamento rápido de

Rondônia a partir da década de 1970. Estima-se que até o ano de 1975 a área desmatada na

região totalizava 1.216,5 km2, saltando para 7.579,3 km2 em 1980 (FEARNSIDE, 1982),

para 41.521 km2 em 1987 (FEARSINDE, 1989), e para 51.000 km2 em 1990 (MILLIKAN,

1999), o que totalizava 21% da área total do estado.

Para além do desmatamento, outro fator impactante para a vida dos povos indígenas

da região foi o acelerado crescimento populacional decorrente da chegada de grande

contingente de migrantes, em sua maioria trabalhadores rurais pobres, a partir da década de

1970, vindos principalmente de áreas rurais do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Esse

explosivo fenômeno migratório estava ligado, por um lado, a sistemas arcaicos de posse de

terra e às desigualdades socioeconômicas que se agravavam na região Centro-Sul, e por

outro lado ao plano de desenvolvimento econômico do Governo Federal, em particular aos

projetos de assentamento de colonos na região amazônica, organizados pelo INCRA

(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Assim, a população humana em

Rondônia cresceu a uma taxa média anual de 15,8% na década de 1970, frente a uma taxa

média anual de 2,48% no restante do país, saltando de 110.000 habitantes em 1970 para

500.000 em 1980 (MILLIKAN, 1999).

A combinação de desmatamento com acelerado crescimento populacional nesse

período provocou profundos impactos na vida dos povos indígenas da região. Se por um

lado havia a pressão de milhares de trabalhadores rurais pobres (entre os quais se incluíam

meus pais, tios e avós) na busca desesperada de reestabelecer o acesso à terra perdida para

a agricultura industrial da monocultura de exportação do centro-sul, e o interesse de

empresas privadas de mineração, do setor madeireiro e de criação de gado, por outro lado

havia os povos indígenas, com suas diferentes culturas e estilos tradicionais de vida sendo

ameaçados pela expansão capitalista das fronteiras econômicas da sociedade nacional.

Para os Paiter em particular, esse período está marcado na memória como momento

de grande tragédia para o povo, sofrimento e tristeza. Significou ver seu território

tradicional invadido por colonos, entrar em contato com doenças até então desconhecidas e

ter sua própria existência física ameaçada de completo desaparecimento. Somente no ano

72

1974, metade da população paiter morreu, acometida de sarampo e gripe. Mesmo com a

demarcação da Terra Indígena Sete de Setembro em 1976, que, destaque-se, reduziu a área

tradicional ocupada pelo povo a menos da metade, os Paiter continuaram sob ameaça das

invasões de colonos, somente expulsos completamente do território em 1981, ano em que

as últimas famílias de agricultores, em sua maioria produtores de café, foram realocados

pelo INCRA em outras áreas (MINDLIN, 1985).

Os Paiter estão entre os povos da região que mais bravamente resistiram à invasão

de seu território tradicional pelos colonos. Embora a FUNAI fosse responsável pela

proteção e assistência aos índios, o órgão governamental pouco podia fazer frente à grande

pressão resultante do acelerado crescimento populacional, em grande parte incentivado

pelos próprios governos federal e estadual, assim como também foi impotente para evitar

os massacres sobre as populações tradicionais na região o SPI, o órgão indigenista

substituído pela FUNAI. A ineficiência e incapacidade de proteção do órgão indigenista

oficial somadas aos interesses do Governo Federal de alocação de grandes contingentes de

migrantes na região fizeram com que a Terra Indígena Sete de Setembro fosse demarcada

três vezes, antes da homologação em 1983, sempre tendo, nesse processo, sua área

reduzida para beneficiar os invasores com a distribuição das terras.

Os colonos, em sua maioria, eram agricultores pobres, expropriados de suas áreas

de cultivo nas regiões de origem pelo sistema latifundiário, em busca de restabelecer a

posse sobre um pedaço de terra, visto como esperança de prosperidade. Porém, também

havia grandes extensões de terra sob o domínio de poucos posseiros. Estes, protegidos pelo

governo, mantiveram suas áreas praticamente livres das invasões dos camponeses pobres.

Nesses conflitos agrários, os territórios indígenas eram os espaços mais vulneráveis à

invasão. Mesmo após a primeira demarcação da Terra Indígena Sete de Setembro, as

invasões tiveram continuidade, e em muitos casos os Paiter decidiram por conta própria

encaminhar as medidas necessárias à desocupação da área pelos invasores, dentro de suas

possibilidades. Na maioria dos casos, os colonos invasores foram convencidos pelos Paiter,

através do diálogo, a se retirarem. Mas houve situações em que o conflito armado foi

inevitável, havendo mortes dos dois lados.

Embora sejam escassos os dados documentais sobre os conflitos armados entre os

Paiter e invasores, Mindlin (1985) identificou alguns registros, em sua maioria relatando o

“ataque” dos Paiter aos colonos, mesmo antes do contato oficial ocorrido em 1969 (a

inconfundível pintura facial dos Paiter e o formato e ornamentação de suas flechas

permitiam identificá-los e distingui-los entre os demais povos). Em síntese, os registros

73

documentais identificados pela pesquisadora e citados em sua tese de doutorado como

ataques a colonos e mortes atribuídas aos Paiter são os seguintes: em 1948, atacaram um

seringueiro em Nazaré, próximo à atual cidade de Ji-Paraná; em 1967, duas pessoas foram

mortas em Riozinho e uma em Pimenta Bueno; em 1976, o guerreiro Oréia matou um

colono, sendo assassinado em seguida por parentes do morto como represália (esse caso

ainda é relatado atualmente nas aldeias com riqueza de detalhes); e em 1981, o último caso

que se tem registro (assim confirmado atualmente pelos Paiter), dois colonos foram mortos

na Linha 9 por uma frente de cerca de 30 guerreiros paiter, no último esforço bélico dos

próprios Paiter para retirada dos colonos invasores do território demarcado.

A manutenção da vida cultural e social dos Paiter foi posta em risco pelas novas

necessidades de consumo introduzidas pelo contato. O acesso a bens industrializados, às

tecnologias da sociedade envolvente e os recursos financeiros que tal acesso demandava,

impuseram ao povo profundas transformações, sobre as quais nem sempre tinham

consciência, nem sempre conseguiam avaliar o rumo e o impacto da opção de se adotar em

parte o estilo de vida da sociedade que até eles chegou abruptamente. Nesse sentido, em

sua pesquisa junto aos Paiter nesse período, Betty Mindlin registrou: “o funcionamento da

nossa economia e as relações de desigualdade nela existentes lhes escapam; ficam

fascinados pela nova tecnologia e variedade de bens, curiosos por conhecer o mundo

exterior” (MINDLIN, 1985, p. 15-16).

Não obstante a todas as mudanças ocorridas após o contato, atualmente, situados a

apenas 50 quilômetros da cidade de Cacoal e rodeados de fazendas de produção de gado,

os Paiter são exemplo de resistência indígena e de rápida reorganização social, política e

econômica para fazer frente às pressões da sociedade envolvente. Embora, no período de

quatro décadas, tenham mudado substancialmente seus hábitos alimentares e de moradia,

assim como suas práticas culturais tradicionais, ritualísticas e cosmológicas, conseguiram

manter o território, preservar a língua e garantir a própria existência física, passando de

272 pessoas em 1979 para 340 em 1982, distribuídas em duas aldeias (MINDLIN, 1985),

para uma população atual de 1130 pessoas (FUNASA, 2010), vivendo em 20 aldeias

espalhadas pelo território.

O ritmo atual de vida e de trabalho dos Paiter aparentemente se assemelha muito

com o da sociedade envolvente. De segunda a sexta-feira trabalha-se na roça ou em outras

ocupações, tais como buscar e cortar lenha, caçar, pescar, produzir artesanato, dar aula,

manejar o gado. O final de semana é dedicado ao descanso, para ir à igreja e para jogar

74

futebol, atividade praticada predominantemente por homens, mas que conta também com a

presença de mulheres.

As principais fontes de renda dos Paiter atualmente, frente às necessidades de

consumo e subsistência, são a produção agrícola, principalmente de arroz, café e banana,

uma pequena produção de gado de corte, a coleta de castanha, a produção de artesanatos,

que incluem cerâmicas, anéis, pulseiras, colares e cestos de diferentes tamanhos, sendo esta

uma atividade predominantemente das mulheres, os salários dos funcionários públicos, aí

incluídos os professores e os agentes de saúde, e auxílios de programas sociais do governo.

O principal meio de transporte dos Paiter é a motocicleta, que eles utilizam para ir

de uma aldeia a outra, para ir à roça e, principalmente, para ir à cidade. Há também alguns

carros, dentre os quais estão dois na aldeia Gapgir e dois na aldeia Lapetanha, todos de

professores. Pelas aldeias da Linha 14, nos dias de segunda, quarta e sexta-feira, passa um

ônibus que também transporta os colonos da região até a cidade.

Organizando-se por meio de associações, e buscando parcerias com universidades,

ONGs e outras instituições, nacionais e internacionais, os Paiter estão conseguindo

construir instrumentos para fazer frente às novas necessidades de consumo e renda,

buscando preservar ao mesmo tempo o que caracteriza sua cultura e sua forma de

organização social. Nas relações com as diferentes instituições, espaço no qual se destaca a

liderança de professores, alguns deles sujeitos dessa pesquisa, os Paiter se apropriam de

instrumentos que estão lhes permitindo compreender o funcionamento de nossa economia,

bem como as relações de poder, as desigualdades sociais e os impactos ambientais

decorrentes do nosso modo de produção capitalista.

Atualmente, possuem seis associações de base, a saber Organização do Povo da

Floresta Kaban-ey Suruí, Associação Gãbgir do Povo Indígena Paiter Suruí, Associação

Metareilá do Povo Indígena Suruí, Associação Pamaur de Proteção aos Povos Indígenas

Paiter Iter de Rondônia, Associação Garah Pãmeh Kabaney e Instituto Florestal Yabner

G̃abgir do Povo Indígena Paiter Suruí. Por meio dessas associações, os Paiter estão

desenvolvendo projetos com vistas à captação de recursos materiais e financeiros de

suporte para sua sobrevivência física e cultural.

É nesse movimento que, após terem seu território invadido por colonos, explorado

por madeireiras e garimpeiros, os Paiter estão conseguindo construir autênticos projetos

que poderão inclusive se replicar em outros espaços e territórios indígenas. Um exemplo

disso é o projeto Carbono Suruí, iniciado em 2005, em parceria com instituições nacionais

75

e internacionais, que poderá render aos Paiter os primeiros créditos de carbono vendidos na

bolsa de valores por um povo indígena no mundo.

O ritmo de superação dos problemas advindos do contato e a busca de construção

de instrumentos próprios de sobrevivência física e cultural são surpreendentes entre os

Paiter. Em 1969 ocorreu o contato. No início da década de 1980, representantes do povo já

viajavam a São Paulo e a Brasília, falando com a imprensa, com os políticos e conhecendo

o que era a sociedade nacional à qual se inseriam. Em 2011, um de seus líderes ocupou a

tribuna na 66ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e denunciou ao mundo as

pressões que ainda hoje o território paiter está sofrendo por pessoas e instituições que

insistem em retirar madeiras no interior da Terra Indígena Sete Setembro:

Sempre soubemos nos calar, respeitar a competência dos órgãos responsáveis que garantem a manutenção da educação, saúde e fiscalização nos territórios indígenas. Também soubemos nos manifestar a nosso modo com respeito e responsabilidade. Mais uma vez lá vamos nós clamar por proteção de nosso território (SURUÍ, 2011)3.

A acirrada luta pela preservação do território, associada ao conjunto de iniciativas e

projetos, tais como o do Carbono Suruí, único programa de redução de emissões do

desmatamento e degradação florestal validado no Brasil (REDD+), rendeu ao povo Paiter o

reconhecimento internacional, culminando com o recebimento do prêmio da Organização

das Nações Unidas intitulado Herói da Floresta por um de seus líderes no ano de 2013,

durante a 10ª Sessão do Fórum sobre Florestas da ONU, realizada em Istambul, na

Turquia.

No plano educacional, a maioria das aldeias conta atualmente com a presença de

uma escola, mantida pelo estado, onde atuam professores indígenas, mas também

professores não indígenas. A alfabetização está sob responsabilidade de professores paiter,

e as crianças das séries iniciais estão sendo alfabetizadas na língua materna, para só então

aprenderem a Língua Portuguesa. Sobre esse trabalho com a língua, mais uma vez os Paiter

têm se destacado em âmbito nacional, tendo um de seus professores, Joatom Suruí (Figura

3), recebido o prêmio Professor Nota 10 da Fundação Victor Civita, no ano de 2008, e o

prêmio Professores do Brasil, promovido pelo Ministério da Educação, também em 2008, 3 Trecho do discurso de Almir Narayamoga Suruí, durante a 66ª Assembleia Geral da ONU em Nova York,

ocorrida em 2011.

76

ambos pelo projeto de revitalização da língua por meio da alfabetização que o professor

desenvolve com seus alunos na escola de sua aldeia.

Figura 3 – Professor Joatom Suruí, ao receber o prêmio Professor Nota 10, concedido pela Fundação Victor Civita, em 2008. Disponível em: www.fvc.org.br.

Os Paiter paulatinamente estão conseguindo avançar em direção a uma educação

escolar indígena diferenciada, e para isso a formação de seus professores em cursos de

Magistério (Projeto Açaí) e de Licenciatura Intercultural (UNIR) tem contribuído. Nesse

sentido, 33 professores atuando nas escolas da Terra Indígena Sete de Setembro já são

paiter, dos quais 17 estão na universidade, cursando a Licenciatura em Educação Básica

Intercultural. Em médio prazo, estes professores substituirão os não indígenas que

atualmente atuam nas séries finais do Ensino Fundamental, estando habilitados inclusive

para oferecerem o Ensino Médio, ainda inexistente nas aldeias.

Apesar das mudanças pelas quais o povo passou, muito das tradições culturais

ainda se mantém entre os Paiter, entre as quais se situam a língua, cantos, danças, e os

conhecimentos relacionados à confecção de artesanatos, cerâmicas, cestarias, pinturas

corporais, construção de malocas e produção de roças. Na Figura 4 abaixo, crianças paiter

observam os adultos executando uma dança tradicional. Trata-se de um exemplo de

situação de manifestação de elementos da cultura do povo, que continuam se reproduzindo

através de formas tradicionais de educação.

Não obstante as iniciativas dos próprios professores paiter em buscarem fazer da

escola um espaço de revitalização da cultura e de fortalecimento da identidade cultural do

povo, o currículo escolar, principalmente das séries finais do Ensino Fundamental, ainda

não inclui saberes tradicionais a serem trabalhados na escola. Em grande parte, isto se deve

à presença predominante de professores não indígenas nessas séries, que não falam a

língua paiter e reproduzem uma educação escolar semelhante à que ocorre em escolas não

indígenas da rede estadual de educação.

77

Figura 4: Crianças paiter observam os mais velhos em atividade cultural na Aldeia Gapgir.

Foto: Kécio Leite, 2012.

No cotidiano das aldeias, as gerações mais novas manipulam jogos eletrônicos em

celulares de última geração, ao mesmo tempo em que são estimulados pelos professores

paiter a aprenderem com os mais velhos o modo de vida Paiter, mesmo após quatro

décadas de convívio com a sociedade envolvente e as transformações culturais decorrentes

do contato. E é nesse espaço de tensões, entre a necessidade de se apropriar de

conhecimentos e instrumentos práticos e teóricos advindos do contato, e de se manter ao

mesmo tempo a identidade cultural do povo, que se situa a atual iniciativa dos professores

paiter em projetarem a introdução de saberes matemáticos tradicionais na escola,

subsidiados teoricamente pelos estudos em andamento na universidade, por um lado, e por

outro apoiados na memória e nos conhecimentos preservados na oralidade pelos mais

velhos das aldeias, os sábios, os curubey.

Sobre isso, disse em entrevista um dos professores sujeitos da pesquisa:

Hoje, os sábios, os adultos, os curubey que a gente fala, só eles estão sabendo de forma certa, da contagem, da medida, da sua história. Por isso que essa importância tem que ser registrada, tem que ser publicada, porque a escola tem que ter esse referencial dentro dela, porque a partir do momento que os adultos se forem, a gente já tem esse material na mão, a gente não fica com aquela dúvida, porque os adultos hoje são bibliotecas... vamos supor que são bibliotecas, só eles que conhecem a matemática e a sua história (PP3 – Aldeia Amaral).

Os resultados dessa experiência são, desde já, potencialmente inovadores. Poderão

sugerir caminhos, problematizar concepções, ressignificar práticas até então cristalizadas

no interior das escolas, deixando como legado teórico e empírico conhecimentos que

contribuirão para a formação de novos professores paiter, assim como de outros povos

78

indígenas. É nesse movimento de tentativa de ressignificação da educação escolar existente

na aldeia, a partir de uma valorização do que é próprio da cultura de seu povo, que os

professores paiter iniciaram o desenvolvimento de pesquisas e registros de saberes,

incluindo-se os saberes matemáticos, com o intuito de alterar o currículo das escolas nas

aldeias, aproximando-o da realidade cultural do povo, sem perder de vista, todavia, os

saberes da sociedade envolvente necessários à sobrevivência nas relações estabelecidas

desde o contato.

A seguir, serão apresentados alguns resultados atingidos pelos professores paiter

em pesquisas iniciais sobre saberes matemáticos de seu povo, incluindo-se quantificadores,

qualificadores geométricos e marcadores de tempo. Em parte, tais pesquisas se originaram

a partir de motivações advindas de estudos teóricos realizados pelos professores no curso

de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, ao entrarem em contato com

textos de autores da área de etnomatemática. Desde então, percebe-se entre os professores

paiter o interesse em registrar e “sistematizar” os saberes e fazeres matemáticos de seu

povo, levando a cabo essa ação por meio de trabalhos de conclusão de curso de graduação

ou em participação em projetos de iniciação científica e em projetos de extensão. Desse

modo, tenho participado também, institucionalmente, direta ou indiretamente nestas

atividades de pesquisa com os professores paiter.

2.4 Saberes e Fazeres Matemáticos Paiter

Desde o ano de 2011, por meio de atividades empíricas de registros de saberes e

fazeres matemáticos do povo Paiter, um conjunto de informações sobre os saberes e

fazeres matemáticos desse povo está sendo produzido. Participam diretamente dessas

atividades os professores paiter matriculados no curso de Licenciatura em Educação Básica

Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, e especialmente dois deles, orientandos

meus em projetos de iniciação científica e em trabalho de conclusão de curso de

graduação, por meio dos quais as traduções Paiter/Português têm se tornado possíveis.

Alguns resultados já se encontram publicados, a saber Suruí e Leite (2012, 2013a e 2013b).

Os dados apresentados a seguir resultaram destas pesquisas, além de notas de campo

colhidas desde minha primeira visita ao território paiter.

O povo Paiter possui uma forma própria de contagem que possibilita representar

quantidades entre 1 (um) e 20 (vinte), com a possibilidade de existirem mais termos

numéricos. A representação de cada termo é feita oralmente, com o apoio da exibição dos

79

dedos das mãos ou dos pés. Valendo-se das convenções ortográficas elaboradas durante os

anos 1990 pelos próprios Paiter com o auxílio de linguistas do Summer Institute of

Linguistics, os quantificadores identificados na pesquisa estão sendo registrados por

escrito. Assim, para cada termo numérico identificado, registrou-se uma frase de

contextualização.

O Quadro 1 a seguir apresenta os vinte primeiros termos numéricos ou

quantificadores na Língua Paiter, com uma tradução em Português e uma frase de

contextualização.

Quadro 1 – Termos numéricos e quantificadores paiter

Paiter Tradução Exemplo

Mu͂y Um – Único Mu͂y aka oje morip nã e.

(Eu matei um peixe)

Xakalar

ou

Akalar

Dois – Um par

Yap akalar itxa lade.

(Eu tenho duas flechas. Eu tenho um

par de flechas).

Xakalar amakap om

Três – Esse par mais

esse par sem

companheiro (apontando

para os dedos da mão

agrupados em pares).

Xakalar amakap om aka oje arime͂

nã e.

(Eu matei um par mais um par sem

companheiro de macacos. Eu matei

três macacos).

Pamabokap norah

ou

Xakalar itxehr

Quatro – Tantos quantos

os dedos maiores ou

Dois pares

Pamabokap norah anang͂a g͂arba sade

etiga oje kah Cacoal e.

(Fui a Cacoal faz quatro dias).

Mu͂y pabe Cinco – Tantos quanto

uma mão

Mu͂y pabe anang͂a lade opup ey itxa

e.

(Eu tenho cinco filhos. Eu tenho

tantos filhos quanto os dedos de uma

mão).

Mu͂y ãah mapabe pi Seis – Pegar um da outra

mão

Mu͂y ãah mapabe pi a yele anang͂a

oje g͂arah ka yara ikin e.

(Encontrei seis brancos na floresta.

Encontrei tantos brancos na floresta

80

quanto uma mão mais um da outra

mão).

Xakalar ãah mapabe pi Sete – Pegar um par da

outra mão

Xakalar ãah mapabe pi yele anang͂a

oje morip ey aka e.

(Matei sete peixes. Matei peixes

tanto quanto uma mão e um par da

outra mão).

Xakalar amakap om ãah

mapabe pi

Oito – Pegar esse par e

esse par sem

companheiro da outra

mão

Xakalar amakap om ãah mapabe pi

yele anang͂a oje garba koy.

(Fiquei no mato oito dias. Fiquei no

mato tantos dias quanto uma mão

mais esse par mais esse par sem

companheiro).

Pamabokap norah mãah

mapabe pi

Nove – Pegar os dedos

maiores da outra mão.

Pamabokap norah mãah mapabe pi

yele anang͂a ma͂g͂ahp de aar e.

(Caíram nove castanhas. Caíram

tantas castanhas quanto uma mão

mais os dedos maiores da outra

mão).

Baga pamabe

ou

Bak pamabe

Dez – Tanto quanto

todas as mãos

Omor ey sade baga pamabe anang͂a

e.

(Tenho dez irmãos. Meus irmãos são

tantos quanto todas minhas mãos).

Baga pamabe de epi

mu͂y txor Onze

Baga pamabe de epi mu͂y txor aãh

oje arãy ey nã e.

(Adquiri onze galinhas).

Baga pamabe de epi

xakalar tor Doze

Litak sade baga pamabe ka xakalar

tor anang͂a manã ani e.

(Parece que vai fazer frio por uns

doze dias).

81

Baga pamabe ka xakalar

amakap om nor Treze

Ãh kao mĩ teh lade aye baga pamabe

ka xakalar amakap om nor kao mag̃a

aye e.

(Vou completar treze anos de idade

nesse ano).

Baga pamabe ka xakalar

itxehr tor Quatorze

Baga pamabe ka xakalar itxehr tor

pe tota Gapgirey sade ani e.

(Os Gapgirey moram na linha

quatorze).

Baga pamabe ka mu͂y

pabe tor Quinze

Ãh tik mi baga pamabe ka mu͂y pabe

tor kat ah ka lade aye owe maãh e.

(Vou me casar daqui a quinze dias).

Baga pamabe ka mu͂y

pabe deepi mu͂y txor Dezesseis

Baga pamabe ka mu͂y pabe de epi

mu͂y txor anang͂a oje morip aka e.

(Matei dezesseis peixes).

Baga pamabe ka mu͂y

pabe deepi xakalar tor Dezessete

Baga pamabe ka mu͂y pabe deepi

xakalar tor karba ka palade e.

(Estamos no dia dezessete).

Baga pamabe ka mu͂y

pabe deepi xakalar

amakap om nor

Dezoito

Baga pamabe ka mu͂y pabe deepi

xakalar amakap om nor e kat ah de

akah owe maã oje pi e.

(Já se passaram dezoito dias desde o

meu casamento).

Baga pamabe ka mu͂y

pabe deepi xakalar itxehr

tor

Dezenove

Baga pamabe ka mu͂y pabe deepi

xakalar itxerey tor e kat ah ter sade

aor omã TCC ka baga yet e kabi e.

(Faltam dezenove dias para eu

concluir meu TCC).

Baga pamabe ka baga

pamipeh Vinte

Baga pamabe ka baga pamipeh

anang͂a oje mebekot ey ikin g͂arah

koy e.

(Eu avistei vinte porcões na

82

floresta).

O termo numérico mu͂y significa um. Porém, existem outras construções com este

termo que se referem à ideia de único quando associados aos pronomes pessoais. Por

exemplo, na expressão Imu͂y oje osop gabi e (Eu sou único para meu pai), há uma

contração do pronome com o numeral, o mesmo ocorrendo na expressão Pamu͂yı͂ pajeka

pawerkar e (Nós fomos caçar sozinhos – somente nós). Nesse caso, esse nós é usado

quando se dirige a um membro incluso na ação. Por exemplo, Carlos, José e Pedro foram

caçar. Então Pedro diz a José pamu͂yı͂ para significar “nós” fomos caçar. Porém, se Pedro

disser isso a Joaquim que não foi caçar, ele usará o termo toymu͂yı͂ para se referir a nós,

porém sem Joaquim (nesse caso, nós se refere a Carlos, José e Pedro). Assim, a construção

ficará Toymu͂yı͂ tojeka toyerkar e (Nós fomos caçar sozinhos), Meymu͂yı͂ meyjeka meyerkar

e (Vocês foram caçar sozinhos), ou ainda Amu͂yı͂ tajeka awerkar e (Eles foram caçar

sozinhos).

O termo pamabo norah, dependendo do contexto, significa apenas nossos dedos

maiores, uma referência a partes do corpo humano. Para deixar claro a intenção de

significar quantidade, o termo deve ser acrescido da expressão anang͂a, que significa

“como”, “equivalente a” ou “da mesma quantidade que”. Trata-se de um termo

comparativo. Desse modo, a construção pamabokap norah anang͂a significa, literalmente,

“equivalente à quantidade de dedos maiores”, isto é, quatro.

Para a expressão mu͂y mãah mapabe pih, que se refere à quantidade seis, a palavra

“dedo” fica implícita na interpretação “Uma mão e pegar um da outra mão”. Portanto, o

sentido se completa com o ato de mostrar/exibir o dedo da outra mão.

Na impossibilidade de se exibir os dedos das mãos, por exemplo quando estas estão

ocupadas, pode-se mostrar os dedos dos pés para representar a quantidade desejada. Por

exemplo, o “seis”, que se enuncia mu͂y mãah mapabe pih quando se mostram os dedos das

mãos, será mu͂y mãah mapipeh pih ao se exibirem os dedos dos pés. Aí reside uma

abstração, ou seja, a quantidade “seis”, como número, não depende do suporte “mão” para

ser representado. O número independe do suporte representativo (mão, pé), ao mesmo

tempo que está associado à quantidade de dedos exibidos. Isto é, em paiter, o número,

como ideia ou representação de quantidades, está associado de forma biunívoca aos

elementos (dedos da mão ou do pé) exibidos.

83

No caso da expressão Mu͂y pabe a͂ akalar a͂ amakap om mãah mapabe pi anang͂a,

que literalmente seria “uma mão mais esse par mais esse par sem companheiro da outra

mão”, a expressão “da outra mão”, ou seja, mapabe pih é omitida na conversação, uma vez

que a outra mão é fisicamente exibida, não sendo necessário associar ao gesto a expressão

falada “da outra mão”. Trata-se portanto de uma diferença introduzida pela escrita, uma

vez que, quem lê, não vê o gesto, sendo necessário escrever “da outra mão”.

A expressão xameomi, que literalmente faz referência à quantidade de cabelos da

cabeça, é utilizada quando se faz referência a “muitos”, quando se trata de uma quantidade

“incontável”, uma noção de “infinito”. Por sua vez, a expressão katxer é usada para se

fazer referência a uma quantidade indefinida acima de mũy pabe, porém possível de se

contar. Denota as noções de diversos ou finito, equivalentemente à palavra anyum, usada

para se fazer referência a “uma certa quantidade”.

Além de quantificadores, os Paiter possuem um conjunto de termos e expressões

que expressam a qualidade ou característica de objetos, artefatos, trançados e pinturas

quanto a suas formas geométricas, tamanhos e posições relativas. No quadro a seguir,

apresentam-se alguns destes termos e expressões.

Quadro 2 – Qualificadores paiter que caracterizam objetos quanto a formas geométricas, posições relativas, tamanhos e pesos

Qualificador Tradução

Patakab u͂d Círculo

Yapeh ipo Triângulo

Txakaah Quadrado

Txakaah peah Retângulo

Yapeh tig̃ Losango

Penẽm ah Esfera

Makorahb Cilindro

Ibog-ahp apeh Cone

Xatoah

Comprido

(árvore, barbante. Exemplo: Anõ ihp sade

xatoah e – Aquela árvore é comprida)

Txapôh ûhd Fino

Pasaah Grosso

84

Tãhg̃a Reto

Wedag̃ Ondulado

Pikahyah Curto

Xakarĩah Alto

Ipeah Baixo

Ixin Pequeno

Ipohy Grande

Uhna Perto

Kot Longe

Moter Direita

Mogãh Esquerda

Ibeb Atrás

Ipo Em frente

Xibi Embaixo

Xamatar Em cima

Awesagah-ĩh Lado a lado

Alaamikar-ĩh Frente a frente

Ãh pabi Lado de cá

Ano pabi Lado de lá

Anõ weĩh Próximo

Anokoytxer Distante

Xekeahp Leve

Xekeahp iter Muito leve

Xekeahp nãrah Meio leve

Xiribeah / xiripeah

Plano

(superfície plana, tampo de uma mesa,

“face” de uma lagoa)

Koriahp Plano e fundo

(poço, buraco)

Patakap’ah Esférico

85

(semente arredondada, formato da lua e do

sol)

Ipoah

Comprido e cilíndrico

(como os acordelados de argila para fazer

panela de barro, ou como o ihmoh,

equivalente em português a “mão-de-pilão”,

instrumento utilizado para socar grãos)

Os Paiter possuem um complexo sistema de marcadores de tempo, que tomam por

referência fenômenos da natureza, astros celestes e comportamentos de animais e plantas.

Tais marcadores operam em diferentes escalas, podendo variar de poucos minutos a dias,

semanas ou mesmo ciclos maiores, equivalentemente a décadas. No Quadro 3 abaixo,

apresentam-se marcadores de tempo utilizados para o ciclo de um dia.

Quadro 3 – Marcadores de tempo paiter para o período de um dia

Marcadores Tradução Instante

Mixa͂g abit Metade da noite 00:00 a 02:00

Pagap g͂apamah O escuro antes do amanhecer 02:00 a 04:00

Pagap niga No momento do amanhecer 04:00 a 06:00

Mag͂ihr Cedo/Manhã 06:00 a 08:00

G͂alag͂ah anoh Ao subir do Sol 08:00 a 10:00

G͂arabi ka Na metade do dia – Quando

o sol está “em pé” 10:00 a 12:00

G͂arabi pabit No meio do topo do Sol 12:00 a 13:00

Ogur ? 13:00 a 14:00

Ogur maroy Tempo bom – Tempo bonito 14:00 a 17:00

G͂arba korit Final do dia 17:00 a 18:00

Mixãg͂ĩ Início da noite 19:00 a 22:00

Mixãg apũnunũ Noite bem escura 22:00 a 00:00

Além de termos numéricos, qualificadores geométricos e marcadores de tempo, os

Paiter possuem um sistema de medida que possibilita localizar uma árvore frutífera no

86

meio da floresta, estimar a distância entre a aldeia e um barreiro de caça, tomando-se por

referências outros marcadores específicos, tais como uma distância conhecida entre duas

casas, ou entre a aldeia e uma grande árvore.

À medida que os resultados das pesquisas realizadas com os professores paiter iam

surgindo, fui percebendo que a identificação de todos esses saberes e fazeres matemáticos

na cultura do povo servia de estímulo para que os professores paiter assumissem uma

concepção segura de que matemática não é conhecimento exclusivo da sociedade

colonizadora, e que portanto a escola na aldeia deve reconhecer e incluir em seu currículo

tais saberes ao educar as novas gerações.

Emergiu, desse contexto, um universo temático relativamente novo em minhas

experiências de vida e acadêmicas, de modo que me vi obrigado a buscar por novas

referências teóricas que me auxiliassem a compreender as interações que se estabeleciam

entre a pesquisa sobre saberes e fazeres matemáticos, a projeção destes saberes pelos

professores indígenas para o interior da escola na aldeia, as consequentes relações desse

fenômeno com a ressignificação da educação escolar nas comunidades, e a dimensão

política dessas ações inerente à revitalização da cultura e à reafirmação identitária.

Surgiu assim a necessidade de estabelecer mais um encontro no desenvolvimento

de minha pesquisa de doutorado: o encontro com novos referenciais teóricos que me

auxiliassem na compreensão dos fenômenos que passaram a permear minhas atividades de

pesquisa e meu fazer docente no curso de formação de professores indígenas.

2.5 O encontro com novos referenciais teóricos

À medida que minhas interações com os estudantes indígenas na universidade e nas

aldeias foram se fortalecendo, meu cotidiano e meu fazer docente foram sendo permeados

por novas vivências que passaram a se refletir na pesquisa com um crescente grau de

complexidade. Surgia assim a necessidade de buscar novos referenciais teóricos que me

auxiliassem não apenas no desenvolvimento da pesquisa, mas no meu próprio fazer

enquanto formador de professores indígenas em um curso de licenciatura intercultural.

Por estar trabalhando com formação de professores indígenas na universidade,

portanto diretamente relacionado à educação escolar indígena, essa foi umas das temáticas

pelas quais me interessei e passou a se fazer presente em minhas leituras e estudos. Das

referências de minha formação inicial e de minha atuação imediata em sala de aula, a

87

etnomatemática se destacou como outra temática a demandar investigações teóricas e

bibliográficas. Todavia, restava o sentimento de que havia uma terceira temática

relacionada à complexidade do universo da pesquisa e de atuação no curso que ainda

estava descoberta. Por indicações de colegas de trabalho mais experientes, fui encontrar

um interesse pelos estudos culturais, em especial pelos desdobramentos teóricos que tal

área proporciona ao tratar de cultura e identidade cultural para além das perspectivas

tradicionais da antropologia, possibilitando uma releitura de discussões sobre

interculturalidade e relações entre culturas distintas.

As próximas três seções dessa tese contemplam elaborações teóricas que realizei

com base em leituras e estudos de referenciais relacionados a essas três grandes temáticas

inter-relacionadas no desenvolvimento dessa pesquisa: Educação Escolar Indígena,

Interculturalidade e Etnomatemática. Da exploração de conceitos e ideias relacionadas a

estas três grandes áreas temáticas, busquei extrair fundamentos teóricos para a análise dos

dados produzidos e apresentados nas seções finais da tese.

88

3 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: FACES DA ESCOLA NA ALDEIA

Atualmente, a educação escolar é uma das principais reivindicações presentes nas

pautas do movimento indígena brasileiro. Antes porém de se reconhecer e, de certa forma,

de se conquistar a escola como um espaço institucional de fortalecimento dos povos

indígenas nas relações com a sociedade nacional (embora muito ainda se tenha a

conquistar), a educação escolar nas aldeias serviu a diversos propósitos, incluindo-se a

contribuição para a própria extinção de sociedades indígenas no território nacional, quer

seja pela assimilação, quer seja pela integração destas ao sistema de produção e ao modo

de vida em geral do “povo brasileiro”.

Nessa seção, busca-se analisar os momentos que caracterizaram a educação escolar

entre os povos indígenas no Brasil, os diferentes objetivos dessa educação, os principais

atores e instituições que para isso convergiram em diferentes contextos e períodos

históricos. Então, a partir do atual contexto, busca-se discutir a escola na aldeia como um

espaço de hibridação cultural, no qual a educação escolar diferenciada, intercultural e

bilíngue concorre para o fortalecimento cultural dos povos indígenas, ao mesmo tempo em

que funde práticas e conhecimentos não indígenas com aqueles da tradição, possibilitando

a origem de algo que é novo.

3.1 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil nos séculos XVI a XIX: a face

catequizadora e civilizatória da escola na aldeia

A educação, como processo difuso, sempre esteve presente no cotidiano de todos os

povos do mundo, sendo um dos meios para a produção e reprodução de ideias e crenças,

bens e saberes, qualificações e especialistas, guerreiros ou burocratas (BRANDÃO, 2007).

A educação escolar, porém, teve suas origens na Europa e se alastrou para o restante do

mundo com o processo da colonização. Assim, antes do contato com os europeus

colonizadores, os povos indígenas que já ocupavam o território que hoje corresponde ao

Brasil não conheciam a instituição escolar, mas já praticavam formas próprias de produção

e reprodução de saberes com base na tradição oral, ao que se pode denominar de educação

indígena.

89

Apesar de serem escassas as informações sobre os processos educativos praticados

pelos povos indígenas originários do Brasil bem como sobre o início da introdução de

escolas entre estes povos, é possível esboçar uma trajetória a partir de um conjunto de

relatos de missionários, funcionários públicos e cronistas da época, que chegaram até os

dias de hoje e foram organizados em trabalhos tais como os de Freire (1996, 2004) e

Monteiro (1994), possibilitando delinear os caminhos percorridos pela educação escolar

indígena no país, com destaque para o impacto que as sociedades indígenas sofreram com

a introdução da escola em seu meio, originalmente por missionários, e posteriormente pelo

próprio Estado.

A educação escolar em sociedades indígenas teve origem no Brasil na segunda

metade do século XVI, com missionários jesuítas. Pode-se dizer que as escolas criadas e

mantidas pelos jesuítas eram para indígenas, e não de indígenas, visto que tinham como

objetivo central a catequese, ignorando completamente as práticas educativas indígenas, e

com vistas à execução de uma política destinada a desarticular as identidades étnicas,

discriminando suas línguas e culturas (FREIRE, 2004).

Essas primeiras instituições escolares basearam-se na concepção de que os povos

indígenas não possuíam práticas educativas, nem processos próprios de aprendizagem que

pudessem ser aproveitados para o objetivo de introduzi-los à civilização ocidental. O

desconhecimento que o colonizador europeu tinha das línguas indígenas e das culturas

indígenas em geral reforçou a ideia de que os povos indígenas sequer eram capazes de

estabelecer um discurso sobre uma prática educativa própria, ignorando-se assim qualquer

concepção pedagógica existente entre os povos.

Oriundos de uma sociedade na qual a escrita desempenhava uma função essencial

na construção do discurso, da metalinguagem e da filosofia, os colonizadores europeus

interpretaram a ausência de uma escrita alfabética entre os povos indígenas como sinal de

incapacidade de produção de pensamento crítico e elaborado que sustentasse uma filosofia

ou um pensamento pedagógico. Além disso, por não se observar a existência de instâncias

específicas de ensino-aprendizagem, e de sujeitos especializados na instrução das crianças

no cotidiano das aldeias, concluiu-se que não existiria qualquer forma intencional ou

planejada que pudesse ser interpretada como educação. Assim, para o colonizador, não se

tratava de impor um sistema educacional em substituição a outro diferente, mas

simplesmente da implantação de um sistema universal, já existente e praticado na Europa,

e ainda ausente nas sociedades indígenas.

90

A não identificação e o não reconhecimento das formas próprias de ensino e

aprendizagem praticadas e pensadas pelos povos indígenas como sendo educação perdurou

até o século XX. Conforme Brandão (2007), mesmo entre os antropólogos do início do

século que se dedicaram à descrição rigorosa de detalhes de “culturas primitivas” das

sociedades tribais das Américas, da Ásia, da África e da Oceania, muitos evitaram usar o

termo educação para designar as relações cotidianas, as cerimônias e rituais nos quais

crianças e jovens eram iniciados no mundo dos adultos. Entre os raros casos de utilização

do conceito de educação pelos antropólogos desse período encontra-se o do inglês

Radcliffe-Brown, ao registrar que,

[...] entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade “é preciso que ela seja educada”. Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve a aquisição de “sentimentos e disposições emocionais” que regulam a conduta dos membros da tribo e constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade (BRANDÃO, 2007, p. 17).

Essa relutância em se reconhecer os processos de reprodução da sabedoria

acumulada pelos grupos sociais como sendo educação decorre da vinculação do conceito

com os espaços estritamente escolares já existentes na Europa de antes da colonização.

Assim, o fato de os antropólogos do início do século XX ainda evitarem usar o conceito de

educação para se referir aos processos sociais de ensino e aprendizagem dos andamaneses,

dos Maori, dos Apache ou dos Xavante se deve em parte pela observação da ausência de

processos formalizados de ensino e de situações propriamente escolares de transferência do

saber tribal entre estes povos, visto que entre eles “a sabedoria acumulada do grupo social

não ‘dá aulas’ e os alunos, que são todos os que aprendem, ‘não aprendem na escola’”

(BRANDÃO, 2007, p. 17).

A desqualificação da capacidade de pensamento e de discurso dos povos indígenas

perdurou ao longo do tempo, começando a mudar somente a partir do século XX, quando o

antropólogo Claude Lévi-Strauss demonstrou entre diferentes etnias a existência de

discursos sobre a visão de mundo que compunham uma filosofia com suportes outros que

não a escrita alfabética. Particularmente, Lévi-Strauss demonstrou que o mito e o rito são

formas de organizar e explicar a realidade a partir da experiência sensível. O pensamento

mítico resulta da organização, reunião e composição de diferentes experiências e narrativas

91

que, organizadas em um plano não muito rígido, dão origem a explicações para os

fenômenos da natureza e para a influência do plano espiritual sobre o material, do divino

sobre o humano (LÉVI-STRAUSS, 2002).

Por sua vez, Florestan Fernandes, ao discorrer sobre os princípios praticados pelos

Tupinambá acerca da transmissão de conhecimentos sobre a natureza e a cultura,

demonstrou a existência de um pensamento pedagógico indígena anterior ao contato com

os europeus, portanto independente do registro escrito. Fernandes (1976) observa que,

entre os Tupinambá, qualquer pessoa era um agente da educação tribal, dado o princípio

por eles elaborado e seguido de que todos educam todos, sendo cada sujeito responsável

pelos ensinamentos às pessoas mais jovens ou menos experientes.

Ao discorrer sobre a filosofia educacional dos Tupinambá, Freire (2004) afirma que

ela era composta por três valores fundamentais, sendo eles o valor da tradição oral, o valor

da ação e o valor do exemplo. A tradição oral constituía-se de um conjunto de saberes que

orientavam as ações e decisões dos indivíduos nas mais diversas situações. Ao valorizar a

ação como princípio educativo, as crianças e adolescentes eram envolvidos em atividades

práticas para aprender fazendo. Por último, o valor do exemplo refletia no comportamento

das pessoas mais velhas, que deveriam reproduzir o legado dos antepassados e o conteúdo

das tradições.

Ao não reconhecerem tais processos como educativos e adequados à formação de

uma sociedade “civilizada”, os missionários jesuítas encarregados de implantar as

primeiras escolas para indígenas no Brasil na segunda metade do século XVI entraram em

conflito com certos comportamentos julgados impróprios e inadequados à educação das

crianças. É o caso, por exemplo, do tratamento dado ao erro e o uso do castigo no processo

educativo praticado pelo europeu, mas ausente entre os pais indígenas. Quanto a isso,

Freire (2004) relata a impressão de um missionário jesuíta que, ao observar que “pais e

mães indígenas ‘amam os filhos extraordinariamente’, lamentou que ‘nenhum gênero de

castigo têm para os filhos, nem há pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em

filho’” (CARDIM, 1980 apud FREIRE, 2004, p. 15). Há também o relato ilustrativo da

impressão de Pero de Magalhães Gandavo, provedor da Fazenda na Bahia entre 1565 e

1570, para o qual pais e mães indígenas de aldeias Tupinambá do litoral “criam seus filhos

viciosamente, sem nenhuma maneira de castigo” (GANDAVO, 1980 apud FREIRE, 2004,

p. 16).

A introdução da instituição escolar pelos missionários jesuítas para os povos

indígenas no Brasil deu-se então a partir da construção de casas de taipa em aldeias no Rio

92

de Janeiro e na Bahia no século XVI, funcionando estas como “as escolas de ler, escrever e

contar” (FREIRE, 2004, p. 17). Na parte da manhã, todas as pessoas da aldeia,

independentemente da faixa etária, eram doutrinadas com aulas de catequese. À tarde,

ensinavam-se técnicas agrícolas e ofícios artesanais, enquanto “os mais hábeis aprendiam a

ler e escrever” (FREIRE, 2002, p. 90). Durante todo o período colonial, a docência foi

exercida exclusivamente por missionários, sendo imposta a Língua Portuguesa, com a

consequente proibição das línguas maternas indígenas (FREIRE, 2004, p. 17).

Pautada pela concepção de que a educação do indivíduo imprescindia de atos de

violência, incluindo a própria violência física, visto que na Europa da época a palmatória

era prática corriqueira na escola, a educação escolar imposta aos povos que primeiro

tiveram contato com o colonizador europeu incluía a tortura física e emocional no intuito

de extinguir as identidades culturais dos índios, incluindo-se nisso as ações que visavam

coibir o uso das línguas maternas, para se impor a Língua Portuguesa. Em consequência, a

reação que tais medidas ocasionavam incluía atos de resistência, tais como os relatados

pelo missionário jesuíta João Daniel, segundo o qual, mesmo sofrendo as “palmatoadas”

impostas pelo padre responsável pela escola, algumas índias do Pará recusavam-se a

substituir sua língua materna por outra, e “se deixavam dar até lhes inchar as mãos e

arrebentar o sangue” (DANIEL, 1976, apud FREIRE, 2004, p. 18). Devido à crueldade e

ao sofrimento infligido pelas práticas estabelecidas na escola, havia um alto índice de

evasão escolar, conforme registrou Luiz da Grã, um missionário do século XVI, segundo o

qual, “só o ver dar uma palmatoada a um dos mamelucos basta para fugirem” (GRÃ, 1931,

apud FREIRE, 2004, p. 18). A tais fugas, correspondiam mais atos de violência contra os

indígenas resistentes, que eram aprisionados e forçados a voltar à escola, conforme

relatado por Pero Correia em carta de 1554, segundo o qual “quando alguno es perezoso y

no quiere venir a la escuela, el Hermano lo manda buscar por los otros, los quales lo traen

preso” (LEITE, 1957, apud FREIRE, 2004, p. 18).

O etnocentrismo presente na concepção de educação do colonizador europeu fez

com que os missionários jesuítas interpretassem a ausência de castigos físicos na relação

de pais e filhos indígenas, tão comum na educação escolar europeia da época, como vício,

atraso e omissão que concorreriam para não corrigir o erro, o que obstruiria

consequentemente o processo de aprendizagem das crianças. Aos olhos dos missionários,

seria inconcebível socializar as crianças sem repressão, e a ausência desta nas sociedades

indígenas seria um indicativo de “negligência e falta de princípios pedagógicos, e não do

resultado de uma reflexão coletiva sobre a natureza do processo de aprendizagem, com a

93

construção até mesmo de um metadiscurso, capaz de pensar e justificar uma determinada

prática educativa” (FREIRE, 2004, p. 16).

Conforme Ferreira e Silva (2007), a educação praticada nas primeiras escolas

jesuítas estava alinhada com a política eurocentrista de assimilação do índio à civilização

cristã através da evangelização, o que contribuiu consequentemente para a redução da

diversidade sociocultural e para a negação das identidades culturais dos povos indígenas no

país ao longo dos séculos. Esse tipo de educação serviu então tanto ao Estado, a Coroa

Portuguesa, quanto à Igreja. Por um lado, a catequização exigia obediência e disciplina

impostas como princípios fundamentais por Inácio de Loyola, o fundador da Companhia

de Jesus. Por outro lado, em documento de 1548, Dom João III estabeleceu que o papel da

Companhia de Jesus deveria ser o de catequisar, proteger a “liberdade” dos índios e

realizar o aldeamento dos “nativos”, ao passo que as prioridades do primeiro Governador

Geral, Tomé de Souza, enviado no mesmo ano ao Brasil, deveria ser servir a Deus e à fé

católica, promover o lucro do Império e enobrecer a terra e sua gente, com intuito de gerar

riquezas à Coroa (VIEIRA, 2006). Assim, no processo de educação pela catequese para a

incorporação ocidental e cristã, negaram-se completamente as formas próprias de

organização social dos povos, extrapolando-se o espaço estritamente escolar, pois

incluíram-se aldeamentos compulsórios (missões), onde as casas eram organizadas

conforme os ideais católicos, efetivava-se a destruição de instituições próprias como o

xamanismo e os sistemas de parentesco, a substituição das cosmologias indígenas pela fé e

moral cristãs, e alteravam-se os modos e as finalidades dos sistemas de produção

(FERREIRA, 2001).

Durante todo o período colonial, a educação escolar para índios ficou sob a

responsabilidade de missionários católicos de diversas ordens, mesmo após a expulsão dos

jesuítas ocorrida em 1759, permanecendo inalterados os objetivos de assimilação dos

povos indígenas à civilização ocidental. Com o advento do período imperial, a prática da

catequese como meio educativo teve continuidade, sendo oficializada como política de

Estado por meio da Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, que estabeleceu em seu Artigo 11

que competiria às Assembleias Legislativas Provinciais “promover, cumulativamente com

a Assembleia e o Governo Geral, a organização da estatística da Província, a catequese, a

civilização dos indígenas e o estabelecimento de colônias” (BRASIL, 1834). Foi com esse

respaldo estatal e com a intencionalidade de reforçar a catequese como forma de “civilizar”

os povos indígenas que chegaram ao Brasil, em 1883, os missionários salesianos,

instalando missões em Mato Grosso a partir de 1884 (TACCA, 2001).

94

Na passagem do Império para a República, o cenário da educação escolar para

indígenas não se altera no Brasil, a não ser pela inclusão de novas ordens religiosas no

processo, passando a se contar também com a presença de protestantes.

3.2 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no início do século XX: a face

positivista e civilizatória da escola na aldeia

Uma nova fase na política educacional para os povos indígenas teve início com a

criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais

(SPILTN), no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), por

meio do Decreto nº 8072, de 20 de junho de 1910. Conforme Oliveira e Nascimento

(2012), o surgimento do SPILTN marcou a institucionalização do indigenismo brasileiro

em substituição às políticas descentralizadas nas ações de agentes missionários e coloniais

que caracterizaram os regimes colonial e imperial. Oriundo das divergências ideológicas

entre as teses da catequese e do extermínio, o SPILTN propôs uma política indigenista

mais humanista, alegando uma preocupação com a diversidade linguística e cultural dos

povos indígenas (FERREIRA, 2001).

Assim, esse primeiro órgão indigenista do país assumiu a responsabilidade de

prestar assistência aos povos indígenas, colocando-os na condição de tutelados pelo

Estado, com dois principais objetivos: afastar a Igreja Católica da catequese indígena e

fazer os índios adotarem gradualmente hábitos “civilizados” para se integrarem como mão-

de-obra ao sistema de produção nacional (PALADINO; ALMEIDA, 2012). Nesse sentido,

elegeu-se como objetivo a promoção de uma integração laica dos povos indígenas à

sociedade brasileira, tendo em vista também a proteção física das populações indígenas nos

conflitos interétnicos e nas ações violentas ocasionadas pelo contato forçado promovido a

partir da expansão das fronteiras agrícolas e comercias. Em princípio, ocorre então uma

mudança do paradigma da assimilação, promovido nos períodos anteriores, para o

paradigma da integração.

Não obstante o aparente avanço promovido pela mudança paradigmática da

assimilação para a integração promovida pelo SPILTN, que a partir de 1918 passou a se

chamar apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a nova política educacional para

índios estava orientada pelo ideário positivista de progresso, que considerava os povos

indígenas como sociedades atrasadas, cuja transitoriedade rumo à modernização deveria se

dar a partir de sua incorporação à sociedade nacional. O índio então era visto como um

95

obstáculo ao projeto modernizador do país no início da República. Nessa perspectiva, era

objetivo do SPI, por meio da “proteção fraternal”, promover um encontro pacífico dos

povos indígenas com a civilização, tornando-os aptos e integrando-os ao trabalho e ao

sistema de produção nacional, com vistas ao progresso e à modernização da nação

(OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012).

Na busca de integrar populações e territórios indígenas, a organização

administrativa do SPI incluiu a instalação estratégica de postos indígenas em diferentes

pontos do território nacional, de acordo com o grau de aculturação dos povos, incluindo-se

os postos de atração, de criação e de nacionalização, a partir dos quais implantou-se uma

rede de escolas para levar a cabo o Plano Educacional Indígena do órgão. Segundo Cunha

(1990), o Relatório das Atividades do Serviço de Proteção aos Índios do ano de 1953

apontou a existência de 66 escolas em seus postos, nas quais o currículo era semelhante ao

das escolas rurais do país, isto é, usavam-se “os mesmos métodos e até o mesmo material

didático” e ensinavam-se “certas técnicas, como a confecção de roupas e trabalho de

agulhas para as meninas” e “habilidades artesanais aos meninos, como carpintaria,

funilaria, olaria, trabalho em couros” (CUNHA, 1990, p. 88).

Verifica-se assim que a política educacional implementada inicialmente pelo SPI

não levou em consideração as especificidades linguísticas, sociais e culturais dos povos

indígenas, revelando com isso uma contradição que Oliveira e Freire (2006) denominaram

de “paradoxo da tutela”, visto que o objetivo original do órgão de proteger os territórios e

as culturas indígenas foi subvertido pela educação escolar implantada nas escolas dos

postos, nas quais se impunha a Língua Portuguesa e um conjunto de práticas de um sistema

produtivo externo e diferente do tradicionalmente praticado pelos povos.

Desse modo, a educação escolar para os índios implantada pelo SPI se caracterizou

pela imposição de um modelo educacional alheio aos aspectos socioculturais específicos

dos povos indígenas. Quando muito, reduziu as especificidades sociais e culturais

indígenas à ideia genérica de sociedades rurais atrasadas, pouco se diferenciando, portanto,

a não ser pelo caráter laico, das políticas educacionais dos períodos colonial e imperial,

visto que se manteve a intenção de trazer o índio à civilização e nacionalizá-lo,

pressupondo-se, de uma perspectiva positivista, sua inferioridade em uma escala linear de

evolução cultural da humanidade.

A ideia de que os modos próprios de existência dos povos indígenas estavam

fadados à extinção, dada a inescapável escala linear de desenvolvimento pela qual a

humanidade passaria, acelerada no caso particular das sociedades indígenas pelo contato

96

com a civilização europeia, fez-se refletir nos textos constitucionais ao longo do século

XX. Assim, a perspectiva de integrar os índios à modernidade por meio de sua adaptação à

sociedade nacional, praticada desde o século XVI, ainda se fez presente na Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, que estabelecia em seu Artigo 5º, Inciso

XIX, que competia privativamente à União legislar sobre a “incorporação dos silvícolas à

communhão nacional” (BRASIL, 1934). Essa perspectiva foi reafirmada pela Constituição

dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, em seu Artigo 5º, Inciso XV

(BRASIL, 1946), e pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro

de 1967, em seu Artigo 8º, Inciso XVII (BRASIL, 1967).

Não obstante o marco jurídico constitucional existente e o objetivo de integrar as

sociedades indígenas à sociedade nacional por meio da educação escolar voltada à

alfabetização e à capacitação para o mundo do trabalho, o SPI foi capaz de estabelecer uma

crítica sobre a prática pedagógica de suas próprias escolas, esboçando uma proposta de

formato diferenciado de currículo e de instituição, conforme relata Cunha (1990).

Nesse sentido, em documentos oficiais do órgão referentes à década de 1950,

consta uma avaliação negativa do tipo de educação escolar praticada nos postos até então,

propondo-se inclusive a substituição da designação “escola” por “casa do índio”, a fim de

“fugir das conotações negativas que esta designação tem para os índios, como de um lugar

onde se confina as crianças durante longas horas de cada dia, submetendo-os a uma

disciplina forçada e em prejuízo de outras atividades que lhes parecem mais úteis” (SPI,

1953 apud CUNHA, 1990, p. 89).

Quanto ao currículo, esboçando uma preocupação com a necessidade de se levar

em conta no processo educativo as realidades locais das comunidades de cada posto, o SPI

propôs, em seu Programa Educacional Indígena do final da década de 1950, transformar

as escolas, que até então funcionavam meramente como unidades alfabetizadoras, em

“unidades educacionais mais amplas, oferecendo aos alunos a possibilidade de adquirir

conhecimentos mais condizentes com o meio em que habitam” (SPI, 1960, apud CUNHA,

1990, p. 93).

A nova proposta educacional ensaiada pelo SPI a partir dessa autocrítica não

chegou a ser implantada, dadas as limitações de recursos humanos e econômicos do órgão,

que não possibilitou sequer a criação de escolas em todos os seus postos. A própria

existência do SPI começou a ser questionada no início da década de 1960, a partir de

denúncias de irregularidades administrativas, corrupção e gestão fraudulenta do patrimônio

indígena, o que levou à extinção do órgão indigenista pela Ditadura Militar no ano de 1967

97

(PALADINO; ALMEIDA, 2012). Com a extinção do SPI, encerrou-se o período

correspondente à segunda fase da educação escolar para povos indígenas no Brasil, que se

diferenciou da fase anterior basicamente pelo seu caráter laico, e não pelo objetivo

principal, que continuou sendo o de impor aos índios os costumes e crenças da sociedade

nacional.

3.3 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil na Ditadura Militar: a face

bilíngue e protestante da escola na aldeia

Em substituição ao SPI, o Governo Militar criou a Fundação Nacional do Índio

(FUNAI), através da Lei nº 5371, de 5 de dezembro de 1967, que deu continuidade todavia

ao objetivo de integração na política indigenista, com a diferença de que, em sua proposta

educacional, elaborou um programa de educação bilíngue, orientando-se pela experiência

do Instituto Indigenista da América Latina e em resoluções técnicas oriundas dos

Congressos Indigenistas realizados no México (PALADINO; ALMEIDA, 2012). Todavia,

dada a falta de infraestrutura e de recursos humanos, bem como o desconhecimento sobre

as línguas indígenas, a FUNAI se viu incapacitada de levar a cabo sua proposta

educacional bilíngue autonomamente, recorrendo novamente a instituições religiosas para

esse fim.

Assim, em 1969, a FUNAI firmou convênio com o Summer Institute of Linguistics

(SIL), uma organização religiosa norte-americana com experiência em ensino escolar

bilíngue para povos indígenas na América-Latina, delegando a esta instituição o monopólio

da educação escolar para indígenas no país. Nos anos seguintes, o novo órgão indigenista

celebrou outros convênios com missões religiosas, delegando a instituições estrangeiras o

dever da tutela dos povos indígenas no campo educacional, da saúde e da assistência

comunitária (FERREIRA, 2001).

No Brasil, o SIL também ficou conhecido como Instituto Linguístico de Verão. Em

1954, essa organização já havia tentado estabelecer um convênio com o SPI para a atuação

no campo educativo junto a povos indígenas, mas não havia obtido êxito dada a posição

contrária do SPI a respeito da atuação de missões religiosas entre os povos indígenas

brasileiros. Então, sob o pretexto de desenvolver pesquisas sobre línguas indígenas, a

organização religiosa conseguiu firmar um convênio com o Museu Nacional em 1957.

Com o passar do tempo, o SIL passou a receber muitas críticas, incluindo-se a acusação de

que, sob o pretexto de realizar estudos linguísticos ou de promover o ensino escolar

98

bilíngue como forma de valorização das línguas indígenas, a instituição promovia a

alfabetização na língua materna como um método eficaz para a introdução do cristianismo

entre os povos indígenas (PALADINO; ALMEIDA, 2012).

O tipo de ensino praticado pelo SIL caracterizou-se como um bilinguismo de

transição, que servia para que as crianças indígenas saíssem do monolinguismo da sua

língua de origem para o monolinguismo em Português. Nesse sentido, a alfabetização na

língua materna era usada como uma ponte para a aprendizagem na escola, mas com o

objetivo último de conversão religiosa dos índios na condição de leitores do Evangelho

traduzido (FERREIRA; SILVA, 2007).

3.4 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no período 1970-1988:

mobilização indígena e a reivindicação de uma nova face para a escola na aldeia

A partir da década de 1970, o movimento indígena brasileiro começou a ganhar

força com a articulação dos diferentes povos frente aos problemas comuns enfrentados,

referentes principalmente à defesa dos territórios tradicionais e à criação de alternativas

econômicas que proporcionassem maior autonomia para as comunidades indígenas. Entre

as organizações indígenas criadas nesse período se destaca a União das Nações Indígenas

(UNI).

A partir desse período, surgiram também entidades da sociedade civil que passaram

a assessorar e dar apoio às causas indígenas, tais como Comissão Pró-Índio de São Paulo

(CPI/SP), Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), Associação

Nacional de Apoio ao Índio (ANAI), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Operação

Anchieta (OPAN) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI), sendo estas duas últimas

vinculadas à Igreja Católica, como tentativa de alterar sua postura em relação aos

indígenas, por meio da oferta de um serviço de educação escolar. Passam a reforçar

também o apoio ao movimento indígena várias universidades, cujas assessorias

contribuíram para a realização de experiências alternativas de educação em áreas

indígenas, paralelas à política do órgão indigenista oficial (FERREIRA, 2001).

A partir de meados da década de 1970, as mobilizações indígenas apoiadas pelas

entidades não-governamentais dão início a uma contestação da ação educativa da FUNAI e

instituições religiosas, propondo novos modelos diferenciados de escola, com vistas à

superação da tutela do Estado e às políticas educacionais de cunho integracionista. A

articulação das organizações representativas dos povos indígenas se fortifica no país, na

99

busca de soluções a problemas comuns relativos à proteção dos territórios e da diversidade

cultural, e relativos ao acesso a serviços públicos de saúde e educação. Assim, por meio de

suas organizações representativas, os povos indígenas passaram a reivindicar mudanças na

legislação e na política indigenista do país, em um grau crescente de articulação nacional4.

Toda essa mobilização culminou com as garantias constitucionais inscritas na nova

Constituição Federal de 1988.

A nova Constituição superou os princípios integracionistas presentes na legislação

brasileira até então, rompendo com uma perspectiva que visava incorporar ou assimilar os

povos indígenas à sociedade nacional e pressupunha que os povos indígenas estavam

fadados à extinção. Em substituição a essa concepção tradicional, a nova legislação

incorporou o princípio de que todos os povos tem o direito às suas diferenças culturais, o

direito de continuarem a ser indígenas, bem como o direito a uma educação escolar que

respeite seus conhecimentos e formas próprias de ensino e aprendizagem.

3.5 Educação Escolar Indígena no Brasil Pós-Constituição de 1988: sai a FUNAI,

entra o MEC e propõe-se uma face diferenciada, bilíngue, específica e intercultural

para a escola na aldeia

Em cumprimento ao previsto na nova Constituição, e em decorrência das massivas

críticas direcionadas à política educacional dirigida pelo órgão indigenista oficial e

praticadas por organizações religiosas nas aldeias, o Decreto 26, de 4 de fevereiro de 1991,

transferiu da FUNAI para o Ministério da Educação (MEC) as responsabilidades principais

pelo planejamento e coordenação de uma nova política nacional de educação escolar

indígena, ficando sua execução sob responsabilidade dos estados e municípios

(GRUPIONI, 2004, p. 47). Todavia, conforme relatam Paladino e Almeida (2012), os

funcionários e professores dos projetos de educação da FUNAI continuaram atuando nas

aldeias, o que acarretaria nos anos seguintes uma disputa, entre FUNAI e MEC, pela

prerrogativa de conduzir a educação escolar em diferentes contextos indígenas, disputa esta

que persiste em maior ou menor grau ainda hoje.

A nova legislação e a transferência de responsabilidade pelo setor ao MEC

marcaram uma nova fase na educação escolar indígena no Brasil, não mais orientada pelos

princípios civilizatórios que caracterizaram as fases anteriores, mas embasada em novos

4

A esse respeito, Albert (2001) apresenta dados segundo os quais, entre os anos de 1980 e 2000, aproximadamente 183 organizações indígenas foram criadas somente na região amazônica.

100

princípios que pressupunham o direito à diferença cultural e à afirmação identitária. Do

modelo real experimentado durante os séculos de catequização, civilização e integração

forçadas à sociedade nacional, os povos indígenas passaram a vislumbrar um novo modelo

de educação escolar orientado para a promoção da interculturalidade. Nesse novo modelo

almejado, a escola na aldeia deve deixar de ser um lugar de negação das culturas dos povos

indígenas para se transformar em espaço de revitalização de saberes e fazeres, tornando-se

um “instrumento que pode lhes trazer de volta o sentimento de pertencimento étnico,

resgatando valores, práticas e histórias esmaecidas pelo tempo e pela imposição de outros

padrões socioculturais (GRUPIONI, 2006, p. 43).

Em 1991, no âmbito do MEC, foi criada a instância responsável pelo

acompanhamento e coordenação da educação escolar indígena no país, atualmente

denominada de Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena. Visando garantir uma

assessoria nos assuntos relacionados ao planejamento de uma educação diferenciada aos

povos indígenas, o MEC criou em julho de 1992 o Comitê de Educação Escolar Indígena,

composto por representantes indígenas, membros de ONGs, representantes de

universidades e um representante da FUNAI.

Em 2001, esse Comitê foi transformado na Comissão Nacional de Professores

Indígenas, composta apenas por professores indígenas, medida que recebeu críticas por

restringir as discussões e decisões do setor apenas a professores, sem incluir a participação

de lideranças políticas e de representantes de organizações indígenas e de ONGs. Em

atendimento a essas críticas, a instância assessora foi novamente recomposta em 2004,

passando a se chamar Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI),

formada por professores, lideranças e outros representantes indígenas (PALADINO;

ALMEIDA, 2012).

Até 2004, a educação escolar indígena era responsabilidade da Secretaria de

Educação Infantil e Fundamental (SEIF) do MEC, passando então nesse ano para a

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), que, a partir

de 2011, passou a se chamar Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,

Diversidade e Inclusão (SECADI). Verifica-se que essa variação na nomenclatura da

instância do MEC responsável pelas políticas educacionais dos Governos para os povos

indígenas foi mudando à medida que a oferta de educação escolar indígena foi

gradativamente se expandindo no país, passando do Ensino Fundamental para o Ensino

Médio, chegando mais recentemente à oferta de Ensino Superior, principalmente para

formação de professores indígenas.

101

Nos planos jurídico e administrativo, após a Constituição de 1988, seguiram-se

vários marcos importantes para a regulamentação e garantia de direitos relativos à

educação escolar indígena no país, entre os quais se destacam as Diretrizes para a Política

Nacional de Educação Escolar Indígena, publicadas em 1993 para servir de referência aos

estados e municípios na elaboração e execução de seus planos educacionais com vistas a

garantir o direito às especificidades das populações indígenas; a Lei nº 9394, de 20 de

dezembro de 1996, que estabeleceu novas Diretrizes e Bases da Educação Nacional,

incluindo características específicas da educação escolar indígena, tais como o

bilinguismo, a interculturalidade e a reafirmação identitária; o Referencial Curricular

Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), publicado em 1998, composto de um

conjunto de orientações e parâmetros para a atuação de professores em escolas indígenas; o

Parecer CNE/CEB nº 14/1999, referente às Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação

Escolar Indígena, regulamentadas pela Resolução nº 03/CNE, de 10 de novembro de 1999,

que fixou a formulação de diretrizes da política nacional de educação escolar indígena

como competência da União, e a execução e oferta como competência dos estados; a Lei nº

10172, de 9 de janeiro de 2001, que instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE) para o

período de 2001 a 2010, estabelecendo objetivos e metas da educação escolar indígena, a

curto e longo prazos, incluindo-se a universalização da oferta de Ensino Fundamental e a

autonomia dos povos indígenas na formulação dos projetos pedagógicos e na gestão dos

recursos financeiros destinados às escolas, além de criar a categoria de “professor

indígena” como carreira específica do magistério; o Decreto Presidencial, de 15 de março

de 2002, que criou uma vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE) a ser preenchida

por um representante indígena; os Referenciais Curriculares para a Formação de

Professores Indígenas, publicados em 2002; o Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho

de 2002, que aprovou a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho

(OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, formulada na Conferência de Genebra, de 1989; e a

Lei nº 11645/2008, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígenas

nos sistemas público e privado de ensino do país.

Com esse novo arcabouço jurídico, associado ao fortalecimento político das

organizações indígenas, com o apoio de instituições e organizações não-indígenas ligadas

às questões indígenas, originou-se uma nova perspectiva quanto ao direito dos povos

indígenas a uma educação escolar diferenciada, bilíngue, específica e intercultural,

considerada como direito social essencial, com vistas à garantia do acesso à informação e

aos conhecimentos que garantam uma participação plena dos índios na sociedade nacional,

102

bem como com vistas à valorização e reprodução dos conhecimentos indígenas pertinentes

às formas próprias de existência dos povos. Ocorre então, no período atual, uma nova fase

na história da educação escolar indígena, que visa superar o paradigma da integração dos

povos à sociedade nacional, propondo em substituição o paradigma da interculturalidade,

que pressupõe a coexistência simultânea de diferentes culturas na composição de um Brasil

multicultural e pluriétnico.

Orientada por esse novo paradigma, compete à escola na aldeia um novo papel que,

se está claro e definido no plano jurídico, ainda esboça os primeiros passos no plano

pedagógico das escolas concretas já instaladas nas aldeias desde as fases anteriores. A

concretização desse novo tipo de educação escolar indígena passa pela construção de

espaços de diálogo entre povos indígenas e governos, com a necessária autonomia a ser

conquistada pelos primeiros frente à formulação de políticas públicas executadas pelos

segundos. Em outra frente de trabalho, relacionada à primeira, encontra-se a necessária

produção de conhecimentos sobre esse novo projeto de escola, a partir do estudo de

situações reais e de experiências vivenciadas pelos atores envolvidos com o novo

paradigma, aí incluídos professores e estudantes indígenas, lideranças, comunidades,

universidades, organizações não-governamentais e governos.

3.6 Escola na aldeia como espaço de hibridação cultural

Como se observa pelo histórico da educação escolar entre povos indígenas no

Brasil, a escola na aldeia, como instituição inexistente em sociedades indígenas nos

períodos anteriores ao contato com os colonizadores europeus, sempre proporcionou, em

todo o percurso de desenvolvimento da educação escolar indígena, um espaço de alteração

de culturas. Quer se orientasse pelo paradigma da assimilação ou da integração, quer se

oriente pelo da interculturalidade, introduzem-se pela instituição escolar práticas,

comportamentos e saberes novos na aldeia, e por essa via, ocasiona-se a fusão de

elementos culturais inicialmente distintos, e por vezes antagônicos, em novas

manifestações culturais, nem sempre facilmente resolvidas.

No espaço da interculturalidade, há que se considerar sempre as tensões, os

conflitos, a instabilidade e a provisoriedade das soluções. Nesse sentido, a escola na aldeia,

projetada a partir do paradigma da interculturalidade, passa a ser um espaço de hibridação

cultural, onde processos e práticas inicialmente discretas, próprias da sociedade local ou

103

oriundas de fora, unem-se, negam-se ou se complementam, dando origens a novos

processos e práticas.

Nesse sentido, ao se pensar o paradigma da interculturalidade para a educação

escolar indígena, busca-se caracterizar a escola na aldeia não como espaço de integração e

assimilação de culturas indígenas a uma “cultura nacional”, ou um ajuste das primeiras à

segunda, mas como espaço de fortalecimento identitário para a luta contra estruturas

opressivas e de dominação política e cultural. Assim, a escola na aldeia passa a ser um

espaço onde

[...] as diferenças culturais não se diluem imediatamente num caldo comum, nem são hierarquizadas, tratadas como superiores ou inferiores, melhores ou piores, mas permanecem em tensão, em ebulição, fazendo com que as mesmas palavras, as mesmas imagens, os mesmos símbolos não apenas produzam diversas interpretações, mas se mantenham ambivalentes e, assim, flexíveis, podendo continuar a interagir e mudar (AZIBEIRO, 2003, p. 85).

A escola na aldeia, nessa perspectiva, torna-se um espaço de ressignificação das

relações sociais, políticas, econômicas e culturais, de questionamentos, de constante

problematização dos mais diversos setores da vida cotidiana. Ela pode proporcionar novos

elementos para análise e reflexão da sociedade local e de sua posição em um plano global,

no percurso histórico que conecta passado, presente e futuro. Conforme Azibeiro (2003, p.

85), trata-se de um “espaço da ressignificação, da possibilidade de dissolução de

estereótipos e preconceitos e de empowerment, ou seja, de fortalecimento da autoconfiança

e da capacidade de ação das pessoas e dos grupos populares”.

A interculturalidade na educação escolar indígena pressupõe uma reflexão crítica da

comunidade local sobre a própria instituição escolar, suas potencialidades, ambiguidades,

perigos e benefícios. Não sem razão, é relativamente comum que a escola na aldeia seja

compreendida por povos indígenas como devoradora de diferenças culturais (NEVES,

2009). Historicamente, desde a chegada dos missionários com seu projeto civilizatório

etnocêntrico, a intenção predominante foi mesmo a de aniquilar comportamentos, ideias,

cosmologias, rituais, formas de produção e sobrevivência dos povos indígenas submetidos

à escolarização, impondo-se no lugar a cultura “ocidental”, letrada, cristã e capitalista.

Como espaço novo no interior da aldeia, a escola passa a exercer uma função

institucional que equivale ou mesmo substitui outras instituições tradicionais de

104

reprodução da cultura através da educação. Ao se estabelecer uma rotina escolar com o

objetivo de educar, com currículo, horário e local determinados, reduzem-se no transcorrer

cotidiano da vida comunitária os momentos e espaços de natureza educativa. Nesse

sentido, é ilustrativo do contraste entre formas educativas paiter anteriores ao contato e a

introduzida pela escola os registros realizados por Mindlin (1985) acerca de um momento

na roça paiter, no ano de 1979, portanto apenas 10 anos após o contato oficial do povo com

os sertanistas da frente de atração. A pesquisadora, em uma seção intitulada “Sala de aula”,

registrou:

A roça tem muito o papel de escola. Em maio, no tempo de colher cará, numa colheita possivelmente ritual, a que se juntaram homens de outras casas, um sábio e pajé interrompe a atividade para contar o passado da tribo, as lutas com os brancos, o sentido das festas. Todos ouvem extasiados. As crianças, com pequenas tarefas, imitam os adultos e participam de seu universo. As conversas podem prolongar-se, ninguém se preocupando de estar ou não parado. Sentam na maloca-paiol, nas redes ou no chão, em comentários, comendo mamões ou amendoins, até voltar ao sol (MINDLIN, 1985, p. 40).

Nesses espaços tradicionais como a roça, os saberes, os costumes, a cosmologia e a

própria história do povo eram reproduzidos com a participação fundamental de um sábio, e

na presença de homens, mulheres e crianças, indistintamente. Tratava-se de uma forma

endógena de reprodução cultural, livre da preocupação de se dominar um saber do outro, o

saber do branco. No entanto, à medida que o advento do contato foi se distanciando no

tempo, o novo contexto social, econômico e político no qual se viram inseridos os Paiter

passou a demandar novos saberes que não se faziam presentes nas formas tradicionais de

educação, principalmente a escrita e a leitura em língua portuguesa e a aritmética

envolvida nas relações comerciais. Surge assim a escola como o novo espaço na sociedade

paiter que teria a função de ser a porta de entrada dos conhecimentos do branco na aldeia,

ao mesmo tempo em que serviria de janela de observação dos paiter para o mundo do

branco.

Sem ter, inicialmente, uma completa compreensão ou mesmo uma preocupação

com todas as potenciais consequências culturais da introdução da educação escolar na

aldeia, mas com a esperança de obter na escola novas ferramentas que lhe dessem

melhores condições de se relacionar com a sociedade envolvente, os próprios Paiter

passaram a reivindicar a construção de escolas em seu território. A FUNAI deu início

105

então à construção de escolas nas aldeias e à contratação de professores não indígenas,

implantando todavia um programa educacional indiferente às particularidades culturais e

linguísticas do povo Paiter. Sem a participação de antropólogos e especialistas para o

planejamento da educação escolar nas aldeias, o órgão indigenista se apressou em elaborar

um plano de educação para os povos indígenas da região como condição para acessar os

recursos do Banco Mundial previstos no Polonoroeste.

A esse respeito, em 1987, registrou Betty Mindlin em seu relatório global do

componente indígena do Polonoreste em Rondônia:

Na área da educação, nada tem sido feito além da construção de escolas e nomeação de professores por salários baixos, sem nenhum conhecimento da vida tribal, ou qualquer orientação para elaborar um programa educacional adequado às comunidades indígenas. Os índios reivindicam com muita firmeza escolas de boa qualidade, e esta é uma de suas maiores frustrações. Esperando receber um financiamento do Banco Mundial na área de educação, a FUNAI elaborou um programa de educação, sem consultar sequer os antropólogos e especialistas que já conhecem os grupos indígenas do Polonoroeste, e apenas aventando a possibilidade de contato com instituições científicas. Não se trata propriamente de um programa ou de idéias concretas. É como se obter os recursos fosse mais importante que ter uma estratégia de ação (MINDLIN, 1987, p. 6).

O registro histórico realizado por Mindlin (1987) não só ilustra a forma como a

educação escolar foi introduzida entre os Paiter, sem se adequar às particularidades

culturais do povo, como também destaca a necessidade de um programa educacional

adequado à realidade das comunidades indígenas. O que se percebe é que, passadas quatro

décadas desde o contato, não houve por parte dos governos ações concretas no sentido de

superar o tipo de educação escolar colonizadora imposta aos Paiter. Todavia, verifica-se

agora um movimento iniciado pelos próprios Paiter no sentido de ressignificar a escola na

aldeia autonomamente, imprimindo-lhe características diferenciadas quanto ao currículo e

às práticas pedagógicas, sendo esse movimento, em grande medida, estimulado pelas

experiências de formação política e acadêmica que os professores paiter estão construindo

com o apoio de parcerias institucionais, incluindo-se a universidade.

Nesse movimento iniciado em direção a uma ressignificação da escola na aldeia

pelos próprios professores paiter, a projeção de uma nova forma de educação escolar, que

seja de fato indígena, se dá de forma tensionada, porque envolve questões de identidade

cultural uma vez que a escola passa a ser pensada como um espaço de hibridação cultural,

106

permeado de elementos culturais provenientes da tradição do povo, mas também de

elementos externos, provenientes da sociedade colonizadora.

Nesse sentido, cultura e identidade cultural passam a ser conceitos que permeiam

uma tentativa de compreensão desse fenômeno, o que nos levou a buscar por referências

teóricas que também tratassem desse tema. Assim, na próxima seção da tese, buscamos

abordar os conceitos de cultura e de identidade cultural, com ênfase na perspectiva dos

estudos culturais.

107

4 CULTURA E IDENTIDADE CULTURAL: A PERSPECTIVA DOS ESTUDOS

CULTURAIS

Nesta seção, são abordados os conceitos de cultura e identidade cultural,

entendidos não em uma perspectiva exótica ou folclórica, mas imbuídos da

intencionalidade de reforçar diferenças culturais para se contrapor a preconceitos e

estereótipos gerados em relações assimétricas de poder entre sociedades distintas. Como

subsídio teórico à compreensão desse fenômeno, busca-se um apoio no subconceito de

hibridismo cultural discutido por autores filiados aos Estudos Culturais.

Assim, com base no arcabouço teórico constituído por trabalhos multidisciplinares

dos Estudos Culturais, evitam-se noções essencialistas de cultura e identidade,

considerando-se que no espaço da interculturalidade há sempre um processo de

continuidade e ruptura, união e fragmentação, isto é, conforme Mansilha, observa-se

sempre uma

[…] tensión existente entre la defesa del propio legado cultural, la apologia de las costumbres prevalecientes en la vida cotidiana e íntima y el apego por las peculiaridades del suelo natal, por una parte, y la necesidad imperiosa de se adoptar lo extranjero y foráneo en los más variados campos (MANSILLA, 2000, p. 25).

No caso particular das interações entre conjuntos de saberes e fazeres de contextos

culturais específicos, estabelecem-se quase sempre tentativas de hierarquização, com

consequentes tensionamentos e atitudes conflitivas. Resultam destes tensionamentos, em

maior ou menor grau, transformações culturais com consequências para a forma como os

integrantes de tais contextos culturais se identificam com eles. Esse fenômeno é observado

particularmente nas interações historicamente estabelecidas entre a sociedade nacional e os

povos indígenas brasileiros, marcada inicialmente pela violência física do contato e pela

posterior extinção de formas próprias de existência dos povos submetidos à colonização.

Não obstante o desequilíbrio de poder nas relações interculturais estabelecidas entre

sociedade nacional e povos indígenas no Brasil, observam-se diferentes formas de

resistência às mudanças decorrentes do contato, que se manifestam desde a tentativa de

108

isolamento ou contato mínimo, até a busca pelo domínio dos saberes e fazeres da

modernidade por meio de instituições como escolas e universidades para fazer frente às

demandas e desafios originados nas relações com a sociedade envolvente.

A teorização como tentativa de compreensão deste fenômeno, qual seja o das

transformações estabelecidas pelo contato entre sociedade nacional colonizadora e povos

indígenas brasileiros, bem como das consequentes dinâmicas praticadas pelos diferentes

povos nas relações com a sociedade envolvente, passa pelo desenvolvimento de dois

conceitos chaves, sendo eles cultura e identidade cultural.

4.1 Cultura: do sentido antropológico aos Estudos Culturais

O termo cultura por si só encerra um conceito complexo e polissêmico. De origem

latina, é comumente empregado tanto para significar o cultivo de espécies agrícolas,

quanto para a erudição e refinamento proporcionado pela educação. Conforme discorre o

antropólogo brasileiro José Luiz dos Santos a esse respeito,

[...] [cultura] vem do verbo latino colere, que quer dizer cultivar. Pensadores romanos antigos ampliaram esse significado e a usaram para se referir ao refinamento pessoal, e isso está presente na expressão cultura da alma. Como sinônimo de refinamento, sofisticação pessoal, educação elaborada de uma pessoa, cultura foi usada constantemente desde então e é até hoje (SANTOS, 2012, p. 28).

Em seu sentido antropológico, cultura é entendida como o conjunto de padrões de

comportamento, instituições, valores materiais e espirituais de um povo (JUNQUEIRA,

2008). Longe de ser um consenso entre as diferentes correntes teóricas da Antropologia,

esse sentido antropológico para o termo cultura originou-se, segundo o antropólogo

brasileiro Roque de Barros Laraia, da fusão dos termos germânico kultur e francês

civilization, promovido por Edward Tylor (1832-1917), dando origem ao termo inglês

culture. Segundo Laraia (1986), até o final do século XVIII, o termo germânico kultur era

utilizado em um sentido amplo para abranger todos os aspectos espirituais de um povo. Por

sua vez, o termo francês civilization era utilizado na mesma época para se referir às

realizações materiais de um povo. Ao fundir os dois termos com a palavra inglesa culture,

109

Tylor intentou abranger todas as realizações humanas, materiais e espirituais, em um só

termo, que

[...] tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (TYLOR apud LARAIA, 1986, p. 25).

Segundo Laraia (1986), uma tentativa de classificação das atuais teorias sobre

cultura foi apresentada pelo antropólogo Roger Keesing, em seu artigo Theories of Culture,

a partir de dois grupos: (i) teorias que consideram cultura como sistema adaptativo

(Marshal Sahlins), e (ii) teorias idealistas que consideram cultura como sistema cognitivo

(W. Goodenough) ou como sistema estrutural (Claude Lévi-Strauss) ou como sistema

simbólico (Clifford Geertz).

De acordo com as teorias que consideram cultura como sistema adaptativo, o

processo de adaptação inicia-se na dimensão em que se encontram a tecnologia, a

economia de subsistência e os elementos da organização social ligados à produção. A partir

desta dimensão, o processo de adaptação atingiria outras dimensões, tais como a espiritual

e a estética. Existem, todavia, entre as teorias deste grupo algumas divergências sobre

como opera o processo de adaptação, e portanto sobre como e por que a cultura se

transforma. Nesse sentido, para Laraia (1986, p. 60), “estas divergências podem ser

notadas nas posições do materialismo cultural, desenvolvido por Marvin Harris, na

dialética social dos marxistas, no evolucionismo cultural de Elman Service e entre os

ecologistas culturais, como Steward”.

Por sua vez, entre as teorias idealistas, há aquelas que consideram cultura como

sistema cognitivo. Estas adotam uma abordagem antropológica por meio do “estudo dos

sistemas de classificação de folk, isto é, a análise dos modelos construídos pelos membros

da comunidade a respeito de seu próprio universo” (LARAIA, 1986, p. 60). Nessa

perspectiva, cultura está epistemologicamente no mesmo domínio da linguagem e concebe-

se que a cultura de uma comunidade é aquilo que os membros dessa comunidade dizem a

respeito de si mesmos. Por exemplo, para W. Goodenough, “cultura é um sistema de

conhecimento: ‘consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para

operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade’” (GOODENOUGH apud LARAIA,

1986, p. 60).

110

Na perspectiva das teorias idealistas para as quais cultura é um sistema simbólico,

sustenta-se que “os símbolos e significados são partilhados pelos atores (os membros do

sistema cultural) entre eles, mas não dentro deles. São públicos e não privados. (...) Estudar

a cultura é portanto estudar um código de símbolos partilhados pelos membros dessa

cultura” (LARAIA, 1986, p. 62).

Independentemente da corrente teórica que se assuma, decorrem do sentido

antropológico atual dois desdobramentos para a compreensão do conceito de cultura. O

primeiro refere-se ao seu caráter histórico, isto é, cada povo ou sociedade humana, em sua

trajetória particular de existência, desenvolveu suas produções materiais e imateriais

particulares, dando origem assim às diversas culturas que compõem a humanidade. O

segundo desdobramento diz respeito ao caráter social da cultura, isto é, sendo produção

humana coletiva, ela não é biologicamente determinada, o que explica o fato de que,

embora exista uma certa homogeneidade genética na espécie humana, uma multiplicidade

de formas de existência caracteriza a humanidade, representada por diferentes

conhecimentos, crenças, valores, leis e costumes de distintos povos.

A necessidade de compreensão do conceito de cultura na contemporaneidade não

pode desconsiderar a existência de diferentes povos e sociedades humanas em processos de

intensa interação. Todavia, a maneira como se concebe cultura na perspectiva da interação

varia de acordo com os pressupostos assumidos para tal. Nesse sentido, um pressuposto

comumente aceito atualmente é o de que cultura não é algo estático, mas se desenvolve por

processos de transformação de origem interna ou de origem externa provenientes das

relações com outras culturas (CANCLINI, 2011; HALL, 2011; EAGLETON, 2005;

SANTOS, 2012; LARAIA, 1986, BARTH, 2011).

É certo que, ainda que se considere o caráter dinâmico da cultura, diferentes

abordagens têm surgido com o propósito de explicar as diferenças culturais

simultaneamente existentes entre povos em interação e as consequentes mudanças e

transformações culturais ocorridas a partir da interação. Por exemplo, conforme aponta

Santos (2012), durante o século XIX, estudos foram desenvolvidos com o objetivo de

hierarquizar todas as culturas humanas, partindo-se do pressuposto de que a humanidade

passaria por etapas sucessivas de evolução social, indo linearmente de um estágio

primitivo ou selvagem para um estágio de barbárie, até atingir o nível de civilização

existente na Europa à época. Desse ponto de vista, “sociedades indígenas da Amazônia

poderiam ser classificadas no estágio da selvageria; reinos africanos, no estágio da

barbárie... [e] ... a Europa ... no estágio da civilização” (SANTOS, 2012, p. 14).

111

Na mesma direção, quanto às diferentes formas de explicar o mundo e os

fenômenos da natureza, houve quem considerasse a possibilidade de existirem sistemas

culturais lógicos e sistemas culturais pré-lógicos, sendo que os diferentes povos do mundo

passariam linearmente do estágio da magia para o da religião, para só então atingir o

estágio da ciência, sendo este o mais complexo e elaborado dos estágios de

desenvolvimento cultural. Conforme Laraia (1986), Levy-Bruhl, com seu livro A

mentalidade primitiva, exemplifica esse ponto de vista, ao admitir que a humanidade

poderia ser dividida entre aqueles que possuíam um pensamento lógico e os que estavam

numa fase pré-lógica.

Não obstante as teorias evolucionistas de cultura não terem encontrado confirmação

empírica em pesquisas de campo, essa visão europeia da humanidade utilizada para

construir uma escala evolutiva linear da cultura serviu, certamente, por muito tempo para

legitimar a expansão do domínio e da exploração de muitos povos do mundo pelas nações

capitalistas modernas, justificando assim o fenômeno social, político, econômico e cultural

denominado colonização. Ao se estabelecer uma crítica a esta concepção etnocêntrica de

tratar das diferenças entre os povos, pode-se assumir que, “ao invés de um contínuo magia,

religião e ciência, temos de fato sistemas simultâneos e não sucessivos na história da

humanidade” (LARAIA, 1986, p. 88).

O movimento em direção à superação do pensamento colonial, no que diz respeito

particularmente à concepção de cultura, foi relativamente lento, complexo e oneroso aos

povos submetidos ao poder e domínio dos colonizadores. De um lado, porque à ideia de

inferioridade cultural dos povos colonizados associou-se a exploração econômica das

colônias pelas metrópoles capitalistas. De outro lado, porque para a Europa colonizadora

todas as culturas existentes no restante do mundo seriam inferiores à sua.

Essa tendência de um povo colocar sua própria cultura como centro do mundo, ou

como modelo a ser imposto e seguido pelos demais, deve-se em parte porque, embora seja

determinada social e historicamente, a própria cultura age sobre seu povo, orientando-o no

modo de conceber o mundo. Em O crisântemo e a espada, a antropóloga americana Ruth

Benedict, ao abordar o universo cultural japonês, escreveu que a cultura é uma lente entre

o homem e o mundo que ele vê. Dessa perspectiva, os modos de conceber o mundo, as leis,

os diferentes valores adotados em uma sociedade humana, são também o resultado da

operação da cultura dessa sociedade sobre seus membros, não fugindo a esta determinação

o fenômeno do etnocentrismo. Conforme discorre Laraia (1986, p. 73), “o etnocentrismo,

de fato, é um fenômeno universal. É comum a crença de que a própria sociedade é o centro

112

da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autodenominações de diferentes

grupos refletem este ponto de vista”. No caso específico das nações modernas, o

nacionalismo também concorreu para o fortalecimento de perspectivas etnocêntricas,

reforçando o pressuposto de que o modo de vida nacional seria o mais correto e o mais

natural.

Em diferentes escalas, sejam elas nas relações entre nações, ou internamente entre

grupos e sociedades locais, o etnocentrismo contribuiu ao longo da história para a origem

de severos conflitos sociais, geralmente com consequências drásticas para os povos

militarmente subjugados. São exemplos a evangelização de povos indígenas brasileiros por

missionários europeus, a ideologia nazista e a perseguição aos judeus, a imposição de

sistemas políticos e econômicos europeus às nações colonizadas na América, África, Ásia

e Oceania.

Particularmente quanto ao fenômeno da colonização promovido pelas nações

capitalistas modernas, não bastasse o domínio político e econômico sobre as sociedades

colonizadas, promoveu-se via de regra a imposição também dos padrões culturais,

incluindo-se sistemas éticos e estéticos, para o que concorreram instituições tais como

escolas e igrejas. De certa forma, isto pode ser explicado em razão de que, conforme Laraia

(1986, p. 74), “comportamentos etnocêntricos resultam também em apreciações negativas

dos padrões culturais de povos diferentes. Práticas de outros sistemas culturais são

catalogadas como absurdas, deprimentes e imorais”.

Para além do etnocentrismo, predominou nas ciências sociais até meados do século

XX uma noção de cultura vinculada à ideia de ordem, regularidade e padrão como formas

de organização das sociedades. Daí que cultura era conceituada como algo estático e

ordenado, e as organizações sócio-culturais seguiriam padrões mecânicos de

funcionamento. Essa noção estava vinculada ao paradigma positivista característico do

pensamento ocidental, no qual a racionalidade e a objetividade eram eleitos como

elementos centrais, influenciando a investigação científica teórica e de campo, tal a força

que representava nas ciências sociais (OLIVEIRA, 1997).

Na tentativa de fortalecer teoricamente o movimento de superação das perspectivas

etnocêntricas, positivistas ou modernas de se conceber cultura e as relações entre distintos

povos e nações, originaram-se a partir da segunda metade do século XX e encontram-se

atualmente em desenvolvimento, entre outros, diferentes trabalhos que se classificam

academicamente como Estudos Culturais. Incluem-se nessa corrente os atuais trabalhos de

Canclini (2011), Bhabha (2010) e Hall (2003; 2011), que partem de uma crítica à

113

Modernidade, caracterizada pela crença no desenvolvimentismo hegemônico e no

fatalismo de que sistemas culturais “atrasados” serão naturalmente substituídos por

sistemas culturais “avançados”. Estabelecem, todavia, uma crítica também aos movimentos

ideológicos e aos estudos antropológicos nos quais a preocupação com a descrição interna

da cultura de povos ou sociedades humanas é o principal ou único foco, deixando-se de

lado a análise das transformações que ocorrem nas relações entre culturas, sejam elas no

contexto do colonialismo, sejam elas nas relações entre povos que constituem uma mesma

nação moderna.

A novidade dos Estudos Culturais em relação a outras perspectivas teóricas na

abordagem da cultura está em que os processos de transformação em andamento nas

relações entre culturas tornam-se foco de análise, superando-se o determinismo de classe,

gênero, etnia, raça e nacionalidade, ou qualquer outra categoria que até então havia sido

utilizada como chave para explicação totalizante dos processos de transformação da

cultura.

Nesse sentido, em sua crítica à perspectiva tradicional da Antropologia, afirma

Canclini:

Essa delimitação do universo de estudo leva a concentrar a descrição etnográfica nos traços tradicionais de pequenas comunidades e a superestimar sua lógica interna. Ao enfocar tanto o que diferencia um grupo dos outros ou o que resiste à penetração ocidental, são deixados de lado os crescentes processos de interação com a sociedade nacional e mesmo com o mercado econômico e simbólico transnacional. Ou os reduzem ao asséptico “contato entre culturas”. Daí que a antropologia tenha elaborado poucos conceitos úteis para interpretar como os grupos indígenas reproduzem em seu interior o desenvolvimento capitalista ou constroem com ele formações mistas. Os conflitos, poucas vezes admitidos, são vistos como se só se produzissem entre dois blocos homogêneos: a sociedade “colonial” e o grupo étnico. No estudo da etnia, são registradas unicamente as relações sociais igualitárias ou de reciprocidade que permitem considerá-la “comunidade”, sem desigualdades internas, confrontadas compactamente com o poder “invasor” (CANCLINI, 2011, p. 248).

Na perspectiva dos Estudos Culturais, considera-se que cada cultura tem uma

história particular, mas é necessário, na análise atual desta história, incluir as relações com

outras culturas, com destaque para aquilo que muda e se transforma unilateralmente ou

mutuamente a partir destas relações, não só por imposição de fatores de transformação

modernizadores oriundos da dominação externa, mediante o exercício do poder por setores

114

hegemônicos, mas também como uma opção voluntária e criativa de automodelação

interna, ou de resistência, a partir da qual criam-se formas híbridas de sistemas de

produção, de manifestações religiosas, de organização política e de produção de arte.

Como exemplo de hibridação cultural, encontram-se os procedimentos pelos quais as

culturas tradicionais de povos indígenas e de trabalhadores camponeses unem-se

sincreticamente a diversas modalidades de cultura urbana e massiva, como forma de

integração às sociedades nacionais na América Latina.

4.2 O conceito de hibridismo cultural

Por hibridismo cultural entendem-se os “processos socioculturais nos quais

estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar

novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2011, p. XIX). Tais processos não

resultam simplesmente da submissão de setores populares a setores hegemônicos, tal como

outros modelos teóricos pressuporiam, considerando a dominação da burguesia sobre o

proletariado, da cultura urbana sobre a rural, do moderno sobre o tradicional. Do ponto de

vista dos Estudos Culturais, consideram-se os processos de hibridismo cultural como

resultado também de criatividade e resistência produzidos pela ação, pelo discurso e pela

representação de quem tem menos poder nas relações entre culturas. Nesse sentido,

transformações culturais não são experiências passivas. Isso pode ocorrer nas relações dos

setores populares frente à indústria cultural de massa, nas relações entre sociedades

indígenas e sociedades nacionais industriais que as circundam, entre nações colonizadas e

as metrópoles colonizadoras capitalistas.

Dessa perspectiva, retira-se o foco de análise das relações entre culturas do plano

do determinismo econômico, atribuindo-se à hibridação uma certa autonomia, não mais

como reflexo direto das relações econômicas. Resulta desse movimento de perspectiva que

o objeto principal de estudo não está na hibridez, mas sim no processo de hibridação.

Interessa ao pesquisador dos Estudos Culturais investigar como a hibridação funde

estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas sociais.

Conforme Canclini (2011), às vezes isso é resultado imprevisto de processos de

intercâmbio econômico ou comunicacional, mas frequentemente está associada à

criatividade individual e coletiva, tanto nas artes como na vida cotidiana e no

desenvolvimento tecnológico.

115

Assim, considerar transformações culturais do ponto de vista da hibridação implica

considerar cultura não mais como objeto epistemológico cuja descrição visa a totalidade,

mas como objeto enunciativo, portanto semiótico, fluido e dinâmico, onde o presente

performático está constantemente sendo ressignificado em articulação com um tempo

retroativo ou prefigurativo, e com espaços narrativos metafóricos, por aqueles que vivem e

estão submetidos às contradições dos processos hegemônicos e modernizadores,

estabelecendo-se com isto espaços híbridos de negociação cultural. Conforme Homi

Bhabha, ao se considerar o presente enunciativo na articulação da cultura, estabelece-se

“um processo pelo qual outros objetificados possam ser transformados em sujeitos de sua

história e de sua experiência” (BHABHA, 2010, p. 248).

4.3 Mudanças culturais na perspectiva do hibridismo

Transferir a tematização da cultura do campo epistemológico para o semiótico

implica abrir espaço para representações contingentes, através das quais hierarquias

culturais são constantemente relocadas, reinscritas, ressignificadas na constituição de

lugares híbridos. Isso porque, conforme Bhabha,

O epistemológico está preso dentro do círculo hermenêutico, na descrição de elementos culturais em sua tendência a uma totalidade. O enunciativo é um processo mais dialógico que tenta rastrear deslocamentos e realinhamentos que são resultado de antagonismos e articulações culturais – subvertendo a razão do momento hegemônico e recolocando lugares híbridos, alternativos, de negociação cultural (BHABHA, 2010, p. 248).

Verifica-se que abordar o conceito de cultura a partir da perspectiva semiótica da

enunciação possibilita uma inversão de categoria, migrando-se do campo da epistemologia

(descrição empírica totalizante), para o campo da representação discursiva (significação

contingente aberta). Nessa perspectiva, a identidade humana como imagem só faz sentido

como imagem discursivamente construída, de modo que a diferença cultural emerge como

resultado de tensionamentos políticos gerados por processos de identificação cultural, que

redirecionam os discursos para lugares múltiplos de significação. Daí que Homi Bhabha

estabelece uma crítica ao multiculturalismo, em razão de seus princípios liberais da

diversidade cultural, e propõe em substituição a perspectiva da interculturalidade, em

116

função de seu potencial político e de produção de campos de força. Nesse sentido, Bhabha

distingue “diversidade cultural” de “diferença cultural”, nos seguintes termos:

A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto do conhecimento empírico – enquanto diferença cultural é o processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força (BHABHA, 2010, p. 63).

No processo de hibridação, a reconversão é uma das principais formas de

transformação adotadas para adaptar um patrimônio cultural, um conjunto de saberes e

técnicas, por exemplo, para novas condições de produção e existência. O significado

cultural de reconversão é ilustrado por Canclini (2011, p. XXII), como “as estratégias

mediante as quais um pintor se converte em designer, ou as burguesias nacionais adquirem

os idiomas e outras competências necessárias para reinvestir seus capitais econômicos e

simbólicos em circuitos transnacionais”. Nesse sentido, também são exemplos de

estratégias de reconversão de setores populares em processo de hibridação cultural a

adaptação pela qual passam os saberes de trabalhadores camponeses para trabalhar e

consumir na cidade, a vinculação dos artesanatos indígenas a usos modernos para

interessar compradores urbanos, ou mesmo “os movimentos indígenas que reinserem suas

demandas na política transnacional ou em um discurso ecológico e aprendem a comunicá-

las por rádio, televisão e internet” (CANCLINI, 2011, p. XXII).

Visto dessa perspectiva, verifica-se que os processos de hibridação cultural, gerados

a partir de estratégias de reconversão, em muitos casos intencionais e criativamente

originados na busca de se apropriar de benefícios da modernidade, podem interessar tanto a

setores populares, tais como sociedades indígenas, grupos de trabalhadores rurais, nações

colonizadas, como a setores hegemônicos que procuram impor aos demais padrões

culturais de produção e consumo. Em qualquer caso, no contexto das relações entre

culturas, o sentido das transformações culturais deve ser analisado a partir das realidades

sociais concretas nas quais se dá a hibridação, isto é, a partir do vivido e do experienciado

tanto pelos setores populares, quanto pelos setores hegemônicos, evitando-se com isso o

117

pressuposto do determinismo unilateral segundo o qual, nas relações assimétricas de poder,

o sentido das transformações culturais vai dos setores hegemônicos para os populares.

Ao se considerar as possibilidades de resistência, de ação e de criatividade

praticadas nas relações assimétricas de poder entre culturas de setores distintos de uma

sociedade, ou mesmo entre nações e povos, afasta-se a hipótese de receptividade passiva,

criando na hibridação um espaço de representação também dos subalternos, isto é,

considera-se também a voz que vem de baixo. No caso particular dos meios de

comunicação de massa, por exemplo, a voz da audiência importa tanto quanto o que se

passa nas telas da televisão e do computador, ou nos textos impressos, como objeto de

análise que permita construir uma visão geral das transformações culturais em curso. Nessa

perspectiva, como conceito central de análise, surge a questão dos processos de formação e

transformação de identidades culturais, não mais como algo fixo e previamente

determinado, mas como algo contingente e vacilante.

4.4 Identidade cultural: da essência fixa à possibilidade cambiante

O conceito de identidade, e, por conseguinte, o de identidade cultural, tem passado

por transformações no conjunto de atuais teorias sociais, carecendo ainda, conforme Hall

(2011), de uma compreensão conclusiva ou segura a respeito das proposições teóricas

produzidas a respeito do tema. Não obstante a inconclusão teórica à qual Stuart Hall faz

referência, observam-se certas alegações comuns entre os teóricos atraídos pelo assunto,

possibilitando assim caracterizar uma nova perspectiva emergente de compreensão dos

sujeitos sociais e dos processos de formação e transformação das identidades na

contemporaneidade.

A descontinuidade, a fragmentação, a ruptura e o deslocamento são características

atribuídas às sociedades contemporâneas, caracterizando-se estas como sociedades em

permanente mudança (GIDDENS, 1990; LACLAU, 1990, HARVEY, 1989). Estas

características resultam do processo de globalização ou mundialização, intensificado no

século XX, a partir do qual diferentes áreas do planeta são postas em conexão entre si,

possibilitando que transformações sociais e culturais ocorram em escalas indefinidas de

espaço-tempo, com a interação ou fusão de espaços e realidades locais com espaços

globais. Uma das consequências das interações globais é o deslocamento e a ruptura das

bases de estruturas locais, que se reorganizam em novas e múltiplas bases, desenvolvendo-

118

se não mais a partir de uma única essência ou núcleo de poder articulador, mas a partir de

vários núcleos ou centros de poder.

A compreensão das sociedades contemporâneas e suas transformações demanda,

então, uma nova teoria social, segundo a qual a sociedade deixa de ser “um todo unificado

e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a

partir de si mesma”, e passa a ser compreendida como sendo algo que está

“constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si mesma” (HALL,

2011, p. 17).

Os deslocamentos e rupturas que caracterizam as sociedades contemporâneas

geram, em consequência, uma multiplicidade de “posições de sujeito” (LACLAU, 1990),

com cada uma das quais os indivíduos podem se identificar, mantendo-se todavia a

estrutura da identidade aberta. Esse fenômeno tem sido tratado como a “crise de

identidade” da modernidade tardia, ou da pós-modernidade (WOODWARD, 2012; HALL,

2011). Em outros termos, os múltiplos e diferentes sistemas sociais e culturais aos quais os

sujeitos das sociedades contemporâneas são expostos geram também uma multiplicidade

de identidades possíveis, com cada uma das quais os sujeitos podem se identificar.

A compreensão das formas pelas quais o sujeito social contemporâneo se localiza

nos sistemas culturais que o rodeiam, isto é, como ele se identifica em tais sistemas,

demanda uma mudança de concepção de sujeito e de identidade cultural em relação às

concepções existentes em períodos anteriores, que caracterizavam a sociedade como

estável e unificada em torno de categorias tais como classe, gênero, etnia e nacionalidade.

Nesse sentido, ao analisar as mudanças pelas quais os conceitos de identidade e de sujeito

estão passando, Hall (2011) identifica três concepções de identidade, sendo elas as

concepções de identidade do sujeito do Iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-

moderno.

Na primeira concepção, a do sujeito do Iluminismo, a identidade é considerada

como um núcleo interior do indivíduo, que o caracteriza desde o seu nascimento até a

morte. Nessa concepção “individualista” de identidade, o sujeito é um indivíduo centrado,

unificado entorno da ideia de um “eu” autônomo, dotado das capacidades de razão e de

consciência.

Na segunda concepção de identidade, a do sujeito sociológico, considera-se que,

embora exista um núcleo ou essência interior que caracteriza o indivíduo, este não é

autônomo e autossuficiente em sua existência, porque depende da mediação simbólica das

pessoas ao seu redor na relação com a cultura do mundo em que vive. Trata-se portanto de

119

uma concepção interativa de identidade, segundo a qual os valores e significados culturais

são internalizados pelo sujeito nas suas interações sociais, preenchendo assim o espaço

existente entre o interior e o exterior, entre o público e o privado, de modo a ajustar seus

sentimentos subjetivos aos lugares objetivos que ocupa na sociedade. Segundo Hall (2011,

p. 12), para essa concepção sociológica, a identidade “costura (ou, para usar uma metáfora

médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura”, e com isso “estabiliza tanto os sujeitos quanto os

mundos culturais que eles habitam”.

Na terceira concepção de identidade, a do sujeito pós-moderno, considera-se que as

mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas colocam o indivíduo em contato com

múltiplos sistemas culturais, empurrando-o em diferentes direções, o que proporciona a

existência de um sujeito com mais de uma identidade, até mesmo contraditórias entre si.

Assim, conforme Hall (2011, p. 13), “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes

momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”.

4.5 Hibridação cultural e a multiplicação de identidades

A partir desta terceira concepção de identidade cultural, ou dos processos pelos

quais ela é criada e recriada, passa-se a considerar a identidade não mais como algo que

caracteriza os membros de uma cultura desde seu nascimento até a morte. Nesse sentido,

ao se considerar a hibridação como categoria na análise das relações assimétricas entre

culturas, passa a chamar a atenção consequentemente os processos pelos quais os membros

dos setores populares ou hegemônicos identificam-se com as culturas híbridas resultantes,

ou mesmo como os sujeitos transitam entre as diferentes culturas, ora identificando-se com

certos valores, padrões de comportamento, modos de vida em geral, ora distanciando-se

destes para assumir outros modos de vida, outros valores e outros padrões de

comportamento, de forma intencional ou condicionada por fatores que lhe fogem à

consciência.

Nessa perspectiva, a identidade cultural surge mais como um processo dialético e

dinâmico do que como algo sólido e unificado como pressuporia a visão predominante na

modernidade. Conforme Stuart Hall, “se sentimos que temos uma identidade unificada

desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre

nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’. A identidade plenamente unificada,

completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2011, p. 13).

Esse ponto de vista é corroborado por Fleuri (2003), segundo o qual

120

A identidade, sendo definida historicamente, é transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam, de tal forma que, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar (FLEURI, 2003, p. 11).

Dessa perspectiva teórica, depreende-se que, nas relações interculturais, pode

ocorrer tanto um abandono parcial de elementos de uma cultura, quanto o surgimento de

novos fenômenos culturais, de modo que no processo de interação entre distintas culturas,

que no caso dos povos indígenas brasileiros, por exemplo, se deu predominantemente de

forma assimétrica, não há apenas a assimilação de uma pela outra ou uma simples fusão

passiva, mas uma coexistência dialética composta de elementos culturais heterogêneos.

Surge assim uma tensão entre síntese e simbiose cultural, fusão e coexistência antagônica

que configuram o fenômeno da hibridação de que trata Canclini.

É, pois, o processo de hibridação de culturas na modernidade tardia que coloca em

colapso as formas pelas quais o indivíduo se identificava ou se ajustava aos padrões

culturais estáveis das sociedades em épocas anteriores, dando lugar atualmente a processos

de identificação provisória, variável e instável, porque reorientada a todo momento para

novas e múltiplas direções. Assim, uma consequência da hibridação cultural em sociedades

contemporâneas é a ruptura com tipos tradicionais de ordem social, ao que Harvey (1989)

chama de rompimento com toda condição precedente em um processo contínuo de

fragmentações internas. Dessa perspectiva, as sociedades e culturas na modernidade tardia

deixam de ser totalidades bem delimitadas a partir de um único centro referencial e

articulador, e passam a ser concebidas como estruturas instáveis, inacabadas e em

constante mutação.

À característica de mudança rápida e abrangente das sociedades contemporâneas,

associa-se outra, que diz respeito ao modo de vida altamente reflexivo originado na

modernidade tardia, de modo que “as práticas sociais são constantemente examinadas e

reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando,

assim, constitutivamente, seu caráter” (GIDDENS, 1990 apud HALL, 2011, p. 15). De

certa forma, isso é o que garante que sociedades contemporâneas, marcadas por diferenças,

divisões e antagonismos sociais não se desintegrem totalmente. Afinal, a multiplicidade de

121

identidades culturais que produzem, com cada uma das quais os sujeitos podem se

identificar, acaba, de alguma maneira, articulando-se e dando origem a novas identidades,

novas “posições de sujeito”, ao que Ernest Laclau denomina de “recomposição da estrutura

em torno de pontos nodais particulares de articulação” (LACLAU, 1990 apud HALL,

2011, p. 18).

4.6 A diferença como categoria mobilizadora da resistência cultural em sociedades

indígenas

A multiplicidade de identidades possíveis coexistentes em sociedades

contemporâneas reflete na reconfiguração dos movimentos sociais, que também passam a

se orientar a partir de múltiplas categorias mobilizadoras, deixando de ser a “classe social”

uma identidade singular que dê conta de abranger os diferentes interesses existentes nas

sociedades. Nesse sentido, segundo Hall (2011, p. 21), “a classe não pode servir como um

dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados

interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e

representadas”.

No caso particular dos movimentos indígenas, percebe-se que uma categoria

mobilizadora passa a ser a diferença reivindicada como direito das gerações mais jovens

poderem continuar a fazer escolhas de futuro tendo como referências as tradições culturais

de suas próprias sociedades, diferentes daquelas existentes na sociedade colonizadora,

todavia assumindo-se identidades novas e contingentes, em razão das violações dos limites

e das fronteiras culturais provocadas pela interação com a sociedade colonizadora.

Assim, frente à experiência de deslocamento resultante do colapso das estruturas

que serviam de base para a inscrição das identidades em períodos anteriores ao contato, no

caso das sociedades indígenas colonizadas que intentam resistir às mudanças impostas pelo

colonizador, busca-se constantemente retraçar os limites e as fronteiras culturais violadas.

Mas, dado que cultura não é essência, muito menos a própria identidade, resultam desse

rearranjo de fronteiras culturas e identidades modificadas, diferentes do que eram

inicialmente. E dado também que as forças homogeneizadoras continuam a agir nas

relações assimétricas de poder entre tradição e modernidade, entre o interno e o externo,

esse processo de retraçar fronteiras violadas torna-se um contínuo na tentativa de

sobrevivência cultural, resultando desse processo sempre novas identidades e novas

fronteiras.

122

A interculturalidade caracteriza-se, assim, exatamente como um entre-lugar de

culturas distintas que se encontram, como um terceiro-espaço (BHABHA, 2010) situado

entre o interno e o externo a fronteiras e limites culturais que são constantemente

realocados, em função das tensões e relações de poder que caracterizam os encontros

interculturais. Em tal espaço de conflitos e tensões, o patrimônio histórico de culturas

tradicionais anteriormente existentes assumem funções contemporâneas não como

essências imutáveis e fossilizadas a se perpetuarem indefinidamente no tempo, mas, como

sustenta Canclini (2011), como conteúdo de referência a partir do qual as sociedades

subjugadas podem teatralizar e celebrar o passado como estratégia para reafirmarem-se no

presente.

Assim, os conteúdos culturais passam a funcionar como critérios de pertença no

sentido de serem compartilhados pelos membros de uma sociedade específica como

estratégia de autoafirmação identitária, ao assumirem uma origem étnica comum, sendo a

etnicidade neste caso concebida de modo inverso ao modo como originalmente foi pensada

no contexto da etnologia e do colonialismo.

4.7 A etnicidade como resultado do exercício da diferença em contextos interculturais

Os conceitos de etnia e de etnicidade surgiram no século XIX no contexto do

colonialismo, no âmbito da etnologia clássica, baseados no pressuposto de que sociedades

e grupos culturais colonizados seriam entidades objetivas, passíveis de serem definidas e

descritas isoladamente por suas características culturais observadas de fora para dentro

(POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 2011). Ocorre que, nas descrições de sociedades e

grupos colonizados, utilizavam-se sempre os padrões e valores dados a priori pelos

próprios colonizadores, resultando assim invariavelmente em uma associação do conceito

de etnia com a ideia de sociedade exótica, primitiva, atrasada, arcaica e,

consequentemente inferior. Assim, essa criação artificial de etnia, em um sentido “de cima

para baixo”, estava a serviço da ordem colonial porque invariavelmente tratava de

inferiorizar povos ou grupos culturais colonizados, justificando desse modo o próprio

fenômeno da colonização.

As raízes etimológicas da palavra étnico de fato associariam originalmente etnia a

uma noção negativa de “outros” povos, distintos daquele de quem faz uso do termo. Nesse

sentido, conforme Sollors (1986, apud POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 2011), entre

os gregos, o termo ethnos era utilizado para fazer referência aos povos considerados

123

bárbaros ou àqueles que não se organizavam em cidades-estados, e o termo latino ethnicus

era utilizado pelos cristãos do século XIV para ser referirem a povos considerados pagãos.

Ocorre que, ao longo do século XX, as noções de etnia e de etnicidade sofreram

uma significativa mudança conceitual, superando a ideia de grupos étnicos como entidades

discretas, homogêneas ou passíveis de serem objetivamente descritas, nomeadas e

catalogadas a partir de traços ou características culturais, por um observador externo. A

partir de então, e na contemporaneidade, novas teorias da etnicidade tendem a considerá-la

como efeito do exercício da diferença cultural reivindicada, buscada constantemente pelos

grupos ou sociedades marginalizadas ou colonizadas, a partir de um movimento de dentro

para fora, no sentido de uma autoafirmação e de uma forma de identificação alternativa à

consciência de classe.

A partir dessa perspectiva, a etnicidade passa a ser concebida como uma dimensão

universal das relações humanas, na medida em que a própria noção de identidade cultural

pressupõe o exercício da diferença ou da distinção, sendo que, portanto, somos todos seres

étnicos na medida mesmo em que somos todos portadores de identidades. Assim, o objeto

das teorias da etnicidade na atualidade deixa de ser a descrição totalizante de povos,

sociedades e grupos culturais com o intuito de promover uma escala cultural comparativa e

passa a ser “o processo de construção das diferenças étnicas e das formas de interação nas

quais os indivíduos agem como membros de grupos étnicos” (POUTIGNAT; STREIFF-

FERNART, 2011, p. 84).

Nesse sentido, a etnicidade emerge no contexto da interculturalidade, em particular

no caso de sociedades indígenas contemporâneas, como estratégia na tentativa de

resistência por diferenciação cultural, numa oposição entre o Nós e os Outros, de modo que

uma identidade étnica passa a ser assumida como sentimento de pertença a um grupo ou

sociedade em interação com outros grupos ou sociedades distintas.

A pertença étnica nesse contexto passa a operar como categoria importante de

mobilização de grupos e sociedades marginalizadas na conquista de direitos coletivos. No

caso particular dos povos indígenas, um efeito imediato da defesa da pertença étnica é a

reivindicação do direito ao território tradicionalmente ocupado pelos povos, sob constante

ameaça dos poderes de setores da sociedade colonizadora que têm interesses conflitantes

com a sobrevivência cultural e, portanto, territorial dos povos tradicionais.

Verifica-se portanto que essa nova noção de etnicidade só faz sentido se

considerada no contexto de relações interculturais, isto é, como resultado do exercício da

diferença em relação a um Outro, de modo que os indivíduos de uma sociedade ou grupo

124

cultural se percebem unidos pelo compartilhamento de um conjunto de tradições,

conhecimentos, saberes, hábitos e comportamentos não compartilhados pelos demais

grupos os sociedades com os quais mantêm relações. Assim, esse conjunto de aspectos da

cultura própria do grupo é utilizado subjetivamente pelos membros do próprio grupo para

se diferenciar de seus vizinhos, produzindo como efeito uma identidade cultural específica

e de natureza étnica.

Dessa perspectiva, os grupos étnicos são concebidos não mais como entidades

objetivamente definíveis por um observador externo, mas como sendo autodefinidos por

seus próprios membros a partir do reconhecimento e da reivindicação de uma tradição

compartilhada internamente, sendo que, no contexto da hibridação cultural, o próprio

conceito de tradição deixa de ser assumido como um congelamento do patrimônio cultural

existente no passado, e passa a ser concebido, conforme Canclini (2011), como um

mecanismo de seleção ou de invenção de patrimônios culturais reconvertidos para uma

legitimação do presente como forma de resistência.

Ainda com base em Canclini (2011), verificamos que, quando a questão da

identidade é pensada no âmbito de espaços de hibridação cultural, é preciso superar a ideia

de etnia como essência caracterizada por um conjunto de traços fixos e congelados, uma

vez que a história dos movimentos identitários demonstra que grupos culturais tradicionais

tendem a selecionar elementos e traços culturais de diferentes épocas, articulando-os no

presente e ressignificando-os com a finalidade de construir um relato coerente de si

mesmos nas relações estabelecidas com as sociedades nacionais. Em outros termos, na

relação entre tradição e modernidade, o presente é significado em termos de algo que se

repete “sob a aparência de um passado que não é necessariamente um signo fiel da

memória histórica, mas uma estratégia de representação da autoridade em termo do

artifício do arcaico” (BHABHA, 2010, p. 65).

Em síntese, a partir da perspectiva teórica exposta nesta seção, torna-se possível

considerar o fenômeno relativo à ressignificação da educação escolar existentes em aldeias

de sociedades indígenas pelos membros das próprias sociedades indígenas, como parte das

estratégias de grupos étnicos contemporâneos se autoafirmarem em contextos de

hibridação cultural a partir da ênfase no compartilhamento de conhecimentos e saberes

tradicionais internamente pelos próprios grupos. A escola concebida como espaço de

hibridação cultural na aldeia torna-se assim também um espaço de ressignificação do

presente cultural dos povos a partir da revitalização de elementos da tradição existentes no

passado.

125

Assim, com a intenção de compreender ideias e pressupostos presentes em

processos enunciativos de professores indígenas, enquanto membros de um grupo étnico,

ao projetarem para as escolas existentes em suas aldeias o ensino de saberes e fazeres

matemáticos da tradição de seu povo, torna-se relevante um aprofundamento em questões

teóricas relativas à etnomatemática, por ser atualmente a área que mais se aproxima, a meu

ver, do contexto da pesquisa. Assim, apresento na próxima seção desta tese, como última

seção de fundamentação teórica, os resultados de uma pesquisa bibliográfica que realizei

sobre etnomatemática.

126

5 ETNOMATEMÁTICA: UMA CONCEPÇÃO TRANSFORMADORA

Ao iniciar um estudo sistemático de textos que tratam de etnomatemática, na busca

de uma definição na qual pudesse basear minha elaboração teórica referente ao tema,

percebi que, desde que uma concepção inicial foi proposta por Ubiratan D’Ambrosio, ela

tem passado por múltiplas abordagens e tentativas de compreensão, gerando conceituações

e definições em diferentes contextos. Essa multiplicidade de tentativas de compreensão

resulta, na literatura, em uma dupla condição: ora Etnomatemática é entendida como

conjunto de saberes e fazeres matemáticos próprios de culturas específicas, ora é entendida

como um programa de pesquisa configurado com a contribuição de diferentes áreas do

conhecimento acadêmico e científico, tais como filosofia, história e antropologia.

Buscar-se-á explorar nessa seção esta variedade de abordagens que tem

caracterizado o movimento teórico pertinente à Etnomatemática, atingindo-se de certo

modo uma confusão conceitual ou um não alinhamento de ideias de diferentes autores em

torno de uma perspectiva única de etnomatemática, conforme uma análise comparada das

diferentes abordagens possibilita verificar.

5.1 Duas formas distintas de se entender Etnomatemática

De modo geral, dois grandes grupos de concepções de etnomatemática têm

caracterizado teoricamente uma nova perspectiva histórica e filosófica de abordar

conhecimentos matemáticos, vinculada originalmente a transformações nos modos de

conceber o mundo, a ciência, a educação e as relações entre povos e culturas. Assim, na

continuidade da fundamentação teórica dessa pesquisa, optamos em abordar a

Etnomatemática, entendida a partir de duas formas distintas: etnomatemática como

conjunto de saberes e fazeres social e culturalmente situados, e Etnomatemática como

programa de pesquisa.

Da primeira perspectiva, tornam-se possíveis expressões presentes em trabalhos tais

como Gerdes (1988): matemática indígena, matemática popular, matemática mundial;

Scandiuzzi (2006): conhecimentos matemáticos de povos indígenas; Fantinato (2006):

práticas de matematizar de grupos culturais específicos; Santos (2006): conhecimento

127

etnomatemático do grupo; Tuesta (2010): conhecimentos matemáticos dos povos

indígenas; D’Ambrosio (2011): etnomatemática do cotidiano, etnomatemática das

culturas africanas, etnomatemáticas das tradições indígenas, etnomatemática de grupos

profissionais, diferentes etnomatemáticas, matemática acadêmica, etnomatemática do

branco, etnomatemática indígena; Knijnik et al. (2012): diferentes matemáticas; Knijnik

(2004): saber e fazer matemático de culturas marginalizadas; Ferreira (1994): matemática-

materna, conhecimento etnomatemático indígena; Wanderer (2009): matemáticas

produzidas pelos diversos grupos culturais; Fernandes (2009): matemática de povos

culturalmente diferenciados, conhecimentos matemáticos Kyikatêjê; Rosa e Orey (2005):

práticas matemáticas de grupos minoritários específicos, várias formas culturais de

matemática; Fernandes e Fernandes (2009): matemática Kaingang, conhecimentos

matemáticos dos povos indígenas; Mastop-Lima (2009): etnomatemática aikewára; Silva

(2007): matemática tapirapé; Costa e Borba (1996): saber matemático construído no

cotidiano indígena, matemática da tribo, conhecimento etnomatemático do grupo,

matemática do não-índio; Ascher e Ascher (1986): ideias matemáticas de povos não

letrados; Ferreira (2002): ideias matemáticas de povos distintos; Silva (2008): saber-fazer

matemático do grupo, matemática indígena, formas distintas de conhecimentos

matemáticos; Costa et al. (2009): múltiplas maneiras de matematizar, conhecimentos

matemáticos indígenas.

Dessa perspectiva, também é possível formular expressões tais como

etnomatemática paiter ou etnomatemática dos pedreiros, sendo que a própria matemática

acadêmica, atualmente constante dos currículos escolares ao redor do mundo, pode ser

definida como uma etnomatemática. Considerando-se essa primeira forma de

compreensão, comumente as práticas matemáticas de grupos específicos são tidas como

etnomatemáticas também específicas.

Da segunda perspectiva, depreendem-se princípios, orientações teóricas e

metodológicas, a partir das quais resultam mudanças no modo de conceber a educação, a

cultura, as relações sociais e as condições humanas no mundo. Nessa segunda forma de

compreensão, a Etnomatemática assume-se como concepção histórica e filosófica do

conhecimento, vinculada originalmente a transformações nos modos de conceber o mundo,

a ciência, a educação e a relações entre povos e culturas.

Particularmente, na presente pesquisa, compreendemos Etnomatemática como uma

concepção filosófica que estabelece princípios gerais e que também situa contextualmente

e diferencia as diferentes práticas matemáticas existentes no mundo da atual prática

128

matemática escolar, considerada esta como homogeneizadora, por não levar em

consideração os saberes das diferentes tradições5 e suas especificidades.

Na tentativa de melhor tratar dessa dupla condição, como saber em si e como

programa de pesquisa, que a expressão etnomatemática remete, far-se-á, a seguir, uma

análise do contexto histórico mais amplo que desencadeou as origens da Etnomatemática

no Brasil e no mundo.

5.2 Etnomatemática: contextos, origens e definições

As origens de uma nova perspectiva de abordagem do conhecimento científico, da

história e da matemática, surgida no século XX, estão vinculadas ao reconhecimento do

caráter ideológico da ciência, da história e da matemática. Uma citação do historiador

soviético Konstantín Ribnikov, reproduzida pelo matemático e educador brasileiro

Ubiratan D’Ambrosio, ilustra as origens de uma compreensão de que não há uma

neutralidade ideológica na história, na ciência e, por conseguinte, na história da

matemática:

A luta entre as forças progressistas e reacionárias na ciência Matemática, que é uma das formas da luta de classes, se revela de forma mais intensa nas questões históricas e filosóficas das Matemáticas [...]. Ela [a História da ciência] deve estar bem organizada como parte da educação ideológica do estudantado e dos trabalhadores científicos (RIBNIKOV, 1987, p. 19, apud D’AMBROSIO, 2009, p. 22).

Partindo desse ponto, pode-se refletir sobre o contexto em que surgiu a

Etnomatemática, e por essa via defini-la como um programa transcultural e

transdisciplinar, tomando por pressupostos as ideias do educador matemático brasileiro

Ubiratan D’Ambrosio. O referido contexto localiza-se temporalmente na segunda metade

do século XX, mas certamente guarda estreitas relações com mudanças de perspectivas do

pensamento ocidental produzidas nas décadas imediatamente anteriores. Data do início do

século a abertura da antropologia para os estudos de campo, a superação do determinismo

biológico e o reconhecimento de que cada cultura possui sua própria história, que só pode

ser compreendida se apreendida em sua totalidade. Nas origens dessa nova antropologia

5 Consideramos aqui que toda tradição é histórica e, portanto, toda tradição é uma invenção, tem uma origem e se caracteriza pela recorrência e pela resistência à mudança.

129

estão os trabalhos de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, surgindo nessa época as bases

teóricas do relativismo cultural e a etnografia.

A ideia de que culturas devem ser entendidas como todos orgânicos, constituídos de

uma pluralidade de processos próprios e independentes, levou o filósofo alemão Oswald

Spengler, ao término da Primeira Guerra Mundial, a propor uma nova filosofia da história

do Ocidente. Da obra de Spengler decorreram novos pontos de vista para a maneira de se

compreender a matemática. Permeando os livros A Decadência do Ocidente: Forma e

Realidade, e A Decadência do Ocidente: Perspectivas da História Universal, publicados

respectivamente em 1918 e 1922, estavam novas possibilidades sugeridas por Spengler

para compreensão do pensamento matemático, entendendo a matemática como

manifestação cultural viva.

Conforme Spengler,

Segue-se disso uma circunstância decisiva, que, até agora, escapou aos próprios matemáticos. Se a Matemática fosse uma mera ciência, como a Astronomia ou a Mineralogia, seria possível definir o seu objeto. Não há, porém, uma só Matemática; há muitas Matemáticas. O que chamamos de história “da” Matemática, suposta aproximação progressiva de um ideal único, imutável, tornar-se-á, na realidade, logo que se afastar a enganadora imagem da superfície histórica, uma pluralidade de processos independentes, completos em si (SPENGLER, apud D’AMBROSIO, 2011, p. 16).

Entre as possíveis matemáticas existentes que constituiriam aquilo que se denomina

equivocadamente como única Matemática, Spengler apontou a Matemática Apolínea,

originada na cultura grega e relacionada à geometria, a Matemática Faustiana, nascida na

cultura euro-americana ocidental e relacionada à análise e à geometria analítica, e a

Matemática Mágica, produzida na cultura árabe e relacionada à álgebra (COSTA, 2009).

As ideias de Spengler figuram entre as primeiras indicações de que poderiam existir

outras formas de pensamento matemático e de racionalidade, tomando-se assim a

matemática como algo intimamente integrado às particularidades das culturas que lhe dão

suporte. Abria-se, então, a possibilidade teórica de se investigar a matemática de diferentes

culturas, com implicações para o próprio estatuto da história da matemática até então

conhecida no Ocidente.

Na continuidade dos acontecimentos que marcaram o surgimento de propostas de

novas racionalidades no pensamento ocidental, o ano de 1929 é um marco para a

130

historiografia por ter sido nele que Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram a revista

Annales d’histoire économique et sociale, propondo por meio dela as bases para uma nova

história (BLOCH, 2002). A partir de então, os limites ideológicos e as metodologias de

análise de fontes históricas ganharam novos nuances, abrindo-se espaços para que grupos

sociais e culturais até então marginalizados ou invisibilizados passassem a figurar nos

anais da história, por meio de narrativas próprias e de leituras multiculturais.

A década de 1940 testemunha o nascimento da Antropologia Estrutural, cujo

principal teórico, Claude Lévi-Strauss, baseando-se nos resultados produzidos por Wilhelm

Wundt na psicologia, e por Ferdinand de Saussure na linguística, propõe, de uma

perspectiva estruturalista, uma definição de cultura como um sistema

de signos estruturados a partir de pares de oposição, estabelecendo com isso uma estreita

relação entre cultura e os princípios de funcionamento do intelecto.

Todas essas aberturas teóricas da primeira metade do século XX, que convergiram

para o reconhecimento da existência de vinculações entre formas de pensamento e cultura

em diferentes contextos, forneceram elementos para se repensar as consequências da

adoção de certas perspectivas epistemológicas, históricas e filosóficas acerca do

conhecimento. Particularmente quanto à Matemática, acentuou-se a partir de então uma

perspectiva cultural de estudos, entre os quais destacam-se como precursores, conforme

Rosa e Orey (2005), os livros Arithmetic in Africa, de Otto Raum, publicado em 1938; On

the Sociology of Mathematics, de Dirk Struik, publicado em 1942; e The Locus of

Mathematical Reality: an Anthropological Footnote, de Leslie White, publicado em 1947.

Em consonância com a perspectiva de relacionar matemática e cultura, o educador

Raymond Louis Wilder proferiu a conferência The Cultural Basis of Mathematics, durante

o Congresso Internacional de Matemáticos de 1950 (ROSA; OREY, 2005), e conforme

aponta D’Ambrosio (2011), talvez um dos primeiros registros que se tenha a respeito das

implicações pedagógicas dessa nova perspectiva deva-se ao algebrista japonês Yasuo

Akizuki, que, em 1960, refletindo sobre os métodos de ensino de matemática na Ásia,

afirmou:

Eu posso, portanto, imaginar que podem também existir outros modos de pensamento, mesmo em matemática. Assim, eu penso que não devemos nos limitar a aplicar diretamente os métodos que são correntemente considerados como os melhores na Europa e na América, mas devemos estudar a instrução matemática apropriada à Ásia (AKIZUKI, apud D’AMBROSIO, 2011, p. 17).

131

Como resultado do surgimento de novas perspectivas epistemológicas, cria-se na

história e na filosofia da ciência, a partir da segunda metade do século XX, uma

polarização de ideias em torno de Karl Popper e Thomas Kuhn. O próprio estatuto da

ciência e do método científico é questionado, destacando-se sobre isso as posições opostas

de Imre Lakatos e Paul Feyerabend. É nesse contexto de mudança de postura ideológica e

filosófica de produção da memória humana que surgem, a partir dos anos 1970, os

primeiros trabalhos com o objetivo de promover o conhecimento das atividades

matematizantes de diferentes povos e grupos socioculturais no mundo.

É nessa época que o educador matemático brasileiro Ubiratan D’Ambrosio inicia o

desenvolvimento de uma teoria a respeito da existência de ideias matemáticas em

diferentes contextos históricos e culturais, inspirado inicialmente em seu trabalho no

Centre Pédagogique Superieur de Bamako, na República do Mali (GERDES, 2010;

KNIJNIK et al., 2012). Contemporaneamente, Claudia Zaslavsky publica, em 1973, o livro

Africa Counts: Number and Patterns in African Culture, no qual explora a história e a

prática de atividades matemáticas entre os povos da África saariana, demonstrando que o

cotidiano africano era permeado de conceitos matemáticos (ROSA; OREY, 2005). Nesse

livro, Zaslavsky utiliza a expressão sociomatemática para designar uma matemática com

raízes socioculturais. Essa mesma expressão foi utilizada por D’Ambrosio três anos depois

em um artigo publicado em 1976 na revista Ciência e Cultura (GERDES, 2010).

Data do ano de 1975 a utilização, pela primeira vez, do termo etnomatemática por

D’Ambrosio, ao discutir a importância da noção de tempo no desenvolvimento das ideias

newtonianas relacionadas ao Cálculo Diferencial, vinculando tal desenvolvimento à

atmosfera intelectual onde tais ideias floresceram (KNIJNIK et al., 2012).

Conforme Rosa e Orey (2005), a partir de 1976, D’Ambrosio intensificou a

divulgação de suas ideias em âmbito internacional a respeito das raízes culturais da

matemática, ao presidir a seção Why Teach Mathematics? com o Topic Group: Objectives

and Goals of Mathematics Education, durante o Third International Congress of

Mathematics Education 3 (ICM-3), em Karlsruhe, na Alemanha, e ao proferir uma palestra

no Annual Meeting of the American Association for the Advancement of Science, em

Denver, nos Estados Unidos, no ano de 1977. Como culminação desse movimento

nascente, D’Ambrosio proferiu, em 1984, a palestra de abertura do ICME 5, na Austrália,

com o título Socio-cultural Bases of Mathematics Education, instituindo definitivamente o

programa Etnomatemática como campo de pesquisa.

132

Após uma década de discussões desde a utilização do termo etnomatemática pela

primeira vez, surgiu em 1985 o The International Study Group on Ethnomathematics,

fundado por Ubiratan em parceria com os educadores matemáticos Gloria Gilmer e Rick

Scott (VIEIRA, 2008). Dois anos mais tarde, precisamente em 1987, D’Ambrosio publicou

o clássico livro Etnomatemática: raízes socioculturais da arte ou da técnica de explicar e

conhecer, no qual apresentou sistematicamente o que viria a se consolidar como uma teoria

da Etnomatemática (GERDES, 2010).

Consta destas primeiras publicações de D’Ambrosio sobre etnomatemática algumas

definições, agora clássicas, sobre o tema. Segundo D’Ambrosio (1990), as sociedades

humanas, ao longo da história, produzem conhecimentos, fazeres e saberes que lhes

permitem sobreviver e transcender através de maneiras, modos, técnicas e artes (techné ou

tica) de explicar, de conhecer, de entender (matema) a realidade natural e sociocultural

(etno) em que vivem. Assim, utilizando as raízes etno, matema e tica, D’Ambrosio deu

origem ao termo etnomatemática. Depreende-se desse conceito a perspectiva de que todo

agrupamento humano, que se caracterizou como comunidade ou povo ao longo da história

da humanidade, desenvolveu saberes e fazeres matemáticos próprios.

Vale destacar que o prefixo etno utilizado no contexto da formulação do termo

etnomatemática busca extrapolar o restrito significado de etnia tal como atribuído

originalmente pela etnologia, abarcando um conjunto mais amplo de significados,

incluindo-se contextos culturais, linguagens específicas, códigos de comportamento,

simbologias e práticas sociais (KNIJNIK et al., 2012; VERGANI, 2007), mas esse não

deixa de ser um ponto polêmico da teoria, que vai encontrar reminiscências pelas décadas

seguintes de produção teórica, inclusive porque a “etnologia” surgiu no contexto do

colonialismo, de modo que o termo “etno” ficou por muito associado a “nativo” ou

“exótico”.

Consoante à nova historiografia surgida no século XX, D’Ambrosio então define

etnomatemática como “a matemática praticada por grupos culturais, tais como

comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças de

uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por

objetivos e tradições comuns” (D’AMBROSIO, 2011, p. 9). Ainda segundo o autor, “o

cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres próprios da cultura. A todo instante, os

indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, medindo, explicando,

generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando, usando os instrumentos materiais e

intelectuais que são próprios à sua cultura” (D’AMBROSIO, 2011, p. 22).

133

Destacam-se dessas definições originais d’ambrosianas duas características

essenciais da Etnomatemática. Uma, que vincula matemática à cultura, gerando por

consequência a relativização de um conhecimento por muito tido como universal, além de

reconhecer marcadamente a natureza antropológica de todo conhecimento matemático. E

outra, que circunscreve determinados saberes e fazeres de todo o mundo em um rol de

conhecimentos humanos intitulado matemática. Com isso, criam-se dois movimentos auto-

implicantes: se por um lado a matemática acadêmica, ocidental, europeia ou escolar torna-

se um tipo de etnomatemática, por outro lado, saberes e fazeres matematizantes até então

marginalizados ou invisibilizados são alçados à categoria de matemáticas, matemáticas

com raízes culturais distintas.

Dadas as implicações ideológicas e políticas e, de certo modo, o desconforto

acadêmico que suscitaram, as ideias d’ambrosianas não deixaram de sofrer críticas desde

sua origem, com reminiscência no tempo presente. Quanto a isso, D’Ambrosio registra:

Por subordinar as disciplinas e o próprio conhecimento científico ao objetivo maior de priorizar o ser humano e a sua dignidade como entidade cultural, a etnomatemática, as etnociências em geral, e a educação multicultural, vêm sendo objeto de críticas: por alguns, como resultado de incompreensão; por outros, como um protecionismo perverso. Para esses, a grande meta é a manutenção do status quo, maquiado com o discurso enganador da mesmice com qualidade (D’AMBROSIO, 2011, p. 10).

Tais críticas vão desde a utilização do radical etno, como um termo restrito a etnia

nos moldes como era concebida na etnologia, com todas as limitações que tal interpretação

ocasiona, até a consequência do uso do termo matemática para se referir a saberes e fazeres

específicos de pessoas, grupos de pessoas, povos ou culturas distintas, fora dos estritos

espaços escolares. Para alguns, ao utilizar o termo matemática para classificar tais saberes

e fazeres, a Etnomatemática estaria traindo seu próprio princípio de superação do

paradigma da modernidade, em um inapropriado exercício de utilizar-se de uma categoria

externa, própria do pesquisador, para classificar o que é do outro, do que é diferente.

Há ainda quem reivindique a Etnomatemática como metodologia, colocando como

interesse último das pesquisas, mesmo aquelas que extrapolam os limites da instituição

escolar, a promoção de uma Educação Matemática na escola. É representativa dessas

múltiplas perspectivas apontadas para a Etnomatemática a discussão produzida por

Monteiro, Orey e Domite (2006), ao tentarem responder à pergunta “O que é

134

etnomatemática para você hoje?”. As diferentes e até mesmo divergentes respostas obtidas

representam a confusão multidimensional (BARTON, 2006) que o tema alcançou nos dias

atuais.

Essa multiplicidade de perspectivas parece, no entanto, ser algo intrínseco de fato à

natureza fundante da etnomatemática, no sentido de que a multiplicidade de perspectivas

diferentes a seu respeito que coexistem na literatura proporciona seu não enquadramento

epistemológico ou mesmo sua não disciplinarização, fenômeno às vezes representado pela

oposição a uma “gaiola epistemológica”. Em todo caso, parece que Etnomatemática

poderia ser melhor compreendida se sua tematização partisse sempre do movimento

histórico pelo qual passou o desenvolvimento desse programa de pesquisa.

Assim fazendo, as dificuldades filosóficas relacionadas à distinção entre

etnomatemática e Etnomatemática poderiam ser superadas, e as opiniões divergentes

poderiam passar a ser vistas a partir das relações que existem entre si. Ao final desse

exercício, ver-se-ia que, mesmo em alguns casos sendo antagônicas, tais opiniões são

complementares, pois integram o movimento histórico pelo qual passa a própria área de

conhecimento mais geral, intitulada Educação Matemática.

É na perspectiva de tentar compreender as divergências conceituais, que continuo

esta seção, buscando percorrer a trajetória histórica do desenvolvimento da

Etnomatemática. O objetivo então é mostrar que cada uma das perspectivas teóricas

originadas sobre o assunto enfatizou uma dimensão ou aspecto das relações entre

matemática, cultura e educação, de modo que, atualmente, é improdutivo negar os

pressupostos que ocasionaram cada uma das perspectivas que constituíram a

Etnomatemática, sob pena de se estar negando a própria Etnomatemática. Os pressupostos

originais continuam válidos, se assumidos com finalidades específicas, que vão desde a

interpretação antropológica de saberes e fazeres em distintos espaços ou culturas, até as

consequências educacionais e culturais em contextos escolares específicos, destacando-se

em particular na presente pesquisa uma vinculação ao caráter político de afirmação

identitária.

5.3 Perspectivas da Etnomatemática

Baseando-se na metáfora das fases da Lua sugerida por Tereza Vergani para

descrever o desenvolvimento da Etnomatemática, pode-se dizer que sua origem, isto é, sua

primeira perspectiva, a da Lua Nova (VERGANI, 2007), está vinculada ao reconhecimento

135

de que os diferentes povos do mundo sempre praticaram atividades matemáticas, de formas

próprias e independentes, de acordo com padrões de cada cultura. Portanto, um interesse

inicial foi conhecer estas matemáticas de raízes culturais diversas, isto é, estas diversas

etnomatemáticas, reconhecê-las e traduzi-las para a linguagem matemática universalizante.

Em sintonia com a definição original veiculada por D’Ambrosio, subjaz nesta

primeira perspectiva a concepção de etnomatemática como conjunto de saberes e fazeres

contextualizados em diferentes culturas. Uma consequência disso é que as primeiras

pesquisas buscaram promover o conhecimento mútuo entre diferentes grupos

socioculturais, através do estudo de seus saberes e fazeres locais, como “uma forma de

preservar a riqueza coletiva da memória humana, sobretudo aquela que diz respeito a

povos ou sociedades sem sistema de ‘escrita’” (VERGANI, 2007, p. 9).

Definida a etnomatemática como conjunto de saberes matemáticos em si, que

necessitavam ser conhecidos e compreendidos localmente, com suporte na Antropologia,

na Linguística e na recém criada nova historiografia, os primeiros pesquisadores em

Etnomatemática foram a campo desenvolver pesquisas empíricas nos mais diversos

espaços e culturas. Conforme Knijnik et al. (2012), destacam-se entre as primeiras

pesquisas em Etnomatemática no Brasil os trabalhos de Borba (1987), um estudo com

crianças da periferia de Campinas, São Paulo; Ferreira (1991, 1993, 1994), que realizou

investigações em espaços periféricos de Campinas, São Paulo, e em comunidades

indígenas do Alto Xingu e do Amazonas; Carvalho (1991), que desenvolveu pesquisas

com índios Rikbaktsas; e Knijnik (1988), que desenvolveu pesquisas empíricas em regiões

da periferia urbana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

No plano internacional, filiado a essa primeira perspectiva do desenvolvimento da

etnomatemática, entendida como saberes matemáticos culturalmente contextualizados,

destacam-se as pesquisas de Paulus Gerdes que, em 1978, já propunha o projeto de

pesquisa Conhecimentos matemáticos-empíricos das populações bantu de Moçambique,

que posteriormente se transformaria no projeto Etnomatemática em Moçambique

(GERDES, 2010). Gerdes integrou a equipe internacional de docentes do primeiro curso de

formação de professores de matemática de Moçambique, iniciado em 1977, logo após o

processo de independência daquele país em relação a Portugal. O autor relata que lhe

coube lecionar a disciplina intitulada Aplicações da Matemática na vida corrente das

populações, sendo que o grande desafio era motivar os estudantes moçambicanos para os

quais a matemática era disciplina pouco interessante e pouco útil ao desenvolvimento do

136

país (GERDES, 2010). Desde então, um tema de interesse nas pesquisas de Gerdes tem

sido os motivos geométricos africanos.

Em sua origem, ao propor visibilizar outras formas de matematizar o mundo, para

além da forma hegemônica da matemática já institucionalizada, a Etnomatemática se opôs

teoricamente ao modelo da racionalidade moderna, particularmente quanto ao imperativo

de sua hegemonia. Nesse sentido, quando D’Ambrosio (1990, p. 7) define o objeto de

estudo da Etnomatemática como sendo “os processos de geração, organização e

transmissão de conhecimento em diversos sistemas culturais”, tem-se por consequência

que a própria matemática institucionalizada, ou matemática acadêmica ou escolar,

sustentáculo da racionalidade moderna, passa a ser um tipo de etnomatemática. Portanto,

antes de ser uma negação da matemática praticada hegemonicamente no mundo, a proposta

original da Etnomatemática é a de que se amplie o universo dos conhecimentos

matemáticos, aí se inserindo saberes e fazeres com raízes nas mais diversas culturas, até

então invisibilizadas pelo projeto da modernidade.

Não obstante essa proposta de superação dos pressupostos do pensamento moderno

fazer parte do projeto original da Etnomatemática, particularmente quanto à superação da

homogeneização do conhecimento através da ciência e à relativização do caráter universal

reivindicado pela matemática institucionalizada, críticas surgiram no início dos anos 1990,

tanto no que diz respeito à perspectiva ideológica, quanto ao aspecto operacional do

projeto. Conforme Knijnik et al. (2012), destacam-se nesse sentido os argumentos de

Millroy (1992) e Dowling (1993).

Segundo a crítica de Millroy, haveria no projeto da Etnomatemática um paradoxo

relacionado ao fato de que, embora a proposta fosse identificar e descrever diferentes tipos

de matemáticas em diferentes culturas, nesse processo o pesquisador não conseguiria se

desvencilhar do que ele mesmo entende por matemática. A consequência disso seria que as

pesquisas dessa área de conhecimento se reduziriam a descrever apenas o que se assemelha

à matemática institucionalizada, a partir dos referenciais e categorias do próprio

pesquisador. Nesse sentido a autora questiona: “como pode alguém, que foi escolarizado

dentro da Matemática ocidental convencional, ‘ver’ qualquer outra forma de Matemática

que não se pareça à Matemática convencional, que lhe é familiar?” (MILLROY, 1992, p.

11, apud KNIJNIK et al., 2012, p. 23).

Por sua vez, Dowling teceu uma crítica ao que seria uma ideologia do

monoglossismo existente na proposta da Etnomatemática. Essa ideologia se resumiria ao

fato de que, embora se proponha reconhecer os diferentes saberes matemáticos existentes

137

em diferentes culturas, com a mudança de ênfase de sujeitos individuais para sujeitos

culturais, e a consequente unificação de uma sociedade múltipla, essa unificação seria

artificial, visto que, em cada cultura os sujeitos seriam vistos como falantes de uma voz

única, singular, monoglóssica, e a superação dos conflitos dar-se-ia por meio da busca de

uma unidade racional. Nessa perspectiva, embora a Etnomatemática valorizasse as

diferenças culturais e os saberes matemáticos específicos, conceberia a sociedade “como

uma unidade artificial e o sujeito humano como seu agente unitário” (DOWLING, 1993, p.

37, apud KNIJNIK et al., 2012, p. 22).

Em certo sentido, tais críticas possuem coerência, desde que tomadas sobre

aspectos isolados da proposta original da Etnomatemática, e vinculadas a um recorte

temporal ao qual mencionamos acima como a primeira perspectiva, que teve como ênfase

trabalhos de campo com o objetivo de reconhecimento e tradução de saberes e fazeres

matemáticos em diferentes contextos culturais. Vale ressaltar que, não obstante a

Etnomatemática ter conquistado seu espaço no âmbito das pesquisas em Educação

Matemática, seus fundamentos ainda são pouco debatidos e por vezes, sobre determinados

aspectos, mal interpretados, conforme aponta Conrado (2006).

Um fato que deve ser destacado é que, desde sua origem, a Etnomatemática teve

também por preocupação a difusão de conhecimentos matemáticos por meio da educação,

bem como o questionamento e a revisão dos pressupostos que sustentam práticas escolares

cristalizadas, descontextualizadas, desvinculadas de transformações sociais e esvaziadas de

todo conteúdo crítico. Nesse sentido, a Etnomatemática também se filia a um movimento

maior que se denomina Educação Matemática, cuja origem se deu justamente pela

insatisfação com os resultados de reformas promovidas no ensino por movimentos

anteriores, tais como o Movimento da Matemática Moderna. Não por acaso, a quase

totalidade dos pesquisadores que desenvolveram e desenvolvem trabalhos sobre

Etnomatemática estão ligados à área da educação, muitos deles professores ou estudantes

de programas de pós-graduação. Daí que, nesse universo, por mais que as pesquisas

iniciais tenham realizado uma descrição, ou mesmo tradução de saberes e fazeres

matemáticos contextualizados em diferentes culturas e espaços, convertendo-os em alguns

casos para a linguagem universalizante da matemática acadêmica, elas tiveram a

importância de confirmar o que Spengler, Akizuki e o próprio D’Ambrosio já haviam

apontado teoricamente, isto é, a matemática até então institucionalizada e reproduzida na

escola não é universal, porque existem diferentes saberes e fazeres matemáticos com raízes

em diferentes culturas, inclusive nas culturas de grupos e povos considerados marginais.

138

Sendo assim, as pesquisas em Etnomatemática devem por definição extrapolar a

mera descrição de diferentes saberes e práticas matemáticas existentes no mundo, tendo

por objetivo “dar sentido a modos de saber e de fazer das várias culturas e reconhecer

como e por que grupos de indivíduos, organizados como famílias, comunidades,

profissões, tribos, nações e povos, executam suas práticas de natureza matemática, tais

como contar, medir, comparar, classificar” (D’AMBROSIO, 2009, p. 19).

Essa é justamente a segunda perspectiva da Etnomatemática, equivalente à fase da

Lua Crescente na metáfora de Tereza Vergani. Trata-se do momento em que se enfatiza

que as diferentes práticas matemáticas não devem ser reduzidas em sua descrição a simples

práticas numéricas, geométricas, operativas ou formais. Isso porque “olhá-las como

simples atividades de cálculo ou de exploração espacial é esvaziá-las dos conteúdos

intencionais que se tornam veículos de um saber profundamente significativo”

(VERGANI, 2007, p. 9).

Essa perspectiva da Etnomatemática tem uma profunda consequência

metodológica, que é a de que o pesquisador não deve descontextualizar os diferentes

saberes e fazeres matemáticos no ato de sua descrição. Trata-se de compreender, isto sim,

como essas diferentes práticas numéricas, geométricas e operacionais culturalmente

enraizadas vinculam-se às demais representações existentes na cultura que lhe dá suporte.

Daí que não basta uma descrição ou tradução “matemática” de tais representações. Essa

primeira descrição deve ser complementada com uma tradução “antropológica”, nutrida na

pesquisa etnográfica, que vincule as práticas e saberes matemáticos ao universo

sociocultural maior a que pertencem. Nesse sentido, mais que um exercício de descrição,

trata-se de uma prática de teorização, que busca pelos sentidos da existência de tais

práticas e saberes tradicionais. Subjaz como pressuposto dessa perspectiva a ideia de que a

completa compreensão das práticas e saberes das diferentes culturas contribuirão para uma

melhor compreensão do mundo e para a elevação da criatividade humana.

A esse respeito, afirma D’Ambrosio:

O grande desafio é ampliar as possibilidades de voar/criar para entender e explicar o mundo que nos cerca, com toda a sua complexidade. A criatividade resulta da fusão e incorporação de recursos materiais e intelectuais disponíveis, sejam aqueles próprios do universo acadêmico, obedecendo a padrões epistemológicos conhecidos, sejam aqueles proporcionados pelas tradições, que não obedecem a epistemologias reconhecidas. Isto é, não se reconhece uma teoria dos conhecimentos tradicionais. Procurar uma teorização

139

desse conhecimento é um grande desafio metodológico (D’AMBROSIO, 2009, p. 18).

A partir dessa preocupação de que a Etnomatemática deve ir além do

interconhecimento das diferentes formas de produção, organização e difusão do

conhecimento, nos mais diversos contextos socioculturais, toma corpo sua terceira

perspectiva, equivalente à fase da Lua Cheia na metáfora de Tereza Vergani. Nesta

perspectiva, atribui-se à Etnomatemática uma missão no mundo que extrapola os domínios

restritos da cultura, da ciência, da educação e da matemática, cabendo-lhe “apontar um

caminho de transformação crítica das nossas próprias comunidades ocidentais,

solidariamente abertas a outras formas de refletir, de saber, de sentir e de agir”

(VERGANI, 2007, p. 9).

A partir desta pespectiva, explicita-se a dimensão política da Etnomatemática, que

se firma definitivamente como “um programa de pesquisa em história e filosofia da

matemática, com óbvias implicações pedagógicas” (D’AMBROSIO, 2011, p. 27), de modo

que as pesquisas nessa área passam a ser entendidas como uma “investigação holística da

geração (cognição), organização intelectual (epistemologia) e social (histórica) e difusão

(educação) do conhecimento matemático, particularmente em culturas consideradas

marginais” (idem, p. 23).

É considerando essa dimensão política que se considera que a Etnomatemática pode

ajudar na luta contra o racismo, o colonialismo, o imperialismo e a marginalização de

povos, sociedades e culturas. Considera-se assim que a Etnomatemática pode mostrar, com

igual valor, os conhecimentos de diferentes povos, assim como instituir o respeito mútuo e

reduzir a tendência à exploração e à discriminação entre culturas distintas.

Nesta, que é uma das perspectivas atuais da Etnomatemática, busca-se, conforme

Vergani (2007), enfatizar saberes e comportamentos que questionam o nosso modo de

produzir conhecimentos, induzindo atitudes educacionais mais globalizantes e justas, mais

comprometidas com valores sociais e humanos.

Considerando o percurso que caracterizou o desenvolvimento da Etnomatemática,

desde a busca da descrição de diferentes saberes e fazeres culturalmente contextualizados,

até sua afirmação como programa de pesquisa, percebe-se que as diferentes perspectivas

originadas apresentam, de certa forma, uma interdependência, possibilitando postular

140

inclusive a necessidade de coexistência de todas elas simultaneamente, para que se garanta

uma coerência ideológica e epistemológica.

É diante desse quadro teórico multifacetado da Etnomatemática que se

desenvolvem experiências empíricas atualmente em movimento no sentido de se buscar

introduzir em currículos escolares saberes e fazeres matemáticos próprios de povos e

comunidades tradicionais, porém culturalmente marginalizadas. Nesse caso, a transposição

de saberes da tradição para o interior da sala de aula gera a possibilidade de se estar

praticando genuinamente os princípios da Etnomatemática como proposta de

fortalecimento de culturas até então marginalizadas, rompendo com o etnocentrismo que

permeia a matemática presente no currículo da escola.

Compete aos pesquisadores em Educação Matemática, observar, conhecer e

compreender os saberes que fundamentam estas práticas inovadoras, para com eles

expandirmos nossos próprios horizontes. Em suma, não se trata de propor uma mudança no

espaço do outro, mas antes, ao conhecer e conviver com as práticas do outro, mantermo-

nos abertos à possibilidade de mudanças em nosso próprio etno, porque, afinal, todos

pertencemos a algum grupo étnico, tal qual apontam perspectivas teóricas contemporâneas

a respeito do conceito de etnicidade, conforme abordado na seção anterior desta tese.

É com base nas reflexões teóricas realizadas na construção desta seção sobre

etnomatemática e das demais seções anteriores, sobre cultura e identidade cultural e sobre

educação escolar indígena, que buscarei me dirigir, nas seções seguintes, para a elaboração

de um fazer interpretativo sobre os dados produzidos a partir de uma vivência-campo com

professores paiter. Antes, porém, apresentarei, na próxima seção, os aspectos

metodológicos adotados para a produção e análise de dados.

141

6 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Nesta seção, busco descrever os aspectos metodológicos inerentes à produção e à

análise de dados da pesquisa, refletindo inicialmente sobre alguns fatores que contribuíram

para as escolhas metodológicas adotadas. Nesse sentido, com a proximidade do início da

necessária produção de dados a partir de uma vivência-campo que me permitisse imergir

criticamente no universo cultural e discursivo dos professores paiter com os quais já estava

convivendo na universidade e nas aldeias, na busca de compreender as ideias e

pressupostos por eles assumidos ao discorrerem sobre temas de interesse para a pesquisa,

não deixei de realizar uma busca prévia por referências ou exemplos de pesquisas

semelhantes já realizadas que pudessem servir de parâmetros metodológicos para a

investigação. Embora não tenha encontrado uma pesquisa já realizada sobre o mesmo

objeto em um contexto semelhante, como resultados dessa busca, pude constatar que,

assim como apontado e discutido em diversos momentos da formação doutoral, as

pesquisas em educação no Brasil têm se desenvolvido geralmente a partir de uma crítica às

abordagens positivistas e cartesianas que ainda predominam em outras áreas de

conhecimento.

Nesse sentido, corroborando com tal perspectiva crítica, assumo, como

pressupostos inerentes ao percurso metodológico de produção e de análise dos dados desta

tese, que o fazer científico em educação, e particularmente em educação matemática,

também é possível a partir do reconhecimento da subjetividade e da não neutralidade do

pesquisador, do relativismo e da incomensurabilidade de conceitos e ideias originários de

contextos culturais distintos, da aproximação entre percepção e verdade, assumindo-se esta

última não mais como noção absolutamente objetiva de uma realidade interpretada.

Entendo que, assim fazendo, reduzimos o distanciamento que um certo

artificialismo do fazer científico de certas tradições produziu entre a ciência e a vida, entre

um discurso técnico-erudito e a linguagem-comum utilizada pelas pessoas no cotidiano, e

caminhamos rumo à aproximação entre ciência e senso-comum, conforme apontado por

Santos (2003), na pós-modernidade. Quanto a esse aspecto, ao buscar utilizar uma

linguagem-comum, o mais próxima possível daquela que utilizamos em nossas vidas

142

cotidianas, corroboro também com a perspectiva crítica de Paul Feyerabend, segundo o

qual:

Os intelectuais estão acostumados a lidar com colisões culturais em termos de debates e tendem a aprimorar esses debates imaginários até eles se tornarem tão abstratos e inacessíveis quanto seu próprio discurso. Procedendo dessa maneira, muitos deles afastaram-se da vida e se instalaram em uma área de conhecimento técnico. Já não estão mais interessados nessa ou naquela cultura ou nessa ou naquela pessoa; estão interessados em ideias, tais como a ideia da realidade, ou a ideia da verdade, ou a ideia da objetividade. E não se perguntam como as ideias estão relacionadas com a existência humana, e sim como elas se relacionam entre si. Perguntam, por exemplo, se a verdade é uma noção objetiva, se a prática científica é racional, ou como a realidade depende da percepção – em que “verdade”, “prática científica” e “percepção” são definidas de tal forma que essa definição impede sua pronta identificação com aquilo que ocorre na vida dos cientistas e de outros seres humanos comuns (FEYERABEND, 2010, p. 103).

Vale ressaltar que, na vivência-campo para produção de dados e no momento

seguinte de análise dos dados produzidos, não deixou de me preocupar o fato de que, como

membro externo à cultura do povo Paiter, meu fazer interpretativo sobre a prática

discursiva dos professores participantes da pesquisa não deveria ser assumido como o

único resultado possível da interpretação dos fenômenos observados, visto que os

pressupostos teóricos inerentes à minha formação acadêmica constrangem-me a não

assumir a existência de um ponto de observação supra-histórico sobre determinado

fenômeno a partir do qual uma verdade objetiva e universal possa ser avistada e

comunicada em uma tese de doutorado.

Considerando também que, nos espaços de produção de dados na pesquisa, os

encontros estabelecidos entre mim e os professores paiter estariam permeados por limites e

fronteiras identitárias em função das referências múltiplas que carregamos, provenientes de

diferentes realidades sócio-culturais, uma abordagem metodológica mais coerente seria

aquela concebida como um diálogo, e assim procurei fazer. Desse modo, ao longo do

desenvolvimento da pesquisa, nas convivências proporcionadas pela vivência-campo e na

realização das entrevistas semiestruturadas, a busca pelo diálogo foi sendo aprimorada, de

modo que se percebe nitidamente uma evolução ao longo das transcrições das entrevistas

entre uma postura inicialmente distanciada e presa a um roteiro de questões previamente

143

estabelecido, e uma postura mais livre e aberta, no sentido de um maior envolvimento com

as falas dos sujeitos, nas entrevistas finais.

Inicialmente, a condição de ser um pesquisador externo à cultura dos demais

participantes da pesquisa, mesmo que em um espaço de hibridação cultural como é o entre-

lugar em que se encontram os sujeitos, impôs-me a preocupação quanto ao risco de, em

meu fazer interpretativo, distorcer o sentido que os discursos presentes nas práticas

discursivas dos professores paiter assumiriam para eles mesmos, a partir de um ponto de

vista interno ao universo cultural dos Paiter. Percebi então, mais uma vez, a inevitável

condição de subjetividade que meu fazer interpretativo assumiria na interpretação dos

dados produzidos, visto que minha condição de “membro externo” à cultura paiter limitaria

uma completa compreensão das ideias e pressupostos presentes nas práticas discursivas

dos professores paiter enquanto “membros internos” ao universo cultural de seu povo.

Como medida de compensação a tal preocupação, e ciente de minhas limitações,

assumi como propósito em meu fazer interpretativo aproximar-me o máximo possível dos

sentidos que os dados produzidos assumiriam desde uma perspectiva interna ao universo

cultural dos professores paiter, sem contudo perder de vista minhas próprias referências

construídas ao longo da vida e nos estudos teóricos que resultaram nas seções iniciais dessa

tese. De certo modo, tal preocupação também se amenizou ao perceber que, mesmo para os

antropólogos, cuja formação lhes oferece condições mais plenas de compreensão de

fenômenos imersos em universos culturais distintos dos seus, não se é possível

desvencilhar completamente das amarras estabelecidas por seus próprios universos

culturais de origem, sob pena de, se assim o fizerem, verem inviabilizada a possibilidade

de comunicação de sua compreensão do outro, em contextos de fronteiras e limites

culturais e identitários.

São ilustrativas, nesse sentido, duas citações de Bauman (2012), relativamente

extensas, mas que passo a reproduzir a seguir porque me foram úteis na tentativa de

amenizar a preocupação acima exposta que me afligia no início do desenvolvimento da

pesquisa:

Aspirantes a antropólogo costumavam ser advertidos com a triste história de Frank Cushing, considerado o maior expert em cultura zuni. Quanto mais ele entendia os zunis, mais sentia que seus relatos, recebidos e louvados com gratidão pelos colegas antropólogos, distorciam a realidade zuni, em vez de transmiti-la. Ele começou a suspeitar de que toda tradução fosse uma deformação. Não se satisfazia com sua própria compreensão, não importa em que nível ela estava; a cada base que

144

alcançava, descobria outra por baixo. Em busca da tradução perfeita, Cushing decidiu vivenciar o universo zuni a partir “de dentro”. Conseguiu: os zuni o aceitaram como um deles e lhe concederam a maior honraria que um zuni pode obter, o cargo de arquissacerdote do Arco-Íris. Desde então, porém, Cushing não escreveu uma única frase de antropologia” (BAUMAN, 2012, p. 71).

O historiador ou o etnólogo são obrigados a tentar compreender ou o universo dos babilônios ou dos bororos ... como se o vivenciassem, e ... a evitar introduzir nele determinações que não existiam para essa cultura ... Mas não se pode parar por aí. O etnólogo que tenha assimilado tão profundamente a visão de mundo dos bororos a ponto de não poder continuar vendo o mundo de outra maneira não é mais um etnólogo, mas um bororo, e os bororos não são etnólogos. A raison d’être do etnólogo não é ser assimilado pelos bororos, mas explicar aos parisienses, aos londrinos e aos nova-iorquinos, em 1965, a outra humanidade representada pelos bororos. Portanto, ele só pode fazê-lo pela linguagem (CASTORIADIS, apud BAUMAN, 2012, p. 70).

É pois pela linguagem, em um movimento em direção à alteridade, que busquei me

aproximar ao máximo possível dos universos cultural e discursivo dos professores paiter,

sem contudo perder de vista as referências e, inclusive, os pré-conceitos que estão

impregnados em minha consciência e na constituição de meu ser enquanto estudante,

pesquisador e trabalhador em educação matemática na Amazônia. Certamente que, ao final

de toda a experiência de vida proporcionada pela pesquisa, muitos de meus pré-conceitos e

referências anteriores se viram alterados, revisitados, ressignificados, com reflexos diretos

na continuidade do meu fazer pedagógico no curso de formação de professores indígenas

na universidade.

Assim, partindo destes pressupostos, buscando responder as questões da

problemática inicial da pesquisa e tomando como objeto de estudo práticas discursivas de

professores com suas respectivas ideias e fundamentos subjacentes, contextualizados em

comunidades indígenas, bem como as relações que estas ideias estabelecem com a visão de

mundo, os interesses e as possíveis tensões culturais em que se encontram inseridos os

sujeitos, optei por desenvolver uma pesquisa qualitativa, de abordagem interpretativa.

Conforme Bogdan e Biklen (1994), a abordagem interpretativa baseia-se no

princípio de que a experiência humana é mediada pela interpretação, sendo que existem

múltiplas formas de interpretar as experiências, em função das interações entre os sujeitos,

de modo que a realidade é socialmente construída. Por sua vez, Erickson (1986) destaca

145

que as unidades próprias de estudo da abordagem interpretativa são grupos naturais ou

microculturas, cuja característica é a interação recorrente de seus membros para a

consecução de uma ação comum. No caso da presente pesquisa, trata-se de um grupo de

professores indígenas projetando a introdução do ensino de saberes e fazeres matemáticos

tradicionais em escolas de suas aldeias.

Dada a grande diversidade de povos indígenas no Brasil, o que proporciona a

existência de uma multiplicidade de saberes e fazeres matemáticos, é de se esperar que

cada experiência de introdução ao ensino de tais saberes e fazeres em escolas indígenas do

país configure-se em um caso inédito e particular. Assim, tomando por hipótese que os

princípios orientadores destas experiências sejam fundamentados e permeados pela visão

de mundo, o modo de produção material e de organização social de cada povo, adotou-se

para produção de dados nesta pesquisa o estudo de caso, considerando-o como um estudo

em profundidade de um fenômeno singular.

Embora se trate de uma pesquisa junto a um povo indígena, não se realizou uma

descrição densa da cultura geral do povo Paiter, tal como uma pesquisa etnográfica faria

em Antropologia. Estudos etnográficos nesse sentido já foram realizados junto aos Paiter

por Betty Mindlin (MINDLIN, 1985; 2006; 2007) e foram utilizados como referências para

o presente estudo no sentido de melhor compreendermos as formas de pensamento e de

ação dos professores paiter. Assim, o percurso metodológico empregado nessa pesquisa

direcionou-se particularmente à compreensão dos fenômenos práticos e teóricos

relacionados à introdução do ensino de saberes e fazeres matemáticos por professores

paiter, assumindo-se como lócus primário de investigação as práticas discursivas dos

professores paiter relativas ao tema e contextualizadas nas salas de aula das escolas nas

aldeias e na universidade.

Certamente que a percepção das atividades realizadas ou projetadas para o interior

das escolas, que por sua vez estão inseridas no cotidiano das aldeias, e a análise das

práticas discursivas dos professores perpassam pela compreensão de elementos simbólicos

externos à instituição escolar, não perceptíveis de imediato, carecendo portanto, conforme

discorre Geertz (2008), de uma descrição densa, por mais que tal ação exija de nós

pesquisadores com formação externa à Antropologia um exercício e um sobre-esforço na

tentativa de superar limitações que a falta de domínio de conceitos e teorias dessa área

ocasiona.

No intuito de superar a invisibilidade das atividades cotidianas, para se chegar a

uma compreensão de detalhes das ideias adotadas pelos professores paiter, proporcionando

146

assim um conhecimento dos significados locais que os acontecimentos possuem para as

pessoas envolvidas, busquei, na produção de dados, orientar-me por questionamentos tais

como: O que está acontecendo, especificamente, no contexto da educação escolar paiter

quanto às ações projetadas para a introdução do ensino de saberes e fazeres matemáticos

paiter? Que significados essas ações têm para os professores? Como essas ações vinculam-

se aos padrões de organização social do povo paiter e quais são os princípios culturais e

políticos que conduzem as ações dos professores?

Para a produção de dados, duas técnicas pertinentes ao estudo de caso foram

utilizadas, sendo observação participante, com registro de observações da vivência-campo,

e entrevista semiestruturada. Conforme André (2011), a observação participante exige a

interação constante entre o pesquisador, a situação e os sujeitos da pesquisa, e as

entrevistas têm a finalidade de esclarecer ou aprofundar aspectos da situação observada.

Desse modo, essas técnicas permitem “documentar o não documentado, isto é, desvelar os

encontros e desencontros que permeiam o dia-a-dia da prática (...), descrever as ações e

representações dos seus atores sociais, reconstruir sua linguagem, suas formas de

comunicação e os significados que são criados e recriados no cotidiano do seu fazer”

(ANDRÉ, 2011, p. 41).

Vale ressaltar que, em relação aos aspectos metodológicos envolvidos na produção

de dados da pesquisa e na organização dos dados produzidos para se proceder à análise,

buscamos nos inspirar em teses desenvolvidas em educação matemática no Brasil, com o

uso da técnica de entrevista, servindo-nos de inspiração quanto a esses aspectos

especialmente Wielewski (2005) e Miarka (2011).

6.1 Ações preliminares ao início da produção de dados

Embora já mantivesse com os professores participantes da pesquisa, desde o ano de

2011, uma relação advinda das atividades do curso de licenciatura na universidade, o que

implicava convivências no Campus da UNIR em Ji-Paraná durante as etapas presenciais do

curso, em atividades acadêmicas, como orientação de estudantes em projetos de iniciação

científica, trabalhos de conclusão de curso e projetos de extensão, procuramos apresentar

previamente o projeto de pesquisa de doutorado em cada uma das comunidades em que

residem e trabalham os professores, no início do ano de 2012, no intuito de obter o

consentimento coletivo e, em especial, das lideranças, para o desenvolvimento do trabalho

de campo. Assim, foram realizadas reuniões com lideranças e professores de cada

147

comunidade, nas quais foram apresentados os objetivos, a metodologia e um cronograma

prévio da pesquisa, obtendo-se assim o consentimento para o desenvolvimento das

atividades junto aos professores de cada aldeia.

O convite individual para participação na pesquisa foi feito a cada um dos dezessete

professores paiter matriculados no Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural

da UNIR, por meio da entrega de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(Apêndice A) e de um questionário de caracterização (Apêndice B). Dentre os convidados,

obtive o retorno de dez professores paiter que manifestaram disponibilidade e interesse em

participar da pesquisa.

O Quadro 4 abaixo apresenta informações referentes à caracterização dos sujeitos

participantes6 da pesquisa, quanto a idade, aldeia onde mora, clã, se cursou ou não o

projeto Açaí, tempo de docência em sala de aula e ano de ingresso na universidade.

Quadro 4 – Caracterização dos participantes da pesquisa

Sujeito Idade Aldeia Clã Cursou Projeto

Açaí

Tempo de docência

Ano de Ingresso na

Universidade PP1 28 Gapgir Gapgir Não 3 anos 2011

PP2 30 Lobó Kaban Não 12 anos 2009

PP3 29 Amaral Kaban Não 12 anos 2010

PP4 26 Joaquim Kaban Não 5 anos 2010

PP5 34 Gapgir Gapgir Sim 12 anos 2009

PP6 28 Paiter Gamep Não 3 anos 2010

PP7 34 Paiter Kaban Sim 11 anos 2009

PP8 41 Paiter Gamep Sim 22 anos 2010

PP9 34 Lapetanha Kaban Sim 14 anos 2010

PP10 37 Gapgir Kaban Sim 16 anos 2010

Conforme se observa no quadro acima, a idade média dos professores paiter

participantes da pesquisa é de 32 anos, o que significa que todos pertencem a uma geração

que nasceu após o contato com a sociedade envolvente. Esse dado tornou-se relevante para

6 Com vistas a preservar a identidade dos participantes, adotamos um código para substituir o nome de cada um deles no texto da tese. Assim, para cada um dos sujeitos, utilizamos o código PPi, onde as letras maiúsculas são as iniciais de Professor Paiter e o índice i indica a ordem de realização das entrevistas.

148

a pesquisa ao ajudar a compreender a importância atribuída pelos sujeitos aos mais velhos

das aldeias, ao refletirem sobre o ensino de saberes da tradição. Os professores paiter

julgam serem jovens inexperientes em relação à tradição de seu povo, por não terem vivido

no período anterior ao contato com a sociedade colonizadora.

Verifica-se que o tempo médio de atuação dos professores participantes em sala de

aula é de 11 anos. Destacam-se também os diferentes percursos de formação escolar

percorridos pelos sujeitos, sendo que metade deles teve uma formação docente inicial já no

Ensino Médio, no âmbito do Projeto Açaí, um projeto do governo estadual para formação

de professores indígenas em Rondônia, e os demais iniciaram sua formação docente na

Universidade, no âmbito da Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR.

6.2 Os espaços da produção de dados

Os espaços de produção de dados da pesquisa constituíram-se de seis aldeias do

povo Paiter (Gapgir, Lobó, Lapetanha, Joaquim, Amaral e Paiter) localizadas no interior da

Terra Indígena Sete de Setembro, onde moram e trabalham os professores participantes da

pesquisa; e o Campus de Ji-Paraná, da Universidade Federal de Rondônia, onde os

professores paiter são estudantes do Curso de Licenciatura em Educação Básica

Intercultural.

O acesso à Terra Indígena Sete de Setembro se dá a partir da cidade de Cacoal/RO,

através da Rodovia Estadual RO-486. Perpendicularmente a esta rodovia, partem várias

estradas vicinais, chamadas linhas, feitas de terra batida, que passam pelas sedes das

fazendas, sítios e chácaras dos colonos do entorno, e terminam dentro do território paiter.

Ao longo dessas linhas, encontram-se dispostas as atuais aldeias, assim distribuídas: duas

na Linha 7, duas na Linha 8, duas na Linha 9, duas na Linha 10, cinco na Linha 11, duas na

Linha 12, uma na Linha 13, duas na Linha 14, uma na Linha 15 e uma na estrada de

Pacarana. Percorremos três destas linhas para acessar as comunidades onde moram e

trabalham os professores sujeitos da pesquisa.

Para se chegar à Aldeia Gapgir a partir de Cacoal, percorrem-se 35 quilômetros de

asfalto, e então entra-se na Linha 14. São mais 15 quilômetros de estrada de chão, até a

divisa da última fazenda com a terra indígena. Surge então a primeira aldeia, a Aldeia da

Placa, em alusão à placa que indica o início da terra indígena. Anteriormente funcionava

no local um posto da FUNAI, devido a sua localização estratégica, esquina da Linha 14

com o travessão que dá acesso à Linha 15. Nessa aldeia, vivem 5 famílias, não há escola, e

149

na época da seca, período do ano compreendido entre os meses de junho e setembro,

surgem muitos problemas respiratórios, principalmente entre as crianças, em função da

grande quantidade de poeira provocada pelos veículos que passam pela estrada de chão, a

menos de 30 metros do pátio.

A partir da Aldeia da Placa, a Linha 14 margeia a cerca de arame liso de uma

grande área de pastagem, localizada dentro da terra indígena, anteriormente cultivada por

um colono invasor, e atualmente utilizada pelos próprios Paiter para a criação de gado de

corte. A partir da divisa, percorrem-se cerca de 2 quilômetros, sempre margeando a

pastagem, até chegar à Aldeia Gapgir, no final da Linha 14. A Aldeia Gapgir foi criada em

1971 e é a maior aldeia do território paiter, com 35 famílias. Há uma escola (Figura 5), um

posto de saúde, uma igreja e um campo de futebol. As casas, de madeira e cobertas de

telhas de amianto e de barro, concentram-se mais nas proximidades de um córrego, ao

Norte da aldeia, às margens do início da floresta. Há outras poucas casas mais afastadas,

dentro da área de pastagem, que ainda pertencem a famílias da aldeia. Moram nessa aldeia

três professores sujeitos dessa pesquisa, PP1, PP5 e PP10, sendo os dois primeiros do clã

Gapgir e o terceiro do clã Kaban.

Figura 5 – Escola da Aldeia Gapgir, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO.

Foto: Kécio Leite, 2013.

Atravessando a ponte sobre o pequeno córrego aos fundos da aldeia, e adentrando-

se cerca de 100 metros na floresta por meio de uma trilha, há uma grande clareira, no

150

centro da qual se erguem duas malocas tradicionais7, um espaço onde a aldeia realiza

atividades culturais, celebra datas festivas e outras comemorações. Cada maloca possui

apenas uma abertura de entrada, voltada para o centro do pátio. A maloca maior tem

aproximadamente 12 metros de comprimento, 8 metros de largura e 5 metros de altura. A

menor mede aproximadamente 8 metros de comprimento, 5 metros de largura e 4 metros

de altura. No interior de cada uma delas, dois esteios de madeira centrais e dois esteios

secundários dispostos de forma simétrica nos cantos da construção, unidos por travessões,

sustentam a cobertura e as laterais revestidas de palha, que formam uma elipse no encontro

com a superfície do chão de terra batida.

Outras quatro aldeias nas quais se desenvolveu a pesquisa ficam na Linha 11. Para

se chegar à primeira delas, a Aldeia Lobó, a partir de Cacoal, percorrem-se 26 quilômetros

de asfalto pela Rodovia Estadual RO-486, e então entra-se na Linha 11. São mais 15

quilômetros de estrada de chão, até o início da terra indígena. A partir da divisa,

percorrem-se três quilômetros por uma área de reflorestamento, e então chega-se à Aldeia

Lobó, criada em 1980, onde moram seis famílias. Há na aldeia uma pequena escola (Figura

6), construída em alvenaria, com uma sala de aula, onde dois professores indígenas, do clã

Kaban, um deles sujeito dessa pesquisa, dão aulas para duas turmas multisseriadas, com

alunos do primeiro ao terceiro ano, e do quarto ao quinto ano do Ensino Fundamental.

Figura 6 – Escola da Aldeia Lobó, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.

7 Em novembro de 2012, as malocas deixaram de ser utilizadas porque uma delas consumiu-se em fogo e a cobertura da outra ruiu pela ação natural do tempo. Em janeiro de 2014 construiu-se no local um espaço para reuniões, com cobertura de palha e laterais abertas.

151

Diariamente um ônibus escolar vai até a Aldeia Lobó buscar as crianças e jovens da

comunidade e de outras aldeias próximas para cursarem os anos finais do Ensino

Fundamental e o Ensino Médio em uma escola rural, distante cerca de 10 quilômetros da

terra indígena. Nessa escola rural, não há professores indígenas.

A partir da Aldeia Lobó, a estreita estrada torna-se de difícil acesso, principalmente

na estação das chuvas, que inclui os meses de novembro a abril. Indo em direção ao

interior do território paiter, percorrem-se mais 3 quilômetros, por entre áreas de floresta

densa e áreas em reflorestamento, e então se chega à Aldeia Lapetanha, criada em 1982,

onde vivem 13 famílias. Há na aldeia uma escola (Figura 7), construída em alvenaria, com

duas salas de aula e um alojamento para professores não indígenas, há também uma igreja

e um pequeno campo de futebol.

Figura 7 – Escola da Aldeia Lapetanha, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.

Na Aldeia Lapetanha, as casas são de madeira, cobertas com telhas de barro ou de

amianto. Na parte central da aldeia há uma maloca tradicional, porém não utilizada

atualmente. Moram nessa comunidade três professores indígenas, sendo um deles, PP9, do

clã Kaban e sujeito dessa pesquisa.

Percorrendo-se mais dois quilômetros à frente, passando por uma área de pastagem

para criação de gado de corte, encontra-se a aldeia Joaquim, onde vivem 6 famílias. Nessa

comunidade, criada em 1984, há uma escola construída nos moldes tradicionais, ao estilo

de uma maloca, com esteios de madeira e cobertura de palha (Figura 8). Dois professores

indígenas, do clã Kaban, moram ali, sendo que um deles, PP4, é sujeito dessa pesquisa.

152

Figura 8 – Escola da Aldeia Joaquim, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.

A partir da Aldeia Joaquim, indo-se na direção do interior da terra indígena, várias

picadas partem da estrada principal, inicialmente adentrando a área de floresta, mas

levando a grandes clareiras onde se cultivam roças de café e banana. Dessa área, sai a

maior parte da produção de banana que abastece os comércios dos municípios de Cacoal e

Ji-Paraná.

Percorrendo-se mais 2 quilômetros, chega-se à Aldeia Amaral, criada em 1985,

onde moram 20 famílias. Há uma escola (Figura 9), construída em alvenaria, com duas

salas de aula, onde atuam dois professores indígenas e três professoras não indígenas, um

posto de saúde, um grande campo de futebol e uma igreja. As casas são construídas em

madeira, com telhados em telha de barro ou de amianto. Há duas casas com cobertura

tradicional de palha.

Aos fundos da aldeia, separando as casas da floresta, destacam-se três construções

tradicionais, com coberturas de palha e laterais abertas, usadas para atividades culturais ou

grandes encontros religiosos. Sob uma das coberturas existem bancos de madeira fixados

ao chão, com capacidade para recepcionar até 300 pessoas em festas, reuniões ou

cerimônias religiosas. Nessa aldeia, mora um professor indígena, PP3, do clã Kaban,

sujeito dessa pesquisa.

153

Figura 9 – Escola da Aldeia Amaral, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.

A sexta aldeia na qual se desenvolveu parte da produção de dados na pesquisa

localiza-se na Linha 09, e para se chegar até ela, a partir de Cacoal, percorrem-se 18

quilômetros de asfalto pela Rodovia Estadual RO-486, e então entra-se na Linha 09. São

mais cerca de 16 quilômetros de estrada vicinal, até o início do território indígena, na

divisa com a última fazenda de criação de gado do entorno. A partir da divisa, percorrem-

se mais dois quilômetros por uma área de floresta, e então chega-se à Aldeia Paiter, criada

em 1984, onde moram 18 famílias. Há na aldeia uma escola (Figura 10), construída em

alvenaria, com duas salas de aula, onde atuam três sujeitos dessa pesquisa, sendo dois

professores paiter do clã Gamep, PP6 e PP8, e um professor paiter do clã Kaban, PP7. Na

escola dessa comunidade, os professores indígenas atuam em turmas multisseriadas, com

alunos do primeiro ao terceiro ano, e do quarto ao quinto ano do Ensino Fundamental, e

duas professoras não-indígenas dão aulas em turmas de sexto ao nono ano do Ensino

Fundamental.

Figura 10 – Escola da Aldeia Paiter, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.

154

Em todas as aldeias dos professores participantes desta pesquisa, existe energia

elétrica 24 horas por dia, o que proporciona à maioria das famílias a possibilidade de terem

geladeiras, liquidificadores e outros equipamentos elétricos e eletrônicos. Nota-se que, em

cerca de um quarto das casas das comunidades, há instalada uma antena parabólica de

televisão, e é comum se ouvir dos pátios das casas o som dos aparelhos ligados nos

diferentes horários do dia, e à noite até cerca de 22:00 h.

6.3 Os dados produzidos

Os dados produzidos na pesquisa compreendem respostas dos participantes a

questionários (Apêndices B a D), anotações referentes à sistematização de observações nas

vivências-campo na aldeia e na universidade, e quinze entrevistas semiestruturadas,

realizadas individualmente nas aldeias e na universidade, que resultaram em 263

perguntas-respostas, gravadas em áudio e vídeo. As entrevistas foram transcritas e

enumeradas em função da ordem de realização. As transcrições estão dispostas no

Apêndice E.

As entrevistas semiestruturadas se deram em função da disponibilidade dos

entrevistados, e variaram em duração e quantidade de perguntas, visto que partiam de

pontos previamente considerados de interesse para a pesquisa, tais como os relativos a

concepções de educação, escola e etnomatemática, mas se desdobravam em questões não

previstas, na medida em que as próprias entrevistas ocorriam e iam abrangendo temas de

interesse para o pesquisador no momento mesmo da enunciação das respostas pelos

entrevistados. Dada minha maior presença em algumas aldeias, em razão da participação

em outras atividades institucionais demandadas pela atuação no curso de formação de

professores na universidade, tive a oportunidade de realizar mais de uma entrevista com

alguns dos professores paiter destas comunidades.

Com vistas a preservar a identidade dos participantes, adotamos um código para

substituir o nome de cada um deles no texto da tese. Assim, para cada um dos sujeitos,

utilizamos o código PPi, onde as letras maiúsculas são as iniciais de Professor Paiter e o

índice i indica a ordem de realização das entrevistas.

O Quadro 5 abaixo apresenta informações sobre as entrevistas realizadas na

produção de dados, na ordem de realização, indicando entrevistado, data, local e número

de perguntas.

155

Quadro 5 – Informações sobre as entrevistas realizadas

Entrevistado Data Local Nº perguntas PP1 21.05.2013 Aldeia Gapgir 7 PP1 21.05.2013 Aldeia Gapgir 9 PP2 22.05.2013 Aldeia Lobó 8 PP3 22.05.2013 Aldeia Amaral 14 PP4 22.05.2013 Aldeia Joaquim 9 PP5 01.06.2013 Aldeia Gapgir 7 PP6 11.10.2013 Aldeia Paiter 6 PP6 19.11.2013 Aldeia Paiter 29 PP7 19.11.2013 Aldeia Paiter 15 PP8 19.11.2013 Aldeia Paiter 7 PP9 24.07.2014 UNIR 32 PP3 19.08.2014 UNIR 14 PP4 01.09.2014 UNIR 58

PP10 03.09.2014 UNIR 24 PP1 09.09.2014 UNIR 24

Total 263

6.3 Categorias de análise de dados

Uma vez transcritas as entrevistas e iniciada a análise dos dados que resultou em

uma versão preliminar da tese, apresentada para avaliação no processo de qualificação

ocorrido em abril de 2014, sentimos a necessidade de eleger categorias de análise, também

por sugestão dos membros avaliadores da banca de qualificação, com o intuito de tornar

viável a análise do universo relativamente grande de dados produzidos, expandido ainda

mais a partir de então com a realização de novas entrevistas.

Assim, na busca de estabelecermos categorias de análise, não consideradas a priori

no início da pesquisa, direcionamos um olhar crítico para as questões que compõem a

problemática de investigação e percebemos que nelas se fazem presentes uma referência ao

espaço escolar na aldeia como lugar de projeção pelos professores paiter de uma relação

entre conhecimentos indígenas (saberes da tradição) e conhecimentos não-indígenas

(saberes escolares), motivados por ideias relacionadas à etnomatemática e à

interculturalidade. Emergiram assim, das questões da pesquisa, três categorias semânticas

inter-relacionadas, consideradas por nós a partir de então como categorias de análise dos

156

dados produzidos, a saber: Etnomatemática, Educação Escolar Indígena e

Interculturalidade.

Com o diagrama da Figura 11 abaixo, buscamos representar as relações

identificadas entre as categorias semânticas presentes nas questões iniciais da pesquisa,

possibilitando concebê-las como categorias de análise dos dados. Verifica-se inicialmente

uma relação entre saberes da tradição e saberes escolares, representada pela base do

triângulo inscrito na circunferência. Dessa relação, resulta o interesse quanto à projeção

pelos professores paiter de uma ressignificação do próprio espaço escolar a partir de ideias

relativas à etnomatemática, representada no diagrama como o terceiro vértice do triângulo,

concebendo-se assim a possibilidade da origem de uma nova concepção de educação

escolar indígena, um espaço escolar ressignificado no interior do triângulo. Todavia, a

ressignificação da escola na aldeia é permeada de questões que extrapolam o espaço

escolar, ligando-se a questões de identidade cultural, mudanças culturais, conflitos com a

sociedade colonizadora e outras tematizações características da interculturalidade,

representada então no diagrama pelo círculo a envolver o triângulo. Daí que as categorias

Educação Escolar Indígena, Etnomatemática e Interculturalidade presentes inicialmente

nas questões da problemática da pesquisa guardam entre si estreitas relações, podendo ser

assumidas como categorias de análise no universo de dados produzidos.

Figura 11 – Diagrama de representação das relações entre as categorias de análise de

dados

Uma vez estabelecidas as categorias de análise e tomando-as por referência,

passamos à seleção e organização dos dados produzidos. Para tanto, adotamos a

Espaço Escolar

Etnomatemática

Conhecimento Indígena (Saberes da Tradição)

Conhecimento Não-Indígena (Saberes Escolares)

Interculturalidade

157

denominação Unidade Textual para cada conjunto pergunta-resposta das questões das

entrevistas transcritas, atribuindo a cada uma delas um código indicado por EiQj, onde E

refere-se a entrevista e Q a questão, sendo os índices i e j indicadores da ordem da

entrevista e do número da questão da entrevista, respectivamente. Assim, por exemplo, a

unidade textual indicada por E7Q3 refere-se à terceira questão da sétima entrevista,

podendo ser assim consultada na transcrição disponível nos apêndices.

Ao iniciarmos a categorização dos dados a partir das categorias de análise,

percebemos que emergiam das unidades textuais, associadas a cada categoria de análise,

subcategorias semânticas que possibilitariam então organizar os dados para análise em

blocos temáticos. Decidimos então denominar estas subcategorias semânticas de

tematizações das categorias de análise, possibilitando assim concebermos blocos de

unidades textuais que se faziam presentes nas transcrições de entrevistas com diferentes

sujeitos, mas interconectadas por tematizações comuns e selecionadas do universo de

dados produzidos através da aplicação das categorias de análise.

Assim, por exemplo, as unidades textuais selecionadas a partir da categoria de

análise etnomatemática foram organizadas em três blocos, considerando as tematizações

Concepções de etnomatemática, Como deve ser o ensino de matemática na escola da

aldeia, e Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola.

A aplicação das categorias de análise na seleção das unidades textuais para análise

resultou em um movimento de redução do universo de dados produzidos, funcionando

como um filtro temático a posteriori. Desse modo, das 263 unidades textuais originalmente

presentes nas transcrições, foram selecionadas 77 para análise, distribuídas em três blocos

temáticos relacionados à categoria etnomatemática, sete blocos temáticos relacionados à

categoria educação escolar indígena, e três blocos temáticos relacionados à categoria

interculturalidade.

As demais unidades textuais presentes nas transcrições das entrevistas e não

selecionadas pela metodologia acima exposta não foram previamente descartadas, sendo

reservadas para ilustrações e contextualizações de falas necessárias durante a elaboração da

síntese final da análise dos dados.

Conforme pode se verificar no Quadro 6 abaixo, a quantidade de unidades textuais

selecionadas para análise variou entre uma categoria e outra, ou mesmo entre os sujeitos,

em função da dinâmica própria das entrevistas semiestruturadas, que possibilita formular

questões aos entrevistados em função das próprias respostas que vão sendo enunciadas no

momento da entrevista, de modo que ao final tem-se uma quantidade de perguntas

158

diferente para cada entrevistado, tendo cada entrevista abrangido com diferentes

intensidades e recorrências os pontos temáticos inicialmente selecionados para formulação

das perguntas.

A maior ou menor disponibilidade dos sujeitos para participação das entrevistas foi

outro fator que contribuiu para a diferença na quantidade de unidades textuais selecionadas

por participante. Assim, verifica-se que os participantes que puderam ser entrevistados

mais de uma vez tiveram mais unidades textuais selecionadas, uma vez que foi

oportunizado ao pesquisador abranger, com mais de uma entrevista, um espectro maior de

tematizações das categorias de análise utilizadas para seleção dos dados a posteriori.

Uma vez selecionadas as unidades textuais do universo de dados produzidos,

iniciamos a análise propriamente dita, tendo sido fundamental para isso a formulação de

um procedimento, como técnica de análise, tomando por base o Percurso Gerativo de

Sentido da semiótica discursiva, também conhecida como semiótica greimasiana. Vale

ressaltar que, para a elaboração do procedimento de análise de dados, foi decisiva e

fundamental a presença de meu orientador, professor Erasmo Borges, quanto à forma

pensada para a realização da análise, sobre a qual busco explicitar os detalhes a seguir.

Quadro 6 – Unidades textuais selecionadas por categorias de análise, tematizações e sujeitos

CATEGORIAS DE ANÁLISE

SUJEITOS

TEMATIZAÇÕES

PP1 PP4 PP9 PP10 PP3 PP7 PP6 PP5 PP2 TOTAL

Etnomatemática

1. Concepções de etnomatemática E1Q2 E2Q8

E5Q6 E11Q17 E14Q14 E4Q10 E9Q14 E8Q16 E6Q3 E3Q3 10

2. Como deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia

E13Q9 E11Q26 E14Q22 3

3. Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola

E1Q4 E5Q8 E13Q1

E9Q15 E8Q17 E3Q5 6

Educação Escolar Indígena

4. Concepções de educação E2Q6 E11Q15 E14Q12 E4Q9 E9Q8 E7Q5 6

5. Concepções de escola E2Q1 E5Q1 E11Q16 E14Q13 E4Q5 E9Q9 E8Q22 E6Q6 E3Q2 9

6. Importância da escola na aldeia E2Q3

E15Q16 E5Q3 E11Q20 E14Q17

E4Q6

E12Q1 E9Q10 8

7. Importância dos velhos para o ensino de saberes da tradição

E1Q5 E15Q15

E13Q6 E11Q19 E14Q16 E9Q6 E8Q20 E6Q5 8

8. O que deve ser ensinado na escola da aldeia

E2Q4 E13Q20 E11Q25 E4Q7 4

9. Motivações para ser professor E2Q7 E5Q5 E14Q3 E4Q3 E7Q1 E3Q1 6

10. Papel do professor na aldeia E15Q22 E13Q48 E11Q30 E14Q23 E12Q13 5

Interculturalidade

11. Estado da cultura paiter em cem anos

E15Q23 E13Q53 E11Q31 E14Q24 E12Q14 5

12. Relação entre educação escolar na aldeia e identidade cultural

E15Q5 E15Q18

E13Q32 E11Q28 4

13. Mudanças na educação do povo E13Q15 E11Q22 E14Q20 3

TOTAL 15 13 11 10 9 6 6 3 4 77

6.5 O Percurso Gerativo de Sentido como simulacro metodológico

Desde a tentativa inicial de análise parcial de dados que resultou em uma versão

preliminar da tese apresentada na qualificação, passou a ser uma preocupação constante na

continuidade da construção da tese a escolha de uma técnica de análise de dados que

possibilitasse um fazer interpretativo sobre o universo de dados produzidos na pesquisa.

Ao cursar no doutorado uma disciplina eletiva de semiótica oferecida por meu

orientador, professor Erasmo Borges, em abril/maio de 2014, entrei em contato com o

Percurso Gerativo de Sentido da semiótica greimasiana8, considerado como um simulacro

metodológico na análise de textos. A partir dali, vislumbramos uma possibilidade de

elaborarmos uma técnica de análise de dados para a pesquisa de doutorado em andamento

com aporte na semiótica greimasiana, e inspirados pelo Percurso Gerativo de Sentido.

Assim, busco explicar abaixo os principais conceitos sobre os quais nos apoiamos e como

construímos, a partir deles, a técnica empregada na análise dos dados produzidos na

pesquisa.

A semiótica greimasiana é entendida como uma teoria geral da significação, que

busca explicitar as condições de apreensão e de produção de sentido em um texto. O texto,

nesse caso, não é apenas o verbal escrito (linguístico), mas pode ser uma fotografia

(visual), uma música (sonoro), um filme (sincrético) ou qualquer outro elemento que se

configura como uma tessitura de relações que dão origem a significações, e que, portanto,

suporta um conteúdo que pode ser interpretado (FIORIN, 2008). Texto é entendido assim

como uma unidade resultante da união de dois planos, um plano de expressão, relativo à

forma ou à estética, que serve de suporte a um conteúdo, e um plano de conteúdo, no qual

se encontram estruturas discursivas que suportam o discurso.

Assim, na busca de se compreender a produção e de se gerar uma interpretação do

significado de um texto, a semiótica greimasiana considera como unidade de análise o

texto como um todo e não apenas partes isoladas, como frases ou sentenças, propondo o

Percurso Gerativo de Sentido como um simulacro metodológico a ser aplicado para se

chegar ao discurso presente no plano de conteúdo. De forma geral, na análise e

interpretação de um texto, o Percurso Gerativo de Sentido “vai do mais simples e mais

abstrato ao mais complexo e concreto”, pressupondo-se que o discurso é “como um

dispositivo em forma de ‘massa folheada’, constituído de certo número de níveis de

8 Em alusão a Algirdas Julien Greimas, nascido na Rússia em 1917, foi um dos teóricos fundadores da semiótica discursiva. Faleceu em 1992, em Paris.

161

profundidade superpostos, dos quais somente o último, o mais superficial, poderá receber

uma representação” (GREIMAS; COURTÉS, 2012, p. 145).

A partir dessa definição mais ampla de texto concebida pela semiótica greimasiana,

vislumbramos a possibilidade de considerarmos como textos as respostas atribuídas pelos

professores paiter nas entrevistas gravadas e transcritas no decorrer da pesquisa. Portanto,

passamos a considerar as respostas dos professores como unidades passíveis de serem

interpretadas com aporte no Percurso Gerativo de Sentido para se chegar ao discurso

presente em cada uma delas, que seriam, no caso concreto da pesquisa, as ideias e

pressupostos dos próprios sujeitos participantes expressos em suas práticas discursivas.

Ao se considerar o Percurso Gerativo de Sentido com vistas à identificação do

discurso, o texto é analisado no plano de conteúdo em três níveis: fundamental, narrativo e

discursivo. Como unidades das estruturas elementares da significação no nível

fundamental do plano de conteúdo, encontram-se as categorias semânticas, que não

aparecem necessariamente de forma escrita no texto dado seu caráter abstrato, podendo

assumir um valor positivo ou um valor negativo. No primeiro caso, diz-se que a categoria

semântica é eufórica, no segundo, disfórica. Assim, define-se euforia como “o termo

positivo da categoria tímica que serve para valorizar os microuniversos semânticos”

(GREIMAS; COURTÉS, 2012, p. 192). Por sua vez, a disforia é definida como “o termo

negativo da categoria tímica, que serve para valorizar os microuniversos semânticos,

instituindo valores negativos” (idem, p. 149).

Uma vez que as categorias semânticas eufóricas e disfóricas estejam identificadas

no nível fundamental do plano de conteúdo, busca-se identificar entre elas a mais geral, a

fim de se identificar a oposição semântica fundamental, considerada como eixo central ou

fio condutor para a continuidade da análise e interpretação do texto. Assim, considera-se

que todo texto estrutura-se a partir de uma oposição semântica fundamental passível de ser

identificada no nível fundamental do plano de conteúdo.

No caso das práticas discursivas dos professores paiter registradas em entrevistas,

transcritas e consideradas como texto, percebemos que, por exemplo, no nível fundamental

do plano de conteúdo, as categorias tradição, interior e particularidade assumem valores

positivos, sendo portanto eufóricas, enquanto as categorias modernidade, exterior e

generalidade são disfóricas, porque assumem valores negativos na enunciação. Assim,

algumas das oposições semânticas fundamentais identificadas como eixos centrais nas

respostas dadas pelos sujeitos são tradição vs modernidade, interior vs exterior e

particularidade vs generalidade. Observa-se ainda que algumas categorias semânticas

162

podem estar escritas ou apenas subentendidas no texto, dado o seu caráter abstrato. Por

exemplo, as expressões “de cada povo”, “de cada sociedade”, “de cada cultura”, “de cada

contexto” presentes na transcrição de um entrevista pode ser relacionada à categoria

semântica particularidade, oposta portanto à categoria generalidade, sem que se tenha

necessariamente estas duas categorias expressas de forma escrita no texto.

Após a identificação da oposição semântica fundamental, o próximo passo no

Percurso Gerativo de Sentido é a análise do texto no nível narrativo do plano de conteúdo.

Neste nível, busca-se reconstruir a narrativa presente no texto com base nas categorias

semânticas e na oposição semântica fundamental identificadas no nível fundamental, com

o intuito de identificar como o sujeito da enunciação faz para enunciar o que diz. Nessa

reconstrução da narrativa, considera-se que sempre está presente no texto um fazer

persuasivo do enunciador no sentido de levar o enunciatário a crer no conteúdo que está

presente na enunciação. Para tanto, o enunciador lança mão de recursos como ênfases,

reiterações e mecanismos de manipulação tais como provocação, sedução, intimidação e

tentação que passam a permear o fazer interpretativo do enunciatário.

Assim, no contexto das práticas discursivas dos professores paiter, ao

considerarmos as respostas constantes das entrevistas como textos, verificamos que no

nível narrativo as categorias semânticas eufóricas são usadas pelos sujeitos, por exemplo,

para enfatizar o valor da tradição, da cultura e da identidade do povo Paiter, de forma

reiterada, e as categorias semânticas disfóricas são usadas para enfatizar os riscos da

modernidade, da troca de identidade, do ofuscamento da tradição. Tais formas de organizar

a narrativa dizem respeito ao fazer persuasivo dos sujeitos na enunciação de respostas às

questões das entrevistas realizadas na pesquisa, e estão relacionadas ao “como fazem para

dizerem o que dizem”.

Como última instância do Percurso Gerativo de Sentido, busca-se analisar o texto

no nível discursivo do plano de conteúdo. Esse é o nível mais superficial, no entanto o

mais complexo e concreto do percurso. Neste terceiro e último nível do percurso, busca-se

identificar o sentindo ou o discurso presente no texto como concretização dos conteúdos

abstratos identificados como categorias semânticas e oposição semântica fundamental no

nível fundamental, e como conteúdo narrativo também abstrato e permeado de recursos

persuasivos no nível narrativo. Assim, o discurso presente no texto é identificado através

de um fazer interpretativo final do enunciatário, que se concretiza por meio de um juízo

epistêmico emitido sobre os enunciados do enunciador, considerando-se o juízo epistêmico

como uma assunção do numenal a partir do fenomenal interpretado, isto é, por meio dele o

163

enunciado deixa o plano do parecer ser e é assumido no plano do ser (GREIMAS;

COURTÉS, 2012). Assim, conforme Barros (2005, p. 53), “o discurso nada mais é,

portanto, que a narrativa ‘enriquecida’”, ou, em outros termos, a moral da história, a

conclusão da narrativa, ou simplesmente o sentido interpretado do texto.

No caso empírico das práticas discursivas dos sujeitos participantes da pesquisa, ao

considerarmos como textos as respostas constantes das transcrições das entrevistas,

vislumbramos a possibilidade de identificarmos as ideias e pressupostos inerentes às

questões da problemática inicial da pesquisa como discursos dos professores paiter

presentes na enunciação das respostas às questões das entrevistas, passíveis de serem

identificados portanto através de uma técnica elaborada por analogia ao Percurso Gerativo

de Sentido da semiótica greimasiana.

Percebemos em suma que o Percurso Gerativo de Sentido, ao considerar os três

níveis do plano de conteúdo, possibilita uma interpretação gradativa do texto, partindo de

estruturas elementares no nível fundamental, passando por estruturas narrativas no nível

narrativo até chegar ao sentido final do texto, no nível discursivo. Não se trata certamente

de uma técnica puramente objetiva e livre de toda e qualquer contingência na interpretação

de um texto, visto que todo fazer interpretativo depende relativamente do contexto sócio-

histórico em que se encontram enunciador e enunciatário, assim como depende

sensivelmente do repertório de quem busca interpretar o texto. Nesse sentido, conforme

Fiorin (1997, p. 31),

[...] o percurso gerativo é um modelo que simula a produção e a interpretação do significado, do conteúdo. Na verdade, ele não descreve a maneira real de fabricar um discurso, mas constitui, para usar as palavras de Denis Bertrand, um “simulacro metodológico”, que nos permite ler, com mais eficácia, um texto.

Assim, a partir das potencialidades por nós identificadas no Percurso Gerativo de

Sentido como inspiração para a análise dos dados produzidos no decorrer da pesquisa,

passamos ao próximo passo, que foi elaborar um quadro que contemplasse os três níveis de

análise do plano de conteúdo, os elementos de análise de cada nível e o próprio texto a ser

analisado. Não tendo encontrado um dispositivo equivalente na literatura para isso,

formulamos o quadro apresentado a seguir.

164

6.6 Dispositivo prático para análise de unidades textuais

A fim de que fosse possível analisar, com aporte na semiótica greimasiana e por

analogia ao Percurso Gerativo de Sentido, cada uma as 77 unidades textuais selecionadas

do universo de dados produzidos na pesquisa a partir das três categorias de análise

estabelecidas a posteriori, no intuito de identificar os discursos dos professores paiter

presentes nas respostas por eles enunciadas nas entrevistas, concebemos um quadro

composto por duas colunas e oito linhas.

A primeira linha foi destinada à identificação das unidades textuais, de acordo com

o código atribuído previamente a cada uma delas. Na segunda linha, apresentamos a

pergunta realizada ao entrevistado, que é submetida a uma autoanálise na terceira linha,

com o intuito principal de identificar o fazer persuasivo do pesquisador inserido na

enunciação. Está presente na decisão de contemplar no quadro de análise essa autoanálise o

pressuposto por nós assumido a partir da semiótica greimasiana de que todo ato de

comunicação envolve um fazer persuasivo e um fazer interpretativo. Assim, entendemos

que a forma de enunciar a pergunta em uma entrevista pode interferir diretamente na

resposta obtida, na medida em que o fazer persuasivo do pesquisador pode induzir o fazer

interpretativo do entrevistado, direcionando a resposta formulada para certas perspectivas

que correspondem às expectativas prévias do próprio pesquisador. Em outros termos, pode

induzir o entrevistado a dizer exatamente o que o pesquisador desejaria ouvir.

Antes de servir como critério de validação ou não dos dados produzidos, esta

autoanálise da pergunta a posteriori serve para ilustrar o fato de que, em pesquisas

qualitativas como esta, estabelecem-se também intersubjetividades entre os participantes,

de modo que o próprio pesquisador contribui com suas expectativas pessoais para o teor e

o conteúdo dos dados gerados na pesquisa. Trata-se da não neutralidade do pesquisador e

da subjetividade inerente à produção e à análise de dados na pesquisa qualitativa.

A quarta linha do quadro de análise destina-se à resposta do entrevistado,

considerada então como texto, que é analisado inicialmente no nível fundamental do plano

de conteúdo, para identificação de categorias semânticas eufóricas e disfóricas que, por sua

vez, são apresentadas na quinta linha. No processo de identificação das categorias

semânticas no nível fundamental, são estabelecidas marcas no plano de expressão do texto,

ressaltando palavras e expressões a partir das quais as categorias foram identificadas.

Assim, por exemplo, a partir das expressões “não vai existir mais” e “valorizarem a

cultura” presentes na resposta enunciada por PP9 na unidade textual E11Q31, foram

165

identificadas as categorias semânticas “mudança” e “resistência”, respectivamente, sendo a

primeira considerada disfórica (negativa), e a segunda eufórica (positiva).

Na sexta linha, apresenta-se a oposição semântica fundamental entre duas

categorias semânticas mais gerais identificadas na linha anterior, que será considerada

como eixo central da narrativa e fio condutor para se chegar ao discurso presente no texto.

Passa-se então para o nível narrativo do plano de conteúdo, reconstruindo a

narrativa na sétima linha, a partir das categorias semânticas e da oposição semântica

fundamental identificadas no nível fundamental. Nesta linha, busca-se explicar como ou

por que os sujeitos da enunciação dizem o que estão dizendo.

Finalmente, considerando o conjunto das informações constantes das linhas

anteriores, apresenta-se na oitava linha a análise do texto no nível discursivo, a partir de

um juízo epistêmico final através do qual o conteúdo enunciado na resposta do

entrevistado deixa o plano do parecer ser e é assumido pelo pesquisador no plano do ser

como discurso.

Apresentamos na Figura 12 abaixo o exemplo de análise de uma unidade textual a

partir do quadro de análise concebido com aporte na semiótica greimasiana e tomando por

analogia o Percurso Gerativo de Sentido.

UNIDADE TEXTUAL

E4Q10

KÉCIO Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nesta questão, com o objetivo de conhecer a concepção de etnomatemática de PP3, introduzo a pergunta a partir de uma contextualização referente à experiência de formação do entrevistado no curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Assim, direciono PP3 a emitir uma definição de etnomatemática a partir de suas referências acadêmicas, uma vez que eu sei que ele tem estudado referências bibliográficas que tratam de etnomatemática.

PP3

Etnomatemática para mim é... cada povo tem sua matemática, tem sua forma de contar, tem sua forma de medir. Então, para mim, etnomatemática é a matemática do povo, é a matemática de cada etnia, de cada povo que tem sua forma de contagem, sua forma de medir, sua forma de conhecer outros tipos de contagem.

CATEGORIAS SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Povo, Etnia, Cultura, Conhecimento.

Disfórica: Generalidade

OPOSIÇÃO SEMÂNTICA

Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP3 apresenta uma concepção de etnomatemática a partir da oposição particularidade vs generalidade. De forma geral, etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em todos os povos e culturas. Assim, para PP3, em uma dimensão geral, etnomatemática é a matemática que todos os povos ou etnias possuem relacionada a formas de conhecer, de medir, de contar. Por outro lado, a particularidade se faz presente na enunciação de PP3 ao destacar a singularidade da matemática de cada povo ou etnia. Verifica-se ao final da resposta de PP3 a indicação de que a etnomatemática também contempla formas de conhecer o outro, no sentido de ir além das formas de contar e medir de um povo em particular.

DISCURSO Etnomatemática é a matemática de povos ou etnias em geral e está relacionada a formas particulares de contar, medir e conhecer de cada povo ou etnia.

Figura 12 – Quadro concebido para análise semiótica de unidades textuais

O texto

Nível fundamental

Nível narrativo

Nível discursivo

166

6.7 O movimento de redução dos dados

Uma vez concebido o quadro como dispositivo para análise semiótica das unidades

textuais selecionadas do universo de dados produzidos, procedemos à identificação dos

discursos dos professores paiter presentes em cada unidade textual. Em seguida, reunimos

os discursos identificados em blocos de discursos, denominados Sínteses de Discursos,

organizados de acordo com as treze tematizações das categorias da análise a fim de realizar

uma análise final dos dados, em direção à elaboração de respostas às questões da

problemática inicial da pesquisa.

Desse modo, no percurso metodológico referente à análise dos dados produzidos na

pesquisa, ocorreu um movimento de redução de dados, de modo que as 263 unidades

textuais originalmente produzidas se reduziram a 77 unidades textuais após a seleção por

aplicação das categorias de análise e, finalmente, a 13 sínteses de discursos, a partir das

quais buscou-se elaborar uma síntese, como fazer interpretativo final sobre os dados, na

última seção da tese.

As duas próximas seções da tese contemplam, respectivamente, a análise das 77

unidades textuais selecionadas do universo de dados produzidos e a análise das 13 sínteses

de discursos resultantes.

167

7 UM FAZER INTERPRETATIVO SOBRE OS DADOS PRODUZIDOS: ANÁLISE

SEMIÓTICA DE UNIDADES TEXTUAIS

Nesta seção, apresentamos a análise semiótica de 77 unidades textuais selecionadas

do universo de dados produzidos ao longo da pesquisa. As unidades textuais foram

selecionadas a partir de três categorias de análise estabelecidas a posteriori, e agrupadas

em treze tematizações das categorias de análise, conforme informações constantes no

Quadro 6 da seção anterior.

Cada unidade textual, composta de uma pergunta enunciada pelo pesquisador e a

respectiva resposta dada pelo entrevistado, é inserida em um quadro de análise apresentado

na seção anterior, concebido como um dispositivo auxiliar para o fazer interpretativo do

pesquisador. Realiza-se então uma autoanálise da pergunta, visando identificar a posteriori

a intensão e o fazer persuasivo do pesquisador no ato de comunicação durante a realização

da entrevista. Segue-se uma análise da resposta do entrevistado, considerando-a como um

texto. Assim, com aporte no Percurso Gerativo de Sentido da semiótica greimasiana,

analisa-se o texto em três níveis do plano de conteúdo: fundamental, narrativo e discursivo.

No nível fundamental, são identificadas as categorias semânticas eufóricas e

disfóricas e a oposição semântica fundamental que se constitui como eixo central de

estruturação do texto. No processo de identificação das categorias semânticas, termos ou

expressões são destacados, resultando em marcas (grifos) sobre o texto em seu plano de

expressão. No nível narrativo do plano de conteúdo, busca-se reconstruir a narrativa a

partir das categorias semânticas identificas, destacando-se como e por que o sujeito da

enunciação diz o diz no texto.

No terceiro e último nível, identifica-se o discurso presente no texto, considerado

no contexto da pesquisa como ideias e pressupostos presentes nas práticas discursivas dos

professores paiter em cada unidade textual. Na seção seguinte da tese, os discursos

identificados em cada unidade textual serão reunidos para comporem sínteses de discursos

a partir dos quais se fará uma análise final, relacionando-a às questões da problemática

inicial da pesquisa.

168

7.1 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de

etnomatemática da categoria de análise etnomatemática

Quadro 7 – Análise semiótica da unidade textual E1Q2

UNIDADE

TEXTUAL E1Q2

KÉCIO

No curso de licenciatura, você está tendo acesso a textos sobre

etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você

define etnomatemática? O que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nesta pergunta, introduzo a questão da entrevista fazendo

referência ao curso de licenciatura. Isso induz (fazer persuasivo) o

entrevistado a responder a pergunta a partir de uma perspectiva

acadêmica, a partir de referências construídas nos estudos na

universidade.

PP1

A etnomatemática eu entendo que é um conhecimento de povos em

relação à matemática, ou seja, cada povo tem a sua forma,

expressão e meios para fazer contagem, e para fazer formas

geométricas, medidas e tudo mais. Cada povo tem seu

conhecimento. Então, a etnomatemática, cada povo... A

etnomatemática eu entendo que é... cada povo, cada cultura, cada

etnia tem sua forma de expressão e conhecimento ao longo do

tempo. Adquiriram esses conhecimentos por meio de necessidades,

buscando no seu dia a dia, nas atividades. Então, nessas atividades

sempre há formas de trabalhar essas atividades em termos

matemáticos. Então a etnomatemática nada mais é para mim do que

a matemática de cada povo, de acordo com sua cultura e

conhecimento ao longo do tempo, construído ao longo do tempo,

dos anos milenares.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Povo, Particularidade, Diferença,

Tradição, Cultura, Etnia, Cotidiano, Interior, Identidade.

Disfóricas: Generalidade, Exterior.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

169

ANÁLISE

A concepção de etnomatemática enunciada por PP1 baseia-se na

oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele define

etnomatemática como conhecimento matemático de povos em

geral, sendo um conhecimento diferente em relação à tradição e à

cultura particular de cada povo ou etnia, de acordo suas

necessidades cotidianas.

DISCURSO

Etnomatemática é um conhecimento matemático que os povos em

geral têm, sendo um conhecimento matemático diferente e

particular de cada povo, de acordo com sua cultura e suas

necessidades cotidianas.

Quadro 8 – Análise semiótica da unidade textual E2Q8

UNIDADE

TEXTUAL E2Q8

KÉCIO O que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, solicito a PP1 uma definição de etnomatemática,

sem indicar onde a definição deve ser ancorada. Assim, o

entrevistado fica livre para emitir uma resposta pessoal, com base

em suas concepções individuais, ou buscar apoio em perspectivas

acadêmicas que permeiam sua formação universitária.

PP1

Etnomatemática é saberes, fazeres, conhecimentos... cada atividade

cotidiana de cada povo, de cada etnia no mundo, que se usa como

contagem, medição de tempo, se localizar no tempo. Então,

etnomatemática para mim é saberes e fazeres matemáticos de cada

povo, de cada etnia, de acordo com sua cultura, de acordo com as

suas tradições, de acordo com suas atividades cotidianas. Então, a

exemplo, vamos dizer, a etnomatemática paiter de acordo com a

escolha da roça, como que é, em que tempo, como que seria a área,

que é diferente de uma matemática do engenheiro civil. Então, quer

dizer, a etnomatemática é um conhecimento matemático de acordo

com cada povo, de acordo com cada cultura, de cada sociedade.

CATEGORIAS Eufóricas: Conhecimento, Cotidiano, Povo, Particularidade, Etnia,

170

SEMÂNTICAS Cultura, Tradição, Paiter, Diferença.

Disfóricas: Mundo, Generalidade, Matemática.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção de etnomatemática enunciada por PP1 baseia-se na

oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, a

definição dada por PP1 parte de uma perspectiva de

etnomatemática enquanto conjunto geral de conhecimentos

matemáticos existentes no mundo, não restrito a apenas um povo

ou cultura. Por outro lado, PP1 particulariza a etnomatemática

como um conhecimento matemático específico de cada povo,

relacionado às tradições, à cultura e ao cotidiano de cada etnia ou

sociedade. Em particular, enfatiza a diferença entre a

etnomatemática de seu povo, o povo Paiter, e a matemática do

engenheiro civil.

DISCURSO

Etnomatemática é o conjunto de conhecimentos matemáticos

existentes em todo o mundo, sendo um conhecimento diferente em

cada cultura, de acordo com as tradições e o cotidiano de cada

povo, etnia ou sociedade.

Quadro 9 – Análise semiótica da unidade textual E14Q14

UNIDADE

TEXTUAL E14Q14

KÉCIO

Ao longo do curso de licenciatura, vocês tiveram acesso a vários

textos, discutiram, debateram, estudaram, escreveram sobre

etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você

define etnomatemática? O que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nesta questão, antes de solicitar a PP10 uma definição de

etnomatemática, busco contextualizar a pergunta, direcionando o

entrevistado a emitir uma definição de etnomatemática a partir de

referências acadêmicas (licenciatura), uma vez que eu sei que PP10 é

acadêmico universitário, e que tem estudado referências bibliográficas

171

relacionadas à etnomatemática.

PP10

Etnomatemática nos traz bastante pensamento de falar. Pode ser uma

contagem da minha maneira do povo Paiter, como eles contavam,

como mediam o espaço, como eles tinham cálculo de fazer uma

maloca, uma casa, na plantação também, e medição de tempo,

contagem do tempo, qual tempo a gente pode fazer derrubada,

plantação, colheita. Então, etnomatemática está na vida, no dia-a-dia

de cada cultura diferente, de cada povo.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Povo, Tradição, Cotidiano, Cultura.

Disfórica: Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A definição de etnomatemática enunciada por PP10 se dá a partir da

oposição particularidade vs generalidade. Assim, no plano geral,

etnomatemática é algo inerente à vida e à cultura de cada povo. No

plano específico, por sua vez, a etnomatemática é a maneira particular

de cada povo contar, medir e realizar cálculos relacionados ao

cotidiano no interior de cada cultura.

DISCURSO

Etnomatemática é algo inerente à vida humana, sendo a maneira de

cada povo contar, medir e realizar cálculos relacionados a suas

atividades cotidianas.

Quadro 10 – Análise semiótica da unidade textual E11Q17

UNIDADE

TEXTUAL E11Q17

KÉCIO

Também considerando sua experiência e, principalmente, sua

formação na universidade, pois você já deve ter lido sobre e

estudado esse assunto, como você define etnomatemática? O que é

etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Inicio a questão com o termo “também”, que relaciona a pergunta

ao contexto de uma entrevista mais ampla, com questões

anteriormente já realizadas. Contextualizo a pergunta direcionando

172

PP9 a emitir uma definição de etnomatemática a partir de sua

experiência (enquanto estudante e professor), indicando como

pontos de referência, ou de partida, a vivência no curso de

formação de professores indígenas (licenciatura) e os possíveis

estudos e leituras já realizadas por ele sobre o tema.

PP9

Etnomatemática... dentro da universidade mesmo eu consegui esse

conhecimento. Antes de entrar na universidade, eu não sabia o que

era etnomatemática. Etnomatemática é... foi muito bom para mim,

porque, a partir desse conhecimento eu sei: “Ah, cada povo tem sua

matemática”. Não é reconhecida, mas a partir daí que a gente... não

só na sociedade não-indígena, mas dentro da sociedade indígena

existe matemática. Cada povo tem a sua matemática. Aí eu percebi:

“Ah, cada povo, cada grupo tem a sua matemática”. Aí, como eu

vejo também que dentro da minha sociedade tem matemática... só

que não é escrita... porque não foi escrita ainda... mas existe

matemática lá. E a partir... quem vai fazer essa matemática do

nosso povo... quem vai fazer essa pesquisa encima desse... da

matemática do povo dele.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Particularidade, Indígena, Interior, Povo,

Tradição, Identidade.

Disfóricas: Desconhecimento, Não-Indígena, Exterior,

Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Generalidade vs Particularidade

ANÁLISE

PP9 inicialmente contextualiza sua definição, enfatizando que

etnomatemática é um conhecimento que ele conseguiu adquirir no

interior da universidade. Assim, a temporalidade antes-agora-

depois se faz presente na resposta do entrevistado como marcos do

domínio de um conhecimento sobre etnomatemática. PP9 considera

que adquirir conhecimentos sobre etnomatemática foi algo bom

para ele porque lhe possibilitou perceber que conhecimentos

matemáticos não existem apenas na sociedade não-indígena.

Assim, a oposição particularidade vs generalidade permeia a prática

173

discursiva de PP9, sendo a partir dessa oposição que ele expressa

sua definição de etnomatemática. Assim, para ele, etnomatemática

é um conhecimento geral no sentido de que todos os povos ou

grupos têm matemática. Porém, a matemática de cada povo ou

grupo é particular, a exemplo da matemática de seu próprio povo, o

povo Paiter, que ainda não está escrita. A pesquisa e a escrita na

definição de PP9 assumem um valor positivo e são indicadas como

ações necessárias à valorização e legitimação de uma matemática

específica do povo Paiter, ainda não reconhecida pela sociedade

não-indígena.

DISCURSO

Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em

geral no interior da cultura de todos os povos, sendo diferente e

particular em cada povo ou grupo, a exemplo da matemática do

povo Paiter que ainda não está reconhecida pela sociedade não-

indígena.

Quadro 11 – Análise semiótica da unidade textual E5Q6

UNIDADE

TEXTUAL E5Q6

KÉCIO

Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre

etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você

define etnomatemática? O que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nesta questão, com o objetivo de conhecer a concepção de

etnomatemática que PP4 tem, inicio a pergunta com uma

contextualização do tema a partir das vivências de formação

acadêmica que sei que o entrevistado possui. Assim, direciono PP4

a emitir uma definição de etnomatemática a partir de referências

acadêmicas, uma vez que eu sei que PP4 é estudante universitário

em um curso de licenciatura, e que tem estudado referências

bibliográficas que tratam de etnomatemática.

PP4 Em cada grupo ou etnia, de acordo com as necessidades das

pessoas, acontecem diferentes matemáticas. Como existe a

174

matemática do europeu, nós indígenas temos também nossa

matemática.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Grupo, Etnia, Cotidiano, Diferença,

Indígena, Identidade

Disfóricas: Não-Indígena, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

Na concepção de etnomatemática enunciada por PP4, a categoria

semântica “diferença” se faz presente, fundamentando sua

definição a partir da oposição particularidade vs generalidade.

Assim, por um lado, para ele, etnomatemática é conhecimento

matemático que todos os grupos e etnias em geral possuem, sendo

resultado das necessidades das pessoas. Por outro lado, para PP4,

etnomatemática é a matemática particular que acontece de forma

diferente em cada grupo ou etnia. Há uma ênfase na enunciação de

PP4 em relação à diferença existente entre a matemática do

europeu e a matemática dos povos indígenas. Nesta ênfase, o uso

do termo “também” indica uma autoafirmação identitária, opondo-

se a uma perspectiva que considera a matemática como

conhecimento exclusivo de determinadas sociedades ou culturas,

particularmente a não-indígena.

DISCURSO

Etnomatemática é um conhecimento matemático presente em todos

os grupos ou etnias em geral, sendo particular e diferente em cada

caso, a exemplo da matemática dos povos indígenas que é diferente

da matemática do europeu.

Quadro 12 – Análise semiótica da unidade textual E4Q10

UNIDADE

TEXTUAL E4Q10

KÉCIO

Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre

etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você

define etnomatemática? O que é etnomatemática?

175

AUTOANÁLISE

Nesta questão, com o objetivo de conhecer a concepção de

etnomatemática de PP3, introduzo a pergunta a partir de uma

contextualização referente à experiência de formação do

entrevistado no curso de Licenciatura em Educação Básica

Intercultural da UNIR. Assim, direciono PP3 a emitir uma

definição de etnomatemática a partir de suas referências

acadêmicas, uma vez que eu sei que ele tem estudado referências

bibliográficas que tratam de etnomatemática.

PP3

Etnomatemática para mim é... cada povo tem sua matemática, tem

sua forma de contar, tem sua forma de medir. Então, para mim,

etnomatemática é a matemática do povo, é a matemática de cada

etnia, de cada povo que tem sua forma de contagem, sua forma de

medir, sua forma de conhecer outros tipos de contagem.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Povo, Etnia, Cultura, Conhecimento.

Disfórica: Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP3 apresenta uma concepção de etnomatemática

a partir da oposição particularidade vs generalidade. De forma

geral, etnomatemática é um conhecimento matemático que existe

em todos os povos e culturas. Assim, para PP3, em uma dimensão

geral, etnomatemática é a matemática que todos os povos ou etnias

possuem relacionada a formas de conhecer, de medir, de contar.

Por outro lado, a particularidade se faz presente na enunciação de

PP3 ao destacar a singularidade da matemática de cada povo ou

etnia. Verifica-se ao final da resposta de PP3 a indicação de que a

etnomatemática também contempla formas de conhecer o outro, no

sentido de ir além das formas de contar e medir de um povo em

particular.

DISCURSO

Etnomatemática é a matemática de povos ou etnias em geral e está

relacionada a formas particulares de contar, medir e conhecer de

cada povo ou etnia.

176

Quadro 13 – Análise semiótica da unidade textual E9Q14

UNIDADE

TEXTUAL E9Q14

KÉCIO E o que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP7 uma definição relacionada à

concepção que ele tem de etnomatemática. Nesse caso, não realizei

uma contextualização inicial que indicasse uma perspectiva diretiva

para a resposta do entrevistado (fazer persuasivo). Assim, PP7

ficou livre tanto para emitir uma resposta pessoal a partir de suas

concepções individuais, como para buscar elementos teóricos

resultantes de sua vivência no curso de formação de professores

indígenas do qual participa na universidade.

PP7

Etnomatemática são conhecimentos nossos próprios. Nós temos

nossos próprios conhecimentos, frente aos conhecimentos

ocidentais. Como eu estava falando, nós temos o número um, com

relação à nomenclatura dos números. Isso não é um nome, mas tem

um significado de cada número. Um é um, apenas um. Dois quer

dizer um par. Três, um par e meio, significa tudo isso. Isso é

conhecimento tradicional nosso. Nós temos nosso próprio

conhecimento, que seria etnomatemática. Nós temos nosso próprio

conhecimento sobre medida de espaço, de tempo. Tudo isso para

mim é etnomatemática.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Particularidade, Identidade, Tradição

Disfórica: Ocidente, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

PP7 inicia sua resposta destacando uma autoafirmação, no sentido

de que etnomatemática refere-se ao conhecimento tradicional

próprio que seu povo tem. Assim, a concepção de etnomatemática

enunciada por PP7 se dá a partir da oposição particularidade vs

generalidade, destacando que há diferenças entre os conhecimentos

particulares de seu povo e os conhecimentos ocidentais. Para

ressaltar essa diferença, o entrevistado destaca a existência de

177

termos numéricos e formas de medida do espaço e do tempo como

conhecimentos próprios de seu povo, que se distinguem dos

conhecimentos ocidentais. Assim, na resposta dada por PP7,

etnomatemática relaciona-se aos conhecimentos matemáticos

próprios de seu povo referentes a formas tradicionais de contagem

e de medida.

DISCURSO

Etnomatemática são conhecimentos matemáticos tradicionais e

particulares de um povo referentes a formas de contar e medir,

diferentes dos conhecimentos ocidentais.

Quadro 14 – Análise semiótica da unidade textual E8Q16

UNIDADE

TEXTUAL E8Q16

KÉCIO Vou citar um termo e gostaria que você dissesse o que significa

para você. O que você entende por etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, objetivo ouvir de PP6 uma definição de

etnomatemática, sem indicar onde a definição deve ser ancorada,

isto é, intento obter uma resposta do entrevistado em termos de

significados pessoais atribuídos a um termo. Assim, PP6 ficou livre

para emitir uma resposta particular, podendo tanto se basear em

concepções individuais, como buscar apoio em perspectivas

acadêmicas oportunizadas por sua vivência no curso de formação

de professores do qual participa na universidade.

PP6

Etnomatemática é onde a gente tem a nossa própria matemática,

dentro da nossa cultura. Porque no espaço e no tempo, a gente tem

etnomatemática, a gente tem nosso próprio conhecimento. No caso

da questão da medida, medida de espaço, a gente tem na nossa

própria cultura, a gente tem forma de medida através dos marcos.

Então, a medida do não-indígena é medida através da

quilometragem, pelo metro, centímetro, essas coisas. Então, a gente

tem nossas medidas através dos marcos, dos lugares. Como posso

dizer um quilômetro? Eu posso comparar um lugar, que tal lugar é

178

marcado um quilômetro, comparando um lugar. Posso falar: - Ah,

tal lugar, matei um porcão lá. Ah, posso dizer, daquele lugar, mais

para frente, tal lugar, coloquei um saco de castanha. Então, a gente

marca uma medida através de um lugar, do espaço de um lugar.

Então, na parte da medida mesmo, a gente pode usar muito na

construção de casas. No caso do metro, centímetro, a gente pode

usar muito na construção de casas. A gente usa pela quantidade de

pessoas que vai morar naquela casa. Então, a gente faz uma medida

certa através da quantidade de pessoas. A gente tem a presença de

figura geométrica nos artesanatos, que tem a presença das listas, as

figuras desenhadas nos artesanatos, como na cesta, na flecha, onde

a gente faz uma pena de uma arara, que a gente possa cortar

certinho, na medida, para colocar na flecha. Tem que colocar na

medida certinha da flecha, para que a flecha vá alcançar até o alvo.

Se não colocar certinho a medida certa daquela pena de uma ave,

ela não vai alcançar o alvo que a gente está querendo acertar. A

gente tem que trabalhar muito bem na parte de geometria por esta

questão.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Identidade, Interior, Uso, Cultura,

Conhecimento, Indígena, Tradição

Disfóricas: Não-Indígena, Exterior, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção de etnomatemática enunciada por PP6 estrutura-se a

partir da oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido,

ele define etnomatemática como sendo a matemática que está

dentro da cultura particular de seu povo, sendo diferente de um

conhecimento geral não-indígena. Assim, ele entende

etnomatemática como sendo um conhecimento matemático próprio

de seu povo, relacionado a formas de medir o espaço e o tempo e às

formas geométricas presentes no artesanato. O uso é uma categoria

que emerge da resposta de PP6 como elemento justificador da

existência de formas particulares de conhecimento, relacionadas a

179

fazeres específicos de seu povo, tais como construir uma maloca,

coletar castanha, caçar um porcão, produzir uma flecha, sendo

esses conhecimentos indicados na prática discursiva do

entrevistado como elementos de autoafirmação identitária.

DISCURSO

Etnomatemática é a matemática que está dentro da cultura

particular de um povo, sendo um conjunto de conhecimentos

diferentes dos conhecimentos gerais não-indígenas.

Quadro 15 – Análise semiótica da unidade textual E6Q3

UNIDADE

TEXTUAL E6Q3

KÉCIO

Dado esse seu ponto de vista a respeito da importância do projeto,

qual é a sua concepção hoje a respeito do que seja etnomatemática?

Como você define etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, parti inicialmente da alusão a um projeto de

extensão em andamento sobre saberes e fazeres matemáticos do

povo Paiter, do qual PP5 participava. Assim, solicitei a PP5 que

enunciasse uma definição de etnomatemática a partir da

importância que ele atribuía ao projeto, considerando também que

naquele momento (hoje) ele já possuía uma vivência na

universidade que lhe havia proporcionado estudar referências

bibliográficas sobre etnomatemática.

PP5

Dentro do meu conhecimento, também o que eu venho aprendendo

desde a minha formação inicial até agora, estou no processo de

finalização de minha primeira etapa de aprendizagem na minha

formação no ensino superior. Então, na minha concepção, o que eu

entendo de etnomatemática é que cada povo, cada grupo,

dependendo de onde for, tem o seu modo de pensar, o seu modo de

ver, de como calcular, de como multiplicar, de como quantificar, de

como medir. Então, tudo isso faz parte da etnomatemática de um

grupo. Estou falando apenas uma delas. E com certeza nós temos

esses conhecimentos dentro da nossa cultura do povo Paiter. Então,

180

eu citei alguns temas, algumas partes do que é etnomatemática.

Porque muitas vezes as pessoas não sabem identificar ainda quais

são os processos de etnomatemática dentro da sua cultura, e hoje eu

identifico um pouco dessas partes que eu citei.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Povo, Grupo, Identidade, Interior,

Cultura, Paiter, Conhecimento

Disfóricas: Generalidade, Exterior, Desconhecimento

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção de etnomatemática enunciada por PP5 estrutura-se a

partir da oposição particularidade vs generalidade. Em sua

concepção, etnomatemática é um conhecimento particular, nem

sempre identificado pelas pessoas, que está, em geral, no interior da

cultura de cada povo ou grupo. Assim, de forma geral,

etnomatemática são modos de pensar, ver, calcular, quantificar e

medir que os povos possuem. Fazendo referência a sua experiência

de formação acadêmica, PP5 destaca que atualmente (hoje)

consegue identificar processos de etnomatemática dentro de sua

cultura particular, que é a cultura do povo Paiter.

DISCURSO

Etnomatemática é um conhecimento, nem sempre identificado, que

está no interior da cultura de cada povo ou grupo em geral, relativo

a formas particulares de pensar, ver, calcular, quantificar e medir.

Quadro 16 – Análise semiótica da unidade textual E3Q3

UNIDADE

TEXTUAL E3Q3

KÉCIO

Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre

etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você

define etnomatemática? O que é etnomatemática?

AUTOANÁLISE

Nesta questão, antes de solicitar uma definição de etnomatemática

a PP2, introduzo a pergunta a partir de uma contextualização

referente à experiência de formação do entrevistado no curso de

181

Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Isso

direciona a resposta de PP2 para uma definição de etnomatemática

a partir de referências acadêmicas, considerando que ele participa

de um curso de formação de professores indígenas, no âmbito do

qual tem estudado referências bibliográficas que tratam de

etnomatemática.

PP2

Etnomatemática, pelo meu entender, pelo que eu andei pesquisando

antes de fazer o TCC... etnomatemática é um projeto que tem

dentro da cultura de cada um. Então, etnomatemática é o

conhecimento dos cálculos matemáticos que envolvem dentro da

cultura. Então, pelo que eu entendi sobre etnomatemática, ela é um

pouco de cada coisa dentro da cultura. Então, pelo meu entender,

etnomatemática já vem no dia-a-dia de cada comunidade, não só da

comunidade paiter, mas também em outras culturas. Por exemplo, o

povo Paiter Suruí tem etnomatemática em seus cálculos... seus

cálculos que eles fazem antes da construção, tem os cálculos das

mulheres na confecção, que fazem os cálculos de quantas peças vão

confeccionar, quantas palhas vão confeccionar a construção da

maloca, quantos metros deve medir. Então, tudo isso que o povo

Suruí usa, pelo meu entender, é etnomatemática. E dentro dessa

etnomatemática, nós também temos nossa matemática cultural.

Pelo meu pensamento sobre etnomatemática, onde estou tentando

pesquisar ainda... está sendo muito proveitoso. Então, quer dizer,

onde temos nossa numeração, nossos cálculos diante da matemática

da sociedade não-indígena. Então o uso no nosso dia-a-dia, a fala

no nosso dia-a-dia, e o modo de fazer no nosso dia-a-dia também

envolvem várias matemáticas. Então, eu acho que isso é uma

etnomatemática, é a descoberta de um novo conhecimento com

uma cultura diferente, que traz em si uma descoberta sobre vários

cálculos tradicionais sobre a cultura de um povo, inclusive no povo

Paiter também no qual a gente está tentando fazer essa pesquisa.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Interior, Cultura, Particularidade, Conhecimento,

Cotidiano, Identidade, Paiter, Indígena, Diferença

182

Disfóricas: Generalidade, Não-Indígena, Exterior

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção de etnomatemática enunciada por PP2 estrutura-se a

partir da oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido,

ele entende etnomatemática como conhecimentos matemáticos que

existem em geral no interior da cultura de cada povo em particular.

Assim, a generalidade está relacionada ao fato de que a

etnomatemática é um conhecimento presente em todas as culturas,

e a particularidade enfatiza a diferença desses conhecimentos entre

distintas culturas. A diferença é uma categoria utilizada por PP2

para destacar uma oposição entre conhecimentos de seu povo e

conhecimentos da sociedade não-indígena. PP2 destaca que, assim

como existem conhecimentos matemáticos na sociedade não-

indígena referentes a formas de medir e calcular, no interior da

cultura de seu povo existem também conhecimentos dessa natureza,

porém diferentes dos primeiros e diretamente relacionados a

fazeres cotidianos da comunidade, tais como construir uma maloca

e confeccionar artesanatos. A tais conhecimentos PP2 denomina

“matemática cultural”, demonstrando com isso conhecimento de

diferentes termos e expressões que permeiam a literatura referente à

etnomatemática na academia. Ao destacar etnomatemática como

conhecimentos matemáticos específicos de cada cultura, em

particular da cultura de seu povo, PP2 associa sua concepção a uma

autoafirmação identitária (por distinção), destacando que a

matemática da sociedade não-indígena é diferente da matemática

de seu povo.

DISCURSO

Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em

geral no interior da cultura particular de cada povo, relacionado ao

uso em fazeres cotidianos como construir, confeccionar, medir e

enumerar, sendo diferente entre o povo Paiter e a sociedade não-

indígena.

183

7.2 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização como deve ser o

ensino de matemática na escola da aldeia da categoria de análise etnomatemática

Quadro 17 – Análise semiótica da unidade textual E14Q22

UNIDADE

TEXTUAL E14Q22

KÉCIO Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de

sua comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, ao perguntar a PP10 como deve ser o ensino de

matemática na escola da comunidade, estou pressupondo a

existência da escola e o ensino de matemática nessa escola como

algo dado a priori, ou como algo necessário (dever ser) na

comunidade. Indico assim, com meu fazer persuasivo, uma

perspectiva para a resposta do entrevistado, sem especificar,

todavia, que “tipo” de matemática deve ser ensinado na escola.

PP10

Os dois tipos, né professor. A matemática que podemos estar

trabalhando em nossa escola, e na comunidade também, é a

matemática não-indígena, e da cultura também, trazendo os mais

velhos e experientes para a sala de aula, para estarem explicando e

a gente vai trabalhando conforme eles vão falando, e registrando

isso, sempre trabalhando encima disso.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Diferença, Tradição, Cultura, Experiência, Indígena,

Particularidade, Interior

Disfóricas: Escola, Não-Indígena, Generalidade, Exterior

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção enunciada por PP10 sobre como deve ser o ensino de

matemática na escola da comunidade baseia-se na oposição

particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele argumenta que

devem ser ensinados dois tipos de matemática, a não-indígena em

geral, e a da cultura de seu povo em particular. Para tanto, PP10

considera necessária a participação dos mais velhos de seu povo no

184

ensino de saberes da tradição.

DISCURSO

O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar tanto

os conhecimentos matemáticos não-indígenas em geral quanto os

conhecimentos matemáticos da cultura e da tradição do povo em

particular, sendo necessário para isso a participação dos mais

velhos.

Quadro 18 – Análise semiótica da unidade textual E11Q26

UNIDADE

TEXTUAL E11Q26

KÉCIO

Ainda a pouco, você falou de matemática e etnomatemática.

Voltando a esse assunto, como você acha que deve ser o ensino de

matemática na escola de sua comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, antes de enunciar a pergunta a PP9, menciono que

nas questões anteriores foram tratados dos temas “matemática” e

“etnomatemática”. Assim, ao iniciar a pergunta com a expressão

“voltando a esse assunto”, indico, com meu fazer persuasivo, ao

entrevistado uma perspectiva de resposta, qual seja aquela que

considera a existência de diferentes saberes e fazeres matemáticos

entre povos e culturas distintas.

PP9

O ensino de matemática deve ser... aplicar aquele conhecimento da

matemática daquele povo. Por quê? Porque os alunos, os alunos

mesmo, não conhecem aquela matemática do nosso povo mesmo.

Falta aquele... falta nós professores pesquisarmos, escrevermos e

aplicarmos na sala de aula, com os alunos. Como a gente tem muito

pouco esse conhecimento da matemática, a gente não aprofunda

muito isso aí. E falta muito esse... a matemática do povo Paiter,

para pesquisar e fazer um livro didático para os alunos. Porque a

matemática do povo Paiter... algumas não estão... não estão... como

eu posso dizer?... feito, não está... não foi pesquisado ainda. Está

isolado ainda. Dá para fazer pesquisa ainda. Então, a matemática

deveria aplicar... a etnomatemática deveria aplicar o conhecimento

185

daquele povo na sala de aula.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Povo, Particularidade, Cultura, Paiter,

Tradição, Interior

Disfóricas: Escola, Generalidade, Exterior

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta enunciada por PP9 baseia-se na oposição particularidade

vs generalidade. Nesse sentido, PP9 enfatiza a necessidade de se

ensinar na escola os conhecimentos matemáticos de seu povo em

particular. Embora não esteja presente textualmente a referência a

conhecimentos matemáticos externos à cultura de seu povo, o

entrevistado trata em sua enunciação do ensino de um

conhecimento particular na escola, que é um espaço geral e externo

à tradição de seu povo. Ao considerar que a matemática de seu

povo ainda está isolada, no sentido de não ter sido pesquisada e

apresentada em livro didático na escola, PP9 destaca a necessidade

de pesquisas sobre esses conhecimentos para sua aplicação em sala

de aula. Nesse sentido, na fala de PP9, a pesquisa destaca-se como

instância necessária para a relação entre escola (geral) e tradição

(particular) no espaço da comunidade.

DISCURSO

O ensino de matemática na escola da comunidade deve considerar

os conhecimentos matemáticos particulares do povo, sendo

necessária para isso a realização de pesquisas sobre conhecimentos

que ainda estão isolados na cultura e na tradição do povo.

Quadro 19 – Análise semiótica da unidade textual E13Q9

UNIDADE

TEXTUAL E13Q9

KÉCIO Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de

sua comunidade?

AUTOANÁLISE Nessa questão, ao enunciar a pergunta a PP4, indico, com meu

fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado, ao

186

pressupor em minha fala a existência da escola na comunidade e o

ensino de matemática nessa escola como algo dado a priori, ou

como algo necessário (dever ser).

PP4

Na minha comunidade, eu penso assim, que seria na língua

indígena... na matéria... e em português. Porque, lá na minha

comunidade, as crianças indígenas não entendem muito bem

português, porque é difícil eles saírem da aldeia, só quando eles vão

para a cidade. Por isso, eu penso assim, que deve ser ensinado a

partir da realidade da comunidade, como de costume... através da

realidade do aluno. Como no caso, se eu ensinar a matemática do

não-indígena na comunidade, claro que não vão saber. Tem que

começar da realidade dele.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Indígena, Interior, Tradição, Particularidade, Contexto

Disfóricas: Não-Indígena, Exterior, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta enunciada por PP4 baseia-se na oposição particularidade

vs generalidade. Nesse sentido, ao falar sobre como dever ser o

ensino de matemática na escola da aldeia, PP4 destaca as

particularidades que devem ser consideradas nesse ensino, tais

como a especificidade da língua de seu povo, o fato de que o

cotidiano específico da aldeia, onde vivem os estudantes, é

diferente do cotidiano urbano ou da sociedade não-indígena em

geral. Assim, PP4 problematiza o ensino de uma matemática não-

indígena (geral) descontextualizada da realidade e da tradição

(particular) dos alunos indígenas.

DISCURSO

O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar em

particular a tradição, a língua e a realidade dos estudantes

indígenas, que vivem em uma cultura específica, distinta daquela

da sociedade não-indígena.

187

7.3 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância de se

trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da categoria de análise

etnomatemática

Quadro 20 – Análise semiótica da unidade textual E1Q4

UNIDADE

TEXTUAL E1Q4

KÉCIO Qual é a importância hoje de se ensinar saberes e fazeres

matemáticos paiter na escola da comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, considerando a distinção estabelecida entre saberes

e fazeres matemáticos paiter e matemática escolar dada por PP1 na

resposta à questão anterior, manifestei com essa pergunta o

interesse em ouvir do entrevistado sua percepção a respeito da

importância de se ensinar esses saberes da tradição na escola. Os

termos “hoje” e “escola” direcionam PP1 a considerar em sua

resposta o contexto atual, no qual a escola já se faz presente na

comunidade e ainda não pratica em seu interior o ensino de saberes

e fazeres da tradição. A expressão “qual é a importância” presente

no início da pergunta que fiz a PP1 pressupõe que o ensino de

saberes e fazeres matemáticos paiter na escola “é importante”.

Nesse sentido, meu fazer persuasivo indica ao entrevistado uma

perspectiva de resposta relacionada à justificação dessa

importância, como um fato dado a priori.

PP1

Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de

suma importância, porque o conhecimento matemático que

conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do

Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje,

trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância

para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional,

conhecimento milenar que foi passado de geração em geração.

Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma

matemática não-indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até

188

para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos

etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior é até

mesmo de questão de identidade cultural paiter.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Povo, Paiter, Particularidade, Interno,

Tradição, História, Autoafirmação, Identidade, Cultura

Disfóricas: Não-Indígena, Externo, Generalidade, Europa, Pressão

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta dada por PP1 está baseada na oposição particularidade

vs generalidade. Nesse sentido, ele destaca que atualmente a

matemática ensinada na escola da aldeia é proveniente de um

contexto geral externo à cultura de seu povo, que não considera as

particularidades do conhecimento matemático interno à tradição de

sua cultura. Desse modo, PP1 entende que a escola, ao não ensinar

os saberes e fazeres matemáticos da tradição, exerce uma pressão

sobre a identidade cultural de seu povo. Para fazer frente a essa

pressão, PP1 destaca a importância de se ensinar os conhecimentos

matemáticos de seu povo na escola, como forma de revitalizar e

valorizar esses conhecimentos, para que eles não se percam e com

isso haja uma alteração na identidade cultural de seu povo. A

resposta do entrevistado indica sua percepção da relação entre

conhecimentos da tradição e identidade cultural. Desse modo, ele

destaca a importância de se ensinar saberes matemáticos da

tradição na escola, na atualidade (hoje), porque percebe que a

escola ainda ensina apenas a matemática europeia. A expressão

“matemática europeia” utilizada por PP1 indica seu conhecimento

de discussões de cunho acadêmico, proveniente possivelmente do

curso de formação de professores do qual participa. A ausência dos

saberes matemáticos da tradição na escola representa para o

entrevistado um risco de perda de identidade, de um afastamento da

tradição, resultante de uma pressão representada pelo atual

currículo escolar (programa do Estado). Assim, a importância de se

ensinar saberes matemáticos paiter na escola relaciona-se com a

189

possibilidade de resgate e revitalização de um modo específico de

pensar do povo paiter, construído historicamente antes da presença

da escola na aldeia, porém por ela desconsiderado na atualidade

(hoje). Observa-se a noção de povo como uma categoria semântica

fundamental na fala do entrevistado, a partir do qual ele elabora seu

discurso na construção de uma resposta à pergunta. Isto é, os

conhecimentos matemáticos da tradição não se autojustificam, de

modo que não são importantes por si sós, mas apenas na medida em

que são indicados como necessários à manutenção da identidade

cultural do povo Paiter.

DISCURSO

Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da

comunidade é importante para fazer frente à pressão exercida pelo

ensino da matemática europeia sobre a identidade cultural do povo.

Quadro 21 – Análise semiótica da unidade textual E5Q8

UNIDADE

TEXTUAL E5Q8

KÉCIO Qual a importância de se ensinar etnomatemática paiter na escola

da comunidade hoje?

AUTOANÁLISE

A expressão “qual é a importância” presente no início da pergunta

que fiz a PP4 pressupõe que o ensino de saberes e fazeres

matemáticos paiter na escola “é importante”, indicando assim ao

entrevistado uma perspectiva de resposta relacionada à justificação

dessa importância. Também insiro na pergunta um concepção de

etnomatemática como conjunto de saberes e fazeres passíveis de

serem ensinados na escola.

PP4

É importante para nós porque, como a nossa matemática tradicional

do povo Paiter... usávamos essa matemática. E quando não

registramos, vai se esquecendo, os mais jovens. Por isso é bom

registrar e aprender.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Tradição, Povo, Uso, Paiter, Interno

Disfóricas: Externo, Generalidade

190

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta dada por PP4 está baseada na oposição particularidade

vs generalidade. Assim, em sua prática discursiva, PP4 enfatiza a

particularidade da matemática tradicional de seu povo, o povo

Paiter. A categoria “uso” emerge da fala do entrevistado como

justificativa para o ensino da matemática tradicional de seu povo,

destacando o risco do esquecimento dessa matemática pelas novas

gerações, caso não seja registrada e aprendida pelos jovens.

DISCURSO

Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da

comunidade é importante para que as novas gerações do povo

Paiter não se esqueçam de como esses saberes e fazeres particulares

do povo eram tradicionalmente usados.

Quadro 22 – Análise semiótica da unidade textual E13Q1

UNIDADE

TEXTUAL E13Q1

KÉCIO

PP4, na entrevista anterior, você disse que o povo Paiter usava uma

matemática tradicional, e que se não registrar essa matemática, ela

será esquecida, e que por isso seria bom registrar e aprender esses

conhecimentos tradicionais. Você poderia explicar por que esses

conhecimentos deveriam ser preservados e ensinados às novas

gerações?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, com o interesse verificar mais detalhadamente um

possível vínculo entre educação escolar e identidade cultural,

associo a pergunta a outra questão de uma entrevista anterior, na

qual havia interrogado PP4 sobre a importância do ensino de

saberes e fazeres paiter na escola. A temática é retomada nessa

nova entrevista, no intuito de verificar mais especificamente a

relação que PP4 estabelece entre o ensino de saberes e fazeres

tradicionais e a identidade das novas gerações. Assim, a expressão

“às novas gerações” presente em minha fala direciona (enquanto

191

um fazer persuasivo) a resposta do entrevistado para uma possível

relação entre o ensino de saberes e fazeres da tradição e a

identidade cultural das novas gerações.

PP4

Porque, hoje, estamos tendo muitos cruzamentos de indígena e não-

indígena. Como nós usávamos aquela matemática anterior... a gente

está na escola aprendendo a matemática não-indígena. Por isso a

gente está deixando de lado a que antes nós usávamos. Por isso.

Porque, hoje em dia, os jovens mais usam é a matemática... como

que fala?... europeu... é a que mais domina hoje.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Identidade, Indígena, Tradição, Uso

Disfóricas: Não-Indígena, Abandono, Europa, Dominação

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-indígena

ANÁLISE

A resposta de PP4 está baseada na oposição indígena vs não-

indígena. Em sua prática discursiva, o entrevistado menciona a

dominação de uma matemática europeia não-indígena sobre uma

matemática indígena que era usada tradicionalmente por seu povo

antes do processo de colonização a que foi submetido. Nessa

relação de poder estabelecida pela interação entre os distintos

saberes, PP4 destaca que as novas gerações estão abandonando os

saberes da tradição e adotando outros saberes, provenientes da

cultura do colonizador europeu, e ensinados na escola. Verifica-se

assim na fala de PP4 uma preocupação com a manutenção dos

saberes e fazeres matemáticos indígenas paiter para fazer frente a

um quadro de mudanças culturais e de identidades provocadas

pelas relações de poder presentes na escola e advindas do processo

de dominação após o contato com o colonizador não-indígena.

DISCURSO

Os conhecimentos matemáticos paiter devem ser preservados e

ensinados às novas gerações para fazer frente às mudanças

culturais, às alterações de identidades e à dominação cultural que o

ensino de matemática não-indígena na escola representa.

192

Quadro 23 – Análise semiótica da unidade textual E9Q15

UNIDADE

TEXTUAL E9Q15

KÉCIO Qual a importância da escola ensinar, além dos saberes não

indígenas, esses saberes matemáticos da cultura paiter?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, está presente em minha fala a pressuposição de que

existem saberes matemáticos na cultura do povo Paiter e que esses

saberes são passíveis de serem ensinados na escola. Desse modo,

direciono a resposta do entrevistado apenas para a justificativa

desse ensino, considerando a existência dos saberes e a

possiblidade de seu ensino na escola como algo já dado. Também

se faz presente em minha fala, ao enunciar a pergunta, uma

oposição entre saberes indígenas e saberes não-indígenas,

indicando assim, com meu fazer persuasivo, uma perspectiva de

resposta ao entrevistado.

PP7

Além da matemática não-indígena, nós, povo Paiter, precisamos

dos conhecimentos nossos mesmo, para prevalecer nosso

conhecimento, para ficar como registro da memória, para as

gerações não esquecerem da história da nossa contagem, história da

nossa matemática tradicional.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Identidade, Indígena, Povo, Paiter, Conhecimento,

Particularidade, História, Tradição

Disfóricas: Não-Indígena, Esquecimento, Mudança

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A resposta enunciada por PP7 baseia-se na oposição indígena vs

não-indígena. Assim, ele estabelece uma distinção entre a

matemática de seu povo, considerada como uma matemática

tradicional, que tem sua história particular presente na memória, e a

matemática não-indígena relacionada a mudanças e esquecimento

da tradição. A partir dessa oposição, PP7 enfatiza a necessidade

que seu povo tem de manter e fazer prevalecer seus próprios

conhecimentos, enquanto povo Paiter, que tem uma identidade

193

própria, cuja existência é posta em risco pela possibilidade de

esquecimento de sua própria história pelas novas gerações.

Verifica-se que, para PP7, o ensino de saberes matemáticos paiter

na escola é importante para contribuir com a manutenção da

história e da identidade cultural de seu povo.

DISCURSO

O ensino de saberes matemáticos paiter na escola, como saberes

distintos da matemática não-indígena, é importante para contribuir

com a manutenção da cultura e da identidade cultural do povo.

Quadro 24 – Análise semiótica da unidade textual E8Q17

UNIDADE

TEXTUAL E8Q17

KÉCIO

Você está falando de vários saberes matemáticos presentes na

cultura. Minha pergunta agora é: Qual é sua opinião quanto a se

trabalhar também com esses saberes matemáticos na escola da

aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, considerando a fala de PP6 em resposta a questões

anteriores, nas quais eles menciona a existência de saberes

matemáticos da cultura de seu povo, pergunto então a ele sobre sua

opinião a respeito do ensino desses saberes na escola. O termo

“também” presente em minha fala indica que outros saberes já são

trabalhados na escola, oferecendo assim, com meu fazer

persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado, que

poderia partir de uma distinção entre os saberes próprios de sua

cultura e aqueles presentes na escola da aldeia e externos à cultura

de seu povo.

PP6

Seria muito bom trabalhar em cima desses materiais, porque, eu,

como jovem, muito jovem mesmo, eu queria tanto aprender, para

trabalhar com meus alunos. Mas a questão é que hoje em dia, a

gente tem poucos materiais. Então, quem pode me ensinar sobre

isso seria os mais velhos. Então, a gente precisa dos mais velhos

para trazer esses conhecimentos para dentro da sala. Para que as

194

crianças possam aprender. Então, na minha opinião, eu queria

muito aprender a praticar, colocar em prática essas atividades,

porque a teoria eu posso explicar muito bem para as crianças, mas a

prática eu não sei muito bem. Então, por isso eu queria tanto a

presença dos mais velhos para colocar em prática esses

conhecimentos com os alunos.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Atualidade, Experiência, Tradição, Cotidiano,

Conhecimento, Prática, Presença

Disfóricas: Inexperiência, Mudança, Teoria, Ausência, Escola,

Modernidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência

ANÁLISE

A resposta de PP6 está baseada na oposição experiência vs

inexperiência. Nesse sentido, ele destaca que as novas gerações de

jovens e crianças de seu povo são inexperientes em relação aos

saberes da tradição. Por isso, seria importante, para superar essa

inexperiência, levar para o interior da sala de aula os saberes

matemáticos da cultura de seu povo, sendo para tanto necessária a

presença dos mais velhos, que são os membros da comunidade que

detêm a experiência, não só em teoria, mas também na prática. PP6

destaca a diferença entre as dimensões teóricas e práticas da

educação escolar, associando a primeira ao seu próprio fazer

enquanto professor, porém inexperiente em relação aos saberes

matemáticos paiter, e a segunda ao fazer dos velhos e experientes.

Verifica-se assim que PP6 concebe o ensino de saberes

matemáticos de seu povo a partir do espaço escolar, porém

associado à tradição representada pela presença dos sabedores mais

velhos.

DISCURSO

Trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da aldeia é

importante para superar a inexperiência das novas gerações em

relação aos conhecimentos práticos e teóricos da tradição do povo,

sendo fundamental para isso a presença dos mais velhos e

experientes na sala de aula.

195

Quadro 25 – Análise semiótica da unidade textual E3Q5

UNIDADE

TEXTUAL E3Q5

KÉCIO Qual é a importância de se ensinar saberes e fazeres matemáticos

paiter em sala de aula?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, ao destacar na pergunta que fiz a PP2 a

“importância” do ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter,

estou partindo do pressuposto de que estes saberes e fazeres são

passíveis de serem ensinados na escola, sendo esse um aspecto

implícito em minha própria concepção enquanto pesquisador.

Nesse sentido, induzo o sujeito, como meu fazer persuasivo, a focar

sua resposta na justificativa da importância de tal ensino,

considerado já a priori em minha fala como possível de acontecer.

PP2

No meu ponto de vista, como professor indígena dentro da minha

comunidade, é um grande benefício para os meus alunos, até tanto

para mim quanto para meus alunos também, porque a partir do

momento que eu comecei a me envolver com a etnomatemática na

universidade, isso fez eu adquirir um grande conhecimento sobre a

minha cultura mesmo. Então, isso me fez sentir que isso tem um

grande benefício para mim, e pode trazer também para os meus

alunos, e até dentro da cultura, da comunidade também. Isso me fez

pensar em participar desse projeto, para poder transmitir isso para

os meus alunos, para eles terem conhecimento da própria cultura,

porque se a pessoa não tem conhecimento da própria cultura, ele

não dá valor a sua cultura. Então, a partir do momento que ele vai

pegar sobre o conhecimento da etnomatemática da própria cultura,

então ele vai saber dar valor sobre o que está sendo feito dentro da

comunidade, como arco, a confecção de anéis, a confecção de

balaios. Então, a partir desse momento, ele vai entender que aquilo

tem um significado muito grande para eles, não só o cálculo da

cultura não-indígena, mas também tem a sua própria cultura, os

seus cálculos, os modos do dia-a-dia da sua cultura. Então isso vai

fazer com que ele goste daquilo que está fazendo, e não tenha

196

vergonha daquilo que faz. Então, eu, para trabalhar com meus

alunos, primeiramente eu vejo assim mais a minha cultura, para

depois eu repassar esse valor para eles em forma da

etnomatemática, ou seja, de outra forma que eles gostem da própria

cultura. Porque se eles não conhecerem a própria cultura, gostarem

da própria cultura, como é vão dar valor à própria cultura? Então,

para mim, eu defendo essa metodologia por eu entender que tem

uma grande importância para mim e para meus alunos e para minha

comunidade.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Interior, Indígena, Particularidade, Conhecimento,

Cultura, Identidade, Cotidiano, Etnomatemática

Disfóricas: Exterior, Não-indígena, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta de PP2 está baseada na oposição particularidade vs

generalidade. Nesse sentido, ele considera importante o ensino de

saberes e fazeres matemáticos de seu povo na escola como forma

de proporcionar aos seus alunos o conhecimento e a valorização de

sua própria cultura em particular, em oposição à generalidade dos

saberes matemáticos não-indígenas. PP2 concebe a etnomatemática

e o ensino de saberes matemáticos de seu povo como instâncias de

valorização identitária, no sentido de levar os alunos a valorizarem

sua própria cultura e superarem os preconceitos existentes quanto à

sua condição particular de ser indígena, representados na fala do

entrevistado pela categoria “vergonha”. A oposição interior vs

exterior permeia a fala de PP2, ao destacar que o ensino de saberes

matemáticos de seu povo deve voltar-se para o fazer cotidiano que

se passa no interior da comunidade, frente ao exterior não-indígena

representado pelo ensino de saberes matemáticos de uma cultura

geral não-indígena.

DISCURSO

Ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter em sala de aula é

importante para que os alunos conheçam e valorizem sua própria

cultura em particular e com isso reafirmem sua identidade cultural

197

e superem os preconceitos advindos da relação com a sociedade

não-indígena em geral.

7.4 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de

educação da categoria de análise educação escolar indígena

Quadro 26 – Análise semiótica da unidade textual E2Q6

UNIDADE

TEXTUAL E2Q6

KÉCIO O que é educação?

AUTOANÁLISE

Fiz essa pergunta ao PP1 com o intuito de ouvir sua concepção de

educação, sem indicar uma perspectiva acadêmica, cultural ou

tradicional onde a resposta do entrevistado pudesse se ancorar.

Assim, PP1 ficou livre para responder de acordo com sua

concepção pessoal, na perspectiva da tradição de seu povo, ou

ainda na perspectiva acadêmica, uma vez que ele é estudante em

um curso de licenciatura.

PP1

Educação para mim... hoje eu vejo que... educação é eu ter um

rumo de vida, quer dizer, eu tornar... educação para mim é eu

seguir um rumo de acordo com o que é minha identidade, de acordo

com o que é paiter, e também é o que eu penso no futuro, como

paiter, como que eu vou ser paiter no futuro. Então, educação para

mim hoje é direcionar a minha vida, direcionar a vida da minha

comunidade como educador, para que eu consiga ser paiter no

futuro, mesmo com essa pressão, e que eu garanta minha

identidade. Então, educação para mim é nada mais do que adquirir

o conhecimento para que eu torne, eu pegue, eu siga um rumo para

alcançar, não só agora, mas no futuro, continuar sendo paiter. Quer

dizer, é um caminho que vou seguir ao longo da minha vida para

ser paiter. Ou eu posso seguir um caminho, um rumo, me perder no

198

meio, vamos dizer... e eu não consigo no futuro ser paiter. Então,

educação para mim é o que? É você fazer o seu rumo, seguir o que

é... seguir a sua visão de mundo, de futuro, por meio da educação.

Então, educação é o caminho para mim. Educação não é ensinar um

conhecimento, educação para mim é eu ter um rumo de acordo com

o que é minha visão de futuro, de acordo com o conhecimento que

eu tenho como paiter. Essa é minha visão com educação.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Identidade, Particularidade, Paiter, Comunidade,

Tradição, Conhecimento.

Disfóricas: Perda, Mudança, Generalidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção de educação que PP1 expõe está baseada na oposição

particularidade vs generaliade. Nesse sentido, ele define educação

como um caminho que pode conduzi-lo para um futuro no qual ele

continue a ser paiter, mantendo sua identidade no interior da

tradição particular de seu povo, como pode também conduzi-lo

para fora dessa tradição, transformando sua identidade, em razão de

pressões provenientes das relações interculturais que seu povo

estabelece com outros povos em geral na atualidade e no futuro.

PP1 estabelece uma relação entre educação e visão de mundo de

acordo com o conhecimento que ele tem do que é ser paiter.

Verifica-se que o entrevistado estabelece uma estreita relação entre

educação e identidade, tomando como referência sempre a

identidade que ele possui como membro de um povo indígena

particular, o povo Paiter. Assim, PP1 atribui à educação uma

característica processual, vinculada à cultura, associada a uma

perspectiva não essencialista de identidade, visto que esta pode ser

alterada em função dos rumos e dos caminhos tomados ao longo da

vida. Destaca-se a dimensão pessoal das decisões, escolhas e

direções a seguir ao longo da vida expressas na concepção de

educação de PP1. Essa perspectiva é característica do universo

cultural paiter, no qual o indivíduo, seja ele criança ou não, mantém

199

uma certa autonomia nos processos de ensino-aprendizagem, e,

portanto, de educação.

DISCURSO

Educação é um processo orientado por conhecimentos vinculados a

uma tradição no interior de uma cultura particular ou por pressões

advindas do exterior geral de uma cultura, que pode manter ou

alterar a identidade cultural das pessoas.

Quadro 27 – Análise semiótica da unidade textual E14Q12

UNIDADE

TEXTUAL E14Q12

KÉCIO Considerando sua experiência e sua formação, como você define

educação? O que é educação?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, mencionei as categorias “experiência” e “formação”

antes de solicitar uma definição de educação a PP10. Desse modo,

indiquei ao entrevistado duas possíveis âncoras para sua resposta,

podendo ele partir tanto de sua vivência e experiência enquanto

professor, quanto de sua vivência e experiência acadêmica no curso

de licenciatura do qual participa como estudante.

PP10

Educação, principalmente para o povo, não só para o povo Paiter,

pode estar relacionada dentro da cultura de cada povo. Então, cada

povo leva sua educação dentro das possibilidades que eles têm

dentro das comunidades. Para nós Paiter, na educação está inserido

o respeito dentro da comunidade, uns aos outros... as crianças vêm

aprendendo com as pessoas idosas, como cantar, fazer artesanato,

falar direito. Então, tudo isso para nós é educação dentro da

comunidade. Agora, hoje, depois do contato com não-indígena, a

gente sabe que educação também é escrita... a gente aprende a ler,

escrever, fazer conta... isso leva a gente a conhecer mais adiante...

por exemplo, nós estamos aqui sentados, mas se a gente quer saber

hoje, agorinha mesmo, o que está acontecendo lá em outro estado,

outro país, é só a gente entrar na Internet agora e ver, com se nós

estivéssemos vendo pessoalmente lá. Então, tudo isso é educação, é

200

o que a gente vem aprendendo.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Povo, Paiter, Particularidade, Interior, Identidade,

Comunidade, Tradição

Disfóricas: Contato, Mudança, Não-indígena, Exterior,

Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A concepção de educação enunciada por PP10 baseia-se na

oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele destaca

que, no interior da cultura particular de cada povo indígena, a

educação reproduz tradições entre diferentes gerações. No plano

geral e exterior, a educação insere na cultura elementos novos, o

que, no caso de povos indígenas, significou a introdução da escrita

e da matemática escolar após o contato, passando esses elementos

culturais gerais não-indígenas a serem reproduzidos no interior das

sociedades indígenas na atualidade em função das relações

interculturais estabelecidas.

DISCURSO

Educação é um processo de reprodução de tradições particulares de

cada povo indígena e também de inclusão de elementos culturais

não-indígenas gerais no interior da cultura de cada povo.

Quadro 28 – Análise semiótica da unidade textual E11Q15

UNIDADE

TEXTUAL E11Q15

KÉCIO Considerando sua experiência e sua formação, como você define

educação? O que é educação?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, a solicitação de uma definição de educação a ser

dada por PP9 foi precedida pela menção às categorias

“experiência” e “formação”. Isto indicou um direcionamento à

resposta do entrevistado que poderia enunciar sua concepção de

educação tanto a partir de suas experiências de vida e profissionais,

quanto a partir das referências acadêmicas que tem vivenciado no

201

curso de licenciatura na universidade.

PP9

Eu vejo a educação assim... a gente não só aprende na escola. A

gente aprende também na sociedade. Através da convivência com a

sociedade, a gente aprende muitas coisas também. E a gente

também tem... aprende também na escola... como... a gente aprende

aquele conteúdo que é lecionado para dar para os alunos, ensinar

para os alunos. A gente aprende isso lá. Agora, aquela experiência

de vida mesmo a gente aprende na sociedade. Isso é educação para

mim.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Aprendizagem, Cotidiano, Tradição, Convivência

Disfóricas: Escolarização

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

ANÁLISE

A concepção de educação enunciada por PP9 estrutura-se a partir

da oposição tradição vs escolarização. Assim, ele concebe

educação tanto como um processo pelo qual se aprende conteúdos

na escola, quanto como o processo que proporciona outros

aprendizados no interior de uma sociedade. Verifica-se que PP9

atribui a este segundo processo, o da convivência em sociedade,

fora da escola, a instância em que ocorre a educação para a vida.

Nesse sentido, a concepção de PP9 atribui à educação vinculada à

tradição uma importância maior, mais completa, em relação à

educação que ocorre por meio do processo de escolarização, ao

sustentar que esta última não contribui diretamente para uma

experiência de vida necessária à convivência em sociedade.

DISCURSO

Educação é um processo vinculado à tradição e também à escola,

que proporciona o aprendizado de experiências de vida no convívio

em sociedade e o aprendizado de conteúdos específicos na escola.

Quadro 29 – Análise semiótica da unidade textual E4Q9

UNIDADE

TEXTUAL E4Q9

202

KÉCIO O que é educação?

AUTOANÁLISE

Nessa pergunta dirigida ao PP3 com o intuito de conhecer sua

concepção de educação, não indiquei previamente uma perspectiva

para sua resposta, podendo ela se dar com base na tradição de seu

povo, em suas experiências profissionais ou em suas vivências no

curso de licenciatura do qual participa como estudante na

universidade.

PP3

A educação é um saber, é um conhecimento que os pais passam

para os filhos. São os conhecimentos... porque a educação não é só

na escola, a educação começa em casa. Geralmente os pais falam

da sua história, como deve ser respeitado o próximo, como é que

pode cumprimentar o próximo, como é que deve receber a pessoa

que visita eles. Então, a educação se inicia a partir de casa, mas

educação a gente também aprende na escola, tem muitos

conhecimentos que a gente não aprende em casa, mas aprende na

escola. A educação é o que aprende na escola ou em casa.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Tradição, Valores

Disfórica: Escolarização

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

ANÁLISE

A concepção de educação enunciada por PP3 baseia-se na oposição

tradição vs escolarização. Nesse sentido, ele concebe que educação

é um conhecimento que tem início no âmbito da tradição (casa), no

interior da qual se aprendem procedimentos, valores e a história do

povo, e é complementado no interior da escola, onde se aprendem

conhecimentos que não são proporcionados pela tradição. Essa

dualidade casa-escola presente na concepção exposta por PP9

aproxima-se de uma perspectiva intercultural de educação, pois

considera elementos que são oriundos de sua tradição, a casa (aqui

revestida de significados próprios da cultura de seu povo, como a

história, os costumes e valores sociais), e de um espaço até

recentemente inexistente em sua sociedade, a escola, considerada

em sua resposta como espaço em que se aprendem conhecimentos

203

inexistentes na tradição.

DISCURSO

Educação é um processo pelo qual os conhecimentos da tradição

são reproduzidos, sendo também o aprendizado resultante do

processo de escolarização.

Quadro 30 – Análise semiótica da unidade textual E9Q8

UNIDADE

TEXTUAL E9Q8

KÉCIO Considerando sua experiência como professor e sua formação,

como você define educação? O que é educação para você?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, a pergunta a PP7 foi precedida pela menção às

categorias “experiência” e “formação”, direcionando a resposta do

entrevistado para suas experiências profissionais e referências

acadêmicas no âmbito do curso de licenciatura na universidade do

qual participa como estudante. Assim, com meu fazer persuasivo,

dou mais ênfase para aspectos distintos dos conhecimentos que o

entrevistado tem a respeito de suas próprias tradições e de sua

própria cultura. Revela-se assim em minha fala um tendência,

enquanto pesquisador, de colar em primeiro plano sempre minhas

próprias referências acadêmicas e profissionais, frente aos

conhecimentos tradicionais dos outros, nesse caso de PP7.

PP7

Eu, como professor, entendo que educação... bem antes a gente

educava os filhos, assim como meu pai falou assim para mim que

tínhamos a educação tradicional, e hoje nós temos outra educação,

a escolar, da educação escolar. E bem antes do contato, nós

usávamos a educação tradicional. Mas como isso acontecia?

Diariamente os pais educavam os filhos: - Esse aqui é seu parente,

você não pode fazer isso para ele. Então, tudo o que era de bom

com relação à família, o pai orientava o filho. Mas hoje, a educação

escolar já é outra visão para nós, já é uma outra visão. Então,

educação escolar é tudo o que a gente enfrenta da educação dentro

da escola não-indígena. Isto eu entendo sobre educação.

204

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Costume, Particularidade, Indígena

Disfóricas: Escolarização, Colonização, Mudança, Não-indígena,

Enfrentamento

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

ANÁLISE

A concepção de educação enunciada por PP7 baseia-se na oposição

tradição vs escolarização. Nesse sentido, ele concebe educação em

duas perspectivas distintas, sendo uma a da educação tradicional, e

outra a da educação escolar. PP7 caracteriza a primeira como os

processos pelos quais os pais educavam os filhos no âmbito da

família no período anterior ao contato, e a segunda como aquela

introduzida pela escola com o advento do contato. Destaca-se na

prática discursiva do entrevistado a dicotomização entre as

diferentes visões características de cada tipo de educação,

ressaltando-se que a visão da educação escolar é diferente da visão

que se tinha na educação tradicional. Gamolonô expõe assim uma

consciência de que a colonização imposta a seu povo e a introdução

da escola após o contato alterou os processos tradicionais de

reprodução da cultura, inserindo-se nesse processo perspectivas e

valores não-indígenas. A categoria “enfrentamento” emerge de sua

fala como consequência das transformações e mudanças de

perspectivas introduzidas pela escola em sua sobreposição em

relação à tradição e à família.

DISCURSO

Educação é tanto o processo pelo qual, no interior da tradição, os

conhecimentos e valores são reproduzidos, quanto o processo de

alteração da cultura introduzido pela colonização e enfrentado pelo

povo no interior da escola.

Quadro 31 – Análise semiótica da unidade textual E7Q5

UNIDADE

TEXTUAL E7Q5

KÉCIO Na sua concepção, o que é educação?

205

AUTOANÁLISE

Nessa questão, vinculo a pergunta à concepção pessoal que PP6

tem sobre educação, não restringindo a resposta do entrevistado a

perspectivas específicas, tais como aquelas oriundas de

experiências profissionais ou acadêmicas. Todavia, considero que a

minha própria presença, enquanto pesquisador não-indígena, e a

relação professor-aluno que mantenho com o entrevistado

ocasionam um fazer persuasivo que indica a PP6 uma perspectiva

acadêmica a partir da qual pode enunciar uma resposta à questão.

PP6

Educação é ensinar a criança para dar os primeiros passos, para ela

saber... educação é a criança aprender a ler e escrever, respeitar os

mais velhos, e aprender a realidade da comunidade. É aprender a

organização dentro e fora da comunidade. Porque a educação vem

trazendo muita coisa, aquilo que se pode aprender.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Ensino, Iniciação, Tradição, Aprendizagem, Realidade,

Comunidade, Interior, Particularidade.

Disfóricas: Exterior, Escolarização, Generalidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Interior vs Exterior

ANÁLISE

A concepção de educação enunciada por PP6 baseia-se na oposição

interior vs exterior. Desse modo, ele define educação como o

ensino de procedimentos tais como ler e escrever, característicos da

sociedade não-indígena e originariamente externos à sua

comunidade, ao mesmo tempo em que considera que educação

também é a iniciação nos valores tradicionais e no conhecimento da

realidade interna de sua comunidade. Nesse sentido, enquanto, de

um lado, “ler” e “escrever” estão associados na fala de PP6 a

educação promovida pela escolarização, por outro lado, “velhos”

representa o aspecto da educação relacionado à tradição e à

realidade da comunidade. PP6 expressa assim uma concepção de

educação que se aproxima de uma perspectiva intercultural ao

considerar processos e procedimentos oriundos tanto do interior

quanto do exterior de sua comunidade e de sua cultura.

DISCURSO Educação é um aprendizado de procedimentos e valores internos à

206

cultura e à tradição de uma comunidade indígena, assim como é o

aprendizado de procedimentos não-indígenas tais como ler e

escrever, provenientes de um meio externo e promovidos pela

escolarização.

7.5 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de

escola da categoria de análise educação escolar indígena

Quadro 32 – Análise semiótica da unidade textual E2Q1

UNIDADE

TEXTUAL E2Q1

KÉCIO PP1, na sua concepção, o que é uma escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, solicito a PP1 que enuncie sua concepção de escola,

sem indicar uma perspectiva específica que oriente sua resposta, tal

como a cultural, a política, a pedagógica ou a arquitetônica. O uso

do artigo indefinido “uma” também contribui para a livre resposta

do entrevistado no sentido de não ter que se ater a um conceito ou a

uma definição restrita de escola.

PP1

Para mim, a escola é o espaço onde se ensina um conhecimento já

trabalhado, conhecimento que já foi sistematizado. Para mim a

escola é aquela estrutura física para ensinar algo, algum conteúdo,

algum conhecimento... Para mim a escola é isso. Na minha

concepção a escola é... escola indígena, ou seja, um espaço onde se

ensina para indígena, não o conhecimento indígena, mas onde se

ensina o conhecimento para indígena. Então, na minha concepção

hoje, para mim a escola é isso. Mas que para mim não tem nada a

ver com a realidade, com a visão de mundo indígena, pelo menos

paiter.

CATEGORIAS Eufóricas: Indígena, Tradição, Interior, Identidade, Paiter

207

SEMÂNTICAS Disfóricas: Não-indígena, Escolarização, Negação, Colonização,

Exterior

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A concepção de escola enunciada por PP1 baseia-se na oposição

indígena vs não-indígena. Nesse sentido, ele define escola como

um espaço ou estrutura física onde se ensina para indígenas

conhecimentos não-indígenas. Em sua definição, PP1 destaca a

diferença existente entre a visão de mundo da escola e a visão de

mundo indígena, ressaltando que a escola é um elemento estranho e

nada tem a ver com a realidade ou com a identidade de seu povo. A

resposta de PP1 associa-se a uma visão crítica da escola, como

espaço colonizador que foi estabelecido entre os povos indígenas

após o contato com a sociedade não-indígena, promovendo,

juntamente com outros espaços, a mudança de visão de mundo

existente em distintas culturas indígenas.

DISCURSO

Escola é um espaço onde se ensina para indígenas conhecimentos

não-indígenas que nada têm a ver com a identidade e a visão de

mundo indígena.

Quadro 33 – Análise semiótica da unidade textual E14Q13

UNIDADE

TEXTUAL E14Q13

KÉCIO E o que é escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, fiz uma pergunta genérica a PP10, esperando

receber uma resposta na qual pudesse perceber sua concepção de

escola, sem indicar previamente uma perspectiva que pudesse

orientar sua resposta. A conjunção “e” que inicia a pergunta indica

que a questão foi realizada na sequência de outras questões que

compuseram a entrevista.

PP10 Escola é um ensinamento que a gente tem, que recebe dos pais, dos

mais velhos também. A escola não é só um lugar de estudar. Escola

208

não é uma construção. Escola está dentro de um povo. Nós estamos

aqui trocando ideias... talvez você vai aprender uma coisa comigo

agora que nem esperava que eu falasse. Então pra mim isso é uma

escola. Se a gente estiver andando e conversando, e trocando uma

ideia, e você aprender uma palavra nova naquele lugar, ou uma

experiência nova naquele lugar... é uma escola. Então, para o

indígena, onde ele está conversando, trocando ideias, aprendendo, é

uma escola.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Tradição, Experiência, Interior, Povo,

Indígena.

Disfóricas: Generalidade, Limitação, Não-Indígena, Exterior

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Generalidade vs Particularidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP10 enuncia uma concepção de escola baseada

na oposição generalidade vs particularidade. Ele define escola

como toda situação em geral que oportuniza aprendizagens,

ensinamentos, troca de ideias no interior de um povo. Ele opõe uma

concepção indígena generalista à perspectiva particularista não-

indígena que concebe escola apenas como uma construção, um

espaço físico, delimitado como um lugar de se estudar. Desse

modo, verifica-se que a concepção de escola apresentada por PP10

está relacionada a características do contexto cultural de seu povo

cuja história só passou a registrar recentemente a presença de

escola como um espaço físico e delimitado com a finalidade de

ensinar.

DISCURSO

Escola é toda situação social em geral que oportuniza

aprendizagens, ensinamentos, troca de ideias no interior de um

povo, para além do espaço restrito e particular de uma construção

física.

Quadro 34 – Análise semiótica da unidade textual E11Q16

UNIDADE

TEXTUAL E11Q16

209

KÉCIO O que é escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, formulei uma pergunta sobre escola de forma

genérica a PP9, sem indicar-lhe uma perspectiva específica

(cultural, pedagógica, política) a qual sua resposta pudesse ser

dirigida. Assim, ele ficou livre para enunciar uma concepção de

escola desde uma perspectiva pessoal ou com base em referências

acadêmicas proporcionadas pelo curso de formação de professores

indígenas do qual participa como estudante.

PP9

Escola é um espaço que a gente... que ensina ao aluno aquilo que

estou falando, aqueles conteúdos... ensinar conteúdos para aquelas

disciplinas. No caso, assim, disciplinas de Português, Matemática...

aquelas matérias.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Currículo, Disciplinarização,

Formalidade.

Disfórica: Informalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Formalidade vs Informalidade

ANÁLISE

A concepção de escola enunciada por PP9 baseia-se na oposição

formalidade vs informalidade. Nesse sentido, ele apresenta uma

definição de escola como um espaço formal, restrito e específico,

no qual se ensinam conteúdos também específicos de forma

disciplinar. Essa concepção de escola apresentada pelo entrevistado

relaciona-se com a natureza dos espaços escolares historicamente

impostos em contextos indígenas.

DISCURSO Escola é um espaço formal onde se ensinam conteúdos específicos

de forma disciplinar.

Quadro 35 – Análise semiótica da unidade textual E5Q1

UNIDADE

TEXTUAL E5Q1

KÉCIO PP4, na sua concepção, o que é a escola?

AUTOANÁLISE Nessa questão, solicitei a PP4 que enunciasse sua concepção de

210

escola, sem indicar uma perspectiva específica que orientasse sua

resposta (acadêmica, cultural, política, pedagógica).

PP4 A escola, como eu penso, é um espaço onde as crianças aprendem a

ler e escrever.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Formalidade, Particularidade.

Disfórica: Informalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Formalidade vs Informalidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP4 enuncia uma concepção de escola com base

em uma oposição formalidade vs informalidade. Nesse sentido,

define escola como um espaço formal que promove o aprendizado

da leitura e da escrita. Essa concepção de escola apresentada pelo

entrevistado relaciona-se com uma perspectiva comum de escola

historicamente imposta em contextos indígenas com a finalidade de

introduzir tão somente práticas não-indígenas em culturas

indígenas, em particular as práticas da leitura e da escrita.

DISCURSO Escola é um espaço formal onde se aprende a ler e escrever.

Quadro 36 – Análise semiótica da unidade textual E4Q5

UNIDADE

TEXTUAL E4Q5

KÉCIO Na sua concepção, o que é uma escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, solicito a PP3 sua concepção de escola, sem indicar

uma perspectiva específica que possa orientar a resposta. O artigo

indefinido “uma” contribui para a liberdade de resposta do

entrevistado no sentido de não ter que se ater a um conceito ou a

uma definição restrita de escola.

PP3

Escola para mim é um lugar onde a gente aprende um

conhecimento que não é aprendido em casa, um conteúdo

específico. Mas tem muito... tem muitas coisas que a gente aprende

em casa, a educação... mas a escola, além de educar, ela também

pode dar novas ideias para a gente adquirir mais conhecimento.

211

Então a escola é um espaço em que a gente aprende além do que a

gente aprende em casa.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Currículo, Conhecimento, Formalidade

Disfóricas: Tradição, Generalidade, Informalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Formalidade vs Informalidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP3 enuncia uma concepção de escola a partir da

oposição formalidade (escola) vs informalidade (casa). Nesse

sentido, ele define escola como um espaço formal onde se

aprendem conteúdos específicos e se adquirem conhecimentos que

não são adquiridos em casa ou no espaço da tradição. A concepção

de PP3 aproxima-se de uma perspectiva de escola enquanto espaço

de hibridação cultural, um elemento externo à tradição que tanto

pode reproduzir saberes e fazeres da tradição (aqueles que também

se aprendem em casa), quanto pode incluir em espaços tradicionais

novos saberes (novas ideias).

DISCURSO Escola é um espaço formal em que se reproduzem saberes e

conhecimentos específicos que não fazem parte da tradição.

Quadro 37 – Análise semiótica da unidade textual E9Q9

UNIDADE

TEXTUAL E9Q9

KÉCIO Nesse sentido, como você define escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, a expressão “nesse sentido” que utilizei no início da

pergunta indicou a PP7 uma perspectiva para sua definição de

escola, vinculando-a à resposta da questão anterior da entrevista,

que tratava de sua concepção de educação e na qual ele se baseou

na oposição tradição vs escolarização.

PP7

Escola é um local onde os alunos vão estudar, buscar os

conhecimentos ocidentais. Mas, comparando com nossa tradição,

não existia escola, escola para nós era a nossa casa, não tinha um

lugar assim isolado fora de casa. Então, existe um pouco de

212

diferença entre a escola não-indígena e a escola tradicional. Escola

era a nossa casa, antes, e hoje a escola já tem um lugar apropriado

para os alunos.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Indígena, Generalidade, Interior, Passado

Disfóricas: Ocidente, Particularidade, Não-Indígena, Exterior,

Presente, Colonização, Modernidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A concepção de escola enunciada por PP7 baseia-se na oposição

tradição vs modernidade. Nesse sentido, ele define escola como um

espaço não-indígena isolado, distinto da tradição (casa), para onde

os alunos indígenas vão em busca de conhecimentos ocidentais

(modernidade). A categoria “diferença” emerge da resposta de PP7

ao destacar a distinção entre a tradição indígena e a escola como

espaço deslocado e estranho à realidade indígena. Sua definição de

escola relaciona-se a uma perspectiva crítica relativa às mudanças

pós-contato de seu povo com a sociedade não-indígena (ocidente)

como uma das consequências do processo de colonização. A escola

é apresentada assim como um resultado desse contato com o

Ocidente, sendo ela mesma o espaço representativo do Ocidente na

atualidade (hoje) dentro da comunidade, assumindo as funções que

anteriormente eram exercidas pela tradição (casa).

DISCURSO Escola é um espaço não-indígena isolado e diferente da tradição

indígena, onde alunos indígenas buscam conhecimentos ocidentais.

Quadro 38 – Análise semiótica da unidade textual E8Q22

UNIDADE

TEXTUAL E8Q22

KÉCIO Na sua opinião, o que é escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, não indiquei a PP6 uma perspectiva específica que

pudesse orientar sua definição de escola, ficando assim o

entrevistado livre para enunciar sua concepção de escola a partir de

213

sua experiência profissional, acadêmica ou de vida em geral.

PP6

É onde o educador vai ensinar o aluno, no caso a ler e escrever.

Não é só a ler e escrever, mas sim educar o aluno. Onde ele possa

ensinar o aluno a como escrever. Não só escrever, mas como

respeitar as pessoas, o que é certo e o que pode fazer, e também

aquilo que é errado e não pode fazer. Então, a escola é o lugar onde

vai ensinar e capacitar o conhecimento do aluno, da criança.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Leitura, Escrita, Conhecimento,

Tradição.

Disfóricas: Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP6 expõe uma concepção de escola com base na

oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, define

escola como um local particular para se ensinar e se aprender a ler e

a escrever. Destacam-se na resposta de PP6 a “leitura” e a “escrita”

como categorias que caracterizam de forma específica a escola,

havendo nela o papel de quem ensina e o de quem aprende. O

poder de classificar o certo e o errado em uma visão de mundo

geral é outra característica atribuída por PP6 à escola. Essa

concepção enunciada pelo entrevistado aproxima-se da perspectiva

de escola historicamente introduzida em comunidades indígenas

sob o pretexto de se ensinar a ler e a escrever, introduzindo porém

outros saberes e valores originários do mundo não-indígena.

DISCURSO

Escola é um espaço específico onde se aprende a ler, escrever e

valores para distinguir o que é certo do que é errado, o que pode ser

feito do que não pode se fazer.

Quadro 39 – Análise semiótica da unidade textual E6Q6

UNIDADE

TEXTUAL E6Q6

KÉCIO A gente percebe que, ao falarmos de etnomatemática, a gente

214

sempre está relacionando com a escola, ou seja, parece que esse é

um espaço em que a etnomatemática vai se fazer presente. Nesse

sentido, gostaria que você desse uma definição de escola. Na sua

concepção, o que é escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, antes de enunciar a pergunta a PP5 sobre sua

concepção de escola, fiz referência a falas anteriores ocorridas na

entrevista que relacionavam etnomatemática e escola.

PP5

No meu modo de ver o que é escola, a escola para mim tem vários

sentidos. A escola não é uma escola que está lá, plantada, feitinha,

bonitinha, com estrutura legal. A escola também existe em vários

lugares, em vários contextos: dentro da família, dentro de casa,

dentro da comunidade, dependendo do nosso entender. Então, para

mim a escola é tudo isso. Onde você está lidando, vivendo naquele

meio. Muitas vezes a gente acha que o que está estruturado,

construído e lá plantado é uma escola. Essa escola lá é apenas um

espaço de sistematizar o nosso conhecimento, é um espaço de a

gente mais discutir o que nós estamos vivendo a cada dia. Então,

para mim a escola é essa, mas, como eu falei, é tudo o que nós

estamos vivendo na nossa vida.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Generalidade, Contexto, Interior, Tradição,

Conhecimento, Cotidiano.

Disfóricas: Particularidade, Exterior, Estrutura, Limitação,

Sistematização.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

Em sua resposta, PP5 enuncia uma concepção com base na

oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele define

escola como espaços em geral em que ocorrem aprendizagens, para

além do espaço particular, específico e restrito da escola enquanto

estrutura física. PP5 distingue assim uma concepção generalista de

uma concepção restritiva de escola, considerando que a família e a

comunidade também são espaços a serem considerados como

escola. Ao espaço físico, delimitado e específico comumente

215

chamado de escola, PP5 atribui a função de sistematizar

conhecimentos e debater as questões cotidianas da comunidade.

Verifica-se que a concepção de escola enunciada por PP5

aproxima-se de uma perspectiva crítica pela qual se busca superar o

modelo de instituição escolar, restritivo e delimitado,

historicamente introduzido em sociedades indígenas, em detrimento

das formas próprias de educação já existentes em suas culturas e

tradições.

DISCURSO

Escola é um conjunto de espaços gerais, múltiplos e diversos

existentes no contexto de uma comunidade e relacionados à vida

das pessoas, além de ser uma estrutura física que tem a finalidade

de sistematizar conhecimentos e discutir questões relativas ao

cotidiano.

Quadro 40 – Análise semiótica da unidade textual E3Q2

UNIDADE

TEXTUAL E3Q2

KÉCIO O que é uma escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, solicito a PP2 que enuncie sua concepção de escola,

mas não indico uma perspectiva específica que possa orientar a

resposta do entrevistado. O artigo indefinido “uma” presente na

questão contribui para que a resposta de PP2 seja livre no sentido

de não ter que se ater a um conceito ou a uma definição restrita de

escola.

PP2

Escola, assim... pelo nosso entendimento eu falo, mas pela Língua

Portuguesa eu não sei se vou conseguir explicar. Pelo que a gente

pensa a escola... a escola é uma estrutura onde a gente se reúne

juntamente com as crianças para poder debater sobre algum assunto

importante, como aula... não só aulas, mas também ouvir histórias

da cultura dentro dessa escola. É uma estrutura física, assim...

dentro dela nós conseguimos explanar muitas coisas importantes na

comunidade, não só da cultura não-indígena, mas também o que

216

vem da nossa cultura. É muito importante a gente dizer essa

importância da escola para a comunidade. A importância que ela

tem é muito fundamental, até porque nós precisamos da escola

dentro da comunidade. Pelo meu entender, a escola é algo que a

gente necessita dentro da comunidade para poder aprender,

informar, passar informações que a gente tem dentro da sociedade

envolvente.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Tradição, Cultura, Comunidade,

Interior, Importância.

Disfóricas: Exterior, Não-Indígena, Generalidade, Colonização.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Interior vs Exterior

ANÁLISE

A concepção de escola enunciada por PP2 está baseada na oposição

interior vs exterior. Nesse sentido, ele define escola como uma

estrutura que existe no interior da comunidade indígena, mas ao

mesmo tempo possui relações como o exterior da comunidade,

porque é um espaço onde se obtém informações sobre a sociedade

envolvente, através de relações estabelecidas pelo processo de

colonização. Emerge da resposta de PP2 a categoria “importância”

utilizada por ele para justificar a presença da escola na comunidade

como espaço para promoção da cultura local, em particular, e do

acesso à cultura não-indígena, em geral. Nesse sentido, a

concepção de educação escolar presente na prática discursiva de

PP2 aproxima-se de uma perspectiva intercultural de escola,

considerada esta como um espaço que considera e reproduz

simultaneamente elementos de espaços culturais distintos.

DISCURSO

Escola é uma estrutura que existe no interior da comunidade para

reproduzir tanto conhecimentos internos à cultura indígena quanto

conhecimentos externos, provenientes da sociedade envolvente.

217

7.6 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância da

escola na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena

Quadro 41 – Análise semiótica da unidade textual E2Q3

UNIDADE

TEXTUAL E2Q3

KÉCIO Qual a importância dessa escola existente hoje na comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP1 sua perspectiva sobre a

importância da escola na aldeia. Ao utilizar o termo “hoje”, indico

com meu fazer persuasivo uma perspectiva de resposta a PP1, no

sentido de destacar uma temporalidade, a partir da qual o

entrevistado pode se valer da comparação entre uma situação

anterior, existente antes do contato, no qual a escola não existia na

aldeia, e outra situação posterior, na qual a escola se faz presente.

PP1

A importância dessa escola hoje é o fato de que ela já existe como

instituição dentro da comunidade... A importância dela é que ela já

existe dentro da comunidade, é reconhecida pelo estado, pelo

estado brasileiro, pelo estado estadual... e que podemos usar os

conhecimentos paiter de acordo com a visão de mundo e visão de

futuro paiter, ensinar isso nessa escola. Então, usar esse mecanismo

escola, instituição escola para ensinar de acordo com a visão de

mundo paiter. Então, a importância que a escola tem hoje, para

mim é isso, ela tem uma função, e a gente tem que fazer com que

essa funcionalidade dela sirva para o povo Paiter, não

simplesmente ser uma escola sem ter... de acordo com a visão de

mundo paiter.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Existência, Interior, Comunidade, Reconhecimento,

Funcionalidade, Indígena, Tradição, Identidade, Particularidade,

Povo, Paiter

Disfóricas: Não-indígena, Exterior, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

218

ANÁLISE

A resposta de PP1 está baseada na oposição particularidade vs

generalidade. Nesse sentido, escola é uma estrutura ou instituição

de caráter geral, que tem um reconhecimento externo, enquanto

espaço instituído pelo estado, mas que deve ser utilizado no interior

da comunidade para fins de promoção da visão de mundo particular

do povo Paiter, residindo nisso sua importância. PP1 destaca assim

que a funcionalidade da escola enquanto espaço para se ensinar e se

aprender deve ser direcionada para a promoção da tradição e da

identidade de seu povo, em oposição a uma visão de mundo

genérica e não-indígena. A prática discursiva de PP1 apresenta uma

ressignificação da escola na aldeia, deixando esta de ser

caracterizada apenas como um espaço de imposição de uma cultura

não-indígena para assumir o papel de reproduzir a tradição da

própria comunidade na qual está inserida.

DISCURSO

A importância da escola existente na aldeia é que ela é uma

instituição de caráter geral, reconhecida e instituída pelo estado,

mas cuja funcionalidade deve ser utilizada para a promoção da

tradição e da identidade cultural particular do povo.

Quadro 42 – Análise semiótica da unidade textual E15Q16

UNIDADE

TEXTUAL E15Q16

KÉCIO Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O

que o povo Paiter espera da escola na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, objetivo ouvir de PP1 sua impressão a respeito de

como seu próprio povo percebe a escola na aldeia. Enquanto fazer

persuasivo, introduzo em minha fala o termo “hoje”, o que indica

ao entrevistado uma perspectiva de resposta, uma vez que insere a

temporalidade como elemento condutor da resposta. Essa

temporalidade pode sugerir a PP1 uma distinção entre um estado de

pensamento anterior e outro atual na forma de seu povo conceber a

escola na aldeia.

219

PP1

A escola hoje, professor, acho que ela tem uma função bem

diferente, pensada pelo povo Paiter, do que eles pensavam antes.

Porque o papel da escola nas comunidades paiter tinha uma função

de você aprender... vamos supor... de você aprender as coisas do

branco, as coisas do não-indígena. Você fazer com que a escola...

quer dizer, a FUNAI colocou uma escola dentro das comunidades

paiter, mas no sentido de que os paiter começassem a aprender a

falar português, fazer as coisas que não eram do paiter. E, ao

mesmo tempo, os paiter perceberam que isso realmente tem que ser

assim... que eu preciso aprender para me dar bem fora... eles

pensaram mesmo que eles precisavam aprender aquilo. Mas hoje,

atualmente, já tem uma controvérsia em relação a isso. A escola

hoje tem um papel de que você não precisa somente aprender

aquilo que a escola está passando para você. Você tem que colocar

os elementos da sua cultura dentro da escola para você aprender, e

também os elementos que são de fora. Então, quer dizer, antes,

como paiter, você pensava em aprender tudo o que a escola te

ensinava. Agora, você tem que... hoje o pensamento, visto pelos

paiter, é que você tem que colocar dentro da escola o que é próprio

do paiter... e o que ela tem que trazer também de fora. Já tem outro

pensamento, em relação ao anterior. A gente vai perceber três fases,

no caso. Primeiro, na inserção da escola pela FUNAI, somente para

aprender português, a falar português, matemática, para que você

fosse igual ao branco. A outra concepção, a segunda, é um

pouquinho diferente... só na questão de você não... como é falado

muito pelos indígenas, “não ser passado para trás” [risos]... essa

concepção de que você tem que aprender aquilo, para que você não

se deixe passar para trás, porque você já tem um domínio daquilo

que você tem de português, matemática e tal. E a terceira, talvez... a

gente tem que pensar um pouco qual é a diferença um do outro...

mas vamos supor que a terceira é a que você... que os paiter tem o

elemento... o papel da escola assim... ela não tem que carregar

somente conteúdo não-indígena. Tem que inserir também conteúdo

220

paiter, conhecimento paiter, para que seja ensinado esse

conhecimento paiter, e também o que ela traz consigo. Então, hoje,

o papel da escola visto pelos paiter é de fortalecimento da

identidade, de conhecer realmente esses dois mundos.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Diferença, Povo, Paiter, Indígena, Particularidade,

Interior, Identidade, Conhecimento, Tradição, Empoderamento,

Interculturalidade.

Disfóricas: Não-indígena, Generalidade, Exterior, Colonização.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A resposta de PP1 baseia-se na oposição indígena vs não-indígena.

Nesse sentido, ele percebe que seu povo espera que a escola na

aldeia atualmente seja um espaço tanto de valorização de sua

própria cultura e identidade indígena particular, quanto de

promoção de conhecimentos não-indígenas necessários para a

existência do povo após o contato. Destaca-se na fala do

entrevistado uma visão crítica a respeito das transformações pelas

quais passou a concepção de escola pelo seu povo. Assim, PP1

identifica três momentos distintos que caracterizaram a escola na

aldeia, considerada desde um espaço de introdução de saberes

exclusivamente não-indígenas na aldeia, cuja consequência

inicialmente o povo não tinha consciência, passando por um

momento de reconhecimento da necessidade da escola em razão

das relações interculturais com a sociedade colonizadora, até atingir

uma criticidade a partir da qual se espera que a escola também sirva

para a promoção da própria cultura paiter, fortalecendo assim a

identidade cultural do povo.

DISCURSO

A escola na aldeia, atualmente, deve servir tanto como um espaço

para se aprender conhecimentos não-indígenas necessários para a

convivência com a sociedade colonizadora, quanto para promover

os conhecimentos indígenas, fortalecendo a cultura e a identidade

do povo.

221

Quadro 43 – Análise semiótica da unidade textual E14Q17

UNIDADE

TEXTUAL E14Q17

KÉCIO Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O

que o povo Paiter espera da escola na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, o termo “hoje” indica ao entrevistado uma

perspectiva contrastiva entre uma situação situada em um tempo

passado e a atual. Assim, ao inserir na pergunta uma

temporalidade, meu fazer persuasivo indica ao entrevistado a

“mudança” como possível eixo condutor de sua resposta, isto é,

está presente em minha fala a pressuposição de que a percepção

que o povo tem de escola hoje deve ser diferente da que ele tinha

em tempos passados.

PP10

Professor, eu acho que, na minha opinião particular, eu vejo isso...

até porque eu trabalhei como executor lá na SEDUC de Cacoal, e

eu andei e convivi também em várias aldeias, várias escolas do

povo Suruí, onde eu tenho uma experiência boa, que eu vi. Eu acho

que, na minha opinião particular, eles estão vendo mais assim... que

é tipo uma coisa comum, que você pode ter, usar... só de usar. Até

porque, a maioria, dentro das aldeias hoje, a maioria é jovem, que

construiu sua aldeia não pelo objetivo de construir uma família

legal, ele saiu de uma aldeia em que morava e foi construir uma

aldeia por ignorância. Por que eu falo isso, ignorância? Porque ele

foi abrir uma aldeia pelo objetivo de ter uma escola, um postinho

de saúde construído pela FUNASA, e ganhar alguma coisa, que a

FUNAI pode dar, e eles serem os donos daquilo, e se mostrar para

as pessoas: “não, eu também sou uma pessoa respeitável, como

você, e não é só você que pode estar mandando em mim. Então,

não é só o seu parente que pode ser professor e agente de saúde. O

meu filho também pode ser o professor, o agente de saúde”. Então,

isso eu acho, no meu pensamento particular, eu fico pensando e

anotando isso, porque a divisão dentro dos Suruí está demais,

professor. Há uns quinze anos atrás, o povo Suruí só tinha seis

222

aldeias, seis linhas. Hoje, está um avanço danado. Hoje está em...

quando eu trabalhei, há uns oito meses atrás, na última vez que eu

fiz uma viagem, eu contei vinte e sete aldeias. Então, a escola não

está dentro da aldeia, onde ela está localizada, porque a pessoa está

pensando: “Eu quero ter uma escola que vai trazer e vai levar a vida

do meu filho adiante, para meu filho aprender uma coisa que hoje

tem que aprender dentro da cultura do não-indígena mesmo, e

trazer para beneficiar minha comunidade”. Não está dessa forma.

Hoje está uma briga, uma disputa. Se não contratou seu filho, ou

seu parente que você quer contratar, eu pego e saio, a pessoa sai, e

vou construir uma aldeia. Lá eu posso ter o direito de contratar a

pessoa que eu quero. Então, a escola está uma bagunça dentro da

comunidade. Eu vejo isso.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Tradição, Povo, Comunidade,

Harmonia, Consenso, União, Coletividade.

Disfóricas: Generalidade, Inexperiência, Colonização, Ambição,

Disputa, Poder, Não-indígena, Discórdia, Conflito, Desunião,

Individualidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Harmonia vs Conflito

ANÁLISE

A resposta de PP10 baseia-se na oposição harmonia vs conflito.

Nesse sentido, ele percebe que a escola na aldeia, antes de ser

considerada um espaço de harmonia interna, de promoção da

tradição particular de seu povo ou de aquisição de conhecimentos

não-indígenas, tem sido pretexto para conflitos e disputas entre

membros das comunidades, motivados por interesses individuais.

Desse modo, a escola é concebida como um espaço de privilégios,

que garante a quem dela participa benefícios pessoais em

detrimento da coletividade. Essa perspectiva crítica da resposta de

PP10 relativa ao seu modo particular de interpretar a percepção que

seu povo tem da escola ilustra as alterações de visão de mundo, de

identidade e de valores que a presença da instituição escolar em

comunidades tradicionais pode ocasionar. Verifica-se, a partir da

223

prática discursiva de PP10, que, no caso particular dos Paiter, a

inserção da escola na aldeia como parte do processo de colonização

não é só instância subjetiva de inclusão de conhecimentos não-

indígenas para o interior da fronteira cultural e identitária do povo,

mas também é fortemente instância objetiva de desestabilização das

relações de poder tradicionalmente existentes nas comunidades. A

escola assume-se assim entre os Paiter como espaço permeado de

contradições.

DISCURSO

A escola na aldeia tem se destacado entre os Paiter como um

espaço de conflitos, motivados por interesses individuais que

permeiam as relações de poder, em desacordo com a harmonia

coletiva que se espera em relação à promoção da cultura, da

tradição e da identidade do povo.

Quadro 44 – Análise semiótica da unidade textual E11Q20

UNIDADE

TEXTUAL E11Q20

KÉCIO Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O

que o povo Paiter espera da escola na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP9 a respeito da importância e do

papel que seu povo atribui à escola. Ao utilizar o termo “hoje” em

minha fala, indico a PP9, com meu fazer persuasivo, uma

perspectiva de resposta, ao pressupor que a escola de hoje pode ser

diferente da que foi originalmente introduzida em sua sociedade

tradicional em tempos passados.

PP9

O povo Paiter espera dentro da aldeia do jeito que eles querem.

Como? Com a cara do índio. Respeitando, assim... ter autonomia...

ser dirigida pelos índios. Eles não querem que o funcionamento da

escola venha de fora. Eles querem que, a partir dali mesmo, nasça e

do jeito que eles querem que seja, com um funcionamento como...

com uma merenda diferenciada, não mais aquela merenda de

alimentos de não-índio. Dali mesmo, a merenda pode ser carne de

224

caça, chicha na merenda... e assim, tornar mais para o tradicional. E

também aplicar mais os conhecimentos, igual para igual com o

conhecimento não-indígena, aplicar dentro da sala de aula. Agora,

por que todas as escolas indígenas estão aplicando mais os

conhecimentos do não-indígena e muito menos ainda o

conhecimento do povo dentro da escola? Não está do jeito que os

índios querem. Falta muito para melhorar.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Interior, Identidade, Autonomia, Particularidade,

Diferença, Indígena, Tradição, Interculturalidade

Disfóricas: Exterior, Dominação, Generalidade, Não-Indígena,

Contradição

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A resposta de PP9 está baseada na oposição indígena vs não-

indígena. Nesse sentido, ele considera que se espera da escola na

aldeia uma outra perspectiva, distinta da atualmente existente. A

escola na aldeia deve ser autônoma e diferenciada, assumindo uma

identidade indígena (ter a cara do índio) particular, voltada para a

tradição. Nesse sentido, ela deve ser diferente daquela existente

atualmente na aldeia, onde os conhecimentos não-indígenas ainda

prevalecem em sala de aula, em uma relação de dominação

proveniente do processo de colonização. PP9 concebe a escola

diferenciada que seu povo espera como aquela que supere essa

contradição, e na qual os conhecimentos indígenas e não-indígenas

sejam tratados de igual para igual, sem deméritos para a tradição e

a cultura de seu povo. Tal concepção de escola diferenciada

enunciada por PP9 aproxima-se de uma perspectiva de educação

intercultural, segundo a qual a escola deve considerar o diálogo

entre saberes provenientes de distintos contextos, em particular, do

contexto indígena e do não-indígena.

DISCURSO

A escola na aldeia, se autônoma e diferenciada, é importante para a

manutenção dos saberes da tradição indígena e para a aquisição de

conhecimentos da sociedade não-indígena, devendo para tanto

225

buscar superar contradições e relações de dominação que ainda

existem em seu interior provenientes do processo de colonização.

Quadro 45 – Análise semiótica da unidade textual E5Q3

UNIDADE

TEXTUAL E5Q3

KÉCIO Qual é a importância da escola na comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, solicito a PP4 que fale sobre a importância da

escola existente em sua comunidade. Está presente em minha fala a

pressuposição de que a escola é importante, indicando assim, com

meu fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado,

sendo esta a de justificar a importância considerada como dada em

minha fala.

PP4

A importância da escola estar na comunidade é que, antes, as

crianças indígenas saíam da comunidade para ir para a escola não-

indígena, onde tinham muita dificuldade de aprendizagem, porque

não sabiam a Língua Portuguesa. Já na comunidade, melhorou,

porque professores indígenas já estão atuando nas escolas

indígenas, o que facilita o aprendizado das crianças.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Interior, Comunidade, Indígena, Particularidade

Disfóricas: Exterior, Não-Indígena, Generalidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A resposta de PP4 está baseada na oposição indígena vs não-

indígena. Nesse sentido, ele considera que a importância da escola

na aldeia está relacionada com a possibilidade dos estudantes

indígenas não precisarem mais sair da comunidade para estudar em

um espaço não-indígena, fora de seu território, como ocorria em

tempos anteriores. Estando a escola agora na aldeia, diminuem as

dificuldades de aprendizagem dos alunos, porque podem estudar

com professores indígenas e aprenderem em sua própria língua

materna. Assim, na perspectiva de PP4, a escola estando situada em

226

um espaço geral exterior à comunidade, sendo um espaço não-

indígena, impõe dificuldades aos estudantes indígenas ao não

considerar suas particularidades, em especial, sua língua materna.

DISCURSO

A escola na comunidade é importante para que os estudantes

indígenas possam aprender em sua própria língua materna, com

professores da comunidade, sem ter que sair de seu território, de

modo a não sofrer dificuldades impostas por uma escola não-

indígena que não leva em consideração suas particularidades

linguísticas.

Quadro 46 – Análise semiótica da unidade textual E4Q6

UNIDADE

TEXTUAL E4Q6

KÉCIO Por que é importante ter uma escola na comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, está presente em minha fala, enquanto um fazer

persuasivo, a pressuposição de que a escola na comunidade é

importante a priori. Assim, direciono a resposta de PP3 para uma

justificativa dessa importância, enquanto uma característica da

escola já dada.

PP3

Porque a escola está ensinando a cultura, está ensinando a cultura

que foi se esquecendo um pouco. Além de ensinar da cultura, estão

ensinando do conhecimento não-indígena, para reivindicar seus

direitos, para formar uma área específica voltada para sua

comunidade. Nós que estamos nos formando não é para só pensar

em si, para manter... além de se manter, ele possa contribuir para a

comunidade também.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Cultura, Tradição, Indígena, Direito, Particularidade,

Comunidade, Coletividade.

Disfóricas: Esquecimento, Colonização, Não-Indígena,

Generalidade, Individualidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

227

ANÁLISE

A resposta de PP3 está baseada na oposição indígena vs não-

indígena. Nesse sentido, ele considera que a escola na aldeia é

importante porque, por um lado, ensina a cultura e a tradição

indígena, contrapondo-se assim ao processo de colonização que

provoca o esquecimento das particularidades que caracterizam seu

povo. Por outro lado, a importância da escola também está

relacionada ao ensino de conhecimentos não-indígenas em geral,

necessários ao empoderamento de seu povo para a reivindicação de

direitos e para a formação de profissionais em áreas específicas

necessárias ao atendimento de necessidades contemporâneas da

comunidade. Está presente na prática discursiva de PP3 elementos

de uma perspectiva intercultural de educação escolar, visto que ele

considera ser importante estar presente na escola tanto saberes da

tradição indígena quanto outros saberes provenientes da sociedade

não-indígena.

DISCURSO

A escola na comunidade é importante para garantir a manutenção

da cultura e das tradições indígenas, além de possibilitar o acesso a

conhecimentos não-indígenas necessários à sobrevivência do povo

na contemporaneidade.

Quadro 47 – Análise semiótica da unidade textual E12Q1

UNIDADE

TEXTUAL E12Q1

KÉCIO

PP3, em maio de 2013 você me concedeu uma entrevista na

comunidade Amaral. Na época você respondeu a algumas

perguntas sobre escola, educação e etnomatemática. Você

manifestou uma preocupação com o tipo de escola existente na

comunidade. Você disse que escola é um lugar em que se aprende

um conhecimento que não é aprendido em casa, e além de educar

ela deve dar novas ideias para se adquirir mais conhecimentos.

Então, retomando essa pergunta, PP3, um ano após a primeira

resposta, no seu ponto de vista, qual é o papel da escola na aldeia?

228

AUTOANÁLISE

Nessa questão, retomo o assunto tratado com PP3 em entrevista

anterior, com o intuito de aprofundar a compreensão da

importância atribuída por ele à escola na aldeia. Ao relembrar em

minha fala o que PP3 havia dito na entrevista anterior, ofereço a ele

um ponto de partida para resposta à nova pergunta.

PP3

Eu vejo assim... que, além de ensinar a adquirir conhecimento, a

escola tem o papel fundamental de preservar a cultura, transmitir a

cultura. Hoje, é muito difícil a gente, os pais, os mais velhos... eu

digo que hoje o que constrói a família já é novo, são famílias novas.

Então, a escola tem o papel hoje de transmitir, passar o

conhecimento do povo Paiter.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Cultura, Tradição, Preservação, Povo,

Paiter, Identidade, Resistência.

Disfóricas: Mudança, Transformação, Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP3 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele indica em sua fala que o papel

fundamental da escola é o de preservação e manutenção da tradição

e da cultura, frente às transformações e mudanças advindas da

modernidade. Considerando que o espaço familiar já é distinto

daquele que existia em tempos anteriores, estando baseado em

novos valores, PP3 atribui à escola o papel de contribuir com a

manutenção da identidade cultural paiter, enquanto transmissora

dos conhecimentos particulares do povo. Nesse sentido, PP3 atribui

à escola um papel de resistência cultural, contrapondo-se a uma

perspectiva de escola integracionista, a serviço da colonização, que

historicamente foi imposta às sociedades indígenas.

DISCURSO

A escola na aldeia tem o papel fundamental de contribuir com a

manutenção da tradição e da cultura do povo, fazendo frente às

transformações advindas da modernidade.

229

Quadro 48 – Análise semiótica da unidade textual E9Q10

UNIDADE

TEXTUAL E9Q10

KÉCIO Então, essa escola, esse lugar específico hoje que se chama escola,

qual a sua importância para a comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, retomo a concepção de escola enquanto espaço

específico dentro da comunidade, expressa por PP7 em questão

anterior da entrevista, para perguntar-lhe sobre a importância da

escola para a comunidade. Nesse caso, está presente em minha fala

o pressuposto de que a escola é importante para a comunidade (de

outro modo, a pergunta poderia ser: A escola é importante para

comunidade?), e esse pressuposto, uma vez enunciado, caracteriza-

se como um fazer persuasivo que indica a PP7 uma perspectiva

para sua resposta: a da justificativa de uma importância considerada

como dada.

PP7

A importância da escola para a comunidade hoje é que ela passa

conhecimentos tradicionais e não tradicionais. Hoje, o povo Paiter

não define muito bem a escola. Quem pode passar esses

conhecimentos aos alunos são os professores que entendem. Hoje,

temos professores contratados pelo estado, e os professores são os

pesquisadores da comunidade ou do povo. E esse professor pode

passar esse conhecimento aos alunos. E a importância da escola

para nós é para valorizar a nossa cultura, que está sendo deixada de

se valorizar, e para passar conhecimentos às gerações.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Tradição, Interior, Povo, Paiter,

Comunidade, Valorização, Cultura, Manutenção, Resistência.

Disfóricas: Modernidade, Exterior, Desvalorização, Mudança,

Esquecimento, Transformação.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta enunciada por PP7 baseia-se na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, para ele a escola atualmente é

importante para a comunidade porque, além de ensinar

230

conhecimentos externos à tradição, pode também valorizar a

cultura e a tradição do seu povo, fazendo frente às transformações e

ao esquecimento ocasionado pela modernidade advinda do contato

e das relações com a sociedade não indígena. Destaca-se na fala do

entrevistado a caracterização da escola como um espaço de

resistência cultural, ao mesmo tempo em que se reconhece nela um

espaço para se aprender conhecimentos que não fazem parte da

tradição. Assim, PP7 expressa uma concepção de escola que se

aproxima de uma perspectiva intercultural de educação, ao

reconhecer a coexistência de conhecimentos com distintas raízes

culturais na escola, que se relacionam de forma tensa e

problemática, tanto como prática de resistência (com vínculos

internos na tradição) quanto como mudança (com vínculos externos

à tradição ou na modernidade).

DISCURSO

A importância da escola para comunidade atualmente é que, além

de ensinar conhecimentos externos à tradição, ela pode contribuir

para a manutenção da cultura do povo, fazendo frente às

transformações advindas da modernidade.

7.7 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância dos

velhos para o ensino de saberes da tradição da categoria de análise educação escolar

indígena

Quadro 49 – Análise semiótica da unidade textual E1Q5

UNIDADE

TEXTUAL E1Q5

KÉCIO Qual é a importância dos velhos em relação aos saberes

tradicionais?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP1 sua opinião a respeito da

importância que os membros mais velhos de seu povo têm para a

manutenção e reprodução das tradições e da cultura. Ao enunciar a

231

pergunta, busquei direcionar o olhar do entrevistado para um dos

principais símbolos da tradição, os velhos. Considerando o peso

atribuído à tradição por PP1 nas respostas a questões anteriores da

entrevista, essa pergunta levou o entrevistado a destacar a

importância dos velhos em relação ao saberes tradicionais, sem

delimitar, todavia, a tipologia de saberes. Nesse sentido, a pergunta

foi de natureza aberta, não limitada, dando margem para que o

entrevistado discorresse sobre a importância dos velhos em relação

aos saberes em geral da tradição. Está presente em minha fala o

pressuposto de que os velhos são importantes para a manutenção

dos saberes da tradição, indicando também ao entrevistado, com

meu fazer persuasivo, que apenas justificasse tal importância (de

outro modo, a pergunta poderia ser: Os velhos são importantes para

a manutenção dos saberes tradicionais?).

PP1

Uma das referências que a gente tem no ensino da etnomatemática,

de repassar esses conhecimentos hoje, são os mais velhos. Então,

eles têm uma grande importância para transmitir esse saber, porque

se não fosse por meio dos velhos transmitir esses conhecimentos, o

único conhecimento matemático que a gente tem são nas escolas, e

as escolas têm a matemática não-indígena, que vem pressionando

cada vez mais nossos alunos, cada vez mais o povo Paiter, que

acaba diminuindo a força do conhecimento etnomatemático paiter.

Então, quer dizer, os nossos mais velhos hoje são uma escola para

nós, hoje são os livros orais para a gente. Então, é de suma

importância a gente valorizar esse conhecimento tradicional em

relação à etnomatemática paiter. Os mais velhos são os que detêm

esse conhecimento hoje da etnomatemática paiter suruí.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Conhecimento, Sabedoria, Particularidade,

Indígena, Povo, Paiter, Interior, Identidade.

Disfóricas: Não-Indígena, Escolarização, Pressão, Colonização,

Conflito, Exterior.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

232

ANÁLISE

A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs

escolarização. Nesse sentido, os velhos são concebidos por PP1

como representantes da tradição, da sabedoria particular de seu

povo, e por isso são importantes para garantir a perpetuação de

saberes da tradição, para fazer frente à pressão que o processo de

escolarização impõe sobre a identidade cultural do povo. Destaca-

se na fala de PP1 o tensionamento existente entre as forças

transformadoras impostas pela colonização, representada pelo

ensino de matemática não-indígena na escola, e a resistência da

tradição, cuja maior referência são os velhos, considerados

depositários dos saberes particulares do povo, livros orais. Verifica-

se na resposta de PP1 que, embora a pergunta fosse aberta, no

sentido de não fazer referência a um tipo específico de saberes da

tradição, o entrevistado inicia sua fala tratando de etnomatemática,

seguindo assim um raciocínio já iniciado nas respostas às questões

anteriores da entrevista. Os velhos são apresentados como “livros

orais”, isto é, como detentores dos saberes e fazeres matemáticos

paiter, sendo assim indicados como fundamentais para a

continuidade da tradição, visto que na escola tem apenas

matemática não-indígena. Destaca-se na fala de PP1 a

dicotomização Paiter vs Não-Paiter, a partir da qual desenvolve-se

o raciocínio do entrevistado sobre as relações de poder entre

diferentes conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento paiter

possui força, mas a escola também, causando assim uma pressão

sobre o povo. Essa pressão é compensada pela presença dos velhos

na reprodução da tradição, residindo nisto a importância deles para

a transmissão de saberes e fazeres, incluindo-se, em particular, os

saberes e fazeres matemáticos.

DISCURSO

Os velhos são importantes para garantir a manutenção dos saberes

da tradição, frente à pressão exercida sobre a identidade cultural do

povo pelo processo de escolarização imposto pela colonização.

233

Quadro 50 – Análise semiótica da unidade textual E15Q15

UNIDADE

TEXTUAL E15Q15

KÉCIO

Voltando à questão dos mais velhos, é comum os professores paiter

apontarem os mais velhos, os curubey, como referências para a

inclusão dos conhecimentos tradicionais na escola. Na prática,

quais são as principais dificuldades para isso acontecer? Por que os

velhos participam diretamente tão pouco da educação escolar na

aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, retomo o tema “velhos” tratado em entrevista

anterior, com o objetivo de aprofundar a compreensão das ideias de

PP1 a respeito da importância dos velhos no ensino de saberes da

tradição. Está presente em minha fala uma distinção entre a

importância atribuída pelos professores indígenas aos velhos e a

participação efetiva dos velhos na educação escolar, observada no

cotidiano da aldeia. Assim, considero em minha fala como dada

uma dificuldade para a participação direta dos velhos na escola da

aldeia e indico ao entrevistado a perspectiva da justificativa dessa

dificuldade como alternativa de resposta.

PP1

Sabe o que eu percebi, professor? Primeiro, não há esse costume

dos mais velhos ensinarem do jeito que se ensina na escola: “Hei,

vai ter aula hoje! Tal hora todo mundo tem que estar lá! Para

ensinar tal coisa e tal coisa!”. Eu percebi isso, experiência própria.

O que se tem de costume... o que eles estão acostumados é o

seguinte... tradição paiter. O que eu percebi, como são ensinadas as

coisas, eu percebi o seguinte, professor... ninguém vai chamar

alguém para aprender. “Hei, vem aprender isso aqui! Vou te

ensinar!”. Simplesmente, os mais velhos vão fazendo... eu já

conversei sobre isso com meus tios, e eles me ensinaram como que

se aprendia... e o mais interessado fica ali, percebe ali, vai fazendo

igual o mais velho está fazendo. Se há uma dúvida, pergunta. Ele só

vai falar para você... se precisa de ajuda, ele vai fazer. Mas, em

nenhum momento ele vai dizer é assim, é assim, é assim. Você vai

234

aprender ali com ele. Se o mais velho tiver que sair agora, ele vai

sair, vai deixar você aí. Mas você já vai saber como ele estava

fazendo. Várias tentativas você vai fazer. Por isso que meu pai fala:

“Os não-indígenas falam assim: ‘Os mais velhos sabem’”. Aí ele

fala: “Nem todos os mais velhos sabem”. Olha só, é em primeira

mão essa conversa, professor, do meu pai. Eu não sei se ele já

conversou com você sobre isso... acho que uma vez ele conversou...

acho que naquela primeira visita. Mas vou reforçar de novo. Eu me

lembro muito bem que ele falou para você. Ele fala: “Os brancos

falam assim: “Ah, o mais velho! A gente tem que valorizar o mais

velho!”. Aí ele fala: “Nem todo mais velho que está na aldeia sabe

de tudo, porque nem toda criança vai aprender. Só vai aprender o

mais interessado. E o desinteressado não vai aprender. Mas esses

dois vão ficar velhos. A diferença é que um aprendeu e o outro não.

Aí, você vai saber diferenciar dentro da comunidade quem é o mais

velho sabedor e quem é o mais velho que não aprendeu na vida”.

Então, é assim que se aprende, professor, naturalmente... vai

aprendendo. E esse costume vem com eles. É chato chamar eles:

“Vamos para a sala de aula ensinar alguém”. É chato para eles. Eu

percebi isso uma vez. E outra questão, a segunda questão, é a

questão do financeiro hoje, o sistema capitalista... faz o mais velho

pensar duas ou três vezes antes de fazer isso. Tem um que vai com

convicção de ensinar aos alunos para que não percam o que ele

aprendeu, porque ele percebe que é importante. Mas, no geral, uma

coisa que prende eles é a questão financeira. “Ah, eu preciso ir na

minha roça, ou caçar! Eu vou ter que ensinar! Será que eu vou lá?

Onde que eu vou?”. Então, são essas duas coisas. Uma bem

tradicional, e outra bem da inserção do capitalismo. Então, eu

percebi essas duas coisas. Por isso que é difícil levar eles para

dentro da sala de aula. Mas tem uns que vão com a convicção de

ensinar as crianças. Mas, se for para ser todo dia, ele não vai. Ele

pode ir uma vez por mês. Não chega a se estabelecer uma rotina

assim. Mas o que seria interessante, professor, é se a gente pensasse

235

numa metodologia... onde o mais velho estivesse ali, fazendo o que

ele estiver fazendo, artesanato dele, ou caçada... de alguma forma, a

gente buscar um meio de acompanhar ele, como se fosse no

cotidiano, anteriormente. Eu andei muito com meu pai quando eu

era criança, na mata. Andei, andei, andei. E eu sei bastante coisa...

andar na mata. Eu sei dos passarinhos... eu sei um sinal de grilo, de

gafanhoto, de passarinho... quando estão marcando horas. A gente

vai percebendo: “Ah, é tal hora, tal hora”, porque meu pai ensinou

para mim. Então, cada passarinho... tem espécie de passarinho que

vai cantando de hora em hora. Um canta agora, e outro canta, e o

outro que cantou na outra hora não vai... e é impressionante,

professor, como eles batem igualzinho com o relógio. Você pode

usar o relógio assim... você vai tal hora e algum pássaro canta. “Ah,

são três horas”. Então, são conhecimentos que a gente tem que

buscar uma metodologia para que a gente possa aproveitar esses

momentos. Não aquela galera, ir todos os alunos... mas vamos uma

vez por aluno, talvez... você vai acompanhar tal, tal, tal. Então, são

coisas que a gente precisa realmente buscar como a gente aprender

com os mais velhos de uma maneira... da maneira deles. É isso.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Informalidade, Liberdade, Identidade,

Autonomia, Indígena, Sabedoria, Cotidiano.

Disfóricas: Escolarização, Formalidade, Dominação, Restrição,

Homogeneização, Não-indígena, Capitalismo, Colonização, Perda,

Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que a tradição paiter,

quanto à forma de educar dos mais velhos, é distinta da forma de

educar da escola, sendo esta oriunda da modernidade. Em sua fala,

a tradição é caracterizada pela liberdade que as pessoas têm de

aprenderem em situações informais, de maneira autônoma, livre e

sem rotinas, a partir da observação dos mais velhos no cotidiano.

236

Por outro lado, a modernidade é caracterizada pela formalidade,

pela dominação da escola sobre as pessoas, com o estabelecimento

de rotinas, de restrições quanto ao local e aos saberes que devem

ser aprendidos, resultando em um processo de homogeneização, ao

qual todos são submetidos. Assim, PP1 considera que essas

diferenças entre a tradição e a modernidade seriam um dos motivos

pelos quais os velhos participam pouco do processo de

escolarização das novas gerações na aldeia, gerando um

constrangimento ao serem convidados para ensinar os saberes da

tradição na escola, porque este espaço é muito distinto (artificial)

daquele característico do cotidiano (natural) da aldeia. Outro

motivo indicado por PP1 para a pequena participação dos velhos na

escola da aldeia está relacionado ao interesse econômico surgido

entre os velhos após o contato, a partir do qual consideram ser

necessária uma recompensa econômica por suas contribuições na

educação das novas gerações. Assim, não havendo a remuneração,

poucos velhos se interessam em contribuir com o ensino de saberes

da tradição, sendo que aqueles que o fazem, o fazem por convicção.

DISCURSO

Os velhos são importantes para a manutenção dos saberes da

tradição, mas participam pouco da educação escolar na aldeia

porque a escola, enquanto espaço de formalidade, dominação,

restrição e homogeneização característico da modernidade é

diferente da tradição paiter, segundo a qual as pessoas são livres e

autônomas para aprender por observação dos mais velhos no

cotidiano informal da aldeia.

Quadro 51 – Análise semiótica da unidade textual E14Q16

UNIDADE

TEXTUAL E14Q16

KÉCIO Como os mais velhos, os sábios, os curubey, podem contribuir para

a educação escolar na aldeia?

AUTOANÁLISE Nessa questão, intento ouvir de PP10 suas considerações sobre a

237

participação dos velhos de seu povo na educação escolar existente

na aldeia. Está presente em minha fala o pressuposto de que os

velhos podem contribuir com a educação escolar, indicando assim,

com meu fazer persuasivo, a perspectiva da explicação de como

isso deve se dar como alternativa de resposta ao entrevistado (de

outro modo, a pergunta deveria ser: Os velhos são importantes para

a educação escolar na aldeia?).

PP10

Então, eu ia falar... hoje, a gente trabalha na escola da forma como

eles mandam o planejamento, o conteúdo para a gente estar

trabalhando. A gente ainda está forte ainda, até porque a

comunidade pede para que isso não seja eliminado. O cacique LP1

sempre cobra isso. Se uma pessoa não está trabalhando, se nem

todas as disciplinas estão sendo realizadas, trabalhado um pouco de

cada... dentro de sua cultura, então pelo menos que um professor

esteja trabalhando, uma parte pelo menos, como na identidade

étnica, na língua. Isso o LP1 tem sempre cobrado da gente e dos

supervisores que trabalham com a gente. Então, os mais velhos,

eles têm bastante... eles acompanham, eles nunca quiseram que os

filhos... eles sempre cobraram que tem que aprender as duas

culturas, do não-indígena e a cultura deles, porque o medo deles é

que eles veem, hoje em dia, que a língua e a cultura do povo Paiter

estão se extinguindo... que está muito recente o contato, e eles estão

perdendo demais isto daí. Então, o LP1 sempre cobrou, pelo menos

na aldeia nossa, que os alunos aprendessem a ler na sua língua,

saber dançar, caçar, cantar, fazer artesanato... tudo isso é intenção

dele, até porque nossa associação tem um projeto de ponto de

cultura, que duas vezes por ano faz um projeto de oficina para

ensinar as crianças. Essa é também uma das escolas da gente.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Identidade, Comunidade, Interior, Cultura,

Interculturalidade, Indígena.

Disfóricas: Currículo, Exterior, Dominação, Escolarização, Não-

indígena, Colonização, Extinção, Modernidade.

OPOSIÇÃO Tradição vs Modernidade

238

SEMÂNTICA

ANÁLISE

A resposta de PP10 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que há uma preocupação

e uma cobrança de lideranças e dos mais velhos quanto à

manutenção das tradições, da cultura e da identidade cultural do

povo, frente às transformações advindas da modernidade a partir do

contato com a sociedade não-indígena. Assim, os velhos

compreendem que é importante as novas gerações aprenderem os

saberes da tradição para que eles não sejam extintos, dado o

acelerado processo de transformação cultural pelo qual o povo está

passando, ao mesmo em que consideram importante o domínio de

saberes da sociedade não-indígena. Assim, os velhos contribuem

com a educação escolar na aldeia, acompanhando e cobrando dos

professores o ensino de saberes de dois mundos distintos, o

indígena e o não-indígena.

DISCURSO

Os velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia

acompanhando e cobrando dos professores o ensino de saberes da

tradição indígena e de saberes da sociedade não-indígena, de modo

a manter a cultura e a identidade do povo frente às transformações

advindas do contato.

Quadro 52 – Análise semiótica da unidade textual E11Q19

UNIDADE

TEXTUAL E11Q19

KÉCIO Você pode explicar como os mais velhos, os sábios, podem

contribuir para a educação escolar na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, solicito a PP9 que expresse sua percepção a respeito

do modo como os velhos podem contribuir com a educação escolar

na aldeia. Está presente em minha fala o pressuposto de que os

velhos podem contribuir com a educação escolar, indicando assim,

com meu fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao

entrevistado vinculada à explicação de como essa contribuição

239

pode se dar.

PP9

Ah, sim. Eles podem contribuir na... o papel desses curubey é

muito importante dentro da sociedade porque eles têm muito

conhecimento sobre o nosso povo. Nós, geração nova, não temos

muito esse conhecimento. Mas como eles já viveram isso lá atrás,

eles são nossas bibliotecas, nossos... como eu posso dizer?... nossas

bibliotecas... neles estão todos esses conhecimentos. Por isso, o

papel deles é muito importante dentro da sociedade. Para mim, eles

podem contribuir com a escola, ou no espaço da aldeia mesmo,

como é a vida do povo Paiter, como... dando uma experiência de

vida para os mais jovens. Isso é fundamental e muito importante.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Experiência, Sabedoria, Tradição, Interior, Povo,

Identidade, Conhecimento, Cotidiano, Particularidade.

Disfóricas: Inexperiência, Desconhecimento, Juventude, Exterior,

Generalidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência

ANÁLISE

A resposta enunciada por PP9 baseia-se na oposição experiência vs

inexperiência. Assim, ele identifica os velhos com a experiência, a

tradição, a sabedoria e o conhecimento sobre seu povo, enquanto a

inexperiência é associada à juventude, às novas gerações. Está

presente na fala de PP9 uma referência ao passado (lá trás),

enquanto situação distinta da que se vive atualmente, sendo

importante assim a presença dos velhos na educação escolar para

garantir que os conhecimentos construídos por eles em suas

experiências de vida, em outro momento distinto do atual, cheguem

às novas gerações do povo Paiter. Deste modo, PP9 considera que

os velhos são bibliotecas, no sentido de terem acumulado ao longo

da vida os conhecimentos necessários para se viver de acordo com

um modo específico de ser do seu povo. Ao considerar que o papel

dos velhos é fundamental para a educação das novas gerações em

relação ao modo de vida do povo, está presente na fala de PP9 a

alusão à distância que a educação escolar mantém em relação à

240

tradição, sendo por isso ressaltada em sua prática discursiva a

importância da presença dos velhos na educação das novas

gerações. A presença dos velhos na educação escolar, como

exemplos de vida e de tradição, é concebida então por PP9 como

um complemento na atual educação existente entre os Paiter.

DISCURSO

Os velhos são detentores da sabedoria, dos conhecimentos

tradicionais e da experiência, e por isso são fundamentais na

educação escolar das novas gerações inexperientes quanto ao modo

de vida particular praticado pelo povo Paiter em tempos passados.

Quadro 53 – Análise semiótica da unidade textual E13Q6

UNIDADE

TEXTUAL E13Q6

KÉCIO

Na entrevista anterior, você mencionou que os saberes matemáticos

tradicionais do povo Paiter deveriam ser ensinados na escola pelos

professores, com a participação dos sabedores indígenas. Você

poderia explicar qual seria o papel dos sabedores indígenas no

ensino de saberes matemáticos na escola?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, retomo uma afirmação de PP4 dada em entrevista

anterior, na qual ele mencionou a participação dos velhos de seu

povo na educação escolar existente na aldeia. Assim, fiz essa nova

pergunta no intuito de aprofundar a compreensão a respeito da ideia

que PP4 tem sobre o papel dos velhos na escola, em particular

sobre o papel dos velhos no ensino de saberes matemáticos.

PP4

O papel dos sabedores seria... primeiro o professor e o sabedor

mandava marcar encontro, falar de si... depois iria levar para a

escola. Porque hoje em dia, lá na comunidade onde eu trabalho, eu

tentei fazer isso com o sabedor, levar o sabedor para a sala de aula

para, junto com o professor, explicar como era. Só que não deu

certo.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Sabedoria, Tradição, Comunidade

Disfóricas: Escolarização

241

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

ANÁLISE

A oposição tradição vs escolarização é a base da resposta de PP4.

Assim, ele atribui ao sabedor o conhecimento da tradição, o

domínio de uma experiência vivida em tempos passados, mas que

não está presente na escola. Desse modo, PP4 atribui ao sabedor

indígena o papel de informar ao professor da comunidade tais

conhecimentos da tradição, a fim de que o professor introduza esses

conhecimentos no processo de escolarização existente atualmente

na aldeia. Destaca-se na fala de PP4 a incompatibilidade entre a

tradição, representada pelo sabedor, e a escolarização, representada

pela sala de aula, ao relatar que sua tentativa de levar o sabedor

para ensinar na escola não deu certo. Verifica-se que, para PP4, o

professor atua como um intermediador entre os saberes da tradição,

presentes na memória dos mais velhos, e o processo atual de

escolarização existente na aldeia.

DISCURSO

O papel dos velhos no ensino de saberes da tradição é o de informar

aos professores sobre os conhecimentos construídos nas

experiências vivenciadas em tempos passados, a fim de que os

professores possam introduzir esses conhecimentos no processo de

escolarização atualmente existente na comunidade.

Quadro 54 – Análise semiótica da unidade textual E9Q6

UNIDADE

TEXTUAL E9Q6

KÉCIO Então na sua opinião os mais velhos podem contribuir com a

educação escolar na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, faço referência a uma fala anterior de PP7 na qual

ele disse que consulta os mais velhos para preparar suas aulas. O

termo “então” presente no início da pergunta indica uma

continuação de uma questão anterior, mas também insere em minha

fala uma conclusão, a de que os velhos podem contribuir com a

242

educação escolar. Assim, está presente na enunciação da pergunta

um pressuposto de que a contribuição dos velhos para educação

escolar na aldeia é algo dado, sendo esse um aspecto de meu fazer

persuasivo que oferece como perspectiva de resposta ao

entrevistado a confirmação desse pressuposto (de outro modo, a

pergunta poderia ser: Os mais velhos podem contribuir com a

educação escolar na aldeia?).

PP7

Podem. Hoje os velhos são muito... vamos dizer... peças raras para

nós, peças muito importantes, devido a contribuírem com o ensino

da língua materna, tanto com os sons, como com todos os fonemas

da língua materna. Durante meu trabalho, sempre precisei de apoio

dos sabedores, como no conto de mitos do [povo] Paiter.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Experiência, Sabedoria, Tradição.

Disfóricas: Escolarização, Inexperiência.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência

ANÁLISE

A resposta de PP7 baseia-se na oposição experiência vs

inexperiência. Nesse sentido, enquanto professor, ele se considera

inexperiente em relação aos saberes da tradição, à língua materna e

à história de seu povo. Por isso, em seu trabalho ele depende da

experiência e da sabedoria dos velhos, que contribuem com a

educação escolar informando ao professor os conhecimentos da

tradição e da história particular de seu povo.

DISCURSO

Os mais velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia

informando ao professor os conhecimentos da tradição e da história

particular de seu povo.

Quadro 55 – Análise semiótica da unidade textual E8Q20

UNIDADE

TEXTUAL E8Q20

KÉCIO Por que você acha que está faltando essa pessoa? Os velhos não

têm interesse em ensinar? Os mais jovens não procuram os mais

243

velhos para aprender?

AUTOANÁLISE

Introduzo essa questão fazendo referência a uma fala anterior de

PP6, na qual ele atribuiu o desconhecimento que as novas gerações

têm da tradição à falta de uma pessoa experiente que as ensine. Em

minha fala, vinculo essa percepção de PP6 aos velhos, e intento

aprofundar a compreensão dessa percepção de PP6 sobre o

fenômeno, perguntando se é falta de interesse dos velhos ou dos

jovens. Nesse caso, está presente em minha fala o pressuposto de

que o fenômeno se explique a partir de uma dimensão pessoal e

individual das pessoas, e não a partir de fatores externos ou sociais,

tais como as relações interculturais estabelecidas após o contato.

Então, com meu fazer persuasivo, acabo indicando a perspectiva

individual ou pessoal como alternativa de resposta ao entrevistado.

PP6

Eu acho, assim, que hoje tudo é... acho que para eles o trabalho é

vão. Hoje, todos querem saber de ganhar um troquinho. Então, eles

não vão querer trabalhar sem ganhar nada. Então, isso é prejudicial.

Agora, se contratar um educador só para ensinar aquilo mesmo,

com certeza ele poderia chegar até aqui na sala, para ensinar aqui.

Então, isso é o que dificulta.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Valorização, Recompensa, Coletividade, Tradição.

Disfóricas: Desvalorização, Desinteresse, Trabalho,

Individualidade, Escolarização, Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP6 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele vincula a ausência dos mais velhos

em relação ao ensino da tradição aos jovens como consequência da

ideia de trabalho advinda da modernidade e assumida pelos velhos

após o contato (hoje), segundo a qual o ensino é um fazer que

requer uma recompensa financeira a quem o pratica. Destaca-se na

fala de PP6 o valor negativo que ele atribui a essa individualização

do papel do educador, apontando como solução ao problema a

contratação formal do velho, como forma de fazê-lo chegar à sala

244

de aula. Há nessa aparentemente simples resposta de PP6 uma

significativa inversão de valores nas relações sociais

tradicionalmente existentes na comunidade. Se antes os jovens

eram educados de uma forma social e coletivamente organizada,

após o contato as mudanças de valores impostas pela modernidade

e a presença da escola na aldeia produziram ressignificações dos

papéis sociais, submetendo-se os velhos à lógica do trabalho e da

venda de sua mão-de-obra, entendida esta como tudo o que for

relativo à ação de educar as novas gerações no espaço da sala de

aula da escola instalada na comunidade.

DISCURSO

Os velhos, enquanto detentores de conhecimentos da tradição, são

importantes para a educação escolar das novas gerações, mas para

que participem da escola na aldeia é necessário recompensá-los

financeiramente, pois novos valores advindos da modernidade

passaram a ser assumidos nas relações sociais após o contato.

Quadro 56 – Análise semiótica da unidade textual E6Q5

UNIDADE

TEXTUAL E6Q5

KÉCIO Dentro desse contexto e desse movimento, como você percebe a

importância e o papel dos mais velhos da comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP5 sua percepção a respeito do

papel dos velhos na introdução de saberes da tradição na educação

escolar existente na aldeia. Está presente em minha fala o

pressuposto de que os velhos são importantes e tem um papel na

introdução desses saberes na escola da aldeia, de modo que meu

fazer persuasivo oferece ao entrevistado a perspectiva de

confirmação do papel e da importância dos velhos nesse processo

(de outro modo, a pergunta poderia ser: Os velhos são importantes

para a introdução de saberes da tradição na escola da

comunidade?).

PP5 Dentro de tudo isso que eu acabei de falar agora, o papel dos

245

sábios, como a gente costuma falar, é tão importante, porque

sempre a gente está junto, sempre a gente está ligado, sempre a

gente está perguntando o que nós não sabemos. Nós jovens, que

estamos ainda no processo de conhecimento, no processo de

aprendizagem própria, dentro da nossa cultura, a gente precisa

ainda de apoio dos mais velhos, precisamos ainda dos conselhos

dos mais velhos da nossa aldeia, quer dizer, da nossa cultura na

verdade. Então, o papel dos mais velhos é fundamental no processo

de aprendizagem, no processo da construção da política da nossa

educação escolar indígena, dentro da nossa cultura. Então, pela

minha experiência, eu diria assim que todos os processos que nós

construímos nos outros trabalhos, na normatização da escrita do

Paiter Suruí, e outros que virão, que a gente está pensando também,

que seja bem vinda a contribuição dos mais velhos do nosso povo,

da nossa comunidade. Então, a gente sempre está junto, para que

nosso trabalho seja mais fortalecido, mais reforçado também dentro

da nossa cultura.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Experiência, Cultura, Particularidade, Tradição, Interior,

Identidade.

Disfóricas: Inexperiência, Exterior, Escola, Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência

ANÁLISE

A resposta enunciada por PP5 está baseada na oposição experiência

vs inexperiência. Nesse sentido, os velhos representam a

experiência em relação aos saberes da tradição no interior da

cultura e têm o papel fundamental de contribuir com a formação

dos professores, que ainda são inexperientes e jovens, para fins de

fortalecer o trabalho destes em relação à educação escolar indígena.

Verifica-se na fala de PP5 o papel intermediário atribuído ao

professor, que tem a função de aprender com os mais velhos para

ensinar na escola. Assim, o papel dos velhos na educação escolar

indígena não se dá de forma direta com sua presença em sala de

aula na escola da aldeia, mas através da contribuição na formação

246

dos professores a partir de referenciais internos da cultura do povo.

Nessa perspectiva, a mediação entre a tradição e a modernidade

cabe aos professores indígenas e não aos velhos, sendo entretanto

os velhos as referências internas para a formação dos professores

naquilo que diz respeito à tradição e à cultura do seu povo.

DISCURSO

Os velhos são importantes porque tem a experiência em relação aos

saberes da tradição no interior da cultura, contribuindo assim para a

formação dos professores voltada para a mediação entre tradição e

modernidade no âmbito da educação escolar indígena.

7.8 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização o que deve ser

ensinado na escola da aldeia da categoria de análise educação escolar indígena

Quadro 57 – Análise semiótica da unidade textual E2Q4

UNIDADE

TEXTUAL E2Q4

KÉCIO O que deve ser ensinado na escola de sua comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP1 sua percepção quanto às

especificidades da escola na comunidade, em particular sobre o que

deve ser ensinado. Está presente em minha fala o pressuposto de

que a escola deve ensinar algo na comunidade, e isso induz o

sujeito a especificar ou tipificar esse ensino como perspectiva de

resposta (de outro modo, a pergunta seria: Sua comunidade precisa

de escola?).

PP1

Primeiramente, o que pode ser ensinado na escola é priorizar o

conhecimento paiter, porque inicialmente, quem está na escola são

as crianças, os jovens. Então, não podemos ultrapassar... seria

prematuro a gente colocar um conhecimento não paiter primeiro

para as crianças. Como as crianças tem facilidade de aprender

qualquer coisa, não só paiter, mas qualquer criança no mundo,

247

então a gente está trocando a identidade e o conhecimento dela, que

servia de identidade para ela... por meio da escola a gente está

trocando a identidade dela, e colocando a identidade que seria dela

como uma segunda opção. Então, eu vejo que a escola tem que

ensinar primeiramente conhecimento paiter, o que precisa ser

ensinado para aquela criança, aquele jovem, aquela pessoa para ser

paiter, para ser reconhecida como paiter. Então, eu vejo que a

escola tem que ensinar o conhecimento paiter para depois conhecer

outros conhecimentos, áreas de conhecimento, porque está aí, o

Português está aí, o conhecimento ocidental está em qualquer lugar,

mas o conhecimento paiter não, o conhecimento paiter está

ofuscado, está perdido no meio dessa turma toda, e se a gente não

buscar, acaba se perdendo, e um conhecimento não paiter acaba

sendo priorizado por paiter, e acaba perdendo essa identidade.

Então é isso.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Identidade, Paiter, Manutenção,

Tradição, Resistência.

Disfóricas: Generalidade, Não-Paiter, Mudança, Ocidente,

Ofuscamento, Perda, Modernidade, Homogeneização, Dominação.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs

modernidade, visto que as categorias eufóricas estão relacionadas

ao plano interno da cultura do povo Paiter, enquanto as categorias

disfóricas relacionam-se às mudanças e transformações

provenientes do contato com o plano externo à cultura e à

sociedade do povo Paiter. Assim, PP1 enfatiza a particularidade do

valor da tradição, da cultura e da identidade do povo Paiter, de

forma reiterada, destacando os riscos da generalidade enquanto

característica associada à modernidade, à troca de identidade, ao

ofuscamento da tradição. PP1 destaca a particularidade da cultura

de seu povo, de forma repetida e reiterada, em oposição à

generalidade das transformações promovidas pela modernidade e

248

disseminada pelo Ocidente. PP1 aborda a escola na aldeia como um

espaço ambíguo, que tanto pode fortalecer a identidade paiter,

quanto pode substituí-la por outra. Assim, o conteúdo e a ordem do

que deve ser ensinado na escola é determinante para a reprodução

ou não da tradição, da cultura e da identidade. O ordenamento

temporal enunciado por PP1 em relação ao que deve ser ensinado

na escola (primeiramente, segunda opção, depois) indica que, para

ele, a educação escolar na aldeia também deve contemplar os

saberes da modernidade, da cultura não-Paiter, tratados como

“outros conhecimentos” ou “conhecimento ocidental”. PP1

apresenta em sua fala uma concepção não essencialista de

identidade, visto que considera a possibilidade de sua substituição e

troca por meio da educação, que no espaço empírico da aldeia

converte-se na possibilidade das crianças e jovens deixarem ou não

de ser uma pessoa paiter.

DISCURSO

Antes de tudo, o que a escola na aldeia deve ensinar deve estar

orientado para a continuidade da cultura e da identidade do povo

Paiter, porque a escola na aldeia pode ser um espaço de

fortalecimento ou de substituição de identidades.

Quadro 58 – Análise semiótica da unidade textual E11Q25

UNIDADE

TEXTUAL E11Q25

KÉCIO Que tipo de conhecimento ou saberes deve ser trabalhado na escola

da aldeia?

AUTOANÁLISE

Com essa questão, tive a intenção de compreender a percepção que

PP9 tem quanto às especificidades do que ensinar na escola de sua

comunidade. Permeia minha fala, enquanto fazer persuasivo, o

pressuposto de que a escola deve ensinar algo na comunidade, o

que indica a PP9 uma perspectiva de resposta que é a de tipificar os

saberes a serem ensinados (de outro modo, a pergunta seria: Sua

comunidade precisa de escola?).

249

PP9

Como nós vivíamos antes. Conhecimentos sobre como nós

vivíamos antes. Como era nosso território antigamente. E como os

clãs se organizavam antes do contato com não-indígena. E como

eram os guerreiros, se era por clã, se era misturado mesmo. E como

funcionava o casamento. E qual pessoa tinha mais mulheres, se era

aquele guerreiro ou só o chefe. Não só esses conhecimentos. Tem

vários conhecimentos que a gente pode aplicar na escola.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Território, Interior, Indígena, Particularidade.

Disfóricas: Não-indígena, Exterior, Contato, Mudança,

Generalidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta de PP9 está baseada na oposição particularidade vs

generalidade. Nesse sentido, ele considera que na escola da aldeia,

entre conhecimentos gerais que podem ser aplicados, devem ser

ensinados conhecimentos sobre o modo particular de vida de seu

povo, que existia no interior de seu território antes do contato com

a sociedade externa e não-indígena. Há na fala de PP9 uma ênfase

em a escola abordar os modos próprios de organização social de

seu povo, fazendo referência a uma tradição particular de relações

de parentesco e de organização clânica que se alterou após o

contato. O contato é uma categoria que emerge na fala de PP9

como uma cisão, entre o passado e o presente, o antes e o agora,

entre uma forma tradicional e particular de vida, vinculada a uma

identidade cultural existente no passado, e outra forma de vida

alterada e relacionada a uma identidade cultural contemporânea

marcada pelas relações com a sociedade não-indígena

colonizadora. PP9 aponta assim, em sua fala, a possibilidade de a

escola na aldeia, a partir da escolha de saberes particulares de seu

povo, revisitar um modo particular de vida distinto do que

atualmente se dá no território de seu povo, fazendo com que a

educação escolar na comunidade ganhe contornos particulares

dentro de um universo generalista de conhecimentos que

250

caracteriza o currículo da escola não-indígena.

DISCURSO

Entre os saberes gerais a serem trabalhados na escola da aldeia

devem estar os relacionados à forma particular de vida que o povo

tinha antes do contato com a sociedade não-indígena,

especialmente quanto à organização social e às relações

tradicionais de parentesco praticadas no interior do território.

Quadro 59 – Análise semiótica da unidade textual E13Q20

UNIDADE

TEXTUAL E13Q20

KÉCIO Que tipo de conhecimento ou saberes deve ser trabalhado então na

escola da aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP4 a forma como ele concebe o

tipo de conhecimento ou saber a ser trabalhado na escola da aldeia.

O termo “então” presente em minha fala vinculada a pergunta a

outras questões feitas anteriormente na entrevista, nas quais foram

abordadas mudanças pelas quais a cultura e a identidade do povo

sofreram com o contato e a chegada da escola na aldeia. Desse

modo, ao assim formular a pergunta, nesse contexto da entrevista,

meu fazer persuasivo indica ao entrevistado a possibilidade de

responder a partir de uma perspectiva problematizadora e crítica

quanto ao que se ensina na escola, enquanto prática que se

contraponha às mudanças que estão ocorrendo na cultura de seu

povo.

PP4

Poderia se trabalhar para contribuir para a comunidade, com a

educação tradicional, artesanatos... e deixar o de hoje para os

professores... tem que estar por perto ajudando os professores como

era antes.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Comunidade, Tradição.

Disfóricas: Modernidade, Mudança.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

251

ANÁLISE

A resposta de PP4 baseia-se na oposição tradição vs modernidade.

Nesse sentido, ele considera que a escola na aldeia deveria abordar

tanto os conhecimentos da tradição, relacionados a uma existência

cultural de seu povo situada no passado, quanto os conhecimentos

da modernidade, conhecimentos contemporâneos, sobre os quais os

professores têm o domínio. Em relação aos primeiros saberes, PP4

destaca a necessidade de os professores receberem ajuda, uma vez

que não vivenciaram e não possuem experiências e conhecimentos

sobre a forma tradicional de vida que seu povo tinha no passado.

Verifica-se que em sua prática discursiva PP4 pressupõe a

existência de uma tradição a ser revisitada pela escola (artifício do

arcaico), ao mesmo tempo em que considera a necessidade de os

professores ensinarem novos saberes característicos da

contemporaneidade. Destaca-se assim um apelo (tem que) às

memórias de um saber experienciado ou vivido no passado e o

reconhecimento da necessidade do domínio de conhecimentos

necessários nas relações com a sociedade envolvente no presente.

Tal perspectiva aproxima-se de um a concepção de escola enquanto

espaço de hibridação cultural, na qual e educação escolar na aldeia

está voltada para a promoção da interculturalidade.

DISCURSO

Os conhecimentos a serem ensinados na escola da aldeia devem

estar relacionados tanto à tradição, que permeava a vida do povo no

passado, quanto à modernidade, relacionada ao modo vida do povo

no presente.

Quadro 60 – Análise semiótica da unidade textual E4Q7

UNIDADE

TEXTUAL E4Q7

KÉCIO O que deve ser ensinado na escola da comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP3 sua percepção a respeito do

que deve ser ensinado na escola. Está presente em minha fala o

pressuposto de que a escola deve ensinar na comunidade. Assim,

252

indico ao entrevistado uma perspectiva de resposta relacionada

apenas à caracterização do que deve ser ensinado (de outro modo, a

pergunta seria: A escola deve ensinar na comunidade?).

PP3

O que deve ser ensinado na escola são os conteúdos não-indígenas,

do currículo da escola não-indígena, e deve ensinar também a

cultura indígena, para ele não se esquecer do que ele é.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Indígena, Cultura, Identidade, Interior.

Disfóricas: Não-indígena, Esquecimento, Mudança, Exterior.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A resposta de PP3 está baseada na oposição indígena vs não-

indígena. Nesse sentido, PP3 considera que a escola na aldeia deve

ensinar tanto conhecimentos da sociedade não-indígena, enquanto

provenientes de uma cultura distinta e exterior, quanto

conhecimentos internos à cultura indígena. Destaca-se em sua fala

a tensão resultante da relação entre escolarização e mudança

cultural, uma vez que PP3 considera o risco de perda de identidade

que os membros de seu povo podem sofrer caso a escola também

não ensine na aldeia os conhecimentos de sua própria cultura.

Nessa perspectiva apontada por PP3 em sua prática discursiva, a

escola assume uma função política de afirmação de identidade, a

partir de uma perspectiva contrastiva de identificação e

diferenciação cultural, garantindo a existência de uma diferença

entre o interno e o externo a uma fronteira identitária. PP3 expõe

assim uma concepção não essencialista de identidade e sua fala

vincula educação escolar na aldeia com a possibilidade de

promoção da etnicidade de seu povo.

DISCURSO

A escola na aldeia deve ensinar tanto conhecimentos não-indígenas

quanto indígenas, de modo que continue a existir uma

diferenciação cultural entre o interno e o externo à fronteira

identitária do povo.

253

7.9 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização motivações para

tornar-se professor da categoria de análise educação escolar indígena

Quadro 61 – Análise semiótica da unidade textual E2Q7

UNIDADE

TEXTUAL E2Q7

KÉCIO Por que você se tornou professor?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tenho a intenção de compreender os motivos que

levaram PP1 a se tornar professor. A pergunta enunciada de forma

aberta, sem indicação de uma perspectiva particular que orientasse

a resposta de PP1, tal como a de uma motivação pessoal, uma

indicação coletiva ou outro fator que pudesse estar relacionado.

PP1

Sinceramente, professor Kécio, nunca imaginei que um dia seria

professor. Então, minha vida me colocou num caminho assim, meio

que pego de surpresa. Nunca imaginei ser professor. Mas o que me

fez ser professor é que faltou professor na minha comunidade,

pessoa com nível de escolaridade razoável para se tornar professor

indígena, e a comunidade acabou escolhendo eu como professor.

Mas como eu não queria, não imaginava ser professor, eu me tornei

por necessidade da minha comunidade. Então, por necessidade da

minha comunidade, hoje sou professor, contribuindo à minha

comunidade devido à confiança que a comunidade deu a mim.

Então eu me tornei professor por meio da minha comunidade, por

necessidade deles mesmo.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Escolaridade, Indígena, Coletividade.

Disfórica: Individualidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade

ANÁLISE

A resposta de PP1 baseia-se na oposição individualidade vs

coletividade. Nesse sentido, antes de ser uma decisão individual, o

tornar-se professor no caso de PP1 se deu por uma necessidade da

coletividade, por um pedido de sua comunidade. Assim, a

254

motivação para PP1 se tornar professor indígena não foi uma

vontade individual, prevista e perseguida como plano de vida por

ele, mas um papel social lhe imposto como função dentro de sua

comunidade. Destaca-se na fala de PP1 o peso atribuído à

escolarização em detrimento da experiência de vida e domínio da

tradição na escolha feita pela comunidade, visto que PP1 é um

jovem que teve uma formação escolar maior que a de outros

membros de sua comunidade. Nesse caso, a categoria

“escolaridade” presente na fala de PP1 se mostra fortemente

presente na concepção de professor construída pela comunidade,

superando outras características pessoais que poderiam ganhar em

relevância, caso fosse outra a concepção de professor, tais como a

experiência de vida e o conhecimento das tradições, que quase

sempre estão associadas aos membros mais velhos do povo.

DISCURSO

Eu me tornei professor indígena não por uma vontade individual,

mas por necessidade e por indicação de minha comunidade, em

razão do meu nível de escolaridade.

Quadro 62 – Análise semiótica da unidade textual E14Q3

UNIDADE

TEXTUAL E14Q3

KÉCIO Então você se tornou professor por necessidade e por um convite da

comunidade?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, faço alusão à resposta dada por PP10 em uma

questão anterior da entrevista. Anteriormente, PP10 havia dito que

foi escolhido pela comunidade para ser professor, em razão de sua

escolaridade. Está presente em minha fala o pressuposto de que a

decisão de PP10 se tornar professor não foi individual, mas

motivada pela coletividade. Ofereço assim, com meu fazer

persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado que é a de

confirmar esse pressuposto (de outro modo, a pergunta poderia ser:

Você tinha planos de ser professor?).

255

PP10

Isso. Porque não tinha outro professor para dar aula. Quando surgiu

aquela lei, de que só indígena vai trabalhar e que pode trabalhar

com a sua comunidade, então a comunidade já pensava que eu

poderia estar praticando e trabalhando com os outros indígenas

também para estar passando experiência que eu estou pegando com

pessoas que tem experiência, que já trabalharam com outros

indígenas... igual a maioria dos professores que tem... que deu aulas

para nós, são experientes nessa área. Então, era tudo dentro da

forma da convivência de cada cultura do povo que eles trabalhavam

e explicavam, trabalhavam com a gente na sala de aula.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Coletividade, Indígena, Experiência

Disfóricas: Não-indígena, Individualidade, Inexperiência

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade

ANÁLISE

A resposta de PP10 baseia-se na oposição individualidade vs

coletividade. Nesse sentido, ele considera que se tornou professor

por uma necessidade da coletividade de sua comunidade, antes de

ser apenas uma motivação individual. Destaca-se na fala de PP10

sua necessidade de aprender com outras pessoas com mais

experiência para sua atuação como professor (em resposta a uma

questão anterior da entrevista – E14Q2, PP10 disse que, quando foi

indicado para ser professor, era o membro da comunidade com

maior nível de escolaridade). Verifica-se assim que o critério da

experiência de vida em relação à tradição e à cultura não é

determinante para a escolha que a comunidade realiza entre seus

membros para a indicação à função de professor indígena. Assim,

não tendo a experiência vivida pelo povo em tempos passados,

PP10 se vê como mediador entre a tradição e a modernidade,

recorrendo via de regra aos velhos e sábios quando necessita de

referências internas à cultura para atuação em sala de aula.

DISCURSO Tornei-me professor por necessidade e indicação coletiva de minha

comunidade e em razão do meu nível de escolaridade.

256

Quadro 63 – Análise semiótica da unidade textual E5Q5

UNIDADE

TEXTUAL E5Q5

KÉCIO Por que você se tornou professor?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, fiz uma pergunta aberta a PP4 no sentido de

entender os motivos que o levaram a ser professor, sem oferecer,

com meu fazer persuasivo, uma perspectiva particular de resposta

ao entrevistado.

PP4

Foi um caso de necessidade da comunidade. Eu não pensava em ser

professor, mas a comunidade me chamou para ser professor da

comunidade.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Coletividade

Disfóricas: Individualidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Coletividade vs Individualidade

ANÁLISE

A resposta de PP4 baseia-se na oposição coletividade vs

individualidade. Nesse sentido, ele considera que se tornou

professor não por um plano individual de vida, mas por indicação

coletiva de sua comunidade. Destaca-se na fala de PP4 que o

tornar-se professor no caso dele deu-se como cumprimento de uma

responsabilidade atribuída a ele por sua comunidade, de modo que

ser professor indígena é a assumir um papel social de relevância

coletiva, acima de anseios pessoais ou individuais de vida.

DISCURSO Tornei-me professor não por uma vontade individual, mas por

indicação da coletividade de minha comunidade.

Quadro 64 – Análise semiótica da unidade textual E4Q3

UNIDADE

TEXTUAL E4Q3

KÉCIO Por que você se tornou professor?

AUTOANÁLISE Nessa questão, fiz uma pergunta aberta a PP3 com o intuito de

perceber motivos que o levaram a ser professor, não oferecendo

257

com meu fazer persuasivo uma perspectiva particular de resposta

ao entrevistado.

PP3

Em 2001, terminei o Ensino Fundamental, o oitavo ano. A partir do

momento que eu terminei o ensino fundamental, vi que a minha

comunidade estava precisando de professor... e um dos que eu me

preocupei foi a minha comunidade, porque se eu me preocupasse

com meu futuro, eu enfrentaria o Ensino Médio e faculdade por

mim mesmo, mas a minha preocupação foi a minha comunidade,

porque não tinha outra pessoa que tinha o ensino... que tinha

concluído até o oitavo ano, que hoje é o nono ano. E, a partir de

2002, entrei para dar aula. Desde aquele ano eu trabalho na escola.

Em 2009 fiz vestibular para ingressar na universidade, passei, só

que eu não concluí o Ensino Médio naquele ano, estava incompleto

ainda, por isso eu não entrei naquele ano. Eu continuei fazendo no

CEEJA, que é onde a gente faz por módulo, terminei e fiz outro

vestibular em 2010, passei e comecei a estudar. Sou estudante da

UNIR, do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural.

Escolhi a parte da linguagem... a área de linguagem.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Escolaridade, Coletividade.

Disfóricas: Individualidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade

ANÁLISE

A resposta de PP3 baseia-se na oposição individualidade vs

coletividade. Nesse sentido, ele aponta que a decisão de se tornar

professor se deu por uma necessidade da coletividade de sua

comunidade, em razão da ausência de outra pessoa que, como ele,

tivesse concluído o ensino fundamental. Assim, para cumprir um

papel social importante para a coletividade, PP3 abandonou planos

pessoais de continuação dos estudos para trabalhar como professor

em sala de aula na comunidade. Emerge da fala de PP3 a categoria

“escolaridade” como sendo uma característica associada à

concepção de professor indígena em sua comunidade, em

detrimento de outras características pessoais tais como aquelas

258

relativas à experiência de vida e ao conhecimento das tradições do

povo existentes em tempos passados.

DISCURSO Tornei-me professor não por motivações pessoais, mas por

necessidade de minha comunidade.

Quadro 65 – Análise semiótica da unidade textual E7Q1

UNIDADE

TEXTUAL E7Q1

KÉCIO PP6, por que você se tornou professor?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intentei perceber possíveis razões que levaram PP6

a se tornar professor. Com esse intuito, fiz uma pergunta aberta,

não oferecendo com meu fazer persuasivo uma perspectiva

particular de resposta ao entrevistado.

PP6

Porque, como a gente fala, as crianças tinham muita dificuldade de

aprender. Falo da minha própria experiência. Sem professor

indígena, eu tive muita dificuldade de aprender. Meus alunos

também estavam falando disso. Quando o professor não indígena

fala, eu não entendo muito bem o que ele está falando, e não

compreendo muito bem o que ele está falando. Então eu tomei uma

decisão, precisava ter um professor indígena para esclarecer e

ensinar melhor aos alunos, porque as crianças não vão entender e

falar na língua portuguesa. Então, precisa ter um professor que

saiba falar, que compreenda e fale dos dois conhecimentos. Então

eu tomei essa decisão, vendo nossa realidade, porque tem muitos

alunos daqui que concluem o Ensino Fundamental e vão para a

cidade porque está sem professor na aldeia. Então eu escolhi ser

professor para ajudar a comunidade.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Particularidade, Indígena, Coletividade,

Interculturalidade, Compromisso, Dedicação, Preocupação.

Disfóricas: Não-indígena, Dificuldade, Ausência, Incompreensão,

Indiferença.

OPOSIÇÃO Preocupação vs Indiferença

259

SEMÂNTICA

ANÁLISE

A resposta de PP6 baseia-se na oposição preocupação vs

indiferença. Nesse sentido, ele afirma que a decisão de se tornar

professor foi individual, mas motivada por uma preocupação com

os estudantes de sua comunidade, que apresentavam dificuldades

de aprendizagem dada a indiferença da educação escolar não-

indígena em relação às particularidades culturais das crianças

indígenas. Assim, tocado por essa situação de incompreensão que

ele próprio vivenciou em sua experiência de escolarização, decidiu

ser professor como um compromisso de contribuir com sua

comunidade, proporcionando uma educação escolar intercultural a

seus alunos.

DISCURSO

A decisão de me tornar professor foi pessoal, mas motivada pela

preocupação com as dificuldades de aprendizagem dos alunos de

minha comunidade, dada a indiferença dos professores não-

indígenas com as particularidades culturais das crianças indígenas.

Quadro 66 – Análise semiótica da unidade textual E3Q1

UNIDADE

TEXTUAL E3Q1

KÉCIO PP2, por que você se tornou professor?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, fiz uma pergunta aberta a PP2 relacionada às razões

pelas quais ele se tornou professor. Não ofereci em minha fala uma

perspectiva particular que pudesse direcionar a resposta do

entrevistado.

PP2

Foi assim, antes de começar tudo isso, eu estudei na escola rural.

Comecei muito tarde também, comecei a estudar a primeira série

do ensino fundamental, naquela época era primeira série ainda, com

10 anos de idade. Então, eu tinha perdido muito tempo. Na época

meu pai era cacique, liderança geral da comunidade, então na época

ele não parava em casa, e onde ele ia eu ia junto com ele, até que

em um tempo a gente parou nessa aldeia para poder dar tempo para

260

estudar. Então, comecei a estudar na escola dos Colonos, e a partir

daí, eu comecei a seguir um pouco de estudo. Terminei aqui, depois

fui estudar na escola Celso Ferreira da Cunha, lá em Riozinho, que

é distrito de Cacoal. Lá terminei o Ensino Fundamental, a oitava

série na época, e depois cursei a primeira série do ensino médio lá,

e assim eu terminei o estudo lá, e então parei, fiquei um bom tempo

parado. Quando foi em 2004, comecei a estudar me descolando

daqui para a cidade, de moto, para tentar terminar o Ensino Médio.

Então eu cursei o ensino regular, terminei o segundo ano do Ensino

Médio, terminando no ano de 2004. Fiquei parado de novo e voltei

a estudar em 2007, para tentar terminar o terceiro ano do Ensino

Médio, na escola seriada, na escola Onorina Lucas de Brito. Então,

terminei em 2007 e assim eu consegui estudar. Foi a maior

dificuldade para mim estudar, porque comecei a estudar em uma

escola que não era da comunidade, que não era bilíngue, de uma

cultura diferente, onde eu tive muita dificuldade de aprender na

língua portuguesa. Então, a partir daí, começamos a pensar junto

com a comunidade a necessidade da comunidade. Vimos essa

dificuldade de nossos alunos, nossos meninos terem a dificuldade

de entender a língua portuguesa. Então essa necessidade fez a

comunidade pensar qual seria a melhor opção para a comunidade...

para a educação da comunidade. Nisso, a comunidade pensou em

chamar uma pessoa da comunidade para que pudesse dar aula, para

que nossos alunos não sofressem muito, não tirassem um pouco da

cultura. Então, essa dificuldade fez com que eles me escolhessem

como professor, na escola paiterey, onde a gente estuda. Então, isso

facilita muito para nossos meninos, porque ao mesmo tempo em

que a gente vai dando aula, ou traduzindo um livro para nossa

língua, transmitimos para eles o que está significando essa fala.

Então, usando o bilíngue na aula é muito importante, porque a

gente transmite uma coisa que a gente tem dificuldade de transmitir

para eles. Então essa necessidade fez com que a comunidade

escolhesse professores, professores indígenas para trabalhar dentro

261

da comunidade.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Escolaridade, Particularidade, Indígena, Coletividade,

Compromisso, Cultura, Bilinguismo, Interior

Disfóricas: Dificuldade, Não-Indígena, Generalidade, Sofrimento,

Dificuldade, Exterior, Indiferença.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade

ANÁLISE

A resposta de PP2 está baseada na oposição individualidade vs

coletividade. Nesse sentido, ele considera que o motivo principal de

ter se tornado professor está relacionado à necessidade coletiva de

sua comunidade em ter professores indígenas compromissados com

as particularidades culturais dos estudantes indígenas. Destaca-se

no início de sua fala a categoria “escolaridade” como importante

para a comunidade ter lhe escolhido para ser professor. PP2

considera que ser professor indígena em sua comunidade é

importante para a superação das dificuldades sofridas pelos

estudantes em razão da indiferença da educação escolar não-

indígena em relação às particularidades internas da cultura de seu

povo.

DISCURSO

Tornei-me professor em razão de minha escolaridade e por escolha

coletiva de minha comunidade, para fins de contribuir com a

adequação da educação escolar de nossos alunos às particularidades

da cultura do nosso povo.

7.10 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização papel do

professor na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena

Quadro 67 – Análise semiótica da unidade textual E15Q22

UNIDADE

TEXTUAL E15Q22

262

KÉCIO

Uma penúltima pergunta: Na sua opinião, em termos gerais, qual é

o papel dos professores Paiter em suas comunidades? O que deve

se esperar desses professores?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intentei ouvir de PP1 sua percepção a respeito do

papel que os professores paiter têm em suas comunidades e o que

deve se esperar desses professores. Penúltima questão de uma série

de quinze entrevistas, tive o interesse de compreender com essa

pergunta, em síntese, como PP1 se percebe enquanto professor

dentro de um movimento de resistência ou de transformações

culturais pelas quais passa seu povo na contemporaneidade. Nesse

sentido, está presente em minha fala o pressuposto de que os

professores paiter tem um papel a cumprir e que deles se espera

algo, alguma ação, comportamento ou atitude. Esse pressuposto

indica, como fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao

entrevistado, que pode formula-la a partir da confirmação de tal

pressuposto.

PP1

Os professores, eu acredito que eles têm uma função fundamental

em todo esse processo que a gente debateu aqui, professor. Sem

eles, não vai ter a oportunidade de a gente debater realmente os

problemas que existem e tirar as reflexões disso. Os professores

têm essa tarefa, essa missão, de não somente dar aulas, mas de

fazer refletir os problemas nas comunidades indígenas. Ao longo

do tempo, a gente percebe que a escola fez transformar pessoas, do

jeito que as pessoas pensam. Vamos supor uma pessoa que pensa

uma escola, e coloca essa escola em uma comunidade... quer dizer,

a intenção dessa pessoa é transformar esse grupo do jeito que ela

pensou aqui. Aí, o papel dos professores indígenas é ao contrário...

eles pensarem como é que a gente vai escolarizar a nossa

comunidade, as nossas crianças, mas pensando primeiro na visão de

mundo dos paiter e na visão de futuro. Porque na visão de mundo,

você vai conhecer todo o pensamento paiter como paiter. Você vai

partir dessa visão de mundo para uma visão de futuro, para onde

você vai, e como você vai daí para frente. O papel dos professores é

263

fundamental nesta questão. Então, volto mais uma vez. O professor

tem que ter um pensamento crítico por causa disso, não somente ser

um professor de dar aula, mas um papel de professor de fazer

mudanças nessa perspectiva, ser conhecedor da visão de mundo

paiter e também ser um estratégico, uma pessoa estratégica para

fazer acontecer a visão de futuro paiter... de ser um grande líder

também. É isso.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Consciência, Transcendência, Indígena, Identidade,

Criticidade, Particularidade, Engajamento, Liderança.

Disfóricas: Problema, Escolarização, Alienação, Imanência,

Negação.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Imanência vs Transcendência

ANÁLISE

A resposta de PP1 baseia-se na oposição imanência vs

transcendência. Nesse sentido, ele considera que o professor paiter

tem o papel fundamental de extrapolar os limites de uma

compreensão circunscrita ao que é imanente à vida cotidiana e ao

espaço da sala de aula, a fim de atingir uma consciência

transcendente do estado em que o povo se encontra no mundo,

podendo assim provocar mudanças e reorientar o futuro de seu

povo, de acordo com uma visão de mundo que lhe é própria.

Consciente de que o processo de escolarização a que seu povo foi

submetido provocou transformações na forma de pensar das

pessoas, PP1 atribui ao professor paiter a missão de usar o próprio

processo de escolarização em favor da reversão desse processo

alienante. Para tanto, ele considera necessário fundar a escola sobre

bases orientadas por uma visão de mundo paiter, sendo

fundamental para isso a atuação do professor como ser engajado e

crítico.

DISCURSO

O professor paiter tem a missão de transcender os limites de uma

compreensão circunscrita ao que é imanente à vida cotidiana, a fim

de atingir uma consciência que lhe possibilite reorientar a

escolarização de seu povo com base na visão de mundo própria dos

264

paiter.

Quadro 68 – Análise semiótica da unidade textual E14Q23

UNIDADE

TEXTUAL E14Q23

KÉCIO

Considerando tudo o que você disse, qual é, na sua opinião, o papel

do professor na aldeia? O que deve se esperar do professor na

aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intentei ouvir de PP10, em síntese, como ele

percebe o papel do professor no contexto dos problemas e desafios

da educação escolar indígena e de seu povo na contemporaneidade.

Ao enunciar as perguntas que compõem a questão, inseri em minha

fala, como um fazer persuasivo, o pressuposto de que os

professores paiter tem um papel a cumprir. Esse pressuposto

constitui-se em uma perspectiva de resposta ao entrevistado, sendo

a de confirmar tal pressuposto (de outro modo, a pergunta poderia

ser: O professor tem um papel a cumprir na aldeia?).

PP10

Que o professor seja honesto com a sua comunidade. Porque, como

eu estava falando, tem gente que não vai... que é professor não

porque querem e tem vontade de trabalhar com o seu povo, mas por

indicação da família, e está só pelo salário, vamos dizer assim.

Então, o professor tem que estar ciente que a responsabilidade, a

vida de crianças está dentro da mão dele, do professor. Porque ele

está na frente, falando, incentivando. Porque as crianças estão

olhando, espelhando nele, aprendendo com ele. Ele tem que estar

sempre na frente, ali, ensinando a verdade... porque as crianças

estão aprendendo com ele ali. Então, o papel do professor é estar

ali, honesto, com as crianças... principalmente com a vida da sua

comunidade, do seu povo.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Compromisso, Coletividade, Consciência,

Responsabilidade, Liderança, Comunidade, Povo.

Disfóricas: Individualidade, Descompromisso.

265

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade

ANÁLISE

A resposta de PP10 está baseada na oposição individualidade vs

coletividade. Nesse sentido, ele considera que o professor na aldeia

deve ter um compromisso com a coletividade de seu povo, em

detrimento de interesses individuais. Para PP10, o professor tem o

papel de ser um líder a indicar com responsabilidade e honestidade

às novas gerações a distinção entre o verdadeiro e o falso.

Atribuindo ao professor na aldeia a condição de espelho da

comunidade, PP10 considera que o professor tem o papel de ser

responsável pela vida de seu povo. Está presente na fala de PP10

uma referência a tensões existentes na educação escolar na aldeia

quanto à atuação do professor, visto que, além de valores e

referências da tradição, outros valores da modernidade e do mundo

ocidental também permeiam a constituição e o fazer do professor,

entre eles o interesse econômico, característico das relações

capitalistas da alienação da mão-de-obra em troca de um salário.

DISCURSO

O professor deve ser um líder a serviço da coletividade,

preocupando-se com a vida de seu povo de forma honesta e

verdadeira.

Quadro 69 – Análise semiótica da unidade textual E11Q30

UNIDADE

TEXTUAL E11Q30

KÉCIO Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas

comunidades? O que deve se esperar desses professores?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de compreender o papel que PP9

atribui ao professor em geral no espaço da aldeia. Está presente em

minha fala ao enunciar as perguntas um pressuposto de que os

professores tem um papel a cumprir na aldeia. Tal pressuposto

constitui-se em um fazer persuasivo, oferecendo ao entrevistado a

perspectiva de resposta relacionada à confirmação de tal

266

pressuposto (de outro modo, a pergunta poderia ser: O professor

tem um papel a cumprir na aldeia?).

PP9

O papel dos professores dentro da comunidade é... o papel do

professor é muito importante dentro da comunidade dele, porque

ele é o espelho da comunidade. Porque ele tem um pouco de

conhecimento. Eu vou falar verdade, que não temos muitos

conhecimentos. Ele tem um pouco de experiência e conhecimentos.

E por isso, ele deve falar para a comunidade que isso é certo, que

isso é errado. Pode até puxar a comunidade para melhorar a escola,

para melhorar o funcionamento da escola. Como eu estou falando...

depende do professor, depende do interesse do professor. O

professor indígena é muito importante dentro da comunidade. A

partir de mim mesmo eu tiro essa ideia, essa experiência. Para a

comunidade mesmo acompanhar esses... quem deve explicar esses

conhecimentos para a comunidade, para a comunidade ficar ligada

nesses conhecimentos, é o próprio professor. O próprio professor

tem que ter contato com a comunidade. Não é isolado, não é

separado da comunidade. Tem que trabalhar junto com a

comunidade, porque ele é a força da comunidade, assim como a

comunidade é a força dele.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Interior, Conhecimento, Sabedoria, Coletividade,

Liderança, Compromisso, Experiência, Consciência, Interesse.

Disfóricas: Individualidade, Isolamento, Inexperiência,

Desinteresse.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade

ANÁLISE

A resposta de PP9 está baseada na oposição individualidade vs

coletividade. Nesse sentido, PP9 considera que o professor, com

sua experiência e conhecimento individual, tem o compromisso de

liderar a coletividade de sua comunidade, indicando-lhe o que é

certo e o que é errado. PP9 destaca a íntima relação entre o

professor e sua comunidade, afirmando que um é a força do outro,

de modo que o trabalho do professor não deve ser isolado da

267

realidade do seu povo. Nesse sentido, a concepção que PP9

manifesta sobre o papel do professor na aldeia é a de um líder,

responsável por ser o mediador entre sua comunidade e a escola, o

elo entre a tradição e os novos conhecimentos necessários à vida do

seu povo na contemporaneidade.

DISCURSO

O papel do professor na aldeia é o de ser um líder que, com sua

sabedoria e experiências individuais, tem o compromisso de guiar a

coletividade de seu povo entre o certo e o errado, ligando a tradição

aos conhecimentos necessários à vida na contemporaneidade.

Quadro 70 – Análise semiótica da unidade textual E13Q48

UNIDADE

TEXTUAL E13Q48

KÉCIO

Para concluirmos, na sua opinião, qual é o papel dos professores

paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses

professores?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, após uma sequência de outras perguntas de uma

entrevista, intento ouvir de PP4, em síntese, qual é a sua percepção

do papel do professor na aldeia. Ao enunciar as pergunta a PP4,

parti de um pressuposto de que os professores tem um papel a

cumprir na aldeia. Esse pressuposto manifesto por mim constitui-se

em um fazer persuasivo, indicando a PP4 como alternativa de

resposta a confirmação ou justificação desse pressuposto (de outro

modo, a pergunta poderia ser: O professor tem um papel a cumprir

na aldeia?).

PP4

Meu papel é levar os conhecimentos de fora para dentro da

comunidade. E também, os conhecimentos que eu tenho de dentro

da comunidade, tentar levar para dentro da escola, para juntar esses

conhecimentos e tentar melhorar a educação da comunidade, da

escola indígena da comunidade.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Conhecimento, Interior, Tradição, Indígena.

Disfóricas: Exterior, Modernidade, Não-Indígena.

268

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Interior vs Exterior

ANÁLISE

A resposta de PP4 baseia-se na oposição interior vs exterior. Nesse

sentido, ele considera que o papel do professor é o de introduzir no

interior de sua comunidade conhecimentos existentes no exterior do

território, advindos da sociedade não-indígena. De igual modo, tem

também o professor o papel de levar para o interior da escola da

aldeia os conhecimentos que estão fora dela, mas que pertencem à

tradição de seu povo. Nessa perspectiva manifesta por PP4, o

professor é responsável por promover o encontro de conhecimentos

da tradição e da modernidade, juntando-os no interior da escola.

Tal concepção aproxima-se de uma perspectiva intercultural de

educação escolar.

DISCURSO

O professor tem o papel de levar para o interior da comunidade

conhecimentos que são do exterior, advindos da sociedade não-

indígena, promovendo na escola da aldeia o encontro entre tradição

e modernidade.

Quadro 71 – Análise semiótica da unidade textual E12Q13

UNIDADE

TEXTUAL E12Q13

KÉCIO Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas

comunidades? O que deve se esperar desses professores?

AUTOANÁLISE

Com essa questão, pretendia compreender o papel que PP3 atribui

ao professor na aldeia. Verifica-se que a forma como eu enunciei as

perguntas está permeada pelo pressuposto de que os professores

tem um papel a cumprir na aldeia, e esse pressuposto torna-se um

fazer persuasivo, indicando a PP3 a possibilidade de confirmação

ou justificação desse pressuposto como perspectiva de resposta.

PP3

O papel dos professores paiter é incentivar mais a cultura paiter,

buscar, pesquisar a cultura paiter e transmitir para seus alunos...

Hoje a maioria dos professores são jovens e não sabem a história...

269

eu vejo também que não sabem as formas de contagem, como os

velhos sabem.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Engajamento, Cultura, Pesquisa, Tradição,

Conhecimento, Experiência, Sabedoria.

Disfóricas: Modernidade, Inexperiência, Desconhecimento,

Mudança.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP3 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que o papel do professor

na aldeia é fortalecer a tradição por meio da educação, em oposição

às mudanças provocadas pela modernidade. Em sua resposta, PP3

enfatiza a importância de o professor paiter, geralmente ainda

jovem, ser um pesquisador de sua própria cultura, buscando superar

assim o desconhecimento e a inexperiência da juventude em

relação à história e à cultura de seu próprio povo.

DISCURSO

O papel do professor na aldeia é fortalecer a tradição por meio da

educação e da pesquisa sobre a história de seu povo, em oposição

às mudanças provocadas pela modernidade.

7.11 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização estado da cultura

paiter em cem anos da categoria de análise interculturalidade

Quadro 72 – Análise semiótica da unidade textual E15Q23

UNIDADE

TEXTUAL E15Q23

KÉCIO

Uma última pergunta então, infelizmente [risos]. Considerando

tudo o que você falou hoje aqui, suas reflexões, esse seu ponto de

vista crítico sobre vários assuntos, como você imagina que a cultura

do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos?

270

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP1 suas expectativas em relação à

situação da cultura de seu povo após um período de um século. Em

minha fala, faço menção ao que PP1 disse de forma crítica em

questões anteriores da entrevista, permeando assuntos tais como a

necessidade de resistência frente às mudanças culturais e de

identidade provocadas pela modernidade. Assim, indico ao

entrevistado uma perspectiva de resposta relacionada à oposição

mudança vs resistência.

PP1

Cem anos, professor? É... realmente, você me pegou agora [risos].

Deixa eu fazer uma conta aqui, professor. Estou com trinta anos.

Daqui a cem anos, cento e trinta. Bom, professor, eu acho que vai

haver uma mudança significativa, em relação, primeiro, a sua

cultura anterior ao contato. Vamos ter pequenas coisas que se

fazem hoje, de coisas paiter que são artesanato hoje... algumas

pessoas com certeza vão fazer. Ou não... ou simplesmente fazer

para vender alguma coisa. Ou talvez, um mais esperto possa

aparecer, possa aparecer um empreendedor e fazer disso um

negócio. Temos que pensar várias coisas ao longo de cem anos, né.

E outra coisa, não vai ser o mesmo estilo de vida, não vai ser a

mesma coisa do que é realmente hoje. Cem anos, nem eu vou estar

vivo. Só se eu viver cento e trinta anos. Eu imagino assim,

professor, que vai haver grande avanço nas tecnologias... quer

dizer, inseridas em aldeias... aldeias digitais. Um estilo de vida

parecido com o daqui da cidade. E acredito que, também, há

pessoas que vão optar em viver mais de forma tradicional. Eu estou

imaginando uma pessoa que vai “Ah, eu vou escolher viver...”.

Mesmo com todo o conhecimento, mesmo com todo o

conhecimento do mundo ocidental... porque eu tenho esse

pensamento, eu tenho esse pensamento comigo... eu conviver não

com todas essas tecnologias, não com todos esses aparatos

materiais, mas viver com o essencial, na floresta. Mas eu tenho um

pensamento sobre tudo. Então, em cem anos, eu percebo que há

pessoas paiter que vão optar em viver assim, e vão ter grandes

271

pensadores também, que vão optar em viver mais tranquilos, mas

contribuindo de tal forma em todos os sentidos. Acho que o futuro

paiter daqui a cem anos vai ser bem diferente. E, com certeza,

professor, a gente não pode esquecer o outro lado... vai haver mais

problemas sociais. Atípicos ou típicos, urbanos. Vai ter esse

problema também, com certeza. Então... você me pegou agora. Eu

nunca tinha refletido em cem anos. Eu tinha refletido dez, vinte,

trinta, cinquenta anos. Mas cem anos [risos]. Acho que a memória

da gente se limita a nossa idade, e a gente é incapaz de pensar

[risos] em tempos mais longos.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Cultura, Identidade, Resistência, Consciência,

Conhecimento.

Disfóricas: Mudança, Colonização, Modernidade, Conflitos,

Ocidente, Perda.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Resistência vs Mudança

ANÁLISE

A resposta de PP1 baseia-se na oposição resistência vs mudança.

Nesse sentido, ele considera que em cem anos a cultura de seu povo

poderá sofrer profundas mudanças, mas também haverá resistência

a tais mudanças no interior do próprio povo. PP1 considera a

possibilidade de que princípios capitalistas passarão a fundamentar

os modos de produção material do povo, de modo que o estilo de

vida nas aldeias poderá passar a ser permeado de tecnologias novas,

em um processo de urbanização das aldeias. Com essa urbanização,

PP1 prevê o agravamento de conflitos e problemas sociais típicos

dos meios urbanos, ou novos problemas possíveis de se originarem.

Em oposição a essas transformações, PP1 considera a possibilidade

de que haverá resistência às mudanças de estilo de vida por alguns,

em particular entre aqueles que construírem um conhecimento mais

amplo sobre o mundo, denominado por PP1 como “grandes

pensadores”. Nesse sentido, PP1 considera que o conhecimento

geral, para além das questões imanentes ao contexto particular de

seu povo, é fundamental para uma consciência das transformações

272

que se abaterão sobre o povo, sendo condição para a resistência e a

manutenção de um estilo de vida tradicional que ainda caracteriza

os Paiter, representado em sua fala pelo “viver com o essencial no

interior da floresta”.

DISCURSO

Em cem anos, a cultural dos Paiter poderá sofrer profundas

mudanças, passando a ser permeada por valores ocidentais, mas

também haverá resistência a tais mudanças, a partir de uma recusa

consciente da modernidade e de uma opção por um estilo de vida

tradicional no interior da floresta.

Quadro 73 – Análise semiótica da unidade textual E14Q24

UNIDADE

TEXTUAL E14Q24

KÉCIO Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a

100 anos?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de compreender a forma como PP10

projeta para o futuro a situação da cultura de seu povo. Por se tratar

de uma pergunta enunciada dentro de uma série de outras questões

que a precederam, e já tendo abordado temas tais como as

mudanças culturais pelas quais atravessa o povo Paiter, está

presente em minha fala o pressuposto de que a cultura do povo

sofrerá mudanças no decorrer de um século. Indico assim, com meu

fazer persuasivo, a PP10 a perspectiva da confirmação desse

pressuposto como possibilidade de resposta.

PP10

Professor... se chegar pertinho de cem anos, vai ser muito tempo,

porque, do jeito que eu estou vendo, a cultura do povo Suruí está

muito acelerada, demais, assim... ficando para trás. E a cultura do

não-indígena está muito acelerada. Eles [os Suruí] estão pegando

mais aquela lá, e deixando a cultura indígena para trás. Hoje, a

mocidade, os jovens de hoje, eles não se interessam muito em

praticar a sua cultura. Estão mais focados na cultura não-indígena,

como na música, na dança, estão falando mais em português dentro

273

da aldeia entre si mesmos. Então, se eu chegar na minha aldeia

hoje, sair de Ji-Paraná agora e ir para minha aldeia hoje, se eu

chegar lá e falar para uma criança: “Vamos lá para o mato bater

timbó, fazer uma pescaria tradicional, e nós voltaremos só amanhã,

depois de amanhã”, eu acho que ela recusaria isso. Pode ser que

eles vão montados em animal, bicicleta ou numa moto para voltar

no mesmo dia, para não dormir lá, esquentando o fogo, comendo a

comida que a gente faz lá. Então, se eu chegar lá e pedir... eu

mesmo não sei cantar na minha língua. Eu canto assim... eu tenho

que aprender bastante. A pessoa tem que cantar para mim várias

vezes, aí eu canto, aí eu pego o ritmo, aí eu canto. Agora, eu criar

música, igual os mais velhos criam, para eu criar é difícil. Então,

isso no caso já é prejudicial para minha cultura, para mim. Então,

por tudo isso, eu falo que... as línguas mesmo... é colocar muito

cinquenta anos... Suruí nenhum vai estar falando... cinquenta anos e

olha lá ainda, porque agora, os jovens, a intenção deles é casar com

não-indígena, muita gente já está trazendo outra etnia indígena para

sua aldeia, e deixa de falar sua língua com ela, e ela também com

ele, e vão falar só em português. E o filho que nascer, vai falar em

português. Então, não vai... eu falo que é muito cinquenta anos...

não vai chegar nem isso. Está muito acelerada demais a cultura que

hoje nós vivemos, e a nossa cultura mesmo está ficando para trás.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Cultura, Identidade, Indígena, Tradição, Etnicidade

Disfóricas: Mudança, Transformação, Colonização, Não-indígena,

Desinteresse, Abandono, Modernidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP10 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que a tradição que

caracteriza a identidade e a cultura de seu povo está sofrendo um

processo acelerado de mudanças advindas da modernidade. Assim,

as novas gerações estão abandonando o estilo de vida particular e

tradicional do povo, para assumir valores e comportamentos da

274

sociedade não-indígena. PP10 considera que tais transformações

são prejudiciais ao futuro do povo, e estão acontecendo em um

ritmo tão acelerado que não há esperança quanto à possibilidade de

que a cultura de seu povo vá resistir ao período de um século.

DISCURSO

Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá praticamente

desaparecido, porque está havendo um processo acelerado de

substituição de valores da tradição por outros advindos da

modernidade, e as novas gerações estão deixando para trás a

identidade cultural e o modo de vida tradicional de seu povo.

Quadro 74 – Análise semiótica da unidade textual E11Q31

UNIDADE

TEXTUAL E11Q31

KÉCIO Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a

100 anos?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intento ouvir de PP9 sua projeção para o estado da

cultura de seu povo em um período de um século. Dado o contexto

da entrevista e as questões precedentes, está presente em minha fala

o pressuposto de que a cultura do povo sofrerá mudanças no

decorrer do período enunciado. Desse modo, meu fazer persuasivo

indica a PP9 uma perspectiva de resposta referente à confirmação

desse pressuposto.

PP9

Eu acho que, se nós não registrarmos tudo, se nós não trabalharmos

isso dentro da sala de aula... ou até trabalhar na comunidade, com

certeza, daqui cem anos não vai existir mais. Se nós, professores,

não fizermos assim... trabalhar encima disso aí... Agora, se nós

trabalharmos encima disso aí e mostrar para a comunidade... para

eles valorizarem a cultura deles... aí, pode até chegar mais ou

menos ou um pouco. Como o não-indígena... os filhos do não-

indígena aprendem na escola e vão valorizando sua cultura...

mesma coisa, se nós não fizermos isso, com certeza acaba. Se nós

não registrarmos esse nosso conhecimento do povo Paiter, com

275

certeza acaba. Se nós fizermos, e a escola ir passando para as novas

gerações, então vai mantendo ainda.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Registro, Escolarização, Cultura, Particularidade, Povo,

Identidade, Resistência, Tradição, Valorização.

Disfóricas: Extinção, Não-Indígena, Mudança.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Mudança vs Resistência

ANÁLISE

A resposta de PP9 está baseada na oposição mudança vs

resistência. Nesse sentido, ele considera que a cultura de seu povo

está suscetível a mudanças que podem levar à sua extinção.

Entretanto, considera também que há a possibilidade de resistência

a essas mudanças, sendo a escolarização das novas gerações um

processo fundamental para tanto. Destaca-se na fala de PP9 a

importância por ele atribuída ao registro da cultura de seu povo e a

reprodução dos saberes da tradição na escola como forma de

manter a identidade e a particularidade cultural do povo Paiter,

frente às mudanças às quais o povo está exposto na atualidade. PP9

enuncia uma concepção de escola que atua a favor da manutenção

da cultura e da identidade cultural de seu povo. Nesse sentido, a

escolarização é por ele assumida como um processo ou como forma

de reprodução, podendo o conteúdo de tal processo ou forma ser

ajustado à realidade cultural de seu povo para atuar a seu favor.

Trata-se assim de uma ressignificação da escola no espaço da

aldeia, pois antes de ser concebida como um espaço de introdução

de saberes externos à cultura local, atua como reprodutora dessa

cultura em oposição às mudanças advindas do exterior.

DISCURSO

Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter poderá ter se extinguido

pelas mudanças impostas a ela nesse período, mas também poderá

ter sobrevivido em função da resistência possível de ocorrer por

meio do registro de nossa cultura e da reprodução de nossa tradição

e identidade cultural através da escolarização das novas gerações.

276

Quadro 75 – Análise semiótica da unidade textual E13Q53

UNIDADE

TEXTUAL E13Q53

KÉCIO

Então, uma última pergunta. Considerando tudo isso que você

disse, das transformações que aconteceram, dos conflitos

atualmente existentes, como você imagina que a cultura do povo

Paiter vai estar daqui a cem anos?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP4 suas expectativas

quanto ao futuro da cultura de seu povo no período de um século.

Em minha fala, vinculo a pergunta a reflexões já realizadas por PP4

anteriormente, em particular sobre transformações e conflitos que

permeiam a vida contemporânea do povo Paiter. Com isso, insiro

em minha fala um pressuposto de que a cultura do povo Paiter

poderá passar por mudanças no decorrer do próximo século,

indicando assim, com meu fazer persuasivo, a PP4 a perspectiva da

confirmação desse pressuposto como possibilidade de resposta.

PP4

Boa pergunta, hein. Eu penso assim, professor, que não vai

demorar tanto assim, cem anos, não. Eu fico pensando que, daqui a

trinta... nem trinta não... daqui a uns vinte anos, o povo Paiter vai

deixar de ser falante da língua paiter e deixar os costumes para trás.

Porque a gente já está com quarenta e cinco anos só de contato,

né... [emocionado]... e já perdeu muita coisa... a língua... um jovem

que está nascendo agora, não fala nem cem por cento mais não.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Particularidade.

Disfóricas: Mudança, Abandono, Perda, Colonização,

Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP4 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que a tradição do seu

povo está sofrendo um acelerado processo de mudança, em função

do contato com a sociedade não-indígena e as transformações

advindas da modernidade. Destaca-se na fala de PP4 sua

277

constatação de que as novas gerações estão abandonando os

costumes e a língua de seu povo, de modo em menos de um século

a identidade cultural, as tradições e a língua do povo Paiter terá

deixado de existir (ficado para trás). PP4 manifesta uma falta de

esperança quanto ao futuro de seu povo, ao confrontar a

possibilidade de sobrevivência cultural futura com o profundo

processo de mudança iniciado em período recente após o contato

com a modernidade e o processo de colonização que se abateu

sobre seu povo.

DISCURSO

Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá deixado de existir,

porque vivemos um acelerado processo de mudanças impostas pela

colonização, através da qual a modernidade substitui a tradição e a

identidade cultural do povo é abandonada pelas novas gerações.

Quadro 76 – Análise semiótica da unidade textual E12Q14

UNIDADE

TEXTUAL E12Q14

KÉCIO Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a

cem anos?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de perceber como PP3 projeta para o

futuro o estado da cultura de seu povo. Considerando as questões

precedentes da entrevista, embora não faça menção a elas ao

enunciar a pergunta, insere-se em minha fala o pressuposto de que

a cultura do povo sofrerá mudanças no decorrer de um século.

Desse modo, meu fazer persuasivo indica a PP3 uma perspectiva de

resposta referente à confirmação desse pressuposto.

PP3

Eu vejo assim, professor. Se não preservar a cultura... e com

certeza a gente quer preservar... a gente quer utilizar a cultura do

povo Paiter e a cultura da sociedade envolvente. E, com certeza, eu

espero que isso possa acontecer daqui a cem anos... Não totalmente

como hoje, mas pelos menos a língua e algumas coisas da cultura

eu acredito possa acontecer... a forma de se alimentar, de se vestir...

278

os cantos e rituais.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Cultura, Resistência, Preservação, Identidade, Povo,

Tradição.

Disfóricas: Colonização, Mudança, Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Resistência vs Mudança

ANÁLISE

A resposta de PP3 está baseada na oposição resistência vs

mudança. Nesse sentido, ele considera que para fazer frente às

mudanças impostas pela colonização da sociedade envolvente à

cultura de seu povo, é necessária uma resistência por meio da

valorização interna da cultura pelo próprio povo. PP3 destaca que

há esse interesse em preservar a cultura, embora considere que em

cem anos inevitavelmente ocorrerão mudanças, podendo todavia

manter-se a identidade cultural do povo relativa a tradições tais

como a forma de se alimentar e de se vestir, os cantos e rituais. Está

presente na fala de PP3 sua percepção do interesse de seu povo em

manter as tradições e ao mesmo tempo se apropriar da cultura da

sociedade envolvente. Percebe-se assim, na fala de PP3, uma

concepção de que é possível manter uma identidade cultural

indígena mesmo em um contexto de relações com a sociedade

colonizadora envolvente.

DISCURSO

Daqui a cem anos, se houver uma valorização da cultura e uma

resistência às mudanças impostas pela colonização, a cultura do

povo Paiter ainda existirá, sendo que o povo estará praticando sua

própria cultura e a cultura da sociedade envolvente.

7.12 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização relação entre

educação escolar na aldeia e identidade cultural da categoria de análise

interculturalidade

279

Quadro 77 – Análise semiótica da unidade textual E15Q5

UNIDADE

TEXTUAL E15Q5

KÉCIO

Na entrevista anterior, você mencionou a existência de uma relação

entre os conhecimentos tradicionais e a identidade cultural paiter.

Você poderia detalhar, segundo seu ponto de vista, que relação o

ensino de matemática na aldeia pode ter com a identidade cultural

das novas gerações de paiter?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, faço menção a uma entrevista anterior, na qual PP1

considerou haver uma relação entre o ensino de saberes paiter e a

identidade cultural do povo. Intento com essa nova pergunta

compreender a relação que PP1 estabelece particularmente entre

ensino de matemática e identidade cultural. Considero como

pressuposto em minha fala a existência dessa relação.

PP1

Conhecimento tradicional... eu procuraria outro nome [risos]. Acho

que tradicional está relacionado a mais velho [risos]. Eu

simplesmente diria conhecimento paiter... não conhecimento

tradicional paiter. Ou, para eu me referir a uma época ou outra, eu

poderia dizer o conhecimento paiter antes do contato, vamos supor.

Sinceramente, professor, eu não gosto desse nome, de

conhecimento tradicional paiter. Eu fico meio perdido aí. Mas a

matemática paiter, ela tem um valor, um significado. E, ao longo da

pesquisa que a gente conversou, a gente discutiu, em lugares onde a

gente vai se encontrando... a gente vai discutindo, né professor, não

realmente na matemática, mas no sentido geral, e a gente vai

percebendo que uma coisa se liga a outra. E o que eu achei

importante nesse sentido é que a matemática paiter não se resume

somente a contar, distâncias... porque ela está inserida de

pensamento, de pensamento filosófico, sociológico... vamos supor

que até espiritual. Então, quer dizer, esses elementos fazem com

que não seja somente um conhecimento que eu poderia [dizer]:

“Ah, conhecimento matemático paiter. Mas isso não vai fazer

diferença no mundo em que hoje a gente está. Então deixa para lá”.

280

Mas, se a gente for pensar em outra perspectiva, a gente vai pensar

desse jeito: “É um conhecimento a partir do filosófico, do

sociológico, do espiritual”... todos esses relacionamentos. E não há

como um paiter dizer: “Ah, esse conhecimento para mim não

serve”. Ele pode ignorar ele aprender, mas em algum momento,

com certeza, ele vai praticar aquele saber, porque ele é paiter. Ele

pode até pensar que ele não vai praticar aquilo, porque aquela

matemática paiter não vai servir no mundo que a gente hoje está, no

mundo moderno. De alguma forma, ele vai usar aquele

conhecimento sem ele perceber. Basta ele estar em um espaço que

dá a possibilidade de ele falar, de ele pensar aquilo filosoficamente,

de ele pensar aquilo... ele vai chegar na roça dele, conversar com

um irmão, alguém, alguém... ele vai falar. Como eu vou ignorar

esse conhecimento, se automaticamente, naturalmente eu vou estar

praticando isto? O que falta é entender como a gente tem que lidar

com isso. E, a questão do mundo cultural paiter ser inserido no

mundo... moderno, né professor [risos]... aí eu percebo que, em

nenhum momento, eu tenho que ignorar um conhecimento,

principalmente alguma coisa que é advinda de mim. Todos eles vão

servir de serventia... paiter e o conhecimento não-paiter. Por quê?

Se ele ignorar aquele conhecimento paiter, ele pode ignorar

pessoalmente... falar: “Eu não vou mais falar essas coisas de paiter

porque não servem para nada”. Mas ele ser paiter, o subconsciente,

o que é carregado dele de paiter, vai fazer com que ele pratique

aquilo. Então, não é uma coisa que não tenha ligação uma com a

outra. O que basta é você entender que você tem que saber

realmente como... como não ignorar um conhecimento ou outro.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Identidade, Conhecimento, Particularidade, Cultura,

Tradição, Consciência, Resistência, Interculturalidade.

Disfóricas: Modernidade, Negação, Recusa, Colonização,

Ignorância, Mudança, Generalidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

281

ANÁLISE

A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que ser paiter é possuir

uma forma particular de existência caracterizada pela tradição de

um conhecimento diferente daquele existente no mundo moderno.

Assim sendo, a matemática paiter em particular, embora não tenha

aparentemente uma aplicação imediata no mundo moderno, é um

conhecimento que possui dimensões sociais, filosóficas e

espirituais específicas do modo ser paiter. Nesse sentido,

conhecimento paiter e identidade cultural paiter estão intimamente

relacionados, não sendo possível continuar a ser paiter deixando de

lado tais conhecimentos próprios e específicos da cultura do povo.

PP1 reconhece que, como efeito da colonização iniciada com o

contato, faz-se necessário atualmente que o povo Paiter também

domine conhecimentos da modernidade. Todavia, ele considera que

isso não pode significar um abandono de conhecimentos paiter, sob

o risco de assim deixar-se de lado a própria identidade cultural do

povo. Tal concepção exposta por PP1 aproxima-se dos

pressupostos da interculturalidade, ao considerar que a coexistência

de modos distintos de pensamentos, vinculados a culturas

inicialmente discretas, se dá de forma tensionada, de modo que há

sempre uma pressão de uma cultura sobre a outra no sentido de

produzir mudanças nas identidades culturais. Em síntese, verifica-

se na fala de PP1 o reconhecimento por ele assumido de que ser e

conhecer formam uma unidade na constituição da identidade

cultural paiter.

DISCURSO

Conhecimento paiter e identidade cultural paiter estão intimamente

relacionados, de modo que o conhecimento da matemática paiter

em suas dimensões sociais, filosóficas e espirituais é importante

para que o povo Paiter se mantenha na particularidade de sua

cultura, mesmo tendo que adquirir os conhecimentos necessários

para as relações com o mundo moderno.

282

Quadro 78 – Análise semiótica da unidade textual E15Q18

UNIDADE

TEXTUAL E15Q18

KÉCIO

Então, existe a escola na aldeia, existe esse fato que você menciona

como sendo um fato triste, no seu ponto de vista, de algumas

famílias colocarem os filhos para estudar em escolas fora do

território, em outro mundo, como você diz. Aí, eu volto a insistir

em uma questão, apesar de você já ter explicado muito bem, que

tem a ver com esse fato. É o seguinte: Que relação você estabelece

entre a educação escolar oferecida atualmente na aldeia e a

identidade cultural das novas gerações do povo Paiter?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, faço referência a falas anteriores de PP1 nas quais

ele mencionou uma relação entre educação escolar e identidade

cultura. Com essa pergunta, tive a intenção de aprofundar a

compreensão da concepção que PP1 tem dessa relação. Desse

modo, está presente em minha fala o pressuposto de que existe uma

relação entre educação escolar e identidade cultural, oferecendo a

PP1 a perspectiva de justificação dessa relação como alternativa de

resposta (de outro modo, a pergunta poderia ser: Existe relação

entre educação escolar e identidade cultural?).

PP1

Primeiro, é que... a escola que ensina... a escola que se tem hoje

dentro dos paiter, ela traz consigo hoje, mesmo que seja pouco

significativo, alguns elementos da cultura. Simplesmente de o

professor ser indígena, é um elemento significativo, na concepção

nossa, de que aquilo é uma escola paiter. Então, isso influencia

também, de uma certa forma, a um aluno paiter se identificar com a

escola... se identificar: “Eu tenho um professor que é paiter”. Então,

esse elemento é fundamental... Claro que faltam mais coisas ainda,

como o que ensinar dentro da escola, materiais para o ensino,

materiais paiter... E a questão de você ser um professor paiter, acho

que é um grande diferencial eu também pensar como um

professor... Qual é o meu reflexo para os alunos? O que eles

pensam de mim? Qual é minha atuação, e qual é a conclusão que

283

meus alunos têm de mim? Talvez eu tenha que exercer uma função,

não somente como profissional, mas eu também tenho que pensar

no social, cultural... que é diferente de um pai que simplesmente

pensa: “Vou colocar meu filho em uma escola não-indígena”, sem

essa reflexão. Uma das coisas que eles falam é que eles vão

aprender mais... Com certeza, podem aprender mais coisas. Mas,

talvez não vão ter a chance de ter... de ter esse momento que eu

tive... mesmo estudando fora da aldeia, voltar para as comunidades.

Quer dizer, você tem uma porcentagem, um percentual, uma

probabilidade de que aquele aluno talvez não possa voltar para a

aldeia. Então, isso pode parecer normal ou tranquilo. Mas, para

nossa concepção de ser paiter, simplesmente [o fato] de uma pessoa

sair do berço familiar e tentar aprender outra coisa, somente por

pensar que vai ser melhor para ela... a gente percebe, como paiter,

que não é legal. Não é legal no sentido de não aceitar... de dizer que

não aceitamos isso, mas, pelo contrário... a gente sabe que a gente

precisa conhecer mais fora da escola. Mas o momento não é esse.

Talvez o momento seria de pessoas que já estão mais habituadas a

viver com os pais... já vai ter outra mentalidade. Agora,

simplesmente [o fato] de eu tirar... vamos supor, o Natan. O Natan,

com quatro anos... tem crianças com quatro anos que estudam na

escola rural. Aí, eu pensar um futuro para ele, a partir da minha

comunidade... eu pensar um futuro para ele a partir do povo... como

pai, eu posso ter esse pensamento. Mas o que ele vai aprender, no

lugar onde ele vai estar, não vai ensinar a ele com essa concepção.

Então, simplesmente [o fato] de o professor ser indígena, dentro de

uma escola indígena, é um diferencial muito grande.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Interior, Tradição, Indígena, Identidade, Manutenção,

Resistência, Interior, Povo, Particularidade.

Disfóricas: Escolarização, Não-indígena, Perda, Colonização,

Mudança, Exterior, Generalidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

284

ANÁLISE

A resposta de PP1 está baseada na oposição particularidade vs

generalidade. Nesse sentido, ele considera que as particularidades

da educação escolar na aldeia, como a de ter professores paiter e se

dar no interior da comunidade, servem para contribuir com a

manutenção da identidade cultural do povo, frente às mudanças

provocadas pela colonização e por uma escolarização não-indígena

generalista fora da aldeia e da cultura do povo Paiter. Assim sendo,

PP1 destaca a importância de as novas gerações do povo Paiter

permanecerem no espaço da aldeia, estudando em escolas

indígenas, com professores da própria comunidade, sob o risco de

se assim não for, perderem-se as referências identitárias internas

próprias do povo, em razão das mudanças de concepção de futuro

provocadas pela escola não-indígena.

DISCURSO

A educação escolar oferecida na aldeia, com a participação de

professores indígenas, contribui para a manutenção da identidade

cultural particular do povo, distintamente de uma educação escolar

generalista não-indígena, oferecida fora da comunidade, que

contribui para a alteração das concepções de mundo e de futuro das

novas gerações.

Quadro 79 – Análise semiótica da unidade textual E11Q28

UNIDADE

TEXTUAL E11Q28

KÉCIO

Qual a sua opinião sobre a proposta de a escola na aldeia trabalhar

então com saberes tradicionais do povo Paiter e saberes ocidentais?

O fato de as novas gerações estarem aprendendo esses diferentes

conhecimentos, com diferentes origens, vai interferir na identidade

cultural do povo Paiter?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP9 sua percepção a

respeito da relação entre educação escolar e identidade cultural.

Está presente em minha fala a oposição tradição vs modernidade,

sugerindo assim ao entrevistado uma perspectiva de resposta

285

relacionada à possibilidade de mudanças de identidade resultantes

da relação entre saberes de mundos culturais distintos.

PP9

Acho que não interfere não. Porque é importante eles conhecerem

esses dois conhecimentos, levar esses dois conhecimentos juntos,

porque eles dependem do conhecimento dos não-indígenas e têm

que valorizar os seus conhecimentos também. Por isso, eles devem

levar os dois [conhecimentos] juntos.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Indígena, Conhecimento, Valorização, Tradição.

Disfóricas: Não-Indígena, Dependência, Modernidade.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena

ANÁLISE

A resposta de PP9 baseia-se na oposição indígena vs não-indígena.

Nesse sentido, ele destaca a diferença existente entre

conhecimentos indígenas tradicionais e não-indígenas modernos,

mas considera importante que a educação escolar na aldeia abranja

os dois tipos distintos de conhecimento. Considerando uma

dependência do povo Paiter em relação aos conhecimentos não-

indígenas, PP9 propõe que eles sejam reproduzidos pela educação

escolar simultaneamente com a valorização dos conhecimentos que

são próprios do seu povo. Desse modo, considerando a coexistência

dos dois tipos de conhecimento, PP9 entende que a educação

escolar não interfere na identidade cultural das novas gerações do

povo Paiter. A concepção exposta por PP9 aproxima-se de uma

perspectiva de escola na aldeia como espaço de hibridação cultural,

embora considere que a coexistência de distintos saberes na

educação escolar das novas gerações não interfira diretamente na

identidade cultural de seu povo. Verifica-se, de todo modo, que a

possibilidade de a escolarização não interferir na identidade

cultural está condicionada, na fala de PP9, à valorização dos

conhecimentos que são próprios do universo cultural do povo.

DISCURSO

A educação escolar, se trabalhar simultaneamente com

conhecimentos indígenas e não-indígenas, valorizando os

primeiros, não interfere na identidade cultural do povo.

286

Quadro 80 – Análise semiótica da unidade textual E13Q32

UNIDADE

TEXTUAL E13Q32

KÉCIO

O tipo de educação escolar oferecido na aldeia possui alguma

relação com a identidade cultural das novas gerações do povo

Paiter? A maneira como os jovens hoje em dia se veem tem relação

com a escola na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, intentei ouvir de PP4 sua percepção sobre a relação

entre educação escolar e identidade cultural. Está presente em

minha fala o pressuposto de que a identidade cultural das novas

gerações do povo Paiter atualmente (hoje em dia) pode ter uma

relação com a educação escolar praticada na aldeia.

PP4

Nesses dois últimos anos em que estamos lá, está havendo. A

escola na aldeia pode ser intercultural. Pode ser de um lado

indígena e de outro não. Aí, a escola está tentando puxar mais do

lado da cultura.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Indígena, Tradição

Disfóricas: Não-Indígena, Modernidade

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade

ANÁLISE

A resposta de PP4 está baseada na oposição tradição vs

modernidade. Nesse sentido, ele considera que a escola na aldeia,

nos últimos anos, tem busca contemplar referências da tradição, de

um lado, e da modernidade, de outro, de modo a se tornar

intercultural. Destaca-se na fala de PP4 a ênfase na tentativa da

escola priorizar a própria cultura do povo Paiter. Assim, PP4

concebe que tem havido uma relação entre a educação escolar

existente na aldeia e a identidade cultural do povo, estando a escola

voltada especialmente para a manutenção da cultura do povo.

DISCURSO

A educação escolar na aldeia, quando desenvolvida de forma

intercultural entre a tradição e a modernidade, com ênfase na

cultura do próprio povo, contribui para a manutenção da identidade

cultural das novas gerações.

287

7.13 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização mudanças na

educação do povo da categoria de análise interculturalidade

Quadro 81 – Análise semiótica da unidade textual E14Q20

UNIDADE

TEXTUAL E14Q20

KÉCIO O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola

na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP10 sua percepção das

mudanças ocorridas na forma tradicional de educação do povo após

a introdução da escola na aldeia. Está presente em minha fala o

pressuposto de que a chegada da escola na aldeia produziu

mudanças na educação do povo, indicando ao entrevistado a

perspectiva de confirmação desse pressuposto em sua resposta.

PP10

Mudou bastante. Como eu estava falando para você, o povo Suruí

dividiu, e foi criando aldeias, foi distanciando um grupo de outro

grupo. Então, assim, não existe mais a educação que a gente tinha...

a educação de quando a gente morava juntos. Então, um grupo

pequeno não consegue fazer aquelas festas tradicionais, músicas

tradicionais, e agora só estão interessados na educação não-

indígena, em uma escola de prédio... só quer colocar os filhos

dentro disso.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Povo, União, Convivência, Coletividade, Tradição.

Disfóricas: Mudança, Desunião, Fragmentação, Não-indígena,

Escolarização.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

ANÁLISE

A resposta de PP10 baseia-se na oposição tradição vs

escolarização. Nesse sentido, ele considera que a escolarização

introduzida na aldeia alterou formas tradicionais de educação

existentes nas relações sociais dos grupos que compunham o povo.

Assim, houve uma fragmentação do povo, com a criação de novas

288

aldeias (para criação de novas escolas), impossibilitando a

convivência cotidiana que garantia a realização de atividades

tradicionais como festas e outros eventos coletivos. PP10 destaca

que atualmente a escolarização não-indígena prevalece sobre

formas tradicionais de educação de seu povo.

DISCURSO

A introdução da escola não-indígena na aldeia alterou as formas

tradicionais de educação do povo, fragmentando e dividindo os

grupos, cuja convivência anterior garantia a manutenção da

tradição por meio da realização de atividades tradicionais coletivas.

Quadro 82 – Análise semiótica da unidade textual E11Q22

UNIDADE

TEXTUAL E11Q22

KÉCIO O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola

na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP9 sua percepção das

mudanças provocadas pela escola sobre a forma tradicional de

educação do povo. Ao enunciar a pergunta, inseri em minha fala o

pressuposto de que a introdução da escola na aldeia produziu

mudanças na educação tradicional do povo. Indico assim, como um

fazer persuasivo, perspectiva de confirmação desse pressuposto

como possibilidade de resposta ao entrevistado.

PP9

Para falar a verdade, no meu ponto de vista, está diminuindo muito.

Porque acho que os pais não estão muito dando essa educação

tradicional para os filhos... deixando eles crescerem... e poucos pais

dão conselhos para eles... não são todos. No meu ponto de vista,

está muito pouco. Por que eu vejo isso? Antigamente, através da

educação que os pais estavam passando para os filhos, os filhos não

faziam tanto as coisas erradas, porque o pai dizia: “Ah, não pode

fazer isso! Nossa cultura não é isso! Se fizer essas coisas, você não

é gente! Quem quer ser gente de verdade, não pode ser mal

educado! A pessoa que quer ser gente mesmo de verdade tem que

289

ser educado, respeitar os outros, respeitar os mais velhos, respeitar

os seus próximos!” Não é só respeitar o pai. Tem que respeitar

todos. A pessoa assim era “Ah, fulano é gentil. Ah, fulano é bem

educado!” Ele era bem falado dentro da aldeia. Agora, aquela

pessoa que fala mal, aquele que briga, aquele que fala na cara da

pessoa, que faz aquela bagunça... não era bem falado dentro da

aldeia não: “Ah, fulano é isso, fulano é aquilo”. Então, hoje, como

o pai não está mais passando educação para o filho, hoje a nova

geração está bem confusa. Por isso, eu vejo isso... a partir disso, o

que eu vejo é que a nossa educação não está bem aplicada. Está

acabando. Porque as novas gerações estão seguindo o modelo do

não-índio. Assim... falando frente a frente... isso não é do nosso

costume. Isso não é ser gente, gente que quer ser respeitada dentro

da sociedade. Isso não é papel dela.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição, Interior, Particularidade, Cultura, Indígena,

Identidade.

Disfóricas: Não-indígena, Mudança, Enfraquecimento, Exterior,

Generalidade, Colonização, Escolarização.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade

ANÁLISE

A resposta de PP9 está baseada na oposição particularidade vs

generalidade. Nesse sentido, ele considera que seu povo possuía

particularidades no modo de educar as novas gerações de forma a

garantir a manutenção de sua identidade (gente de verdade), mas

que atualmente, com a introdução da forma de educação generalista

não-indígena na aldeia, novos valores e atitudes estão

enfraquecendo a forma tradicional de educação existente no

passado. Desse modo, para PP9, a introdução da escola não-

indígena na aldeia representou um enfraquecimento da tradição e

dos costumes particulares do povo Paiter, alterando a forma com a

qual a identidade cultural do povo era reproduzida anteriormente

(deixando de ser gente de verdade).

DISCURSO A introdução da escola na aldeia alterou as formas tradicionais e

290

particulares de educação do povo, modificando a identidade

cultural das novas gerações a partir de valores não-indígenas.

Quadro 83 – Análise semiótica da unidade textual E13Q15

UNIDADE

TEXTUAL E13Q15

KÉCIO O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola

na aldeia?

AUTOANÁLISE

Nessa questão, está presente em minha fala o pressuposto de que a

introdução da escola na aldeia produziu mudanças na educação

tradicional do povo. Indico assim, com meu fazer persuasivo, uma

perspectiva de confirmação desse pressuposto como possibilidade

de resposta ao entrevistado.

PP4 A educação mudou porque deixou de lado essa educação

tradicional, e agora a gente está indo na educação da escola.

CATEGORIAS

SEMÂNTICAS

Eufóricas: Tradição.

Disfóricas: Mudança, Abandono, Escolarização.

OPOSIÇÃO

SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização

ANÁLISE

A resposta de PP4 baseia-se na oposição tradição vs escolarização.

Nesse sentido, ele considera que após a introdução da escola na

aldeia, houve um abandono da forma tradicional de educação do

povo, passando a prevalecer, após essa mudança, o processo de

escolarização.

DISCURSO

A introdução da escola na aldeia modificou a forma tradicional de

educação do povo, passando a prevalecer o processo de

escolarização em detrimento da tradição anteriormente existente.

291

8 INTERCULTURALIDADE E ETNOMATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO

ESCOLAR PAITER

Após analisar cada unidade textual selecionada na seção anterior, retomamos nesta

seção as questões que compuseram a problemática inicial da pesquisa, buscando verificar

nas práticas discursivas dos professores paiter, agora interpretadas como discursos, os

elementos que possibilitam a elaboração de uma síntese. Para tanto, reunimos em blocos os

discursos dos professores, denominados de sínteses de discursos, organizados a partir das

análises das unidades textuais feitas na seção anterior referentes às treze tematizações das

categorias de análise, buscando assim produzir um fazer interpretativo relacionado à

construção de respostas às questões iniciais da pesquisa.

Conforme exposto na primeira seção, duas questões compuseram a problemática de

investigação, diretamente relacionadas às demandas de minha atuação docente no curso de

formação de professores indígenas na universidade, do qual participam, como estudantes,

os professores paiter sujeitos desta pesquisa, sendo elas: Que motivações e ideias subjazem

às atuais práticas de professores paiter voltadas para a revitalização de saberes e fazeres

matemáticos tradicionais significativos para a cultura paiter nas escolas das aldeias? e

Que problematizações isto pode produzir para a ressignificação de práticas pedagógicas

institucionalizadas nas escolas das aldeias, que priorizam a matemática escolar em

detrimento dos saberes da tradição paiter?

Percebemos que os discursos identificados na seção anterior a partir de um fazer

interpretativo dos dados, se reunidos em sínteses, já se constituem em elementos

interpretativos do universo da problemática pesquisada, relativos a motivações e ideias de

professores paiter em relação à projeção de uma educação escolar que contemple as

particularidades da cultura de seu povo. No entanto, percebemos que um incremento à

interpretação pode se dar a partir de um olhar para os discursos considerados em blocos

temáticos, possibilitando assim identificar ênfases e reiterações que a análise de cada

discurso isoladamente não possibilitaria.

Nesse sentido, buscaremos nesta seção, a partir de conceitos explorados nos

referenciais teóricos abordados nas seções iniciais, realizar um fazer interpretativo sobre

sínteses de discursos dos professores paiter, buscando compreender ideias, pressupostos,

292

problematizações e ressignificações relativas à educação escolar atualmente existente ou

projetada para as aldeias do povo, conforme estabelecido nas questões iniciais da pesquisa.

8.1 Um fazer interpretativo final sobre sínteses de discursos

Considerando as três categorias de análise emergidas da problemática da pesquisa –

educação escolar indígena, interculturalidade e etnomatemática, treze tematizações se

destacam nas práticas discursivas dos professores geradas em seções de entrevistas,

enquanto manifestações de ideias, motivações e problematizações presentes nos discursos,

sendo elas: Concepções de educação, Mudanças na educação do povo, Concepções de

escola, Importância da escola na aldeia, Motivações para ser professor, Papel do

professor na aldeia, O que deve ser ensinado na escola da aldeia, Relação entre educação

escolar na aldeia e identidade cultural, Concepções de etnomatemática, Como deve ser o

ensino de matemática na escola da aldeia, Importância de se trabalhar com os saberes

matemáticos paiter na escola, Importância dos velhos para o ensino de saberes da

tradição, Estado da cultura paiter em cem anos.

Passaremos, a seguir, à apresentação e discussão das sínteses de discursos

referentes a cada uma destas tematizações relacionadas às categorias de análise.

8.1.1 Concepções de educação

As concepções de educação enunciadas pelos professores baseiam-se nas oposições

particularidade vs generalidade, tradição vs modernidade e interior vs exterior. Há nos

discursos uma ênfase em aspectos da cultura do próprio povo no modo como concebem

educação, relacionando-a à particularidade e à tradição existente internamente ao que

consideram ser uma identidade cultural paiter, assim como também destaca-se nos

discursos o aspecto não-indígena da educação, entendida como um processo vinculado à

reprodução de conhecimentos e saberes externos à cultura, por meio da escolarização, com

ênfase na aquisição da leitura e da escrita.

Quadro 84 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de educação da categoria de

análise educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1 Educação é um processo orientado por conhecimentos vinculados a

293

uma tradição no interior de uma cultura particular ou por pressões

advindas do exterior geral de uma cultura, que pode manter ou

alterar a identidade cultural das pessoas.

PP10

Educação é um processo de reprodução de tradições particulares de

cada povo indígena e também de inclusão de elementos culturais

não-indígenas gerais no interior da cultura de cada povo.

PP9

Educação é um processo vinculado à tradição e também à escola,

que proporciona o aprendizado de experiências de vida no convívio

em sociedade e o aprendizado de conteúdos específicos na escola.

PP3

Educação é um processo pelo qual os conhecimentos da tradição

são reproduzidos, sendo também o aprendizado resultante do

processo de escolarização.

PP7

Educação é tanto o processo pelo qual, no interior da tradição, os

conhecimentos e valores são reproduzidos, quanto o processo de

alteração da cultura introduzido pela colonização e enfrentado pelo

povo no interior da escola.

PP6

Educação é um aprendizado de procedimentos e valores internos à

cultura e à tradição de uma comunidade indígena, assim como é o

aprendizado de procedimentos não-indígenas tais como ler e

escrever, provenientes de um meio externo e promovidos pela

escolarização.

As concepções de educação presentes nos discursos dos professores paiter

relacionam-se com seus contextos de atuação profissional e de formação acadêmica.

Atualmente, as escolas existentes na Terra Indígena Sete de Setembro são mantidas pelas

secretarias estaduais de educação de Rondônia e de Mato Grosso, dada a localização do

território paiter sobre a divisa entre os dois estados. Conforme exposto anteriormente, os

professores paiter participantes desta pesquisa moram e trabalham em aldeias que se

situam “dentro” do estado de Rondônia, e portanto possuem seus vínculos empregatícios

com a Secretaria de Estado de Educação de Rondônia – SEDUC. Todos os professores

participantes são também acadêmicos do Curso de Licenciatura em Educação Básica

Intercultural, oferecido pelo Departamento de Educação Intercultural da Universidade

294

Federal de Rondônia. Portanto, estão recebendo uma formação em serviço, em

continuidade, em alguns casos, à formação recebida no Projeto Açaí, e essa condição

propicia-lhes uma reflexão sobre as práticas existentes nas escolas nas aldeias,

possibilitando problematizar os fins da educação escolar implementada como política

pública de educação para o povo Paiter.

Assim, situados entre o espaço cotidiano e de trabalho na aldeia e o espaço

acadêmico na universidade, os professores paiter estão colocando em movimento ações

que questionam a ordem das práticas escolares e problematizam o currículo, na direção de

incluir no âmbito da educação escolar implantada em seu território características próprias

do universo paiter, até então inexistentes ou excluídas da educação das novas gerações.

Nesse contexto, ressignificar o próprio conceito de educação torna-se uma ação

fundamental para as mudanças que projetam para a escola inserida em suas comunidades,

relacionando ao conceito características próprias da cultura e da identidade cultural do

povo.

Destaca-se nos discursos o aspecto atribuído à educação referente à reprodução ou

alteração da cultura e da identidade cultural do povo. Assim, a educação é concebida como

um caminho que pode conduzir o indivíduo paiter para um futuro no qual ele continue a ser

paiter, mantendo sua identidade no interior da tradição particular de seu povo, como pode

também conduzi-lo para fora dessa tradição, transformando sua identidade. Desse modo,

em conjunto, as ideias presentes nos discursos dos professores vinculam-se a uma

concepção de educação como caminho, como um rumo a seguir, algo que projeta o

indivíduo no futuro e determina o que ele vai ser. Todavia, não é algo determinístico, pois,

no meio desse caminho, o sujeito pode se perder, em razão das pressões que existem, de

modo que ser paiter no futuro é algo que depende do rumo a seguir e do caminho a tomar,

orientando-se por uma visão de futuro.

Nesse sentido, como processo existente no interior da cultura particular de cada

povo, a educação reproduz tradições entre diferentes gerações, mas no plano geral e

exterior, por meio de pressões culturais, a educação insere na cultura elementos novos, o

que, no caso de povos indígenas, significou a introdução da escrita e da matemática escolar

após o contato. Os professores buscam distinguir assim em seus discursos educação

tradicional de educação escolar. A primeira é caracterizada como processos pelos quais

pais educam filhos no âmbito da família ou por meio da convivência em sociedade, sendo

uma preparação para a vida. A segunda é assumida como forma de se aprender, na escola,

conteúdos e valores não-indígenas. Ao primeiro tipo de educação atribui-se uma

295

importância maior, porque seria mais completa em relação à educação que ocorre por meio

do processo de escolarização, visto que esta última não contribuiria diretamente para uma

experiência de vida necessária à convivência em sociedade.

Ao conceberem uma dicotomização entre diferentes visões características de cada

tipo de educação, os professores expõem uma consciência de que a colonização imposta a

seu povo e a introdução da escola após o contato alterou processos tradicionais de

reprodução da cultura, inserindo-se nesse processo perspectivas e valores não-indígenas,

sendo a categoria “enfrentamento” a que representa a vontade de resistência às

transformações e mudanças de perspectivas introduzidas pela escolarização quando oposta

à tradição.

A estreita relação estabelecida nos discursos entre educação e identidade se dá

sempre tomando como referência o que é particular do povo Paiter e a possibilidade de

continuar ou não a ser paiter. Assim, atribui-se à educação uma característica processual

associada a uma perspectiva não essencialista de identidade, visto que esta pode ser

alterada em função dos rumos e dos caminhos tomados ao longo da vida.

A dualidade tradição vs modernidades presente nos discursos aproxima-se de uma

perspectiva intercultural de educação, pois considera elementos que são oriundos de dois

universos culturais distintos, sendo de um lado o paiter, revestido de significados próprios

como a história, os costumes e valores sociais, e de outro lado um espaço até recentemente

inexistente nas aldeias, a escola, considerada como lugar em que se aprendem

conhecimentos inexistentes na tradição.

8.1.2 Mudanças na educação do povo

Baseando-se nas oposições tradição vs escolarização e particularidade vs

generalidade, os professores paiter manifestam uma consciência de que a introdução da

escola na aldeia provocou mudanças na forma tradicional de educação do povo. Nesse

sentido, como promotora de uma educação generalista não-indígena na aldeia, a escola

passou a promover novos valores e atitudes, enfraquecendo com isso a forma tradicional de

educação existente em tempos anteriores ao contato, e alterando a forma com a qual a

identidade cultural do povo era reproduzida anteriormente (deixando de ser gente de

verdade).

296

Quadro 85 – Síntese de discursos referentes à tematização mudanças na educação do povo da categoria

de análise interculturalidade

SUJEITO DISCURSO

PP10

A introdução da escola não-indígena na aldeia alterou as formas

tradicionais de educação do povo, fragmentando e dividindo os

grupos, cuja convivência anterior garantia a manutenção da

tradição por meio da realização de atividades tradicionais coletivas.

PP9

A introdução da escola na aldeia alterou as formas tradicionais e

particulares de educação do povo, modificando a identidade

cultural das novas gerações a partir de valores não-indígenas.

PP4

A introdução da escola na aldeia modificou a forma tradicional de

educação do povo, passando a prevalecer o processo de

escolarização em detrimento da tradição anteriormente existente.

Destacam-se, em particular no discurso de PP10, as mudanças provocadas pela

educação escolar sobre a organização social do povo Paiter. Isto porque, ao proporcionar a

origem de interesses conflitantes nas comunidades, a escola passou a contribuir com a

fragmentação do povo, estimulando a criação de novas aldeias (para criação de novas

escolas), alterando a convivência cotidiana que garantia a realização de atividades

tradicionais como festas e outros eventos coletivos.

8.1.3 Concepções de escola

Baseando-se nas oposições indígena vs não-indígena, generalidade vs

particularidade, formalidade vs informalidade, tradição vs modernidade e interior vs

exterior, os professores definem escola como um espaço formal, generalista, onde se

ensinam para indígenas conhecimentos não-indígenas, mas também a ressignificam, ao

considerarem a possibilidade de ser compreendida como todo espaço que proporcione

aprendizagens. Destaca-se assim no discurso dos professores a diferença existente entre

uma visão de mundo característica da escola não-indígena, de caráter disciplinar, e uma

visão de mundo indígena, caracterizando a atual escola na aldeia com um elemento

estranho à realidade do povo. Escola não-indígena é assumida, nesse sentido, como um

espaço colonizador, estabelecido entre os povos indígenas após o contato com a sociedade

297

não-indígena, e que age, juntamente com outros espaços, para a alteração da visão de

mundo e da identidade de povos e sociedades colonizadas.

Quadro 86 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de escola da categoria de análise

educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1

Escola é um espaço onde se ensina para indígenas conhecimentos

não-indígenas que nada têm a ver com a identidade e a visão de

mundo indígena.

PP10

Escola é toda situação social em geral que oportuniza

aprendizagens, ensinamentos, troca de ideias no interior de um

povo, para além do espaço restrito e particular de uma construção

física.

PP9 Escola é um espaço formal onde se ensinam conteúdos específicos

de forma disciplinar.

PP4 Escola é um espaço formal onde se aprende a ler e escrever.

PP3 Escola é um espaço formal em que se reproduzem saberes e

conhecimentos específicos que não fazem parte da tradição.

PP7 Escola é um espaço não-indígena isolado e diferente da tradição

indígena, onde alunos indígenas buscam conhecimentos ocidentais.

PP6

Escola é um espaço específico onde se aprende a ler, escrever e

valores para distinguir o que é certo do que é errado, o que pode ser

feito do que não pode se fazer.

PP5

Escola é um conjunto de espaços gerais, múltiplos e diversos

existentes no contexto de uma comunidade e relacionados à vida

das pessoas, além de ser uma estrutura física que tem a finalidade

de sistematizar conhecimentos e discutir questões relativas ao

cotidiano.

PP2

Escola é uma estrutura que existe no interior da comunidade para

reproduzir tanto conhecimentos internos à cultura indígena quanto

conhecimentos externos, provenientes da sociedade envolvente.

298

Uma crítica à atual organização da educação escolar na aldeia é estabelecida pelos

professores indígenas, ao exporem suas concepções de escola. De modo geral, os

professores reconhecem a importância da presença da escola na aldeia, como espaço de

promoção da cultura e de aquisição de conhecimentos não-indígenas necessários à

convivência intercultural, mas também indicam que este não é o tipo real de escola

atualmente existente na aldeia.

As críticas elaboradas pelos professores indígenas revelam uma representação de

instituição escolar existente nas aldeias do povo Paiter que, não obstante as transformações

jurídicas e formais ocorridas ao longo da história, ainda não se diferencia essencialmente

dos modelos característicos das fases integracionista ou assimilacionista. Trata-se ainda de

uma educação escolar para os índios, e não propriamente de uma educação escolar

indígena. Isso não significa, todavia, que os professores não contemplem em suas

representações críticas a necessidade de que a escola na aldeia seja uma janela para o

acesso aos conhecimentos da realidade cultural externa que os circundam. Por isso,

também se faz presente nos discursos a ideia de um currículo escolar que contemple tanto

os “conteúdos não-indígenas” quanto a “cultura indígena”, para “ele não se esquecer do

que ele é”.

Não obstante a visão crítica a respeito da escola não-indígena, destaca-se nos

discursos dos professores uma tentativa de ressignificação do espaço escolar, projetando

para seu interior, para além do ensino da leitura e da escrita e da reprodução de

conhecimentos ocidentais, a função de sistematizar conhecimentos e debater questões

cotidianas da comunidade. Com tal ressignificação, os professores buscam superar um

modelo de instituição escolar, restritivo e delimitado, historicamente introduzido em

sociedades indígenas, em detrimento de formas próprias de educação já existentes em suas

culturas e tradições.

Mesmo quando assumida como espaço formal não-indígena dentro da aldeia,

voltado principalmente para o ensino da leitura e da escrita, observa-se nas práticas dos

professores paiter na escola características próprias do universo cultural específico de seu

povo. Nesse sentido, por exemplo, no cotidiano da escola e das salas de aula na aldeia, as

práticas pedagógicas dos professores se diferenciam das observadas em geral em escolas

não-indígenas quanto ao controle sobre o fazer dos alunos.

Nesse caso, a relação entre professor e aluno é orientada por padrões internos da

cultura paiter, segundo os quais o interesse em aprender deve partir do próprio indivíduo.

Isso explica o fato de os professores problematizarem a representação que nós, não-

299

indígenas, fazemos dos velhos na aldeia. Tendemos a assumir que ser velho significa ser

sábio. Mas, para os Paiter, a velhice nem sempre implica sabedoria, porque nem toda

criança manifesta o mesmo interesse em aprender. Assim, os indivíduos que não têm

interesse em aprender quando crianças tornar-se-ão, quando velhos, pessoas menos sábias.

Tal concepção se faz presente na escola paiter, refletindo no não direcionamento direto do

professor sobre o fazer do aluno, tal como é comum se observar na escola não-indígena.

Assim, as crianças paiter são livres para entrar e sair da sala quando desejam e suas

anotações nos cadernos não são “corrigidas” quanto ao certo ou ao errado com o mesmo

grau de censura que geralmente se observa na escola não-indígena.

Em síntese, verifica-se que, embora a escola seja concebida pelos professores paiter

como resultado do contato com o Ocidente, sendo ela mesma o espaço representativo do

Ocidente na atualidade no interior das comunidades, ocupando funções que anteriormente

eram exercidas pela tradição, não há uma recusa no sentido de eliminá-la da sociedade

paiter. Há, isto sim, um interesse em ressignificá-la, ampliando inclusive sua própria

definição, a fim de incorporar a ela outros espaços como o da família e o da comunidade

em geral como espaços a serem considerados como escola.

Nesse sentido, escola passa a ser assumida como uma estrutura que existe no

interior da comunidade indígena para reproduzir conhecimentos e valores da sociedade

envolvente, mas também é pensada como espaço para promoção da cultura local. Nesse

sentido, como espaço aparentemente ambíguo e contraditório, a escola é concebida a partir

de uma perspectiva intercultural, porque projeta-se para seu interior expandido a

reprodução simultânea de elementos de espaços culturais distintos, indígenas e não-

indígenas, tradicionais e colonizadores.

8.1.4 Importância da escola na aldeia

Os discursos dos professores paiter sobre a importância da escola na aldeia estão

baseados nas oposições particularidade vs generalidade, indígena vs não-indígena,

tradição vs modernidade e harmonia vs conflito. Nesse sentido, escola é concebida como

estrutura ou instituição de caráter geral, que tem um reconhecimento externo oficial,

enquanto espaço instituído pelo estado, e sua importância na comunidade está associada à

possibilidade de promoção da visão de mundo particular do povo Paiter. Embora

reconheçam, como indicado anteriormente, que a escola insere no seio da comunidade

valores e conhecimentos estranhos ou opostos aos da tradição, os professores também

300

concebem que a funcionalidade da escola pode ser direcionada para a promoção da

tradição e da identidade de seu povo. Verifica-se assim uma ressignificação da escola na

aldeia, deixando esta de ser considerada apenas como um espaço colonizador de imposição

de uma cultura não-indígena sobre o povo, para assumir o papel de reproduzir a tradição da

própria comunidade na qual está inserida.

Quadro 87 – Síntese de discursos referentes à tematização importância da escola na aldeia da categoria

de análise educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1

A importância da escola existente na aldeia é que ela é uma

instituição de caráter geral, reconhecida e instituída pelo estado,

mas cuja funcionalidade deve ser utilizada para a promoção da

tradição e da identidade cultural particular do povo.

PP1

A escola na aldeia, atualmente, deve servir tanto como um espaço

para se aprender conhecimentos não-indígenas necessários para as

relações com a sociedade colonizadora, quanto para promover os

conhecimentos indígenas, fortalecendo a cultura e a identidade do

povo.

PP10

A escola na aldeia tem se destacado entre os Paiter como um

espaço de conflitos, motivados por interesses individuais que

permeiam as relações de poder, em desacordo com a harmonia

coletiva que se espera em relação à promoção da cultura, da

tradição e da identidade do povo.

PP9

A escola na aldeia, se autônoma e diferenciada, é importante para a

manutenção dos saberes da tradição indígena e para a aquisição de

conhecimentos da sociedade não-indígena, devendo para tanto

buscar superar contradições e relações de dominação que ainda

existem em seu interior provenientes do processo de colonização.

PP4

A escola na comunidade é importante para que os estudantes

indígenas possam aprender em sua própria língua materna, com

professores da comunidade, sem ter que sair de seu território, de

modo a não sofrer dificuldades impostas por uma escola não-

indígena que não leva em consideração suas particularidades

linguísticas.

301

PP3

A escola na comunidade é importante para garantir a manutenção

da cultura e da tradição indígena, além de possibilitar o acesso a

conhecimentos não-indígenas necessários à sobrevivência do povo

na contemporaneidade.

PP3

A escola na aldeia tem o papel fundamental de contribuir com a

manutenção da tradição e da cultura do povo, fazendo frente às

transformações advindas da modernidade.

PP7

A importância da escola para a comunidade atualmente é que, além

de ensinar conhecimentos externos à tradição, ela pode contribuir

para a manutenção da cultura do povo, fazendo frente às

transformações advindas da modernidade.

A dualidade indígena vs não-indígena permeia as ideias dos professores referentes

à importância da escola na aldeia, ao assumirem que a escola pode ser um espaço tanto de

valorização de sua própria cultura e identidade indígena particular, quanto de promoção de

conhecimentos não-indígenas necessários para a existência do povo nas relações existentes

com a sociedade envolvente. Para se chegar a esta concepção de escola e de sua

importância, faz-se presente nos discursos dos professores, especialmente no discurso de

PP1, a consciência histórica de que três momentos distintos caracterizaram a escola na

aldeia, sendo o primeiro voltado para a introdução de saberes exclusivamente não-

indígenas na aldeia, cuja consequência escapava à consciência do povo; o segundo

caracterizado pela necessidade reconhecida pelo próprio povo de dominar conhecimentos

não-indígenas em razão das relações estabelecidas com a sociedade colonizadora; e o

terceiro como sendo aquele em que se espera que a escola também sirva para a promoção

da própria cultura paiter, fortalecendo assim a identidade cultural do povo.

Embora reconheçam a possibilidade da escola assumir valores interculturais e

reproduzir simultaneamente conhecimentos ocidentais e da tradição, não escapa à

percepção dos professores os conflitos que a introdução da escola no território paiter

ocasionou na organização social do povo. Nesse sentido, percebe-se que a escola na aldeia

também tem sido pretexto para conflitos e disputas entre membros das comunidades,

motivados por interesses individuais, que, ao não serem satisfeitos, transformam-se em

propulsores de cisões internas que acabam culminando com a criação de novas aldeias

(para a criação de novas escolas).

302

Assim, a escola é percebida como espaço de privilégios, produtor de status, um

espaço de poder, que garante a quem dela participa benefícios pessoais em detrimento da

coletividade. Segue-se disso o potencial de alterações de visão de mundo, de identidade e

de valores que a presença da instituição escolar em comunidades tradicionais pode

ocasionar, sendo a inserção da escola na aldeia, como parte do processo de colonização,

não só instância subjetiva de inclusão de conhecimentos não-indígenas para o interior da

fronteira cultural e identitária do povo, mas também fortemente instância objetiva de

desestabilização das relações de poder tradicionalmente existentes nas comunidades. A

escola, vista por esse ângulo, assume-se assim entre os professores paiter como um espaço

que, embora concebido como necessário por sua importância na contemporaneidade, está

permeado de ambiguidades e contradições.

Emerge dos discursos dos professores a esperança de que a escola na aldeia assuma

nova perspectiva, distinta da atualmente existente. Nesse sentido, reivindicam para a escola

na aldeia autonomia, reconhecimento de diferenças e uma identidade indígena (ter a cara

do índio) particular, vinculada à tradição. Para expressar essa ideia, os professores

estabelecem uma crítica à prevalência de conhecimentos não-indígenas em sala de aula na

atualidade, símbolo de dominação resultante do processo de colonização, pressupondo,

então, que uma escola diferenciada do povo deve superar essa contradição, tratando

conhecimentos indígenas e não-indígenas de modo equivalente, sem desmerecer a tradição

e a cultura paiter. Pressupõe-se assim possível a promoção de um diálogo, embora tenso e

problemático em função das relações de poder presentes, entre saberes provenientes de

distintos contextos, em particular, do contexto indígena e do não-indígena.

Em síntese, os discursos dos professores estão voltados para o reconhecimento da

importância da escola na aldeia por proporcionar o ensino de conhecimentos não-indígenas

em geral, necessários ao empoderamento de seu povo para a reivindicação de direitos e

para a formação de profissionais em áreas específicas necessárias ao atendimento de

necessidades contemporâneas da comunidade, ao mesmo tempo em que pode reproduzir a

cultura e a tradição indígena, contrapondo-se assim ao processo de colonização e ao

consequente abandono de particularidades que caracterizam o povo em função de

mudanças advindas da modernidade. Assim, atribui-se à escola um papel de resistência

cultural, contrapondo-se e buscando-se superar uma perspectiva de escola integracionista, a

serviço da sociedade colonizadora, historicamente imposta às sociedades indígenas, mas

agora problematizada de dentro para fora pelos próprios professores indígenas.

303

8.1.5 Motivações para ser professor

Para se compreenderem as motivações que levam os professores paiter a

problematizarem a escola na aldeia e a projetarem para o seu interior novos saberes e

novos valores, é importante compreender como pensam os Paiter a respeito do ser

professor indígena. Nesse sentido, verifica-se no discurso dos professores a predominância

da coletividade sobre a individualidade no ato de decisão e de escolha das pessoas da

comunidade que atuarão como professores das escolas nas aldeias. Invariavelmente, essa

decisão não é unicamente pessoal, não parte apenas de uma motivação individual. Há

sempre uma indicação da própria comunidade para a ocupação desse papel social na aldeia.

Quadro 88 – Síntese de discursos referentes à tematização motivações para ser professor da categoria de

análise educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1

Eu me tornei professor indígena não por uma vontade individual,

mas por necessidade e por indicação de minha comunidade, em

razão do meu nível de escolaridade.

PP10 Tornei-me professor por necessidade e indicação coletiva de minha

comunidade e em razão do meu nível de escolaridade.

PP4 Tornei-me professor não por uma vontade individual, mas por

indicação da coletividade de minha comunidade.

PP3 Tornei-me professor não por motivações pessoais, mas por

necessidade de minha comunidade.

PP6

A decisão de me tornar professor foi pessoal, mas motivada pela

preocupação com as dificuldades de aprendizagem dos alunos de

minha comunidade, dada a indiferença dos professores não-

indígenas com as particularidades culturais das crianças indígenas.

PP2

Tornei-me professor em razão de minha escolaridade e por escolha

coletiva de minha comunidade, para fins de contribuir com a

adequação da educação escolar de nossos alunos às particularidades

da cultura do nosso povo.

Destaca-se neste ato de indicação coletiva o peso atribuído à escolarização dos

sujeitos. Nesse sentido, atribui-se ao nível de escolaridade da pessoa uma maior

304

importância em detrimento da experiência de vida e do domínio da tradição, o que faz com

que a maioria dos professores paiter sejam jovens, que alegam conhecer pouco da cultura e

das tradições existentes em tempos anteriores ao contato. Nesse caso, a categoria

“escolaridade” presente nos discursos indica uma concepção de professor construída pela

comunidade na qual a experiência escolar não-indígena, pressuposta como domínio dos

conhecimentos ocidentais, supera outras características pessoais que poderiam ganhar em

relevância, caso fosse outra a concepção de professor, tais como a experiência de vida e o

conhecimento das tradições, que quase sempre estão associadas aos membros mais velhos

do povo.

Não deixa de ser relevante observar neste caso que a própria secretaria de educação,

ao contratar os professores indígenas, exige deles que se tenha uma formação escolar

julgada como “compatível” com o cargo, o que exclui do rol dos potenciais professores os

sabedores tradicionais, os velhos, os sábios (curubey), que, embora detentores de muitos

conhecimentos, são julgados inaptos para o ensino escolar na própria aldeia.

Assim, como o critério da experiência de vida em relação à tradição e à cultura não

é determinante para a escolha que a comunidade realiza entre seus membros para a

indicação à função de professor indígena, os jovens professores se veem como mediadores

entre a tradição e a modernidade, recorrendo sempre que possível aos velhos9 e sábios em

busca de referências internas à cultura para atuação em sala de aula.

8.1.6 Papel do professor na aldeia

O papel atribuído pelos professores paiter a si mesmos na aldeia orienta-se pelas

oposições imanência vs transcendência, individualidade vs coletividade, interior vs

exterior e tradição vs modernidade. Nesse sentido, faz-se presente na prática discursiva

dos professores a ideia de que o professor na aldeia é um líder, cuja atuação deve se dar em

prol da coletividade da comunidade, sendo um elo entre o interior e o exterior ao que

caracterizam como cultura paiter, orientando as novas gerações frente às mudanças

estabelecidas nas relações entre tradição e modernidade.

9 Uma vez presente nas práticas discursivas dos sujeitos, a categoria velho passou a ser de interesse para essa pesquisa, contando como ponto de questões das entrevistas, que resultaram nos discursos reunidos no tópico 8.1.12 desta seção.

305

Quadro 89 – Síntese de discursos referentes à tematização papel do professor na aldeia da categoria de

análise educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1

O professor paiter tem a missão de transcender os limites de uma

compreensão circunscrita ao que é imanente à vida cotidiana, a fim

de atingir uma consciência que lhe possibilite reorientar a

escolarização de seu povo com base na visão de mundo própria dos

paiter.

PP10

O professor deve ser um líder a serviço da coletividade,

preocupando-se com a vida de seu povo de forma honesta e

verdadeira.

PP9

O papel do professor na aldeia é o de ser um líder que, com sua

sabedoria e experiências individuais, tem o compromisso de guiar a

coletividade de seu povo entre o certo e o errado, ligando a tradição

aos conhecimentos necessários à vida na contemporaneidade.

PP4

O professor tem o papel de levar para o interior da comunidade

conhecimentos que são do exterior, advindos da sociedade não-

indígena, promovendo na escola da aldeia o encontro entre tradição

e modernidade.

PP3

O papel do professor na aldeia é fortalecer a tradição por meio da

educação e da pesquisa sobre a história de seu povo, em oposição

às mudanças provocadas pela modernidade.

Para fazer jus à liderança atribuída pela comunidade na condução da educação das

novas gerações, os professores consideram ser necessário dominar a história de seu povo e

ao mesmo tempo os conhecimentos da sociedade não-indígena, porém de forma crítica, a

fim de ser possível distinguir o certo do errado. Essa consciência histórica destaca-se nas

práticas discursivas dos sujeitos, ao considerarem que o professor paiter tem o papel

fundamental de extrapolar os limites de uma compreensão circunscrita ao que é imanente à

vida cotidiana, a fim de atingir uma compreensão que transcenda a situação histórica em

que o povo se encontra no mundo. Essa é uma condição indicada como necessária para a

reorientação do futuro do povo, de acordo com uma visão de mundo que lhe é própria.

O papel dos professores na aldeia, compreendido pelos próprios professores em

suas práticas discursivas, associa-se a uma ressignificação do processo de escolarização a

306

que seu povo foi submetido. Assim, considerando as transformações culturais provocadas a

partir do contato, incluindo mudanças na forma de pensar das pessoas, os professores

destacam a missão a eles incumbida de usar o próprio processo de escolarização em favor

da reversão das transformações associadas à colonização. Para tanto, torna-se fundamental

ressignificar a escola, fundando-a sobre outros valores característicos de uma visão de

mundo paiter.

Em relação aos desafios e dificuldades para a atuação crítica e engajada dos

professores em suas comunidades orientados por valores da tradição, destacam-se nos

discursos as referências a tensões provenientes das relações com os valores da

modernidade e do mundo ocidental, que enfatizam a individualidade, em detrimento do

sentido coletivo e comunitário do fazer docente na escola da aldeia. Destaca-se assim nas

práticas discursivas dos sujeitos a consciência de que o fazer do professor na aldeia se

constitui em um estado de tensão entre a tradição paiter e o interesse econômico

característico das relações capitalistas da alienação da mão-de-obra em troca de um salário.

Ao considerarem que o professor na aldeia tem a responsabilidade de promover o

encontro de conhecimentos da tradição e da modernidade, juntando-os no interior da

escola, ao mesmo tempo em que deve fortalecer a tradição por meio da educação escolar,

em oposição às mudanças provocadas pela modernidade, faz-se presente na prática

discursiva dos sujeitos uma concepção de escola na aldeia como espaço de hibridação

cultural, sendo o professor indígena seu principal agente.

Assim, antes de atuarem contra a escola na aldeia, ou contra a modernidade, como

alternativa de retorno a uma forma tradicional de educação existente em um estágio

anterior ao contato e aos efeitos da colonização sobre a organização social e à cultura do

povo, buscam os professores paiter projetarem na contemporaneidade um papel

ressignificado a si mesmos e à escola na aldeia, como forma alternativa de garantir a

existência social e cultural do povo, com identidade própria, mesmo que de forma híbrida,

dentro da modernidade.

8.1.7 O que deve ser ensinado na escola da aldeia

Na busca de uma ressignificação da escola na aldeia, e portanto do que nela deve

ser ensinado, os professores paiter baseiam suas práticas discursivas nas oposições

tradição vs modernidade, particularidade vs generalidade e indígena vs não-indígena.

Assim, ao refletirem sobre os conhecimentos que devem permear o currículo da escola,

307

partem inicialmente de uma valorização do plano interno da cultura do povo Paiter,

situando a escola entre esse plano e outro associado às mudanças e transformações

provenientes do contato com a cultura e à sociedade não-indígena. A escola é concebida

assim como um entre-lugar, ou como um terceiro-espaço, no qual se deve dar ênfase às

particularidades do valor da tradição, da cultura e da identidade do povo Paiter, ao mesmo

tempo em que se assumem os riscos da generalidade enquanto característica associada à

modernidade, à troca de identidade, ao ofuscamento da tradição, por também se pressupor

a necessidade de se incluir na escola da aldeia os conhecimentos não tradicionais,

provenientes da sociedade colonizadora.

Quadro 90 – Síntese de discursos referentes à tematização o que deve ser ensinado na escola da aldeia

da categoria de análise educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1

Antes de tudo, o que a escola na aldeia deve ensinar deve estar

orientado para a continuidade da cultura e da identidade do povo

Paiter, porque a escola na aldeia pode ser um espaço de

fortalecimento ou de substituição de identidades.

PP9

Entre os saberes gerais a serem trabalhados na escola da aldeia

devem estar os relacionados à forma particular de vida que o povo

tinha antes do contato com a sociedade não-indígena,

especialmente quanto à organização social e às relações

tradicionais de parentesco praticadas no interior do território.

PP4

Os conhecimentos a serem ensinados na escola da aldeia devem

estar relacionados tanto à tradição, que permeava a vida do povo no

passado, quanto à modernidade, relacionada ao modo de vida do

povo no presente.

PP3

A escola na aldeia deve ensinar tanto conhecimentos não-indígenas

quanto indígenas, de modo que continue a existir uma

diferenciação cultural entre o interno e o externo à fronteira

identitária do povo.

Vista pelo ângulo do que deve ser ensinado, a escola na aldeia destaca-se nos

discursos dos professores como um espaço ambíguo, que tanto pode fortalecer a identidade

paiter, quanto pode substituí-la por outra, dependendo do conteúdo, e portanto do currículo

308

presente e praticado, e da ordem do que nela é ensinado. Assim, pressupõem-se que,

quanto à particularidade do povo, a escola da aldeia deve ensinar sobre o modo de vida que

existia no interior do território antes do contato com a sociedade externa e não-indígena,

com destaque para os modos próprios de organização social, as relações de parentesco e de

organização clânica. Ao mesmo, tempo, os professores assumem como necessário o ensino

de conhecimentos da modernidade, conhecimentos contemporâneos, sobre os quais os

professores já têm relativo domínio (sendo inclusive um dos critérios de escolha dos

membros da comunidade para exercer a docência na aldeia).

Destaca-se nas práticas discursivas dos professores o contato como uma categoria

que introduz nos discursos uma cisão, entre o passado e o presente, entre uma identidade

cultural existente no passado e uma identidade cultural contemporânea, marcada pelas

relações de poder com a sociedade não-indígena colonizadora.

É justamente a consciência histórica dessa cisão que instiga os professores a

redirecionarem o papel e a função da escola na aldeia, projetando para seu interior saberes

particulares de seu povo que possibilitem uma revisita a um modo particular de vida

distinto do que atualmente se dá no território de seu povo. É por essa via, com ênfase no

conhecimento sobre o modo de vida anteriormente praticado pelo povo, que os professores

intentam fazer com que a educação escolar na aldeia ganhe novos contornos, distinguindo-

se dos atualmente existentes e dos tradicionalmente caracterizadores da escola não-

indígena imposta a seu povo.

Verifica-se também que compõe o conjunto de ideias dos professores referentes ao

que deve ser ensinado na escola da aldeia um apelo (tem que) às memórias de um saber

experienciado ou vivido no passado (artifício do arcaico) e o reconhecimento da

necessidade do domínio de novos conhecimentos necessários nas relações com a sociedade

envolvente no presente, de modo que a escola é assumida, na prática discursiva dos

sujeitos, como portadora de uma função política de afirmação de identidade, a partir de

uma perspectiva contrastiva de identificação e diferenciação cultural, pressupondo-se uma

distinção permanente, embora maleável e flexível, entre o que caracteriza o interior e o

exterior a uma fronteira identitária.

Associa-se a essa perspectiva uma concepção de escola como espaço de hibridação

cultural, no qual a educação escolar na aldeia é projetada para a promoção da

interculturalidade, assumindo-se uma concepção não essencialista de identidade e a

possibilidade da educação escolar na aldeia promover a etnicidade do povo Paiter (para ele

não se esquecer de quem ele é).

309

8.1.8 Relação entre educação escolar na aldeia e identidade cultural

Embora já tenha permeado os discursos dos professores paiter nas sínteses

anteriores, a relação por eles concebida entre escola e identidade cultural é o foco da

presente síntese. Sobre tal relação, os professores organizam seus discursos a partir das

oposições tradição vs modernidade, particularidade vs generalidade e indígena vs não-

indígena. Assim, partindo do pressuposto de que ser paiter significa também ter um

conhecimento diferente daquele existente no mundo moderno, nas dimensões sociais,

filosóficas e espirituais, faz-se presente no discurso dos professores a ideia de que

conhecimento paiter e identidade cultural paiter mantêm estreitas relações, de tal forma

que a escola é vista como um espaço que pode reforçar ou alterar a identidade cultural do

povo, dependendo dos conhecimentos que se fazem presentes em seu interior.

Quadro 91 – Síntese de discursos referentes à tematização relação entre educação escolar na aldeia e

identidade cultural da categoria de análise interculturalidade

SUJEITO DISCURSO

PP1

Conhecimento paiter e identidade cultural paiter estão intimamente

relacionados, de modo que o conhecimento da matemática paiter

em suas dimensões sociais, filosóficas e espirituais é importante

para que o povo paiter se mantenha na particularidade de sua

cultura, mesmo tendo que adquirir os conhecimentos necessários

para as relações com o mundo moderno.

PP1

A educação escolar oferecida na aldeia, com a participação de

professores indígenas, contribui para a manutenção da identidade

cultural particular do povo, distintamente de uma educação escolar

generalista não-indígena, oferecida fora da comunidade, que

contribui para a alteração das concepções de mundo e de futuro das

novas gerações.

PP9

A educação escolar, se trabalhar simultaneamente com

conhecimentos indígenas e não-indígenas, valorizando os

primeiros, não interfere na identidade cultural do povo.

PP4

A educação escolar na aldeia, quando desenvolvida de forma

intercultural entre a tradição e a modernidade, com ênfase na

cultura do próprio povo, contribui para a manutenção da identidade

310

cultural das novas gerações.

Percebe-se nas práticas discursivas dos professores paiter que a relação entre escola

na aldeia e identidade cultural do povo é por eles concebida de forma tensionada, porque

consideram que há sempre uma pressão da cultura da sociedade colonizadora sobre a

cultura paiter, na coexistência dos modos distintos de pensamento que caracterizam cada

uma delas como unidades discretas, resultando em efeitos sobre a constituição da

identidade cultural do povo. É em razão desse potencial efeito que os professores destacam

a importância da educação escolar na aldeia estar sob responsabilidade e controle dos

próprios professores paiter, como garantia de que a escola abranja tanto os conhecimentos

indígenas quanto os não-indígenas.

Ao destacarem em suas práticas discursivas a oposição tradição vs modernidade,

percebe-se que os professores não intentam negar a presença de conhecimentos não-

indígenas na escola da aldeia, mas sim que problematizam o predomínio de conhecimentos

não-indígenas na educação escolar das novas gerações, cujo efeito imediato é a mudança

de visão de mundo, de valores e, consequentemente de identidade, na direção de uma

homogeneização com as demais identidades que permeiam a sociedade não-indígena.

Em síntese, verifica-se que a criticidade dos professores paiter indica o domínio de

uma compreensão teoricamente elaborada a respeito das potencialidades da escola dentro

da aldeia. Ela tanto pode levar a caminhos que distanciam os sujeitos de quem ele é,

ofuscando suas origens, levando-o a esquecer de quem ele era, quanto pode fortalecer o

sujeito, mantendo-o vinculado a quem ele é dentro de sua cultura. Trata-se evidentemente

de uma questão de identidade cultural e de identificação cultural. Nesse sentido, para os

professores paiter, a escola é um espaço de transformação identitária, mas também pode

ser um espaço de fortalecimento étnico desde uma perspectiva intercultural.

8.1.9 Concepções de etnomatemática

Como elemento importante para compreendermos a elaboração teórica que os

professores manifestam em suas práticas discursivas, vale destacar, como foi dito

anteriormente, que todos são acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Básica

Intercultural da UNIR, onde entraram em contato com referências bibliográficas

relacionadas à etnomatemática, tais como D’Ambrosio (2002), Gerdes (2002), Ferreira

(2002) e Vergani (2007). Embora não tenham encontrado uma definição única de

311

etnomatemática em tais referenciais, pelos motivos já expostos na seção 5 desta tese,

verifica-se por parte dos professores paiter tentativas de compreensão teórica de

etnomatemática, relacionando-a tanto às consequências de um ensino não diferenciado de

matemática na aldeia, quanto ao potencial de fortalecimento da identidade cultural paiter

por distinção em relação aos modos de pensar da sociedade não-indígena.

Quadro 92 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de etnomatemática da categoria

de análise etnomatemática

SUJEITO DISCURSO

PP1

Etnomatemática é um conhecimento matemático que os povos em

geral têm, sendo um conhecimento matemático diferente e

particular de cada povo, de acordo com sua cultura e suas

necessidades cotidianas.

PP1

Etnomatemática é o conjunto de conhecimentos matemáticos

existentes em todo o mundo, sendo um conhecimento diferente em

cada cultura, de acordo com as tradições e o cotidiano de cada

povo, etnia ou sociedade.

PP10

Etnomatemática é algo inerente à vida humana, sendo a maneira de

cada povo contar, medir e realizar cálculos relacionados a suas

atividades cotidianas.

PP9

Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em

geral no interior da cultura de todos os povos, sendo diferente e

particular em cada povo ou grupo, a exemplo da matemática do

povo Paiter que ainda não está reconhecida pela sociedade não-

indígena.

PP4

Etnomatemática é um conhecimento matemático presente em todos

os grupos ou etnias em geral, sendo particular e diferente em cada

caso, a exemplo da matemática dos povos indígenas que é diferente

da matemática do europeu.

PP3

Etnomatemática é a matemática de povos ou etnias em geral e está

relacionada a formas particulares de contar, medir e conhecer de

cada povo ou etnia.

PP7 Etnomatemática são conhecimentos matemáticos tradicionais e

312

particulares de um povo referentes a formas de contar e medir,

diferentes dos conhecimentos ocidentais.

PP6

Etnomatemática é a matemática que está dentro da cultura

particular de um povo, sendo um conjunto de conhecimentos

diferentes dos conhecimentos gerais não-indígenas.

PP5

Etnomatemática é um conhecimento, nem sempre identificado, que

está no interior da cultura de cada povo ou grupo em geral, relativo

a formas particulares de pensar, ver, calcular, quantificar e medir.

PP2

Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em

geral no interior da cultura particular de cada povo, relacionado ao

uso em fazeres cotidianos como construir, confeccionar, medir e

enumerar, sendo diferente entre o povo Paiter e a sociedade não-

indígena.

Percebe-se que os professores paiter concebem etnomatemática como um

conhecimento matemático particular de um povo, organizando suas práticas discursivas a

partir da oposição particularidade vs generalidade. Assim, a etnomatemática é concebida

como a matemática presente no cotidiano e no interior da cultura de cada povo, sendo

diferente, portanto, entre o povo Paiter e a sociedade não-indígena. A diferença, nesse

caso, é enfatizada não para criar uma escala de valor funcional, no sentido de se tratar de

um conhecimento mais válido do que outro, um verdadeiro outro falso, um certo outro

errado, mas antes para superar uma situação de invisibilidade em busca de um

reconhecimento nas atuais relações estabelecidas entre sociedades e culturas distintas.

A ênfase na configuração discreta de um saber matemático próprio do povo é assim

assumida pelos professores paiter como característica imanente a um modo particular de

existência, não reconhecido, no contexto das relações interculturais contemporâneas, pela

sociedade colonizadora não-indígena. A particularidade do saber matemático paiter é

justificada assim a partir de práticas cotidianas de pensar, ver, calcular, quantificar e medir,

que caracterizam a singularidade da cultura do povo, frente ao restante dos povos e etnias

existentes no mundo, que possuem outros conhecimentos matemáticos inerentes à suas

próprias etnomatemáticas.

Verifica-se nas representações discursivas construídas pelos professores uma

distinção entre, de um lado, saberes e fazeres matemáticos cotidianos, pertencentes (no

sentido de estar dentro) à cultura paiter, e, de outro lado, a matemática escolar, distinta e

313

diferente dos saberes tradicionais. A dicotomização destes saberes passa a sustentar então

uma crítica à atual educação escolar oferecida na aldeia, porque nela não se vê

representada a matemática tradicional. A crítica se estende, todavia, aos próprios saberes e

fazeres utilizados atualmente no cotidiano das comunidades por crianças, jovens e adultos,

apontados como distintos daqueles tradicionalmente praticados antes do conhecimento da

matemática europeia. Tal crítica se dá, por exemplo, na seguinte fala de PP1, ao refletir

sobre a educação das novas gerações de paiter:

No meu ponto de vista... eu faço até uma análise crítica sobre isso. O que eles podiam estar aprendendo de acordo com sua faixa etária em relação ao conhecimento paiter suruí, nada é ensinado a eles. Quer dizer, hoje temos uma forma de vida bastante diferente para termos oportunidade ou ocasião de conhecer um conhecimento tradicional paiter. A exemplo, a etnomatemática. Nem todas as crianças, nem todos os jovens, até mesmo as pessoas adultas... elas não usam a etnomatemática no seu dia-a-dia. Estão mais habituados hoje... os adultos estão mais habituados hoje na questão da matemática não indígena, principalmente os jovens e as crianças. Se os mais velhos e os adultos não estão praticando a matemática paiter, muito menos as crianças e os jovens, porque hoje eles estão aí nascendo e crescendo, e daqui a pouco entra na sala de aula, e na sala de aula tem apenas a matemática europeia. Então não tem uma matemática na qual eles teriam a oportunidade de conhecer a etnomatemática, pelo menos na sala de aula, se no dia-a-dia não tem essa oportunidade. Então uma visão crítica que eu tenho em relação a isso é que não temos oportunidade, ocasião de estar praticando esses conhecimentos tradicionais no nosso dia-a-dia, nas nossas atividades cotidianas (PP1 – Aldeia Gapgir).

Ao conceberem etnomatemática como conhecimentos matemáticos específicos de

cada cultura, em particular da cultura do povo Paiter, faz-se presente nos discursos dos

sujeitos o esforço e a intenção de promoção de uma autoafirmação identitária (por

distinção), destacando que a matemática da sociedade não-indígena é diferente da

matemática de seu povo. Assim, a categoria semântica “diferença” se faz presente nos

discursos a partir da oposição particularidade vs generalidade, assumindo-se que, por um

lado, etnomatemática é conhecimento matemático que todos os grupos e etnias em geral

possuem, mas que, por outro lado, etnomatemática é a matemática particular de cada grupo

ou etnia. Nota-se uma ênfase nas práticas discursivas em relação à diferença existente entre

a matemática do europeu e a matemática dos povos indígenas, opondo-se com tal ênfase a

uma perspectiva que considera a matemática como conhecimento exclusivo de

determinadas sociedades ou culturas, particularmente a não-indígena.

314

Em síntese, podemos perceber nos discursos dos professores paiter que a concepção

de etnomatemática por eles enunciada busca estabelecer diferenças entre os conhecimentos

particulares de seu povo e os conhecimentos ocidentais, associando-se tais diferenças (ou

diferenciações) a um movimento de autoafirmação identitária (por distinção), que vai

refletir na problematização do ensino de matemática na escola da aldeia, conforme

abordado no próximo tópico dessa seção.

8.1.10 Como deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia

Ao problematizarem o atual ensino de matemática na aldeia, os professores paiter

projetam para a educação escolar a inclusão de saberes matemáticos da tradição, que são

distintos dos saberes não-indígenas ainda predominantes na escola. Reconhecem todavia a

necessidade de se ensinar também os conhecimentos matemáticos externos à cultura do

povo, coexistindo assim tradição e modernidade na escola da aldeia. Observa-se, também

nesse caso, a oposição particularidade vs generalidade como eixo central sobre o qual se

elaboram as práticas discursivas dos professores paiter, ao enfatizarem a distinção entre

saberes paiter e outros saberes a serem tratados pela educação escolar atualmente existente

na aldeia.

Quadro 93 – Síntese de discursos referentes à tematização como deve ser o ensino de matemática na

escola da aldeia da categoria de análise etnomatemática

SUJEITO DISCURSO

PP10

O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar tanto

os conhecimentos matemáticos não-indígenas em geral quanto os

conhecimentos matemáticos da cultura e da tradição do povo em

particular, sendo necessário para isso a participação dos mais

velhos.

PP9

O ensino de matemática na escola da comunidade deve considerar

os conhecimentos matemáticos particulares do povo, sendo

necessária para isso a realização de pesquisas sobre conhecimentos

que ainda estão isolados na cultura e na tradição do povo.

PP4

O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar em

particular a tradição, a língua e a realidade dos estudantes

indígenas, que vivem em uma cultura específica, distinta daquela

315

da sociedade não-indígena.

Os símbolos principais desse encontro de saberes na contemporaneidade passam a

ser, de um lado, os velhos, representantes maiores da cultura e da tradição, e, de outro lado,

a escola, até então caracterizada como um espaço estranho à identidade indígena, porque

agente de inculcação de valores, comportamentos e conhecimentos ocidentais no interior

da sociedade paiter. Verifica-se que a projeção dos distintos saberes matemáticos para o

interior da escola na aldeia é permeada de tensões relacionadas à necessidade de distinguir

o que é conhecimento indígena, tradição, e o que não é. Tais tensões são características de

espaços interculturais de existência e de educação, nos quais a mudança e a resistência

estabelecem uma relação de forças entre unidades culturais inicialmente discretas que

tendem a se hibridizar, dando origem a novas unidades discretas, porém híbridas, novas

identidades e novas realidades socioculturais.

Assim, verifica-se no discurso dos professores paiter atualmente a intensão

projetada para o trabalho com os saberes e fazeres matemáticos produzidos por seu povo

ao longo de sua história, assim como se observa o esboçar de uma crítica sobre os moldes

da atual educação escolar existente nas aldeias, em particular sobre a natureza, o tipo e a

forma que o ensino de matemática vem ocorrendo nas turmas escolares de crianças e

jovens das comunidades de seu território.

A compreensão das motivações que impulsionaram professores paiter a

problematizarem o ensino de matemática nas escolas das aldeias permeia a análise do

percurso de formação escolar de cada um, em especial a atual fase que se desenvolve no

curso de formação de professores indígenas na universidade. Diferentes trajetórias de

formação escolar foram percorridas pelos participantes da pesquisa. Alguns cursaram o

Ensino Fundamental na aldeia e o Ensino Médio no âmbito do Projeto Açaí. Outros foram

alfabetizados na aldeia, mas concluíram o Ensino Fundamental e o Ensino Médio em

escolas rurais ou na cidade, em cursos propedêuticos ou em escolas agrotécnicas.

Embora a idade média dos participantes seja de 32 anos, o que significa que a

formação escolar deles já se deu sob a existência de uma fase contemporânea da educação

escolar indígena no país, com um arcabouço jurídico pós-Constituição de 1988, as

experiências vivenciadas na escola por cada um foram marcadas por desafios, dificuldades

e estranhamentos, que permearam a inexistência de oferta de educação escolar diferenciada

nas aldeias e as limitações de comunicação e entendimento encontrados na escola

monolíngue em Língua Portuguesa.

316

A trajetória de formação escolar do professor PP2, por exemplo, é ilustrativa dos

percalços e das dificuldades enfrentadas para se concluir a educação básica:

Foi assim, antes de começar tudo isso, eu estudei na escola rural. Comecei muito tarde também, comecei a estudar a primeira série do ensino fundamental, naquela época era primeira série ainda, com 10 anos de idade. Então, eu tinha perdido muito tempo. Na época meu pai era cacique, liderança geral da comunidade, então na época ele não parava em casa, e onde ele ia eu ia junto com ele, até que em um tempo a gente parou nessa aldeia para poder dar tempo para estudar. Então, comecei a estudar na escola dos colonos, e a partir daí, eu comecei a seguir um pouco de estudo. Terminei aqui, depois fui estudar na escola Celso Ferreira da Cunha, lá em Riozinho, que é distrito de Cacoal. Lá terminei o Ensino Fundamental, a oitava série na época, e depois cursei a primeira série do ensino médio lá, e assim eu terminei o estudo lá, e então parei, fiquei um bom tempo parado. Quando foi em 2004, comecei a estudar me deslocando daqui para a cidade, de moto, para tentar terminar o Ensino Médio. Então eu cursei o ensino regular, terminei o segundo ano do Ensino Médio, terminando no ano de 2004. Fiquei parado de novo e voltei a estudar em 2007, para tentar terminar o terceiro ano do Ensino Médio, na escola seriada, na escola Onorina Lucas de Brito. Então, terminei em 2007 e assim eu consegui estudar. Foi a maior dificuldade para mim estudar, porque comecei a estudar em uma escola que não era da comunidade, que não era bilíngue, de uma cultura diferente, onde eu tive muita dificuldade de aprender na língua portuguesa (PP2 – Aldeia Lobó).

Uma característica comum dos diferentes percursos formativos pelos quais

passaram os professores, marcados por uma educação não diferenciada, e não voltada para

as especificidades de suas realidades culturais e linguísticas, foi uma ausência de

discussões a respeito da existência de saberes e fazeres matemáticos no cotidiano das

aldeias, relacionados às formas próprias de resolver problemas surgidos ao longo da

existência do povo Paiter, desde tempos anteriores ao contato.

Assim, ao ingressarem na universidade e darem início aos estudos de referenciais

teóricos relacionados à Etnomatemática, ocorreu uma tomada de consciência de que

formas próprias de matematizar o mundo podem existir em diferentes culturas e realidades

sociais. Ao mesmo tempo, de forma crítica, passaram a se dar conta de que a matemática

ensinada na escola na aldeia não está contemplando os saberes e fazeres matemáticos

próprios da cultura paiter. Uma primeira reação surgiu então entre os professores

indígenas, que passaram a ter elementos teóricos para problematizar o ensino de

matemática atualmente em andamento nas escolas das aldeias.

317

8.1.11 Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola

Ao problematizarem o ensino de matemática na escola da aldeia, os professores

paiter projetam para a escola a inclusão de saberes matemáticos próprios de seu povo,

como forma de contraposição a uma pressão cultural exercida pela predominância de

saberes não-indígenas na educação das novas gerações. Percebe-se assim, no discurso dos

professores, as oposições particularidade vs generalidade e indígena vs não-indígena

como representativas das tensões e contradições de uma escola atual que não considera em

seu interior os saberes que são particulares do povo a qual ela deve servir.

Quadro 94 – Síntese de discursos referentes à tematização importância de se trabalhar com os saberes

matemáticos paiter na escola da categoria de análise etnomatemática

SUJEITO DISCURSO

PP1

Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da

comunidade é importante para fazer frente à pressão exercida pelo

ensino da matemática europeia sobre a identidade cultural do povo.

PP4

Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da

comunidade é importante para que as novas gerações do povo

Paiter não se esqueçam de como esses saberes e fazeres particulares

do povo eram tradicionalmente usados.

PP4

Os conhecimentos matemáticos paiter devem ser preservados e

ensinados às novas gerações para fazer frente às mudanças

culturais, às alterações de identidades e à dominação cultural que o

ensino de matemática não-indígena na escola representa.

PP7

O ensino de saberes matemáticos paiter na escola, como saberes

distintos da matemática não-indígena, é importante para contribuir

com a manutenção da cultura e da identidade cultural do povo.

PP6

Trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da aldeia é

importante para superar a inexperiência das novas gerações em

relação aos conhecimentos práticos e teóricos da tradição do povo,

sendo fundamental para isso a presença dos mais velhos e

experientes na sala de aula.

PP2 Ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter em sala de aula é

318

importante para que os alunos conheçam e valorizem sua própria

cultura em particular e com isso reafirmem sua identidade cultural

e superem os preconceitos advindos da relação com a sociedade

não-indígena em geral.

Está presente no discurso dos professores uma ênfase ao fato de que atualmente a

matemática ensinada na escola da aldeia é proveniente de um contexto geral externo à

cultura de seu povo, que não considera as particularidades do conhecimento matemático

interno à tradição de sua cultura. Desse modo, os professores entendem que a escola na

aldeia, ao não ensinar os saberes e fazeres matemáticos da tradição, exerce uma pressão

sobre a identidade cultural de seu povo.

Para fazer frente à pressão resultante da reprodução de um saber não-paiter na

escola da aldeia, os professores destacam a importância e a necessidade de se ensinar os

conhecimentos matemáticos de seu povo na escola, como forma de revitalizar e valorizar

esses conhecimentos, para que eles não se percam e com isso haja uma alteração na

identidade cultural de seu povo. Estabelece-se assim, nas práticas discursivas dos sujeitos,

uma forte relação entre ser e saber, entre conhecimentos da tradição e identidade cultural.

Desse modo, eles destacam a importância de se ensinar saberes matemáticos da tradição na

escola, na atualidade, por perceberem que a escola ainda ensina apenas a matemática

“europeia”.

As expressões “matemática europeia” ou “matemática não-indígena” presentes nas

falas dos sujeitos indicam um conhecimento de discussões de cunho acadêmico,

proveniente possivelmente do curso de formação de professores do qual participam na

universidade, e sobre o que temos direta ou indiretamente uma participação. Desse modo, é

importante destacar que, como as autoanálises das perguntas realizadas nas entrevistas

mostram, há um fazer persuasivo do próprio pesquisador presente no conteúdo enunciado

nas práticas discursivas dos sujeitos, caracterizando-se assim uma certa interação entre os

discursos dos sujeitos e nossas próprias expectativas e pressupostos como pesquisador.

Observa-se que a noção de povo se faz presente no discurso dos professores como

uma categoria semântica fundamental na oposição com o que não caracteriza a tradição ou

a cultura particular dos Paiter. A distinção Nós Mesmos vs Os Outros opera assim como

orientadora da compreensão que os professores fazem da escola, do ensino de saberes e

fazeres matemáticos e das relações em geral estabelecidas entre o que é interno e o que é

externo a uma fronteira cultural e identitária.

319

Em suma, verifica-se que a ausência dos saberes matemáticos da tradição na escola

representa para os professores paiter um risco de perda de identidade, de um afastamento

da tradição, resultante de uma pressão representada pelo atual currículo escolar (programa

do Estado). Assim, a importância de se ensinar saberes matemáticos paiter na escola

relaciona-se com a possibilidade de resgate e revitalização de um modo específico de

pensar, construído historicamente antes da presença da escola na aldeia, porém por ela

desconsiderado e negado na atualidade.

A projeção que os professores fazem da introdução dos saberes matemáticos da

tradição na escola motiva-se não por uma função utilitária que venham a ter na

modernidade em comparação com o uso que se faz da matemática não-indígena, mas antes

como forma de distinção e de promoção da etnicidade do povo. Isto é, os conhecimentos

matemáticos da tradição não se autojustificam, de modo que não são importantes por si

sós, mas apenas na medida em que são indicados como necessários à manutenção da

identidade cultural do povo Paiter.

Assim, partindo da representação da ausência de saberes matemáticos paiter na

escola, mas também da relativa ausência destes saberes no cotidiano das próprias

comunidades, dadas as transformações pelas quais as instituições tradicionais paiter

passaram após o contato com a sociedade envolvente, os professores paiter, instigados

possivelmente pelas discussões promovidas pelo curso na universidade, e pela participação

em projetos de pesquisa e de extensão, deram início a ações voltadas à identificação e

registro escrito de saberes e fazeres matemáticos do povo (apresentados parcialmente na

segunda seção dessa tese).

Para isso, tomaram por fontes de informação as memórias relatadas pelos membros

mais velhos de suas comunidades, considerados estes como livros orais dos Paiter. E, ao

discorrerem sobre as motivações e a importância de se pesquisar os saberes e fazeres

matemáticos da tradição, os professores paiter indicam a reprodução e valorização destes

saberes através da educação, em particular através da educação escolar:

Até o momento, a gente está descobrindo números até dez, e as pinturas, que dentro das pinturas tem formas geométricas, tipo quadrado, retângulo, triângulo. Na flecha também... na flecha que os mais velhos confeccionam, tem as formas geométricas também parecido com isso aí. Então, a etnomatemática... isso faz pensar na etnomatemática da nossa cultura. A partir dali, a gente tenta buscar novos conhecimentos dentro da cultura, e a partir dessa descoberta, a gente tenta transmitir esse conhecimento na sala de aula. Isso fez com que eu pensasse com meu TCC... buscar esses conhecimentos, antes que eu pudesse passar isso para a comunidade (PP2 – Aldeia Lobó).

320

Uma das referências que a gente tem no ensino da etnomatemática, de repassar esses conhecimentos hoje, são os mais velhos. Então, eles tem uma grande importância para transmitir esse saber, porque se não fosse por meio dos velhos transmitir esses conhecimentos, o único conhecimento matemático que a gente tem são nas escolas, e as escolas tem a matemática não indígena, que vem pressionando cada vez mais nossos alunos, cada vez mais o povo Paiter, que acaba diminuindo a força do conhecimento etnomatemático paiter. Então, quer dizer, os nossos mais velhos hoje são uma escola para nós, hoje são os livros orais para a gente (PP1 – Aldeia Gapgir). Nessa perspectiva de registrar, de coleta de dados, sistematizar e ensinar em sala de aula os dados coletados e sistematizados, que entramos com esse projeto sobre saberes e fazeres etnomatemáticos paiter ... Então, o projeto é um dos meios que vai ser... vai ser um mecanismo que pode contribuir, e que vai contribuir para que esses conhecimentos se perpetuem ao longo do tempo, seja na comunidade através da escola, seja em livros didáticos, e também no meio acadêmico dentro da universidade (PP1 – Aldeia Gapgir). Hoje, os sábios, os adultos, os curubey que a gente fala, só eles estão sabendo de forma certa, da contagem, da medida, da sua história. Por isso que essa importância tem que ser registrada, tem que ser publicada, porque a escola tem que ter esse referencial dentro dela (PP3 – Aldeia Amaral).

A educação escolar é apontada então pelos professores indígenas como instância

privilegiada para a promoção de uma reabilitação da cultura, incluindo-se a reprodução dos

saberes e fazeres matemáticos produzidos pelo povo Paiter ao longo de sua história.

Evidencia-se nos discursos a busca de uma diferenciação emblemática entre

conhecimentos paiter e conhecimentos não-paiter, de modo que a inclusão ou exclusão de

saberes e fazeres matemáticos tradicionais na escola são vinculadas a processos de

afirmação ou de negação de identidade cultural, conforme ilustram as falas de PP1 e PP2:

Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de suma importância, porque o conhecimento matemático que conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje, trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional, conhecimento milenar que foi passado de geração em geração. Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma matemática não indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior

321

é até mesmo de questão de identidade cultural paiter (PP1 – Aldeia Gapgir). No meu ponto de vista, como professor indígena dentro da minha comunidade, [a etnomatemática em sala de aula] é um grande benefício para os meus alunos, até tanto para mim quanto para meus alunos também, porque a partir do momento que eu comecei a me envolver com a etnomatemática na universidade, isso fez eu adquirir um grande conhecimento sobre a minha cultura mesmo. Então, isso me fez sentir que isso tem um grande benefício para mim, e pode trazer também para os meus alunos, e até dentro da cultura, da comunidade também. Isso me fez pensar em participar desse projeto, para poder transmitir isso para os meus alunos, para eles terem conhecimento da própria cultura, porque se a pessoa não tem conhecimento da própria cultura, ele não dá valor a sua cultura. Então, a partir do momento que ele vai pegar sobre o conhecimento da etnomatemática da própria cultura, então ele vai saber dar valor sobre o que está sendo feito dentro da comunidade, como arco, a confecção de anéis, a confecção de balaios. Então, a partir desse momento, ele vai entender que aquilo tem um significado muito grande para eles, não só o cálculo da cultura não indígena, mas também tem a sua própria cultura, os seus cálculos, os modos do dia-a-dia da sua cultura. Então isso vai fazer com que ele goste daquilo que está fazendo, e não tenha vergonha daquilo que faz. Então, eu, para trabalhar com meus alunos, primeiramente eu vejo assim mais a minha cultura, para depois eu repassar esse valor para eles em forma da etnomatemática, ou seja, de outra forma que eles gostem da própria cultura. Porque se eles não conhecerem a própria cultura, gostarem da própria cultura, como é que vão dar valor à própria cultura? Então, para mim, eu defendo essa metodologia por eu entender que tem uma grande importância para mim e para meus alunos e para minha comunidade (PP2 – Aldeia Lobó).

Verifica-se em suma que a projeção da inserção de saberes e fazeres matemáticos

tradicionais na escola da aldeia pelos próprios professores indígenas assume uma função

política de afirmação de identidade, a partir de uma perspectiva contrastiva de

identificação e diferenciação cultural, voltada para uma reabilitação da cultura, não no

sentido de um retorno a um estágio pretérito da história do grupo étnico circunscrita em

uma apologia do arcaico, mas sim como símbolo de diferenciação atual entre o interno e o

externo a uma fronteira identitária fluida e performática. Nesse sentido, projetam-se os

saberes e fazeres matemáticos na educação escolar na aldeia como critérios de

identificação étnica, superando o caráter utilitário atribuído usualmente à matemática

escolar e realçando no aspecto teórico da etnomatemática sua relação com a etnicidade.

322

8.1.12 Importância dos velhos para o ensino de saberes da tradição

A tratarem da importância dos velhos em relação à educação, os professores paiter

baseiam seus discursos nas oposições tradição vs escolarização, tradição vs modernidade

e experiência vs inexperiência. Nesse sentido, os velhos são apresentados como “livros

orais”, isto é, como detentores dos saberes e fazeres do povo, construídos desde tempos

imemoriais e, portanto, anteriores ao contato recente com a sociedade não-indígena.

Assim, os velhos são indicados nas práticas discursivas dos professores como referências

fundamentais para a continuidade da tradição, visto que na escola instalada na aldeia

predominam conhecimentos e valores não-indígenas.

Quadro 95 – Síntese de discursos referentes à tematização importância dos velhos para o ensino de

saberes da tradição da categoria de análise educação escolar indígena

SUJEITO DISCURSO

PP1

Os velhos são importantes para garantir a manutenção dos saberes

da tradição, frente à pressão exercida sobre a identidade cultural do

povo pelo processo de escolarização imposta pela colonização.

PP1

Os velhos são importantes para a manutenção dos saberes da

tradição, mas participam pouco da educação escolar na aldeia

porque a escola, enquanto espaço de formalidade, dominação,

restrição e homogeneização característico da modernidade é

diferente da tradição paiter, segundo a qual as pessoas são livres e

autônomas para aprender por observação dos mais velhos no

cotidiano informal da aldeia.

PP10

Os velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia

acompanhando e cobrando dos professores o ensino de saberes da

tradição indígena e de saberes da sociedade não-indígena, de modo

a manter a cultura e a identidade do povo frente às transformações

advindas do contato.

PP9

Os velhos são detentores da sabedoria, dos conhecimentos

tradicionais e da experiência, e por isso são fundamentais na

educação escolar das novas gerações inexperientes quanto ao modo

de vida particular praticado pelo povo Paiter em tempos passados.

323

PP4

O papel dos velhos no ensino de saberes da tradição é o de informar

aos professores sobre os conhecimentos construídos nas

experiências vivenciadas em tempos passados, a fim de que os

professores possam introduzir esses conhecimentos no processo de

escolarização atualmente existente na comunidade.

PP7

Os mais velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia

informando ao professor os conhecimentos da tradição e da história

particular de seu povo.

PP6

Os velhos, como detentores de conhecimentos da tradição, são

importantes para a educação escolar das novas gerações, mas para

que participem da escola na aldeia é necessário recompensá-los

financeiramente, pois novos valores advindos da modernidade

passaram a ser assumidos nas relações sociais após o contato.

PP5

Os velhos são importantes porque tem a experiência em relação aos

saberes da tradição no interior da cultura, contribuindo assim para a

formação dos professores voltada para a mediação entre tradição e

modernidade no âmbito da educação escolar indígena.

Verifica-se nos discursos dos professores uma dicotomização entre conhecimentos

paiter e conhecimentos não-paiter, a partir da qual desenvolvem-se as ideias sobre relações

de poder entre diferentes conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento paiter possui

força, mas a escola também, causando assim uma pressão sobre o povo. Essa pressão é

compensada pela presença dos velhos na reprodução da tradição, residindo nisto a

importância deles para a transmissão de saberes e fazeres, incluindo-se, em particular, os

saberes e fazeres matemáticos.

Os velhos são concebidos pelos professores como representantes da tradição, da

sabedoria de seu povo, e por isso são importantes para garantir a reprodução de saberes da

tradição, para fazer frente à pressão que o processo de escolarização impõe sobre a

identidade cultural do povo. A criticidade presente nas práticas discursivas dos professores

possibilitam-lhes perceber forças transformadoras impostas pela colonização, representada

por exemplo pelo ensino de matemática não-indígena na escola, frente às quais percebem

também a resistência da tradição, cuja maior referência são os velhos, considerados

depositários dos saberes particulares do povo.

324

Reconhecendo que a forma de educar dos mais velhos é distinta da forma de educar

da escola introduzida na aldeia, os professores refletem criticamente sobre a quase

ausência dos velhos na educação escolar das novas gerações. Assim, por um lado, opondo

tradição e modernidade, velhos e escola, a educação tradicional é caracterizada pela

liberdade que as pessoas têm de aprenderem em situações informais, de maneira autônoma,

livre e sem rotinas, a partir da observação dos mais velhos no cotidiano.

Por outro lado, a modernidade é caracterizada pela formalidade, pela dominação da

escola sobre as pessoas, com o estabelecimento de rotinas, de restrições quanto ao local e

aos saberes que devem ser aprendidos, resultando em um processo de homogeneização, ao

qual todos são submetidos. Tais diferenças entre a tradição e a modernidade seriam um dos

motivos pelos quais os velhos participam pouco do processo de escolarização das novas

gerações na aldeia, gerando um constrangimento ao serem convidados para ensinar os

saberes da tradição na escola, porque este espaço é muito distinto (artificial) daquele

característico do cotidiano (natural) da aldeia.

O interesse econômico surgido entre os velhos após o contato, como um valor

proveniente da sociedade capitalista, também é indicado nos discursos como um fator

importante para o real envolvimento dos velhos na educação escolar na aldeia. Quanto a

isso, os professores consideram que a ausência de uma remuneração ao trabalho dos

velhos tem se constituído em desestímulo à participação deles na reprodução dos saberes e

fazeres tradicionais na educação escolar existente na comunidade.

Verifica-se assim uma inversão de valores nas relações sociais tradicionalmente

existentes na comunidade, visto que, antes do contato, os jovens eram educados de uma

forma social e coletivamente organizada, e na atualidade, após as mudanças de valores

impostas pela modernidade, produziram-se ressignificações dos papéis sociais,

submetendo-se os velhos à lógica do trabalho e da venda de sua mão-de-obra, entendida

esta como tudo o que for relativo à ação de educar as novas gerações no espaço da sala de

aula da escola instalada na comunidade.

Ao considerarem que os velhos têm um papel fundamental para a educação das

novas gerações em relação ao modo de vida do povo, emerge dos discursos dos professores

a alusão à distância que a educação escolar mantém em relação à tradição. Assim, a

presença dos velhos na educação escolar, como exemplos de vida e de tradição, é

concebida como um complemento na atual educação existente entre os Paiter, e o papel

dos próprios professores, jovens e inexperiente que se consideram, torna-se o de serem

mediadores entre a experiência dos velhos e a sala de aula.

325

Desse modo, permeia a prática discursiva dos sujeitos a ideia de que ao sabedor

indígena compete informar ao professor da comunidade a respeito dos conhecimentos da

tradição, a fim de que o professor introduza esses conhecimentos no processo de

escolarização existente atualmente na aldeia. Assume-se, de certo modo, nessa relação,

uma incompatibilidade entre a tradição, representada pelos velhos, e a escolarização,

representada pela sala de aula, ao se destacar que tentativas empíricas de levar os velhos

para ensinarem diretamente na escola não deram certo.

Em suma, verifica-se nos discursos a ideia de que ao professor na aldeia compete

ser um intermediário entre os velhos e a sala de aula. Assim, ao refletirem sobre o papel

dos velhos na educação escolar indígena, considera-se que isso não se dá de forma direta

com a presença dos sabedores em sala de aula na escola da aldeia, mas através da

contribuição indireta na formação dos professores a partir de referenciais internos da

cultura do povo. Assim, cabe aos professores indígenas e não aos velhos serem os atuais

mediadores diretos entre as novas gerações e a tradição, sendo todavia os velhos

importantes referências internas no que diz respeito à cultura do povo existente em um

estágio anterior ao contato com a sociedade envolvente.

8.1.13 Estado da cultura paiter em cem anos

Ao refletirem sobre o futuro da cultura do povo Paiter, os professores organizam

suas práticas discursivas a partir das oposições resistência vs mudança e tradição vs

modernidade. Nesse sentido, consideram que as relações existentes com a sociedade

envolvente a partir do processo recente de colonização continuarão a provocar

inevitavelmente mudanças no modo de produção material do povo e no estilo de vida

existente nas aldeias, a partir da assimilação de princípios capitalistas e do uso de novas

tecnologias, pondo em risco a sobrevivência de uma identidade cultural que distinga o

povo das demais sociedades e povos no mundo. Todavia, apesar de uma consciência de

que a situação histórica em que se encontra o povo acarretará mudanças na cultura,

empurrando-a para além de uma moldura fixa e estática, os professores consideram a

possibilidade de resistência, para a qual pode contribuir a educação escolar desde que de

uma perspectiva ressignificada.

326

Quadro 96 – Síntese de discursos referentes à tematização estado da cultura paiter em cem anos da

categoria de análise interculturalidade

SUJEITO DISCURSO

PP1

Em cem anos, a cultura dos Paiter poderá sofrer profundas

mudanças, passando a ser permeada por valores ocidentais, mas

também haverá resistência a tais mudanças, a partir de uma recusa

consciente da modernidade e de uma opção por um estilo de vida

tradicional no interior da floresta.

PP10

Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá praticamente

desaparecido, porque está havendo um processo acelerado de

substituição de valores da tradição por outros advindos da

modernidade, e as novas gerações estão deixando para trás a

identidade cultural e o modo de vida tradicional de seu povo.

PP9

Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter poderá ter se extinguido

pelas mudanças impostas a ela nesse período, mas também poderá

ter sobrevivido em função da resistência possível de ocorrer por

meio do registro de nossa cultura e da reprodução de nossa tradição

e identidade cultural através da escolarização das novas gerações.

PP4

Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá deixado de existir,

porque vivemos um acelerado processo de mudanças impostas pela

colonização, através da qual a modernidade substitui a tradição e a

identidade cultural do povo é abandonada pelas novas gerações.

PP3

Daqui a cem anos, se houver uma valorização da cultura e uma

resistência às mudanças impostas pela colonização, a cultura do

povo Paiter ainda existirá, sendo que o povo estará praticando sua

própria cultura e a cultura da sociedade envolvente.

Como condição para a resistência cultural, emerge dos discursos dos professores a

importância da pesquisa e do registro da cultura de seu povo, como condição para a

reprodução dos saberes da tradição na escola. Assim, mais uma vez, escola passa a ser

concebida pelos sujeitos como um espaço que atua a favor da manutenção da cultura e da

identidade cultural do povo, mesmo que em um contexto aparentemente contraditório de

327

transformações e mudanças. Nesse sentido, a educação escolar na aldeia é assumida como

um processo a ser ajustado à realidade cultural paiter para atuar em seu favor.

Em síntese, verifica-se nos discursos dos professores paiter um misto de incertezas

quanto ao futuro da cultura e da identidade cultural do povo frente às transformações

impostas pela colonização e pela modernidade, ao mesmo tempo em que buscam

considerar a educação escolar como instância de resistência a tais transformações desde

uma perspectiva de escola ressignificada e voltada para a valorização interna da cultura

pelo próprio povo. Percebe-se assim, nas práticas discursivas dos professores, uma

concepção de que é possível manter uma identidade cultural paiter mesmo em um contexto

de relações interculturais tensas, contraditórias e homogeneizantes com a sociedade

colonizadora envolvente.

328

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atual experiência de professores paiter ao projetarem a introdução do ensino de

saberes e fazeres matemáticos de seu povo nas escolas de suas aldeias situa-se em um

contexto de tensões entre a apropriação de elementos culturais da sociedade envolvente e a

tentativa de garantir a permanência do que lhes é próprio. Essas tensões, características do

fenômeno do hibridismo cultural, aparecem implícita ou explicitamente nos discursos dos

professores indígenas.

Caso resultem exitosos na continuidade dessa experiência no espaço da

interculturalidade, a educação escolar introduzida em suas aldeias poderá compensar a

falência de instituições indígenas tradicionais de reprodução social, e portanto de

educação, resultante de um processo de mudanças pós-contato, contribuindo, se não para a

manutenção de saberes e fazeres tradicionais de uma forma rígida e imutável, pelo menos

para o equilíbrio necessário nas relações assimétricas de poder estabelecidas com a

sociedade envolvente, contribuindo para o fortalecimento de uma identidade cultural em

permanente reconstrução.

Quando se observa a ausência de registros escritos de saberes e fazeres matemáticos

paiter, e um movimento iniciado para revitalização da cultura por meio da introdução

destes saberes na instituição escolar visando o fortalecimento da identidade cultural paiter,

não há que se falar de uma identidade paiter fixa ou congelada no tempo e no espaço.

Mesmo que o contato ainda não tivesse ocorrido, mudanças internas quanto à forma de

organização social, dos modos de produção material e imaterial, da representação da

natureza e de seus fenômenos, bem como em relação à língua poderiam ocorrer, embora

em outras direções e em uma escala de tempo diferente daquela em que atualmente tais

mudanças estão ocorrendo.

No caso particular das tensões e coexistência antagônica entre os Paiter e a

sociedade envolvente, inicialmente marcada por conflitos físicos, que implicaram em

mortes e assassinatos, com massacrante desvantagem para os Paiter, à medida que tal

coexistência é marcada por assimetrias e relações desiguais de poder, reforçadas em muitos

casos pela igreja e pela educação escolar homogeneizadora inseridas nas aldeias, surge o

risco de perda e desaparecimento de saberes e fazeres próprios da cultura desse povo, que

329

vai se alterando, particularmente a língua, o modo de organização social e de produção

material, a história e os saberes e fazeres matemáticos.

Nesse contexto de assimetrias, o discurso e a prática de professores indígenas paiter

referentes ao ensino de matemática em escolas de suas aldeias revelam uma tensão entre o

interesse de apropriação de um conhecimento exterior e a garantia de continuidade de

saberes próprios à cultura local. Esse antagonismo se reforça a partir da crítica em

elaboração pelos próprios professores paiter quanto aos fins da educação escolar em

contextos indígenas.

São representativas desse fenômeno, particularmente quanto às relações entre

saberes matemáticos externos e locais à cultura, as práticas discursivas dos professores

indígenas ao se referirem a: falta de ocasião para aprenderem um conhecimento

tradicional, os adultos estão mais habituados hoje na questão da matemática não-

indígena, na sala de aula tem apenas a matemática europeia, por não se ensinar a

matemática do povo, a gente tem essa dificuldade de compreender a matemática europeia,

a escola tem que ensinar primeiramente conhecimento paiter, existe uma pressão de uma

matemática não-indígena, revitalizar e valorizar os conhecimentos paiter é uma questão

de identidade cultural.

As práticas discursivas dos professores paiter voltadas para a introdução dos

saberes matemáticos do povo na escola, antes de visarem a diversidade cultural para a qual

contribuiriam particularmente os saberes matemáticos do povo, buscam marcar posição

(oposição/diferenciação) em relação a uma matemática do currículo presente na escola

inserida na aldeia.

Essa abordagem origina inevitavelmente tensões, relacionadas a questões de

identidade cultural, descentramento cultural e hibridismo cultural, porque, ao mesmo

tempo em que, conforme Bhabha, o processo enunciativo pressupõe a existência de uma

tradição (artifício do arcaico), ele introduz uma quebra no presente performativo da

identificação cultural ao eleger novos significados e saberes como necessidades do

presente político em uma constante prática de resistência.

No caso particular dos Paiter, observa-se no discurso dos professores (espaço

enunciativo), simultaneamente (mas também de forma tensionada) um apelo às memórias

de um saber matemático experienciado ou vivido “pelos mais velhos”, e o reconhecimento

da necessidade do domínio da matemática escolar como estratégia de empoderamento nas

relações de poder assimétricas com a sociedade envolvente no presente enunciativo

(conhecer para não ser “passado para trás”).

330

Nesse contexto, tornam-se problemáticas as noções de originalidade e pureza da

cultura, e ganha espaço o conceito de hibridismo, a partir do qual cultura é enunciada mais

como categoria flutuante e instável do que como essência ou unidade fixa. Nas palavras de

Bhabha, “a cultura se torna uma prática desconfortável, perturbadora, de sobrevivência e

suplementaridade – entre a arte e a política, o passado e o presente, o público e o privado –

na mesma medida em que seu ser resplandecente é um momento de prazer, esclarecimento

ou libertação” (BHABHA, 2010, p. 245).

O caso dos professores paiter exemplifica que, após vinte e cinco anos de

promulgação da atual Constituição Federal, povos indígenas do Brasil, entre outras ações

de seus interesses e de fundamental importância, estão efetivamente se colocando em

posição de transformar a educação escolar inserida em seus territórios, conforme previsão

legal, contando para isso com o apoio de universidades (em todos os estados da federação),

e outras instituições, governamentais ou não.

Como trabalhadores, pesquisadores e estudantes da Educação Matemática,

compete-nos participar desse movimento. Discutir educação escolar indígena a partir dos

referenciais da Interculturalidade e da Etnomatemática pode ser um dos caminhos,

podendo resultar em uma expansão da produção teórica nacional sobre a formação de

professores indígenas no país, concebida no encontro entre culturas distintas, com toda a

problemática que tal fenômeno ocasiona em função das relações de poder envolvidas.

Afinal, conforme observação de Ferreira (2005, p. 127):

Ao fundar-se teoricamente na cultura, a etnomatemática traz para o rol das suas discussões os encontros entre culturas distintas. Nestes encontros, os quais promovem um movimento em dupla direção, as culturas envolvidas na nova relação passam a se transformar de um modo até então inexistente. Uma nova dinâmica é estabelecida, tanto para uma quanto para outra, e, assim, novas referências passam a participar do cotidiano de todos. Entretanto, o rosto assumido por esta dinâmica está intrinsecamente ligado ao poder que uma civilização exerce sobre a outra. Por isso, a história tem registrado violências múltiplas quando a temática em questão é a interculturalidade.

Foi a partir da imersão nessa problemática da interculturalidade no contexto de

minha atuação docente na universidade que busquei desenvolver essa pesquisa, a partir de

uma análise dos contextos e das práticas discursivas de professores paiter envolvidos na

projeção da introdução de saberes e fazeres matemáticos de seu povo em sala de aula, e de

uma busca de teorização sobre as ideias, motivações e interesses que permeiam os

331

fundamentos de tais representações, perpassando desde a discussão de saberes e fazeres

matemáticos a serem ensinados na escola até a ressignificação da própria escola na aldeia.

Apoiado em subprojetos de pesquisa e de extensão vinculados à minha prática

docente na universidade, da qual não fui afastado para a formação doutoral, a produção de

dados na pesquisa buscou enfocar saberes e fazeres matemáticos do povo Paiter, mudanças

culturais pelas quais o povo atravessou e atravessa, e as representações críticas elaboradas

por professores a respeito da educação escolar, particularmente sobre o ensino de

matemática na aldeia.

Os elementos disponibilizados forneceram uma base para um aprofundamento no

universo da educação escolar existente nas aldeias paiter e uma interpretação da projeção

de uma educação escolar almejada pelos professores indígenas, que passarão a fazer parte

de minhas referências na continuidade de minha atuação na licenciatura intercultural.

Assim, se no início de minha atuação no curso de formação de professores indígenas na

universidade minha principal preocupação era como ensinar matemática aos estudantes

indígenas, agora percebo que, antes de nos colocarmos como detentores e provedores de

conhecimentos, devemos nos assumir primeiramente como ignorantes de um universo

cultural extremamente complexo e rico, estabelecendo como preocupação primeira como

participar com os estudantes indígenas da ressignificação da educação escolar no

contexto intercultural, e, em particular, como ressignificar com eles a educação

matemática e a etnomatemática nesse contexto.

É única a sensação de poder acompanhar como pesquisador a construção de uma

leitura crítica da educação escolar por professores indígenas, que ao mesmo tempo são

acadêmicos universitários. A contribuição teórica desta experiência empírica para minha

formação como pesquisador aponta para a possibilidade de uma nova perspectiva de se

conceber etnomatemática, não apenas relacionada à existência de saberes matemáticos

cultural e socialmente situados, nem somente como um programa de pesquisa acadêmico,

mas como uma concepção filosófica que aponta caminhos reflexivos que podem contribuir

para a vinculação entre educação escolar e identidade cultural de maneira crítica.

Esses caminhos podem ser possíveis justamente pela vinculação com a etnicidade

que a etnomatemática adquire ao sofrer uma inversão epistemológica, de um conjunto de

saberes atribuídos para um conjunto de saberes reivindicados. Essa inversão passa a ser

possível quando o espaço discursivo é ocupado por sujeitos que pertencem tanto ao

teoricamente representado, o universo indígena, quanto à instância teorizante, a academia.

A figura do professor-indígena-pesquisador-acadêmico é assim o provocador e o causador

332

de uma necessária revisão de nossas perspectivas sobre etnomatemática, que deixa de ser

uma categoria exclusiva dos discursos de sujeitos não-indígenas e externos ao universo da

educação escolar indígena. Nesse sentido, no caso empírico das práticas discursivas de

professores paiter, a etnomatemática como constructo ultrapassa a dimensão

epistemológica do caráter totalizante de um saber em si, e ganha contornos políticos de

afirmação identitária, e portanto vincula-se à etnicidade porque se assume mais como saber

reivindicado do que como saber atribuído.

Por suas ideias manifestas em discursos, não pensam os professores paiter em

voltar a um estágio de existência do povo anterior ao contato. Se assim fosse, pensariam

em abolir a própria escola de seu território, inexistente que era como elemento da tradição.

Intentam os professores, isto sim, revitalizar o passado (apologia do arcaico) para com suas

referências próprias ressignificar a existência contemporânea do povo dentro da

modernidade. Trata-se de uma oposição à modernidade não para dela sair, mas para, ao se

afirmar como diferente, nela permanecer com identidade própria.

É justamente por esse movimento aparentemente contraditório que a

etnomatemática se insere no discurso dos professores, não como conhecimento aplicável

no mundo moderno, como um equivalente utilitário da matemática escolar, mas antes

como mais um recurso de distinção cultural para afirmação identitária. Estar na

modernidade e nela permanecer como diferente requer distinguir-se inclusive por possuir

uma forma própria de conhecer e de se expressar. Etnomatemática paiter é concebida na

prática discursiva dos professores e projetada para a educação escolar da aldeia com essa

natureza.

Essas reflexões possibilitadas pela vivência experienciada com professores paiter

permitem, ao término dessas considerações, esboçar uma conclusão aos moldes de uma

tese a posteriori, tendo por base não referências teóricas acadêmicas, mas ideias,

motivações e problematizações presentes nos discursos dos professores paiter que

participaram desta pesquisa:

No caso empírico dos professores paiter, a etnomatemática ocupa um espaço

funcional no discurso como produtora de diferenciação e de afirmação identitária,

ressaltando-se assim em seu aspecto teórico uma proximidade com a etnicidade. Não se

trata de um saber étnico, porque etnia não é essência, mas de um saber produtor de

etnicidade, porque etnia é processo, é movimento, é reivindicação.

333

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341

APÊNDICES

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Apêndice A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezado senhor _________________________________________, O senhor está sendo convidado a participar de uma pesquisa de doutorado intitulada “Da tradição oral

à escrita: práticas de introdução ao ensino de saberes matemáticos paiter” a ser realizada nos anos de 2012 a 2014. Para a realização dessa pesquisa serão coletados dados por meio de questionários, entrevistas, observações na sua comunidade e na sua sala de aula, tendo como objetivo compreender os processos, as ideias e os fundamentos da prática de introdução ao ensino de saberes matemáticos paiter na escola da aldeia. Serão previamente marcados a data e o horário para realização das entrevistas e observações. Não é obrigatório responder a todas as perguntas e se submeter a todas as observações.

O seu nome será preservado, sendo adotado um pseudônimo quando necessário nomeá-lo no relatório da pesquisa.

A realização deste estudo poderá trazer como benefício uma produção teórica e empírica sobre os processos próprios de ensino e aprendizagem de saberes matemáticos paiter, podendo contribuir para a formação de futuros professores paiter. Poderá também contribuir para a reflexão dos processos didáticos e pedagógicos praticados na escola da comunidade quanto ao ensino e aprendizagem de matemática.

A pessoa que realizará as entrevistas e as observações é o pesquisador Kécio Gonçalves Leite, professor do Departamento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, e doutorando em Educação em Ciências e Matemática pela Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática.

O senhor poderá se retirar do estudo a qualquer momento, sem qualquer tipo de constrangimento. Solicitamos sua autorização para o uso dos dados coletados na pesquisa para produção de uma tese

de doutorado, bem como para a produção de artigos técnicos e científicos. Agradecemos por sua participação e colaboração.

Nome do pesquisador: Kécio Gonçalves Leite Telefone para contato: (69) 9273-1783 Endereço: Rua Rio Amazonas, 351, Jardim dos Migrantes, Ji-Paraná/RO.

Assinatura do pesquisador

TERMO DE CONSENTIMENTO

Declaro que fui informado sobre todos os procedimentos da pesquisa e que recebi de forma clara e objetiva todas as explicações pertinentes ao projeto, e que será garantido o sigilo quanto ao meu nome e aos meus dados pessoais. Eu compreendo que neste estudo serão realizadas observações durante minhas aulas na escola e observações na comunidade, bem como serão realizadas entrevistas sobre os processos, práticas e fundamentos do ensino e aprendizagem de saberes matemáticos paiter, sendo que fui informado que posso me retirar do estudo a qualquer momento. Nome por extenso _________________________________________________________________________ Assinatura ___________________________ Local: ___________________ Data: ____/____/____ .

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Apêndice B – Questionário de caracterização dos participantes da pesquisa

QUESTIONÁRIO Nº 1 Caracterização dos Participantes da Pesquisa

1) Qual é o seu nome completo?

2) Qual é o seu clã?

3) Qual é a sua idade?

4) Em qual aldeia você mora?

5) Onde você nasceu?

6) Quantos filhos ou filhas você tem?

7) Onde e quando você aprendeu a ler e a escrever em Língua Portuguesa?

8) Onde e quando você aprendeu a ler e a escrever em Paiter?

9) Em quais escolas você estudou?

10) Em que ano você começou a dar aulas?

11) Você cursou o Projeto Açaí?

12) Se você cursou o Projeto Açaí, em que ano iniciou e em que ano concluiu o curso?

13) Em qual escola você dá aulas hoje?

14) Para qual série você dá aulas hoje?

15) Você dá aulas de quais disciplinas?

16) Você tem outra fonte de renda além do salário de professor?

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Apêndice C – Questionário de caracterização do espaço da pesquisa

QUESTIONÁRIO Nº 2 Caracterização do Espaço da Pesquisa

Nome:____________________________________________________

1) Em que ano ocorreu o contado do povo Paiter com não indígenas?

2) Há na comunidade algum membro que nasceu antes do contato?

3) Algum membro da comunidade não fala Português?

4) Em que ano sua aldeia foi criada?

5) Quantas famílias moram hoje na sua aldeia?

6) Quais são as fontes de renda das famílias de sua aldeia?

7) Quem são as lideranças de sua aldeia?

8) Quando foi criada a escola em sua aldeia?

9) A escola em que você trabalha é mantida pelo estado ou pelo município?

10) Quantos alunos estão matriculados na escola da aldeia?

11) Quantas turmas e quais séries existem na escola de sua aldeia?

12) Alguma criança ou jovem da aldeia estuda em escola não indígena?

13) Quantos professores indígenas trabalham na escola de sua aldeia?

14) Quantos professores não indígenas trabalham na escola de sua aldeia?

15) A escola da aldeia tem biblioteca?

16) Você dá aulas para quantos alunos?

17) Todos os seus alunos falam Paiter e Português?

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Apêndice D – Questionário sobre concepções de escola, educação e etnomatemática

QUESTIONÁRIO Nº 3 Concepções de escola, educação e etnomatemática

Nome:__________________________________________________________

1) Na sua concepção, o que é uma escola?

2) Na sua concepção, qual é a importância da escola para sua comunidade?

3) O que deve ser ensinado na escola de sua comunidade?

4) Como e quem define o que vai ser ensinado na escola de sua comunidade?

5) Na sua concepção, o que é educação?

6) Por que você se tornou professor?

7) Na sua concepção, o que é etnomatemática?

8) Você acha importante ensinar saberes matemáticos paiter na escola de sua comunidade?

Por quê?

9) Com que idade uma criança já deve saber contar na língua paiter?

10) Todos os membros de uma comunidade paiter sabiam contar, medir o tempo e as distâncias antes do contato?

11) Todos os alunos da escola da aldeia têm interesse em aprender a escrever na língua paiter?

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Apêndice E – Entrevistas ENTREVISTA 1

Sujeito: PP1 Data: 21/05/2013 Local: Aldeia Gapgir – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP1, você está participando de um projeto de extensão, no âmbito do PROEXT, que trata dos saberes e fazeres matemáticos do seu povo. Qual a importância desse projeto? O objetivo do projeto é fazer um documentário sobre os conhecimentos etnomatemáticos paiter, por meio do projeto PROEXT. O nome do projeto é “Registrando saberes e fazeres matemáticos Paiter Suruí”. A importância do projeto é registrar os saberes, que até então são desconhecidos pelos não índios, principalmente no meio acadêmico. Então, a partir dessa pesquisa, desse trabalho, propomos colocar em pauta o que concerne... mostrar os saberes matemáticos e ensinar por meio de pesquisa, coleta de dados, sistematização, e esses dados, esse material entrar como conteúdo nas escolas indígenas paiter. 2) No curso de licenciatura, você está tendo acesso a textos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? A etnomatemática eu entendo que é um conhecimento de povos em relação à matemática, ou seja, cada povo tem a sua forma, expressão e meios para fazer contagem, e para fazer formas geométricas, medidas e tudo mais. Cada povo tem seu conhecimento. Então, a etnomatemática, cada povo... A etnomatemática eu entendo que é... cada povo, cada cultura, cada etnia tem sua forma de expressão e conhecimento ao longo do tempo. Adquiriram esses conhecimentos por meio de necessidades, buscando no seu dia a dia, nas atividades. Então, nessas atividades sempre há formas de trabalhar essas atividades em termos matemáticos. Então a etnomatemática nada mais é para mim do que a matemática de cada povo, de acordo com sua cultura e conhecimento ao longo do tempo, construído ao longo do tempo, dos anos milenares. 3) Fale um pouco dos saberes e fazeres matemáticos do povo Paiter. Os conhecimentos etnomatemáticos paiter são um pouco diferentes da matemática que conhecemos como matemática formal que se ensina na escola não indígena hoje. São significados em termos numéricos que usam objetos, fenômenos da natureza, pessoas, as próprias pessoas, para designar tal número, termo numérico. Por exemplo, para a gente se localizar em horas, os Paiter utilizam referências como o Sol, e também para contagem, uma das referências são os dedos... não necessariamente os dedos, mas uma das referências que se leva para fazer contagem são os dedos. Então são várias formas que aparecem para designar tal termo numérico Paiter, e esse é um dos poucos exemplos que se tem. 4) Qual é a importância hoje de se ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da comunidade?

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Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de suma importância, porque o conhecimento matemático que conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje, trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional, conhecimento milenar que foi passado de geração em geração. Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma matemática não indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior é até mesmo de questão de identidade cultural paiter. 5) Qual é a importância dos velhos em relação aos saberes tradicionais? Uma das referências que a gente tem no ensino da etnomatemática, de repassar esses conhecimentos hoje, são os mais velhos. Então, eles têm uma grande importância para transmitir esse saber, porque se não fosse por meio dos velhos transmitir esses conhecimentos, o único conhecimento matemático que a gente tem são nas escolas, e as escolas tem a matemática não indígena, que vem pressionando cada vez mais nossos alunos, cada vez mais o povo Paiter, que acaba diminuindo a força do conhecimento etnomatemático paiter. Então, quer dizer, os nossos mais velhos hoje são uma escola para nós, hoje são os livros orais para a gente. Então, é de suma importância a gente valorizar esse conhecimento tradicional em relação à etnomatemática paiter. Os mais velhos são os que detêm esse conhecimento hoje da etnomatemática paiter suruí. 6) Como estão as gerações mais novas, elas estão sabendo o que deveriam saber nas suas devidas faixas etárias? No meu ponto de vista... eu faço até uma análise crítica sobre isso. O que eles podiam estar aprendendo de acordo com sua faixa etária em relação ao conhecimento paiter Suruí, nada é ensinado a eles. Quer dizer, hoje temos uma forma de vida bastante diferente para termos oportunidade ou ocasião de conhecer um conhecimento tradicional paiter. A exemplo, a etnomatemática. Nem todas as crianças, nem todos os jovens, até mesmo as pessoas adultas... elas não usam a etnomatemática no seu dia-a-dia. Estão mais habituados hoje... os adultos estão mais habituados hoje na questão da matemática não indígena, principalmente os jovens e as crianças. Se os mais velhos e os adultos não estão praticando a matemática paiter, muito menos as crianças e os jovens, porque hoje eles estão aí nascendo e crescendo, e daqui a pouco entra na sala de aula, e na sala de aula tem apenas a matemática europeia. Então não tem uma matemática na qual eles teriam a oportunidade de conhecer a etnomatemática, pelo menos na sala de aula, se no dia-a-dia não tem essa oportunidade. Então uma visão crítica que eu tenho em relação a isso é que não temos oportunidade, ocasião de estar praticando esses conhecimentos tradicionais no nosso dia-a-dia, nas nossas atividades cotidianas. 7) O projeto de extensão está relacionado à preocupação dos professores com essa situação? Nessa perspectiva de registrar, de coleta de dados, sistematizar e ensinar em sala de aula os dados coletados e sistematizados, que entramos com esse projeto sobre saberes e fazeres etnomatemáticos paiter por meio do projeto PROEXT. Então, o projeto é um dos meios que vai ser... vai ser um mecanismo que pode contribuir, e que vai contribuir para que esses conhecimentos se perpetuem ao longo do tempo, seja na comunidade através da

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escola, seja em livros didáticos, e também no meio acadêmico dentro da universidade. Então, perpetuar esse conhecimento na escola indígena e também no meio acadêmico por meio de pesquisa, por meio de artigos, por meio de coleta de dados. Então, o projeto é um dos mecanismos que a gente está usando para que esses conhecimentos se perpetuem ao longo do tempo, chegando até as gerações futuras. ENTREVISTA 2 Sujeito: PP1 Data: 21/05/2013 Local: Aldeia Gapgir – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP1, na sua concepção, o que é uma escola? Para mim, a escola é o espaço onde se ensina um conhecimento já trabalhado, conhecimento que já foi sistematizado. Para mim a escola é aquela estrutura física para ensinar algo, algum conteúdo, algum conhecimento... Para mim a escola é isso. Na minha concepção a escola é... escola indígena, ou seja, um espaço onde se ensina para indígena, não o conhecimento indígena, mas onde se ensina o conhecimento para indígena. Então, na minha concepção hoje, para mim a escola é isso. Mas que para mim não tem nada a ver com a realidade, com a visão de mundo indígena, pelo menos paiter. 2) Então, para você, existe a escola de hoje, a escola real, mas você tem uma concepção de como deveria ser a escola? Sim. Para mim a escola seria de acordo com a visão de mundo, visão futura de cada etnia, de cada povo, de cada sociedade. Hoje, a escola indígena não tem nada a ver com a visão de futuro e a visão de mundo dos Paiter. A escola está aí, porque o estado mantém ela. Então, é uma coisa já formalizada, sem tomar conhecimento da visão de mundo e visão de futuro daquele povo, no caso Paiter Suruí... uma coisa que já é programada já... então não tem nada a ver com a visão de mundo e com a visão de futuro paiter. 3) Qual a importância dessa escola existente hoje na comunidade? A importância dessa escola hoje é o fato de que ela já existe como instituição dentro da comunidade... A importância dela é que ela já existe dentro da comunidade, é reconhecida pelo estado, pelo estado brasileiro, pelo estado estadual... e que podemos usar os conhecimentos paiter de acordo com a visão de mundo e visão de futuro paiter, ensinar isso nessa escola. Então, usar esse mecanismo escola, instituição escola para ensinar de acordo com a visão de mundo paiter. Então, a importância que a escola tem hoje, para mim é isso, ela tem uma função, e a gente tem que fazer com que essa funcionalidade dela sirva para o povo Paiter, não simplesmente ser uma escola sem ter... de acordo com a visão de mundo paiter. 4) O que deve ser ensinado na escola de sua comunidade?

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Primeiramente, o que pode ser ensinado na escola é priorizar o conhecimento paiter, porque inicialmente, quem está na escola são as crianças, os jovens. Então, não podemos ultrapassar... seria prematuro a gente colocar um conhecimento não paiter primeiro para as crianças. Como as crianças tem facilidade de aprender qualquer coisa, não só paiter, mas qualquer criança no mundo, então a gente está trocando a identidade e o conhecimento dela, que servia de identidade para ela... por meio da escola a gente está trocando a identidade dela, e colocando a identidade que seria dela como uma segunda opção. Então, eu vejo que a escola tem que ensinar primeiramente conhecimento paiter, o que precisa ser ensinado para aquela criança, aquele jovem, aquela pessoa para ser paiter, para ser reconhecida como paiter. Então, eu vejo que a escola tem que ensinar o conhecimento paiter para depois conhecer outros conhecimentos, áreas de conhecimento, porque está aí, o Português está aí, o conhecimento ocidental está em qualquer lugar, mas o conhecimento paiter não, o conhecimento paiter está ofuscado, está perdido no meio dessa turma toda, e se a gente não buscar, acaba se perdendo, e um conhecimento não paiter acaba sendo priorizado por paiter, e acaba perdendo essa identidade. Então é isso. 5) Quem define hoje o que deve ser ensinado na escola de sua comunidade e como é feita essa escolha? Hoje é ensinado... hoje ainda está... as coisas ainda não estão muito direcionadas não. Quem define hoje a maior parte das coisas é o próprio estado, o que vai ser ensinado desde a entrada da criança na sala de aula. Então, quer dizer, eles colocam um monte de conteúdos, de disciplinas, de matérias, para ser ensinado a partir daquela idade, seguindo, avançando de acordo com a idade. Então, quem define isso é o próprio estado. E como definem? Eles definem sozinhos... definem sozinhos, não tem uma participação da comunidade e de professores. Supostamente dizem que tem a participação dos professores, que para mim, como eu sou professor há uns dois anos, participei de uma reunião onde a gente discutiu currículo escolar. A maior parte que está no currículo é um conhecimento não indígena, e o conhecimento paiter que é colocado lá, supostamente, é apenas para dizer que a escola está fazendo isso... mas que a escola, o estado dá suporte a isso, não. Então, quem define o que vai ser ensinado, hoje, até o momento, eu vejo que é o próprio estado mesmo. Não é a comunidade, o professor não tem autonomia para dizer: eu vou ensinar conhecimento etnomatemático, e essa vai ser a minha disciplina principal dentro do currículo. Não tem essa autonomia. O que vai ser ensinado primeiramente é a matemática, e se tiver conhecimento etnomatemático vai ser ensinado... se tiver... mas a matemática não paiter é priorizada ainda. 6) O que é educação? Educação para mim... hoje eu vejo que... educação é eu ter um rumo de vida, quer dizer, eu tornar... educação para mim é eu seguir um rumo de acordo com o que é minha identidade, de acordo com o que é paiter, e também é o que eu penso no futuro, como paiter, como que eu vou ser paiter no futuro. Então, educação para mim hoje é direcionar a minha vida, direcionar a vida da minha comunidade como educador, para que eu consiga ser paiter no futuro, mesmo com essa pressão, e que eu garanta minha identidade. Então, educação para mim é nada mais do que adquirir o conhecimento para que eu torne, eu pegue, eu siga um rumo para alcançar, não só agora, mas no futuro, continuar sendo paiter. Quer dizer, é um caminho que vou seguir ao longo da minha vida para ser paiter. Ou eu posso seguir um caminho, um rumo, me perder no meio, vamos dizer... e eu não consigo no futuro ser paiter. Então, educação para mim é o que? É você fazer o seu rumo, seguir o que é... seguir

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a sua visão de mundo, de futuro, por meio da educação. Então, educação é o caminho para mim. Educação não é ensinar um conhecimento, educação para mim é eu ter um rumo de acordo com o que é minha visão de futuro, de acordo com o conhecimento que eu tenho como paiter. Essa é minha visão com educação. 7) Por que você se tornou professor? Sinceramente, professor Kécio, nunca imaginei que um dia seria professor. Então, minha vida me colocou num caminho assim, meio que pego de surpresa. Nunca imaginei ser professor. Mas o que me fez ser professor é que faltou professor na minha comunidade, pessoa com nível de escolaridade razoável para se tornar professor indígena, e a comunidade acabou escolhendo eu como professor. Mas como eu não queria, não imaginava ser professor, eu me tornei por necessidade da minha comunidade. Então, por necessidade da minha comunidade, hoje sou professor, contribuindo à minha comunidade devido à confiança que a comunidade deu a mim. Então eu me tornei professor por meio da minha comunidade, por necessidade deles mesmo. 8) O que é etnomatemática? Etnomatemática é saberes, fazeres, conhecimentos... cada atividade cotidiana de cada povo, de cada etnia no mundo, que se usa como contagem, medição de tempo, se localizar no tempo. Então, etnomatemática para mim é saberes e fazeres matemáticos de cada povo, de cada etnia, de acordo com sua cultura, de acordo com as suas tradições, de acordo com suas atividades cotidianas. Então, a exemplo, vamos dizer, a etnomatemática paiter de acordo com a escolha da roça, como que é, em que tempo, como que seria a área, que é diferente de uma matemática do engenheiro civil. Então, quer dizer, a etnomatemática é um conhecimento matemático de acordo com cada povo, de acordo com cada cultura, de cada sociedade. 9) Fale um pouco sobre a etnomatemática paiter. Existe a etnomatemática paiter, porque existe contagem de números, de quantidade, existe a localização de um ponto a outro, no tempo. Existe em relação ao tempo hora também. Existem as geometrias paiter, que são usadas, que são vistas em artefatos, que são vistas em casas, construções paiter. Então existe a etnomatemática paiter. Há pouco tempo não se falava em etnomatemática, em pesquisas, em escola, mas hoje, por meio de pesquisas, por meio de estudos, está sendo realizada coleta de dados, estudos sobre a etnomatemática paiter. Então, é isso.

ENTREVISTA 3 Sujeito: PP2 Data: 22/05/2013 Local: Aldeia Lobó – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP2, por que você se tornou professor?

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Foi assim, antes de começar tudo isso, eu estudei na escola rural. Comecei muito tarde também, comecei a estudar a primeira série do ensino fundamental, naquela época era primeira série ainda, com 10 anos de idade. Então, eu tinha perdido muito tempo. Na época meu pai era cacique, liderança geral da comunidade, então na época ele não parava em casa, e onde ele ia eu ia junto com ele, até que em um tempo a gente parou nessa aldeia para poder dar tempo para estudar. Então, comecei a estudar na escola dos Colonos, e a partir daí, eu comecei a seguir um pouco de estudo. Terminei aqui, depois fui estudar na escola Celso Ferreira da Cunha, lá em Riozinho, que é distrito de Cacoal. Lá terminei o Ensino Fundamental, a oitava série na época, e depois cursei a primeira série do ensino médio lá, e assim eu terminei o estudo lá, e então parei, fiquei um bom tempo parado. Quando foi em 2004, comecei a estudar me descolando daqui para a cidade, de moto, para tentar terminar o Ensino Médio. Então eu cursei o ensino regular, terminei o segundo ano do Ensino Médio, terminando no ano de 2004. Fiquei parado de novo e voltei a estudar em 2007, para tentar terminar o terceiro ano do Ensino Médio, na escola seriada, na escola Onorina Lucas de Brito. Então, terminei em 2007 e assim eu consegui estudar. Foi a maior dificuldade para mim estudar, porque comecei a estudar em uma escola que não era da comunidade, que não era bilíngue, de uma cultura diferente, onde eu tive muita dificuldade de aprender na língua portuguesa. Então, a partir daí, começamos a pensar junto com a comunidade a necessidade da comunidade. Vimos essa dificuldade de nossos alunos, nossos meninos terem a dificuldade de entender a língua portuguesa. Então essa necessidade fez a comunidade pensar qual seria a melhor opção para a comunidade... para a educação da comunidade. Nisso, a comunidade pensou em chamar uma pessoa da comunidade para que pudesse dar aula, para que nossos alunos não sofressem muito, não tirassem um pouco da cultura. Então, essa dificuldade fez com que eles me escolhessem como professor, na escola paiterey, onde a gente estuda. Então, isso facilita muito para nossos meninos, porque ao mesmo tempo em que a gente vai dando aula, ou traduzindo um livro para nossa língua, transmitimos para eles o que está significando essa fala. Então, usando o bilíngue na aula é muito importante, porque a gente transmite uma coisa que a gente tem dificuldade de transmitir para eles. Então essa necessidade fez com que a comunidade escolhesse professores, professores indígenas para trabalhar dentro da comunidade. 2) O que é uma escola? Escola, assim... pelo nosso entendimento eu falo, mas pela Língua Portuguesa eu não sei se vou conseguir explicar. Pelo que a gente pensa a escola... a escola é uma estrutura onde a gente se reúne juntamente com as crianças para poder debater sobre algum assunto importante, como aula... não só aulas, mas também ouvir histórias da cultura dentro dessa escola. É uma estrutura física, assim... dentro dela nós conseguimos explanar muitas coisas importantes na comunidade, não só da cultura não indígena, mas também o que vem da nossa cultura. É muito importante a gente dizer essa importância da escola para a comunidade. A importância que ela tem é muito fundamental, até porque nós precisamos da escola dentro da comunidade. Pelo meu entender, a escola é algo que a gente necessita dentro da comunidade para poder aprender, informar, passar informações que a gente tem dentro da sociedade envolvente. 3) Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática?

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Etnomatemática, pelo meu entender, pelo que eu andei pesquisando antes de fazer o TCC... etnomatemática é um projeto que tem dentro da cultura de cada um. Então, etnomatemática é o conhecimento dos cálculos matemáticos que envolvem dentro da cultura. Então, pelo que eu entendi sobre etnomatemática, ela é um pouco de cada coisa dentro da cultura. Então, pelo meu entender, etnomatemática já vem no dia-a-dia de cada comunidade, não só da comunidade paiter, mas também em outras culturas. Por exemplo, o povo Paiter Suruí tem etnomatemática em seus cálculos... seus cálculos que eles fazem antes da construção, tem os cálculos das mulheres na confecção, que fazem os cálculos de quantas peças vão confeccionar, quantas palhas vão confeccionar a construção da maloca, quantos metros deve medir. Então, tudo isso que o povo Suruí usa, pelo meu entender, é etnomatemática. E dentro dessa etnomatemática, nós também temos nossa matemática cultural. Pelo meu pensamento sobre etnomatemática, onde estou tentando pesquisar ainda... está sendo muito proveitoso. Então, quer dizer, onde temos nossa numeração, nossos cálculos diante da matemática da sociedade não indígena. Então o uso no nosso dia-a-dia, a fala no nosso dia-a-dia, e o modo de fazer no nosso dia-a-dia também envolvem várias matemáticas. Então, eu acho que isso é uma etnomatemática, é a descoberta de um novo conhecimento com uma cultura diferente, que traz em si uma descoberta sobre vários cálculos tradicionais sobre a cultura de um povo, inclusive no povo Paiter também no qual a gente está tentando fazer essa pesquisa. 4) Você está participando de um projeto de extensão, no âmbito do PROEXT, que trata dos saberes e fazeres matemáticos do seu povo. Qual a importância desse projeto? Ele tem várias importâncias. A partir do momento que ele começa a ser explorado, a gente pensa em muitas coisas. Porque hoje a gente vê que nós Paiter não temos muitos materiais didáticos sobre a etnomatemática. Isso está sendo recente agora dentro da comunidade. Então, esse projeto PROEXT seria muito importante dentro do povo Paiter, não dentro de uma comunidade, mas sim dentro da terra indígena. Ele traria uma importância muito grande para a comunidade, porque, a partir do momento que a gente começa a descobrir vários conhecimentos sobre a etnomatemática do povo Paiter, então ela também começa a expandir nas escolas indígenas, o produto começa também a expandir nas escolas indígenas, até para os professores indígenas poderem transmitir isso para os alunos indígenas das escolas. Então, isso faz com que esse projeto tenha uma grande importância, dá um salto muito grande dentro da comunidade. Então, a partir do momento que a gente começa a explorar mais o livro, então quem sabe a gente não pode também classificar os livros de acordo com as séries, livros de séries futuramente, para poder repassar para os alunos pequenos. Então, no momento, está sendo uma discussão muito importante, até para poder professores indígenas e professores da universidade discutirem isso, sobre isso, na comunidade. Então, esse é o valor e a importância que o projeto está trazendo para nós Paiter Suruí. 5) Qual é a importância de se ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter em sala de aula? No meu ponto de vista, como professor indígena dentro da minha comunidade, é um grande benefício para os meus alunos, até tanto para mim quanto para meus alunos também, porque a partir do momento que eu comecei a me envolver com a etnomatemática na universidade, isso fez eu adquirir um grande conhecimento sobre a minha cultura mesmo. Então, isso me fez sentir que isso tem um grande benefício para mim, e pode

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trazer também para os meus alunos, e até dentro da cultura, da comunidade também. Isso me fez pensar em participar desse projeto, para poder transmitir isso para os meus alunos, para eles terem conhecimento da própria cultura, porque se a pessoa não tem conhecimento da própria cultura, ele não dá valor a sua cultura. Então, a partir do momento que ele vai pegar sobre o conhecimento da etnomatemática da própria cultura, então ele vai saber dar valor sobre o que está sendo feito dentro da comunidade, como arco, a confecção de anéis, a confecção de balaios. Então, a partir desse momento, ele vai entender que aquilo tem um significado muito grande para eles, não só o cálculo da cultura não indígena, mas também tem a sua própria cultura, os seus cálculos, os modos do dia-a-dia da sua cultura. Então isso vai fazer com que ele goste daquilo que está fazendo, e não tenha vergonha daquilo que faz. Então, eu, para trabalhar com meus alunos, primeiramente eu vejo assim mais a minha cultura, para depois eu repassar esse valor para eles em forma da etnomatemática, ou seja, de outra forma que eles gostem da própria cultura. Porque se eles não conhecerem a própria cultura, gostarem da própria cultura, como é vão dar valor à própria cultura? Então, para mim, eu defendo essa metodologia por eu entender que tem uma grande importância para mim e para meus alunos e para minha comunidade. 6) Você está escrevendo um TCC sobre a etnomatemática paiter. Como você está fazendo a pesquisa e quais os resultados até o momento? Em relação ao meu TCC, escolhi esse tema da etnomatemática porque é um novo conhecimento que está sendo... foi uma experiência nova para mim. Então eu pensei que poderia ser uma coisa muito importante eu pesquisar minha própria cultura, meu próprio modo de viver, para poder entender o que tem de matemático dentro dele. Então, com essa pesquisa, que ainda está em andamento, descobri que cada função tem o seu valor, sua metodologia. Então, para que você confeccione um artesanato, dentro desse artesanato confeccionado do povo Paiter, vi que eles tem traços que são conhecidos, que são iguais à matemática, tipo formas geométricas, o modo de contar do povo Suruí também, tanto é que a contagem Suruí, no momento, descobrimos que tem números até dez. Quem sabe, com essas pesquisas, a gente consiga avançar muito mais nos números, por meio dessa pesquisa. Até o momento, a gente está descobrindo números até dez, e as pinturas, que dentro das pinturas tem formas geométricas, tipo quadrado, retângulo, triângulo. Na flecha também... na flecha que os mais velhos confeccionam, tem as formas geométricas também parecido com isso aí. Então, a etnomatemática... isso faz pensar na etnomatemática da nossa cultura. A partir dali, a gente tenta buscar novos conhecimentos dentro da cultura, e a partir dessa descoberta, a gente tenta transmitir esse conhecimento na sala de aula. Isso fez com que eu pensasse com meu TCC... buscar esses conhecimentos, antes que eu pudesse passar isso para a comunidade. E também, não só... na minha graduação eu quero usar isso, mas quem sabe na continuação, não podemos ampliar esse conhecimento, essa pesquisa, para poderem usar em prol da comunidade. Então, isso é o começo da pesquisa que a gente está fazendo, assim... eu PP2 estou fazendo. Espero me aprofundar muito mais futuramente. 7) Antes do contato, todos os membros da comunidade, homens, mulheres, jovens, crianças, sabiam contar, medir, comparar da mesma forma? Pela pesquisa que eu consegui fazer com algumas pessoas mais velhas, antigamente, cada pai tinha a função de contar histórias para seus filhos, netos, entre outros. A partir daí, com essa participação conjunta, dentro da família, dá para perceber que, antigamente, a partir da juventude passava-se a usar essa escrita... não é uma escrita, mas é uma fala, fala oral

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dentro da comunidade em que eles viviam. Tanto é que... ainda faltam coisas para eu pesquisar para por no meu TCC sobre essa relação... já pensei nisso... já fiz algumas perguntas para meu pai e outro tio do meu pai e já consegui fazer isso. Pelo que eu entendi da fala deles, eles falaram que existia sim o uso dessa etnomatemática na comunidade no passado. 8) Existe uma idade ideal para se aprender a matemática paiter? Quanto ao que se vem estudando hoje, acho que sim. Dá também de se reaproveitar o uso dessas pesquisas para transformar em livros. E eu acho que sim. Futuramente dá para se usar esses conhecimentos a partir de crianças, na sala de aula, a partir do primeiro ano dentro da sala. Porque a criança começa a perceber as coisas a partir do momento que ela começa a falar e a conviver no dia-a-dia, falando no dia-a-dia. Hoje, essas coisas não acontecem. Hoje, as coisas já se modificaram, porque antigamente, os pais, os tios viviam falando sobre a história e o conhecimento, com as crianças, a partir do momento que elas começavam a entender e perceber as coisas. Até a própria criança começa a perguntar. Hoje isso também acontece. A criança pergunta: Pai, o que é aquilo? Então, muitas vezes, nós mesmos não temos quase respostas para isso. E por que não temos respostas? Porque não começamos a explorar os mais velhos. Então, a partir do momento que a gente começar a explorar, perguntar aos nossos mais velhos sobre esse conhecimento, então é claro que a gente vai poder saber, explicar e transmitir para nossas crianças. Então, a partir daí, facilita para eles aprenderem e falarem sobre essa oralidade. ENTREVISTA 4 Sujeito: PP3 Data: 22/05/2013 Local: Aldeia Amaral – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP3, como surgiu o clã Kaban? Segundo a história fala, o clã surgiu... teve uma guerra, e durante essa guerra, o paiter, depois de guerrear contra o cinta-larga, pegou mulher do cinta-larga. O que casou com a mulher cinta-larga era Gamep, e a mulher era do clã Kaban. Surgiram os filhos, e o último, caçula, o filho mais novo, caçula, a mãe falou que aquele filho poderia ser do clã dela, para o clã dela continuar. A história que sei do surgimento do clã é essa. 2) Como se originou a comunidade Amaral? Foi aqui que você nasceu? Eu nasci no posto Sete de Setembro, que é da Linha 12, onde Funai teve o contato com povo Suruí. Nasci em 1984 lá. Só que eu vim na Linha 11 aqui mais ou menos em 1985. A partir de 1983 e 1984, o pessoal estava se deslocando de lá para abrir outras aldeias novas. Essa aldeia abriu com uma família, depois chegou o cunhado do cacique, os três, depois veio surgindo através do... que a família estava aumentando. Veio cada vez mais de outra aldeia. Veio para casar com a filha, porque a tradição é que a gente tem que mudar para onde a gente casa com a menina. A gente tem que morar junto com o pai da menina. E essa aldeia é toda formada com os familiares mesmo daqui.

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3) Por que você se tornou professor? Em 2001, terminei o Ensino Fundamental, o oitavo ano. A partir do momento que eu terminei o ensino fundamental, vi que a minha comunidade estava precisando de professor... e um dos que eu me preocupei foi a minha comunidade, porque se eu me preocupasse com meu futuro, eu enfrentaria o Ensino Médio e faculdade por mim mesmo, mas a minha preocupação foi a minha comunidade, porque não tinha outra pessoa que tinha o ensino... que tinha concluído até o oitavo ano, que hoje é o nono ano. E, a partir de 2002, entrei para dar aula. Desde aquele ano eu trabalho na escola. Em 2009 fiz vestibular para ingressar na universidade, passei, só que eu não concluí o Ensino Médio naquele ano, estava incompleto ainda, por isso eu não entrei naquele ano. Eu continuei fazendo no CEEJA, que é onde a gente faz por módulo, terminei e fiz outro vestibular em 2010, passei e comecei a estudar. Sou estudante da UNIR, do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural. Escolhi a parte da linguagem... a área de linguagem. 4) Você dá aulas para quais turmas e em quais disciplinas? Dou aula para o sexto ao nono ano, com a língua materna, e também da disciplina Identidade Étnica Histórica, que é um dos cursos que estão tentando a revitalização do povo, porque as crianças de hoje estão muito deixando de praticar a sua cultura, sua fala, sua história. E os professores que estão dando essa disciplina estão tentando resgatar o que se deixou de praticar. 5) Na sua concepção, o que é uma escola? Escola para mim é um lugar onde a gente aprende um conhecimento que não é aprendido em casa, um conteúdo específico. Mas tem muito... tem muitas coisas que a gente aprende em casa, a educação... mas a escola, além de educar, ela também pode dar novas ideias para a gente adquirir mais conhecimento. Então a escola é um espaço em que a gente aprende além do que a gente aprende em casa. 6) Por que é importante ter uma escola na comunidade? Porque a escola está ensinando a cultura, está ensinando a cultura que foi se esquecendo um pouco. Além de ensinar da cultura, estão ensinando do conhecimento não indígena, para reivindicar seus direitos, para formar uma área específica voltada para sua comunidade. Nós que estamos nos formando não é para só pensar em si, para manter... além de se manter, ele possa contribuir para a comunidade também. 7) O que deve ser ensinado na escola da comunidade? O que deve ser ensinado na escola são os conteúdos não indígenas, do currículo da escola não indígena, e deve ensinar também a cultura indígena, para ele não se esquecer do que ele é. 8) Atualmente, como são definidos os conteúdos ensinados na escola em quem define? Hoje, quem escolhe são os professores não indígenas, que sentaram em um lugar e pensaram o que iam ensinar para o aluno. Agora, o conteúdo de séries iniciais, de primeiro

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ao quinto [ano], não foi definido ainda, e quem escolheu foram os próprios supervisores e supervisoras que estão escolhendo, mas não tem um conteúdo diferenciado para a escola indígena ainda. 9) O que é educação? A educação é um saber, é um conhecimento que os pais passam para os filhos. São os conhecimentos... porque a educação não é só na escola, a educação começa em casa. Geralmente os pais falam da sua história, como deve ser respeitado o próximo, como é que pode cumprimentar o próximo, como é que deve receber a pessoa que visita eles. Então, a educação se inicia a partir de casa, mas educação a gente também aprende na escola. Têm muitos conhecimentos que a gente não aprende em casa, mas aprende na escola. A educação é o que aprende na escola ou em casa. 10) Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Etnomatemática para mim é... cada povo tem sua matemática, tem sua forma de contar, tem sua forma de medir. Então, para mim, etnomatemática é a matemática do povo, é a matemática de cada etnia, de cada povo que tem sua forma de contagem, sua forma de medir, sua forma de conhecer outros tipos e contagem. 11) Qual é a relação entre etnomatemática e cultura? O que é ensinado hoje na escola é a matemática do europeu. E por essa dificuldade... geralmente os alunos indígenas tem essa dificuldade. Porque, a partir da matemática do povo ser ensinada, com certeza ele entenderia melhor essa matemática. Por causa de não ensinar a matemática do povo, a gente tem essa dificuldade de compreender a matemática europeia. 12) No seu ponto de vista, qual é a importância do projeto “Registrando e preservando saberes etnomatemáticos com o povo Paiter”? A importância desse projeto de registro seria... registro de matemática, seria muito bom porque, hoje, os sábios, os adultos, os curubey que a gente fala, só eles estão sabendo de forma certa, da contagem, da medida, da sua história. Por isso que essa importância tem que ser registrada, tem que ser publicada. Porque a escola tem que ter esse referencial dentro dela. Porque, a partir do momento que os adultos se forem, a gente já tem esse material na mão, a gente não fica com aquela dúvida. Porque os adultos hoje são bibliotecas... vamos supor que são bibliotecas. Só eles que conhecem a matemática e a sua história. Por isso, essa é a importância do registro. Tem que ser... tem que fazer esse registro mesmo. 13) Como ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola? Falando com a língua primeiro, explicando a matemática da sua realidade, e também falar da matemática europeia, para que o aluno possa entender a matemática indígena, e possa também entender a matemática europeia. E nas séries iniciais, seria melhor a matemática do povo, para entender melhor.

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14) Quais são suas principais preocupações em relação às transformações na cultura do povo Paiter? Minha preocupação é com que os pais casem com mulher não indígena e gera um descendente já cruzado, vamos supor que um pouco índio e um pouco branco. A preocupação minha é que esse filho que surgiu possa casar novamente com a branca, com a mulher não indígena. A partir daquele momento que ele casar com a mulher não indígena, esse filho com certeza não vai ter meio-a-meio de indígena e de não indígena. Essa é minha preocupação, essa é a preocupação que eu tenho. E outra coisa também que, com essa mudança de família também pode acontecer de aquela pessoa não falar mais a sua língua, porque ele está convivendo com a pessoa que não é da realidade dele, que não fala sua língua... a língua pode ser extinta também, e a sua cultura. ENTREVISTA 5 Sujeito: PP4 Data: 22/05/2013 Local: Aldeia LP1 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP4, na sua concepção, o que é escola? A escola, como eu penso, é um espaço onde as crianças aprendem a ler e escrever. 2) Qual a função da escola na comunidade? A função da escola na comunidade é fazer com que a criança saiba ler, escrever e registrar as palavras na sua língua e na língua portuguesa. 3) Qual é a importância da escola na comunidade? A importância da escola estar na comunidade é que, antes, as crianças indígenas saíam da comunidade para ir para a escola não indígena, onde tinham muita dificuldade de aprendizagem, porque não sabiam a Língua Portuguesa. Já na comunidade, melhorou, porque professores indígenas já estão atuando nas escolas indígenas, o que facilita o aprendizado das crianças. 4) Na sua concepção, o que é educação? Educação é qualquer espaço, qualquer meio onde acontece a educação, seja dentro da escola ou fora da escola, como na família, na comunidade. 5) Por que você se tornou professor? Foi um caso de necessidade da comunidade. Eu não pensava em ser professor, mas a comunidade me chamou para ser professor da comunidade.

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6) Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Em cada grupo ou etnia, de acordo com as necessidades das pessoas, acontecem diferentes matemáticas. Como existe a matemática do europeu, nós indígenas temos também nossa matemática. 7) Você poderia falar um pouco sobre a etnomatemática do povo Paiter? No caso do nosso povo Paiter, nós tínhamos um diferente tipo de contagem, como através do tempo, que nós usávamos através da lua, das estrelas... e na contagem também usávamos sempre os dedos das mãos. 8) Qual a importância de se ensinar etnomatemática paiter na escola da comunidade hoje? É importante para nós porque, como a nossa matemática tradicional do povo Paiter... usávamos essa matemática. E quando não registramos, vai se esquecendo, os mais jovens. Por isso é bom registrar e aprender. 9) Quando se fala em ensinar etnomatemática paiter na escola, como deve ser esse ensino? Como você, como professor paiter, pode ensinar esse saber na escola? Como eu sou professor, esse ensinamento de etnomatemática na comunidade deveria acontecer por meio dos professores indígenas e sabedores indígenas também, que deveria explicar como era a contagem antigamente e como está sendo usada hoje. ENTREVISTA 6 Sujeito: PP5 Data: 01/06/2013 Local: Aldeia Gapgir – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP5, você trabalha com quais séries na escola da comunidade? Trabalho na Escola Sertanista desde 2002, e há quatro anos atrás eu comecei a trabalhar com uma turma de sexto a nono ano. E continuo lecionando nas disciplinas de Língua Materna e de Identidade Étnica e Histórica. 2) Então, sua atuação já se dá no espaço da educação escolar indígena propriamente dita, não só com um currículo não indígena, mas com componentes curriculares voltados para a educação escolar indígena. Nesse contexto, como você percebe a importância do projeto de extensão que propõe trabalhar com os saberes matemáticos do povo Paiter?

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A importância desse projeto para nossa educação escolar indígena é complexa, porque é uma oportunidade que está tendo agora para que a gente aprofunde mais o nosso conhecimento nos saberes indígenas, na etnomatemática principalmente. Até porque a gente não teve iniciativa ainda dentro dessa área. Já iniciamos a normatização da nossa escrita, a gramática paiter, e não essa parte da área da etnomatemática. Então é importante tanto para nós quanto para nossos alunos também, não só dentro da escola, mas dentro da comunidade, dentro do conhecimento tradicional. Como tem a participação dos mais velhos da comunidade, é um primeiro passo que a gente está tendo agora, de chegar nessa oportunidade de a gente iniciar esse processo de etnomatemática dentro da nossa comunidade. 3) Dado esse seu ponto de vista a respeito da importância do projeto, qual é a sua concepção hoje a respeito do que seja etnomatemática? Como você define etnomatemática? Dentro do meu conhecimento, também o que eu venho aprendendo desde a minha formação inicial até agora, estou no processo de finalização de minha primeira etapa de aprendizagem na minha formação no ensino superior. Então, na minha concepção, o que eu entendo de etnomatemática é que cada povo, cada grupo, dependendo de onde for, tem o seu modo de pensar, o seu modo de ver, de como calcular, de como multiplicar, de como quantificar, de como medir. Então, tudo isso faz parte da etnomatemática de um grupo. Estou falando apenas uma delas. E com certeza nós temos esses conhecimentos dentro da nossa cultura do povo Paiter. Então, eu citei alguns temas, algumas partes do que é etnomatemática. Porque muitas vezes as pessoas não sabem identificar ainda quais são os processos de etnomatemática dentro da sua cultura, e hoje eu identifico um pouco dessas partes que eu citei. 4) A partir dessa sua definição de etnomatemática, e considerando que já existem iniciativas, projetos iniciados, como o de iniciação científica em que o professor PP1 participa, com alguns resultados que já foram sistematizados, como você avalia a possibilidade de inserir esses conhecimentos em sala de aula, com os alunos? Isso é possível? Com certeza isso é possível sim de inserir dentro da nossa educação escolar indígena. Principalmente na política da educação escolar, no sistema da educação escolar indígena. Porque hoje a legislação garante isso. E nós temos que garantir mais ainda, para que isso aconteça na realidade, porque muitas vezes, como eu disse, até agora isso não foi inserido na grade curricular da educação escolar indígena, e principalmente na nossa educação escolar. Então é importante inserir isso, até para garantir o nosso trabalho, até para garantir o que nós estamos passando, o que nós estamos realizando dentro da escola, dentro da comunidade e para os alunos. Então, sem garantir, e a gente trabalhar, isso para mim não seria certo, vamos dizer assim. Então, só depende de nós, da gente valorizar que isso seja reconhecido nacionalmente dentro da legislação da educação escolar indígena. 5) Dentro desse contexto e desse movimento, como você percebe a importância e o papel dos mais velhos da comunidade? Dentro de tudo isso que eu acabei de falar agora, o papel dos sábios, como a gente costuma falar, é tão importante, porque sempre a gente está junto, sempre a gente está ligado, sempre a gente está perguntando o que nós não sabemos. Nós jovens, que estamos ainda no

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processo de conhecimento, no processo de aprendizagem própria, dentro da nossa cultura, a gente precisa ainda de apoio dos mais velhos, precisamos ainda dos conselhos dos mais velhos da nossa aldeia, quer dizer, da nossa cultura na verdade. Então, o papel dos mais velhos é fundamental no processo de aprendizagem, no processo da construção da política da nossa educação escolar indígena, dentro da nossa cultura. Então, pela minha experiência, eu diria assim que todos os processos que nós construímos nos outros trabalhos, na normatização da escrita do Paiter Suruí, e outros que virão, que a gente está pensando também, que seja bem vinda a contribuição dos mais velhos do nosso povo, da nossa comunidade. Então, a gente sempre está junto, para que nosso trabalho seja mais fortalecido, mais reforçado também dentro da nossa cultura. 6) A gente percebe que, ao falarmos de etnomatemática, a gente sempre está relacionando com a escola, ou seja, parece que esse é um espaço em que a etnomatemática vai se fazer presente. Nesse sentido, gostaria que você desse uma definição de escola. Na sua concepção, o que é escola? No meu modo de ver o que é escola, a escola para mim tem vários sentidos. A escola não é uma escola que está lá, plantada, feitinha, bonitinha, com estrutura legal. A escola também existe em vários lugares, em vários contextos: dentro da família, dentro de casa, dentro da comunidade, dependendo do nosso entender. Então, para mim a escola é tudo isso. Onde você está lidando, vivendo naquele meio. Muitas vezes a gente acha que o que está estruturado, construído e lá plantado é uma escola. Essa escola lá é apenas um espaço de sistematizar o nosso conhecimento, é um espaço de a gente mais discutir o que nós estamos vivendo a cada dia. Então, para mim a escola é essa, mas, como eu falei, é tudo o que nós estamos vivendo na nossa vida. 7) Nessa sua definição de escola, como um espaço mais amplo para além da estrutura física propriamente dita, como você visualiza o ensino de etnomatemática paiter nessa escola mais ampla? A etnomatemática paiter especificamente a gente não teve oportunidade, como eu disse no início da minha fala, de chegar, de como é esse sistema paiter. Mas sei que no meu conhecimento, no modo que a gente pensava, no modo que a gente organizava, no modo que a gente preparava, na construção da maloca, na roçada, na confecção do artesanato, tanto no trabalho masculino como no feminino, incluía tudo isso. Cada gênero entendia qual era seu trabalho naquele momento. Então, tudo isso seria etnomatemática para mim, a forma como cada pessoa via, no momento que estava realizando seu trabalho. Não só no trabalho, mas no modo de pensar também. Então, isso existia no nosso conhecimento. Para passar a entender como identificar isso tudo... como a gente entende agora... quais e como a gente pode identificar isso como etnomatemática. Então existia e existe ainda, e agora, como eu disse, é só a gente esclarecer, sistematizar e identificar a partir de agora, e dizer: isso é etnomatemática para o povo Paiter. ENTREVISTA 7 Sujeito: PP6 Data: 11/10/2013 Local: Aldeia Paiter Linha 09 – Terra Indígena Sete de Setembro

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1) PP6, por que você se tornou professor? Porque, como a gente fala, as crianças tinham muita dificuldade de aprender. Falo da minha própria experiência. Sem professor indígena, eu tive muita dificuldade de aprender. Meus alunos também estavam falando disso: Quando o professor não indígena fala, eu não entendo muito bem o que ele está falando, e não compreendo muito bem o que ele está falando. Então eu tomei uma decisão, precisava ter um professor indígena para esclarecer e ensinar melhor aos alunos, porque as crianças não vão entender e falar na língua portuguesa. Então, precisa ter um professor que saiba falar, que compreenda e fale dos dois conhecimentos. Então eu tomei essa decisão, vendo nossa realidade, porque tem muitos alunos daqui que concluem o Ensino Fundamental e vão para a cidade porque está sem professor na aldeia. Então eu escolhi ser professor para ajudar a comunidade. 2) Atualmente, como e quem define o que vai ser ensinado na escola de sua comunidade? Nós professores mesmo, porque nós mesmos fazemos o planejamento do tema que vamos ensinar aos alunos. Então, a primeira coisa que eu faço é perguntar para os mais velhos, no caso o meu tio. De acordo com a explicação dele, eu anoto algumas coisas e, de acordo com o que ele fala, eu trago aqui para a sala de aula e falo sobre aquilo que foi explicado. 3) E quando você está dando aula de matemática, como você escolhe os conteúdos? Eu escolho no livro didático. E nesse caso aqui [aponta para o quadro], eu estava explicando um problema de divisão. Então eu comparo com os números dos Paiter também. Vou trabalhando com os dois conhecimentos. No caso, hoje estava explicando a divisão, e um menino perguntou: - Professor, como eu posso saber dividir? Eu disse que ele pode imaginar assim, que tem quatro bananas para dividir por duas pessoas, com quantas cada um vai ficar? Aí ele compreendeu: - Ah, sim, como duas, cada um vai ficar com duas bananinhas. Então é assim, comparando com a realidade nossa, comparando os conteúdos. No caso de geografia, a gente está chegando na época da chuva. Então eu falo que a época da chuva é um período chuvoso, e a seca do rio é no período da seca, quando o rio baixa, e então a gente vai ficar sabendo que é o tempo da seca. Quando as folhas caem também, a gente percebe que está no tempo da seca. 4) Então, você busca trabalhar com a realidade dos alunos? Sim. Na biologia a gente tem mais facilidade, porque a gente compara a medicina com as ervas, as plantas. 5) Na sua concepção, o que é educação? Educação é ensinar a criança para dar os primeiros passos, para ela saber... educação é a criança aprender a ler e escrever, respeitar os mais velhos, e aprender a realidade da comunidade. É aprender a organização dentro e fora da comunidade. Porque a educação vem trazendo muita coisa, aquilo que se pode aprender. 6) Você acha que a educação ocorre fora da escola também?

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Com certeza. Porque a educação está dentro da casa dele também. O pai e a mãe ensinam o que ele pode saber. No caso, o pai ensina a plantar, pescar e caçar, ensina caçar lenha. Então, para mim, fora da escola tem uma educação. Quando uma criança vai com o pai caçar, lá mesmo ela vai aprender a como esperar o bicho que quer caçar, e assim vai aprendendo. ENTREVISTA 08

Sujeito: PP6 Data: 19/11/2013 Local: Aldeia Paiter Linha 09 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP6, você fez cursou o Ensino fundamental na cidade? Foi, foi na cidade. 2) E o Ensino Médio? Foi na cidade também. 3) Na escola agrícola? É, numa escola agrícola, num internato. 4) Você fez qual curso lá? Do primeiro até o terceiro ano. Lá era um internato de uma igreja. A escola funcionava só para os membros da igreja. Aí, como meu tio era reconhecido por aqueles membros da igreja, ele pediu para eles me darem um bolsa de estudar lá. Aí eles pediram para fazer um formulário, para perguntar sobre mim, como eu era. Aí eu mandei o formulário lá. Aí eles me chamaram. Aí eu fui lá. E como a escola era particular, cada aluno pagava seu estudo lá. E eu não tinha como pagar meu estudo lá, aí eu trabalhava na parte da jardinagem, limpava, cuidava da parte da jardinagem, depois eu cuidava da parte da horta. Então, isso cobria como pagamento do meu estudo. Três anos eu fiquei lá. 5) Outros alunos trabalhavam juntos com você para pagar o curso, ou só você? Indígena só era eu mesmo. Não indígena, tinha cinquenta que trabalhava lá. 6) Você começou a dar aula em que ano? Foi em 2009. 7) Você dá aulas para quais séries? 4º e 5º ano.

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8) Com quais disciplinas você trabalha na escola? Português, Matemática, Ciências, Geografia, História e Língua Materna. 9) O que você entende por educação escolar? Educação escolar para mim é onde educa as crianças, como na sala de aula, para ler e escrever, e outras atividades. Onde possa aprender na parte de teoria, e também a parte prática. 10) Além da educação escolar, pode-se falar em uma educação tradicional. O que você entende por educação tradicional do povo Paiter? Educação tradicional do povo Paiter é onde a gente tem educação dentro da nossa cultura, como o pai pode educar o filho, o tio pode educar o sobrinho, o avô e a avó podem educar a neta e o neto. Então, a gente tem uma educação tradicional que é própria. Vários de nossos parentes, como tio, tia, tio pela parte do pai, parte da mãe, podem me educar. Então, todos os parentes que estão próximos de mim têm autoridade, tem autonomia de me educar. 11) Você, como professor, como membro da comunidade, como você vê hoje a relação da escola na aldeia com a educação tradicional? Que relação existe entre educação escolar e educação tradicional hoje na aldeia? A educação escolar é onde a gente trabalha na parte de teoria, e em cada final de bimestre, a gente coloca em prática, tipo uma apresentação de teatro, como a gente teve uma apresentação de como a menstruação passou para a mulher. Então, a gente fez uma apresentação, demonstrando como isso aconteceu no passado. Então, comparando isto, os professores não indígenas fizeram uma apresentação da parte da educação escolar. Então, em cada bimestre, a gente tem uma apresentação da parte da educação tradicional e outra da educação escolar. 12) E quanto à matemática, quando falamos matemática ou matemática escolar, o que você entende por matemática escolar? Entendo a matemática escolar como sendo onde tem a presença de matemática didática, como nos livros que são publicados pelo governo. Então esses livros que a gente está trabalhando, para mim é uma matemática da educação escolar. 13) O que você ensina de matemática escolar aos seus alunos? Eu ensino sobre os números, no caso a subtração, a adição, a multiplicação e a divisão. Então, ensino meus alunos a educação escolar, através dos livros produzidos pelo governo, livros didáticos. 14) Então, os conteúdos que você ensina são aqueles que estão no livro didático? Você segue o livro didático, para dar sua aula?

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Isso. Agora, de matemática tradicional, eu vejo assim, desse lado, que a gente tem matemática dentro da nossa cultura também, como na produção das coletas, que é onde a gente pode coletar nossa coleta na roça. Pode ser os frutos que a gente coleta na mata. Tem as sementes que a gente coleta na mata para plantar. Tem os produtos da roça mesmo. A quantidade que a gente vai plantar, dos produtos que a gente vai plantar na roça. No caso do milho, a gente tem uma quantidade certa para plantar o milho, para que eles possam futuramente germinar certo, e bem fértil, bem produtiva. Se a gente ultrapassar aquela quantidade de plantar, de sementes, elas não vão produzir bem. Então, a gente tem uma quantidade certa para plantar o milho, quantidade certa de plantar os pedaços de cará, de inhame, batata, a gente tem a quantidade certa de cada produto. Amendoim. Então, se a gente ultrapassar a quantidade, não vão produzir bem futuramente. 15) Que outros saberes matemáticos você considera que existem na cultura paiter, para além destes referentes à quantidade de sementes no plantio? Acho que temos muito com relação à matemática, como na relação com a natureza. Na natureza, temos a época da chuva, época da seca, onde, na seca, temos a presença de um tempo, no caso, tipo calendário, em que mês vamos fazer derrubada, em que mês vamos fazer queimada, em que mês vamos plantar. Dentro da natureza, temos o canto do pássaro, como um marcador de tempo. Tem época da seca que temos um pássaro que canta na hora e no lugar que ele vai dormir. Antes de subir numa árvore, ele canta. Isso é na época seca. Agora, na época da chuva, ele não canta. Ele deixa de cantar e sobe sem nada de assovio. Então, tem vários tipos de matemática que existem dentro da cultura. Época da fruta, a gente sabe, qual tempo vai ter as flores dos frutos, que futuramente vai ser comida pelos próprios índios. Então, a gente já sabe o tempo certo das flores, o tempo das frutas, o tempo da colheita das frutas. Então, esses são marcos do tempo da matemática. Além disso, tem muitas outras que eu posso dizer. Tempo da seca é quando temos mais facilidade de matar os animais. É que nessa época tem animais bem gordurosos, bem de saúde. É uma época certa para matar. E tem época que o animal está magro, porque não se alimenta bem naquela época. Na época da fruta, vão se alimentar bem. Na época que não tiver fruta, naquela época, naquele tempo, o animal não vai se alimentar bem, e por isso vai ter pouca carne, pouca gordura. Então, além disso, tem muitos exemplos matemáticos. 16) Vou citar um termo e gostaria que você dissesse o que significa para você. O que você entende por etnomatemática? Etnomatemática é onde a gente tem a nossa própria matemática, dentro da nossa cultura. Porque no espaço e no tempo, a gente tem etnomatemática, a gente tem nosso próprio conhecimento. No caso da questão da medida, medida de espaço, a gente tem na nossa própria cultura, a gente tem forma de medida através dos marcos. Então, a medida do não indígena é medida através da quilometragem, pelo metro, centímetro, essas coisas. Então, a gente tem nossas medidas através dos marcos, dos lugares. Como posso dizer um quilômetro? Eu posso comparar um lugar, que tal lugar é marcado um quilômetro, comparando um lugar. Posso falar: - Ah, tal lugar, matei um porcão lá. Ah, posso dizer, daquele lugar, mais para frente, tal lugar, coloquei um saco de castanha. Então, a gente marca uma medida através de um lugar, do espaço de um lugar. Então, na parte da medida mesmo, a gente pode usar muito na construção de casas. No caso do metro, centímetro, a gente pode usar muito na construção de casas. A gente usa pela quantidade de pessoas que vai morar naquela casa. Então, a gente faz uma medida certa através da quantidade de pessoas. A gente tem a presença de figura geométrica nos artesanatos, que tem a presença

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das listas, as figuras desenhadas nos artesanatos, como na cesta, na flecha, onde a gente faz uma pena de uma arara, que a gente possa cortar certinho, na medida, para colocar na flecha. Tem que colocar na medida certinha da flecha, para que a flecha vá alcançar até o alvo. Se não colocar certinho a medida certa daquela pena de uma ave, ela não vai alcançar o alvo que a gente está querendo acertar. A gente tem que trabalhar muito bem na parte de geometria por esta questão. 17) Você está falando de vários saberes matemáticos presentes na cultura. Minha pergunta agora é: Qual é sua opinião quanto a se trabalhar também com esses saberes matemáticos na escola da aldeia? Seria muito bom trabalhar em cima desses materiais, porque, eu, como jovem, muito jovem mesmo, eu queria tanto aprender, para trabalhar com meus alunos. Mas a questão é que hoje em dia, a gente tem poucos materiais. Então, quem pode me ensinar sobre isso seria os mais velhos. Então, a gente precisa dos mais velhos para trazer esses conhecimentos para dentro da sala. Para que as crianças possam aprender. Então, na minha opinião, eu queria muito aprender a praticar, colocar em prática essas atividades, porque a teoria eu posso explicar muito bem para as crianças, mas a prática eu não sei muito bem. Então, por isso eu queria tanto a presença dos mais velhos para colocar em prática esses conhecimentos com os alunos. 18) Na sua opinião, como está a relação dos jovens e das crianças com os conhecimentos tradicionais? O que eles estão conhecendo ou sabendo? Olha, eu mesmo não tenho habilidades para fazer aquela flecha, colocar as peninhas, tudo enfeitadinho e bonitinho, porque eu nunca tive... fazer isso. Eu acho que a maioria dos jovens tem interesse em aprender isso. Mas cabe o papel do educador ou do mais velho que possa dar oficinas para a gente, para aprender a fazer aquilo. Tem alguns projetinhos aí, da FUNAI mesmo, onde as meninas da FUNAI vêm fazer um levantamento de projetinhos para as mulheres da aldeia, onde os mais velhos ensinam a fazer os balaios, cestos, redes e a panelinha de barro. Então, eles estão fazendo o levantamento, estão resgatando. De hoje estou falando. Mas até agora, não teve esse levantamento da parte do homem, como a gente possa fazer flecha, cocar e outros. 19) Na sua opinião, por que os jovens de hoje não dominam mais esses saberes? Acho que é falta de uma pessoa que vai ensinar o mais novo. Então, eu acho que é falta dessa pessoa que orienta, acho que é isso. 20) Por que você acha que está faltando essa pessoa? Os velhos não têm interesse em ensinar? Os mais jovens não procuram os mais velhos para aprender? Eu acho, assim, que hoje tudo é... acho que para eles o trabalho é vão. Hoje, todos querem saber de ganhar um troquinho. Então, eles não vão querer trabalhar sem ganhar nada. Então, isso é prejudicial. Agora, se contratar um educador só para ensinar aquilo mesmo, com certeza ele poderia chegar até aqui na sala, para ensinar aqui. Então, isso é o que dificulta. 21) Na sua opinião, por que é importante continuar ensinando esses saberes para as novas gerações?

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É muito importante a gente aprender a resgatar essa cultura. Mas... É por isso que nossa cultura está acabando, porque é falta de valorização. Como eu estou falando, o mais velho não vai vir à toa aqui para ensinar o mais novo, vão querer alguma coisa. Então, seria muito bom se ele pensasse futuramente, como mais para frente os netos, os filhos, que vão ter muitos problemas de voltar à cultura. Porque, se não praticar agora, hoje, porque os velhos têm tempo ainda de ensinar nós, jovens, mais para frente a gente não vai ter chance de aprender, porque cada vez mais os velhos estão acabando, falecendo. E se acabar tudo, com certeza a cultura vai acabar também. Então, para mim, seria muito melhor que eles vissem essa questão. Porque, a partir dali, eles podem: - Ah, vamos resgatar nossa cultura, vamos ensinar os mais novos para futuramente possam enriquecer nossa cultura. Então, há uma falta de organização, acho que é falta de organização. Se organizasse, com certeza o mais velho ia voltar a ensinar os alunos aqui dentro da sala. Acho que é falta de organização. Não é falta de interesse dos mais jovens. Os jovens têm interesse de aprender, mas falta o educador, o ensinador. Então, é falta de organização mesmo. 22) Na sua opinião, o que é escola? É onde o educador vai ensinar o aluno, no caso a ler e escrever. Não é só a ler e escrever, mas sim educar o aluno. Onde ele possa ensinar o aluno a como escrever. Não só escrever, mas como respeitar as pessoas, o que é certo e o que pode fazer, e também aquilo que é errado e não pode fazer. Então, a escola é o lugar onde vai ensinar e capacitar o conhecimento do aluno, da criança. 23) Isso não incluiria, como você mencionou anteriormente, a escola como um espaço para ensinar a fazer flecha, cestos, pinturas, conhecer os mitos, além de ser um lugar para se ensinar a escrever, a fazer contas e a ler? Não deveria ser um lugar para também se ensinar esses saberes tradicionais que você mencionou anteriormente? Sim. 24) E essa escola existe hoje? Como é a escola atual? Isso eu posso falar assim... essa da cultura mesmo não é muito praticada não, falando em prática. No caso da pintura, a gente não pratica isso na prática ainda. A gente só [inaldível] a ler, a escrever, só na parte de teoria, só na parte teórica... contar os mitos, qual o significado das pinturas do corpo, contagem dos números tradicionais, mas em prática a gente não colocou ainda, mas sim na teoria a gente ensina os alunos. 25) Então, na sua opinião, é como se a escola ainda fosse incompleta? Isso. 26) Então, o que seria a escola ideal, na sua opinião? Ideal seria se tivesse esse ensino, completo, no caso, o conhecimento tradicional e o conhecimento não indígena. Se tivesse esse ensino, seria o ideal. Também seria melhor para a aprendizagem dos alunos, porque a gente não tem parte prática da atividade da cultura tradicional, a gente só explica em parte de teoria. Então, se tivesse tudo em conhecimento que é aplicado na escola, seria ideal, muito bom. Agora, como eu estou

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falando, é incompleto, porque a gente não tem muita [inaudível] completa de ensinar essas atividades para os alunos. No caso da pintura do corpo, não é ensinada aos alunos na sala, a produção da cesta, da flecha... a gente não chegou ainda a trazer esse conhecimento para dentro da sala. Então, isso está em falta, para colocar em prática. 27) Quais são suas preocupações em relação à cultura paiter? Minha preocupação da cultura é perder a cultura. 28) O que isso significaria? O que seria perder a cultura? Deixar de praticar. Porque, como vejo muitas outras etnias indígenas, que deixam de praticar a sua cultura, eles não têm aquela sua tradição de indígena mesmo, porque eles deixaram de praticar a sua cultura. Então, o que nos valoriza mais hoje em dia é através da nossa cultura, ali que vai mostrar que somos realmente índios verdadeiros, através da prática de nossa cultura. Então se a gente não usar, praticar nossa cultura, com certeza a gente vai perder nosso valor, não vamos ter mais a valorização de ser indígena paiter, porque não estará tendo a cultura tradicional. Então, se a gente praticar nossa cultura tradicional, aí que vai fortalecer futuramente a nossa origem, a qual a gente é. Então, se a gente deixar de praticar isso, a gente não vai ter mais aquele espírito de ser indígena. É por isso que minha preocupação é essa, da perda da cultura. Ali que a gente vai perder nossos direitos, ali que a gente vai perder nosso território. Esse é meu medo da perda da cultura. Porque, se a gente perder tudo isso, a gente não vai ter mais aquela liberdade que a gente tem aqui na nossa terra, na nossa moradia. Então esse é meu medo. Eu vejo comparando com os outros, outras etnias, porque quando eles perderam suas culturas, perderam a terra, perderam suas culturas tradicionais, perderam tudo. 29) Quando você diz praticar a cultura, o que está incluído nessa expressão? Isso está incluído no movimento, no movimento mesmo, nas festas tradicionais... a gente tem festa de plantação, festa de primeira colheita do plantio, a festa principal de nossa cultura que é a festa de Mapimaí, onde se relembra os momentos em que se iniciou nossa origem. Então, essas são as relações que eu estou dizendo, as práticas da cultura. E a gente tem que praticar. Também está incluído dentro da nossa alimentação também, porque a alimentação, se a gente não mantiver nossa alimentação tradicional, a gente vai perder também nossa cultura. Se a gente está se alimentando só da alimentação não indígena, isso é que está adoecendo a gente aqui. Se a gente só se alimentasse na cultura tradicional, como o alimento não tradicional, nós estaríamos fazendo muito bem a nossa saúde. Então, tem muitas coisas que a gente pode voltar a praticar na nossa cultura. Não é só a festa, não é só a alimentação, mas sim também a maneira de convivência. No caso, essa maneira de convivência, estou dizendo assim uma maneira de organização, tipo a comunicação de um ao outro, comunicação com a família. Em síntese, com certeza tem muitas coisas para resgatar, para praticar a cultura tradicional. ENTREVISTA 9 Sujeito: PP7 Data: 19/11/2013

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Local: Aldeia Paiter Linha 9 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP7, em que ano você começou a dar aula? No ano de 2003. 2) Atualmente você dá aulas para que séries? Sexto ao nono ano. 3) Você trabalha com quais disciplinas? Língua Materna e Identidade Étnica e Histórica. 4) Na sua opinião, que tipo de escola existe hoje na comunidade? Falta escola, falta mais alguma coisa para completar, para que a escola fique bem mais adequada para o ensino aos alunos indígenas. 5) Na sua opinião, o que está faltando hoje na escola? Falta ampliação das salas, toda a estrutura da escola, como... durante nosso trabalho aqui dentro da aldeia, nós não temos todos os equipamentos para dar aula, como material didático e material pedagógico, principalmente dentro da língua materna. Como eu trabalho na língua materna? Através da pesquisa. Isso dificulta muito nosso trabalho. E se tivesse material didático, seria mais fácil para eu trabalhar, porque eu tenho planejado muito, antes de eu ir para meu trabalho, com o mais velho. Escolhe-se um tema, um conteúdo, e com esse conteúdo eu vou ao sabedor da aldeia. Daí, todas essas pesquisas eu trago para a sala de aula para trabalhar com meus alunos. 6) Então na sua opinião os mais velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia? Podem. Hoje os velhos são muito... vamos dizer... peças raras para nós, peças muito importantes, devido a contribuírem com o ensino da língua materna, tanto com os sons, como com todos os fonemas da língua materna. Durante meu trabalho, sempre precisei de apoio dos sabedores, como no conto de mitos do [povo] Paiter. 7) Você acha que hoje os mais jovens, as novas gerações, estão sabendo os conhecimentos tradicionais que eles deveriam saber? Sem sabedor, não tem como trabalhar, porque eu sou sabedor da língua materna, só vou trabalhar na escrita, eu não vou trabalhar com conhecimento tradicional, eu não sei conhecimento tradicional. Por isso, durante meu trabalho, o sabedor tem um papel muito importante para mim, porque vai contribuir com conhecimento tradicional, para eu passar esse conhecimento aos alunos. 8) Considerando sua experiência como professor e sua formação, como você define educação? O que é educação para você?

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Eu, como professor, entendo que educação... Bem antes a gente educava os filhos, assim como meu pai falou assim para mim que tínhamos a educação tradicional, e hoje nós temos outra educação, a escolar, da educação escolar. E bem antes do contato, nós usávamos a educação tradicional. Mas como isso acontecia? Diariamente os pais educavam os filhos: - Esse aqui é seu parente, você não pode fazer isso para ele. Então, tudo o que era de bom com relação à família, o pai orientava o filho. Mas hoje, a educação escolar já é outra visão para nós, já é uma outra visão. Então, educação escolar é tudo o que a gente enfrenta da educação dentro da escola não indígena. Isto eu entendo sobre educação. 9) Nesse sentido, como você define escola? Escola é um local onde os alunos vão estudar, buscar os conhecimentos ocidentais. Mas, comparando com nossa tradição, não existia escola, escola para nós era a nossa casa, não tinha um lugar assim isolado fora de casa. Então, existe um pouco de diferença entre a escola não indígena e a escola tradicional. Escola era a nossa casa, antes, e hoje a escola já tem um lugar apropriado para os alunos. 10) Então, essa escola, esse lugar específico hoje que se chama escola, qual a sua importância para a comunidade? A importância da escola para a comunidade hoje é que ela passa conhecimentos tradicionais e não tradicionais. Hoje, o povo Paiter não define muito bem a escola. Quem pode passar esses conhecimentos aos alunos são os professores que entendem. Hoje, temos professores contratados pelo estado, e os professores são os pesquisadores da comunidade ou do povo. E esse professor pode passar esse conhecimento aos alunos. E a importância da escola para nós é para valorizar a nossa cultura, que está sendo deixada de se valorizar, e para passar conhecimentos às gerações. 11) Quando você diz valorizar a cultura, como a escola, esse lugar aqui, específico da educação escolar, pode contribuir para valorizar a cultura paiter? Dentro do currículo das escolas indígenas, nós temos uma disciplina de Língua Materna, e Identidade Étnica e Histórica que é uma disciplina de História. Através dessas disciplinas, vamos desenvolver projetos, juntamente com a comunidade. Através dessas duas disciplinas, nós vamos ter conhecimentos tradicionais e não tradicionais, comparando duas culturas, a nossa cultura e a cultura da língua portuguesa. 12) E em relação ao ensino de matemática, como está ocorrendo hoje na escola da comunidade? Como eu sou professor de língua materna, eu trabalho dentro da disciplina da língua materna. Trabalho com a escrita, como se escreve um na nossa língua, como se escreve dois na nossa língua, até dez. E dentro da disciplina de Identidade Étnica e Histórica, trabalho como tradicionalmente media o espaço, como media o tempo. Vem aquela história de como media o espaço. Então, hoje na Identidade Étnica e Histórica, o professor busca essa pesquisa. 13) Como você define cultura tradicional paiter?

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Cultura tradicional paiter é toda a cultura para nós. Eu defino assim: cultura é aquele elemento que prevalece coletivamente. Isso é cultura para nós. 14) E o que é etnomatemática? Etnomatemática são conhecimentos nossos próprios. Nós temos nossos próprios conhecimentos, frente aos conhecimentos ocidentais. Como eu estava falando, nós temos o número um, com relação à nomenclatura dos números. Isso não é um nome, mas tem um significado de cada número. Um é um, apenas um. Dois quer dizer um par. Três, um par e meio, significa tudo isso. Isso é conhecimento tradicional nosso. Nós temos nosso próprio conhecimento, que seria etnomatemática. Nós temos nosso próprio conhecimento sobre medida de espaço, de tempo. Tudo isso para mim é etnomatemática. 15) Qual a importância da escola ensinar, além dos saberes não indígenas, esses saberes matemáticos da cultura paiter? Além da matemática não indígena, nós, povo Paiter, precisamos dos conhecimentos nossos mesmo, para prevalecer nosso conhecimento, para ficar como registro da memória, para as gerações não esquecerem da história da nossa contagem, história da nossa matemática tradicional. ENTREVISTA 10 Sujeito: PP8 Data: 19/11/2013 Local: Aldeia Paiter Linha 9 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP8, há quantos anos você é professor? Eu comecei a lecionar na escola, como professor... primeiramente comecei a partir do curso do IAMÁ, em 1992. Então, eu comecei a partir desse curso, e depois o pessoal me convidou. Então, até hoje estou trabalhando na sala de aula. Naquele tempo eu trabalhava sem receber salário. Naquele curso, eu participei durante três anos, e depois eu fiquei parado mais dois anos, e eu não tinha escolaridade naquela época. Então eu fiz o provão no supletivo, consegui passar e peguei meu certificado. E aquele certificado me serviu para ser professor. Então, o governo do estado me contratou considerando aquele certificado que eu consegui passar no supletivo. 2) Atualmente você dá aulas para quais séries? Atualmente eu dou aula para primeiro a terceiro ano. 3) Em quais disciplinas? Bom, para mim muito facilita ensinar as crianças, os alunos, em primeiro lugar a minha língua paiter. Isso facilita muito o aprendizado das crianças. As crianças entendem quando falo na minha língua, e assim eles dominam a língua portuguesa. Eu mesmo ensino as crianças na minha língua, depois eles entendem na língua portuguesa.

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4) Considerando essa sua experiência como professor, como você define escola? Escola... eu estou pensando futuramente na minha escola. Minha comunidade está pensando muito em uma educação melhor, com ensino de qualidade para nossas crianças, para a gente resgatar nossa cultura, nossa língua, que deixamos muito para trás. Hoje em dia, as crianças usam muito as palavras novas, e a gente deixou as palavras novas... não como era antes, como a gente usava. Então, essa é a escola que a gente quer hoje. Então, essa é a escola que minha comunidade quer hoje. Uma escola com qualidade diferenciada. 5) Considerando isso que você disse, que com o tempo foi se deixando de usar as palavras que eram usadas antes, na sua opinião, o que levou as pessoas paiter a deixarem de usar a língua e de conhecer as tradições? Hoje em dia, as crianças estão vendo muito a cultura do branco. Por isso, esqueceram um pouco e deixaram para trás o que são delas. Então, a gente precisa, nós professores índios, precisamos pesquisar mais o que era nosso, porque nós, professores, precisamos muito ver esse problema que a gente tem hoje. Porque nós professores índios precisamos mostrar a nossas crianças, através das pesquisas com nossos velhos. Isso é o que estamos vendo hoje. 6) Considerando essas mudanças que você mencionou, com a língua e as tradições, o que você acha do ensino de saberes matemáticos não indígenas na escola da aldeia hoje? Hoje, estou vendo que minha comunidade reclama, porque quer que seus filhos aprendam o cálculo, as contas da matemática, como calcular a conta, e isso a comunidade quer que seus filhos aprendam. Porque hoje vivemos no mundo do branco, e a gente precisa. Ao mesmo tempo, para mim, professor índio, é muito importante também a nossa matemática, para conhecer como era nossa matemática. Então, essa também é minha preocupação com as crianças, para que elas aprendam. 7) Você considera que a maneira como essa escola aqui está trabalhando hoje com o ensino de matemática é suficiente para atender essa necessidade de trabalhar com conhecimentos não indígenas e conhecimentos da tradição? Ou falta alguma coisa que é necessário melhorar? Não professor, para mim está bom. Porque o professor não índio está trabalhando com a matemática. Então, ao mesmo tempo, a gente explica como é o cálculo da matemática na nossa língua e nosso aluno entende melhor. E através disso ele domina como é o cálculo da matemática. Isso é o que a gente ensina aos nossos alunos para dominar a matemática. ENTREVISTA 11 Sujeito: PP9 Data: 24/07/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 1) PP9, onde você estudou ao longo de sua formação escolar?

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Estudei na aldeia mesmo, lá na aldeia Lapetanha. Quando a FUNAI estava... teve a educação naquele tempo... tinha uma escola lá na aldeia. Estudei lá. Depois, quando estava fazendo a segunda série, estudei na zona rural. Aí, terminei o primário lá. 2) Então, você fez a primeira série na aldeia, na escola da FUNAI, e depois, da segunda série em diante, você foi para uma escola rural? Sim. 3) Você aprendeu a ler e escrever na escola da FUNAI? Sim, na escola Tancredo Neves, dentro da aldeia mesmo. 4) Quem eram os professores? Naquele tempo, quando eu estudava, era o índio Terena, e depois o Renato [Suruí]. 5) O índio Terena ensinava em que língua? Português. 6) Então você aprendeu a ler e escrever em português? Sim. 7) Quantos anos você tinha, na época? Uns nove anos. 8) Há quanto tempo você é professor? Eu iniciei a dar aula em dois mil. 9) Você fez o Projeto Açaí? Eu fiz. Fiz o magistério indígena. Terminei meu Ensino Médio lá. 10) Por que você se tornou professor? Porque, lá onde eu morava... eu morava na [Linha] Doze, né. Aí não tinha professor lá. Aí eu fui contratado para ser professor lá. Estava faltando professor indígena lá. Aí eu fui contratado. 11) Você começou a dar aula antes ou depois de fazer o Açaí? Antes. 12) Você terminou o Açaí em que ano? Em 2006.

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13) Hoje você dá aula para quais turmas? Agora eu estou dando a disciplina de língua materna, da língua do povo Paiter... e estou dando aula para sexto ano, sétimo, oitavo e nono. 14) Só língua materna? Língua materna e identidade nossa. 15) Considerando sua experiência e sua formação, como você define educação? O que é educação? Eu vejo a educação assim... a gente não só aprende na escola. A gente aprende também na sociedade. Através da convivência com a sociedade, a gente aprende muitas coisas também. E a gente também tem... aprende também na escola... como... a gente aprende aquele conteúdo que é lecionado para dar para os alunos, ensinar para os alunos. A gente aprende isso lá. Agora, aquela experiência de vida mesmo a gente aprende na sociedade. Isso é educação para mim. 16) O que é escola? Escola é um espaço que a gente... que ensina ao aluno aquilo que estou falando, aqueles conteúdos... ensinar conteúdos para aquelas disciplinas. No caso, assim, disciplinas de português, matemática... aquelas matérias. 17) Também considerando sua experiência e, principalmente, sua formação na universidade, pois você já deve ter lido sobre e estudado esse assunto, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Etnomatemática... dentro da universidade mesmo eu consegui esse conhecimento. Antes de entrar na universidade, eu não sabia o que era etnomatemática. Etnomatemática é... foi muito bom para mim, porque, a partir desse conhecimento eu sei: “Ah, cada povo tem sua matemática”. Não é reconhecida, mas a partir daí que a gente... Não só na sociedade não indígena, mas dentro da sociedade indígena existe matemática. Cada povo tem a sua matemática. Aí eu percebi: “Ah, cada povo, cada grupo tem a sua matemática”. Aí, como eu vejo também que dentro da minha sociedade tem matemática... só que não é escrita... porque não foi escrita ainda... mas existe matemática lá. E a partir... quem vai fazer essa matemática do nosso povo... quem vai fazer essa pesquisa encima desse... da matemática do povo dele. 18) A Constituição brasileira de 1988 prevê o direito dos povos indígenas a uma educação escolar bilíngue, intercultural e diferenciada. Na sua opinião, a educação escolar existente na sua aldeia atualmente está de acordo com as características previstas na constituição? Para falar a verdade, professor... eu acho que... não está do jeito que está... não está do jeito que a constituição está amparando o direito à educação diferenciada dos povos indígenas, porque... essa lei está muito bem bonita, mas na prática a educação não está do jeito que

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está garantido na lei. Porque eu vejo mesmo... como eu sou professor, eu vejo que não está de acordo com a lei... assim, não está sendo realizada do jeito que a lei garante. 19) Você pode explicar como os mais velhos, os sábios, podem contribuir para a educação escolar na aldeia? Ah, sim. Eles podem contribuir na... O papel desses curubey é muito importante dentro da sociedade porque eles têm muito conhecimento sobre o nosso povo. Nós, geração nova, não temos muito esse conhecimento. Mas como eles já viveram isso lá atrás, eles são nossas bibliotecas, nossos... como eu posso dizer?... nossas bibliotecas... neles estão todos esses conhecimentos. Por isso, o papel deles é muito importante dentro da sociedade. Para mim, eles podem contribuir com a escola, ou no espaço da aldeia mesmo, como é a vida do povo Paiter, como... dando uma experiência de vida para os mais jovens. Isso é fundamental e muito importante. 20) Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O que o povo Paiter espera da escola na aldeia? O povo Paiter espera dentro da aldeia do jeito que eles querem. Como? Com a cara do índio. Respeitando, assim... ter autonomia... ser dirigida pelos índios. Eles não querem que o funcionamento da escola venha de fora. Eles querem que, a partir dali mesmo, nasça e do jeito que eles querem seja, com um funcionamento como... com uma merenda diferenciada, não mais aquela merenda de alimentos de não índio. Dali mesmo, a merenda pode ser carne de caça, chicha na merenda... e assim, tornar mais para o tradicional. E também aplicar mais os conhecimentos, igual para igual com o conhecimento não indígena, aplicar dentro da sala de aula. Agora, por que todas as escolas indígenas estão aplicando mais os conhecimentos do não indígena e muito menos ainda o conhecimento do povo dentro da escola? Não está do jeito que os índios querem. Falta muito para melhorar. 21) Você poderia explicar como era a educação do povo Paiter antes do contato? A educação do povo Paiter antes do contato já veio de lá... desde a criação da humanidade. A educação era transmitida assim: do pai para o filho. E também alguma coisa se aprende dentro da sociedade, da comunidade. Mas quem dá mais educação mesmo para o filho é o pai e a mãe. E alguns, eles aprendem dentro da sociedade, dentro da comunidade. 22) O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola na aldeia? Para falar a verdade, no meu ponto de vista, está diminuindo muito. Porque acho que os pais não estão muito dando essa educação tradicional para os filhos... deixando eles crescerem... e poucos pais dão conselhos para eles... não são todos. No meu ponto de vista, está muito pouco. Por que eu vejo isso? Antigamente, através da educação que o pais estavam passando para os filhos, os filhos não faziam tanto as coisas erradas, porque o pai dizia: “Ah, não pode fazer isso! Nossa cultura não é isso! Se fizer essas coisas, você não é gente! Quem quer ser gente de verdade, não pode ser mal educado! A pessoa que quer ser gente mesmo de verdade tem que ser educado, respeitar os outros, respeitar os mais velhos, respeitar os seus próximos!” Não é só respeitar o pai. Tem que respeitar todos. A pessoa assim era “Ah, fulano é gentil. Ah, fulano é bem educado!” Ele era bem falado dentro da aldeia. Agora, aquela pessoa que fala mal, aquele que briga, aquele que fala na cara da pessoa, que faz aquela bagunça... não era bem falado dentro da aldeia não: “Ah, fulano é

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isso, fulano é aquilo”. Então, hoje, como o pai não está mais passando educação para o filho, hoje a nova geração está bem confusa. Por isso, eu vejo isso... a partir disso, o que eu vejo é que a nossa educação não está bem aplicada. Está acabando. Porque as novas gerações estão seguindo o modelo do não índio. Assim... falando frente a frente... isso não é do nosso costume. Isso não é ser gente, gente que quer ser respeitada dentro da sociedade. Isso não é papel dela. 23) Do seu ponto de vista, quais foram as alterações que a cultura do povo Paiter sofreu após o contato? Ocorreram muitas mudanças dentro da cultura. Porque, na nossa cultura, nós nos casávamos com nossas sobrinhas mesmo, que já eram para ser nossas mulheres mesmo. A gente não segue essa cultura mais. A gente está casando com qualquer... assim... que não é mulher dele... assim... não indígena, ou mulher do outro, da outra etnia. Até as festas tradicionais estão sendo diminuídas. Não estamos fazendo mais. E até aquela cultura da caçada mesmo está... quase acabou. Está só vinte por cento, dez por cento, porque, quando o Suruí caçava, ele dava para o sogro, dava para o cunhado... assim... distribuía tudo, com a família toda. Hoje, não acontece isso mais. Hoje, se matar um bicho, pode dar um pedacinho, mas não é para todos. Pode ser só para o sogro. Antes, a pessoa distribuía tudo. Matava um bicho e chamava a comunidade para distribuir. Hoje não acontece isso mais. Dificilmente acontece isso. Então, muitas coisas mudaram dentro da cultura do povo Paiter. 24) Você considera a escola na aldeia como um elemento positivo ou negativo para a cultura do povo Paiter? Aí depende, professor. Para mim ela é um elemento positivo também. Porque é onde a gente pode... eu mesmo... como a comunidade não está fazendo mais festa, não está fazendo mais aquela cultura, eu mesmo uso o espaço da escola para fazer esse trabalho dentro da sala de aula. Porque eu ensino aos alunos a música e a dança, como a gente caçava. Falo na teoria primeiro e no outro dia levo os alunos para fazer tudo o que eu falei na sala de aula. Então, aí depende, professor, se a escola pode ser um elemento bom. Se o professor não estiver trabalhando do jeito que a comunidade quer, pode ser negativo para a comunidade. 25) Que tipo de conhecimento ou saberes devem ser trabalhados na escola da aldeia? Como nós vivíamos antes. Conhecimentos sobre como nós vivíamos antes. Como era nosso território antigamente. E como os clãs se organizavam antes do contato com não indígena. E como eram os guerreiros, se era por clã, se era misturado mesmo. E como funcionava o casamento. E qual pessoa tinha mais mulheres, se era aquele guerreiro ou só o chefe. Não só esses conhecimentos. Tem vários conhecimentos que a gente pode aplicar na escola. 26) Ainda a pouco, você falou de matemática e etnomatemática. Voltando a esse assunto, como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de sua comunidade? O ensino de matemática deve ser... aplicar aquele conhecimento da matemática daquele povo. Por quê? Porque os alunos, os alunos mesmo, não conhecem aquela matemática do

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nosso povo mesmo. Falta aquele... falta nós professores pesquisarmos, escrevermos e aplicarmos na sala de aula, com os alunos. Como a gente tem muito pouco esse conhecimento da matemática, a gente não aprofunda muito isso aí. E falta muito esse... a matemática do povo Paiter, para pesquisar e fazer um livro didático para os alunos. Porque a matemática do povo Paiter... algumas não estão... não estão... como eu posso dizer?... feito, não está... não foi pesquisado ainda. Está isolado ainda. Dá para fazer pesquisa ainda. Então, a matemática deveria aplicar... a etnomatemática deveria aplicar o conhecimento daquele povo na sala de aula. 27) E a matemática não indígena? Também deve ser aplicada. Também pode ser aplicada lá. Como eu estou falando... não é aplicar mais a matemática portuguesa e menos a matemática indígena, do povo Paiter. Tem que ser aplicada de igual para igual. Assim [mostra dois dedos paralelos]. O conhecimento deve acompanhar assim, juntos. 28) Qual a sua opinião sobre a proposta de a escola na aldeia trabalhar então com saberes tradicionais do povo Paiter e saberes ocidentais? O fato de as novas gerações estarem aprendendo esses diferentes conhecimentos, com diferentes origens, vai interferir na identidade cultural do povo Paiter? Acho que não interfere não. Porque é importante eles conhecerem esses dois conhecimentos, levar esses dois conhecimentos juntos, porque eles dependem do conhecimento dos não indígenas e têm que valorizar os seus conhecimentos também. Por isso, eles devem levar os dois [conhecimentos] juntos. 29) Além da escola, que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Pode ser a associação. Só que a associação não pode garantir muito. Ela pode ajudar também. Só que, por outro, se não funcionar, ela pode não fazer esse papel mais. Mas quando está funcionando, ela pode ajudar também a manter a cultura. Mas depende da condição dela, do funcionamento dela. 30) Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? O papel dos professores dentro da comunidade é... O papel do professor é muito importante dentro da comunidade dele, porque ele é o espelho da comunidade. Porque ele tem um pouco de conhecimento. Eu vou falar verdade, que não temos muitos conhecimentos. Ele tem um pouco de experiência e conhecimentos. E por isso, ele deve falar para a comunidade que isso é certo, que isso é errado. Pode até puxar a comunidade para melhorar a escola, para melhorar o funcionamento da escola. Como eu estou falando... depende do professor, depende do interesse do professor. O professor indígena é muito importante dentro da comunidade. A partir de mim mesmo eu tiro essa ideia, essa experiência. Para a comunidade mesmo acompanhar esses... quem deve explicar esses conhecimentos para a comunidade, para a comunidade ficar ligada nesses conhecimentos, é o próprio professor. O próprio professor tem que ter contato com a comunidade. Não é

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isolado, não é separado da comunidade. Tem que trabalhar junto com a comunidade, porque ele é a força da comunidade, assim como a comunidade é a força dele. 31) Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Eu acho que, se nós não registrarmos tudo, se nós não trabalharmos isso dentro da sala de aula... ou até trabalhar na comunidade, com certeza, daqui cem anos não vai existir mais. Se nós, professores, não fizermos assim... trabalhar encima disso aí... Agora, se nós trabalharmos encima disso aí e mostrar para a comunidade... para eles valorizarem a cultura deles... aí, pode até chegar mais ou menos ou um pouco. Como o não indígena... os filhos do não indígena aprendem na escola e vão valorizando sua cultura... mesma coisa, se nós não fizermos isso, com certeza acaba. Se nós não registrarmos esse nosso conhecimento do povo Paiter, com certeza acaba. Se nós fizermos, e a escola ir passando para as novas gerações, então vai mantendo ainda. 32) Nesse sentido, a escola contribuiria para a manutenção da cultura? Isso. A escola é uma ferramenta importante, muito boa. Depende da pessoa. Ou ela pode eliminar a identidade, ou ela pode ajudar a manter viva a comunidade. Como eu estou falando, depende do professor. ENTREVISTA 12 Sujeito: PP3 Data: 19/08/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01) PP3, em maio de 2013 você me concedeu uma entrevista na comunidade Amaral. Na época você respondeu a algumas perguntas sobre escola, educação e etnomatemática. Você manifestou uma preocupação com o tipo de escola existente na comunidade. Você disse que escola é um lugar em que se aprende um conhecimento que não é aprendido em casa, e além de educar ela deve dar novas ideias para se adquirir mais conhecimentos. Então, retomando essa pergunta, PP3, um ano após a primeira resposta, no seu ponto de vista, qual é o papel da escola na aldeia? Eu vejo assim... que, além de ensinar a adquirir conhecimento, a escola tem o papel fundamental de preservar a cultura, transmitir a cultura. Hoje, é muito difícil a gente, os pais, os mais velhos... Eu digo que hoje o que constrói a família já é novo, são famílias novas. Então, a escola tem o papel hoje de transmitir, passar o conhecimento do povo Paiter. 02) E como você avalia que está funcionando a escola hoje? A maneira como a escola está trabalhando já atende ao que você está citando em sua fala? Atualmente, acho que os saberes que os alunos estão aprendendo lá são os conteúdos mais da sociedade envolvente. Os professores... Eu que trabalho com a língua materna e com identidade, eu tenho essa dificuldade porque eu não conheço profundamente a história do povo Paiter. Eu preciso de alguém que possa ajudar a transmitir esse conhecimento. Eu

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espero... estou esperando alguém que possa ajudar, auxiliar, repassar esse conhecimento do povo Paiter. 03) Você mencionou seu trabalho com a língua na escola, e essa preocupação em se trabalhar na escola também com conhecimentos em geral da cultura paiter. Em relação à etnomatemática, especificamente, eu me lembro que, na entrevista anterior, você disse que etnomatemática para você é a matemática que cada povo tem. Como está hoje o ensino dos conhecimentos matemáticos do povo Paiter na escola? Eu quero ser claro assim... A etnomatemática do povo Paiter existe, só que... eu vejo que não está acontecendo na escola ainda, mas eu espero que um dia possa acontecer. A etnomatemática geralmente acontece mais na sociedade, na aldeia mesmo, mas falta chegar na escola. 04) O que está faltando para esses conhecimentos chegarem na escola? Os conteúdos da matemática são geralmente conteúdos específicos. Os professores indígenas e não indígenas não... como eu posso dizer?... eles não transformaram essa etnomatemática ainda, no contexto da etnomatemática paiter. Eu vejo isso, porque a matemática geralmente é a da sociedade europeia. Mas a matemática tem que... Se for etnomatemática, a gente tem que ver e transformar essa matemática em realidade da aldeia, no contexto que a sociedade paiter vive naquela aldeia. 05) Ainda em relação à etnomatemática, que saberes matemáticos do povo Paiter poderiam ser ensinados na escola? A forma de contagem. Como os mais velhos observavam o passar do tempo. Geralmente, a gente sabe pelo passar do tempo as estações... os trezentos e sessenta e cinco dias. Então, eu vejo que isso não está se praticando hoje. A demarcação do espaço também... hoje a gente conta por metro para descobrir a área quadrada de um determinado espaço, mas isso... eu não sei como o povo Paiter contava antigamente, mas, com certeza, tinha o seu método de contagem também para isso. 06) Em termos gerais, o que você considera que mudou na cultura do povo Paiter após o contato? O que mais mudou foi a vestimenta, a alimentação... Antigamente, antes do contato, o povo Paiter tinha um lugar onde se comunicava, onde tinha um diálogo, e tinha mais tempo com seu filho em casa também, para conversar sobre história, sobre educação, como a gente pode respeitar o próximo, modos de tratamento. Essa educação, eu vejo que foi cada vez mais enfraquecendo. 07) Você avalia essas mudanças como boas ou como ruins? Não é uma mudança tão ruim. Razoavelmente, tem coisa que a gente precisa preservar sim, como educar o filho, como deve respeitar o próximo, modo de tratamento. Geralmente, na sociedade não indígena, isso não tem tempo. Por essa falta, os filhos hoje podem ser... como posso falar?... não têm respeito com o próximo.

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08) Historicamente, a escola na sua comunidade contribuiu mais para preservar ou para modificar a cultura do seu povo? No momento, eu vejo que essas mudanças, esse modo de ensinar na escola fez mais para mudar mesmo, porque... até 2011, era só do primeiro ao quinto [ano], e agora, de 2011 até 2014, tem um professor da língua, que tenta repassar para os alunos a história antiga. 09) Na sua opinião, o que deveria mudar na escola da aldeia para contribuir mais com a manutenção da cultura do seu povo? Principalmente os conteúdos que são ensinados lá têm que ser mais voltados para a realidade paiter. O calendário escolar tem que ser mais específico do povo. A alimentação, a merenda, tem que ser diferenciada. 10) Que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Além da escola, eu vejo que as religiões contribuem, porque chegam lá e adotam as suas regras... que não pode se alimentar de certos alimentos... isso vai enfraquecendo... não pode praticar mais a festa. Eu acho que isso vai enfraquecendo a cultura paiter. 11) Que opinião você tem sobre a presença da televisão na aldeia? A televisão é como se fosse uma escola, só que leva a pessoa a mudar a cultura também. As notícias, a novela, isso causa uma mudança da cultura também. 12) Lembro-me de que na entrevista anterior você falava da preocupação com os casamentos dos Paiter com não indígenas. Essa sua preocupação está relacionada com uma questão de identidade cultural paiter? Sim, porque eu vejo que, hoje, o povo Paiter tem na sua identidade mais a língua materna. A língua materna está forte ainda, eu acho. E, através do casamento, isso pode enfraquecer, porque a não índia casa com o índio, e a partir disso ela se comunica com o marido na língua portuguesa. Isso vai cada vez mais enfraquecendo a língua paiter... Até o segundo ou terceiro casamento, não vai mais existir o povo Paiter. 13) Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? O papel dos professores paiter é incentivar mais a cultura paiter, buscar, pesquisar a cultura paiter e transmitir para seus alunos... Hoje a maioria dos professores são jovens e não sabem a história... Eu vejo também que não sabem as formas de contagem, como os velhos sabem. 14) Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a cem anos? Eu vejo assim, professor. Se não preservar a cultura... e com certeza a gente quer preservar... a gente quer utilizar a cultura do povo Paiter e a cultura da sociedade envolvente. E, com certeza, eu espero que isso possa acontecer daqui a cem anos... Não

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totalmente como hoje, mas pelos menos a língua e algumas coisas da cultura eu acredito possa acontecer... a forma de se alimentar, de se vestir... os cantos e rituais. ENTREVISTA 13 Sujeito: PP4 Data: 01/09/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01) PP4, na entrevista anterior, você disse que o povo Paiter usava uma matemática tradicional, e que se não registrar essa matemática, ela será esquecida, e que por isso seria bom registrar e aprender esses conhecimentos tradicionais. Você poderia explicar por que esses conhecimentos deveriam ser preservados e ensinados às novas gerações? Porque, hoje, estamos tendo muitos cruzamentos de indígena e não indígena. Como nós usávamos aquela matemática anterior... a gente está na escola aprendendo a matemática não indígena. Por isso a gente está deixando de lado a que antes nós usávamos. Por isso. Porque, hoje em dia, os jovens mais usam é a matemática... como que fala?... europeu... é a que mais domina hoje. 02) Quando você fala assim: “Usavam uma matemática”, você se refere ao quê, exatamente? Essa matemática que se usava era através de sinais, como pedaços de pau, dedos ou até pedras. 03) Em quais situações do dia-a-dia esses sinais eram usados? Era na pesca. Quando o índio saía para pescar, na volta falava que matou tantos peixes. Era mais através dos dedos: “Matei tantos peixes”. E na caça também. E para fazer artesanato, nas flechas: “Naquele dia eu fiz tanto, hoje eu fiz tanto, e está tal quantidade agora”. 04) Hoje em dia já não se está usando mais essa forma de contagem na língua? Não. Hoje em dia a gente já fala assim... por exemplo, eu vou na roça... hoje em dia a gente tem roça, a gente trabalha na roça... ou, como eu que sou professor, eu vou lá na escola dar minha aula... hoje, a gente conta de semanas, o horário de aula... hoje, “tantas horas já trabalhei”. Mas, antigamente, não. Era por dia. A quantidade em um dia, e no outro... e no final, somava. E, hoje, não. Já vai direto na soma da semana. 05) Então, a importância de se ensinar esses conhecimentos hoje, é para não se esquecer dessa tradição? Sim, a tradição. Por exemplo, eu tenho um filho. Então, como eu vou explicar para ele, se ele perguntar: “Pai, como era antigamente, como era nossa contagem?”. E como eu vou explicar?

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06) Na entrevista anterior, você mencionou que os saberes matemáticos tradicionais do povo Paiter deveriam ser ensinados na escola pelos professores, com a participação dos sabedores indígenas. Você poderia explicar qual seria o papel dos sabedores indígenas no ensino de saberes matemáticos na escola? O papel dos sabedores seria... primeiro o professor e o sabedor mandava marcar encontro, falar de si... depois iria levar para a escola. Porque hoje em dia, lá na comunidade onde eu trabalho, eu tentei fazer isso com o sabedor, levar o sabedor para a sala de aula para, junto com o professor, explicar como era. Só que não deu certo. 07) Por quê? O pessoal pensa mais no dinheiro: “Você vai me dar quanto pelo horário que eu ficar lá?”. Eu falei: “Eu posso dar tanto para você”. “É?”. Só que um dia eu posso... eu tenho que ter sempre por lá então. 08) E os próprios sabedores indígenas, eles não se preocupam em preservar esses conhecimentos, passá-los às próximas gerações? Não tem um interesse por parte deles mesmos em ensinar isso para os jovens? Ou esse interesse hoje é só dos professores? Na verdade, nós pensamos assim, nós e a comunidade... queria que fosse interesse dos dois. Mas só que o professor sozinho não consegue, porque eu sou novo. Aí, eu não sei como que eu vou lá no passado e trazer para mim. Aí, como eu falei, o sabedor fala que precisa, só que na hora de ir para a sala ajudar lá, ou na comunidade mesmo, ele não ajuda. Isso que é o problema. 09) Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de sua comunidade? Na minha comunidade, eu penso assim, que seria na língua indígena... na matéria... e em português. Porque, lá na minha comunidade, as crianças indígenas não entendem muito bem português, porque é difícil eles saírem da aldeia, só quando eles vão para a cidade. Por isso, eu penso assim, que deve ser ensinado a partir da realidade da comunidade, como de costume... através da realidade do aluno. Como no caso, se eu ensinar a matemática do não indígena na comunidade, claro que não vão saber. Tem que começar da realidade dele. 10) Então, o ensino envolveria a matemática do não indígena e do indígena? Os dois ao mesmo tempo. 11) Na entrevista anterior, você disse que a educação pode ocorrer em qualquer meio, na escola e fora dela. Você poderia explicar como era a educação do povo Paiter antes do contato? A educação era... cada pai tinha sua responsabilidade de educar seu filho. Eu vou falar do meu pai e da minha mãe. No caso, meu pai me educou assim: a pessoa tem que respeitar um ao outro, para que seja respeitado. Como, no caso, se eu chegar no colega assim, e eu agredir fisicamente, ou também verbalmente. Quem vai ser culpado disso? Se eu agredir um colega meu, claro que eu vou me sentir culpado, sentir vergonha. Por isso, tem que estar sempre respeitando seu próximo, para que ninguém faça o mal com você também. Aí,

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olhando para o outro, eu também posso aprender com a educação do outro. Como meu pai fala, ele nunca teve pai, porque tiraram a vida do pai dele quando ele era criança ainda. Aí, foi se educando vendo os outros educando os filhos deles. 12) A educação dos homens era igual à educação das mulheres? Na educação feminina, no Paiter... quem educava a filha era a mãe. É claro que o pai tem que colocar um pouco da dele também. Era diferente. 13) E como você avalia o fato de que, hoje, meninos e meninas estão juntos na escola, recebendo o mesmo tipo de educação escolar, no mesmo espaço? Agora, mudou muito, né. Aquilo que eu falei anteriormente, cada um tinha sua... hoje em dia, todo mundo está indo junto, na mesma educação. 14) Como você avalia essa mudança? Avalia como algo bom ou como algo ruim? Por quê? Eu penso que é algo ruim. Porque hoje em dia, através disso aí, as meninas da aldeia não estão como eram no passado... agora é tudo do jeito que querem para elas. Por exemplo, “eu posso fazer isso”. Isso está modificando muito a nossa cultura, como no casamento, como no convívio da família. A gente já está estudando fora da aldeia, muitas meninas. Aí, já vai conhecer lá... vendo que a outra realidade é diferente e não quer voltar para sua realidade. 15) O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola na aldeia? A educação mudou porque deixou de lado essa educação tradicional, e agora a gente está indo na educação da escola. 16) Você avalia isso como bom ou como ruim? De um lado é bom, e de um lado é ruim. O lado ruim é porque está deixando esse costume tradicional de lado. O lado bom é que a gente está aprendendo através da escola, aprendendo a educação do outro lado, que não é da nossa etnia. 17) Esse “outro lado”, você acha que ele é necessário hoje em dia, ou você acha que ele poderia ser abandonado? Como você vê essa questão? Do jeito que estamos hoje, tem que acontecer. Porque, claro que para frente a gente vai precisar. Porque, como eu falei, o tradicional a gente está deixando um pouco. E uns já não... só os velhos hoje estão praticando ainda. Como eu sou jovem, eu tenho que ir para frente. Como dizer? Ser dinâmico... a vida de uma pessoa. 18) Então, de modo geral, você considera a escola na aldeia como um elemento positivo ou negativo para a cultura do povo Paiter? Positivo. 19) Apesar dos problemas apontados, você acha que ainda assim é positivo?

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É positivo. 20) Que tipo de conhecimento ou saberes devem ser trabalhados então na escola da aldeia? Poderia se trabalhar para contribuir para a comunidade, com a educação tradicional, artesanatos... e deixar o de hoje para os professores... tem que estar por perto ajudando os professores como era antes... 21) A Constituição brasileira de 1988 garantiu o direito dos povos indígenas a uma educação escolar bilíngue, intercultural e diferenciada. Na sua opinião, a educação escolar existente na sua aldeia está de acordo com as características previstas na constituição? Hoje, a escola da minha comunidade trabalha assim, com ensino bilíngue e intercultural também. 22) Os professores indígenas, né? Os professores indígenas. Só que os outros professores não indígenas, que atuam de sexto a nono ano, não trabalham assim. 23) Você gostaria que mudasse alguma coisa na educação escolar oferecida na sua comunidade? Gostaria. Como eu disse que, na escola que a gente estuda lá, tem os professores não indígenas, que querem trabalhar na realidade deles, mas não querem olhar para o nosso lado. Como assim? Tem que... por exemplo, na aula de matemática, ele vai ter todo dia só adição e subtração, ou as quatro operações. E no outro dia vai ter outros de matemática. Só que, para o aluno entender, tem que voltar na realidade do aluno, para ver se, através daquilo, tem como ele entender. Esses dias, eu estava lá, na aula de matemática... reprovou muita gente. 24) É a sua pesquisa de TCC, né? Sobre as dificuldades no ensino-aprendizagem de matemática? Sim. 25) Após o contato, quais foram as principais mudanças na cultura do povo Paiter? Na cultura, foi a língua e a alimentação. 26) Os professores paiter têm planejado de forma autônoma a educação escolar em seu território? Acontece que a própria secretaria [de educação] faz, né. No início já faz, e manda o conteúdo que vai ser trabalhado durante o ano. Mas já manda pronto para os professores. Aí os professores, através daquela lista, veem os conteúdos e tenta fazer um planejamento. Tem uns que não dão certo, daí deixam aqueles ali e fazem outros que já sabem.

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27) Historicamente, a escola na sua comunidade contribuiu mais para preservar ou para modificar a cultura do seu povo? Pelo pouco que eu estou lá, eu vi que não preservou. Porque... eu não sei como aconteceu, porque lá na escola, onde eu trabalho hoje, é da outra comunidade, Amaral... 28) Qual a sua opinião sobre a proposta de a escola na aldeia trabalhar com saberes tradicionais do povo Paiter e saberes ocidentais ao mesmo tempo? Se os sabedores tradicionais trabalhassem lá [na escola], contribuiriam muito. Como no caso de repassar para os alunos os conhecimentos sobre o passado, como era a educação. E também passaria muitas coisas que o povo conhecia antes. Se ajudassem assim o professor em sala de aula, contribuiria muito. 29) Esses diferentes conhecimentos, os tradicionais e os novos, em algum momento entram em conflito na escola? Tem uma parte que entra em conflito. 30) Você pode citar um exemplo? Na aula de biologia... eu vou citar a aula de biologia. Na nossa tradição, na nossa cultura, a gente fala que pode casar com a sobrinha por parte da mãe. Como, no caso, eu tenho uma irmã. Aí eu posso casar com a filha dela, e não com a filha do meu irmão. Já na biologia, fala que isso não pode acontecer. Aí vira conflito. Alguém fala “Ah, meu filho vai nascer alejado”. 31) E como tem sido resolvida essa questão? Hoje em dia, os jovens estão com medo. Deixou a cultura para trás e olhou mais o lado de hoje. Eles ficam com medo. As meninas não querem mais casar, e os meninos também. 32) O tipo de educação escolar oferecido na aldeia possui alguma relação com a identidade cultural das novas gerações do povo Paiter? A maneira como os jovens hoje em dia se veem tem relação com a escola na aldeia? Nesses dois últimos anos em que estamos lá, está havendo. A escola na aldeia pode ser intercultural. Pode ser de um lado indígena e de outro não. Aí, a escola está tentando puxar mais do lado da cultura. 33) Que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Quem está tentando preservar são as associações, né. O povo Paiter tem quatro clãs, e cada clã tem sua associação. E uma ou duas vezes por ano, cada associação está tendo um projeto para ensinar os alunos ou as crianças da aldeia para praticar o tradicional, como era antes. 34) Então as associações contribuiriam para preservar a cultura. E existem outras instituições que ajudam a mudar a cultura?

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Uns falam que é a religião, né. 35) Em que sentido a religião mudaria a cultura? Como eu falei, né, prejudica mais é no casamento. Como eu citei, não pode casar com um parentesco próximo. Porque, na religião, eles falam que... para mim está tudo bem, né, porque eu mesmo casei com a minha sobrinha. Aí falam que isso é pecado... tem que casar com uma pessoa distante. Aí falam que a pessoa não pode ter mais de um casamento. E também querer só casar com pessoa que a pessoa ama, e não obrigado. 36) Então, essas são mudanças introduzidas pela igreja nas relações de parentesco? Pela igreja. 37) Você frequenta alguma igreja? Frequento. 38) Qual? Adventista do Sétimo Dia. 39) Há quanto tempo? Está com seis meses. 40) Sua esposa também? Sim. 41) Você tinha a pretensão de casar mais alguma vez, antes de ir para a igreja? Pretendia. 42) E hoje? Hoje... até que a pessoa quer. Só que, o que dificulta mais é o financeiro, né. Eu olhei mais pelo lado financeiro. 43) O que você acha das igrejas existentes na aldeia, de modo geral? De modo geral, eu acho bom de dois lados, positivo e negativo. É que muita coisa através da igreja muda, ou talvez não muda, né. E também... cada um quer seguir onde quer, quer estar livre. Não considero nenhum lado ruim, dos dois lados. 44) No que você acredita, hoje: no gênese da bíblia ou no mito da origem do povo Paiter? Como está sua crença hoje em dia?

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Eu vou falar a verdade... eu acredito na bíblia. Eu também acredito nesse nosso surgimento tradicional, como era nos mitos e nos ritos. Eu ainda acredito muito. Porque, como meu pai contava as histórias para mim, alguns batem com a bíblia... eu fico pensando: “Uai, será que isso aconteceu mesmo?”. Aí eu acredito cinquenta por cento do lado que era nosso, e também na bíblia. 45) Que opinião você tem sobre a presença da televisão na aldeia? A presença da televisão na aldeia tem ajudado muito a comunidade, como... leva notícia... muitas coisas. E também, muita coisa estragou lá também. 46) Por exemplo? Por exemplo, como o filme e a novela, né, que a criança fica assistindo lá e fica com a mente poluída. Se a criança assiste o filme e vê aquele monte de tiro, vai querer atirar também. Só que antigamente... quando eu era criança, não tinha televisão, e eu ficava de boa lá. E hoje em dia as crianças ficam quase vinte e quatro horas na frente da TV, não querem sair dali... Eu mesmo, quando tinha doze, treze anos, não falava em português. Hoje em dia, a criança com dois anos já fica falando. 47) Qual a sua opinião sobre os casamentos dos paiter com não indígenas? Eu penso assim... se um paiter casar com não índio, claro que o filho que nascer depois não será considerado cem por cento Paiter. Ali, já vai ser visto como mistura, misturado, né. É o caso da minha mulher. Falam que ela é misturada. E uns já rejeitam muito ela, e ela sente isso, né, ela sente isso. E, se no caso é só entre índio e índio, vai respeitar, porque ele é parente e parente. Só que quando é misturado assim, a gente não considera como índio. 48) Para concluirmos, na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? Meu papel é levar os conhecimentos de fora para dentro da comunidade. E também, os conhecimentos que eu tenho de dentro da comunidade, tentar levar para dentro da escola, para juntar esses conhecimentos e tentar melhorar a educação da comunidade, da escola indígena da comunidade. 49) Mesmo que esses diferentes conhecimentos às vezes entrem em conflito, você acha que devem estar os dois na escola? Os dois. 50) Como resolver os conflitos? Por exemplo, a tradição diz uma coisa, a biologia diz outra. Como o professor resolve essa situação? Está um pouco difícil, né. A comunidade tem que tentar entender que isso deve acontecer, porque... a gente, esses tempos atrás, a gente tentou fazer isso, tentar reunir os dois para tornar um só. Só que não deu, porque... as crianças falam: “Ah, minha igreja falou isso”. Aí o pastor fala que: “Não, a escola está errada. Se fizer isso, é pecado. E quem é pecador é a família”. Claro que a família vai ficar com medo, né. Desse lado, quem perde um pouco,

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que recua para trás é a escola. Porque o professor não pode ir contra uma igreja que tem várias comunidades lá, né. É por isso. 51) Então, você acha que, na relação de poder entre escola e igreja, a igreja está mais poderosa? A igreja está mais poderosa do que a escola. 52) Ou seja, o que o pastor fala tem mais poder do que o que o professor fala? Isso. Porque a comunidade pensa que a bíblia está ali, né, que o que está ali está tudo ok. 53) Então, uma última pergunta. Considerando tudo isso que você disse, das transformações que aconteceram, dos conflitos atualmente existentes, como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Boa pergunta, hein. Eu penso assim, professor, que não vai demorar tanto assim, 100 anos, não. Eu fico pensando que, daqui a trinta... nem trinta não... daqui a uns vinte anos, o povo Paiter vai deixar de ser falante da língua paiter e deixar os costumes para trás. Porque a gente já está com quarenta e cinco anos só de contato, né... [emocionado]... e já perdeu muita coisa... a língua... um jovem que está nascendo agora, não fala nem cem por cento mais não. 54) Você acha que seria possível mudar a escola para ajudar a preservar a cultura e a identidade cultural do povo? Os professores indígenas, os professores paiter, não conseguiriam na escola fazer com que, daqui a cem anos, o povo continuasse a falar sua língua, a manter suas tradições? Tentar, até que tenta. Só que tem que registrar, gravar entrevistas com os mais velhos falando na língua, e passar os conhecimentos dos velhos para os mais novos. Tentar registrar e guardar na escola. Como eu falei, está difícil. 55) Então, sua previsão é de que muitas mudanças vão acontecer em médio prazo? Sim. Em cem anos, não terá mais nenhum paiter falante na língua. 56) Então, a gente percebe a missão importante dos professores para não deixar isso acontecer, né? Só que hoje a comunidade também... tem muitos professores aqui do Intercultural que estão levando seus filhos de cinco anos para a escola não indígena. Até o ano passado, as escolas estavam com quatrocentos alunos ou quinhentos alunos, na TI Sete de Setembro. Só que ano passado a gente fez levantamento, e metade caiu para trás. 57) Os pais estão tirando os filhos das escolas do território e colocando-os em escolas não indígenas? Isso. 58) Por que os pais fazem isso?

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Esses dias, a gente fez uma reuniãozinha lá na aldeia, lá na [Linha] Onze. Acho que foram cinco escolas que se reuniram lá. E os professores juntos. E a comunidade. Aí, um pai levantou e perguntou para nós: “Vocês professores, será que vocês têm a mesma capacidade que os professores não indígenas poderia ensinar para os nossos alunos, nossos filhos? O que vocês esperam de ensinar meu filho?”. [Respondeu-se ao pai] “A gente já tem a mesma capacidade. Basta você e os professores... os pais, né... têm que colaborar. Não os alunos irem para a escola só quatro horas”. E a gente falou para ele assim: “Você tem filho. Eu também tenho. E parece que você tem dois ou três dentro da sua casa. E a gente tem uns dez ou quinze dentro da sala de aula. Durante só quatro horas. A gente poderia atender quinze alunos durante só quatro horas? E o restante das horas? O dia tem vinte e quatro horas. Você pode contribuir conosco aí? Por que você, antes de dizer que a gente não ensina, você já leva o seu filho para outra escola?”. Aí ele sentou e falou: “Pois é, pai...”. Falou para outro pai, né. “A gente poderia olhar por esse lado. Ajudar os professores também”. Então, não são os professores de quinze ou trinta alunos, durante quatro anos, que vão tirar nossos filhos de uma hora para outra. ENTREVISTA 14 Sujeito: PP10 Data: 03/09/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01)PP10, onde você estudou, ao longo de toda a sua formação escolar? Eu estudei, da primeira à quarta série, que hoje é primeiro ao quarto ano, na minha aldeia. E o quinto a oitavo ano eu fiz na zona rural, onde tinha supletivo. Na época a escola era supletivo, agora é do campo. Depois do oitavo ano, fui convidado pela comunidade para participar do Projeto Açaí 1, onde eu participei e concluí. Em seguida, eu passei para Licenciatura Intercultural, que é onde estou participando. E assim eu quero continuar estudando, até onde eu puder. 02) Durante sua formação escolar, você se tornou professor e começou a dar aulas. Há quanto tempo você é professor? Eu tenho... durante minha formação mesmo, depois que eu concluí o primeiro grau, que é a oitava série, eu me tornei professor lá na minha aldeia. Até porque, naquele tempo, em 94, 95, não tinha... a única pessoa que tinha estudos bem avançados era eu, onde fui indicado, votado... fizeram eleição... tinha mais um indígena também, só que fizemos votação de quem seria. Aí a comunidade achou por bem que eu fosse o professor. 03) Então você se tornou professor por necessidade e por um convite da comunidade? Isso. Porque não tinha outro professor para dar aula. Quando surgiu aquela lei, de que só indígenas vai trabalhar e que pode trabalhar com a sua comunidade, então a comunidade já pensava que eu poderia estar praticando e trabalhando com os outros indígenas também para estar passando experiência que eu estou pegando com pessoas que tem experiência, que já trabalharam com outros indígenas... igual a maioria dos professores que tem... que

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deu aulas para nós, são experientes nessa área. Então, era tudo dentro da forma da convivência de cada cultura do povo que eles trabalhavam e explicavam, trabalhavam com a gente na sala de aula. 04) Você disse que do primeiro ao quarto ano você estudou na aldeia. Foi com professores indígenas ou com professores não indígenas? Não indígenas. 05) De algum projeto específico? Não, lá na minha aldeia, estudei com funcionários da FUNAI. Na época era a FUNAI ainda que tomava conta da educação indígena... escolar indígena. E depois de um tempo, estudei com professores da rede municipal, depois que a educação indígena foi passada para a rede municipal. Depois de uns tempos, passou para a rede estadual. 06) Ao longo dessa sua formação escolar, você teve professores indígenas? Não. 07) Hoje você dá aula para quais turmas? Hoje eu trabalho com alunos do quarto ano. 08) Quais disciplinas você trabalha na escola? A gente trabalha com todas as disciplinas dentro da sala de aula: Português, Matemática, História, Ciência, Línguas Indígenas. 09) Eu tive a oportunidade, no ano passado, de assistir a umas aulas suas. Eu gostaria de saber o seguinte: a maneira como você dá aula, você aprendeu no Açaí e aqui na Licenciatura, ou é uma experiência que você traz dessa sua formação escolar, com os professores que foram seus professores na escola rural? A maneira como você dá aula hoje está mais relacionada ao Açaí e à Licenciatura ou a sua experiência de escola que você teve antes? Bom, professor, tudo a gente aprende vivendo, assim, de uma experiência, onde a gente convive com os outros, conversando. Então, eu aprendi... eu tenho uma experiência boa de dar aula. Um pouco eu aprendi no Projeto Açaí, e um pouco aqui no Intercultural. Um pouco também eu fui pensando de que forma eu posso estar trabalhando melhor com meus alunos. Então, a cada dia que passa, a gente vai criando uma ideia, e aprendendo com os outros também. E é assim que a gente trabalha. 10) Eu pude observar nas suas aulas, assim como nas aulas de outros professores, a relação professor aluno. Geralmente, os alunos na aldeia tem um comportamento diferente daquele dos alunos na cidade... a relação professor-aluno, a relação aluno-aluno. Eu observei que na sua aula, você não estabelece um controle direto sobre aquilo que o aluno está fazendo. Aparentemente, o aluno tem uma liberdade para fazer sua atividade, observar o que o professor está falando ou fazendo, entrar e sair

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da sala. A minha pergunta é: Por que a relação professor aluno na aldeia se dá dessa forma? Professor, é da cultura mesmo isso, porque a gente... eu tive uma pergunta para o meu tio, para os mais velhos lá da minha aldeia... como era e como é a vida do povo Paiter... assim... dentro do respeito de um ao outro. Eles contam como era, como é, e qual é a regra que nós trazemos, e que nos coloca no caminho certo, que nos leva a uma vida saudável. Porque, na história do povo Suruí, a pessoa respeitando um ao outro, a vida da pessoa é mais longa, mais saudável e muito alegre. Então a gente trabalha com os alunos, baseando nessa forma... eles também já têm esse dom dentro de si mesmos, porque ali dentro da sala a gente vê, quando a gente está lá na frente falando, explicando, todos ficam quietos, ouvindo, ninguém se levanta da cadeira e fica gritando ou fica atrapalhando quem está concentrado. Então, eu acho que isso vem da cultura mesmo. 11) E essa atitude do professor Paiter de não interferir no que a criança está fazendo? Parece que em sala a criança tem uma autonomia para fazer o que ela tem vontade, inclusive para entrar e sair da sala sem a necessidade de autorização do professor. Como você explica isso? Então, isso aí... tem que deixar em liberdade, até porque a gente não está ali porque se sentou ali e tem que estar preso até o horário... porque a gente, na nossa cultura, a gente quer ficar livre no ambiente em que vivemos. Então, se ele está saindo é por uma necessidade... então a gente percebe, a gente vê que não é sair para fazer bagunça. E também não é toda hora que estão saindo por querer, é uma necessidade que faz eles saírem. Então a gente respeita essa saída. Eles não falam dentro da sala, não gritam dentro da sala, mas sim fora da sala, dentro do espaço onde pode estar fazendo isso. 12) Considerando sua experiência e sua formação, como você define educação? O que é educação? Educação, principalmente para o povo, não só para o povo Paiter, pode estar relacionada dentro da cultura de cada povo. Então, cada povo leva sua educação dentro das possibilidades que eles têm dentro das comunidades. Para nós Paiter, na educação está inserido o respeito dentro da comunidade, uns aos outros... as crianças vem aprendendo com as pessoas idosas, como cantar, fazer artesanato, falar direito. Então, tudo isso para nós é educação dentro da comunidade. Agora, hoje, depois do contato com não indígena, a gente sabe que educação também é escrita... a gente aprende a ler, escrever, fazer conta... isso leva a gente a conhecer mais adiante... por exemplo, nós estamos aqui sentados, mas se a gente quer saber hoje, agorinha mesmo, o que está acontecendo lá em outro estado, outro país, é só a gente entrar na Internet agora e ver, com se nós estivéssemos vendo pessoalmente lá. Então, tudo isso é educação, é o que a gente vem aprendendo. 13) E o que é escola? Escola é um ensinamento que a gente tem, que recebe dos pais, dos mais velhos também. A escola não é só um lugar de estudar. Escola não é uma construção. Escola está dentro de um povo. Nós estamos aqui trocando ideias... talvez você vai aprender uma coisa comigo agora que nem esperava que eu falasse. Então pra mim isso é uma escola. Se a gente estiver andando e conversando, e trocando uma ideia, e você aprender uma palavra nova

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naquele lugar, ou uma experiência nova naquele lugar... é uma escola. Então, para o indígena, onde ele está conversando, trocando ideias, aprendendo, é uma escola. 14) Ao longo do curso de licenciatura, vocês tiveram acesso a vários textos, discutiram, debateram, estudaram, escreveram sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Etnomatemática nos traz bastante pensamento de falar. Pode ser uma contagem da minha maneira do povo Paiter, como eles contavam, como mediam o espaço, como eles tinham cálculo de fazer uma maloca, uma casa, na plantação também, e medição de tempo, contagem do tempo, qual tempo a gente pode fazer derrubada, plantação, colheita. Então, etnomatemática está na vida, no dia-a-dia de cada cultura diferente, de cada povo. 15) A Constituição brasileira de 1988 prevê o direito dos povos indígenas a uma educação escolar bilíngue, intercultural e diferenciada. Na sua opinião, a educação escolar existente na sua aldeia atualmente está de acordo com as características previstas na constituição? Não, professor. Quanto a isso, a gente vem reclamando, principalmente com o governo do estado de Rondônia. Como movimento indígena, sempre reclamamos. Nós também reclamamos como OPIRON, porque isso não está sendo cumprido dentro das aldeias. O que é realizado dentro das aldeias, que a gente vê, é o que a secretaria de cada base está montando, como o planejamento. Eles montam o planejamento no começo do ano, e se trabalha encima daquilo. Daí, quando a gente questiona, eles falam que isso vem de cima, eles falam assim... que é Porto Velho que manda para a SEDUC de Cacoal, por exemplo. Então, a gente tem que cumprir isso daí. 16) Como os mais velhos, os sábios, os curubey, podem contribuir para a educação escolar na aldeia? Então, eu ia falar... hoje, a gente trabalha na escola da forma como eles mandam o planejamento, o conteúdo para a gente estar trabalhando. A gente ainda está forte ainda, até porque a comunidade pede para que isso não seja eliminado. O cacique LP1 sempre cobra isso. Se uma pessoa não está trabalhando, se nem todas as disciplinas estão sendo realizadas, trabalhado um pouco de cada... dentro de sua cultura, então pelo menos que um professor esteja trabalhando, uma parte pelo menos, como na identidade étnica, na língua. Isso o LP1 tem sempre cobrado da gente e dos supervisores que trabalham com a gente. Então, os mais velhos, eles têm bastante... eles acompanham, eles nunca quiseram que os filhos... eles sempre cobraram que tem que aprender as duas culturas, do não indígena e a cultura deles, porque o medo deles é que eles veem, hoje em dia, que a língua e a cultura do povo Paiter estão se extinguindo... que está muito recente o contato, e eles estão perdendo demais isto daí. Então, o LP1 sempre cobrou, pelo menos na aldeia nossa, que os alunos aprendessem a ler na sua língua, saber dançar, caçar, cantar, fazer artesanato... tudo isso é intenção dele, até porque nossa associação tem um projeto de ponto de cultura, que duas vezes por ano faz um projeto de oficina para ensinar as crianças. Essa é também uma das escolas da gente. 17) Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O que o povo Paiter espera da escola na aldeia?

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Professor, eu acho que, na minha opinião particular, eu vejo isso... até porque eu trabalhei como executor lá na SEDUC de Cacoal, e eu andei e convivi também em várias aldeias, várias escolas do povo Suruí, onde eu tenho uma experiência boa, que eu vi. Eu acho que, na minha opinião particular, eles estão vendo mais assim... que é tipo uma coisa comum, que você pode ter, usar... só de usar. Até porque, a maioria, dentro das aldeias hoje, a maioria é jovem, que construiu sua aldeia não pelo objetivo de construir uma família legal, ele saiu de uma aldeia em que morava e foi construir uma aldeia por ignorância. Por que eu falo isso, ignorância? Porque ele foi abrir uma aldeia pelo objetivo de ter uma escola, um postinho de saúde construído pela FUNASA, e ganhar alguma coisa, que a FUNAI pode dar, e eles serem os donos daquilo, e se mostrar para as pessoas: “não, eu também sou uma pessoa respeitável, como você, e não é só você que pode estar mandando em mim. Então, não é só o seu parente que pode ser professor e agente de saúde. O meu filho também pode ser o professor, o agente de saúde”. Então, isso eu acho, no meu pensamento particular, eu fico pensando e anotando isso, porque a divisão dentro dos Suruí está demais, professor. Há uns quinze anos atrás, o povo Suruí só tinha seis aldeias, seis linhas. Hoje, está um avanço danado. Hoje está em... quando eu trabalhei, há uns oito meses atrás, na última vez que eu fiz uma viagem, eu contei vinte e sete aldeias. Então, a escola não está dentro da aldeia, onde ela está localizada, porque a pessoa está pensando: “Eu quero ter uma escola que vai trazer e vai levar a vida do meu filho adiante, para meu filho aprender uma coisa que hoje tem que aprender dentro da cultura do não indígena mesmo, e trazer para beneficiar minha comunidade”. Não está dessa forma. Hoje está uma briga, uma disputa. Se não contratou seu filho, ou seu parente que você quer contratar, eu pego e saio, a pessoa sai, e vou construir uma aldeia. Lá eu posso ter o direito de contratar a pessoa que eu quero. Então, a escola está uma bagunça dentro da comunidade. Eu vejo isso. 18) São vinte e sete aldeias, e quantas escolas? Doze escolas. Mas, assim, vinte e sete aldeias estão dentro do estado de Rondônia e outras em Mato Grosso. Então são doze escolas dentro de Rondônia. 19) Você poderia explicar como era a educação do povo Paiter antes do contato? Como eu tinha falado no início da minha fala, as crianças vêm aprendendo junto com os mais velhos. Quando elas estão numa festa, por exemplo, dentro de uma aldeia, tem que estar dois clãs, dois grupos, porque não pode morar só um grupo ou um clã ali, porque como é que eles vão casar, ter filhos, para o crescimento da família, do clã também? Então, tem que estar dois clãs ali. Porque, querendo ou não, eu tenho que buscar a minha esposa em outra família, trazer para mim e criar o clã dela ali. E outra pessoa que for buscar em outra aldeia também, buscar o mesmo parente dela, o clã dela vem trazendo. E assim, vamos... Então... por que eu quero dizer isso? Onde tem dois clãs, tem que acontecer uma diversão, uma festa, por exemplo. Porque, sem diversão, o povo não vive. Então, tem que existir o dono da chicha, que é o dono da festa, e quem vai beber, as pessoas que vão beber, que vão dar presentes em troca da bebida. Isso é a diversão para o povo Suruí. Então, sempre as crianças estão convivendo com as mães, com os pais, e vendo o dia-a-dia do trabalho ali, e aprendendo a fala também, o artesanato, as músicas... lá onde as mães e os pais estão orientando, que você pode chegar perto daquilo ou não, que você pode fazer aquilo e aquilo não, que você pode falar isso e aquilo não. Então, a educação que nós tínhamos antes do contato era isso. 20) O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola na aldeia?

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Mudou bastante. Como eu estava falando para você, o povo Suruí dividiu, e foi criando aldeias, foi distanciando um grupo de outro grupo. Então, assim, não existe mais a educação que a gente tinha... a educação de quando a gente morava juntos. Então, um grupo pequeno não consegue fazer aquelas festas tradicionais, músicas tradicionais, e agora só estão interessados na educação não indígena, em uma escola de prédio... só quer colocar os filhos dentro disso. 21) Então, você considera a escola na aldeia como um elemento positivo ou negativo para a cultura do povo Paiter? Professor, hoje eu posso dizer que a escola apresenta positivo e negativo. Negativo de um lado, porque a gente vai deixando... praticando com isso mais o português na leitura, aprendendo mais a cultura não indígena e esquecendo a nossa, deixando de praticar a nossa. E positivo, porque a gente também aprende a ler e escrever, algo que hoje nós dependemos para cobrar as autoridades na forma escrita, falando bem também. Então, querendo ou não, a gente um dia vai se misturar, população indígena com não indígena. Porque já está começando o casamento de indígenas com não indígenas. E isso vai acabar... então a educação, desse lado... a educação é um ponto positivo. 22) Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de sua comunidade? Os dois tipos, né professor. A matemática que podemos estar trabalhando em nossa escola, e na comunidade também, é a matemática não indígena, e da cultura também, trazendo os mais velhos e experientes para a sala de aula, para estarem explicando e a gente vai trabalhando conforme eles vão falando, e registrando isso, sempre trabalhando encima disso. 23) Considerando tudo o que você disse, qual é, na sua opinião, o papel do professor na aldeia? O que deve se esperar do professor na aldeia? Que o professor seja honesto com a sua comunidade. Porque, como eu estava falando, tem gente que não vai... que é professor não porque querem e tem vontade de trabalhar com o seu povo, mas por indicação da família, e está só pelo salário, vamos dizer assim. Então, o professor tem que estar ciente que a responsabilidade, a vida de crianças está dentro da mão dele, do professor. Porque ele está na frente, falando, incentivando. Porque as crianças estão olhando, espelhando nele, aprendendo com ele. Ele tem que estar sempre na frente, ali, ensinando a verdade... porque as crianças estão aprendendo com ele ali. Então, o papel do professor é estar ali, honesto, com as crianças... principalmente com a vida da sua comunidade, do seu povo. 24) Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Professor... se chegar pertinho de cem anos, vai ser muito tempo, porque, do jeito que eu estou vendo, a cultura do povo Suruí está muito acelerada, demais, assim... ficando para trás. E a cultura do não indígena está muito acelerada. Eles [os Suruí] estão pegando mais aquela lá, e deixando a cultura indígena para trás. Hoje, a mocidade, os jovens de hoje, eles não se interessam muito em praticar a sua cultura. Estão mais focados na cultura não indígena, como na música, na dança, estão falando mais em português dentro da aldeia

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entre si mesmos. Então, se eu chegar na minha aldeia hoje, sair de Ji-Paraná agora e ir para minha aldeia hoje, se eu chegar lá e falar para uma criança: “Vamos lá para o mato bater timbó, fazer uma pescaria tradicional, e nós voltaremos só amanhã, depois de amanhã”, eu acho que ela recusaria isso. Pode ser que eles vão montados em animal, bicicleta ou numa moto para voltar no mesmo dia, para não dormir lá, esquentando o fogo, comendo a comida que a gente faz lá. Então, se eu chegar lá e pedir... eu mesmo não sei cantar na minha língua. Eu canto assim... eu tenho que aprender bastante. A pessoa tem que cantar para mim várias vezes, aí eu canto, aí eu pego o ritmo, aí eu canto. Agora, eu criar música, igual os mais velhos criam, para eu criar é difícil. Então, isso no caso já é prejudicial para minha cultura, para mim. Então, por tudo isso, eu falo que... as línguas mesmo... é colocar muito cinquenta anos... Suruí nenhum vai estar falando... cinquenta anos e olha lá ainda, porque agora, os jovens, a intenção deles é casar com não indígena, muita gente já está trazendo outra etnia indígena para sua aldeia, e deixa de falar sua língua com ela, e ela também com ele, e vão falar só em português. E o filho que nascer, vai falar em português. Então, não vai... eu falo que é muito cinquenta anos... não vai chegar nem isso. Está muito acelerada demais a cultura que hoje nós vivemos, e a nossa cultura mesmo está ficando para trás. ENTREVISTA 15 Sujeito: PP1 Data: 09/09/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01) PP1, há um ano atrás você me concedeu uma entrevista, respondendo a algumas questões sobre cultura, educação, escola e etnomatemática. Naquela oportunidade, você definiu etnomatemática, segundo seu ponto vista, como sendo “o conhecimento de cada povo em relação à matemática, ou seja, cada povo tem a sua forma, expressão e meios para fazer contagem, e para fazer formas geométricas e medidas”. Você disse também que atualmente há uma “pressão da matemática não indígena” sobre o conhecimento paiter. Voltando a esse tema, você poderia explicar em que sentido ocorre essa pressão da matemática não indígena sobre o conhecimento do povo Paiter? Bem, professor, eu agradeço primeiramente. Acredito que essa construção é importante, principalmente quando se trata de conhecimento paiter. Nesse sentido, reforço mais uma vez que sua pesquisa é importante. E estou aqui mais uma vez a contribuir com isso. Acho que conhecimento se constrói dialogando mesmo. Bom, naquela ocasião, eu disse que a matemática, o conhecimento matemático paiter, ela sofre pressão no sentido assim, professor... todos os conhecimentos relacionados a modos de contar, medir, os conhecimentos matemáticos, estão com os mais velhos, quer dizer, eles conhecem, eles sabem, eles praticaram aquilo no seu cotidiano, como uma matemática única... media, contava, fazia roça, caçava, dormia vários tempos. Isso envolvia todo o conhecimento matemático. E, hoje, o meio, o estilo de vida, o próprio meio onde se vive é diferente daquele meio anterior, de antes do contato. E aí... esse conhecimento não se pratica mais entre os mais velhos... eles têm o conhecimento, aquele conhecimento... e muito menos os mais jovens, os mais novos, conhecem esse conhecimento, quer dizer, a matemática que poderia estar se praticando ali, para dar continuidade, para que esse conhecimento continue

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ainda, seria essa ligação entre os mais velhos e os mais novos... e não há essa ligação. E a matemática ocidental, ela é praticada entre os mais velhos, entre os adultos, os mais jovens, os adolescentes, até a criança. Então, em todas essas faixas etárias, em todos os gêneros, você vai encontrar a prática da matemática ocidental. E em nenhum momento você vai encontrar a prática da matemática tradicional paiter. Em algum momento ou outro você vai ouvir um mais velho falando com outro, mas mesmo assim vai aparecer a prática da matemática ocidental. Sem percepção, ela é praticada... ela meio que se torna uma coisa normal da tradição. Ela meio que... como se a matemática tradicional paiter fosse normal na época anterior ao contato. Então, a matemática ocidental, ela está sendo praticada em todas as faixas etárias dos paiter. E nesse sentido que eu falo que a pressão, ou o afastamento, do conhecimento tradicional matemático paiter... ela vai meio afastando aos poucos e ninguém percebendo, e aos poucos a matemática ocidental vai tomando conta, vai tomando o lugar. É nesse sentido que eu falei que a matemática tradicional paiter vem sofrendo pressão, não somente na escola, mas principalmente na escola, porque não tem uma sistematização dessa matemática tradicional paiter que seja ensinada na escola, que seja uma referência de conhecimento paiter dentro da escola... não tem isso. Então, o que se vê no ensino na escola é somente a matemática ocidental. Ela sofre mais pressão na escola no sentido de que essas pessoas que poderiam dar continuidade são as crianças, são os alunos. E eles, principalmente eles, mantêm contato primeiro com a matemática ocidental... e a gente não sabe se vai manter o contato com matemática paiter... porque é uma prática bem pequena com os mais velhos, os únicos que podem... vamos dizer... praticar. Então, nesse sentido, a escola é um espaço que ajuda a propagar mais essa pressão. 02) Você já tinha conhecimento das discussões relativas à etnomatemática antes de ingressar na universidade? Como você teve contato com essas ideias? Eu nunca tinha... antes de entrar na universidade, mais precisamente aqui na UNIR, eu nunca tinha conhecimento da palavra etnomatemática, seu conceito, definição, significado. Eu nunca tive a oportunidade de conhecer essa nomenclatura, etnomatemática. Aí, eu conheci aqui na universidade. Inclusive, o primeiro contato que eu tive foi por causa do PIBIC-Af, que a gente tentou fazer e não conseguiu. Então, meu primeiro contato foi por meio daquela pesquisa, daquele projeto. Eu não tinha contato assim de dizer o que era etnomatemática. 03) Na Gapgir, tive a oportunidade de assistir algumas de suas aulas. Percebi seu esforço em introduzir na escola da aldeia o ensino de saberes matemáticos paiter. O que te motiva a ensinar esses conhecimentos a seus alunos? Primeiro, é que eu acredito que pensar em paiter é mais fácil para as crianças. Pensar em paiter... o contato mais próximo que eles têm de linguagem é o próprio paiter. Então, se existe a matemática paiter, primeiro eles têm que ter contato com esse conhecimento paiter. E a matemática paiter não se resume a números, aqueles signos, aqueles algarismos. A matemática se resume a todo o contexto... fala, sinal, gesto, movimento. Então, as crianças precisam saber que aquilo é uma matemática paiter. Não somente fazer. Se simplesmente fizer sem você refletir sobre aquilo, você não será capaz de saber realmente o que é aquilo. Então, como professor, discutir isso com os alunos na escola... eu acredito que isso é um fator fundamental para que se permaneça, no campo do conhecimento, no conhecimento paiter... porque simplesmente eu dar aula, e ao mesmo eu como professor não valorizar ou não entender que aquele conhecimento é paiter, que aquele conhecimento

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é daquele aluno, que aquele aluno é paiter... se eu não levar em consideração, eu vou estar realmente tirando, vamos dizer, uma fase do conhecimento paiter daquela criança. Então, eu preciso, como professor, mostrar esse lado para eles também. Então, com certeza, a matemática ocidental vai estar em todo lugar... então, para eles conhecerem que existe esse conhecimento, mas de outra forma, de outro modelo, de outra maneira de fazer... o aluno tem que pelo menos saber disso. Então, a minha preocupação é nesse sentido. Acho que todo conhecimento é válido. A matemática paiter, ela tem que ser ensinada na escola. 04) Como você avalia que está ocorrendo a aprendizagem desses conhecimentos tradicionais pelos seus alunos? Suas aulas estão atingindo os resultados que você esperava? Eu avalio, assim, de primeira mão, professor... parece que, naquele conhecimento ali, quando eu vou dar aula para os alunos, mesmo que eles não entendam muito bem... não entendam muito bem no sentido assim... que não tiveram contato realmente com aquele conhecimento... mas eu percebo que aquilo é natural para eles. O contato que eles vão ter na hora da aula, parece que aquilo é uma coisa normal para eles, uma coisa natural. Eles recebem com tanta facilidade aquilo, entendem. Então, na hora que eu explico, eles relacionam com várias coisas: “Ah, professor, é mesmo, a gente foi com a minha mãe, e a gente fez isso, tal e tal”. E, nas histórias que eles vão contando, eu percebo que eles vão contando as histórias, assim, do cotidiano deles, mas eles não percebem totalmente o que a gente está explicando ali. Então, quer dizer, acontece tão naturalmente no cotidiano deles... mas o que precisa é fazer o seguinte... sistematizar, mostrar isso para eles: “Essa é a matemática paiter. É assim que é a matemática paiter”. Então, nessa avaliação, eu vejo que, se é uma coisa natural para eles, essa sistematização de conhecimentos matemáticos paiter valeria muito, nesse sentido, na aprendizagem das crianças. Porque eu vejo que há essa facilidade de aprender... uma coisa natural... sistematizar de alguma forma, de uma metodologia mais prática, mais assim... para sala de aula. Eles aprendem muito mais do que realmente simplesmente praticar. Então, a minha avaliação é a seguinte... falta é sistematizar esses conhecimentos e mostrar realmente para eles assim na sala de aula ou nas práticas cotidianas. Porque eu vi, eu percebi que eles vivem isso, essa prática, mas eles não sabem ainda. 05) Na entrevista anterior, você mencionou a existência de uma relação entre os conhecimentos tradicionais e a identidade cultural paiter. Você poderia detalhar, segundo seu ponto de vista, que relação o ensino de matemática na aldeia pode ter com a identidade cultural das novas gerações de paiter? Conhecimento tradicional... eu procuraria outro nome [risos]. Acho que tradicional está relacionado a mais velho [risos]. Eu simplesmente diria conhecimento paiter... não conhecimento tradicional paiter. Ou, para eu me referir a uma época ou outra, eu poderia dizer o conhecimento paiter antes do contato, vamos supor. Sinceramente, professor, eu não gosto desse nome, de conhecimento tradicional paiter. Eu fico meio perdido aí. Mas a matemática paiter, ela tem um valor, um significado. E, ao longo da pesquisa que a gente conversou, a gente discutiu, em lugares onde a gente vai se encontrando... a gente vai discutindo, né professor, não realmente na matemática, mas no sentido geral, e a gente vai percebendo que uma coisa se liga a outra. E o que eu achei importante nesse sentido é que a matemática paiter não se resume somente a contar, distâncias... porque ela está inserida de pensamento, de pensamento filosófico, sociológico... vamos supor que até espiritual. Então, quer dizer, esses elementos fazem com que não seja somente um conhecimento que

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eu poderia “Ah, conhecimento matemático paiter. Mas isso não vai fazer diferença no mundo em que hoje a gente está. Então deixa para lá”. Mas, se a gente for pensar em outra perspectiva, a gente vai pensar desse jeito: “É um conhecimento a partir do filosófico, do sociológico, do espiritual”... todos esses relacionamentos. E não há como um paiter dizer: “Ah, esse conhecimento para mim não serve”. Ele pode ignorar ele aprender, mas em algum momento, com certeza, ele vai praticar aquele saber, porque ele é paiter. Ele pode até pensar que ele não vai praticar aquilo, porque aquela matemática paiter não vai servir no mundo que a gente hoje está, no mundo “moderno”. De alguma forma, ele vai usar aquele conhecimento sem ele perceber. Basta ele estar em um espaço que dá a possibilidade de ele falar, de ele pensar aquilo filosoficamente, de ele pensar aquilo... ele vai chegar na roça dele, conversar com um irmão, alguém, alguém... ele vai falar. Como eu vou ignorar esse conhecimento, se automaticamente, naturalmente eu vou estar praticando isto? O que falta é entender como a gente tem que lidar com isso. E, a questão do mundo cultural paiter ser inserido no mundo... “moderno”, né professor [risos]... aí eu percebo que, em nenhum momento, eu tenho que ignorar um conhecimento, principalmente alguma coisa que é advinda de mim. Todos eles vão servir de serventia... paiter e o conhecimento não paiter. Por quê? Se ele ignorar aquele conhecimento paiter, ele pode ignorar pessoalmente... falar “Eu não vou mais falar essas coisas de paiter porque não servem para nada”. Mas ele ser paiter, o subconsciente, o que é carregado dele de paiter, vai fazer com que ele pratique aquilo. Então, não é uma coisa que não tenha ligação uma com a outra. O que basta é você entender que você tem que saber realmente como... como não ignorar um conhecimento ou outro. 06) Você vê nisso uma relação dos conhecimentos com a identidade? Sim. Principalmente nisso, professor. Porque, vamos supor... um paiter faz matemática, ou física, ou química, ou qualquer engenharia. Ele vai se dar com a matemática, a matemática não paiter. E, nessa questão, ele vai ver que há a possibilidade de fazer tanta coisa com a matemática ensinada para ele, que ele vai achar em algum momento que aquilo não vale para ele, a matemática paiter. Quer dizer, ele vai sofrer uma pressão sem ele perceber. Se você adquire um conhecimento, e o que você conhece já não vale nada para você, não há porque você buscar aquilo. Por exemplo, se eu simplesmente for um grande matemático, que domina toda a matemática não paiter... por eu ser paiter, quando eu chegar lá com a minha vó e perguntar: “Vó, que você está fazendo aí?” E ela vai falar para mim: “Niti ar [verificar escrita na língua]”. Quer dizer, aquilo que ela vai dizer ali para mim são conhecimentos matemáticos paiter no sentido geométrico, e não vai ter como eu fugir dessas coisas. Então, o que falta entender mesmo é que são vários conhecimentos que precisam ser dialogados, principalmente quando é advindo de você... você tem que se dar conta de que você vai ter que usar. Então, professor, na questão da identidade, essas coisas para mim... assim... por exemplo... às vezes para mim é até meio estranho falar isso, porque... eu não aprendi a fazer casa... maloca... maloca tradicional paiter. Eu não aprendi a fazer aquelas flechas trabalhadas, com pelo de porcão. Eu não aprendi a fazer aqueles lindos cocares... mas eu me surpreendo, eu fico admirado com quem faz. Até onde vai o raciocínio ou a lógica da pessoa para fazer aquilo? E aí uma pessoa vai dizer que o conhecimento paiter em relação à matemática, geometria, tamanhos, formas, não vale? Como assim? Então, são pensamentos que a gente tem que refletir para dizer que... aí, uma coisa que eu tenho percebido é o seguinte, professor... Por que eu não aprendi? Eu tenho grande vontade de aprender um dia, pelo menos fazer... pelo menos saber a lógica de construir a maloca. Meu pai sabe. Ele é um grande... como se fala?... engenheiro civil. Meu pai, ele sabe fazer. E eu não sei fazer. Aí, a grande reflexão que eu trago é... todo esse

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conhecimento que meu pai tem, em relação à matemática paiter, eu não tenho, mas posso ir lá conversar com ele. Vontade de fazer uma casa, eu tenho. Vontade de fazer um cocar, uma flecha, eu tenho. Mas, por que isso eu não aprendi? Será que, simplesmente, por eu ignorar? Não. Porque o mundo em que a gente está hoje nos coloca numa situação em que a gente tem que escolher entre praticar uma coisa que é nossa, escolher aquilo que é nosso, ou escolher tentar sobreviver em um mundo, onde a gente sofre pressão... e para a gente viver naquele mundo, a gente tem que se apropriar de algumas coisas que são do outro mundo para conseguir sobreviver. Você não imagina... Você pensa que eu estou aqui, mas que eu não queria estar na aldeia fazendo a minha casa, flecha? Eu tenho que estar na universidade agora para que eu consiga sobreviver pelo menos. E aí, muitos brancos falam assim: “Olha o índio aí, dando uma de estudar. Eles podiam estar na floresta, pescando”. E quem não queria estar? Isso a gente poderia estar fazendo se ninguém perturbasse a gente. Então, no mundo onde a situação nos coloca, a gente tem que se apropriar de outras coisas para fazer, para conseguir pelo menos estar ali... e nesse contexto, o conhecimento paiter, ele vai se perdendo, professor... Até então, os povos indígenas, de uma maneira, assim, mais superficial, entendiam que a escola era um grande vilão das culturas dos povos indígenas... meio superficial assim... eles querem, eles sabem que a escola é um grande aliado, mas superficialmente eles falam: “Não, é vilão”. Mas quem vai colocar que essa escola seja o maior aliado são pessoas que estão aqui na universidade estudando hoje. 07) É interessante esse movimento que você consegue fazer, de olhar de maneira crítica para o mundo em que você vive, a posição que você ocupa nesse mundo, essa sua reflexão crítica. Foi o senhor LP1 que me fez essa reflexão um dia. Aí eu comecei a pensar sobre isso. 08) Seu pai? [Risos] É. Até então, professor, ele era... eu fico pensando até hoje... até um certo tempo, o maior desejo dele era que eu casasse. Lá pelos dezesseis anos, já era para eu ter uma ideia: “E aí, cara, você não vai casar não? Está passando da época, aí” [risos]. Até um certo tempo, ele veio assim, né. Mas, depois do 500 Anos, que ele foi participar do 500 Anos, a mentalidade dele mudou totalmente. E aí ele percebeu que, para... ele falou para mim que, do jeito que a gente está aqui, não é necessário... não, necessário não... não é... esqueci a palavra... a palavra está em paiter, mas eu estou procurando em português [risos]. Quer dizer, ele foi para lá e percebeu que simplesmente eu estar na aldeia, casado, isso não ia contribuir muito, tanto para mim quanto para meus filhos, para ele, e para meu povo no contexto geral... Ele veio de lá no outro ano, porque era quase no final do ano... no outro ano ele falou: “Não, você tem que continuar a estudar”. Aí eu até estranhei, né. Como é que meu pai está querendo que eu estude? Aí ele falou para mim: “Não, se simplesmente você viver aqui na aldeia, isso não vai dar para você entender como funcionam as coisas no contexto geral, tanto aqui na nossa vida quanto lá fora. Mas eu digo para você: você tem que me ouvir aqui, conversar comigo sempre, não desgrudar das suas raízes, não abandonar o que sou eu”... estou usando as palavras dele, tá, professor... “não abandonar o que sou eu aqui e simplesmente você achar que sabe mais do que eu e deixar as coisas daqui. Porque, não vai ser o seu mundo. O seu mundo está aqui. Você precisa só adquirir outro conhecimento para continuar a viver em seu mundo”. E aí, daquela vez, eu nunca mais pensei em simplesmente estudar. Acho que a gente... acho que ele, em outras palavras, falou que eu tinha um missão. Não somente... acho que todas as pessoas têm, inclusive os alunos do Intercultural. Mas eu acho que ninguém teve a oportunidade de

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dizer essas palavras que meu pai disse para todos eles. Mas, com certeza, cada um que está aqui tem essa missão atualmente. 09) Muito bom. O LP1 tem umas sacadas, assim, realmente excepcionais. É um filósofo, poderia se dizer, né. Então, dando continuidade ao meu roteiro aqui... Eu pude observar nas suas aulas, assim como nas aulas de outros professores paiter, a relação professor aluno. Geralmente, os alunos na aldeia tem um comportamento diferente daquele dos alunos na cidade... a relação professor-aluno, a relação aluno-aluno. Eu observei que, na sua aula, você não estabelece um controle direto sobre aquilo que o aluno está fazendo, no sentido de ir lá na carteira, ver se o aluno está escrevendo, fazendo a atividade, como geralmente os professores não indígenas costumam fazer. Aparentemente, seus alunos têm uma liberdade para fazer suas atividades, observar o que o professor está falando ou fazendo, entrar e sair da sala. A minha pergunta é: Por que a relação professor aluno na aldeia se dá dessa forma? [Risos] Eu também não tinha percebido isso não. Mas é fácil de explicar [risos]. Professor, é até estranho para a gente... assim... a maneira como a gente vai tratar as pessoas, né. E, a gente ali, eu vejo aqueles alunos ali, mesmo que sejam crianças ali... aquela faixa de onze a treze anos... pré-adolescentes... a minha relação com eles é de respeito. Eu não sou nenhum professor que sabe tudo, e nem o pai deles ali. Eu sou somente um intermediador do que a gente pensa que eles precisam conhecer. E o que eu estou ensinando para eles pode não ser também o que eles querem aprender ou... da maneira que eu estou ensinando para eles, que eu penso em ensinar para eles, não é a maneira que eles vão querer também. Então, vamos fazer o espaço da sala de aula no cotidiano mais perto possível da nossa casa... como a gente estaria em casa. E daí, eu não vou tomar uma certa rigidez “Não, faça isso, tal, tal”. Eu tenho que tomar a liberdade de deixar ele ali, mas até um certo ponto. No sentido da escola, se ele não produzir, eu vou ter que perceber isso a um determinado tempo... em um determinado tempo, vamos supor, uma semana. Se eu ver que ele não produziu, agora como professor, o que eu queria que ele tivesse adquirido, fazendo já... se ele não produzir, aí eu falo com ele “Nosso objetivo é isso, tal, tal, você não está conseguindo”. Mas não numa rigidez de sala de aula, sempre ali. Eu vou até um certo tempo e, ao perceber que não está rendendo, aí eu converso com eles. Para quê? Para que não percebam ali eu como um cara sabedor... para eles vai ser ruim, porque talvez eles podem me ignorar “Pô, o cara está querendo me ensinar, tal”. Eu tento ser o cara mais adolescente possível, mas com a intenção de passar algumas informações para eles, para eles pegarem também. Então, é um convívio ali realmente de amigos. 10) E essa atitude do professor paiter de não interferir no que a criança está fazendo? Parece que em sala a criança tem uma autonomia para fazer o que ela tem vontade, inclusive para entrar e sair da sala sem a necessidade de autorização do professor. Como você explica isso? Então. Primeiro, é que a gente está em um ambiente em que ninguém está ali preso. Ali, a pessoa vai querer... principalmente criança... a gente entende essa questão... principalmente criança, ela vai querer tomar um arzinho, porque ali é sala, né. Ela vai querer ir ao banheiro. Ela vai querer olhar fora, se tem um amigo que não está na sala. Ela vai querer conversar com ele lá. Simplesmente ela vai querer sair. Se ela não atrapalhar a aula, tudo bem. Mas essa forma de... vamos supor... “Ninguém sai até a hora do intervalo”. Talvez isso mexa com a cabeça deles também. É ruim para eles. Então, a gente ensina para eles, explica para eles que a sala está ali, aberta, mas que a gente tem que ter um rendimento na

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sala, na aprendizagem, e assim buscar mais ainda compreender as coisas... sem prejudicar a aula e os demais. Nesse sentido, está livre, ninguém está preso. Quer dizer, você tem que fazer da sala de aula um lugar mais... que termine a hora da aula que eles querem permanecer ali. Então, no jeito de prender eles ali, não vão ver a hora de ir embora e vão querer sair da sala. Então, eu particularmente tento fazer da sala de aula um lugar de se aprender e de ensinar, mas um espaço em que ninguém quer sair dali, simplesmente querem sempre aprender ali. 11) Sua formação escolar e acadêmica se deu principalmente com professores não indígenas. Tive a oportunidade de estudar sua trajetória a partir das informações que você forneceu no questionário de caracterização e em nossas conversas cotidianas. Então, sua formação escolar se deu basicamente com professores não indígenas, em escolas fora do seu território, tanto na educação básica como no ensino superior. Você iniciou um curso de direito e agora está na licenciatura. Certamente, nesses espaços estranhos à cultura tradicional de seu povo, você teve poucas oportunidades de observar exemplos de educação diferenciada ou intercultural. Então, a probabilidade era grande de você reproduzir em sua prática pedagógica o mesmo modelo de educação da escola não indígena. No entanto, minhas observações permitem dizer o contrário. Percebo você procurando fazer diferente, inclusive liderando o movimento por uma educação escolar indígena diferenciada. De onde você tira suas motivações para procurar fazer diferente? Por que você faz assim? Realmente... eu fiz até a quarta série na escola indígena, mas com professores não indígenas. Aos onze anos, saí da aldeia para estudar fora. Estou estudando fora até hoje [risos]. Mas, realmente, né professor... eu não tinha parado para pensar nisso. Mas, como falei anteriormente, eu tinha outro pensamento, e a minha prática como professor indígena hoje... e eu percebo que com outros professores... é totalmente diferente do que com o que eu convivi na escola não indígena. E aí, eu poderia ter muita chance de reproduzir tudo aquilo que eu convivi. Mas, eu não sei o que deu em mim para... mas, a grande contribuição mesmo, eu vejo que foi essa aproximação que eu tenho com meu pai. E a percepção dele em relação à cultura, conhecimento, pensamento paiter é muito forte. E é difícil a gente conversar esses temas assim, mais filosóficos paiter com meu pai, mas quando ele senta para falar ele fala mesmo. Eu não sei qual é a estratégia dele, acho que ele tem toda uma metodologia de ensinar a pessoa, que eu tenho que descobrir. Porque, toda a formação que eu tive não tem nada a ver com o pensamento que eu levo hoje. Então, todas essas coisas são advindas do meu pai. Essa questão de eu ser uma pessoa diferente, mas que ao mesmo tempo eu tenho que conviver em um espaço que não é meu... que eu tenho que passar a conviver daquela forma... mas, realmente, as coisas não são assim... Uma das coisas que ele falou para mim, e uma vez repetiu para o meu irmão, porque meu irmão tinha... meu irmão, não, meu primo... ele tinha pintado o cabelo, feito aquele cabelo de Neymar... daí ele falou “Ah, por que você está querendo fazer isso? Aquele cara é artista, aquele cara é artista. Em todo lugar que ele vai, ele é bem vindo. Mas vai com esse cabelo aí na rua... O primeiro não indígena, o primeiro branco que te achar estranho e ver isso feio em você, ele vai querer te bater, porque você não é nenhum artista, você não é nenhum artista. Você tentar ser outro, sendo diferente, você nunca vai conseguir. O que você tem que ser é você ser você mesmo. Só que você entender aquele outro”. 12) Palavras de LP1?

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É, ele falando com meu irmão... para o meu primo... para nós é irmão... estou falando na linguagem do branco. E a mesma coisa ele tinha falado para mim uma vez. E aí, quer dizer, todas essas falas, as conversas dele, as atitudes dele como líder, me fizeram me espelhar nele próprio. Eu me lembro até de uma música dos Racionais... como ele fala?... “A gente se espelha em quem está mais perto” [risos]. Aí, ouvindo essas músicas, e até algumas reflexões que eu tenho em alguns momentos da minha vida, me faz pensar nisso, professor. Acho que eu me espelho nele, sem eu saber mesmo, assim... E, assim... Eu tinha muita chance mesmo de eu não ser o que eu sou hoje, se eu não tivesse essa interferência dele, essa interferência oculta dele [risos]. Mas, assim, professor, ele é um grande batalhador nessa questão. Eu acho que eu me espelhei nele. Eu acho que é isso [risos]. 13) Atualmente você coordena a Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso – OPIRON. Em que medida o movimento dos professores indígenas tem conseguido mudanças na organização da educação escolar indígena na região? Quais têm sido os principais desafios e as principais conquistas do movimento dos professores indígenas? Voltando àquela pergunta anterior, àquela questão anterior, professor... que eu poderia ser outra pessoa... para mim, nesse sentido, isso foi muito rápido, a minha inserção na questão da educação escolar indígena. Porque, em dois mil e doze, eu me tornei professor, tem pouco tempo. E aí, ano passado, dois mil e treze... vai fazer um ano que estou na coordenação da OPIRON. São mudanças muito rápidas na minha vida. E, assim, para uma pessoa que nunca esteve nessas discussões assim... eu acredito que estou me inserindo bem na questão. Anteriormente, eu já participava do movimento da juventude, fiquei dois anos na CNPI como representante nacional. Isso me fez ter uma visão muito ampla, muito mais ampla do que pensar simplesmente no Estado... Quer dizer, eu já tinha uma visão ampla, uma visão maior, e isso me fez muito... me ajudou muito. E os grandes desafios, professor... que é de modo geral, sempre... é a autonomia mesmo dos povos indígenas. E a gente tem que pensar que autonomia que é, como é mesmo que essa autonomia se dá. Vamos pensar aqui na questão da educação. Se tem várias leis aí, várias normas aí em relação à educação escolar indígena... mas se percebe que não há nenhuma implementação na prática, dessas leis. Existe todo um aparato normativo e legal para que se tenha essa escola específica e diferenciada de cada povo. Mas, o que realmente precisa é formar profissionais. Uma liderança indígena não vai ser a pessoa adequada. Quem vai ser, para que aconteça isso realmente, são os próprios professores, os professores que vão fazer graduação, mestrado, doutorado. Porque, nesse mundo, é isso que importa. Se você não tiver isso, não consegue. O grande desafio hoje para que se tenha essa educação escolar indígena específica e diferenciada no estado de Rondônia é a formação dos professores. Formação de professores... tem a lei aí... a OPIRON indica as coordenações do núcleo em Porto Velho. Tem o Conselho de Educação de Rondônia. Então, se os professores indígenas atuarem em todos os cantos, em todos os conselhos, e discutirem isso, aí vai começar a mudança. Enquanto um não indígena pensar para o indígena a questão de [educação] diferenciada e específica, nunca vai acontecer essa coisa de educação diferenciada e específica. Ele pode ser até o maior teórico da questão, mas, mesmo assim, um não indígena não vai conseguir. E aí, o grande desafio, a médio e longo prazo, é a formação dos professores, para discutir isso, para discutir em todos os cantos... e fazer a diferença nas escolas a partir daí. A gente imagina que, professor, vamos supor... a gente se formando e todo mundo vai para a sala de aula... todo mundo vai para a sala de aula... mas quem normatiza, mas quem decide, mas quem decide o que fazer e como fazer são todos os conselhos, secretarias, secretários e governos. Se a gente for pensar nesse contexto, nunca

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vai acontecer [educação] diferenciada e específica. E aí, o grande desafio é esse, formar professores paiter, oro nao, zoró, gavião. E a grande conquista... a gente teve algumas conquistas significativas. Simplesmente os professores estarem contratados, dando aula... a gente tem que ter essa avaliação, que é uma grande conquista. E a gente está prevendo agora o concurso público indígena... vai ser uma grande conquista também. Porque existe, professor... professor com vinte e cinco anos de carreira... porque já tem uma carreira... mas se o cara for demitido hoje, ele vai embora só com o último salário dele. Aí, como a gente pode imaginar um professor que trabalha a vida inteira e não tem mais direito a nada quando vai embora? Esse é o grande desafio também de a gente conseguir para que esses professores tenham garantia trabalhista. Porque são profissionais, né, como qualquer outro. São profissionais como qualquer um. E os outros grandes desafios são trabalhar essa concepção de um modelo de escola para cada etnia, as etnias discutirem isso... e outro mais criminoso ainda... desculpa a expressão na sua entrevista aí, professor... outro mais criminoso ainda por parte do governo... é a questão da construção das escolas, e também... e onde tiver indígenas, ter a escola de ensino fundamental a ensino médio. A gente tem hoje um grande número de alunos indígenas querendo fazer o ensino médio, mas não há uma escola de ensino médio nas aldeias, e também não há como eles terminarem esse ensino médio nas cidades. Então, por parte do governo hoje, isso é um grande crime. O governo sabe disso. Cidadãos brasileiros ali, não tendo onde estudar, um direito garantido. E aí se vai perceber que são grandes desafios aí pela frente que têm que... e, como eu falei, só vai ser mudado quando os professores indígenas tomarem a frente dessas coisas. 14) Atualmente, existe espaço e motivação na OPIRON para se discutir, além de políticas públicas gerais de educação, práticas pedagógicas, currículo e temas mais específicos da educação escolar indígena, mais relacionados ao fazer cotidiano dentro das escolas, tais como formas de planejamento, conteúdos específicos, formas de avaliação, práticas interculturais? Então... de eu tomar conhecimento sobre isso, eu não tenho, até onde eu sei. E desde quando eu estou atuando, não tivemos nenhuma discussão sobre isso. A gente tem mais conversas assim nas CREs, sobre isso... como está sendo, os professores falando de suas experiências. Mas, assim, uma discussão mais específica dentro da OPIRON não tem. Estamos planejando agora, daqui para frente, fazer seminários para discutir todas essas questões. Uma ou duas vezes por ano, para a gente discutir todo o campo da educação escolar indígena, desde as questões políticas, práticas pedagógicas, avaliações, ensino. Então, discutir em todos os campos. E aí, acredito que é possível a gente encontrar potenciais pessoas que têm essa habilidade. E a OPIRON tem que encontrar essas pessoas. Só discutindo, só percebendo no movimento é que a gente vai descobrindo essas pessoas. E como não há esses encontros, não há como a gente descobrir essas pessoas. Aí, vai ser o grande diferencial se a gente fizer esses seminários. Vamos supor que o cara que discute as políticas pode ser um oro nao. O cara que discute as práticas pedagógicas pode ser um gavião, um karitiana. Essas experiências são fundamentais para que os outros percebam e construam também. São experiências de professores indígenas que vão fazer com que outros também façam. Nessa perspectiva, os encontros serão fundamentais também nessa questão, nesses debates... tornar-se em um espaço de formação, onde você vai refletir, discutir sobre a sua prática. Onde você vai dizer o que você pensa, para que esse pensamento, essa ideia, se torne uma coisa mais concreta. 15) Voltando à questão dos mais velhos, é comum os professores paiter apontarem os mais velhos, os curubey, como referências para a inclusão dos conhecimentos

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tradicionais na escola. Na prática, quais são as principais dificuldades para isso acontecer? Por que os velhos participam diretamente tão pouco da educação escolar na aldeia? Sabe o que eu percebi, professor? Primeiro, não há esse costume dos mais velhos ensinarem do jeito que se ensina na escola: “Hei, vai ter aula hoje! Tal hora todo mundo tem que estar lá! Para ensinar tal coisa e tal coisa!”. Eu percebi isso, experiência própria. O que se tem de costume... o que eles estão acostumados é o seguinte... tradição paiter. O que eu percebi, como são ensinadas as coisas, eu percebi o seguinte, professor... ninguém vai chamar alguém para aprender. “Hei, vem aprender isso aqui! Vou te ensinar!”. Simplesmente, os mais velhos vão fazendo... eu já conversei sobre isso com meus tios, e eles me ensinaram como que se aprendia... e o mais interessado fica ali, percebe ali, vai fazendo igual o mais velho está fazendo. Se há uma dúvida, pergunta. Ele só vai falar para você... se precisa de ajuda, ele vai fazer. Mas, em nenhum momento ele vai dizer é assim, é assim, é assim. Você vai aprender ali com ele. Se o mais velho tiver que sair agora, ele vai sair, vai deixar você aí. Mas você já vai saber como ele estava fazendo. Várias tentativas você vai fazer. Por isso que meu pai fala: “Os não indígenas falam assim: ‘Os mais velhos sabem’”. Aí ele fala: “Nem todos os mais velhos sabem”. Olha só, é em primeira mão essa conversa, professor, do meu pai. Eu não sei se ele já conversou com você sobre isso... acho que uma vez ele conversou... acho que naquela primeira visita. Mas vou reforçar de novo. Eu me lembro muito bem que ele falou para você. Ele fala: “Os brancos falam assim: “Ah, o mais velho! A gente tem que valorizar o mais velho!”. Aí ele fala: “Nem todo mais velho que está na aldeia sabe de tudo, porque nem toda criança vai aprender. Só vai aprender o mais interessado. E o desinteressado não vai aprender. Mas esses dois vão ficar velhos. A diferença é que um aprendeu e o outro não. Aí, você vai saber diferenciar dentro da comunidade quem é o mais velho sabedor e quem é o mais velho que não aprendeu na vida”. Então, é assim que se aprende, professor, naturalmente... vai aprendendo. E esse costume vem com eles. É chato chamar eles: “Vamos para a sala de aula ensinar alguém”. É chato para eles. Eu percebi isso uma vez. E outra questão, a segunda questão, é a questão do financeiro hoje, o sistema capitalista... faz o mais velho pensar duas ou três vezes antes de fazer isso. Tem um que vai com convicção de ensinar aos alunos para que não percam o que ele aprendeu, porque ele percebe que é importante. Mas, no geral, uma coisa que prende eles é a questão financeira. “Ah, eu preciso ir na minha roça, ou caçar! Eu vou ter que ensinar! Será que eu vou lá? Onde que eu vou?”. Então, são essas duas coisas. Uma bem tradicional, e outra bem da inserção do capitalismo. Então, eu percebi essas duas coisas. Por isso que é difícil levar eles para dentro da sala de aula. Mas tem uns que vão com a convicção de ensinar as crianças. Mas, se for para ser todo dia, ele não vai. Ele pode ir uma vez por mês. Não chega a se estabelecer uma rotina assim. Mas o que seria interessante, professor, é se a gente pensasse numa metodologia... onde o mais velho estivesse ali, fazendo o que ele estiver fazendo, artesanato dele, ou caçada... de alguma forma, a gente buscar um meio de acompanhar ele, como se fosse no cotidiano, anteriormente. Eu andei muito com meu pai quando eu era criança, na mata. Andei, andei, andei. E eu sei bastante coisa... andar na mata. Eu sei dos passarinhos... eu sei um sinal de grilo, de gafanhoto, de passarinho... quando estão marcando horas. A gente vai percebendo: “Ah, é tal hora, tal hora”, porque meu pai ensinou para mim. Então, cada passarinho... tem espécie de passarinho que vai cantando de hora em hora. Um canta agora, e outro canta, e o outro que cantou na outra hora não vai... e é impressionante, professor, como eles batem igualzinho com o relógio. Você pode usar o relógio assim... você vai tal hora e algum pássaro canta. “Ah, são três horas”. Então, são conhecimentos que a gente tem que buscar uma metodologia para que a gente possa aproveitar esses momentos. Não

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aquela galera, ir todos os alunos... mas vamos uma vez por aluno, talvez... você vai acompanhar tal, tal, tal. Então, são coisas que a gente precisa realmente buscar como a gente aprender com os mais velhos de uma maneira... da maneira deles. É isso. 16) Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O que o povo Paiter espera da escola na aldeia? A escola hoje, professor, acho que ela tem uma função bem diferente, pensada pelo povo Paiter, do que eles pensavam antes. Porque o papel da escola nas comunidades paiter tinha uma função de você aprender... vamos supor... de você aprender as coisas do branco, as coisas do não indígena. Você fazer com que a escola... quer dizer, a FUNAI colocou uma escola dentro das comunidades paiter, mas no sentido de que os paiter começassem a aprender a falar português, fazer as coisas que não eram do paiter. E, ao mesmo tempo, os paiter perceberam que isso realmente tem que ser assim... que eu preciso aprender para me dar bem fora... eles pensaram mesmo que eles precisavam aprender aquilo. Mas hoje, atualmente, já tem uma controvérsia em relação a isso. A escola hoje tem um papel de que você não precisa somente aprender aquilo que a escola está passando para você. Você tem que colocar os elementos da sua cultura dentro da escola para você aprender, e também os elementos que são de fora. Então, quer dizer, antes, como paiter, você pensava em aprender tudo o que a escola te ensinava. Agora, você tem que... hoje o pensamento, visto pelos paiter, é que você tem que colocar dentro da escola o que é próprio do paiter... e o que ela tem que trazer também de fora. Já tem outro pensamento, em relação ao anterior. A gente vai perceber três fases, no caso. Primeiro, na inserção da escola pela FUNAI, somente para aprender português, a falar português, matemática, para que você fosse igual ao branco. A outra concepção, a segunda, é um pouquinho diferente... só na questão de você não... como é falado muito pelos indígenas, “não ser passado para trás” [risos]... essa concepção de que você tem que aprender aquilo, para que você não se deixe passar para trás, porque você já tem um domínio daquilo que você tem de português, matemática e tal. E a terceira, talvez... a gente tem que pensar um pouco qual é a diferença um do outro... mas vamos supor que a terceira é a que você... que os paiter tem o elemento... o papel da escola assim... ela não tem que carregar somente conteúdo não indígena. Tem que inserir também conteúdo paiter, conhecimento paiter, para que seja ensinado esse conhecimento paiter, e também o que ela traz consigo. Então, hoje, o papel da escola visto pelos paiter é de fortalecimento da identidade, de conhecer realmente esses dois mundos. 17) Eu pude observar, em diferentes comunidades paiter que, mesmo tendo a escola na aldeia, algumas famílias matriculam seus filhos em escolas fora do território, ou mesmo na cidade. Tanto é que, às vezes, o ônibus escolar vai até a aldeia buscar as crianças, os alunos, para levar para a escola rural, a escola polo. Como você entende a decisão de algumas famílias paiter matricularem seus filhos em escolas urbanas ou rurais, fora de seu território, tirando-os da escola na aldeia? É um fato muito triste, pessoalmente para mim. Porque, a grande conquista hoje, dos paiter, é manter a escola, mas nessa mesma escola que trás coisas de fora, que sejam ensinadas coisas da cultura também. E quando um pai pensa em levar, tirar o filho daquela escola que está com essa intenção de ensinar duas coisas aqui, a concepção do pai é que o filho, aprendendo, estar matriculado fora da escola da aldeia, ele vai estar aprendendo mais coisas. Essa é a concepção que eles têm... que ele vai conseguir mais coisas, que ele vai aprender mais coisas, que ele vai se sair melhor do que aquelas crianças que vão estar estudando na escola indígena. Então, quer dizer, para mim é um equívoco muito grande,

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porque não há uma reflexão dentro das aldeias, mais especificamente nesta questão. Algumas aldeias têm... principalmente nossa aldeia. A gente tem refletido muito sobre isso. Se tem uma escola dentro da aldeia, qual é o motivo do pai tirar... vamos supor... do berço que ela está ali, para colocar em outro mundo? Porque, para a criança paiter, simplesmente de ela estar falando paiter e, de repente, ela estar em um lugar onde todo mundo está falando outra língua, é um choque muito grande. E como é que você vai aprender... como é que você vai pensar que seu filho vai se dar bem? Pode se dar bem, talvez... pode não. Esse é o motivo dos pais tirarem seus filhos da escola, com o pensamento de que vai ser melhor para eles, que vai ser melhor do que os alunos que estão na aldeia, e que o branco, o professor não indígena, vai ensinar melhor para eles. 18) Então, existe a escola na aldeia, existe esse fato que você menciona como sendo um fato triste, no seu ponto de vista, de algumas famílias colocarem os filhos para estudar em escolas fora do território, em outro mundo, como você diz. Aí, eu volto a insistir em uma questão, apesar de você já ter explicado muito bem, que tem a ver com esse fato. É o seguinte: Que relação você estabelece entre a educação escolar oferecida atualmente na aldeia e a identidade cultural das novas gerações do povo Paiter? Primeiro, é que... a escola que ensina... a escola que se tem hoje dentro dos paiter, ela traz consigo hoje, mesmo que seja pouco significativo, alguns elementos da cultura. Simplesmente de o professor ser indígena, é um elemento significativo, na concepção nossa, de que aquilo é uma escola paiter. Então, isso influencia também, de uma certa forma, a um aluno paiter se identificar com a escola... se identificar: “Eu tenho um professor que é paiter”. Então, esse elemento é fundamental... Claro que faltam mais coisas ainda, como o que ensinar dentro da escola, materiais para o ensino, materiais paiter... E a questão de você ser um professor paiter, acho que é um grande diferencial eu também pensar como um professor... Qual é o meu reflexo para os alunos? O que eles pensam de mim? Qual é minha atuação, e qual é a conclusão que meus alunos têm de mim? Talvez eu tenha que exercer uma função, não somente como profissional, mas eu também tenho que pensar no social, cultural... que é diferente de um pai que simplesmente pensa: “Vou colocar meu filho em uma escola não indígena”, sem essa reflexão. Uma das coisas que eles falam é que eles vão aprender mais... Com certeza, podem aprender mais coisas. Mas, talvez não vão ter a chance de ter... de ter esse momento que eu tive... mesmo estudando fora da aldeia, voltar para as comunidades. Quer dizer, você tem uma porcentagem, um percentual, uma probabilidade de que aquele aluno talvez não possa voltar para a aldeia. Então, isso pode parecer normal ou tranquilo. Mas, para nossa concepção de ser paiter, simplesmente [o fato] de uma pessoa sair do berço familiar e tentar aprender outra coisa, somente por pensar que vai ser melhor para ela... a gente percebe, como paiter, que não é legal. Não é legal no sentido de não aceitar... de dizer que não aceitamos isso, mas, pelo contrário... a gente sabe que a gente precisa conhecer mais fora da escola. Mas o momento não é esse. Talvez o momento seria de pessoas que já estão mais habituadas a viver com os pais... já vai ter outra mentalidade. Agora, simplesmente [o fato] de eu tirar... vamos supor, o Natan. O Natan, com quatro anos... tem crianças com quatro anos que estudam na escola rural. Aí, eu pensar um futuro para ele, a partir da minha comunidade... eu pensar um futuro para ele a partir do povo... como pai, eu posso ter esse pensamento. Mas o que ele vai aprender, no lugar onde ele vai estar, não vai ensinar a ele com essa concepção. Então, simplesmente [o fato] de o professor ser indígena, dentro de uma escola indígena, é um diferencial muito grande.

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19) Até agora, a gente falou basicamente da escola. Que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Hoje a gente tem vários lugares que podem tanto fortalecer quanto tirar também. Temos escola na aldeia, que pode tanto fortalecer quanto tirar. Temos convívios em reuniões, discussões, que também podem valer para os mais jovens tirarem uma reflexão, uma conclusão do que realmente é ser indígena: “Em que mundo estou, onde estou, em que possibilidade eu estou aqui”. Essas reflexões, elas têm que ser causadas com sabedoria, professor... no sentido de... assim... sabedoria... você tem que mostrar para o jovem que, ao longo da história, o convívio paiter, ele sofreu mudança com o contato com outras etnias. Mas você tem que diferenciar essas mudanças com o contato com a sociedade não indígena. Às vezes a gente tem discutido muito sobre isso, mas acaba não se alcançando o ponto que tem que ser alcançado daquilo que é realmente o que acontece, é o que a gente sente como indígena. Eu, indígena, professor, jovem... tenho que saber hoje... saber hoje que aquela terra que está onde ele está, a família dele está, os filhos dele vão estar, não é de garantia dele. Há uma coisa que a gente fala, o nosso povo fala, que a gente vive no mundo, mas não entendemos para onde vai realmente aquilo que a gente quer. E isso a gente tem percebido quando os direitos dos povos indígenas são atacados constantemente. Você não tem garantias de estar ali simplesmente porque você é ser humano... Essa mudança cultural com os outros contatos com as outras etnias é bem diferente do outro contato agora. Ao mesmo tempo em que você está vivendo, você pode não existir mais daqui a pouco... Essa questão da mudança cultural é uma coisa mais complexa que eu estava querendo chegar, mas... A gente fala que o Estado é uma instituição, e tudo aquilo que vem dela é discutido por eles para a gente. Então, a gente tem que conhecer isso. E o outro espaço, e esse espaço é uma coisa que vai mudando e a gente não percebe... o outro espaço é a gente ter contato sempre com a cidade, um contato assim quase todo dia, quase toda semana. Será que eu tenho uma reflexão dessa minha vida, desse meu cotidiano? Se eu não tiver uma reflexão disso, eu vou ser simplesmente um cara que está ali, de mudança, indo todo dia para a cidade, sem ter um conclusão do que realmente eu estou fazendo. Esses espaços, além da escola, que eu digo... indo para a cidade, indo fazer tratamento, indo fazer compra, o contato mais próximo com os colonos da linha. E também uma grande influência hoje, professor, é a tecnologia. Tecnologia é um espaço... mesmo que ela não tenha um espaço assim... mas vamos supor que ela seja um espaço hoje... Na aldeia hoje todo jovem tem celular, e todo jovem tem no celular vários tipos de música, vídeos. O mesmo espaço que a gente está dizendo que garante essa cultura, essa tradição paiter, está sendo invadido pelos próprios... que a gente está querendo que mantenham a cultura. Então, tem que se pensar muito... são coisas... O que eu estava falando naquela palestra, professor, de segunda-feira... foi segunda-feira?... Que a gente está voltado o olhar tanto para as coisas grandes, e as pequenas violências, o que mais é prejudicial, a gente não vê. Eu chamo isso de pequenas violências [risos]. Porque [o fato] de você simplesmente estar ali, com o celularzinho tocando funck, é um mundo completamente... não que você não pode ouvir isso, mas você tem que ter uma mentalidade de saber o que é um e o que é outro, o que eu sou e o que é o outro, e qual é a minha posição em relação a isso... que hoje não tem. Então, essa propagação de tecnologia sem precedente pode causar uma significativa função de eliminar... a cultura paiter. 20) O que você acha das igrejas existentes na aldeia?

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A igreja é... pessoalmente, eu acho uma coisa muito distante do nosso mundo, eu como paiter. Se eu for pensar a partir do pensamento do que é paiter, a partir do... vamos supor, um paiter que nunca teve um contato com a igreja, mas que vai conhecer isso e tirar uma reflexão disso. Com certeza ele vai saber que o que é dele é mais importante. Não no sentido de mais importante... o que é dele... ele prefere o dele do que o do outro. No meu ponto de vista, a igreja teve um papel fundamental também de tirar uma maior parte, um dos princípios mais importantes da cultura paiter... que é a espiritualidade própria paiter. [Quando] tirou isso, acho que os paiter ficaram a mercê de qualquer coisa... porque você não tem realmente uma ligação... além, sobrenatural... própria do paiter. Você tem um sobrenatural pensado a partir de um outro. Você não sabe, você não viveu aquilo. Você dizer para um paiter, hoje: “Jesus morreu na cruz. Filho de um deus, morreu por nós”, ele se joga no chão, cai, levanta, sobe nas paredes, porque ele acredita. Mas está havendo pessoas aí que estão questionando isso. Pessoas adultas, velhos, líderes. Uma concepção de igreja é de... manter... vamos supor... o bem, a paz. Mas essas mesmas pessoas... como meu pai fala... toda vez eu me refiro a ele, né [risos]... ele fala que são falastrões, aqueles que falam, falam, falam e não praticam o que eles falam. Então, há uma certa dúvida por causa disso na igreja. Mas eles vão tomando aquilo de uma outra forma. Até porque, dentro dos paiter, não existem mais missionários que dão conta da igreja. Não tem mais igreja batista. Hoje tem igreja Suruí. Eles mesmos tomaram posição. Mas com aquele pensamento ainda. E, tudo o que for pensar a partir do paiter, para eles não vale, é coisa do demônio. E aí, assim, o princípio mais importante dos paiter foi tirado, que é a sua espiritualidade. Daí que não há outra coisa na floresta, não tem significado para você... A gente está ouvindo aqui cigarras... Meu pai fala que cigarra tem espírito, ela não é simplesmente um inseto... Um crente da igreja acreditava, mas não acredita mais. Coisas da floresta não têm mais sentido para ele, perdeu essa ligação. E aí, nessa questão, professor... na construção do pensamento dos paiter, se a gente for analisar, vai ter uma interrupção, uma ruptura, assim... você corta uma coisa aqui, e de repente coloca outra coisa... e a gente vai perceber um dia que os paiter viveram numa época vagos do próprio eu deles, do próprio eu do paiter. Ele sendo paiter de carne e osso, mas ele viveu de outra forma. Então, como é que eu vou pensar no futuro essa ligação depois?... Um paiter espiritual, das coisas que existem... e um paiter que teve em uma geração essa ruptura, essa lacuna. Como é que depois vai ter um pensamento para ligar essas coisas? Houve uma lacuna. Como é que a gente vai refletir isso depois como paiter? Essa lacuna? É uma perda significativa do pensamento paiter. Então, a presença da igreja, nesse sentido, vai ser dessa forma. Porque, a gente sabe que... eu mesmo tenho uma posição pessoal quanto à igreja. Não precisava ter a igreja nas comunidades indígenas. Não precisava, não há necessidade. A gente acredita no criador. Olha só, a gente chama Palohp, Nosso Pai. O Palohp não tem mais uma tradução de um paiter dizendo “Ah, Nosso Criador!”, ou “O Criador!”. Ele vai dizer Deus, com um pensamento já com uma figura criada por igreja. Ele já não fala mais o deus com o pensamento com aquela figura do paiter. Ele fala de deus pensando na figura criada por igreja. E aí, eu pessoalmente sei que a igreja sofreu transformações ao longo da história, e nem o próprio Ocidente sabe mais qual é a função da igreja hoje. Os grandes religiosos, as grandes igrejas, estão todos aí por causa do dinheiro. Quer dizer, dentro do próprio Ocidente, ela perdeu a função. Imagina dentro das comunidades indígenas. E aí, o pensamento filosófico nessa lacuna dos paiter... são coisas assim para a gente pensar, para ter uma noção realmente de qual é a função da igreja nas comunidades indígenas. 21) Por mim, nossa conversa se estenderia aqui por mais algumas horas, mas temos que encerrar, até porque a Maria está te esperando. Então, só mais umas questões pontuais. Que opinião você tem sobre a presença da televisão na aldeia?

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A televisão é um mundo pequeno, que é capaz de entrar na nossa casa, sem a gente ter essa reflexão. Em algum momento, ela pode se transformar em uma outra pessoa. Você muda o comportamento, você muda a maneira de pensar. Ela te faz pensar da maneira dela. Então, hoje, o modo de viver, o modo de pensar dos paiter é muito da televisão... a maneira de se vestir... ela te influencia em tudo. Quando é que você vai pensar em um paiter que está ali, vinte e quatro horas na televisão... novela principalmente... filme, propaganda... ela te dá uma noção de um mundo que não é seu. Eu percebo hoje que os paiter tentam ser aquilo, mas não conseguem ser. O pensamento das crianças hoje é ser um Ronaldinho, Neymar, Luan Santana... E no meu ponto de vista, professor, isso é um grande problema, um problema seríssimo. Seria legal se os pais tivessem condições de fazer eles desse jeito... Nas condições que os paiter hoje estão, pode ser uma grande frustração, e um grande problema a partir daí dentro das comunidades... a partir da televisão. Porque um problema social de um outro, de uma outra sociedade, entra na minha casa do tamanho daquele negocinho ali... e aí você perde a maneira de se comportar com seus pais, seus amigos... ela de influencia em tudo, professor... A gente tem que pensar em como utilizar essa ferramenta dentro da aldeia, não simplesmente ignorar, mas realmente pensar como a gente pode fazer proveito dessa tecnologia e dos celulares também, de uma maneira social, conviver com esse mundo. Não ignorar, mas conviver. Então, a televisão, no meu ponto de vista, sem reflexão, ela é o problema do mundo inteiro dentro da nossa casa. 22) Uma penúltima pergunta: Na sua opinião, em termos gerais, qual é o papel dos professores Paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? Os professores, eu acredito que eles têm uma função fundamental em todo esse processo que a gente debateu aqui, professor. Sem eles, não vai ter a oportunidade de a gente debater realmente os problemas que existem e tirar as reflexões disso. Os professores têm essa tarefa, essa missão, de não somente dar aulas, mas de fazer refletir os problemas nas comunidades indígenas. Ao longo do tempo, a gente percebe que a escola fez transformar pessoas, do jeito que as pessoas pensam. Vamos supor uma pessoa que pensa uma escola, e coloca essa escola em uma comunidade... quer dizer, a intenção dessa pessoa é transformar esse grupo do jeito que ela pensou aqui. Aí, o papel dos professores indígenas é ao contrário... eles pensarem como é que a gente vai escolarizar a nossa comunidade, as nossas crianças, mas pensando primeiro na visão de mundo dos paiter e na visão de futuro. Porque na visão de mundo, você vai conhecer todo o pensamento paiter como paiter. Você vai partir dessa visão de mundo para uma visão de futuro, para onde você vai, e como você vai daí para frente. O papel dos professores é fundamental nesta questão. Então, volto mais uma vez. O professor tem que ter um pensamento crítico por causa disso, não somente ser um professor de dar aula, mas um papel de professor de fazer mudanças nessa perspectiva, ser conhecedor da visão de mundo paiter e também ser um estratégico, uma pessoa estratégica para fazer acontecer a visão de futuro paiter... de ser um grande líder também. É isso. 23) Uma última pergunta então, infelizmente [risos]. Considerando tudo o que você falou hoje aqui, suas reflexões, esse seu ponto de vista crítico sobre vários assuntos, como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Cem anos, professor? É... realmente, você me pegou agora [risos]. Deixa eu fazer uma conta aqui, professor. Estou com trinta anos. Daqui a cem anos, cento e trinta. Bom, professor, eu acho que vai haver uma mudança significativa, em relação, primeiro, a sua

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cultura anterior ao contato. Vamos ter pequenas coisas que se fazem hoje, de coisas paiter que são artesanato hoje... algumas pessoas com certeza vão fazer. Ou não... ou simplesmente fazer para vender alguma coisa. Ou talvez, um mais esperto possa aparecer, possa aparecer um empreendedor e fazer disso um negócio. Temos que pensar várias coisas ao longo de cem anos, né. E outra coisa, não vai ser o mesmo estilo de vida, não vai ser a mesma coisa do que é realmente hoje. Cem anos, nem eu vou estar vivo. Só se eu viver cento e trinta anos. Eu imagino assim, professor, que vai haver grande avanço nas tecnologias... quer dizer, inseridas em aldeias... aldeias digitais. Um estilo de vida parecido com o daqui da cidade. E acredito que, também, há pessoas que vão optar em viver mais de forma tradicional. Eu estou imaginando uma pessoa que vai “Ah, eu vou escolher viver...”. Mesmo com todo o conhecimento, mesmo com todo o conhecimento do mundo ocidental... porque eu tenho esse pensamento, eu tenho esse pensamento comigo... eu conviver não com todas essas tecnologias, não com todos esses aparatos materiais, mas viver com o essencial, na floresta. Mas eu tenho um pensamento sobre tudo. Então, em cem anos, eu percebo que há pessoas paiter que vão optar em viver assim, e vão ter grandes pensadores também, que vão optar em viver mais tranquilos, mas contribuindo de tal forma em todos os sentidos. Acho que o futuro paiter daqui a cem anos vai ser bem diferente. E, com certeza, professor, a gente não pode esquecer o outro lado... vai haver mais problemas sociais. Atípicos ou típicos, urbanos. Vai ter esse problema também, com certeza. Então... você me pegou agora. Eu nunca tinha refletido em cem anos. Eu tinha refletido dez, vinte, trinta, cinquenta anos. Mas cem anos [risos]. Acho que a memória da gente se limita a nossa idade, e a gente é incapaz de pensar [risos] em tempos mais longos. 24) PP1, fiz minha última pergunta aqui da entrevista. É sempre um prazer ouvi-lo. Mais uma vez eu queria agradecer por essa oportunidade. Às vezes, aqui na universidade a gente tem uma relação professor-aluno em que parece que o conhecimento vai sempre do professor para o aluno, mas esse aqui é um momento que exemplifica o fato de que às vezes é o contrário, os ditos professores aqui na universidade é que aprendem com os chamados alunos. Numa situação como essa aqui hoje não há essa relação professor-aluno, a menos que seja professor você e aluno eu. Realmente sempre é uma oportunidade de se aprender. Eu queria registrar minha felicidade de ter essa oportunidade de conversar contigo, ainda tão jovem. Como já te falei mais de uma vez, eu acho que você tem potencial para ser futuramente... já é um líder, e certamente no futuro será em proporções ainda maiores, em um futuro próximo. Então, eu sou um felizardo de ter a oportunidade de ter esse tipo de convivência contigo hoje. Sei que, futuramente, a sua contribuição para o movimento indígena, para o seu povo será ainda maior. Então, muito obrigado por essa oportunidade. Mais uma vez, eu que agradeço, professor. Acho que se a gente não tiver essa oportunidade, e essas perguntas, acho que a gente é incapaz de, sozinho, pensar em umas coisas assim. Acho que, nesse ponto, é importante, eu vejo uma importância muito grande nesse sentido dessa nossa conversa. E, com certeza, professor, independente de doutorado ou não, eu acho que a gente tem que continuar com essas conversas. Acho que a gente, para contribuir com o pensamento de uma forma ou de outra, estamos aí sempre. E, com certeza, também eu vou te chamar um dia: “Professor, vamos discutir um assunto aí” [risos]. Acho que a nossa amizade vai longe ainda, não vai se resumir somente à universidade. Então, fico feliz também, professor, de ter essa pessoa que você é, uma pessoa próxima da gente. Obrigado mesmo, de coração.