Tese Final em 13012015 - UFMTpela educação que me deram, permitindo-me chegar até aqui. A minha...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS REDE AMAZÔNICA DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E
MATEMÁTICA DOUTORADO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA
KÉCIO GONÇALVES LEITE
NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER
CUIABÁ 2014
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KÉCIO GONÇALVES LEITE
NÓS MESMOS E OS OUTROS: ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA INDÍGENA PAITER
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática, da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, sob orientação do Prof. Dr. Erasmo Borges de Souza Filho, na linha de pesquisa Fundamentos e Metodologias para a Educação em Ciências e Matemática, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação em Ciências e Matemática.
CUIABÁ 2014
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Ao povo Paiter, que exemplarmente resiste, insiste e sobrevive política, social e culturalmente, travando batalhas cotidianas durante quatro décadas de contato.
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AGRADECIMENTOS
Ao Povo Paiter, em especial aos professores paiter das comunidades Gapgir, Lobó,
Lapetanha, Joaquim, Amaral e Paiter, pela hospitalidade, pelas lições de vida e pelo
compartilhamento de saberes e fazeres imemoriais que passarão a compor minhas
representações de mundo e a refletirem em minha caminhada acadêmica, em minha vida
pessoal e em minha atuação profissional.
Ao Professor Dr. Erasmo Borges de Souza Filho, pelas sábias lições acadêmicas e
de vida, pelo compartilhamento de seus saberes sobre os mundos material e espiritual, pela
paciência e pela amizade ao me orientar.
Ao Professor Dr. Rogério Ferreira e às Professoras Dra. Aparecida Augusta da
Silva, Dra. Isabel Cristina Rodrigues de Lucena, Dra. Gladys Denise Wielewsky e Dra.
Elizabeth Antônia Leonel de Moraes Martines, que gentilmente aceitaram participar da
Banca Examinadora e muito contribuíram com sugestões e apontamentos feitos desde a
qualificação.
À Professora Dra. Marta Maria Pontin Darsie, por espalhar e compartilhar
conosco o sonho de uma educação transformadora na Amazônia, encorajando-nos a trilhar
novos caminhos e a vencer grandes desafios.
Ao Professor Dr. Michael Otte, pelas valiosas lições de Filosofia e História da
Matemática que sempre farão parte de minhas reflexões como signos e referências.
Aos professores indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso, pela
oportunidade de construir novas representações sobre o mundo e sobre as relações entre
povos e culturas.
Ao Uraan, pela amizade, pela acolhida em sua casa e em sua comunidade, pelo
companheirismo, pela troca de ideias, e por me conduzir de forma especial na introdução à
cultura, à língua e ao mundo dos Paiter.
À Betty Mindlin, pelo exemplo de humanidade, pela inspiração que suas pesquisas
com os Paiter me proporcionaram e por compartilhar gentilmente seus valiosos relatórios
de campo da época do Polonoroeste em Rondônia com todos do Departamento de
Educação Intercultural da UNIR.
Aos colegas de doutorado, os reamecianos, Emerson, Marlos, Liliane, Márcia,
Nério, Vinícius, Gecilane, Mariuce, Leila, Cristiane, Eduardo, Edilberto, Guacira, Ivo,
Jéferson, Rafael, pela convivência, pela amizade, pelos estudos compartilhados e pela
ajuda nos momentos difíceis desta empreitada.
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Ao Professor Dr. Rômulo Campos Lins e ao Programa de Pós-Graduação em
Educação Matemática da Unesp – Rio Claro, por terem me aceitado como aluno especial
nos estudos de Filosofia da Educação Matemática.
À Jacqueline, pela amizade, pela alegria contagiante e por emprestar gentilmente
seu apartamento em Cuiabá ao reamecianos de Rondônia.
À Livínia, pela amizade, pela hospitalidade, pelos bolos, doces, almoços e jantas
que tornaram mais agradáveis os dias de estudos em Belém.
Aos Professores e Professoras do Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências e Matemática da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática –
REAMEC-UFMT-UFPA-UEA, pelas aulas, sugestões e valiosos ensinamentos.
Aos companheiros de trabalho do Departamento de Educação Intercultural da
UNIR, Genivaldo, Edineia, Luciana, Maria Lúcia, Reginaldo, João, Cristóvão, Joaci,
Carma, Vanúbia e Gicele, pela amizade, pelo apoio, pela troca de ideias, pelas sugestões
de leituras e pelo companheirismo na formação intercultural de professores indígenas em
Rondônia e Noroeste de Mato Grosso.
Às professoras Josélia, Lediane e Jânia, por compartilharem comigo, nos últimos
anos, cada uma a seu modo, interessantes ideias e perspectivas a respeito da educação
escolar indígena, que resultaram em importantes contribuições para a construção desta
tese.
Ao meu irmão, Jáison, pela amizade, apoio e incentivo.
Aos meus pais, Dirce e Genésio, pela forma como me introduziram no mundo e
pela educação que me deram, permitindo-me chegar até aqui.
A minha esposa, Eliana, pelo amor, pelo carinho, pelo incentivo, pelo
companheirismo, pela amizade e pelas contribuições e leitura cuidadosa da versão
preliminar da tese.
A Deus, pela força, saúde e disposição em continuar a caminhada.
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RESUMO
A presente tese de doutorado busca refletir a educação matemática no campo da interculturalidade, considerando como espaço empírico a escola indígena paiter. Ideias e pressupostos enunciados em práticas discursivas de professores indígenas na projeção do ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter e suas interseções com a cultura do povo Paiter, em escolas da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, foram observados, analisados e interpretados no espaço da interculturalidade. Isso demandou investigar como a projeção de uma educação escolar diferenciada nas aldeias desse povo pode ressignificar práticas educativas tradicionais e promover uma revitalização de saberes e fazeres da tradição, em detrimento de um processo de mudanças pós-contato. Para tanto, propôs-se observar, ouvir e acompanhar professores paiter em suas práticas e afazeres contextualizados no cotidiano das escolas, das aldeias e da universidade. Teoricamente, a pesquisa baseou-se na perspectiva da Etnomatemática (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), segundo a qual, ao longo da história da humanidade, cada povo ou grupamento humano desenvolveu saberes e fazeres matemáticos próprios. Também se orientou pelos conceitos de interculturalidade e hibridismo cultural (BHABHA, CANCLINI, HALL) abordados pelos Estudos Culturais. Metodologicamente, a pesquisa caracterizou-se como sendo do tipo qualitativo de abordagem interpretativa. O estudo de caso foi adotado como método para a identificação e registro de discursos, práticas e ideias elaboradas por professores indígenas, bem como para a compreensão das relações destas ideias com a visão de mundo, a organização social e a etnicidade do povo Paiter. Verificou-se que a representação discursiva de professores paiter na projeção da introdução dos saberes matemáticos do povo na escola, além de visar a diversidade cultural para a qual contribuiriam particularmente os saberes matemáticos do povo, busca marcar posição (oposição/diferenciação) em relação a uma matemática do currículo presente na escola inserida na aldeia. Essa abordagem origina inevitavelmente tensões, relacionadas a questões de identidade cultural, descentramento cultural e hibridismo cultural, porque, ao mesmo tempo em que o processo enunciativo pressupõe a existência de uma tradição, ele introduz uma quebra no presente performativo da identificação cultural ao eleger novos significados e saberes como necessidades do presente político enquanto prática de resistência. Assim, no caso empírico dos Paiter, observa-se no espaço enunciativo representado pelo discurso dos professores, simultaneamente e de forma tensionada, um apelo às memórias de um saber matemático experienciado ou vivido “pelos mais velhos”, e o reconhecimento da necessidade do domínio da matemática escolar como estratégia de empoderamento nas relações de poder assimétricas com a sociedade envolvente. Manter uma identidade cultural paiter dentro desse processo de hibridação cultural torna-se uma preocupação política dos professores indígenas, que apontam a introdução dos saberes e fazeres matemáticos do povo na educação escolar como uma estratégia de fortalecimento identitário. Teoricamente, esse fato indica uma possível vinculação entre etnomatemática e etnicidade, ao se conceber etnomatemática não como constructo atribuído, mas como constructo reivindicado. Palavras-chave: Etnomatemática. Educação Escolar Indígena. Interculturalidade. Paiter.
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ABSTRACT
This doctorate thesis seeks to reflect mathematics education in the field of interculturality considering how empirical space the paiter indigenous schools. Ideas and assumptions set out in the discursive practices of indigenous teachers in the projection of teaching paiter mathematical knowledge and their intersections with the culture of Paiter people in schools of Terra Indígena Sete de Setembro, Rondônia, were observed, analyzed and interpreted in the field of interculturality. It demanded to investigate how the projection of a differentiated education in the villages that people can reframe traditional educational practices and promote revitalization of knowledge and practices of tradition, rather than a process of post-contact changes. For both, it was proposed to observe, listen and follow paiter teachers in their practices contextualized in daily of the schools, the villages and the university. Theoretically, the research was based on the perspective of ethnomathematics (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), according to which, throughout the history of humanity, each people or human groups developed their own mathematical knowledge. Also guided by the concepts of interculturality and cultural hybridity (BHABHA, CANCLINI, HALL) addressed by Cultural Studies. Methodologically, the research is characterized as the qualitative interpretative approach. The case study was adopted as a method for the identification and registration of discourses, practices and ideas developed by indigenous teachers as well as for understanding the relationship of these ideas with the worldview, social organization and ethnicity of Paiter people. It was found that the discursive representation of paiter teachers in projecting the introduction of the mathematical knowledge of the people at school, besides seeking cultural diversity to which especially contribute the mathematical knowledge of the people, search dial position (opposition/differentiation) in relation to a mathematical curriculum of this school included in the village. This approach inevitably creates tensions related to issues of cultural identity, cultural decentralization and cultural hybridity because, while the enunciative process presupposes the existence of a tradition, it introduces a break in the performative present of cultural identification to elect new meanings and knowledge as needs of political present while practice of resistance. Thus, the empirical case of Paiter, is observed in the enunciative space represented by the discourse of teachers, simultaneously and of tensioned form, an appeal to the memories of a mathematical knowledge experienced or lived “by the elders”, and the recognition of the need for domain school mathematics as empowerment strategy in asymmetrical power relations with the surrounding society. Ensure a paiter cultural identity within that cultural hybridization process becomes a political concern of indigenous teachers, pointing to the introduction of mathematical knowledge of the people in school education as a strategy for strengthening identity. Theoretically, this fact indicates a possible link between ethnomathematics and ethnicity, to conceive etnomathematics not as assigned construct, but as claimed construct.
Keywords: Ethnomatematics. Indigenous School Education. Interculturality. Paiter.
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EEWE TÃYÃH1 Ãh g̃obahbe tĩg sadana matemática tĩhge same mĩ nane mãtẽenãh iwekahr ana aje weitxa yele same tohta, kana iwe same mẽhnãh Paiter kabih aje mĩ, sodĩg̃ah tik mi iwe sabatiga awe kabi e. Mereitxa yele ewe tete enãpoh sodig̃ey xade sogamame same mãh akoe mĩ apugey emakobah aje tare we koy Paiter emasoe itxa yele ikinatẽh sodig̃ah mĩ, kah mawe tere same mag̃a weitxa yele nãh, sodig̃ah ey xade Paiterey karah ka Terra Indígena Sete de Setembro wa Rondônia ka ekoy ana e, kana yag̃a enãh kana tamag̃a iwe makih, ana tasaana ih alade iwe kahr weitxa yele same tohta we same tik mi ena e. Kana mawe tere nã tehr tasade g̃obahbe same itxa ewe mag̃a anĩh aite tere mi tapere de akobah ewe mag̃a ena ãh karba mĩh, ayap e mĩ amasoe tere ka akobah, matehr soe perede ewe ikin omner mae wepi awemakobah anĩh ee aje aite iwahr matemática nã yara wẽtihge tik mi aora ena e. Ayap e nã ojena kana iwe mag̃a enãh, takoe pih, kana tamag̃a enãh taitxa tamasodig̃ah ka takarah koy ayap mi universidade ka taitxa ena e. Iwe alabikãrh ag̃a ojena nem esame mĩ ena e Etnomatemática (D’AMBROSIO, DOMITE, GERDES, VERGANI), eenã te baga ter paiter deor asot aut mit’i aite same itxa sogamame nã poh, soeitxa yele nã ena ama matemática nã yã we tĩg mĩ e. Ayap mi eena de eewe tãyãh intercultural mĩ itxa mũypoy soe sade awemag̃a awepitxakõy txeh ani ewe same na ani e mĩ (BHABHA, CANCLINI, HALL) weitxa yele nã we tĩhg̃e. Ete ãh sodĩhg̃e dena nane mãteenãh alade we mi ena iwe kahr ena e. Ãh senãih, xiwewame maãh, iwe mag̃a tasade we maãh ewe tayãh sodig̃ey xadewe kana pãhg̃a ãwe tar matiga paweitxa mũye telemĩ teh g̃arba same ikin paje wemĩ pawe kabi ayeh yele mĩ alade Paiter alahde masoe same ikin ewe mĩ, soeitxa g̃arba ka Paiter a aje aweikay ewe mĩh. Ete sodig̃ey jena iwe same ikin aje we mĩ ena ee ama matemática mãh ena toyaba toykoe mĩ toyasoeitxa yele mãh sodig̃ah mi ̃tara ena toyag̃a toite matxẽh mawe tar areh ena oite ãh dana e eite ãh dana e ena awe makobah ena tare (xamatage/mawetere) ee matemática sade ama sodig̃ah ka eka iwe same itxa awekabi ena e. Ayap sadena one iwe sameom neh ena takabi e, ee alade paite itxa paliyã etiga teh tasadena ee maite ka ena akobah og̃a maite ka yabekar areh mũy ite torera ladeka bo oite sa aye aweõ ani poh alade we same nã tasadena e. Ewe nekoy tasadena one g̃uya ter ena ateter iwe itxa awekabi mae eeter tasadena iwe xagut aãh ena e. Iwe same sadena aite mag̃a anate lana poreh maite matxẽ waba owepih alade we nã ena e. Ete paiter asoeitxa yele kare same dena sodig̃ey asoe mame pi ena awe kabi iwe same nã e, txuhla iwe sore iwe kane omneh “ikãyey” sade tiga teh ena merekahr takay e kana meyag̃a sogamame itxa matehr tara yara om niga we itxah takay, ayap mi yara ite maãh waba xiperemĩh xiite itxah ateneh alade iwe itxa bokirih omneh etiga. Aite itxa alade amasoeitxa yele nã ewe matxẽ toyxani ih ee xameomi matehr ite amitohr sadetiga ani ih sodig̃ey xadena ewe itxa anepamibe nã ena ani e. Ayap e nekoy toyasoeitxa yele toite nã we mag̃a toje toykobahbe nã sodig̃ah mĩ iwe mag̃a etehra yena ter toyag̃a toya paitere maõ reh toyekay a ena e yena bo soe sa ani ih soe ikin omner aje mae we pi amuk de akobah iwe mag̃a ãh tik mi maetera. Ete sodĩhg̃e same mĩ iwe same sadena ana ena e, Etnomatemática mĩ tasadena ama paitere satbimayã toyabah yele nã mag̃a, one eeter alade alaĩh iweka ewe nã same omne maãh aje we same nã, marbom eete oyana paiter ena aitere itxa ter poh yele same nã ena ama soe same ka ena awemakobah ena e. G̃oe-abikãhr: Etnomatemática. Lat emakobahwe same. Weitxa aoare same. Paiter.
1 Resumo da tese em Tupi Mondé em versão traduzida por Uraan Anderson Suruí.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Localização da Terra Indígena Sete de Setembro, território do povo Paiter ...... 69
Figura 2 – Primeiro contato oficial dos Paiter com não-indígenas, em 1969 ...................... 70
Figura 3 – Professor Joatom Suruí, ao receber o prêmio Professor Nota 10, concedido pela
Fundação Victor Civita, em 2008 ........................................................................................ 76
Figura 4 – Crianças paiter observam os mais velhos em atividade cultural na Aldeia
Gapgir .................................................................................................................................. 77
Figura 5 – Escola da Aldeia Gapgir, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ........ 149
Figura 6 – Escola da Aldeia Lobó, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ........... 150
Figura 7 – Escola da Aldeia Lapetanha, Terra Indígena Sete de Setembro,
Cacoal/RO.......................................................................................................................... 151
Figura 8 – Escola da Aldeia Joaquim, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ...... 152
Figura 9 – Escola da Aldeia Amaral, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ....... 153
Figura 10 – Escola da Aldeia Paiter, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO ........ 153
Figura 11 – Diagrama de representação das relações entre as categorias de análise
de dados ............................................................................................................................. 156
Figura 12 – Quadro concebido para análise semiótica de unidades textuais ..................... 165
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Termos numéricos e quantificadores paiter ...................................................... 79
Quadro 2 – Qualificadores paiter que caracterizam objetos quanto a formas geométricas,
posições relativas, tamanhos e pesos ................................................................................... 83
Quadro 3 – Marcadores de tempo paiter para o período de um dia ..................................... 85
Quadro 4 – Caracterização dos participantes da pesquisa ................................................. 147
Quadro 5 – Informações sobre as entrevistas realizadas ................................................... 155
Quadro 6 – Unidades textuais selecionadas por categorias de análise, tematizações e
sujeitos ............................................................................................................................... 159
Quadro 7 – Análise semiótica da unidade textual E1Q2 .................................................... 168
Quadro 8 – Análise semiótica da unidade textual E2Q8 .................................................... 169
Quadro 9 – Análise semiótica da unidade textual E14Q14 .................................................. 170
Quadro 10 – Análise semiótica da unidade textual E11Q17 ................................................ 171
Quadro 11 – Análise semiótica da unidade textual E5Q6 .................................................. 173
Quadro 12 – Análise semiótica da unidade textual E4Q10 ................................................. 174
Quadro 13 – Análise semiótica da unidade textual E9Q14 ................................................. 176
Quadro 14 – Análise semiótica da unidade textual E8Q16 ................................................. 177
Quadro 15 – Análise semiótica da unidade textual E6Q3 .................................................. 179
Quadro 16 – Análise semiótica da unidade textual E3Q3 .................................................. 180
Quadro 17 – Análise semiótica da unidade textual E14Q22 ................................................ 183
Quadro 18 – Análise semiótica da unidade textual E11Q26 ................................................ 184
Quadro 19 – Análise semiótica da unidade textual E13Q9 ................................................. 185
Quadro 20 – Análise semiótica da unidade textual E1Q4 .................................................. 187
Quadro 21 – Análise semiótica da unidade textual E5Q8 .................................................. 189
Quadro 22 – Análise semiótica da unidade textual E13Q1 ................................................. 190
Quadro 23 – Análise semiótica da unidade textual E9Q15 ................................................. 192
Quadro 24 – Análise semiótica da unidade textual E8Q17 ................................................. 193
Quadro 25 – Análise semiótica da unidade textual E3Q5 .................................................. 195
Quadro 26 – Análise semiótica da unidade textual E2Q6 .................................................. 197
Quadro 27 – Análise semiótica da unidade textual E14Q12 ................................................ 199
Quadro 28 – Análise semiótica da unidade textual E11Q15 ................................................ 200
Quadro 29 – Análise semiótica da unidade textual E4Q9 .................................................. 201
Quadro 30 – Análise semiótica da unidade textual E9Q8 .................................................. 203
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Quadro 31 – Análise semiótica da unidade textual E7Q5 .................................................. 204
Quadro 32 – Análise semiótica da unidade textual E2Q1 .................................................. 206
Quadro 33 – Análise semiótica da unidade textual E14Q13 ................................................ 207
Quadro 34 – Análise semiótica da unidade textual E11Q16 ................................................ 208
Quadro 35 – Análise semiótica da unidade textual E5Q1 .................................................. 209
Quadro 36 – Análise semiótica da unidade textual E4Q5 .................................................. 210
Quadro 37 – Análise semiótica da unidade textual E9Q9 .................................................. 211
Quadro 38 – Análise semiótica da unidade textual E8Q22 ................................................. 212
Quadro 39 – Análise semiótica da unidade textual E6Q6 .................................................. 213
Quadro 40 – Análise semiótica da unidade textual E3Q2 .................................................. 215
Quadro 41 – Análise semiótica da unidade textual E2Q3 .................................................. 217
Quadro 42 – Análise semiótica da unidade textual E15Q16 ................................................ 218
Quadro 43 – Análise semiótica da unidade textual E14Q17 ................................................ 221
Quadro 44 – Análise semiótica da unidade textual E11Q20 ................................................ 223
Quadro 45 – Análise semiótica da unidade textual E5Q3 .................................................. 225
Quadro 46 – Análise semiótica da unidade textual E4Q6 .................................................. 226
Quadro 47 – Análise semiótica da unidade textual E12Q1 ................................................. 227
Quadro 48 – Análise semiótica da unidade textual E9Q10 ................................................. 229
Quadro 49 – Análise semiótica da unidade textual E1Q5 .................................................. 230
Quadro 50 – Análise semiótica da unidade textual E15Q15 ................................................ 233
Quadro 51 – Análise semiótica da unidade textual E14Q16 ................................................ 236
Quadro 52 – Análise semiótica da unidade textual E11Q19 ................................................ 238
Quadro 53 – Análise semiótica da unidade textual E13Q6 ................................................. 240
Quadro 54 – Análise semiótica da unidade textual E9Q6 .................................................. 241
Quadro 55 – Análise semiótica da unidade textual E8Q20 ................................................. 242
Quadro 56 – Análise semiótica da unidade textual E6Q5 .................................................. 244
Quadro 57 – Análise semiótica da unidade textual E2Q4 .................................................. 246
Quadro 58 – Análise semiótica da unidade textual E11Q25 ................................................ 248
Quadro 59 – Análise semiótica da unidade textual E13Q20 ................................................ 250
Quadro 60 – Análise semiótica da unidade textual E4Q7 .................................................. 252
Quadro 61 – Análise semiótica da unidade textual E2Q7 .................................................. 253
Quadro 62 – Análise semiótica da unidade textual E14Q3 ................................................. 254
Quadro 63 – Análise semiótica da unidade textual E5Q5 .................................................. 256
Quadro 64 – Análise semiótica da unidade textual E4Q3 .................................................. 256
14
Quadro 65 – Análise semiótica da unidade textual E7Q1 .................................................. 258
Quadro 66 – Análise semiótica da unidade textual E3Q1 .................................................. 259
Quadro 67 – Análise semiótica da unidade textual E15Q22 ................................................ 261
Quadro 68 – Análise semiótica da unidade textual E14Q23 ................................................ 264
Quadro 69 – Análise semiótica da unidade textual E11Q30 ................................................ 265
Quadro 70 – Análise semiótica da unidade textual E13Q48 ................................................ 267
Quadro 71 – Análise semiótica da unidade textual E12Q13 ................................................ 268
Quadro 72 – Análise semiótica da unidade textual E15Q23 ................................................ 269
Quadro 73 – Análise semiótica da unidade textual E14Q24 ................................................ 272
Quadro 74 – Análise semiótica da unidade textual E11Q31 ................................................ 274
Quadro 75 – Análise semiótica da unidade textual E13Q53 ................................................ 276
Quadro 76 – Análise semiótica da unidade textual E12Q14 ................................................ 277
Quadro 77 – Análise semiótica da unidade textual E15Q5 ................................................. 279
Quadro 78 – Análise semiótica da unidade textual E15Q18 ................................................ 282
Quadro 79 – Análise semiótica da unidade textual E11Q28 ................................................ 284
Quadro 80 – Análise semiótica da unidade textual E13Q32 ................................................ 286
Quadro 81 – Análise semiótica da unidade textual E14Q20 ................................................ 287
Quadro 82 – Análise semiótica da unidade textual E11Q22 ................................................ 288
Quadro 83 – Análise semiótica da unidade textual E13Q15 ................................................ 290
Quadro 84 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de educação da
categoria de análise educação escolar indígena ............................................................... 292
Quadro 85 – Síntese de discursos referentes à tematização mudanças na educação do povo
da categoria de análise interculturalidade ........................................................................ 296
Quadro 86 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de escola da
categoria de análise educação escolar indígena ............................................................... 297
Quadro 87 – Síntese de discursos referentes à tematização importância da escola na aldeia
da categoria de análise educação escolar indígena ........................................................... 300
Quadro 88 – Síntese de discursos referentes à tematização motivações para ser professor
da categoria de análise educação escolar indígena ........................................................... 303
Quadro 89 – Síntese de discursos referentes à tematização papel do professor na aldeia da
categoria de análise educação escolar indígena ............................................................... 305
Quadro 90 – Síntese de discursos referentes à tematização o que deve ser ensinado na
escola da aldeia da categoria de análise educação escolar indígena ............................... 307
15
Quadro 91 – Síntese de discursos referentes à tematização relação entre educação escolar
na aldeia e identidade cultural da categoria de análise interculturalidade....................... 309
Quadro 92 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de etnomatemática
da categoria de análise etnomatemática ........................................................................... 311
Quadro 93 – Síntese de discursos referentes à tematização como deve ser o ensino de
matemática na escola da aldeia da categoria de análise etnomatemática ........................ 314
Quadro 94 – Síntese de discursos referentes à tematização importância de se trabalhar
com os saberes matemáticos paiter na escola da categoria de análise etnomatemática .. 317
Quadro 95 – Síntese de discursos referentes à tematização importância dos velhos para o
ensino de saberes da tradição da categoria de análise educação escolar indígena ......... 322
Quadro 96 – Síntese de discursos referentes à tematização estado da cultura paiter em cem
anos da categoria de análise interculturalidade ............................................................... 326
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LISTA DE SIGLAS
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ANAI – Associação Nacional de Apoio ao Índio
CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CNE – Conselho Nacional de Educação
CNEEI – Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena
CPI/SP – Comissão Pró-Índio de São Paulo
CTI – Centro de Trabalho Indigenista
DEINTER – Departamento de Educação Intercultural
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
IGPHA – Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LBA – Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia
MAIC – Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio
MEC – Ministério da Educação
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização Não-Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
OPAN – Operação Anchieta
OPIRON – Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato
Grosso
PNE – Plano Nacional de Educação
RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática
REDD+ – Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação
SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
SEDUC – Secretaria de Estado da Educação
SEIF – Secretaria de Educação Infantil e Fundamental
SIL – Summer Institute of Linguistics
SPI – Serviço de Proteção aos Índios
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SPILTN – Serviço de Proteção e Localização dos Trabalhadores Nacionais
UCG – Universidade Católica de Goiás
UEA – Universidade do Estado do Amazonas
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso
UFPA – Universidade Federal do Pará
UNI – União das Nações Indígenas
UNIR – Fundação Universidade Federal de Rondônia
18
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 22
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS OU UMA TENTATIVA DE COMPREENDER OS
CAMINHOS QUE LEVARAM À PESQUISA ............................................................... 28
1.1 A Infância, o Ensino Fundamental e a Iniciação ao Trabalho .................................. 30
1.2 O Magistério ............................................................................................................. 38
1.3 A Docência e a Licenciatura em Matemática ........................................................... 43
1.4 A Especialização em Educação Matemática ............................................................. 48
1.5 O Mestrado em Educação ......................................................................................... 49
1.6 O Doutorado da REAMEC ...................................................................................... 53
1.7 A Docência Universitária e a Licenciatura Intercultural .......................................... 54
1.8 A Definição da Pesquisa ........................................................................................... 55
2 ESTABELECENDO ENCONTROS OU O INÍCIO DE UMA NOVA
CAMINHADA ................................................................................................................... 65
2.1 O (re)encontro com o Povo Paiter ............................................................................ 65
2.2 Tão perto e tão longe: a consciência do desconhecimento entre vizinhos
amazônicos ...................................................................................................................... 66
2.3 Nós Mesmos e os Outros: quatro décadas de contato e resistência .......................... 68
2.4 Saberes e Fazeres Matemáticos Paiter ..................................................................... 78
2.5 O encontro com novos referenciais teóricos ............................................................. 86
3 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: FACES DA ESCOLA NA ALDEIA .......... 88
3.1 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil nos séculos XVI a XIX: a face
catequizadora e civilizatória da escola na aldeia ............................................................ 88
3.2 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no início do século XX: a face
positivista e civilizatória da escola na aldeia .................................................................. 94
3.3 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil na Ditadura Militar: a face
bilíngue e protestante da escola na aldeia ...................................................................... 97
3.4 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no período 1970-1988:
mobilização indígena e a reivindicação de uma nova face para a escola na aldeia ....... 98
3.5 Educação Escolar Indígena no Brasil Pós-Constituição de 1988: sai a FUNAI, entra
o MEC e propõe-se uma face diferenciada, bilíngue, específica e intercultural para a
escola na aldeia ............................................................................................................... 99
19
3.6 Escola na aldeia como espaço de hibridação cultural ............................................. 102
4 CULTURA E IDENTIDADE CULTURAL: A PERSPECTIVA DOS ESTUDOS
CULTURAIS .................................................................................................................... 107
4.1 Cultura: do sentido antropológico aos Estudos Culturais ....................................... 108
4.2 O conceito de hibridismo cultural ........................................................................... 114
4.3 Mudanças culturais na perspectiva do hibridismo .................................................. 115
4.4 Identidade cultural: da essência fixa à possibilidade cambiante ............................. 117
4.5 Hibridação cultural e a multiplicação de identidades ............................................. 119
4.6 A diferença como categoria mobilizadora da resistência cultural em sociedades
indígenas ....................................................................................................................... 121
4.7 A etnicidade como resultado do exercício da diferença em contextos
interculturais ................................................................................................................ 122
5 ETNOMATEMÁTICA: UMA CONCEPÇÃO TRANSFORMADORA ................ 126
5.1 Duas formas distintas de se entender Etnomatemática ........................................... 126
5.2 Etnomatemática: contextos, origens e definições ................................................... 128
5.3 Perspectivas da Etnomatemática ............................................................................. 134
6 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PRODUÇÃO E ANÁLISE DE
DADOS ............................................................................................................................. 141
6.1 Ações preliminares ao início da produção de dados ............................................... 146
6.2 Os espaços de produção de dados ........................................................................... 148
6.3 Os dados produzidos ............................................................................................... 154
6.4 Categorias de análise de dados ............................................................................... 155
6.5 O Percurso Gerativo de Sentido como simulacro metodológico ............................ 160
6.6 Dispositivo prático para análise de unidades textuais ............................................. 164
6.7 O movimento de redução dos dados ....................................................................... 166
7 UM FAZER INTERPRETATIVO SOBRE OS DADOS PRODUZIDOS: ANÁLISE
SEMIÓTICA DE UNIDADES TEXTUAIS .................................................................. 167
7.1 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de
etnomatemática da categoria de análise etnomatemática ............................................. 168
7.2 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização como
deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia da categoria de análise
etnomatemática ............................................................................................................. 183
20
7.3 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância de se
trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da categoria de análise
etnomatemática ............................................................................................................. 187
7.4 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de
educação da categoria de análise educação escolar indígena ...................................... 197
7.5 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de
escola da categoria de análise educação escolar indígena ........................................... 206
7.6 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância da
escola na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena ........................... 217
7.7 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância dos
velhos para o ensino de saberes da tradição da categoria de análise educação escolar
indígena ......................................................................................................................... 230
7.8 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização o que deve ser
ensinado na escola da aldeia da categoria de análise educação escolar indígena....... 246
7.9 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização motivações para
tornar-se professor da categoria de análise educação escolar indígena ...................... 253
7.10 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização papel do professor
na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena ...................................... 261
7.11 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização estado da cultura
paiter em cem anos da categoria de análise interculturalidade .................................... 269
7.12 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização relação entre
educação escolar na aldeia e identidade cultural da categoria de análise
interculturalidade ......................................................................................................... 278
7.13 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização mudanças na
educação do povo da categoria de análise interculturalidade ...................................... 287
8 ETNOMATEMÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO
ESCOLAR PAITER ........................................................................................................ 291
8.1 Um fazer interpretativo final sobre sínteses de discursos ....................................... 292
8.1.1 Concepções de educação ................................................................................. 292
8.1.2 Mudanças na educação do povo ...................................................................... 295
8.1.3 Concepções de escola ...................................................................................... 296
8.1.4 Importância da escola na aldeia ...................................................................... 299
8.1.5 Motivações para ser professor ......................................................................... 303
8.1.6 Papel do professor na aldeia ............................................................................ 304
21
8.1.7 O que deve ser ensinado na escola da aldeia ................................................... 306
8.1.8 Relação entre educação escolar na aldeia e identidade cultural ...................... 309
8.1.9 Concepções de etnomatemática ...................................................................... 310
8.1.10 Como deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia ......................... 314
8.1.11 Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na
escola ........................................................................................................................ 317
8.1.12 Importância dos velhos para o ensino de saberes da tradição ....................... 322
8.1.13 Estado da cultura paiter em cem anos ........................................................... 325
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 328
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 333
APÊNDICES .................................................................................................................... 341
Apêndice A – Termo de consentimento livre e esclarecido ......................................... 342
Apêndice B – Questionário de caracterização dos participantes da pesquisa ............... 343
Apêndice C – Questionário de caracterização do espaço da pesquisa .......................... 344
Apêndice D – Questionário sobre concepções de escola, educação e
etnomatemática ............................................................................................................ 345
Apêndice E – Entrevistas .............................................................................................. 346
22
INTRODUÇÃO
- Meu pequeno Suruí!
(Avô Expedito)
Assim me tratava meu avô, quando criança, ao visitar sua casa no início dos anos
1990. O saudoso velho nordestino, acolhendo-me nos braços, brincava carinhosamente
com os traços fisionômicos “indígenas” do neto, nascido na Amazônia, após a migração da
família para o Sul do Brasil e posterior fixação em Rondônia no final da década de 1970.
Duas décadas após ter minha “etnicidade” definida por meu avô, encontro-me acolhido
entre os Suruí, trabalhando, estudando, pesquisando, convivendo e aprendendo em seu
território, a Terra Indígena Sete de Setembro, localizada sobre a divisa entre os estados de
Rondônia e Mato Grosso.
Paiter é como o povo se autodefine, significando com esse nome “Gente de
verdade” ou “Nós mesmos”. Suruí foi a denominação dada por antropólogos e pela FUNAI
após o contato, ocorrido em 1969, e é como são mais reconhecidos fora de seu território,
na literatura acadêmica e na mídia. Atualmente é comum se observar, nas falas e
conversações nas aldeias, diferentes expressões de autodenominação, tais como Povo
Paiter, Povo Paiter Suruí, Povo Suruí Paiter ou Povo Suruí. Em respeito a sua
autodenominação original, utilizarei o termo Paiter para fazer referência ao povo, e paiter
como adjetivo para caracterizar o que lhe é próprio2.
Minha atual convivência com os Paiter teve início no ano de 2011, proporcionada
por condições de trabalho e de estudo. Neste ano, ingressei como professor no
Departamento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia – UNIR,
passando a integrar o corpo docente que atua no curso de Licenciatura em Educação Básica
Intercultural, voltado para a formação de professores indígenas, e no qual já se
encontravam matriculados dezessete estudantes paiter. A atuação profissional nesse espaço
passou a demandar-me novos estudos teóricos e uma vivência-campo que foram decisivos
2 Conforme Kahn e Azevedo (2004), uma convenção da Associação Brasileira de Antropologia, de 1954, estabelece que os nomes dos povos indígenas sejam escritos em maiúsculas, mas que, quando se referem às suas línguas ou quando usados como adjetivos, sejam grafados em minúsculas. Essa convenção também estabelece que os nomes não sofram flexão de número e gênero.
23
para reorientar minha formação doutoral. Tendo ingressado no doutorado com um projeto
de pesquisa relacionado à formação de professores na rede federal de educação
tecnológica, vi-me circundado por um novo universo cultural e político assim que iniciei
meu trabalho docente junto ao curso de formação de professores indígenas na
universidade. Essa nova experiência de vida, permeada de desafios oriundos da busca de
uma prática docente no âmbito da educação intercultural, tornou-se fundamental para a
definição de um novo projeto de pesquisa em minha formação doutoral, assumindo a partir
de então como objeto de pesquisa práticas discursivas de professores indígenas ao
projetarem para a educação escolar existente em suas comunidades o ensino de saberes e
fazeres próprios de suas culturas, em particular os saberes e fazeres matemáticos, dentro de
um movimento voltado para a ressignificação da própria escola na aldeia.
Por ter cursado todo o doutorado em serviço, uma vez que não me afastei de minhas
atividades funcionais na universidade, exceto nos períodos de oferta de disciplinas nos três
polos que compõem a Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática –
REAMEC (UFMT, UFPA e UEA), a vivência-campo para produção de dados que
possibilitassem um fazer interpretativo sobre o objeto de pesquisa se deu entre atividades
de outros projetos de pesquisa e de extensão, a partir do ano de 2012, vinculados à minha
atuação no Departamento de Educação Intercultural da UNIR. Desse modo, o
desenvolvimento das atividades que resultaram na presente tese, por diversos momentos,
confundiu-se com minha própria prática docente na universidade, caracterizando-se assim
a experiência vivenciada como sendo genuinamente uma formação em serviço.
Nesse sentido, a pesquisa desenvolvida no doutorado relacionou-se
fundamentalmente aos desafios surgidos ao ter que trabalhar com disciplinas de
“Etnomatemática e Temas Fundamentais em Matemática” na licenciatura intercultural,
constatando que as referências que até então trazia de minha formação acadêmica eram
insuficientes para me auxiliarem na compreensão do novo universo no qual me vi imerso
na universidade entre estudantes de dezessete povos indígenas de Rondônia e Noroeste de
Mato Grosso. A existência de diferenças culturais entre os povos indígenas,
particularidades na constituição de saberes e fazeres tradicionais, e diferentes histórias de
contato e intercâmbio são propriedades que permeiam o fazer docente em um curso de
formação de professores indígenas e impõem-nos, como formadores, grandes desafios
teóricos e práticos.
Assim, buscando superar meu desconhecimento e minha ignorância dos aspectos
que permeiam o universo da educação escolar indígena, intentei pesquisar práticas
24
discursivas dos próprios professores indígenas com os quais convivo, em particular os
professores paiter, considerando-as como janelas de acesso a ideias e pressupostos
relacionados a visões de mundo, interesses e tensões culturais em que se encontram
inseridos os sujeitos. Para tanto, busquei fundamentar teoricamente a pesquisa a partir de
um diálogo com ideias de autores das áreas de Educação Escolar Indígena, Estudos
Culturais e Etnomatemática, acrescentado assim à minha formação acadêmica novas
referências de áreas relativamente distantes daquela que caracterizava originalmente minha
formação inicial.
Como forma de apresentar o percurso teórico e metodológico até chegar aos
resultados da pesquisa, a tese está organizada em oito seções. A ordem das seções reflete,
de certa maneira, a forma mais próxima do real movimento ocorrido durante minha
formação doutoral, incluindo, intencionalmente, uma seção inicial que extrapola o restrito
período do doutorado em si, estabelecendo relações com o próprio desenrolar de minha
vida.
Assim, na primeira seção, intitulada Considerações iniciais ou uma tentativa de
compreender os caminhos que levaram à pesquisa, fugindo de certas convenções que
perfazem a escrita de textos acadêmicos ou científicos, busco refletir de forma
autobiográfica sobre minha condição de pesquisador na contemporaneidade e as escolhas
que culminaram com a realização da pesquisa de doutorado, vinculando todavia minhas
ideias e pressupostos presentes na tese a vivências experienciadas ao longo de toda a vida.
Destaco assim aspectos de minha constituição enquanto ser humano nascido no contexto
amazônico que imprimem ao texto subjetividades relacionadas a minha formação
acadêmica e política proporcionada desde muito antes da própria formação doutoral, mas
também aquelas que nesse período se aprofundaram, modificaram-se e surgiram como
elementos novos. Nesse movimento de ir criticamente ao passado e regressar ao presente,
busco apresentar de forma contextualizada e histórica a escolha por desenvolver a pesquisa
com professores paiter e a origem das questões que compõem a problemática da pesquisa e
seus objetivos.
Na segunda seção, intitulada Estabelecendo encontros ou o início de uma nova
caminhada, intento fazer uma descrição contextualizada de meu (re)encontro com o povo
Paiter, refletindo sobre o atual percurso histórico desse povo a partir do recente contato
com a sociedade não-indígena, analisando o contexto em que se deu o contato, o
desenvolvimento do pós-contato, a falência de instituições tradicionais, o movimento de
resistência cultural frente à sociedade colonizadora, e os resultados iniciais de pesquisas
25
em andamento pelos próprios professores paiter a respeito de saberes e fazeres
matemáticos de seu povo. A partir das demandas originadas nesse (re)encontro com os
Paiter, busco explicar outro encontro referente aos novos estudos teóricos com os quais me
vi envolvido na busca de compreender minimamente o universo cultural e político que
permeia a formação de professores indígenas e no qual me vi imerso a partir da atuação na
licenciatura intercultural.
Na terceira seção, intitulada Educação Escolar Indígena: faces da escola na aldeia,
analiso e descrevo, com base em referências bibliográficas, as faces que caracterizaram e
caracterizam a educação escolar entre os povos indígenas no Brasil, os diferentes objetivos
dessa educação, os principais atores e instituições que para isso convergiram em diferentes
contextos e períodos históricos. Então, a partir do atual contexto, busco discutir a escola na
aldeia como um possível espaço de hibridação cultural.
Na quarta seção, intitulada Cultura e identidade cultural: a perspectiva dos Estudos
Culturais, apresento uma análise dos conceitos de cultura e identidade cultural, refletindo
sobre a mudança de perspectiva estabelecida por teóricos dos Estudos Culturais em relação
a abordagens que caracterizaram a modernidade. Para tanto, busco explorar teoricamente
os subconceitos de interculturalidade e hibridismo cultural, apoiando-me principalmente
em autores tais como Canclini (2011), Bhabha (2010), Hall (2003; 2011) e Fleuri (2003).
Na quinta seção, intitulada Etnomatemática: uma concepção transformadora,
abordo definições, origens e contextos da Etnomatemática, bem como busco explorar as
diferentes perspectivas que caracterizam a Etnomatemática em seu desenvolvimento.
Então, intento refletir sobre a existência de saberes e fazeres matemáticos em diferentes
contextos e culturas, vinculando-os a modos próprios de pensar, fazer e produzir de cada
povo ou grupamento humano, tomando por base ideias de autores tais como D’Ambrosio
(1990, 2004, 2009, 2011), Barton (2006), Vergani (2007) e Gerdes (2002, 2010).
Na sexta seção, intitulada Aspectos metodológicos da produção e análise de dados,
descrevo as ações que precederam o início da produção de dados na vivência-campo, os
espaços dessa produção, a caracterização dos participantes e um panorama geral a respeito
dos dados produzidos. Em seguida, descrevo a forma adotada para se elegerem, a
posteriori, as categorias etnomatemática, educação escolar indígena e interculturalidade
como categorias de análise de dados, assim como busco descrever a técnica de análise de
dados adotada com aporte no percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva.
Na sétima seção, intitulada Um fazer interpretativo sobre os dados produzidos:
análise semiótica de unidades textuais, apresento as análises semióticas de setenta e sete
26
unidades textuais escolhidas do universo de dados produzidos a partir de treze
tematizações das categorias de análise relacionadas às questões da problemática de
pesquisa. A fim de se identificar os discursos presentes em práticas discursivas de
professores paiter geradas em entrevistas semiestruturadas ao longo da vivência-campo, a
análise de cada unidade textual selecionada foi realizada dentro de um quadro por nós
elaborado com aporte no percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva (ou
greimasiana). Assim, na análise de cada unidade textual, contemplaram-se no quadro de
análise a pergunta enunciada na entrevista, uma autoanálise da pergunta, com destaque
para o fazer persuasivo do pesquisador, a resposta enunciada pelo entrevistado e
considerada como um texto, a identificação de categorias semânticas eufóricas e disfóricas
e a oposição semântica fundamental presentes no nível fundamental do plano de conteúdo,
a análise da resposta no nível narrativo do plano de conteúdo a partir das categorias
semânticas e da oposição semântica fundamental e, por último, a identificação do discurso
presente no nível discursivo do plano de conteúdo.
Na oitava seção, intitulada Etnomatemática e Interculturalidade na Educação
Escolar Paiter, retomo os discursos dos professores paiter identificados na seção anterior e
os organizo em blocos de acordo com as tematizações das categorias de análise, a fim de
realizar uma análise complementar, com apoio nos principais conceitos abordados nos
referenciais teóricos adotados na pesquisa, na direção de compor uma síntese final como
resposta às questões da problemática original de investigação. Assim, busco discutir, a
partir da análise das sínteses de discursos dos professores paiter, como a introdução ao
ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter nas escolas das aldeias por eles projetada
pode contribuir para uma ressignificação de práticas pedagógicas institucionalizadas no
contexto da educação escolar indígena, e sua potencial relação com o fortalecimento
identitário e com a promoção da etnicidade do povo Paiter. Desse modo, são analisadas
trezes sínteses de discursos presentes em práticas discursivas de professores paiter
referentes a Concepções de educação, Mudanças na educação do povo, Concepções de
escola, Importância da escola na aldeia, Motivações para ser professor, Papel do
professor na aldeia, O que deve ser ensinado na escola da aldeia, Relação entre educação
escolar na aldeia e identidade cultural, Concepções de etnomatemática, Como deve ser o
ensino de matemática na escola da aldeia, Importância de se trabalhar com os saberes
matemáticos paiter na escola, Importância dos velhos para o ensino de saberes da
tradição, e Estado da cultura paiter em cem anos.
27
Por fim, apresento considerações finais sobre o desenvolvimento da pesquisa,
refletindo sobre novas perspectivas que a vivência com os professores paiter me
proporcionaram, desde uma reflexão teórica sobre a etnomatemática até uma
transformação de postura em minha própria atuação no curso de formação de professores
indígenas na universidade, ao perceber a necessária mudança quanto às preocupações que
permeiam meu fazer enquanto estudante, docente e pesquisador em Educação Matemática
na Amazônia.
28
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS OU UMA TENTATIVA DE COMPREENDER OS
CAMINHOS QUE LEVARAM À PESQUISA
Esta parte da redação da tese, embora esteja aqui no início, é a última que organizo,
após quatro anos de estudos, leituras, orientações, debates, incertezas, dúvidas, angústias,
alegrias, descobertas, medos e outros sentimentos inerentes ao processo do doutoramento.
Não era um componente previsto para a versão final do texto, mas foi se tornando quase
inevitável à medida que as palavras finais da última seção eram pensadas e escritas, e as
lembranças das sugestões, orientações e críticas recebidas ao longo do desenvolvimento da
pesquisa iam ficando cada vez mais latentes, revelando um sentimento de incompletude.
A decisão de escrever as linhas dessa seção inicialmente não foi fácil de ser tomada
porque imprimiriam à tese um caráter não muito convencional, frente ao modelo padrão
que geralmente se espera de um texto acadêmico ou científico, principalmente quanto à
impessoalidade e à neutralidade do pesquisador. A tomada de decisão foi facilitada,
entretanto, pela compreensão que me foi proporcionada ao longo dos estudos teóricos do
doutorado e do desenvolvimento da pesquisa de que, antes de ser um sujeito a observar um
objeto de investigação dado a priori, distanciado, neutro, objetivo, fragmentado, possível
de ser completamente compreendido pela aplicação de um método também dado a priori,
sinto-me isto sim parte do fenômeno pesquisado, imerso desde meu nascimento no
ambiente da pesquisa. Sinto-me tão ligado ao universo da pesquisa e por ele impregnado, a
ponto de não conseguir mais conceber que se trate de um trabalho individual, de uma
construção intelectual isolada, mas essencialmente de uma produção coletiva,
contextualizada, dela tendo participado diferentes sujeitos interligados pela história e pelo
contexto, jamais como objetos isolados de investigação. Objetos não falam, não se
manifestam, não sentem. Pessoas sim exprimem suas ideias, pensamentos, impressões,
sensações, discursos. Objetos não fazem história. A história é o resultado do fazer humano.
Pessoas, sociedades, grupos humanos fazem história e dela participam de diferentes
formas, em diferentes posições que, em muitos casos, interagem, inter-relacionam-se,
entram em conflito, complementam-se, dão origem a pessoas novas, sociedades novas,
novos grupos humanos.
29
Assim, na busca de uma explicação para o que me levou a desenvolver essa
pesquisa, questão muitas vezes levantada pelas diversas pessoas que acompanharam seu
desenvolvimento e para isso contribuíram, percebi que não bastava identificar elementos
justificantes no recorte temporal do processo de doutoramento. A docência, a Educação
Matemática, o doutorado, a Etnomatemática, a Educação Escolar Indígena, os Paiter
compõem um conjunto multidimensional da minha vida e de minha formação acadêmica
que só pode ser melhor justificado e compreendido se a ele forem acrescentados outros
momentos, personagens e outras experiências vivenciadas ao longo de toda a vida. Muitas
decisões e variados acontecimentos anteriores me levaram até o doutorado, influenciando
as escolhas que culminaram com a pesquisa realizada.
É por perceber o caráter histórico da própria tese, que sinto a necessidade de me
apresentar como sujeito na pesquisa, reconhecendo a impossibilidade de afastar a
subjetividade do pesquisador e assumindo que meu percurso de vida, minha formação
escolar, minha atuação profissional e as diversas experiências vivenciadas até o momento
influenciaram decisivamente a produção e a organização do conteúdo exposto ao longo das
seções desse trabalho. Reconheço agora, também como resultado de minha formação
acadêmica, como aprendizado proporcionado por meus humanizantes professores-
pesquisadores no processo de doutoramento, que assumir nossa subjetividade enquanto
pesquisadores e a presença dela em nossas produções, em nossa escrita, não significa
perder de vista todo e qualquer fazer que se queira científico, mas antes significa
reconhecer no próprio fazer científico seu caráter humano, contingente, impregnado de
valores, de escolhas, jamais algo neutro e completamente objetivo.
Identificar-me como sujeito amazônico de nascimento, trabalhador e estudante da
Educação Matemática nessa região também tem um peso simbólico sobre a tese. Envolver-
me com a Etnomatemática, estudar e aprender com professores indígenas novas
possibilidades teóricas de compreensão das relações interculturais possíveis de permearem
a educação escolar indígena na Amazônia imprimem ao texto uma identidade que também
deve ser considerada em sua leitura. Por tudo isso, apresento nessa seção uma síntese de
minha história pessoal de vida contextualizando-a nos espaços de minha formação,
entendendo que Ser, Estar e Pensar são estados e atos que se inter-relacionam tão
intimamente, a ponto de se poder concluir que todo texto deveria ser precedido de notas
sobre a vida do autor no contexto mesmo em que ela se dá, facilitando com isso aos outros,
ou aos outros de nós mesmos, a compreensão daquilo que fazemos, pensamos e
escrevemos. Sendo assim, passo à minha narrativa, estando ciente de que:
30
Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos significados. Assim, a narrativa não é a verdade literal dos fatos, mas, antes, é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode ser transformadora da própria realidade (CUNHA, 1997 apud NEVES, 2009, p. 32).
1.1 A Infância, o Ensino Fundamental e a Iniciação ao Trabalho
Segundo filho de um casal de jovens paranaenses que migraram para a Amazônia
em busca de melhores condições de vida e como alternativa de fuga das condições de
miséria que muitos trabalhadores do Centro-Sul do país foram submetidos na segunda
metade do século XX, nasci em Ji-Paraná, interior de Rondônia, em meados de 1984, onde
vivi meus dois primeiros anos. Meu pai, um bom mecânico de automóveis; minha mãe,
uma dona de casa dedicada aos filhos; meu irmão, sete anos mais velho, arteiro, mas
cuidadoso comigo, como deve ser o irmão mais velho.
Nessa época, Ji-Paraná estava recebendo milhares de migrantes, em sua maioria
trabalhadores rurais empobrecidos das regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país,
atraídos pela promessa de distribuição de terras pelo governo. Como o número de famílias
que chegavam à região era muito maior do que o número de lotes de terra distribuídos
pelos projetos de assentamento do governo, o resultado foi o intenso e desordenado
crescimento de núcleos urbanos na região, destino de muitas famílias que não conseguiram
acesso à terra e tiveram que lutar, a partir de então, pela sobrevivência nos próprios recém
criados núcleos urbanos, impossibilitados estavam de retornar às suas regiões de origem.
Meus pais, tios e avós paternos enfrentaram este último destino.
Originário de famílias de tradição protestante, durante minha infância fui iniciado
por meus pais na observância dos costumes e da cosmologia judaico-cristã, tendo minha
iniciação espiritual se submetido às regras da comunidade religiosa e da igreja. Felizmente,
embora submetido às duras regras de conduta solicitadas por meus pais, eles sempre
souberam usar do diálogo para a ação de nos educar, a mim e a meu irmão. Isso me
renderia boas reflexões mais tarde, no estudo das formas de se educar e da não necessidade
do uso da violência.
Aos dois anos de idade, mudei-me com a família para a cidade de Presidente
Médici, Rondônia, de onde guardo minhas primeiras recordações: a casa azul, a rua de
31
terra batida, os grandes bueiros de metal no pátio da prefeitura, o pé de limão e as
frondosas mangueiras no quintal de casa, o pequeno riacho do outro lado da rua.
Em meus primeiros anos de vida, não tive acesso à televisão, pois meus pais não a
possuíam. O lado positivo disso talvez tenha sido o fato de que pude descobrir o prazer da
ficção na leitura, tão logo aprendi as primeiras palavras escritas. Por ser o meu irmão sete
anos mais velho que eu, já havia acumulado uma considerável coleção de histórias em
quadrinhos, que aos poucos fui herdando e me deliciando com esse novo mundo que se
abria a mim, com suas aventuras e personagens. Assim teve início minha vida de leitor.
Passado pouco mais de um ano, novamente estávamos de mudança. Dessa vez, para
um lugar ainda mais distante, isolado e de difícil acesso. Mudamo-nos para Rondolândia,
Mato Grosso, onde passaria os próximos dez anos de minha vida, aprenderia muito e
adquiriria experiências riquíssimas para toda a vida. Rondolândia era um pequeno vilarejo,
distrito de Aripuanã, localizado na fronteira Oeste da Terra Indígena Sete de Setembro,
com apenas uma dúzia de casas, de modo que todos os habitantes se conheciam e
compartilhavam das dificuldades geradas pela total ausência do Estado, que se fazia
presente apenas nas pesquisas do Censo ou no período eleitoral, para a arregimentação de
eleitores.
As novas atividades econômicas de meus pais me proporcionaram conhecer novas
figuras humanas, com as quais ainda não havia tido contato. Meu pai, agora dono do único
velho ônibus do lugar, transportava variados tipos humanos e, hoje, revisitando minhas
memórias de impressões de infância, lembro-me dos colonos com suas expressões serenas,
porém sofridas, de peles agredidas pelo sol, esperando pacientemente à beira da sinuosa
estrada pelo ônibus de meu pai, a fim de ir à cidade mais próxima. Alguns para vender a
produção de suas terras, que incluía levar à cidade desde grãos até porcos e galinhas vivas,
outros para buscar mantimentos industrializados, remédios e ferramentas indispensáveis à
continuação da vida no campo. Minha mãe, agora a única comerciante do vilarejo, atendia
em seu pequeno comércio aos seringueiros e colonos mais próximos, mas também, e isso
muito me impressionou nos primeiros momentos, a membros dos povos indígenas Zoró e
Suruí, cujos territórios, a essa altura já demarcados, embora em proporções muito menores
do que as tradicionalmente usadas, ficavam nas proximidades. Por vezes, sempre próximo
de minha mãe, esforçava-me por entender o que os pequenos indiozinhos diziam uns aos
outros em suas brincadeiras do outro lado do balcão do “bolicho”, enquanto seus pais
pediam para embrulhar todo tipo de coisa que havia disponível para comprar. Lembro-me
também dos não indígenas que sempre acompanhavam os indígenas às compras.
32
Futuramente, já na escola, adquiriria elementos que possibilitariam uma análise crítica
desses momentos e da companhia dos “brancos” entre as comunidades indígenas.
Que representação de índio se tinha nessa época em Rondolândia? Pairava no ar
ainda a tensão dos recentes conflitos pela terra entre colonos e povos indígenas da região.
Sobre o solo do vilarejo, poucos anos atrás teriam existido aldeias, possivelmente dos
povos Paiter ou Zoró, sendo comum encontrarmos cerâmicas indígenas nas margens dos
rios onde nos banhávamos e pescávamos, assim como no solo das roças do entorno (Teria
a minha casa sido construída sobre o local de uma maloca paiter destruída há poucos anos
atrás?). Na imaginação dos pequenos, a presença dos indígenas em Rondolândia
representava perigo, pois eram “devoradores de criancinhas”, conforme insinuavam as
narrativas dos adultos. Medo foi o primeiro sentimento que tive em relação aos povos
indígenas. Sem ter os elementos teóricos para uma compreensão crítica da tragédia humana
que o encontro entre pobres não-indígenas e indígenas significava na Amazônia, a pequena
população não-indígena de Rondolândia buscava nessa época manter uma postura de
distanciamento, de diferenciação e, por vezes, de defesa sempre que o vilarejo recebia a
visita de indígenas.
Impulsionado por uma onda de migrações, o vilarejo cresceu, e já no início da
década de 1990 foi necessário construir a primeira escola para atender as crianças do lugar.
Como Rondolândia ficava isolada do restante de Mato Grosso, a escola, de uma única sala,
foi construída e assistida pelo município de Ji-Paraná, com o qual Rondolândia fazia
divisas. De início, formaram-se duas turmas de alunos de 1ª e 2ª série do Ensino
Fundamental. Como à época ainda não tivesse idade para ser matriculado, e não havia
turmas de pré-escolares, fui incentivado por minha mãe a ir à escola como ouvinte aos
cinco anos de idade. De início, tive a companhia de meu irmão, que me levava e me
ajudava a conter o choro de desespero de não sei o quê. A escola, ao mesmo tempo em que
me instigava e me empolgava, com seus cartazes na parede, fazendo-me sentir aluno, com
a pequena mochila nas costas, junto aos outros meninos maiores, assustava-me pela
ausência da segurança e do sentido de ambiente familiar que minha casa me
proporcionava. Mas esse medo logo se dissipou, graças ao carisma, atenção e dedicação de
minha primeira professora. Professora Amélia Santana, com seus gestos delicados, com
sua paciência infinita, soube conduzir a mim e a todos os alunos daquela primeira turma ao
mundo das letras, dispondo para tanto de apenas alguns cartazes, um velho quadro-negro,
algumas cartilhas e muito amor. Ao final do ano de 1990 já estava lendo e escrevendo e,
com seis anos completos, pude ser matriculado oficialmente na 1ª série em 1991. Pelos
33
dois anos seguintes, fui educado pela doce professora Amélia que me serviria de
inspiração, anos mais tarde, já como professor em sala de aula.
Com o aumento da demanda por educação escolar, a escolinha precisou ser
ampliada, o que foi feito pela própria comunidade, construindo-se outra sala, dessa vez de
pau-a-pique, e novos professores foram contratados. Para minha sorte, e a de meus amigos
de 2ª série, as lideranças políticas de Rondolândia começaram a despontar e a procurar
pelo Estado, a fim de que este pudesse oferecer maior assistência ao vilarejo. Assim, antes
que completássemos o ano de 1992, construiu-se uma nova escola, dessa vez com várias
salas de aula, um espaço para a prática de esportes e uma pequena biblioteca. Desse modo,
comecei minha 3ª série numa escola “enorme”, e, para minha tristeza, com novos
professores. Professora Amélia não mais pôde nos ensinar, pois a escola havia passado
para a responsabilidade do município de Aripuanã, que não a contratou.
Nessa época, Rondolândia ainda não possuía uma rede de energia elétrica, de modo
que as únicas casas iluminadas por lâmpadas e que possuíam aparelhos de televisão eram
aquelas com geradores movidos a motores a diesel, ligados somente a noite durante duas
ou três horas, ou energia proveniente de baterias. Isso promovia um fato curioso aos olhos
de quem era de fora, e que agora, analisando essa situação, verifico que a ausência de
energia elétrica em muitas casas não era elemento de segregação social. Curiosamente,
praticamente todas as famílias se viam representadas na reunião que se fazia a partir das 18
horas em cada um dos dois bares que possuíam televisão. Em torno dos aparelhos se fazia
uma organização de modo que, à frente, ficavam sentadas ao chão as crianças e menores,
logo atrás vinham os imediatamente maiores, também sentados ao chão, e finalmente os
adultos, acomodados em tamboretes e bancos de madeira. Integravam os telespectadores
também os professores que não trabalhavam no período noturno. A essa altura,
aproveitando de certa liberalização na minha educação religiosa, também pude começar a
assistir às primeiras telenovelas, aos primeiros telejornais e filmes, integrando o grupo de
curiosos e fascinados que se formava à noite em frente aos aparelhos de televisão em um
dos dois bares de Rondolândia. A partir de então, minhas referências se ampliaram. Novos
valores, novos padrões de comportamento veiculados pela televisão, inexistentes até então
no contexto do vilarejo, passaram a compor meu imaginário e representações de mundo.
Nos anos imediatamente posteriores, pude desfrutar dos elementos que um lugar semi-rural
pode oferecer, que inclui a tranquilidade, a proximidade entre as pessoas e o contato com a
natureza.
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De meados da década de 1990 em diante, com a mudança de atividade econômica
de meu pai, fui iniciado no mundo do trabalho, ajudando-o na extração de madeira das
florestas nas proximidades do vilarejo. Isso incluiu, por certo período, a compra de madeira
de comunidades indígenas no entorno de Rondolândia, e essa foi minha segunda
oportunidade de contato com os povos indígenas. Durante as férias escolares, ia com meu
pai em seu velho caminhão “toreiro” para o interior dos territórios dos povos Arara ou
Suruí, onde ficávamos acampados durante dias, na companhia de integrantes das
comunidades indígenas e também de não-indígenas, realizando a extração e o comércio de
madeiras. Mais tarde, faria uma análise crítica destes momentos, percebendo que tais ações
contribuíam para a perpetuação da exploração a que os povos indígenas foram submetidos
desde a chegada dos colonizadores europeus, sendo, em particular, parte da história recente
da colonização da Amazônia. No entanto, naquela época, entendia aquela atividade como
um trabalho de subsistência, tanto para os trabalhadores não-indígenas, quanto para os
integrantes das comunidades indígenas envolvidos. A aparente abundância de floresta do
entorno de Rondolândia e a demanda de madeiras proporcionada por empresas madeireiras
de Ji-Paraná estimulavam muitos trabalhadores a trocarem suas atividades econômicas
antes ocupadas para explorar essa nova fonte de renda. Mais uma vez, as condições
materiais de existência não possibilitavam a compreensão pelos participantes indígenas e
não-indígenas de que integravam um cenário trágico composto pelo encontro de diferentes
civilizações no contexto amazônico do final do século XX. Em Rondolândia dos anos
1990, encenavam-se a tragédia cultural, a tragédia ambiental e a tragédia humana que a
exploração capitalista da Amazônia significou.
Nessa época, a representação de indígena em Rondolândia já havia mudado
significativamente. Se antes havia um distanciamento velado entre a população do vilarejo
e os povos indígenas locais, agora a relação comercial entre os dois lados dava lugar a
novas representações. A extração de madeira das terras indígenas do entorno, cujo destino
eram grandes empresas madeireiras em Ji-Paraná, estreitaram as relações, sendo a
circulação de dinheiro, bens e mercadorias um grande catalizador destas mudanças. Com o
dinheiro obtido com a venda da madeira, os indígenas vizinhos abasteciam o comércio do
vilarejo, adquirindo todo tipo de mercadoria que desejavam e encontravam, na busca de
satisfazer necessidades de consumo que o novo estilo de vida que iam adotando lhes
impunham.
Embora com meus dez anos de idade já estivesse trabalhando, meus pais nunca me
deixaram faltar à escola, e também me esforçava para que isso não acontecesse. Isso
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porque, a essa altura, já havia descoberto a curiosidade pela ciência, o gosto pela história,
pela literatura, já havia descoberto o pequeno acervo de livros na biblioteca da escola e os
lido com o prazer de quem descobre um mundo novo. Assim foi minha infância, com
acesso a tudo o que uma criança tinha direito: muitas brincadeiras e jogos esportivos,
acesso à escola, pescarias, contato com a natureza amazônica e outros povos, e muitos,
muitos livros e gibis, além da iniciação ao mundo do trabalho, com as responsabilidades
que tal ambiente nos traz.
Antes que eu pudesse concluir o ensino fundamental, impulsionados por uma crise
econômica nos negócios de meus pais, fomos obrigados, em dezembro de 1997, a nos
mudar de Rondolândia. Ficaria para traz, dessa vez, meu único irmão, agora casado e
professor. A ausência de meu irmão me faria evidenciá-lo nos anos seguintes como
referencial, influenciando minhas futuras escolhas pelo magistério como campo de atuação
profissional e de realização pessoal. Assim, no início de 1998, chego com meus pais ao
município de Nova Mamoré, Rondônia, à época uma pequena cidade com ruas de terra
batida na fronteira com a Bolívia. Embora passasse ali menos de três anos de minha vida,
esse lugar seria decisivo para minhas futuras escolhas políticas, ideológicas e profissional.
Diferentemente de Ji-Paraná, cujo conhecimento e tratamento da memória histórica
do lugar pela população migrante sofreu uma cisão, separando, na consciência dos
milhares de novos habitantes, o presente de conflitos pela terra do passado histórico
recente do lugar, por onde havia transitado a Comissão Rondon na primeira metade do
século e onde viviam sociedades e povos milenares, Nova Mamoré apresentava símbolos
que faziam a história e a memória da colonização resistir ao tempo. A estação ferroviária
de Vila Murtinho e os trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, rasgando a floresta
como tentáculos metálicos da civilização ocidental, eram monumentos que faziam ecoar no
imaginário dos habitantes locais, como testemunhas de um período recente, as cenas de
mais um capítulo trágico da história da Amazônia, palco do encontro de civilizações
subjugadas pelo interesse do capital. Proposta como contrapartida do Brasil no acordo
firmado com a Bolívia pelo Tratado de Petrópolis, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
concluída em 1912, significou para essa porção amazônica a consolidação da colonização
dos vales do Madeira e do Mamoré e a expulsão, a escravização ou a dizimação a ferro e
fogo, literalmente, de populações indígenas inteiras, além de ter custado a vida de milhares
de trabalhadores, de diferentes nacionalidades, sucumbidos pela malária. As narrativas
populares desse período ainda se faziam muito presentes em Nova Mamoré no final do
século.
36
De início, não nos instalamos na zona urbana do município, mas no sítio de um
conhecido da família, situado a 6 km da cidade, onde meus pais dariam início a uma nova
atividade econômica: a produção de carvão em fornos de tijolo e barro. Por esse motivo,
para chegar à escola estadual Casimiro de Abreu, onde havia sido matriculado para cursar
a 8ª série, faria o pequeno percurso rural ora de bicicleta, ora de carona na velha
caminhoneta que usávamos para transportar a madeira dos pátios de serrarias aos fornos de
carvão.
Durante o primeiro ano em Nova Mamoré, surgiram-me muitos elementos novos.
Primeiramente o estilo de vida urbano que a pequena cidade já possuía e com o qual passei
a ter contato todos os dias ao chegar e ao sair da escola, com seu trânsito, com suas blitz de
trânsito inclusive, algo inexistente na pequena Rondolândia de minha infância; além disso,
os tipos humanos, a variante linguística, as novas expressões do lugar eram em muito
diferentes do que estava acostumado a ver e a ouvir. Mesmo na televisão, quando
assistindo a reportagens e programas que se passavam em diferentes lugares do país, ainda
não havia visto lugar que se comparasse a Nova Mamoré. Por se situar a 6 km da divisa
com a Bolívia, a presença do povo boliviano no lugar era intensa, tanto no comércio, que
era livre entre o nosso país e o vizinho, como nas escolas, onde havia muitos descendentes
ou migrantes bolivianos. O contato com esse novo povo faria com que ganhassem todo o
sentido as aulas de história e geografia da América Latina. Eu estava em contato direto
com os descendentes da sociedade Inca.
Na primeira ida de minha mãe ao comércio da cidade boliviana de Guayaramerín,
pude então, pela primeira vez, pisar em solo estrangeiro. Durante a pequena estadia
naquele país, observei a tudo com a máxima atenção, impregnando-me das cores vivas e
múltiplas das vestimentas daquele povo, surpreendendo-me com a simplicidade e beleza
das tranças do penteado das senhoras bolivianas (que posteriormente seriam a mim
explicadas com um quê histórico), admirando-me com o jaleco branco que todos os alunos,
ainda crianças, vestiam sobre o uniforme, numa velha sala de aula, com as janelas dando
para a calçada da rua e, principalmente, sensibilizando-me com a aparente pobreza material
e miséria infligida àquele povo, evidenciadas na precariedade do acesso aos alimentos, na
falta de saneamento básico na cidade e na expressão de sofrimento nas faces dos
trabalhadores. Levaria comigo todas essas impressões, que viriam à tona e com todo o
sentido na escola, ao ler, sob indicação de meu professor de história, Simon Oliveira, o
livro “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Aliás, professor Simon
foi um dos educadores que marcaram minha vida acadêmica e um de meus iniciadores na
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admiração das artes, no gosto pela filosofia, pela educação e pela política. Foi também na
8ª série que conheci o professor de Matemática, Messias, que, com suas feiras e gincanas
de matemática, despertaria em mim o prazer em estudar as equações e todo o mundo que
se estabelece nas relações entre os números.
Hoje percebo o quanto esteve ausente em minha formação escolar desse período o
conhecimento sobre os povos indígenas da região de Nova Mamoré. A cidade está a
poucos quilômetros dos Wari e Urueu-wau-wau, mas nenhuma aula me foi oportunizada
sobre a história, a cultura, a vida desses povos indígenas da região. Padecem os currículos
escolares do sistema público de ensino em Rondônia de uma crônica e histórica
invisibilização das culturas e povos indígenas. Herança de um período tortuoso da
colonização da Amazônia, ainda há muito o que se avançar nas atuais políticas públicas de
educação na região. Como pesquisador e estudante amazônico da Educação Matemática,
percebo agora o quanto esses temas devem inevitavelmente permear minhas ações, assim
como a de meus pares, podendo a Etnomatemática ser uma via (multidimensional) para a
regionalização de nosso pensamento crítico e de nossas produções acadêmicas.
Ainda durante o ano de 1998, pude concluir meus estudos de música iniciados em
Rondolândia, e me tornar músico oficial, tocando clarinete na Igreja, onde finalmente fui
batizado naquele mesmo ano. Paralelamente às atividades escolares, de leitura e de lazer,
continuei a ajudar meus pais no trabalho, que agora se dava na carvoaria e no transporte
dos restos de madeira dos pátios de serrarias da cidade até os fornos de tijolo e barro
construídos no sítio em que morávamos de favor. Embora fosse um trabalho árduo e
perigoso à saúde, sobre o que havíamos inclusive feito atividades na escola que tratavam
do trabalho infantil em carvoarias, nunca fui prejudicado por ajudar meus pais, que sempre
zelaram por minha formação escolar, sendo, inclusive, em diversos momentos, dispensado
do trabalho para me dedicar às atividades extraescolares ou de simples leitura de lazer, o
que me causava certa compaixão para com meus pais, pois sabia que minha ajuda faria
falta na produção do carvão. Esse sentimento me impulsionava a me dedicar o máximo
possível nos estudos e a não desperdiçar um momento sequer nos afazeres de estudante.
Ao concluir a 8ª série, um ano havia se passado de grandes mudanças em minha
vida. Não só as mudanças de ambiente físico, mas me sentia transformado interiormente.
Grandes questionamentos haviam tomado conta de meus pensamentos e certa angústia me
havia impregnado por ter sido apresentado aos problemas da humanidade. No plano
individual, começava a brotar em mim as primeiras inquietações filosóficas do ser-no-
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mundo, e tudo passou a ser questionável, inclusive instituições tradicionalmente intocáveis
em minha educação familiar, tais como a Igreja, a Polícia e os Governos. Era o caos.
1.2 O Magistério
No início de 1999, mudamo-nos para a zona urbana de Nova Mamoré, onde eu iria
iniciar o Magistério, na escola Estadual Salomão Silva, no período noturno. A essa altura,
já não havia mais dúvidas de que preferiria o Magistério ao Ensino Médio Colegial.
Mesmo orientado por alguns professores de que não deveria cursar o Magistério por este
curso não oferecer uma “boa preparação para o vestibular”, não tive dúvidas, pois sabia, ao
conhecer o currículo do curso, que na educação teria maiores oportunidades de aprofundar
meus questionamentos e conhecer um pouco mais dos segredos do ser humano. Contou
também para essa decisão o fato de ter um irmão, em quem me espelhava, já professor, e
pelos excelentes mestres que tive durante meu ensino fundamental, em especial as
conversas que tive com professor Simon.
A transferência do sítio para a cidade deu-me a oportunidade de me tornar um
assíduo frequentador da biblioteca municipal, onde conheci a senhora Márcia, bibliotecária
e companheira no curso de Magistério. A amizade com senhora Márcia me garantiu alguns
privilégios. Após algum tempo fazendo empréstimos ou mesmo lendo no próprio espaço
junto às prateleiras de livros, consegui liberação para levar para casa, nos finais de semana,
alguns volumes que não poderiam sair da biblioteca. Foi assim que consegui ler, mesmo
sem entender muita coisa de imediato, o primeiro volume de O Capital, de Karl Marx.
Marx era uma constante nos estudos das disciplinas no Magistério, assim como
Paulo Freire, de modo que o autor que não era marxista era geralmente rejeitado pelos
professores. Mas o que se falava do pensamento de Marx eram apenas linhas gerais, que
permeavam a educação, a política e as instituições. Os conceitos de luta de classes, de
socialismo, comunismo, mais-valia, acumulação primitiva, entre outros, eram abordados a
partir de interpretações já elaboradas das obras de Marx. E naquela inquietude de
adolescente que acha que descobriu o mundo e desconfia de todos, procurei logo ir à fonte
original. Doce desilusão. Marx era “osso duro de se roer”. O volume 1 de O Capital foi
lido sim, mas às custas de pura obstinação e pela obrigação de menino petulante que se vê
diante de desafio maior que ele, pois o prazer da leitura já havia ficado nas primeiras
páginas, na análise dos primeiros períodos da obra. Essa pequena frustração permitiu dar-
me conta do quanto era ignorante e do quanto ainda não sabia. E isso tornou-se motivação
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para me aprofundar cada vez mais nas leituras e nos estudos gerais. Agora já arriscava dar
passos em variadas áreas, que iam de história e filosofia às teorias de educação, sociologia,
psicologia e política.
Nesse momento de minha educação e de minha experiência cultural, além da
cosmologia judaico-cristã do velho mundo reproduzida no interior da família, alcançava-
me também uma matriz filosófica do velho mundo, encontro esse a mim proporcionado por
duas das principais instituições que reproduzem em nossa sociedade saberes e elementos
culturais de outros contextos, de outros tempos: a biblioteca e a escola. O poder destas
duas instituições, a escola e a biblioteca, somado ao poder de outras instituições tais como
a igreja, os meios de comunicação e o conjunto das mídias digitais globais, proporcionam
transpor no tempo e no espaço práticas culturais homogeneizantes que fazem de nós, os
sujeitos que por elas se submetem, por vezes seres desenraizados, perdidos de nossas
próprias identidades locais, senão portadores de múltiplas identidades. Estas instituições
podem fazer com que um jovem do interior da Amazônia passe a pensar a partir de
cosmologias e matrizes filosóficas idênticas às de outros jovens situados a milhares de
quilômetros de distância, falantes de outras línguas e contextualizados em outros
ambientes. Como pensar estas instituições no interior de sociedades indígenas amazônicas,
com cosmologias e sistemas de pensamento tão originalmente distintas daqueles baseados
no velho mundo? Poderia eu defender uma educação escolar nesses moldes para
comunidades indígenas da região em que nasci e vivo? Questões como essas visitam-me
constantemente em meu fazer docente, porque me fazem perceber a intensidade da
interferência que a educação escolar produziu nos rumos que minha vida tomou.
A essa altura, já praticamente não ajudava meus pais na carvoaria que havia ficado
no sítio, pois passava a maior parte do dia lendo, e à noite cursava o magistério. Com muita
sorte, continuei sendo educado pelos professores Messias, em Matemática, e Simon em
História e em Filosofia. Professor Simon, além de dar aulas no sentido stricto, sempre que
possível convidava seus alunos para uma conversa filosófica. Para mim, esses momentos
eram simplesmente mágicos, pois fazíamos viagens incríveis pelo mundo do pensamento.
Em certos momentos, ele nos orientava a observar o movimento das pessoas em suas
atividades cotidianas, a especular sobre o que aquelas pessoas acreditavam, o que faziam e
para que e quem faziam. Outras vezes, trazia um livro e líamos alternadamente, parando
em certas passagens para discutir o que havia sido lido. Um desses livros foi “O Mundo de
Sofia”, de Jostein Gaarder, que por alguns momentos me fez pensar que não passava de um
personagem sentado num banco de escola, recebendo lições de filosofia.
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Após estas incursões pela filosofia, algumas coisas passaram a ser difíceis de
aceitar como inquestionáveis e as relações com a Igreja foram ficando insustentáveis. Ao
final do primeiro ano do magistério tudo estava instável e acabei por sair da Igreja,
deixando também de tocar clarinete. Havia perdido o encantamento pela religião. O
materialismo histórico ocupava o espaço de minhas representações cosmológicas e
espirituais do mundo e passaria a influenciar, desde então, muitas de minhas escolhas
pessoais, meu percurso de formação acadêmica e minha atuação profissional.
Nessa época, abriam-se na cidade as primeiras escolas de informática, e meus pais,
num grande esforço, pois as condições financeiras da família não iam nada bem, deram-me
a oportunidade de participar de um curso de introdução ao uso do computador. Que coisa
fantástica era o computador. Não tive dificuldades com o teclado, pois havia feito um curso
de datilografia em Rondolândia. Assim, pude avançar logo para a prática, criando e
salvando arquivos, formatando discos e imprimindo textos. Estava assim criada uma
parceria que se estenderia até os dias de hoje. Agora, não me vejo sem essa máquina no
meu trabalho, em sala de aula, no lazer, na pesquisa e na produção acadêmica. Questiono-
me, às vezes, até que ponto essa dependência tecnológica proporciona um ambiente
propício a determinadas elaborações teóricas e não a outras. De todo modo, percebo o quão
importante têm sido a internet, as redes sociais e os ambientes virtuais em geral, não só
para o espaço acadêmico, mas também para as populações tradicionais, os povos
indígenas, como instância de promoção de suas culturas e também como janela de acesso a
mundos cujos limites e distâncias físicas os tornariam inacessíveis.
No início de 2000, com meus 16 anos de idade, inicio meu primeiro trabalho
remunerado, numa tornearia mecânica de um jovem boliviano, amigo de meu pai. Havia
me tornado um operário assalariado e aquilo para mim era importante tanto pela renda que
teria no final do mês para ajudar meus pais, como por estar vivenciando a teoria de Marx
na prática. E o que era mais interessante: estava do lado dos “oprimidos”. Só não tive a
oportunidade de participar de nenhuma greve durante todo o período que trabalhei ali, pois
éramos o boliviano, dono da tornearia, e eu, ajudante geral, responsável por organizar as
ferramentas, limpar as peças quebradas que iriam receber as soldas e retirar os entulhos e
pó de ferro que se acumulavam no torno. Desse modo, não houve nenhuma luta entre o
dono dos meios de produção e o trabalhador operário, afinal, éramos os dois proletários,
proletários amazônicos.
Passados seis meses daquele ano, após meu pai e minha mãe serem acometidos,
alternadamente, pela malária, a produção da carvoaria tornou-se economicamente inviável,
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o que na prática significava que não rendia mais o suficiente para a subsistência dos três
membros da família, não pagava mais os alimentos necessários a nossa sobrevivência.
Levados pelo agravamento da crise financeira da família, mais uma vez precisei me mudar
com meus pais. Dessa vez, com pesar ainda maior, pois deixava para trás grandes amigos,
mestres que haviam me iniciado num mundo totalmente novo e impressionante.
Ariquemes, Rondônia, foi nosso novo destino. A cidade era a maior dentre as que já
havia morado, desde a saída de Ji-Paraná, 13 anos antes. Pela primeira vez pude ir a um
cinema e sentir o prazer que essa arte proporciona. Mas foi em Ariquemes também que
passei a participar ativamente do movimento estudantil, ingressando no grêmio da escola.
E durante uma greve dos professores estaduais, não hesitamos, eu e meus companheiros de
movimento, a ir a todas as rádios da cidade declarar o apoio dos estudantes aos grevistas.
Chegamos mesmo a promover uma assembleia geral no Heitor Villa-Lobos, escola
estadual tradicional da cidade, com a presença em massa dos alunos, saindo em passeata
pela cidade ao final da assembleia, bradando palavras de ordem ao governador e secretário
de educação num alto falante, a essa hora emprestado pelo sindicato dos professores.
Experiências de formação política como essa às vezes marcam nosso inconsciente
de tal modo que, em nossos escritos, frente às mazelas, injustiças sociais e outros
problemas crônicos, porém históricos, de nossa sociedade sobre os quais desenvolvemos
nossas pesquisas, passamos a reproduzir certos ativismos, originalmente característicos da
panfletagem, mas que em nossos textos acadêmicos ganham contornos do Dever-Ser.
Nesse sentido, a dimensão política de nossas produções acadêmicas tende a nos transferir
da descrição para a prescrição, da contemplação para a ação. Até que ponto temos
consciência e controle sobre isso? Nesse sentido, os escritos dessa tese, os rumos que o
texto tomou, suas tonalidades políticas e conteúdos discursivos certamente estão
permeados de experiências de formação vividas anteriormente ao processo do
doutoramento, sobre os quais posso não ter consciência e controle. Ao refletir sobre
etnomatemática, educação escolar indígena e interculturalidade, não são apenas as vozes
dos diferentes autores das referências consultadas, nem somente as práticas discursivas dos
sujeitos da pesquisa que ditam os rumos e a forma final do texto, mas também toda uma
carga de experiências pessoais que imprimem indiscutivelmente à tese uma dimensão
subjetiva, permeada de minhas visões de mundo e das projeções ideológicas que faço sobre
a realidade. Essa carga de experiências certamente guarda estreitas relações com o período
de minha formação ocorrida em Ariquemes.
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Na escola estadual Heitor Villa-Lobos, passei a integrar a última turma de
magistério, pois, em 2000, as secretarias estaduais de educação de todo o país haviam
abolido as matrículas em cursos normais de nível médio, a partir de uma interpretação da
Lei nº 9394/96. Os Últimos Moicanos, como nomeamos nossa turma, éramos grandes
sonhadores e discutíamos com entusiasmo ideias de Paulo Freire, de Vygostky e Piaget.
Não víamos a hora de concluir o curso para assumirmos uma sala de aula e colocarmos
todas aquelas teorias em prática.
Eis que os últimos dias do ano de 2000 chegavam ao fim. Eu estava estabelecido
numa nova cidade, politizado como nunca, disposto a defender a qualquer custo as causas
da educação e apaixonado como sempre pelo mundo das letras. A essa altura já havia
descoberto o caminho da biblioteca municipal, onde ficava a maior parte do tempo quando
não estava na escola, pois havia sido liberado de vez por meus pais para apenas me dedicar
aos estudos. Havia descoberto também uma classe de livros que me havia cativado: as
biografias. Che Guevara, Fidel, Hitler, Einstein, Newton, Lênin, Paulo Freire, Darwin,
Lampião, Mozart e muitos outros personagens históricos, humanistas ou não,
revolucionários ou ditadores, artistas ou educadores, passaram a me ser familiares.
Como nas demais escolas, no Heitor também tive grandes professores. Lembro-me
em especial do professor Caio, de Língua Portuguesa e Literatura, pela amizade e pelos
últimos lançamentos de livros que me emprestou. Não tinha condições de comprar os
livros “do momento”, mas professor Caio fazia questão de me emprestar os seus. Caio
também nos estimulava à produção escrita e nos mantinha sempre em contato com os
temas atuais, despertando em cada um de nós o senso crítico, que nos habilitava a produzir
textos sobre diferentes situações, sempre primando pela clareza de ideias e atenção às
regras da língua escrita.
Essa relação com a escrita me facilitou, no início de 2001, o ingresso na redação de
um jornal regional da cidade, O Vale do Jamari. Era o meu segundo trabalho remunerado,
embora na informalidade, sempre com atrasos no salário e condições de trabalho
estafantes. Minha passagem pelo jornal não durou muito, pois logo percebi que possuía
uma linhagem ideológica que feria meus princípios e concepções. Serviu-me a experiência
para comprovar as teorias críticas sobre os meios de comunicação discutidas em sala de
aula.
Em meados de 2001, saí do Vale e voltei a ser apenas o estudante engajado nos
movimentos sociais, filiei-me a um partido político de esquerda e passei a frequentar as
reuniões do partido, de movimentos de trabalhadores rurais e do movimento estudantil. À
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essa época, estava cursando o 3º ano do magistério à tarde e o 2º ano do Colegial à noite,
pois estava preocupado em me preparar para o vestibular, estudando as disciplinas
propedêuticas desse segundo curso.
O ano de 2001 já caminhava para o final, quando dois fatos novos ocorreram em
minha formação. O primeiro foi o convite para participar de um curso de formação de
alfabetizadores de adultos, patrocinado pelo Banco do Brasil, nas linhas do método Paulo
Freire. Participei do curso com grande entusiasmo, imaginando que no próximo ano já
poderia abrir uma turma de alfabetização de adultos em meu bairro, projeto que não
concretizei por minha vida ter tomado outras direções. O segundo foi o acesso, pela
primeira vez, à internet. Aos dezessete anos de idade, pela primeira, no novíssimo
laboratório de informática da escola, acessei a rede mundial de computadores. Que
fantástico. Tinha o mundo nas mãos: imagens, sons, cenários. Era o fim das fronteiras
físicas que a natureza me impunha.
Dezembro de 2001 chegou e com ele encerrou-se um ciclo pedagógico no país. A
partir daquele momento não existiriam mais cursos de nível médio para formação de
professores no Brasil. No discurso realizado na cerimônia de formatura, como orador da
turma, ressaltei os valores com os quais havíamos nos identificado durante nossa formação,
lembrando a todos da esperança em nós depositada como agentes de transformação da
realidade social, e me esforcei em ressaltar a universalidade do papel do educador, como
cidadão do mundo, e, como tal, sensível a toda desumanidade cometida em qualquer lugar
no planeta.
1.3 A Docência e a Licenciatura em Matemática
Com o ensino médio concluído, logo surgiu uma nova oportunidade de trabalho: o
concurso público dos Correios, para a função de atendente comercial na agência de
Ariquemes. Em seguida prestei dois vestibulares, o primeiro para Direito, numa faculdade
particular em Ariquemes, e outro para Licenciatura em Matemática, na Universidade
Federal de Rondônia, Campus de Ji-Paraná. E, antes mesmo de qualquer dos resultados
serem divulgados, prestei meu primeiro concurso para professor, oferecido pela Secretaria
Municipal de Educação de Ariquemes.
Os momentos de espera pelos resultados foram angustiantes, e o que mais temia era
não ter conseguido passar no vestibular da federal. Para minha surpresa, fui aprovado em
todas as provas que fiz. O primeiro resultado a sair foi o dos Correios, mas ao me
44
apresentar para tomar posse fui avisado de que não poderia fazê-lo por ainda não ter
completado a idade mínima de 18 anos (na época, estava exatamente com 17 anos e 9
meses de vida). Tristeza momentânea, pois logo em seguida saiu o resultado do vestibular
para Direito. Havia passado, mas, na impossibilidade de conseguir uma bolsa de estudos
que financiasse o curso da faculdade particular, não me matriculei. Decepção que logo
ficou para trás, pois saiu o resultado da UNIR e eu havia sido aprovado. No momento em
que li o resultado, gostaria de agradecer aos meus grandes mestres, aos meus queridos
professores: Amélia, Simon, Messias, Caio e a todos os demais. Também me veio à
consciência o fato de que o número de inscritos teria sido bem maior do que as 40 vagas
disponibilizadas no vestibular. Mais uma vez os gargalos de nossa organização social
estariam perpetuando o sistema, impedindo o acesso de muitos ao saber, e ao poder. As
aulas na UNIR só teriam início seis meses depois, já em meados de 2002.
O resultado do concurso da prefeitura foi o último a sair, e também havia passado,
de modo que, em abril de 2002, entrei pela primeira vez numa sala de aula como professor
de uma escola em um bairro periférico de Ariquemes, o Setor 9 “de baixo”, Escola
Municipal Magdalena Tagliaferro. Que maravilhosos foram aqueles primeiros contatos
com meus alunos. Eu não estava apenas os ensinando, mas principalmente, e isso eles não
sabiam, aprendendo a cada pergunta ou situação embaraçosa em que me punham. Como
professor multidisciplinar, novamente estava em contato com todas as áreas do
conhecimento, além de estar pondo em prática as teorias da educação vistas no magistério.
Poucas semanas se passaram do início de minhas atividades docentes, veio-me o
convite da secretaria de educação para integrar uma equipe de professores destinados à
execução de um projeto de escola-polo numa região de garimpo, localizada em Bom
Futuro, distrito de Ariquemes. Como ainda não houvesse iniciado o curso na UNIR,
prontamente aceitei o convite.
Os meses em que passei trabalhando na escola municipal Padre Ângelo Spadari, no
garimpo, renderam-me riquíssimas experiências. Aquele ambiente tinha um histórico de
violência, e as crianças traziam para a sala de aula seus depoimentos, do sofrimento dos
trabalhos, dos parentes mortos em disputas violentas com vizinhos. Nesse meio, o
ambiente escolar era uma espécie de refúgio e a esperança de transformação daquele
quadro precário em que viviam. Como ficávamos durante todo o tempo no garimpo,
retornando à cidade apenas nos finais de semana, com a chegada do período de me
matricular na UNIR, precisei retornar ao trabalho em escolas da zona urbana de
Ariquemes.
45
Era chegado o mês de julho de 2002, e uma nova fase se iniciava em minha vida. A
vida de universitário me acrescentou muitos elementos novos. A organização da
universidade, o contato com professores pesquisadores, a liberdade de expressão, e,
principalmente, o fascinante mundo da Matemática me fizeram novamente obstinado pela
busca do conhecimento. Esse entusiasmo compensava todo o sofrimento que foi estudar
em uma cidade distante de casa e do ambiente de trabalho cerca de 200 km. Durante os três
primeiros semestres do curso a rotina foi dura, pois dava aulas numa escola pela manhã, à
tarde até o recreio em outra escola, de onde saia correndo para o ponto do ônibus que
levava os universitários a Ji-Paraná, de onde chegava novamente em casa às 2 horas da
manhã, para levantar às 6 horas da manhã novamente para ir trabalhar.
Ainda durante o segundo semestre de 2002 surgiu a oportunidade de ingressar em
um programa da UNIR destinado à capacitação de professores leigos, o PROHACAP, com
cursos de nível superior ofertados nos períodos de férias. Foi assim que, durante os três
primeiros semestres do curso regular de Matemática, também cursei três períodos do curso
de Letras no PROHACAP.
Como gastava muito com passagens, alimentação e demais gastos necessários a
minha manutenção no curso de Matemática, todo o salário que recebia dando aulas era
gasto em meus estudos, de modo que ainda mantinha uma dependência em relação a meus
pais, com os quais continuava morando. Fato esse que se alteraria a partir do segundo
semestre de 2003, quando participei de uma seleção do Departamento de Matemática da
UNIR para o ingresso na Iniciação Científica, ganhando uma bolsa do CNPq.
Com a oportunidade de ingressar de fato no universo da pesquisa científica, não
tive dúvidas em escolher me transferir definitivamente para a cidade de Ji-Paraná,
deixando temporariamente a sala de aula e o curso de Letras, e passando a me dedicar
exclusivamente ao curso de Matemática. Sob orientação do físico, professor Dr. Carlos
Mergulhão, fui introduzido na pesquisa experimental, no âmbito do Experimento de
Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), um projeto científico de
cooperação internacional, envolvendo instituições brasileiras, americanas e europeias. Meu
projeto de iniciação científica tinha como objetivo a construção de um modelo matemático
para a estimativa dos fluxos de água entre os diferentes tipos de superfícies vegetadas na
região de Ji-Paraná e a atmosfera, a fim de se verificar as influências do desmatamento de
florestas tropicais no balanço hídrico dos solos. Os dados foram coletados numa área de
pastagem da Fazenda Nossa Senhora, a 40 km de Ji-Paraná, e na floresta da Reserva
Biológica do Jaru, a 120 km de Ji-Paraná. Para acessar a Rebio Jaru, ora íamos pelas
46
estradas vicinais, ora de barco pelo rio Machado. Em momentos de instalação/calibração
dos equipamentos, ou de campanha intensiva de coleta de dados, permanecíamos
acampados por até uma semana na sede do IBAMA, localizada no interior da reserva.
Durante os dois anos de iniciação científica, recebi importantes lições, principalmente
relacionadas ao rigor científico no tratamento dos dados e ao compromisso com a produção
acadêmica.
Em meados de 2004, dava início às minhas primeiras publicações num evento
científico. E para minha grande felicidade, fui agraciado com o prêmio de melhor pesquisa
de iniciação científica na linha “mudanças de cobertura e uso da terra” durante a III
Conferência Científica Internacional do LBA, realizada em Brasília. A partir dali, criaria o
gosto e a necessidade em participar dos eventos do mundo científico e de expor os novos
resultados que iam sendo atingidos em minhas pesquisas, e pelos demais integrantes do
nosso grupo de pesquisadores de iniciação científica.
Porém, paralelamente às conquistas na universidade, cresciam as dificuldades
financeiras, pois, apenas com a bolsa de iniciação científica, tornara-se impossível cobrir
os gastos com aluguel, alimentação, transporte e livros. Foi então que, expondo minhas
dificuldades financeiras a meu orientador e aos coordenadores do LBA, recebi a
autorização para me dedicar metade do dia a alguma atividade que me rendesse divisas,
desde que isso não atrapalhasse o andamento de minha iniciação científica. A oportunidade
surgiu com um concurso da Secretaria Municipal de Educação de Ji-Paraná para professor,
com opção para se trabalhar 25 horas semanais. Passei no concurso e, em julho de 2004,
estava de volta a uma sala de aula. Só que dessa vez num lugar muito especial. Havia
escolhido dar aulas numa unidade prisional. Durante os próximos 18 meses, ensinaria
Física e Matemática numa sala de aula improvisada dentro de uma cela, na penitenciária
regional Agenor Martins de Carvalho. Essa foi outra experiência riquíssima que me fez
quebrar preconceitos, conhecer figuras fantásticas e, mais uma vez, questionar as
condições do homem no mundo.
A população carcerária da penitenciária na época era de aproximadamente 250
homens e 50 mulheres. Estas pessoas ficavam divididas entre os setores “fechado”
(pavilhões A e B) e “semi-aberto” (pavilhão C e pátio). Uma cela do pavilhão C foi
adaptada para funcionar como sala de aula. As “jegas” (camas de cimento) foram retiradas
do interior da cela e substituídas por carteiras universitárias e um quadro branco foi
instalado numa das paredes. Assim, a experiência pedagógica se deu numa cela adaptada,
com severa restrição de materiais, em razão das normas do presídio. As aulas foram
47
vivenciadas como momentos de liberdade ao regime de opressão existente nas dinâmicas
estabelecidas na instituição e ocorreram de segunda a quinta-feira, com duração de três
horas por dia. Para frequentar as aulas, os alunos do “semi-aberto” eram revistados em uma
guarita e encaminhados para a sala. Os alunos do “fechado” eram retirados algemados de
suas celas, revistados e acompanhados por agentes até a sala. Após os agentes trancarem a
grade da porta, retiravam as algemas dos punhos dos alunos e ficavam de vigilância do
lado de fora da sala. Ao final da aula, os alunos eram novamente algemados, revistados e
transferidos para os seus pavilhões.
Além dos conteúdos de Física e Matemática do 1º ao 3º ano do Ensino Médio, pude
ensinar aos alunos também o jogo de xadrez. Inicialmente, percebi certa dificuldade de
alguns com as operações matemáticas elementares, justificada por eles pelo longo tempo
fora da escola. A restrição de materiais pedagógicos foi um fator de dificuldade para a
organização das aulas. Por outro lado, a presença de marceneiros, comerciantes e outros
profissionais entre os alunos facilitou o tratamento teórico de conceitos que envolviam
medidas e valores. Dos 28 alunos inicialmente matriculados, infelizmente apenas 11
concluíram as disciplinas, e isso se deve em grande parte a um fenômeno conhecido entre
os presos como “cadeia pesada”, que consiste de um misto de medo, desespero e falta de
esperanças de um futuro melhor, que, invariavelmente evolui para um quadro de
depressão.
Essa experiência proporcionou-me a oportunidade de refletir sobre preconceitos
existentes na memória coletiva e de construir um novo olhar sobre as condições de
existência do homem no mundo. O contato direto com a realidade proporcionou-me uma
visão da precariedade do sistema prisional brasileiro, e de como a prisão e as injustiças
sociais estão tão intimamente relacionadas em nosso país.
Trabalhando meio período no presídio e estudando a graduação à noite, pude
concluir minha iniciação científica, tendo, antes disso, participado de eventos na UNIR, e
de um evento científico em Manaus, onde apresentei os resultados finais de minha pesquisa
no II Congresso de Estudantes e Bolsistas do LBA em 2005.
Durante a graduação, tive a oportunidade de ingressar no movimento estudantil
universitário, sendo que nos anos de 2004 e 2005 integrei o Diretório Central dos
Estudantes (DCE) da UNIR, participando, juntamente com mais dois companheiros, da
Coordenação de Assuntos Acadêmicos e Científicos. No DCE, e participando em reuniões
dos estudantes e em reuniões da própria UNIR, pude conhecer parte do jogo político e dos
48
meandros do poder que movem a instituição universitária, alterando assim
significativamente a representação que até então eu fazia da academia.
Paralelamente à minha graduação e ao ensino no presídio (a partir de 2006, numa
escola municipal urbana) e às atividades de pesquisa no LBA, pude desenvolver três
monitorias em Álgebra Linear e Análise Real na UNIR, Campus de Ji-Paraná. Sob
orientação do professor Fernando Cardoso, esses momentos foram riquíssimos para minha
formação, pois me permitiram experimentar a docência universitária, o contato com o
ensino superior, envolvendo complicadas demonstrações matemáticas e complexas
fundamentações teóricas e conceituais.
No penúltimo semestre da graduação, sob orientação de meus professores, inscrevi-
me e fui aceito com bolsa para participar da Escola de Verão promovida pelo
Departamento de Matemática da UFPE. Assim, passei os dois primeiros meses de 2006 em
Recife, como aluno de verão, cursando a disciplina Análise na Reta, ministrada pelo
professor Marivaldo Pereira Matos, da UFPB. Por ter obtido rendimentos suficientes no
curso, fui agraciado com uma bolsa para cursar o mestrado em Matemática na UFPE, com
início no próximo semestre. No entanto, ao concluir a graduação, estava certo de que
escolheria a área de educação para continuar meus estudos, o que me fez abdicar do
mestrado em Recife. Tratou-se de mais uma decisão pessoal carregada de representações
ideologizadas do mundo. As experiências que até então havia tido com o estudo da
“matemática acadêmica” na universidade, em contraste com a “formação humanística” que
havia recebido até ali, geraram-me representações emocionalmente e politicamente
negativas das formas e características que o tratamento dado à matemática e seu ensino
assumiam na academia. O resultado disso foi um sentimento de grande distanciamento
entre minha formação enquanto professor de matemática e minha atuação profissional. A
Educação Matemática surgiu em minha vida, nesse contexto, como uma atraente forma de
reconciliar os estudos em matemática (e sobre a matemática) com uma atuação mais crítica
e engajada no mundo.
1.4 A Especialização em Educação Matemática
Com o término da graduação, em meados de 2006, todas as questões levantadas na
licenciatura sobre os problemas no ensino de matemática no Brasil ainda povoavam meus
pensamentos. A Educação Matemática já despertava em mim o interesse pela pesquisa e
pelo aprofundamento no estudo de temas que extrapolavam os limites da própria
49
matemática. Essa inquietação me levaria a me inscrever no Curso de Pós-graduação Lato
Sensu em Educação Matemática da UNIR e, em agosto de 2006, estava de volta às salas de
aula da universidade. No curso, pude me aprofundar mais na pesquisa em educação,
diversificando as leituras sobre as diferentes tendências em Educação Matemática. Com a
ajuda de minha orientadora, professora Ângela Ferreira, desenvolvi uma investigação sobre
possíveis relações entre o domínio da linguagem verbal e a aprendizagem da matemática.
Na pesquisa, procuramos, a partir dos estudos de Vygotsky em alguns de seus
principais conceitos sobre a relação entre linguagem e pensamento, e da Teoria dos
Registros de Representação Semiótica de Raymond Duval, problematizar uma abordagem
metodológica no ensino da matemática que enfatizasse as características de linguagem dos
seus objetos. O caráter conceitual e o elevado nível de abstração de seus objetos seriam
características da matemática escolar que requereriam um domínio mínimo de registros de
representação semiótica nos tratamentos e conversões necessárias à sua compreensão e
aprendizagem. Como resultado, acreditamos ter proposto uma solução ao que é conhecido
na literatura como Paradoxo de Duval, valendo-nos para isso de elementos da teoria
vygotskyana. Em janeiro de 2008, defendi a monografia intitulada “Relações entre o
domínio da linguagem verbal e a aprendizagem da Matemática”.
1.5 O Mestrado em Educação
No levantamento de material bibliográfico durante a especialização, tive acesso às
pesquisas sobre semiótica e didática da matemática do professor Michael Friedrich Otte,
pesquisador do Instituto de Didática da Matemática da Universidade de Bilefeld –
Alemanha, professor visitante na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), e
referência internacional sobre filosofia, epistemologia e didática da matemática. Ao
descobrir que professor Otte orientava alunos no mestrado em Educação da UFMT, na
linha de pesquisa Educação em Ciências e Matemática, interessei-me em ingressar no
curso.
Desse modo, aguardei a abertura do edital do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFMT, o que ocorreu em setembro de 2007, para o qual me candidatei, na
esperança de, se aceito, instalar-me em Cuiabá e dar continuidade aos meus estudos. Após
passar pelas fases da seleção, fui aprovado para ser orientado pelo professor Otte. Assim,
em março de 2008, recém casado e cheio de entusiasmo, mudei-me para Cuiabá, dando
início aos meus estudos no mestrado. No primeiro mês do curso, fui contemplado com uma
50
bolsa da Capes, o que possibilitou de fato minha dedicação integral aos estudos e à
pesquisa.
O primeiro ano no mestrado foi intenso, proporcionando-me grande
amadurecimento intelectual. A necessidade de aprofundamento teórico e de fundamentação
de ideias em disciplinas do curso exigiu-me intensa dedicação a leituras e estudos, de
modo que minha presença nas bibliotecas setoriais e central da UFMT passou a ser
constante. Estava de volta às leituras em filosofia, sociologia, história e educação. Por
diversos momentos, a sensação era de que os dias não eram longos o bastante para serem
suficientes aos estudos a serem realizados.
Além do rico ambiente acadêmico proporcionado pela UFMT, as seções semanais
com meu orientador foram momentos de extremo aprendizado. Professor Otte, mesmo
sendo referência internacional em sua área de pesquisa, demonstrou grande humildade e
enorme paciência ao me orientar, não abdicando todavia do rigoroso jeito de ser dos
alemães, principalmente com horários e datas. Em diversas situações da orientação, vieram
à tona os diferentes estilos de comportamento, mesmo no ambiente acadêmico, que tendem
a caracterizar, grosso modo, alemães e latino-americanos. Por mais de uma vez, professor
Otte chamou-me a atenção para o acentuado tom político que meus escritos insistiam em
assumir.
No final do primeiro semestre de 2008, implementamos de fato nossa pesquisa, que
teve por objetivos discutir o papel da metáfora para a representação e comunicação de
ideias matemáticas e identificar implicações que uma abordagem da matemática com foco
na metáfora poderia promover à Educação Matemática.
Durante o mestrado, participei, com produção, em eventos científicos, regionais e
nacionais, expondo resultados parciais de minha pesquisa, e pude assistir a seminários e
palestras das principais referências em Educação Matemática no país. Esses foram
momentos de muito aprendizado, os contatos estabelecidos me renderam parcerias que
duram até hoje. Percebi então, nessa época, que a escolha pelos estudos e atuação em
Educação Matemática era um caminho sem volta, não só pela completa identificação com
a área, mas porque minha formação acadêmica também ganhava contornos de formação
profissional na área, que futuramente me levaria de volta ao mundo do trabalho.
Devido ao intenso ritmo de produção dos alunos e dos professores de nossa linha de
pesquisa, ao final de 2008, já havíamos concluído as disciplinas do curso, restando apenas
um estágio docência e um seminário para meados de 2009, e nossa pesquisa já se
encontrava bem encaminhada. Foi nessa época que surgiu uma nova oportunidade que
51
produziria mudanças em minha vida. Trata-se do concurso público para professor de
matemática oferecido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Rondônia – IFRO, com vaga para o Campus Ji-Paraná. Vislumbrei assim a possibilidade
de retornar à minha terra natal para trabalhar em uma instituição federal de ensino.
Inscrevi-me no concurso e, em fevereiro de 2009, fui nomeado para tomar posse na nova
instituição. Para isso precisei da autorização de meu orientador, uma vez que implicaria
retornar a Ji-Paraná, distanciando-me das atividades do mestrado. Professor Otte, muito
compreensivamente, aceitou minha vinda para Ji-Paraná, com a condição de que eu
retornasse a Cuiabá pelo menos uma vez por mês para orientação e apresentação dos
resultados alcançados na pesquisa.
Deste modo, em março de 2009, eu estava de volta à sala de aula em minha cidade
natal. Durante todo o ano, além de trabalhar com disciplinas de matemática e estatística em
cursos técnicos integrados ao Ensino e Médio e subsequentes ao Ensino Médio, participei
de comissões para elaboração de projetos de curso, projetos de pesquisa e outras atividades
relacionadas à implantação do IFRO – Campus Ji-Paraná. Sentia-me agora não mais
apenas um estudante, mas também um trabalhador em Educação Matemática, porque os
estudos teóricos e os aprendizados construídos ao longo da formação, agora interferiam
diretamente no meu fazer pedagógico. Sabia que as aulas que ministrava não se resumiam,
simplesmente, ao ensino de números e equações. Tratava-se de algo muito mais amplo.
Tratava-se de assumir a diferença entre ensinar matemática e educar pela matemática em
um contexto amazônico, com todas as consequências que tal ato proporciona.
Entre abril e junho de 2009, realizei estágio docência na disciplina Variáveis
Complexas do curso de Licenciatura em Matemática da UNIR – Campus de Ji-Paraná, sob
orientação do professor Marlos Albuquerque, em cumprimento aos requisitos do mestrado
em Educação da UFMT. Em dezembro de 2009, minha dissertação estava pronta para
qualificação, o que ocorreu mediante banca de avaliação composta por meu orientador,
pela professora Dra. Gladys Denise Wielewski (UFMT) e professora Dra. Tânia Maria
Mendonça Campos (UNIBAN).
Na dissertação, fizemos primeiramente uma análise da evolução histórica de
concepções a respeito da relação entre linguagem e conhecimento, tomando como
principais referências ideias de Aristóteles, Cícero, Descartes, Leibniz, Hobbes e
Condillac, com destaque para o status epistemológico privilegiado atribuído à Matemática
no início da Idade Moderna. Em seguida, resgatamos concepções de metáfora em
diferentes períodos históricos e situamos tais concepções no panorama das relações entre
52
linguagem e conhecimento científico ao longo da história do pensamento ocidental.
Identificamos que a distância entre retórica e conhecimento aumentou significativamente
com o advento do pensamento moderno, para voltar a se reduzir na passagem dos tempos
modernos ao tempo contemporâneo, quando surgiram teorias de metáfora que sugerem que
todo o conhecimento humano está ancorado em perspectivas metafóricas.
Tais teorias, principalmente da matriz norte-americana de Max Black, Donald
Davidson e George Lakoff, fornecem a base para se conjecturar que toda exposição de
ideias matemáticas é essencialmente metafórica. Tomando como fundamentação este
arcabouço teórico, exploramos implicações para a Educação Matemática geradas por uma
abordagem da Matemática na perspectiva da metáfora. Como resultados, verificamos que
tal abordagem possibilita imediata mudança paradigmática no tratamento dado ao ensino
da Matemática no que diz respeito à representação e comunicação de seus objetos,
apontando-se para uma relativização da objetividade da Matemática. Verificamos também
uma possibilidade de valorização da linguagem figurada como forma de representação e
comunicação dos objetos matemáticos, uma possibilidade de reconhecimento da
subjetividade e da contingência do conhecimento matemático, e uma possibilidade de
reconhecimento do caráter cultural e social de toda teoria matemática.
Em 4 fevereiro de 2010, no auditório do Instituto de Educação da UFMT, realizei a
defesa da dissertação intitulada “Metáfora e Matemática: a contingência em uma disciplina
escolar considerada exata”, sob avaliação da mesma banca examinadora da qualificação e
com presença dos colegas de mestrado da linha de pesquisa Educação em Ciências e
Matemática. Alcançava, naquela data, um estágio de minha formação acadêmica e
profissional que extrapolava todas as expectativas construídas até poucos anos atrás.
Quando se nasce na Amazônia e aqui se vive, nossas possibilidades de estudos e formação
acadêmica e científica tendem a se limitar às escassas oportunidades que as instituições
locais podem oferecer. Não obstante a diversidade humana, cultural, biológica, linguística
e de toda ordem de fenômenos sociais ou naturais que caracterizam a região, os
investimentos em universidades e institutos de pesquisa amazônicos são invariavelmente
subdimensionados em relação aos de instituições de outras regiões brasileiras. Isso tolhe,
consideravelmente, os sonhos de muitos jovens amazônicos de se dedicarem aos estudos
científicos e à atuação profissional nessa área.
Por outro lado, ao conseguir romper com esse gargalo geopolítico do ensino
superior brasileiro, com a oportunidade de conclusão de um curso de mestrado, passei a
sentir um estranhamento da minha formação em relação ao meu próprio solo natal. Nesse
53
sentido, passei a perceber na prática e em minha atuação docente que, embora minha
formação acadêmica a essa altura tivesse ganho em universalidade, tendo estudado
filosofia e epistemologia da matemática a partir de referências clássicas do velho mundo,
pouco havia avançado no sentido de conhecer e compreender melhor o espaço regional e as
relações sociais, políticas, econômicas e culturais que por aqui, na Amazônia, se
estabelecem. Esse sentimento foi se convertendo em inquietação, de modo que a
continuação dos estudos passou a ser um projeto de vida novamente.
1.6 O Doutorado da REAMEC
Desde os tempos do mestrado, eu vinha acompanhando as discussões sobre a
criação e implantação da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática
(REAMEC), um projeto de grande escala para a formação de pesquisadores vinculados a
instituições amazônicas de ensino superior. Assim, ao ingressar no IFRO, procurei a Pró-
Reitoria de Pós-Graduação a fim de que verificassem a possibilidade de inclusão do
Instituto Federal de Rondônia na rede. O IFRO entrou em contato com a coordenação da
REAMEC e, após reuniões do colegiado, tal inclusão foi aceita.
Motivado pela situação de implantação em que se encontravam os Institutos
Federais de Educação no país, decidi inscrever-me no doutorado com o projeto de pesquisa
“Formação de professores para a educação em ciências e matemática em institutos federais
de educação, ciência e tecnologia: pressupostos teóricos e condicionantes reais”. A
intenção era investigar uma possível problemática originada pela potencial contradição
entre a demanda imposta pela Lei nº 11.892/08, ao exigir a oferta de formação de
professores através de cursos de licenciatura nos Institutos Federais, e a tradicional
ausência de estudos e referências que discutissem formação de professores nas instituições
da rede federal de educação profissional e tecnológica, em particular a formação
regionalizada na Amazônia. Investigar essa potencial problemática parecia relevante
porque as instituições da rede federal de educação profissional e tecnológica ofereciam,
tradicionalmente, formação de trabalhadores em áreas técnicas e tecnológicas, de modo
que o perfil acadêmico predominante dos docentes que compunham seus quadros podia
estar distante daquele requerido para a formação de professores em cursos de formação
inicial ou continuada.
54
Tendo ingressado no doutorado no final de 2010 com esse projeto, não seria ele,
todavia, executado porque outra grande mudança ocorreria em minha vida, provocando
uma alteração nos rumos de minha formação acadêmica e atuação profissional.
1.7 A Docência Universitária e a Licenciatura Intercultural
À medida que o IFRO ia sendo implantado e assumindo características que
tradicionalmente definem as instituições da rede federal de educação tecnológica no país,
fui percebendo um certo estranhamento entre os planos e projetos que imaginava
desenvolver na instituição e a identidade que a própria instituição foi assumindo. Esse
estranhamento se aprofundou quando me vi impossibilitado de desenvolver plenamente
projetos de pesquisa e extensão, em razão da desproporcional carga horária que me era
exigida na dimensão ensino em sala de aula. Percebi então que, embora os institutos
federais estivessem equiparados, legalmente, às universidades, a dinâmica acadêmica de
funcionamento destas instituições diferenciava-se em muito dos espaços universitários,
com os quais sonhava um dia trabalhar. Restava-me assim buscar por outros espaços que
me proporcionassem uma maior identificação profissional. A universidade despontava
nesse cenário como a instituição onde de fato poderia realizar as atividades de ensino,
pesquisa e extensão, com maior liberdade de escolha e decisão.
Assim, em meados de 2010, ao receber a notícia de que a Universidade Federal de
Rondônia (UNIR) estava com edital de concurso público aberto, com vaga para professor
de Matemática, no Departamento de Educação Intercultural (DEINTER) do Campus de Ji-
Paraná, motivei-me a inscrever-me no concurso. Além de almejar melhores condições de
trabalho para o desenvolvimento acadêmico e profissional, a possibilidade de ingressar
como docente na universidade era desafiadora, porque trabalharia em um curso inovador,
voltado para a formação de professores indígenas, o que certamente me proporcionaria um
universo completamente novo de aprendizados. Vislumbrei ali a possibilidade de voltar a
estudar, pesquisar e atuar profissionalmente e plenamente no contexto amazônico,
respondendo em parte as angústias que me acompanhavam desde a conclusão do mestrado.
Mas o que eu sabia de formação de professores indígenas ou de educação escolar
indígena? Havia estudado genericamente temas relativos à Etnomatemática, porém apenas
como uma das tendências em Educação Matemática. Nenhuma experiência concreta, de
pesquisa ou de docência havia experimentado ainda nesse campo com povos indígenas.
Essa inexperiência iria pesar muito na decisão de trocar de instituição. Tive seis meses para
55
pensar sobre isso, período em que consultei meus ex-professores na UNIR, recebi o
incentivo e o apoio das pesquisadoras da área de educação escolar indígena e
companheiras de trabalho no IFRO, Jânia Paula e Lediane Felzke, e o incentivo decisivo da
professora da UNIR, Edineia Isidoro, então coordenadora do Curso de Licenciatura em
Educação Intercultural.
Encorajado por todas essas pessoas, finalmente ingressei como docente na UNIR,
em fevereiro de 2011. Era um novo momento que se iniciava em minha trajetória
acadêmica e de vida, mas intimamente ligado a um momento anterior, situado há nove
anos atrás, quando nessa mesma instituição havia ingressado como estudante de graduação.
Conviver com meus ex-professores, agora como companheiros de trabalho, foi outra
experiência nova e riquíssima em minha vida, que tem me oportunizado muito aprendizado
e profundas reflexões sobre o ser docente, a relação professor-aluno, o que representamos
na vida das pessoas e o impacto que nossas ações como professores e como pesquisadores
produzem no futuro daqueles que nos estão próximos.
Estas reflexões têm me proporcionado compreender o potencial que tem a educação
para transformar o ser humano e o meio em que vivemos. Essa compreensão nos impõe,
como estudantes e pesquisadores em Educação Matemática na Amazônia, a grande
responsabilidade de contribuir com nosso trabalho para a reconstrução das relações que se
estabeleceram historicamente nesse espaço nos âmbitos culturais, políticos, econômicos,
sociais e ambientais. Nesse sentido, a decisão de ingressar na UNIR e trabalhar com
formação de professores indígenas não poderia ter sido mais acertada. Sinto-me de volta,
enquanto ser amazônico e como pesquisador, às minhas origens, e não há sensação melhor
do que atuar em uma instituição com a oportunidade e a liberdade de imergir na
complexidade cultural deste universo tão diverso que é a região em que vivemos.
1.8 A Definição da Pesquisa
Quando ingressei no corpo docente do Departamento de Educação Intercultural da
UNIR, o Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural já havia iniciado, no ano
de 2009, visando formar professores indígenas em nível superior para atuarem nas escolas
existentes em suas respectivas comunidades. Então, quando comecei minhas atividades de
ensino, pesquisa e extensão no curso, 124 estudantes já se encontravam matriculados,
representando 17 povos distintos, de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso, a saber: Paiter,
Zoró, Gavião, Karitiana, Djeoromitxi, Cinta Larga, Arara, Sabanê, Aikanã, Tupari, Kanoé,
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Makurap, Poruborá, Cabixi, Arikapu, Wari e Karipuna. As diferenças linguísticas, culturais
e étnicas dos estudantes tornavam as salas de aula um microuniverso bastante
representativo do que realmente é essa parte da Amazônia, ao mesmo tempo em que
elevavam exponencialmente a complexidade do fazer pedagógico docente. Os primeiros
momentos de atuação no curso me proporcionaram aprendizados que, em vinte e oito anos
de vida, ainda não havia experimentado. A invisibilidade imposta aos povos e culturas
indígenas pelos sistemas de ensino aos quais fui submetido ao longo de minha formação
escolar desfazia-se agora em um ritmo que eu não dava conta de assimilar totalmente na
velocidade que uma completa compreensão me exigia. Essa situação me fez, por diversas
vezes, recorrer aos colegas mais experientes e com eles aprender a como dialogar
minimamente com tamanha diversidade cultural em sala de aula.
Dentre os estudantes matriculados, dezoito eram paiter, todos homens, com os quais
passei a conviver, por meio da relação professor/aluno na universidade, mas também em
outros momentos, incluindo-se a orientação em projetos de iniciação científica nas aldeias
e de trabalhos de conclusão de curso de graduação. Para mim, essa convivência significou
um reencontro após duas décadas do primeiro convívio com esse povo na Rondolândia de
minha infância, de suas visitas ao comércio de minha mãe e de minhas estadias na Terra
Indígena Sete de Setembro, durante a exploração de madeiras com meu pai. Seriam
algumas daquelas crianças paiter das brincadeiras atrás do balcão do bolicho de minha mãe
meus alunos agora? Certamente não éramos os mesmos. A história tratou de dar rumos
distintos às vidas de cada um, ao mesmo tempo em que nos forneceu elementos para
modificar essencialmente as representações que fazemos uns dos outros no presente, e a
representação de nós mesmos a partir do outro, nessa relação de alteridade, às vezes
constrangedora, que a atual convivência nos impõe.
Digo constrangedora porque constrangimento é um sentimento comum que passou
a fazer parte do meu fazer docente no curso. A relação entre matemática e formação de
professores indígenas tem sido para mim tão problemática e questionadora de princípios,
valores e atitudes, que às vezes o meu pensar sobre o fazer docente praticado com os
estudantes leva-me para os limites da consciência moral que as relações interculturais,
quando buscadas conscientemente, impõem-nos muito severamente. E quanto mais me
aprofundo no estudo das relações históricas estabelecidas entre colonizadores e povos
indígenas amazônicos, quanto mais a convivência com meus alunos insiste em trazer para
o presente o passado miserável que a história da humanidade proporcionou neste espaço
sobre o qual pisamos hoje, mais se impõe sobre mim a pele do colonizador e o sentimento
57
de ser parte de um enredo de transgressão e homogeneização cultural que ainda não teve
fim.
Como lidar com isso? Como superar os extremos identitários que a relações
interculturais nos impõem? O peso da história recente se faz tão presente que parece que,
por mais que nos viremos pelo avesso, por mais que rasguemos nossas peles e dela
retiremos todo e qualquer vestígio que remeta à herança da colonização, ainda assim
continuamos impregnados dos ranços que caracterizaram essa parte da história humana no
mundo.
Na tentativa de contornar minimamente esse constrangimento, minha prática
pedagógica no curso tem se orientado pela perspectiva da educação intercultural, segundo
a qual a educação escolar deve ser promovida a partir do diálogo entre diferentes saberes,
reconhecendo e valorizando as culturas e as tradições dos sujeitos envolvidos no processo.
Essa perspectiva, quando assumida no contexto da educação escolar indígena, pressupõe
educar a partir da promoção do diálogo entre saberes e fazeres indígenas, cultural e
historicamente situados, e saberes e fazeres não indígenas, também cultural e
historicamente situados. Nesse contexto, uma problemática originou-se em minhas
atividades docentes: durante a oferta de disciplinas de “Etnomatemática e Temas
Fundamentais em Matemática”, o diálogo entre o saber matemático acadêmico e os saberes
matemáticos tradicionais dos discentes indígenas tornou-se inviabilizado, dada a escassez
de pesquisas e registros destes saberes tradicionais, ou mesmo o desconhecimento parcial
pelos acadêmicos dos saberes e fazeres matemáticos de seus próprios povos.
Surgiu-me então a constatação de que, não obstante a multiplicidade de povos
indígenas existentes na região, com suas diferentes línguas e modos de vida, existem
poucas pesquisas realizadas sobre seus saberes e fazeres matemáticos, sendo raros os
estudos regionais dessa natureza, entre os quais se destaca por sua relevância o trabalho de
Silva (2008) com o povo Gavião, da Terra Indígena Igarapé Lourdes, localizada no
município de Ji-Paraná. Em particular, há uma relativa ausência de pesquisas regionais
naquela que caracterizaremos mais à frente como a primeira fase da Etnomatemática,
iniciada na década de 1970, fase em que a preocupação dos pesquisadores centrou-se na
identificação, no registro e na tradução de diferentes matemáticas, social e culturalmente
contextualizadas.
Na medida em que aprofundei as discussões em sala de aula com os estudantes
indígenas, a partir de referenciais teóricos tais como D’Ambrosio (2009, 2011), Gerdes
(2002, 2010), Ferreira (2002) e Vergani (2007), fomos percebendo que, além da relativa
58
inexistência de registros dos saberes matemáticos tradicionais dos povos indígenas em
Rondônia, a continuidade, a revitalização e a reprodução destes saberes, assim como das
línguas, estão em risco, em diferentes graus, uma vez que as novas gerações, inseridas em
dinâmicas educacionais externas às comunidades e oriundas das relações com a sociedade
envolvente, distanciam-se de suas culturas e perdem, consequentemente, características
que lhes garantiriam a manutenção de suas identidades como membros de sociedades
específicas e detentoras de fazeres e saberes próprios. Em particular, tem ocorrido em
menor ou maior grau a perda da própria língua materna.
Motivado por essa problemática, e na dupla condição de trabalhador e estudante da
Educação Matemática na Amazônia, escolhi como contexto para meus projetos de pesquisa
e extensão as relações entre educação escolar indígena e saberes e fazeres matemáticos,
cultural e historicamente situados em Rondônia, como contribuição mínima para a
superação da pequena quantidade de estudos e pesquisas em Etnomatemática na região.
Assim, passei a orientar os acadêmicos matriculados em minhas disciplinas, e em projetos
de pesquisa e extensão, para a introdução em atividades práticas de registro de saberes e
fazeres matemáticos presentes na oralidade e na memória dos membros mais velhos de
suas comunidades, considerando-se estes como os depositários do patrimônio cultural
imaterial que constituem os saberes e fazeres de seus povos. Resultaram destas atividades
práticas alguns registros iniciais sobre termos numéricos, sistemas de medida e geometrias
paiter.
Sobre o significado, a importância e a dimensão social e política destas atividades,
é significativa a fala de uma liderança paiter, registrada em uma de minhas visitas à aldeia
Gapgir:
Essa iniciativa de vocês como universidade me deixa mais motivado e fortalecido diante da pressão cultural externa, que cada dia faz com que o Povo Paiter Suruí deixe de valorizar seus próprios conhecimentos e tradições imemoriais, como danças, cantos e festas e como atividades, como fazer maloca tradicional, arte em geral dos Paiter (LP1∗
– Aldeia Gapgir).
Como os acadêmicos indígenas paiter já são professores contratados pela Secretaria
Estadual de Educação para atuarem nas escolas existentes nas aldeias, atualmente se
∗ Visando preservar a identidade dos participantes da pesquisa, adotaremos os códigos LPi e PPi em substituição a seus nomes, respectivamente para Liderança Paiter (LP) e Professor Paiter (PP), sendo o índice i indicativo da ordem de registro das falas nos momentos de observação participante ou de entrevistas semiestruturadas ao longo da pesquisa.
59
observa um interesse e uma preocupação em introduzirem em suas escolas o ensino de
saberes e fazeres matemáticos do povo, a exemplo do que já ocorre com a língua materna,
a arte e a história. E aqui se situa uma questão central, ou seja, trata-se de duas dimensões
diferentes, mas que se complementam. Embora aparentemente alfabetizar na língua
materna seja uma coisa, estabelecida em uma dimensão, e introduzir as práticas
matemáticas na escola seja outra, dada em outra dimensão, é possível postular uma
interseção entre essas práticas, gerando questionamentos tais como: Como fazer? Isto é,
como valorizar e introduzir os saberes matemáticos paiter na alfabetização? Como a
interseção dessas dimensões pode ressignificar as práticas pedagógicas em curso?
Essa preocupação em grande medida se acentuou a partir de discussões e estudos
teóricos realizados pelos professores indígenas no curso de formação oferecido pela
universidade. Como dito acima, atividades práticas de registros de saberes e fazeres
matemáticos paiter foram realizadas, resultando em um material mínimo para a introdução
destes saberes em sala de aula nas escolas das aldeias.
A esse respeito, é representativa do atual estágio em que se encontra o movimento
dos professores paiter a fala do jovem docente que, ao participar de um projeto de iniciação
científica visando a sistematização de dados iniciais sobre termos numéricos, marcadores
de tempo e geometria do povo Paiter, iniciou a produção de material didático para a
introdução destes saberes em suas aulas, em turmas das séries iniciais do Ensino
Fundamental na escola da aldeia:
Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de suma importância, porque o conhecimento matemático que conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje, trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional, conhecimento milenar que foi passado de geração em geração. Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma matemática não indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior é até mesmo de questão de identidade cultural paiter (PP1 – Aldeia Gapgir).
Porém, não obstante a motivação e o interesse pelo ensino de saberes e fazeres
matemáticos tradicionais, existe uma carência de orientações metodológicas e práticas para
a introdução destes saberes em escolas indígenas. Orientações gerais tais como as contidas
60
no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (BRASIL, 1998) servem
mais como princípios norteadores das práticas do que como sugestões de metodologias
propriamente ditas. Um dos motivos para isso é a diversidade de povos indígenas
existentes no Brasil, o que proporciona a existência de uma multiplicidade de saberes e
fazeres, inviabilizando deste modo, por exemplo, a produção de materiais didáticos
nacionais para escolas indígenas.
Desse modo, uma nova problemática surgiu em minha atuação docente, qual seja a
de que não bastava identificar ou registrar saberes e fazeres matemáticos indígenas, se não
há uma produção teórica que fundamente práticas pedagógicas de professores indígenas
em diferentes contextos e culturas, superando inclusive a disciplinarização desses saberes
ao serem inseridos nas escolas de suas comunidades. Desse modo, cada experiência de
introdução ao ensino de saberes e fazeres matemáticos tradicionais em escolas indígenas
do país configura-se em um ineditismo, porque, como é de se esperar, as práticas e
metodologias adotadas nestas experiências devem ser fundamentadas e permeadas pela
visão de mundo, a cosmologia, os mitos, os rituais, o modo de produção material e a
organização social de cada povo. Qualquer prática que não leve em consideração tais
aspectos, ao final será homogeneizadora, e não atenderá aos princípios que se espera de
uma educação escolar indígena diferenciada, quanto às particularidades de cada cultura e à
autonomia de cada povo.
Diante de tal quadro, passa a integrar implicitamente minha postura e meus atos
como formador não-indígena de professores indígenas uma questão de alteridade, a partir
da qual assumo como necessidade não apenas conhecer a cultura do outro, mas também
aceito que meus conhecimentos e minhas representações das relações sociais e do mundo
tornem-se passíveis de mudanças. Nesse sentido, corroboro com a perspectiva de Maria do
Carmo Santos Domite, ao afirmar que,
[...] quando pensamos a relação formador não indígena e professor indígena – o qual, por sua vez, estará orientando/formando a criança e o adolescente indígena –, todos os educadores, em especial aqueles formadores de professores externos a sua cultura, deveriam se imbuir da atitude de alteridade, procurando construir no encontro com o “outro” diferente uma transformação em seus conhecimentos e representações culturais (DOMITE, 2009, p. 187).
61
Diante de tal contexto, inédito em minha vida, no qual minha atuação profissional
confundiu-se com o meu fazer enquanto pesquisador, exigindo-me novas reflexões, novas
posturas e ações, uma nova maneira de compreender o outro e a mim mesmo, procurei
retomar minha formação doutoral. Percebi então que meus referenciais teóricos, por
necessidade advinda da atuação docente no curso de formação de professores indígenas,
haviam mudado substancialmente daquele com o qual eu elaborei o projeto de pesquisa
original para ingresso na REAMEC. Não fazia mais tanto sentido pesquisar formação de
professores na rede federal de educação tecnológica, quando o universo que passou a
circundar-me era completamente outro, com outras demandas, exigindo-me outras
reflexões, outros olhares.
O que poderia ser basicamente uma exigência formal do processo de doutoramento,
a construção de uma tese, passou a se confundir com a própria necessidade de
sobrevivência nesse novo espaço de minha atuação, nesse entre-lugar, onde o encontro de
culturas diferentes exige, impõe e ordena que se aprendam elementos práticos e teóricos
completamente novos, novas referências. Fui buscar estas referências no estudo da
Interculturalidade, da Educação Escolar Indígena e da Etnomatemática. Não tinha a
esperança de encontrar respostas prontas e pré-concebidas em tais referenciais para
orientar o meu fazer pedagógico e de pesquisa, porque, pela experiência própria que estou
vivenciando, não se encontram respostas mágicas, receitas, prontuários, modelos que deem
conta do processo complexo que é a formação de professores indígenas. Daí a pesquisa, em
cada caso, ser tão necessária e elementar.
Diante dessa problemática, redefini meu projeto de pesquisa no doutorado, com o
objetivo de explorar localmente as relações entre interculturalidade, educação escolar
indígena e etnomatemática, assumindo a necessidade de compreender tais relações a partir
de práticas discursivas dos próprios sujeitos, estudantes e professores indígenas, com os
quais convivo atualmente no ambiente acadêmico, na universidade e nos espaços
tradicionais das aldeias. Estabelecia-se, assim, um novo objeto de pesquisa, relacionado a
concepções e ideias de professores indígenas presentes em práticas discursivas, ao
projetarem para as escolas de suas aldeias novos elementos, novas práticas, em especial,
uma nova forma de abordar a matemática escolar. Certamente não seria um “objeto”
isolado e livre de minha própria atuação no curso, como professor de matemática, visto que
os sujeitos das práticas discursivas são também meus alunos, orientandos em trabalhos de
conclusão de curso, bolsistas em projetos de extensão. Também não seria uma pesquisa de
mão única, no sentido de buscar somente compreender parcialmente o que o outro pensa,
62
por que pensa e o que faz, por que faz, mas também compreender o meu próprio fazer,
minhas próprias concepções, reorientar minhas ações. Tal é a natureza que a pesquisa
passou a assumir, que em certos momentos não se distinguiu o que era minha atuação
docente no curso, o professor, o orientador ou o pesquisador de doutorado.
Se por um lado estava evidente a necessidade de reorganizar minha pesquisa no
doutorado, por outro não foi tão fácil situar formalmente o novo projeto dentro do
programa. Houve a necessidade de trocar de linha de pesquisa e também de orientador.
Assim, passei da linha de formação para a de fundamentos, e professor Michael Otte, como
primeiro orientador, gentilmente aceitou a troca de orientação. A partir de então, professor
Erasmo Borges passou a me orientar na pesquisa, numa parceria que certamente renderá
mais frutos acadêmicos do que a tese, tal é o conjunto de novas ideias que surgiram desde
então, a partir de suas compreensões teóricas e de suas experiências com o universo
indígena.
Dada a inviabilidade de se investigar simultaneamente concepções e ideias
subjacentes presentes em práticas discursivas de professores indígenas de diferentes etnias,
em diferentes e distantes espaços, houve a necessidade de escolher um povo para a
realização da pesquisa. Por uma afinidade que possivelmente as memórias de infância e o
inconsciente explicam, mas também por condições de trabalho, escolhi trabalhar com o
povo Paiter, na medida em que também me senti “escolhido”. A terra indígena Sete de
Setembro, território do povo Paiter, foi a primeira a que tive a oportunidade de visitar na
condição de professor da UNIR. Desde minha primeira visita à aldeia Gapgir, da Linha 14,
situada no município de Cacoal, Rondônia, em 21 de janeiro de 2012, senti-me acolhido
pela comunidade, por suas lideranças, e passei a acompanhar as lutas e desafios
enfrentados por esse povo. Desde então, outras visitas se seguiram, incluindo a estadia em
diferentes aldeias do território paiter, durante atividades de pesquisa e de extensão
vinculadas ao Departamento de Educação Intercultural da UNIR. Dos dezoito estudantes
paiter inicialmente matriculados nesse curso, um desistiu. Dos dezessete restantes, por
questões de acessibilidade às aldeias ou por disponibilidade, dez aceitaram participar como
sujeitos na pesquisa, sendo residentes das aldeias Gapgir, Amaral, Lapetanha, Joaquim,
Lobó e Paiter. Dentre eles, dois são do clã Gapgir, seis são Kaban e dois são Gamep.
Uma vez definidos o local e os sujeitos, a proposta de pesquisa justificou-se pela
necessidade de estudo e investigação de ideias presentes em práticas discursivas em
construção por professores indígenas voltadas para a projeção do ensino de saberes e
fazeres matemáticos paiter em escolas nas aldeias, bem como pelo interesse em se
63
identificar os fundamentos de tais práticas discursivas como intenções e pressupostos.
Espera-se que os resultados da pesquisa possam contribuir com a construção de subsídios
teóricos e práticos à implantação de novas experiências formais de ensino escolar em
comunidades indígenas, em interseção com saberes e fazeres da tradição de tais
comunidades, na perspectiva da Etnomatemática, e que tais subsídios possam contribuir
com a formação de professores indígenas em Rondônia e em outras regiões.
Nesse contexto, em consonância com a linha de pesquisa Fundamentos e
Metodologias para a Educação em Ciências e Matemática, assumimos o seguinte
problema de pesquisa: Que motivações e ideias subjazem às atuais práticas de professores
paiter voltadas para a revitalização de saberes e fazeres matemáticos tradicionais
significativos para a cultura paiter nas escolas das aldeias? Que problematizações isto
pode produzir para a ressignificação de práticas pedagógicas institucionalizadas nas
escolas das aldeias, que priorizam a matemática escolar em detrimento dos saberes da
tradição paiter?
Frente a essas problemáticas, estabelecemos como objetivo geral da pesquisa
compreender, na perspectiva da Etnomatemática, ideias, pressupostos e seus fundamentos
utilizados por professores indígenas na projeção do ensino de saberes e fazeres
matemáticos paiter e suas interseções com a cultura do povo Paiter, em escolas da Terra
Indígena Sete de Setembro, em Rondônia. Como desdobramento, elegemos os seguintes
objetivos específicos: 1) identificar os afazeres dos professores indígenas contextualizados
na escola, na aldeia e na universidade que tenham relações com o ensino de saberes e
fazeres matemáticos paiter; 2) estudar ideias, concepções e motivações que fundamentam
as práticas destes professores vinculadas à seleção, organização e ensino de saberes e
fazeres matemáticos de seu povo; e 3) analisar problematizações que estas práticas podem
produzir no processo de ressignificação de outras práticas pedagógicas já instituídas nas
escolas das aldeias.
Tendo o projeto de pesquisa definido, aprofundei-me nos estudos bibliográficos
relacionados ao povo Paiter, à Educação Escolar Indígena, aos Estudos Culturais e à
Etnomatemática, e paralelamente também dei início à produção de dados. As seções
seguintes desta tese apresentam os resultados das pesquisas bibliográfica e de campo
realizadas ao longo dos três últimos anos, que se caracterizaram como uma fase de minha
vida na qual tive o privilégio de conviver com pessoas que me proporcionaram
aprendizados que surtirão efeitos sobre o resto de minha vida. Como marcas impressas
sobre meu ser a partir da convivência com os Paiter, tenho agora elementos práticos e
64
teóricos para ressignificar a brincadeira de meu avô Expedito ao me chamar de Suruí no
início dos anos 1990. Na convivência com os professores paiter, tornei-me membro de um
um clã e ganhei um nome na língua paiter dado por PP2. Agora sou Gapgir e meu nome
em paiter é Soesamekar (o curioso ou o perguntador).
Infelizmente, minhas limitações teóricas e técnicas em relação à escrita
impossibilitam-me de registrar todas as impressões vivenciadas no decorrer da pesquisa
com o povo Paiter, os pensamentos e ideias expressas pelos professores paiter, as reações e
emoções que as entrevistas às vezes traziam à tona. Em todo caso, a riqueza das falas dos
professores, a respeito das quais meu fazer interpretativo através de uma técnica de análise
delimitada em uma pesquisa qualitativa é apenas uma das possíveis aproximações, ficarão
disponíveis nos apêndices da tese, como um testemunho e um retrato de um momento
histórico de construção de um pensamento crítico pelos professores paiter na
ressignificação da educação escolar existente em suas comunidades.
65
2 ESTABELECENDO ENCONTROS OU O INÍCIO DE UMA NOVA
CAMINHADA
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa que resultou nesta tese de doutorado,
três encontros se destacam em minhas vivências como instâncias significativas de
produção de conhecimentos. O primeiro deles sem dúvida foi o meu reencontro com o
povo Paiter, após anos de uma primeira convivência com membros da comunidade em
minha infância. O segundo, de caráter teórico, resultou do encontro com novos conceitos e
ideias sobre etnomatemática, educação escolar indígena e interculturalidade proporcionado
pelos estudos teóricos que a pesquisa demandou. O terceiro encontro se caracterizou como
a descoberta do percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva, como técnica auxiliar
na análise de dados produzidos na pesquisa.
É a partir desses três encontros, entendidos também como momentos de uma nova
caminhada em minha vida, em particular em minha formação acadêmica, que busco
organizar as próximas seções dessa tese.
2.1 O (re)encontro com o Povo Paiter
Após duas décadas de uma convivência com membros do povo Paiter em minha
infância, tive a oportunidade de retornar à Terra Indígena Sete de Setembro a partir de um
convite de um orientando de iniciação científica para visitar sua comunidade, a aldeia
Gapgir. Foi nesse espaço que o cacique LP1 me recebeu em 21 de janeiro de 2012, durante
minha primeira visita à aldeia como professor do Departamento de Educação Intercultural
da UNIR. Ali, fui introduzido de forma muito especial na história dos Paiter, por meio de
relatos de LP1, hoje um senhor de 59 anos, um jovem de 15 anos à época do contato.
Nesse mesmo espaço, em diferentes momentos, pude assistir a atividades culturais
tradicionais de arco e flecha, dança e canto, participar de reuniões, oficinas e outras
atividades cotidianas da comunidade.
Sentados em bancos tradicionais paiter (iamah) dentro de uma das malocas
(labmoy), conversamos por longas horas sobre diversos assuntos, que permearam
narrativas do contato, desafios enfrentados pelo povo na atualidade, projetos e parcerias
66
institucionais, e saberes matemáticos do povo Paiter. Um dos filhos de LP1 é estudante do
curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural na Universidade Federal de
Rondônia, e meu orientando em um projeto de iniciação científica sobre saberes e fazeres
matemáticos paiter. Na oportunidade da primeira visita à Gapgir, conversamos também
sobre a pesquisa em andamento, os resultados obtidos e a importância dos mesmos para a
educação escolar na aldeia.
Enquanto uma fina chuva caía do lado de fora da maloca, na manhã do dia 21 de
janeiro de 2012, dentro dela conversávamos eu, LP1 e seu filho, meu orientando e
intérprete, entrecortados aqui e acolá por uma criança que passava brincando, ou pela
oferta de grãos de milho assados em brasas por duas mulheres paiter ao fundo da maloca,
esposas de LP1. Os Paiter são poligínicos, isto é, os homens podem ter duas ou três
mulheres, apesar dessa prática estar em extinção por serem condenadas pelas igrejas de
diferentes denominações inseridas atualmente nas aldeias. Há relatos de velhos que, após
anos de convivência com suas esposas, foram induzidos pelas igrejas a irem ao cartório da
cidade casarem-se “oficialmente” com apenas uma delas.
Ainda nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, LP1 convidou-me para conhecer sua
roça. Seguimos então por um estreito caminho por entre a floresta, acompanhados de outra
liderança da comunidade, LP2, com seu arco e flecha, e uma professora da UNIR, também
do Departamento de Educação Intercultural. Partimos a Nordeste da clareira das malocas, e
percorremos cerca de 300 metros distantes da aldeia. Chegamos então a uma clareira ainda
maior que a anterior, encontrando ali uma plantação de milho, cará e amendoim. Estes
produtos fazem parte da base alimentar dos Paiter desde antes do contato, sendo que outros
alimentos tradicionalmente cultivados são mandioca, batata doce, mamão, inhame e
banana vermelha (mocoba owa). Após o contato, novos produtos passaram a integrar a
produção para subsistência e para fins comerciais nas aldeias, com destaque para novas
variedades de mandioca, milho híbrido, feijão, arroz, abóbora, novas variedades de banana,
cana de açúcar e café.
2.2 Tão perto e tão longe: a consciência do desconhecimento entre vizinhos
amazônicos
Eu nasci em um local distante duas horas da roça de LP1. Moro no mesmo local
atualmente. No entanto, até aquele dia, com meus 28 anos de idade, ainda não havia estado
naquele lugar. Tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Essa é a sensação de ter nascido na
67
Amazônia e aqui viver, mas manter relações sociais tão distantes com os conterrâneos que
aqui já viviam há bem mais tempo que os meus ancestrais diretos.
Que distinção pode marcar um recém nascido que vem ao mundo em um hospital à
margem direita do Rio Machado, na cidade de Ji-Paraná dos anos 1980, no interior de
Rondônia, e outro recém nascido que vêm à luz no interior de uma maloca paiter no
mesmo período, em um local distante duas horas do anterior? Naturalmente, nenhuma. É a
mesma humanidade, essencialmente a mesma espécie, potencialmente o mesmo ser. No
entanto, o desenrolar da vida de cada um desses seres humanos vincula-se ao peso da
história, que trata de dar caminhos diferentes aos que são originalmente e potencialmente
iguais. O destino de cada um, definido muito mais pelo passado e pelo presente, do que por
um determinismo futuro já traçado, tende a tomar rumos diferentes já nos primeiros dias de
vida, tão logo sejam submetidos às âncoras culturais de seus pais e da sociedade local onde
vivem.
Eu poderia ter nascido paiter, se o local de minha concepção e de meu nascimento
tivesse sido transferido cento e cinquenta quilômetros a Nordeste do Hospital Cosme e
Damião. Se assim tivesse ocorrido, eu falaria uma língua do tronco Tupi, da família
Mondé, e pertenceria a um dos clãs paiter Gapgir, Gamep, Makor ou Kaban. Durante
minha infância teria ouvido meu pai, minhas mães, tios e avós contarem histórias dos
antepassados, das guerras com outros povos, os Zoró, os Cinta-Larga, os Cabeça-Seca, os
brancos. Teria ouvido dizer que os conflitos com estes últimos fizeram meu povo sair de
terras próximas a Cuiabá e se dirigir para o Noroeste no tempo de algumas gerações
anteriores à minha. Teria ouvido que, na origem da humanidade, Palop transformou os
ossos que sobraram dos últimos paiter na morada das onças em paiter novamente.
Conheceria a história do Gavião Real e saberia por que a lua tem uma parte clara e outra
manchada.
Se eu tivesse nascido paiter, possivelmente teria casado com uma sobrinha materna,
teria participado da festa do Mapimaí como parte da metade da aldeia ou da metade da
floresta e saberia construir minha própria casa, manusear arco e flecha, bater timbó no rio.
Possivelmente também saberia confeccionar e tocar flautas e, com alguma sorte, saberia
entoar meus próprios cantos e falar com os espíritos. Também teria estudado com
professores não-indígenas, aprendido a língua portuguesa, entrado em contato com a
cultura do branco, escolhido por minha comunidade para ser professor na escola construída
em minha aldeia.
68
Se assim fosse, provavelmente eu teria cursado o Magistério Indígena do Projeto
Açaí, organizado pelo Governo do Estado de Rondônia, e ingressado na Licenciatura em
Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, juntamente com
professores de mais dezesseis povos indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso.
Na universidade, teria realizado muitas leituras, entrado em contato com novas ideias,
entre elas algumas que dizem respeito à educação matemática e, em particular, à
etnomatemática. Tendo a oportunidade, teria ingressado em algum projeto de iniciação
científica para realizar pesquisas sobre os conhecimentos do meu povo. Possivelmente,
teria convidado então meu orientador para conhecer minha comunidade, minha família,
meu território.
Devido às condições históricas e às duas horas de distância entre os locais de
concepção e de nascimento, não pude ser o estudante universitário paiter a convidar o seu
orientador de iniciação científica para a visita a sua comunidade. Mas, também, com
alguma sorte, e devido às mesmas condições históricas, expostas parcialmente na seção
anterior dessa tese, pude ser o orientador convidado, tendo iniciado a partir de então uma
convivência que resultou em muitos aprendizados sobre o povo e com o povo Paiter.
2.3 Nós Mesmos e os Outros: quatro décadas de mudanças e resistências
Os Paiter vivem atualmente na divisa entre os estados de Rondônia e Mato Grosso.
Seu atual território, a Terra Indígena Sete de Setembro (Figura 1), com área de 247.870
hectares, demarcada em 1976 e homologada em 1983, estende-se do município de
Cacoal/RO, ao Sul, até o município de Rondolândia/MT, ao Norte. Sua língua é do tronco
Tupi, da família Mondé. Com uma população de 1130 pessoas (FUNASA, 2010),
distribuem-se em 20 aldeias, concentradas às margens do território, estrategicamente
situadas para impedir a invasão de posseiros e de colonos que, desde a década de 1970,
adentram a terra indígena, incentivados pelas políticas oficiais de “ocupação” da Amazônia
ou à procura de madeira.
De organização clânica, os Paiter compõem-se de quatro subgrupos patrilineares e
exogâmicos: Gapgir, Gamep, Makor e Kaban, sendo que este último formou-se a partir do
casamento de um membro do clã Gamep com uma mulher do povo Cinta-Larga, seus
vizinhos, em tempos imemoriais.
69
Figura 1 – Localização da Terra Indígena Sete de Setembro, território do povo Paiter.
(Fonte: LABGET – Laboratório de Geomática e Estatística – UNIR, 2013)
O contato oficial dos Paiter com a sociedade nacional ocorreu no ano de 1969, ao se
encontrarem com uma expedição de atração (Figura 2) comandada pelo sertanista Apoena
Meirelles e seu pai, Francisco Meirelles, na sede do posto Sete de Setembro da FUNAI,
fundado em 7 de setembro de 1968 (daí o nome da terra indígena). Mindlin (1985) relata
que, nesse encontro, facões foram oferecidos de presente aos índios, em sinal de paz, mas
que, todavia, o momento foi marcado por tensões dos dois lados. Ainda hoje, as narrativas
nas aldeias relembram detalhes desse dia marcante para o povo, não só por terem iniciado
ali o conhecimento de um mundo novo e muito diferente do seu, mas também por ter sido
aquele o início de sofrimento, perda e morte. O nome atribuído pelos Paiter ao local é
Nambekó dabadaki bah, que se traduz em Português como o local dos facões pendurados.
Desde então, durante os 44 anos de contato e de convivência com a sociedade
envolvente, muitas transformações ocorreram na vida desse povo, desde o modo de
organização e produção material, até a realização de rituais e outras práticas tradicionais
vinculadas ao modo de vida paiter anteriormente existente. Em grande medida, estas
mudanças foram intensificadas pela presença de instituições tais como igrejas e escolas no
70
território paiter, e por força das relações econômicas estabelecidas com a sociedade
envolvente.
Figura 2 – Primeiro contato oficial dos Paiter com não-indígenas, em 1969. Foto: Jesco von Puttkamer/Acervo IGPHA-UCG.
Betty Mindlin, a primeira pesquisadora a conviver com os Paiter a partir de 1979,
relatou, uma década após o contato, as intensas modificações provocadas no modo de vida
do povo pelo choque com a fronteira econômica expandida pela ocupação empresarial da
Amazônia e pela explosão demográfica do então recém criado estado de Rondônia. A
pesquisadora fez o seguinte relato em sua tese de doutorado:
O período de pesquisa foi de muita mudança para os Suruí. Em 1979, quase não usavam dinheiro, a alimentação era a tradicional, e havia poucos bens industrializados. De 1981 em diante, passaram a ser pequenos produtores de café para o mercado (herdaram dos colonos invasores expulsos os lotes de café cultivado), embora continuassem com as atividades econômicas de antes, festas e rituais. O tempo de trabalho aumentara muito. Vários Suruí já tinham contas em banco, os hábitos de consumo se alteravam (MINDLIN, 1985, p. 15).
As mudanças pelas quais o povo Paiter passou a partir dos anos 1970, assim como
muitos outros povos indígenas da Amazônia, deveram-se principalmente às drásticas
transformações sociais, econômicas e ambientais às quais a região Norte do país foi
submetida a partir desse período. Até então, em particular para o caso dos Paiter, as
atividades econômicas voltadas à exploração intermitente de recursos naturais na região,
principalmente a borracha, não haviam interferido significativamente em seu modo de
vida, seja porque os colonizadores migrantes ainda eram em número relativamente
71
pequeno, seja porque os próprios Paiter evitassem o contato, migrando de um ponto a outro
dentro da floresta ainda praticamente intacta.
Porém, a construção da rodovia Cuiabá-Porto Velho, concluída em 1968,
inicialmente BR-29 e posteriormente BR-364, como parte das políticas de expansão de
mercados para a indústria nacional, de acesso a matérias primas na Amazônia e de
descentralização populacional do litoral do país, desencadeou o desmatamento rápido de
Rondônia a partir da década de 1970. Estima-se que até o ano de 1975 a área desmatada na
região totalizava 1.216,5 km2, saltando para 7.579,3 km2 em 1980 (FEARNSIDE, 1982),
para 41.521 km2 em 1987 (FEARSINDE, 1989), e para 51.000 km2 em 1990 (MILLIKAN,
1999), o que totalizava 21% da área total do estado.
Para além do desmatamento, outro fator impactante para a vida dos povos indígenas
da região foi o acelerado crescimento populacional decorrente da chegada de grande
contingente de migrantes, em sua maioria trabalhadores rurais pobres, a partir da década de
1970, vindos principalmente de áreas rurais do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Esse
explosivo fenômeno migratório estava ligado, por um lado, a sistemas arcaicos de posse de
terra e às desigualdades socioeconômicas que se agravavam na região Centro-Sul, e por
outro lado ao plano de desenvolvimento econômico do Governo Federal, em particular aos
projetos de assentamento de colonos na região amazônica, organizados pelo INCRA
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Assim, a população humana em
Rondônia cresceu a uma taxa média anual de 15,8% na década de 1970, frente a uma taxa
média anual de 2,48% no restante do país, saltando de 110.000 habitantes em 1970 para
500.000 em 1980 (MILLIKAN, 1999).
A combinação de desmatamento com acelerado crescimento populacional nesse
período provocou profundos impactos na vida dos povos indígenas da região. Se por um
lado havia a pressão de milhares de trabalhadores rurais pobres (entre os quais se incluíam
meus pais, tios e avós) na busca desesperada de reestabelecer o acesso à terra perdida para
a agricultura industrial da monocultura de exportação do centro-sul, e o interesse de
empresas privadas de mineração, do setor madeireiro e de criação de gado, por outro lado
havia os povos indígenas, com suas diferentes culturas e estilos tradicionais de vida sendo
ameaçados pela expansão capitalista das fronteiras econômicas da sociedade nacional.
Para os Paiter em particular, esse período está marcado na memória como momento
de grande tragédia para o povo, sofrimento e tristeza. Significou ver seu território
tradicional invadido por colonos, entrar em contato com doenças até então desconhecidas e
ter sua própria existência física ameaçada de completo desaparecimento. Somente no ano
72
1974, metade da população paiter morreu, acometida de sarampo e gripe. Mesmo com a
demarcação da Terra Indígena Sete de Setembro em 1976, que, destaque-se, reduziu a área
tradicional ocupada pelo povo a menos da metade, os Paiter continuaram sob ameaça das
invasões de colonos, somente expulsos completamente do território em 1981, ano em que
as últimas famílias de agricultores, em sua maioria produtores de café, foram realocados
pelo INCRA em outras áreas (MINDLIN, 1985).
Os Paiter estão entre os povos da região que mais bravamente resistiram à invasão
de seu território tradicional pelos colonos. Embora a FUNAI fosse responsável pela
proteção e assistência aos índios, o órgão governamental pouco podia fazer frente à grande
pressão resultante do acelerado crescimento populacional, em grande parte incentivado
pelos próprios governos federal e estadual, assim como também foi impotente para evitar
os massacres sobre as populações tradicionais na região o SPI, o órgão indigenista
substituído pela FUNAI. A ineficiência e incapacidade de proteção do órgão indigenista
oficial somadas aos interesses do Governo Federal de alocação de grandes contingentes de
migrantes na região fizeram com que a Terra Indígena Sete de Setembro fosse demarcada
três vezes, antes da homologação em 1983, sempre tendo, nesse processo, sua área
reduzida para beneficiar os invasores com a distribuição das terras.
Os colonos, em sua maioria, eram agricultores pobres, expropriados de suas áreas
de cultivo nas regiões de origem pelo sistema latifundiário, em busca de restabelecer a
posse sobre um pedaço de terra, visto como esperança de prosperidade. Porém, também
havia grandes extensões de terra sob o domínio de poucos posseiros. Estes, protegidos pelo
governo, mantiveram suas áreas praticamente livres das invasões dos camponeses pobres.
Nesses conflitos agrários, os territórios indígenas eram os espaços mais vulneráveis à
invasão. Mesmo após a primeira demarcação da Terra Indígena Sete de Setembro, as
invasões tiveram continuidade, e em muitos casos os Paiter decidiram por conta própria
encaminhar as medidas necessárias à desocupação da área pelos invasores, dentro de suas
possibilidades. Na maioria dos casos, os colonos invasores foram convencidos pelos Paiter,
através do diálogo, a se retirarem. Mas houve situações em que o conflito armado foi
inevitável, havendo mortes dos dois lados.
Embora sejam escassos os dados documentais sobre os conflitos armados entre os
Paiter e invasores, Mindlin (1985) identificou alguns registros, em sua maioria relatando o
“ataque” dos Paiter aos colonos, mesmo antes do contato oficial ocorrido em 1969 (a
inconfundível pintura facial dos Paiter e o formato e ornamentação de suas flechas
permitiam identificá-los e distingui-los entre os demais povos). Em síntese, os registros
73
documentais identificados pela pesquisadora e citados em sua tese de doutorado como
ataques a colonos e mortes atribuídas aos Paiter são os seguintes: em 1948, atacaram um
seringueiro em Nazaré, próximo à atual cidade de Ji-Paraná; em 1967, duas pessoas foram
mortas em Riozinho e uma em Pimenta Bueno; em 1976, o guerreiro Oréia matou um
colono, sendo assassinado em seguida por parentes do morto como represália (esse caso
ainda é relatado atualmente nas aldeias com riqueza de detalhes); e em 1981, o último caso
que se tem registro (assim confirmado atualmente pelos Paiter), dois colonos foram mortos
na Linha 9 por uma frente de cerca de 30 guerreiros paiter, no último esforço bélico dos
próprios Paiter para retirada dos colonos invasores do território demarcado.
A manutenção da vida cultural e social dos Paiter foi posta em risco pelas novas
necessidades de consumo introduzidas pelo contato. O acesso a bens industrializados, às
tecnologias da sociedade envolvente e os recursos financeiros que tal acesso demandava,
impuseram ao povo profundas transformações, sobre as quais nem sempre tinham
consciência, nem sempre conseguiam avaliar o rumo e o impacto da opção de se adotar em
parte o estilo de vida da sociedade que até eles chegou abruptamente. Nesse sentido, em
sua pesquisa junto aos Paiter nesse período, Betty Mindlin registrou: “o funcionamento da
nossa economia e as relações de desigualdade nela existentes lhes escapam; ficam
fascinados pela nova tecnologia e variedade de bens, curiosos por conhecer o mundo
exterior” (MINDLIN, 1985, p. 15-16).
Não obstante a todas as mudanças ocorridas após o contato, atualmente, situados a
apenas 50 quilômetros da cidade de Cacoal e rodeados de fazendas de produção de gado,
os Paiter são exemplo de resistência indígena e de rápida reorganização social, política e
econômica para fazer frente às pressões da sociedade envolvente. Embora, no período de
quatro décadas, tenham mudado substancialmente seus hábitos alimentares e de moradia,
assim como suas práticas culturais tradicionais, ritualísticas e cosmológicas, conseguiram
manter o território, preservar a língua e garantir a própria existência física, passando de
272 pessoas em 1979 para 340 em 1982, distribuídas em duas aldeias (MINDLIN, 1985),
para uma população atual de 1130 pessoas (FUNASA, 2010), vivendo em 20 aldeias
espalhadas pelo território.
O ritmo atual de vida e de trabalho dos Paiter aparentemente se assemelha muito
com o da sociedade envolvente. De segunda a sexta-feira trabalha-se na roça ou em outras
ocupações, tais como buscar e cortar lenha, caçar, pescar, produzir artesanato, dar aula,
manejar o gado. O final de semana é dedicado ao descanso, para ir à igreja e para jogar
74
futebol, atividade praticada predominantemente por homens, mas que conta também com a
presença de mulheres.
As principais fontes de renda dos Paiter atualmente, frente às necessidades de
consumo e subsistência, são a produção agrícola, principalmente de arroz, café e banana,
uma pequena produção de gado de corte, a coleta de castanha, a produção de artesanatos,
que incluem cerâmicas, anéis, pulseiras, colares e cestos de diferentes tamanhos, sendo esta
uma atividade predominantemente das mulheres, os salários dos funcionários públicos, aí
incluídos os professores e os agentes de saúde, e auxílios de programas sociais do governo.
O principal meio de transporte dos Paiter é a motocicleta, que eles utilizam para ir
de uma aldeia a outra, para ir à roça e, principalmente, para ir à cidade. Há também alguns
carros, dentre os quais estão dois na aldeia Gapgir e dois na aldeia Lapetanha, todos de
professores. Pelas aldeias da Linha 14, nos dias de segunda, quarta e sexta-feira, passa um
ônibus que também transporta os colonos da região até a cidade.
Organizando-se por meio de associações, e buscando parcerias com universidades,
ONGs e outras instituições, nacionais e internacionais, os Paiter estão conseguindo
construir instrumentos para fazer frente às novas necessidades de consumo e renda,
buscando preservar ao mesmo tempo o que caracteriza sua cultura e sua forma de
organização social. Nas relações com as diferentes instituições, espaço no qual se destaca a
liderança de professores, alguns deles sujeitos dessa pesquisa, os Paiter se apropriam de
instrumentos que estão lhes permitindo compreender o funcionamento de nossa economia,
bem como as relações de poder, as desigualdades sociais e os impactos ambientais
decorrentes do nosso modo de produção capitalista.
Atualmente, possuem seis associações de base, a saber Organização do Povo da
Floresta Kaban-ey Suruí, Associação Gãbgir do Povo Indígena Paiter Suruí, Associação
Metareilá do Povo Indígena Suruí, Associação Pamaur de Proteção aos Povos Indígenas
Paiter Iter de Rondônia, Associação Garah Pãmeh Kabaney e Instituto Florestal Yabner
G̃abgir do Povo Indígena Paiter Suruí. Por meio dessas associações, os Paiter estão
desenvolvendo projetos com vistas à captação de recursos materiais e financeiros de
suporte para sua sobrevivência física e cultural.
É nesse movimento que, após terem seu território invadido por colonos, explorado
por madeireiras e garimpeiros, os Paiter estão conseguindo construir autênticos projetos
que poderão inclusive se replicar em outros espaços e territórios indígenas. Um exemplo
disso é o projeto Carbono Suruí, iniciado em 2005, em parceria com instituições nacionais
75
e internacionais, que poderá render aos Paiter os primeiros créditos de carbono vendidos na
bolsa de valores por um povo indígena no mundo.
O ritmo de superação dos problemas advindos do contato e a busca de construção
de instrumentos próprios de sobrevivência física e cultural são surpreendentes entre os
Paiter. Em 1969 ocorreu o contato. No início da década de 1980, representantes do povo já
viajavam a São Paulo e a Brasília, falando com a imprensa, com os políticos e conhecendo
o que era a sociedade nacional à qual se inseriam. Em 2011, um de seus líderes ocupou a
tribuna na 66ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e denunciou ao mundo as
pressões que ainda hoje o território paiter está sofrendo por pessoas e instituições que
insistem em retirar madeiras no interior da Terra Indígena Sete Setembro:
Sempre soubemos nos calar, respeitar a competência dos órgãos responsáveis que garantem a manutenção da educação, saúde e fiscalização nos territórios indígenas. Também soubemos nos manifestar a nosso modo com respeito e responsabilidade. Mais uma vez lá vamos nós clamar por proteção de nosso território (SURUÍ, 2011)3.
A acirrada luta pela preservação do território, associada ao conjunto de iniciativas e
projetos, tais como o do Carbono Suruí, único programa de redução de emissões do
desmatamento e degradação florestal validado no Brasil (REDD+), rendeu ao povo Paiter o
reconhecimento internacional, culminando com o recebimento do prêmio da Organização
das Nações Unidas intitulado Herói da Floresta por um de seus líderes no ano de 2013,
durante a 10ª Sessão do Fórum sobre Florestas da ONU, realizada em Istambul, na
Turquia.
No plano educacional, a maioria das aldeias conta atualmente com a presença de
uma escola, mantida pelo estado, onde atuam professores indígenas, mas também
professores não indígenas. A alfabetização está sob responsabilidade de professores paiter,
e as crianças das séries iniciais estão sendo alfabetizadas na língua materna, para só então
aprenderem a Língua Portuguesa. Sobre esse trabalho com a língua, mais uma vez os Paiter
têm se destacado em âmbito nacional, tendo um de seus professores, Joatom Suruí (Figura
3), recebido o prêmio Professor Nota 10 da Fundação Victor Civita, no ano de 2008, e o
prêmio Professores do Brasil, promovido pelo Ministério da Educação, também em 2008, 3 Trecho do discurso de Almir Narayamoga Suruí, durante a 66ª Assembleia Geral da ONU em Nova York,
ocorrida em 2011.
76
ambos pelo projeto de revitalização da língua por meio da alfabetização que o professor
desenvolve com seus alunos na escola de sua aldeia.
Figura 3 – Professor Joatom Suruí, ao receber o prêmio Professor Nota 10, concedido pela Fundação Victor Civita, em 2008. Disponível em: www.fvc.org.br.
Os Paiter paulatinamente estão conseguindo avançar em direção a uma educação
escolar indígena diferenciada, e para isso a formação de seus professores em cursos de
Magistério (Projeto Açaí) e de Licenciatura Intercultural (UNIR) tem contribuído. Nesse
sentido, 33 professores atuando nas escolas da Terra Indígena Sete de Setembro já são
paiter, dos quais 17 estão na universidade, cursando a Licenciatura em Educação Básica
Intercultural. Em médio prazo, estes professores substituirão os não indígenas que
atualmente atuam nas séries finais do Ensino Fundamental, estando habilitados inclusive
para oferecerem o Ensino Médio, ainda inexistente nas aldeias.
Apesar das mudanças pelas quais o povo passou, muito das tradições culturais
ainda se mantém entre os Paiter, entre as quais se situam a língua, cantos, danças, e os
conhecimentos relacionados à confecção de artesanatos, cerâmicas, cestarias, pinturas
corporais, construção de malocas e produção de roças. Na Figura 4 abaixo, crianças paiter
observam os adultos executando uma dança tradicional. Trata-se de um exemplo de
situação de manifestação de elementos da cultura do povo, que continuam se reproduzindo
através de formas tradicionais de educação.
Não obstante as iniciativas dos próprios professores paiter em buscarem fazer da
escola um espaço de revitalização da cultura e de fortalecimento da identidade cultural do
povo, o currículo escolar, principalmente das séries finais do Ensino Fundamental, ainda
não inclui saberes tradicionais a serem trabalhados na escola. Em grande parte, isto se deve
à presença predominante de professores não indígenas nessas séries, que não falam a
língua paiter e reproduzem uma educação escolar semelhante à que ocorre em escolas não
indígenas da rede estadual de educação.
77
Figura 4: Crianças paiter observam os mais velhos em atividade cultural na Aldeia Gapgir.
Foto: Kécio Leite, 2012.
No cotidiano das aldeias, as gerações mais novas manipulam jogos eletrônicos em
celulares de última geração, ao mesmo tempo em que são estimulados pelos professores
paiter a aprenderem com os mais velhos o modo de vida Paiter, mesmo após quatro
décadas de convívio com a sociedade envolvente e as transformações culturais decorrentes
do contato. E é nesse espaço de tensões, entre a necessidade de se apropriar de
conhecimentos e instrumentos práticos e teóricos advindos do contato, e de se manter ao
mesmo tempo a identidade cultural do povo, que se situa a atual iniciativa dos professores
paiter em projetarem a introdução de saberes matemáticos tradicionais na escola,
subsidiados teoricamente pelos estudos em andamento na universidade, por um lado, e por
outro apoiados na memória e nos conhecimentos preservados na oralidade pelos mais
velhos das aldeias, os sábios, os curubey.
Sobre isso, disse em entrevista um dos professores sujeitos da pesquisa:
Hoje, os sábios, os adultos, os curubey que a gente fala, só eles estão sabendo de forma certa, da contagem, da medida, da sua história. Por isso que essa importância tem que ser registrada, tem que ser publicada, porque a escola tem que ter esse referencial dentro dela, porque a partir do momento que os adultos se forem, a gente já tem esse material na mão, a gente não fica com aquela dúvida, porque os adultos hoje são bibliotecas... vamos supor que são bibliotecas, só eles que conhecem a matemática e a sua história (PP3 – Aldeia Amaral).
Os resultados dessa experiência são, desde já, potencialmente inovadores. Poderão
sugerir caminhos, problematizar concepções, ressignificar práticas até então cristalizadas
no interior das escolas, deixando como legado teórico e empírico conhecimentos que
contribuirão para a formação de novos professores paiter, assim como de outros povos
78
indígenas. É nesse movimento de tentativa de ressignificação da educação escolar existente
na aldeia, a partir de uma valorização do que é próprio da cultura de seu povo, que os
professores paiter iniciaram o desenvolvimento de pesquisas e registros de saberes,
incluindo-se os saberes matemáticos, com o intuito de alterar o currículo das escolas nas
aldeias, aproximando-o da realidade cultural do povo, sem perder de vista, todavia, os
saberes da sociedade envolvente necessários à sobrevivência nas relações estabelecidas
desde o contato.
A seguir, serão apresentados alguns resultados atingidos pelos professores paiter
em pesquisas iniciais sobre saberes matemáticos de seu povo, incluindo-se quantificadores,
qualificadores geométricos e marcadores de tempo. Em parte, tais pesquisas se originaram
a partir de motivações advindas de estudos teóricos realizados pelos professores no curso
de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, ao entrarem em contato com
textos de autores da área de etnomatemática. Desde então, percebe-se entre os professores
paiter o interesse em registrar e “sistematizar” os saberes e fazeres matemáticos de seu
povo, levando a cabo essa ação por meio de trabalhos de conclusão de curso de graduação
ou em participação em projetos de iniciação científica e em projetos de extensão. Desse
modo, tenho participado também, institucionalmente, direta ou indiretamente nestas
atividades de pesquisa com os professores paiter.
2.4 Saberes e Fazeres Matemáticos Paiter
Desde o ano de 2011, por meio de atividades empíricas de registros de saberes e
fazeres matemáticos do povo Paiter, um conjunto de informações sobre os saberes e
fazeres matemáticos desse povo está sendo produzido. Participam diretamente dessas
atividades os professores paiter matriculados no curso de Licenciatura em Educação Básica
Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, e especialmente dois deles, orientandos
meus em projetos de iniciação científica e em trabalho de conclusão de curso de
graduação, por meio dos quais as traduções Paiter/Português têm se tornado possíveis.
Alguns resultados já se encontram publicados, a saber Suruí e Leite (2012, 2013a e 2013b).
Os dados apresentados a seguir resultaram destas pesquisas, além de notas de campo
colhidas desde minha primeira visita ao território paiter.
O povo Paiter possui uma forma própria de contagem que possibilita representar
quantidades entre 1 (um) e 20 (vinte), com a possibilidade de existirem mais termos
numéricos. A representação de cada termo é feita oralmente, com o apoio da exibição dos
79
dedos das mãos ou dos pés. Valendo-se das convenções ortográficas elaboradas durante os
anos 1990 pelos próprios Paiter com o auxílio de linguistas do Summer Institute of
Linguistics, os quantificadores identificados na pesquisa estão sendo registrados por
escrito. Assim, para cada termo numérico identificado, registrou-se uma frase de
contextualização.
O Quadro 1 a seguir apresenta os vinte primeiros termos numéricos ou
quantificadores na Língua Paiter, com uma tradução em Português e uma frase de
contextualização.
Quadro 1 – Termos numéricos e quantificadores paiter
Paiter Tradução Exemplo
Mu͂y Um – Único Mu͂y aka oje morip nã e.
(Eu matei um peixe)
Xakalar
ou
Akalar
Dois – Um par
Yap akalar itxa lade.
(Eu tenho duas flechas. Eu tenho um
par de flechas).
Xakalar amakap om
Três – Esse par mais
esse par sem
companheiro (apontando
para os dedos da mão
agrupados em pares).
Xakalar amakap om aka oje arime͂
nã e.
(Eu matei um par mais um par sem
companheiro de macacos. Eu matei
três macacos).
Pamabokap norah
ou
Xakalar itxehr
Quatro – Tantos quantos
os dedos maiores ou
Dois pares
Pamabokap norah anang͂a g͂arba sade
etiga oje kah Cacoal e.
(Fui a Cacoal faz quatro dias).
Mu͂y pabe Cinco – Tantos quanto
uma mão
Mu͂y pabe anang͂a lade opup ey itxa
e.
(Eu tenho cinco filhos. Eu tenho
tantos filhos quanto os dedos de uma
mão).
Mu͂y ãah mapabe pi Seis – Pegar um da outra
mão
Mu͂y ãah mapabe pi a yele anang͂a
oje g͂arah ka yara ikin e.
(Encontrei seis brancos na floresta.
Encontrei tantos brancos na floresta
80
quanto uma mão mais um da outra
mão).
Xakalar ãah mapabe pi Sete – Pegar um par da
outra mão
Xakalar ãah mapabe pi yele anang͂a
oje morip ey aka e.
(Matei sete peixes. Matei peixes
tanto quanto uma mão e um par da
outra mão).
Xakalar amakap om ãah
mapabe pi
Oito – Pegar esse par e
esse par sem
companheiro da outra
mão
Xakalar amakap om ãah mapabe pi
yele anang͂a oje garba koy.
(Fiquei no mato oito dias. Fiquei no
mato tantos dias quanto uma mão
mais esse par mais esse par sem
companheiro).
Pamabokap norah mãah
mapabe pi
Nove – Pegar os dedos
maiores da outra mão.
Pamabokap norah mãah mapabe pi
yele anang͂a ma͂g͂ahp de aar e.
(Caíram nove castanhas. Caíram
tantas castanhas quanto uma mão
mais os dedos maiores da outra
mão).
Baga pamabe
ou
Bak pamabe
Dez – Tanto quanto
todas as mãos
Omor ey sade baga pamabe anang͂a
e.
(Tenho dez irmãos. Meus irmãos são
tantos quanto todas minhas mãos).
Baga pamabe de epi
mu͂y txor Onze
Baga pamabe de epi mu͂y txor aãh
oje arãy ey nã e.
(Adquiri onze galinhas).
Baga pamabe de epi
xakalar tor Doze
Litak sade baga pamabe ka xakalar
tor anang͂a manã ani e.
(Parece que vai fazer frio por uns
doze dias).
81
Baga pamabe ka xakalar
amakap om nor Treze
Ãh kao mĩ teh lade aye baga pamabe
ka xakalar amakap om nor kao mag̃a
aye e.
(Vou completar treze anos de idade
nesse ano).
Baga pamabe ka xakalar
itxehr tor Quatorze
Baga pamabe ka xakalar itxehr tor
pe tota Gapgirey sade ani e.
(Os Gapgirey moram na linha
quatorze).
Baga pamabe ka mu͂y
pabe tor Quinze
Ãh tik mi baga pamabe ka mu͂y pabe
tor kat ah ka lade aye owe maãh e.
(Vou me casar daqui a quinze dias).
Baga pamabe ka mu͂y
pabe deepi mu͂y txor Dezesseis
Baga pamabe ka mu͂y pabe de epi
mu͂y txor anang͂a oje morip aka e.
(Matei dezesseis peixes).
Baga pamabe ka mu͂y
pabe deepi xakalar tor Dezessete
Baga pamabe ka mu͂y pabe deepi
xakalar tor karba ka palade e.
(Estamos no dia dezessete).
Baga pamabe ka mu͂y
pabe deepi xakalar
amakap om nor
Dezoito
Baga pamabe ka mu͂y pabe deepi
xakalar amakap om nor e kat ah de
akah owe maã oje pi e.
(Já se passaram dezoito dias desde o
meu casamento).
Baga pamabe ka mu͂y
pabe deepi xakalar itxehr
tor
Dezenove
Baga pamabe ka mu͂y pabe deepi
xakalar itxerey tor e kat ah ter sade
aor omã TCC ka baga yet e kabi e.
(Faltam dezenove dias para eu
concluir meu TCC).
Baga pamabe ka baga
pamipeh Vinte
Baga pamabe ka baga pamipeh
anang͂a oje mebekot ey ikin g͂arah
koy e.
(Eu avistei vinte porcões na
82
floresta).
O termo numérico mu͂y significa um. Porém, existem outras construções com este
termo que se referem à ideia de único quando associados aos pronomes pessoais. Por
exemplo, na expressão Imu͂y oje osop gabi e (Eu sou único para meu pai), há uma
contração do pronome com o numeral, o mesmo ocorrendo na expressão Pamu͂yı͂ pajeka
pawerkar e (Nós fomos caçar sozinhos – somente nós). Nesse caso, esse nós é usado
quando se dirige a um membro incluso na ação. Por exemplo, Carlos, José e Pedro foram
caçar. Então Pedro diz a José pamu͂yı͂ para significar “nós” fomos caçar. Porém, se Pedro
disser isso a Joaquim que não foi caçar, ele usará o termo toymu͂yı͂ para se referir a nós,
porém sem Joaquim (nesse caso, nós se refere a Carlos, José e Pedro). Assim, a construção
ficará Toymu͂yı͂ tojeka toyerkar e (Nós fomos caçar sozinhos), Meymu͂yı͂ meyjeka meyerkar
e (Vocês foram caçar sozinhos), ou ainda Amu͂yı͂ tajeka awerkar e (Eles foram caçar
sozinhos).
O termo pamabo norah, dependendo do contexto, significa apenas nossos dedos
maiores, uma referência a partes do corpo humano. Para deixar claro a intenção de
significar quantidade, o termo deve ser acrescido da expressão anang͂a, que significa
“como”, “equivalente a” ou “da mesma quantidade que”. Trata-se de um termo
comparativo. Desse modo, a construção pamabokap norah anang͂a significa, literalmente,
“equivalente à quantidade de dedos maiores”, isto é, quatro.
Para a expressão mu͂y mãah mapabe pih, que se refere à quantidade seis, a palavra
“dedo” fica implícita na interpretação “Uma mão e pegar um da outra mão”. Portanto, o
sentido se completa com o ato de mostrar/exibir o dedo da outra mão.
Na impossibilidade de se exibir os dedos das mãos, por exemplo quando estas estão
ocupadas, pode-se mostrar os dedos dos pés para representar a quantidade desejada. Por
exemplo, o “seis”, que se enuncia mu͂y mãah mapabe pih quando se mostram os dedos das
mãos, será mu͂y mãah mapipeh pih ao se exibirem os dedos dos pés. Aí reside uma
abstração, ou seja, a quantidade “seis”, como número, não depende do suporte “mão” para
ser representado. O número independe do suporte representativo (mão, pé), ao mesmo
tempo que está associado à quantidade de dedos exibidos. Isto é, em paiter, o número,
como ideia ou representação de quantidades, está associado de forma biunívoca aos
elementos (dedos da mão ou do pé) exibidos.
83
No caso da expressão Mu͂y pabe a͂ akalar a͂ amakap om mãah mapabe pi anang͂a,
que literalmente seria “uma mão mais esse par mais esse par sem companheiro da outra
mão”, a expressão “da outra mão”, ou seja, mapabe pih é omitida na conversação, uma vez
que a outra mão é fisicamente exibida, não sendo necessário associar ao gesto a expressão
falada “da outra mão”. Trata-se portanto de uma diferença introduzida pela escrita, uma
vez que, quem lê, não vê o gesto, sendo necessário escrever “da outra mão”.
A expressão xameomi, que literalmente faz referência à quantidade de cabelos da
cabeça, é utilizada quando se faz referência a “muitos”, quando se trata de uma quantidade
“incontável”, uma noção de “infinito”. Por sua vez, a expressão katxer é usada para se
fazer referência a uma quantidade indefinida acima de mũy pabe, porém possível de se
contar. Denota as noções de diversos ou finito, equivalentemente à palavra anyum, usada
para se fazer referência a “uma certa quantidade”.
Além de quantificadores, os Paiter possuem um conjunto de termos e expressões
que expressam a qualidade ou característica de objetos, artefatos, trançados e pinturas
quanto a suas formas geométricas, tamanhos e posições relativas. No quadro a seguir,
apresentam-se alguns destes termos e expressões.
Quadro 2 – Qualificadores paiter que caracterizam objetos quanto a formas geométricas, posições relativas, tamanhos e pesos
Qualificador Tradução
Patakab u͂d Círculo
Yapeh ipo Triângulo
Txakaah Quadrado
Txakaah peah Retângulo
Yapeh tig̃ Losango
Penẽm ah Esfera
Makorahb Cilindro
Ibog-ahp apeh Cone
Xatoah
Comprido
(árvore, barbante. Exemplo: Anõ ihp sade
xatoah e – Aquela árvore é comprida)
Txapôh ûhd Fino
Pasaah Grosso
84
Tãhg̃a Reto
Wedag̃ Ondulado
Pikahyah Curto
Xakarĩah Alto
Ipeah Baixo
Ixin Pequeno
Ipohy Grande
Uhna Perto
Kot Longe
Moter Direita
Mogãh Esquerda
Ibeb Atrás
Ipo Em frente
Xibi Embaixo
Xamatar Em cima
Awesagah-ĩh Lado a lado
Alaamikar-ĩh Frente a frente
Ãh pabi Lado de cá
Ano pabi Lado de lá
Anõ weĩh Próximo
Anokoytxer Distante
Xekeahp Leve
Xekeahp iter Muito leve
Xekeahp nãrah Meio leve
Xiribeah / xiripeah
Plano
(superfície plana, tampo de uma mesa,
“face” de uma lagoa)
Koriahp Plano e fundo
(poço, buraco)
Patakap’ah Esférico
85
(semente arredondada, formato da lua e do
sol)
Ipoah
Comprido e cilíndrico
(como os acordelados de argila para fazer
panela de barro, ou como o ihmoh,
equivalente em português a “mão-de-pilão”,
instrumento utilizado para socar grãos)
Os Paiter possuem um complexo sistema de marcadores de tempo, que tomam por
referência fenômenos da natureza, astros celestes e comportamentos de animais e plantas.
Tais marcadores operam em diferentes escalas, podendo variar de poucos minutos a dias,
semanas ou mesmo ciclos maiores, equivalentemente a décadas. No Quadro 3 abaixo,
apresentam-se marcadores de tempo utilizados para o ciclo de um dia.
Quadro 3 – Marcadores de tempo paiter para o período de um dia
Marcadores Tradução Instante
Mixa͂g abit Metade da noite 00:00 a 02:00
Pagap g͂apamah O escuro antes do amanhecer 02:00 a 04:00
Pagap niga No momento do amanhecer 04:00 a 06:00
Mag͂ihr Cedo/Manhã 06:00 a 08:00
G͂alag͂ah anoh Ao subir do Sol 08:00 a 10:00
G͂arabi ka Na metade do dia – Quando
o sol está “em pé” 10:00 a 12:00
G͂arabi pabit No meio do topo do Sol 12:00 a 13:00
Ogur ? 13:00 a 14:00
Ogur maroy Tempo bom – Tempo bonito 14:00 a 17:00
G͂arba korit Final do dia 17:00 a 18:00
Mixãg͂ĩ Início da noite 19:00 a 22:00
Mixãg apũnunũ Noite bem escura 22:00 a 00:00
Além de termos numéricos, qualificadores geométricos e marcadores de tempo, os
Paiter possuem um sistema de medida que possibilita localizar uma árvore frutífera no
86
meio da floresta, estimar a distância entre a aldeia e um barreiro de caça, tomando-se por
referências outros marcadores específicos, tais como uma distância conhecida entre duas
casas, ou entre a aldeia e uma grande árvore.
À medida que os resultados das pesquisas realizadas com os professores paiter iam
surgindo, fui percebendo que a identificação de todos esses saberes e fazeres matemáticos
na cultura do povo servia de estímulo para que os professores paiter assumissem uma
concepção segura de que matemática não é conhecimento exclusivo da sociedade
colonizadora, e que portanto a escola na aldeia deve reconhecer e incluir em seu currículo
tais saberes ao educar as novas gerações.
Emergiu, desse contexto, um universo temático relativamente novo em minhas
experiências de vida e acadêmicas, de modo que me vi obrigado a buscar por novas
referências teóricas que me auxiliassem a compreender as interações que se estabeleciam
entre a pesquisa sobre saberes e fazeres matemáticos, a projeção destes saberes pelos
professores indígenas para o interior da escola na aldeia, as consequentes relações desse
fenômeno com a ressignificação da educação escolar nas comunidades, e a dimensão
política dessas ações inerente à revitalização da cultura e à reafirmação identitária.
Surgiu assim a necessidade de estabelecer mais um encontro no desenvolvimento
de minha pesquisa de doutorado: o encontro com novos referenciais teóricos que me
auxiliassem na compreensão dos fenômenos que passaram a permear minhas atividades de
pesquisa e meu fazer docente no curso de formação de professores indígenas.
2.5 O encontro com novos referenciais teóricos
À medida que minhas interações com os estudantes indígenas na universidade e nas
aldeias foram se fortalecendo, meu cotidiano e meu fazer docente foram sendo permeados
por novas vivências que passaram a se refletir na pesquisa com um crescente grau de
complexidade. Surgia assim a necessidade de buscar novos referenciais teóricos que me
auxiliassem não apenas no desenvolvimento da pesquisa, mas no meu próprio fazer
enquanto formador de professores indígenas em um curso de licenciatura intercultural.
Por estar trabalhando com formação de professores indígenas na universidade,
portanto diretamente relacionado à educação escolar indígena, essa foi umas das temáticas
pelas quais me interessei e passou a se fazer presente em minhas leituras e estudos. Das
referências de minha formação inicial e de minha atuação imediata em sala de aula, a
87
etnomatemática se destacou como outra temática a demandar investigações teóricas e
bibliográficas. Todavia, restava o sentimento de que havia uma terceira temática
relacionada à complexidade do universo da pesquisa e de atuação no curso que ainda
estava descoberta. Por indicações de colegas de trabalho mais experientes, fui encontrar
um interesse pelos estudos culturais, em especial pelos desdobramentos teóricos que tal
área proporciona ao tratar de cultura e identidade cultural para além das perspectivas
tradicionais da antropologia, possibilitando uma releitura de discussões sobre
interculturalidade e relações entre culturas distintas.
As próximas três seções dessa tese contemplam elaborações teóricas que realizei
com base em leituras e estudos de referenciais relacionados a essas três grandes temáticas
inter-relacionadas no desenvolvimento dessa pesquisa: Educação Escolar Indígena,
Interculturalidade e Etnomatemática. Da exploração de conceitos e ideias relacionadas a
estas três grandes áreas temáticas, busquei extrair fundamentos teóricos para a análise dos
dados produzidos e apresentados nas seções finais da tese.
88
3 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: FACES DA ESCOLA NA ALDEIA
Atualmente, a educação escolar é uma das principais reivindicações presentes nas
pautas do movimento indígena brasileiro. Antes porém de se reconhecer e, de certa forma,
de se conquistar a escola como um espaço institucional de fortalecimento dos povos
indígenas nas relações com a sociedade nacional (embora muito ainda se tenha a
conquistar), a educação escolar nas aldeias serviu a diversos propósitos, incluindo-se a
contribuição para a própria extinção de sociedades indígenas no território nacional, quer
seja pela assimilação, quer seja pela integração destas ao sistema de produção e ao modo
de vida em geral do “povo brasileiro”.
Nessa seção, busca-se analisar os momentos que caracterizaram a educação escolar
entre os povos indígenas no Brasil, os diferentes objetivos dessa educação, os principais
atores e instituições que para isso convergiram em diferentes contextos e períodos
históricos. Então, a partir do atual contexto, busca-se discutir a escola na aldeia como um
espaço de hibridação cultural, no qual a educação escolar diferenciada, intercultural e
bilíngue concorre para o fortalecimento cultural dos povos indígenas, ao mesmo tempo em
que funde práticas e conhecimentos não indígenas com aqueles da tradição, possibilitando
a origem de algo que é novo.
3.1 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil nos séculos XVI a XIX: a face
catequizadora e civilizatória da escola na aldeia
A educação, como processo difuso, sempre esteve presente no cotidiano de todos os
povos do mundo, sendo um dos meios para a produção e reprodução de ideias e crenças,
bens e saberes, qualificações e especialistas, guerreiros ou burocratas (BRANDÃO, 2007).
A educação escolar, porém, teve suas origens na Europa e se alastrou para o restante do
mundo com o processo da colonização. Assim, antes do contato com os europeus
colonizadores, os povos indígenas que já ocupavam o território que hoje corresponde ao
Brasil não conheciam a instituição escolar, mas já praticavam formas próprias de produção
e reprodução de saberes com base na tradição oral, ao que se pode denominar de educação
indígena.
89
Apesar de serem escassas as informações sobre os processos educativos praticados
pelos povos indígenas originários do Brasil bem como sobre o início da introdução de
escolas entre estes povos, é possível esboçar uma trajetória a partir de um conjunto de
relatos de missionários, funcionários públicos e cronistas da época, que chegaram até os
dias de hoje e foram organizados em trabalhos tais como os de Freire (1996, 2004) e
Monteiro (1994), possibilitando delinear os caminhos percorridos pela educação escolar
indígena no país, com destaque para o impacto que as sociedades indígenas sofreram com
a introdução da escola em seu meio, originalmente por missionários, e posteriormente pelo
próprio Estado.
A educação escolar em sociedades indígenas teve origem no Brasil na segunda
metade do século XVI, com missionários jesuítas. Pode-se dizer que as escolas criadas e
mantidas pelos jesuítas eram para indígenas, e não de indígenas, visto que tinham como
objetivo central a catequese, ignorando completamente as práticas educativas indígenas, e
com vistas à execução de uma política destinada a desarticular as identidades étnicas,
discriminando suas línguas e culturas (FREIRE, 2004).
Essas primeiras instituições escolares basearam-se na concepção de que os povos
indígenas não possuíam práticas educativas, nem processos próprios de aprendizagem que
pudessem ser aproveitados para o objetivo de introduzi-los à civilização ocidental. O
desconhecimento que o colonizador europeu tinha das línguas indígenas e das culturas
indígenas em geral reforçou a ideia de que os povos indígenas sequer eram capazes de
estabelecer um discurso sobre uma prática educativa própria, ignorando-se assim qualquer
concepção pedagógica existente entre os povos.
Oriundos de uma sociedade na qual a escrita desempenhava uma função essencial
na construção do discurso, da metalinguagem e da filosofia, os colonizadores europeus
interpretaram a ausência de uma escrita alfabética entre os povos indígenas como sinal de
incapacidade de produção de pensamento crítico e elaborado que sustentasse uma filosofia
ou um pensamento pedagógico. Além disso, por não se observar a existência de instâncias
específicas de ensino-aprendizagem, e de sujeitos especializados na instrução das crianças
no cotidiano das aldeias, concluiu-se que não existiria qualquer forma intencional ou
planejada que pudesse ser interpretada como educação. Assim, para o colonizador, não se
tratava de impor um sistema educacional em substituição a outro diferente, mas
simplesmente da implantação de um sistema universal, já existente e praticado na Europa,
e ainda ausente nas sociedades indígenas.
90
A não identificação e o não reconhecimento das formas próprias de ensino e
aprendizagem praticadas e pensadas pelos povos indígenas como sendo educação perdurou
até o século XX. Conforme Brandão (2007), mesmo entre os antropólogos do início do
século que se dedicaram à descrição rigorosa de detalhes de “culturas primitivas” das
sociedades tribais das Américas, da Ásia, da África e da Oceania, muitos evitaram usar o
termo educação para designar as relações cotidianas, as cerimônias e rituais nos quais
crianças e jovens eram iniciados no mundo dos adultos. Entre os raros casos de utilização
do conceito de educação pelos antropólogos desse período encontra-se o do inglês
Radcliffe-Brown, ao registrar que,
[...] entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade “é preciso que ela seja educada”. Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve a aquisição de “sentimentos e disposições emocionais” que regulam a conduta dos membros da tribo e constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade (BRANDÃO, 2007, p. 17).
Essa relutância em se reconhecer os processos de reprodução da sabedoria
acumulada pelos grupos sociais como sendo educação decorre da vinculação do conceito
com os espaços estritamente escolares já existentes na Europa de antes da colonização.
Assim, o fato de os antropólogos do início do século XX ainda evitarem usar o conceito de
educação para se referir aos processos sociais de ensino e aprendizagem dos andamaneses,
dos Maori, dos Apache ou dos Xavante se deve em parte pela observação da ausência de
processos formalizados de ensino e de situações propriamente escolares de transferência do
saber tribal entre estes povos, visto que entre eles “a sabedoria acumulada do grupo social
não ‘dá aulas’ e os alunos, que são todos os que aprendem, ‘não aprendem na escola’”
(BRANDÃO, 2007, p. 17).
A desqualificação da capacidade de pensamento e de discurso dos povos indígenas
perdurou ao longo do tempo, começando a mudar somente a partir do século XX, quando o
antropólogo Claude Lévi-Strauss demonstrou entre diferentes etnias a existência de
discursos sobre a visão de mundo que compunham uma filosofia com suportes outros que
não a escrita alfabética. Particularmente, Lévi-Strauss demonstrou que o mito e o rito são
formas de organizar e explicar a realidade a partir da experiência sensível. O pensamento
mítico resulta da organização, reunião e composição de diferentes experiências e narrativas
91
que, organizadas em um plano não muito rígido, dão origem a explicações para os
fenômenos da natureza e para a influência do plano espiritual sobre o material, do divino
sobre o humano (LÉVI-STRAUSS, 2002).
Por sua vez, Florestan Fernandes, ao discorrer sobre os princípios praticados pelos
Tupinambá acerca da transmissão de conhecimentos sobre a natureza e a cultura,
demonstrou a existência de um pensamento pedagógico indígena anterior ao contato com
os europeus, portanto independente do registro escrito. Fernandes (1976) observa que,
entre os Tupinambá, qualquer pessoa era um agente da educação tribal, dado o princípio
por eles elaborado e seguido de que todos educam todos, sendo cada sujeito responsável
pelos ensinamentos às pessoas mais jovens ou menos experientes.
Ao discorrer sobre a filosofia educacional dos Tupinambá, Freire (2004) afirma que
ela era composta por três valores fundamentais, sendo eles o valor da tradição oral, o valor
da ação e o valor do exemplo. A tradição oral constituía-se de um conjunto de saberes que
orientavam as ações e decisões dos indivíduos nas mais diversas situações. Ao valorizar a
ação como princípio educativo, as crianças e adolescentes eram envolvidos em atividades
práticas para aprender fazendo. Por último, o valor do exemplo refletia no comportamento
das pessoas mais velhas, que deveriam reproduzir o legado dos antepassados e o conteúdo
das tradições.
Ao não reconhecerem tais processos como educativos e adequados à formação de
uma sociedade “civilizada”, os missionários jesuítas encarregados de implantar as
primeiras escolas para indígenas no Brasil na segunda metade do século XVI entraram em
conflito com certos comportamentos julgados impróprios e inadequados à educação das
crianças. É o caso, por exemplo, do tratamento dado ao erro e o uso do castigo no processo
educativo praticado pelo europeu, mas ausente entre os pais indígenas. Quanto a isso,
Freire (2004) relata a impressão de um missionário jesuíta que, ao observar que “pais e
mães indígenas ‘amam os filhos extraordinariamente’, lamentou que ‘nenhum gênero de
castigo têm para os filhos, nem há pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em
filho’” (CARDIM, 1980 apud FREIRE, 2004, p. 15). Há também o relato ilustrativo da
impressão de Pero de Magalhães Gandavo, provedor da Fazenda na Bahia entre 1565 e
1570, para o qual pais e mães indígenas de aldeias Tupinambá do litoral “criam seus filhos
viciosamente, sem nenhuma maneira de castigo” (GANDAVO, 1980 apud FREIRE, 2004,
p. 16).
A introdução da instituição escolar pelos missionários jesuítas para os povos
indígenas no Brasil deu-se então a partir da construção de casas de taipa em aldeias no Rio
92
de Janeiro e na Bahia no século XVI, funcionando estas como “as escolas de ler, escrever e
contar” (FREIRE, 2004, p. 17). Na parte da manhã, todas as pessoas da aldeia,
independentemente da faixa etária, eram doutrinadas com aulas de catequese. À tarde,
ensinavam-se técnicas agrícolas e ofícios artesanais, enquanto “os mais hábeis aprendiam a
ler e escrever” (FREIRE, 2002, p. 90). Durante todo o período colonial, a docência foi
exercida exclusivamente por missionários, sendo imposta a Língua Portuguesa, com a
consequente proibição das línguas maternas indígenas (FREIRE, 2004, p. 17).
Pautada pela concepção de que a educação do indivíduo imprescindia de atos de
violência, incluindo a própria violência física, visto que na Europa da época a palmatória
era prática corriqueira na escola, a educação escolar imposta aos povos que primeiro
tiveram contato com o colonizador europeu incluía a tortura física e emocional no intuito
de extinguir as identidades culturais dos índios, incluindo-se nisso as ações que visavam
coibir o uso das línguas maternas, para se impor a Língua Portuguesa. Em consequência, a
reação que tais medidas ocasionavam incluía atos de resistência, tais como os relatados
pelo missionário jesuíta João Daniel, segundo o qual, mesmo sofrendo as “palmatoadas”
impostas pelo padre responsável pela escola, algumas índias do Pará recusavam-se a
substituir sua língua materna por outra, e “se deixavam dar até lhes inchar as mãos e
arrebentar o sangue” (DANIEL, 1976, apud FREIRE, 2004, p. 18). Devido à crueldade e
ao sofrimento infligido pelas práticas estabelecidas na escola, havia um alto índice de
evasão escolar, conforme registrou Luiz da Grã, um missionário do século XVI, segundo o
qual, “só o ver dar uma palmatoada a um dos mamelucos basta para fugirem” (GRÃ, 1931,
apud FREIRE, 2004, p. 18). A tais fugas, correspondiam mais atos de violência contra os
indígenas resistentes, que eram aprisionados e forçados a voltar à escola, conforme
relatado por Pero Correia em carta de 1554, segundo o qual “quando alguno es perezoso y
no quiere venir a la escuela, el Hermano lo manda buscar por los otros, los quales lo traen
preso” (LEITE, 1957, apud FREIRE, 2004, p. 18).
O etnocentrismo presente na concepção de educação do colonizador europeu fez
com que os missionários jesuítas interpretassem a ausência de castigos físicos na relação
de pais e filhos indígenas, tão comum na educação escolar europeia da época, como vício,
atraso e omissão que concorreriam para não corrigir o erro, o que obstruiria
consequentemente o processo de aprendizagem das crianças. Aos olhos dos missionários,
seria inconcebível socializar as crianças sem repressão, e a ausência desta nas sociedades
indígenas seria um indicativo de “negligência e falta de princípios pedagógicos, e não do
resultado de uma reflexão coletiva sobre a natureza do processo de aprendizagem, com a
93
construção até mesmo de um metadiscurso, capaz de pensar e justificar uma determinada
prática educativa” (FREIRE, 2004, p. 16).
Conforme Ferreira e Silva (2007), a educação praticada nas primeiras escolas
jesuítas estava alinhada com a política eurocentrista de assimilação do índio à civilização
cristã através da evangelização, o que contribuiu consequentemente para a redução da
diversidade sociocultural e para a negação das identidades culturais dos povos indígenas no
país ao longo dos séculos. Esse tipo de educação serviu então tanto ao Estado, a Coroa
Portuguesa, quanto à Igreja. Por um lado, a catequização exigia obediência e disciplina
impostas como princípios fundamentais por Inácio de Loyola, o fundador da Companhia
de Jesus. Por outro lado, em documento de 1548, Dom João III estabeleceu que o papel da
Companhia de Jesus deveria ser o de catequisar, proteger a “liberdade” dos índios e
realizar o aldeamento dos “nativos”, ao passo que as prioridades do primeiro Governador
Geral, Tomé de Souza, enviado no mesmo ano ao Brasil, deveria ser servir a Deus e à fé
católica, promover o lucro do Império e enobrecer a terra e sua gente, com intuito de gerar
riquezas à Coroa (VIEIRA, 2006). Assim, no processo de educação pela catequese para a
incorporação ocidental e cristã, negaram-se completamente as formas próprias de
organização social dos povos, extrapolando-se o espaço estritamente escolar, pois
incluíram-se aldeamentos compulsórios (missões), onde as casas eram organizadas
conforme os ideais católicos, efetivava-se a destruição de instituições próprias como o
xamanismo e os sistemas de parentesco, a substituição das cosmologias indígenas pela fé e
moral cristãs, e alteravam-se os modos e as finalidades dos sistemas de produção
(FERREIRA, 2001).
Durante todo o período colonial, a educação escolar para índios ficou sob a
responsabilidade de missionários católicos de diversas ordens, mesmo após a expulsão dos
jesuítas ocorrida em 1759, permanecendo inalterados os objetivos de assimilação dos
povos indígenas à civilização ocidental. Com o advento do período imperial, a prática da
catequese como meio educativo teve continuidade, sendo oficializada como política de
Estado por meio da Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, que estabeleceu em seu Artigo 11
que competiria às Assembleias Legislativas Provinciais “promover, cumulativamente com
a Assembleia e o Governo Geral, a organização da estatística da Província, a catequese, a
civilização dos indígenas e o estabelecimento de colônias” (BRASIL, 1834). Foi com esse
respaldo estatal e com a intencionalidade de reforçar a catequese como forma de “civilizar”
os povos indígenas que chegaram ao Brasil, em 1883, os missionários salesianos,
instalando missões em Mato Grosso a partir de 1884 (TACCA, 2001).
94
Na passagem do Império para a República, o cenário da educação escolar para
indígenas não se altera no Brasil, a não ser pela inclusão de novas ordens religiosas no
processo, passando a se contar também com a presença de protestantes.
3.2 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no início do século XX: a face
positivista e civilizatória da escola na aldeia
Uma nova fase na política educacional para os povos indígenas teve início com a
criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais
(SPILTN), no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), por
meio do Decreto nº 8072, de 20 de junho de 1910. Conforme Oliveira e Nascimento
(2012), o surgimento do SPILTN marcou a institucionalização do indigenismo brasileiro
em substituição às políticas descentralizadas nas ações de agentes missionários e coloniais
que caracterizaram os regimes colonial e imperial. Oriundo das divergências ideológicas
entre as teses da catequese e do extermínio, o SPILTN propôs uma política indigenista
mais humanista, alegando uma preocupação com a diversidade linguística e cultural dos
povos indígenas (FERREIRA, 2001).
Assim, esse primeiro órgão indigenista do país assumiu a responsabilidade de
prestar assistência aos povos indígenas, colocando-os na condição de tutelados pelo
Estado, com dois principais objetivos: afastar a Igreja Católica da catequese indígena e
fazer os índios adotarem gradualmente hábitos “civilizados” para se integrarem como mão-
de-obra ao sistema de produção nacional (PALADINO; ALMEIDA, 2012). Nesse sentido,
elegeu-se como objetivo a promoção de uma integração laica dos povos indígenas à
sociedade brasileira, tendo em vista também a proteção física das populações indígenas nos
conflitos interétnicos e nas ações violentas ocasionadas pelo contato forçado promovido a
partir da expansão das fronteiras agrícolas e comercias. Em princípio, ocorre então uma
mudança do paradigma da assimilação, promovido nos períodos anteriores, para o
paradigma da integração.
Não obstante o aparente avanço promovido pela mudança paradigmática da
assimilação para a integração promovida pelo SPILTN, que a partir de 1918 passou a se
chamar apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a nova política educacional para
índios estava orientada pelo ideário positivista de progresso, que considerava os povos
indígenas como sociedades atrasadas, cuja transitoriedade rumo à modernização deveria se
dar a partir de sua incorporação à sociedade nacional. O índio então era visto como um
95
obstáculo ao projeto modernizador do país no início da República. Nessa perspectiva, era
objetivo do SPI, por meio da “proteção fraternal”, promover um encontro pacífico dos
povos indígenas com a civilização, tornando-os aptos e integrando-os ao trabalho e ao
sistema de produção nacional, com vistas ao progresso e à modernização da nação
(OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012).
Na busca de integrar populações e territórios indígenas, a organização
administrativa do SPI incluiu a instalação estratégica de postos indígenas em diferentes
pontos do território nacional, de acordo com o grau de aculturação dos povos, incluindo-se
os postos de atração, de criação e de nacionalização, a partir dos quais implantou-se uma
rede de escolas para levar a cabo o Plano Educacional Indígena do órgão. Segundo Cunha
(1990), o Relatório das Atividades do Serviço de Proteção aos Índios do ano de 1953
apontou a existência de 66 escolas em seus postos, nas quais o currículo era semelhante ao
das escolas rurais do país, isto é, usavam-se “os mesmos métodos e até o mesmo material
didático” e ensinavam-se “certas técnicas, como a confecção de roupas e trabalho de
agulhas para as meninas” e “habilidades artesanais aos meninos, como carpintaria,
funilaria, olaria, trabalho em couros” (CUNHA, 1990, p. 88).
Verifica-se assim que a política educacional implementada inicialmente pelo SPI
não levou em consideração as especificidades linguísticas, sociais e culturais dos povos
indígenas, revelando com isso uma contradição que Oliveira e Freire (2006) denominaram
de “paradoxo da tutela”, visto que o objetivo original do órgão de proteger os territórios e
as culturas indígenas foi subvertido pela educação escolar implantada nas escolas dos
postos, nas quais se impunha a Língua Portuguesa e um conjunto de práticas de um sistema
produtivo externo e diferente do tradicionalmente praticado pelos povos.
Desse modo, a educação escolar para os índios implantada pelo SPI se caracterizou
pela imposição de um modelo educacional alheio aos aspectos socioculturais específicos
dos povos indígenas. Quando muito, reduziu as especificidades sociais e culturais
indígenas à ideia genérica de sociedades rurais atrasadas, pouco se diferenciando, portanto,
a não ser pelo caráter laico, das políticas educacionais dos períodos colonial e imperial,
visto que se manteve a intenção de trazer o índio à civilização e nacionalizá-lo,
pressupondo-se, de uma perspectiva positivista, sua inferioridade em uma escala linear de
evolução cultural da humanidade.
A ideia de que os modos próprios de existência dos povos indígenas estavam
fadados à extinção, dada a inescapável escala linear de desenvolvimento pela qual a
humanidade passaria, acelerada no caso particular das sociedades indígenas pelo contato
96
com a civilização europeia, fez-se refletir nos textos constitucionais ao longo do século
XX. Assim, a perspectiva de integrar os índios à modernidade por meio de sua adaptação à
sociedade nacional, praticada desde o século XVI, ainda se fez presente na Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, que estabelecia em seu Artigo 5º, Inciso
XIX, que competia privativamente à União legislar sobre a “incorporação dos silvícolas à
communhão nacional” (BRASIL, 1934). Essa perspectiva foi reafirmada pela Constituição
dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, em seu Artigo 5º, Inciso XV
(BRASIL, 1946), e pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro
de 1967, em seu Artigo 8º, Inciso XVII (BRASIL, 1967).
Não obstante o marco jurídico constitucional existente e o objetivo de integrar as
sociedades indígenas à sociedade nacional por meio da educação escolar voltada à
alfabetização e à capacitação para o mundo do trabalho, o SPI foi capaz de estabelecer uma
crítica sobre a prática pedagógica de suas próprias escolas, esboçando uma proposta de
formato diferenciado de currículo e de instituição, conforme relata Cunha (1990).
Nesse sentido, em documentos oficiais do órgão referentes à década de 1950,
consta uma avaliação negativa do tipo de educação escolar praticada nos postos até então,
propondo-se inclusive a substituição da designação “escola” por “casa do índio”, a fim de
“fugir das conotações negativas que esta designação tem para os índios, como de um lugar
onde se confina as crianças durante longas horas de cada dia, submetendo-os a uma
disciplina forçada e em prejuízo de outras atividades que lhes parecem mais úteis” (SPI,
1953 apud CUNHA, 1990, p. 89).
Quanto ao currículo, esboçando uma preocupação com a necessidade de se levar
em conta no processo educativo as realidades locais das comunidades de cada posto, o SPI
propôs, em seu Programa Educacional Indígena do final da década de 1950, transformar
as escolas, que até então funcionavam meramente como unidades alfabetizadoras, em
“unidades educacionais mais amplas, oferecendo aos alunos a possibilidade de adquirir
conhecimentos mais condizentes com o meio em que habitam” (SPI, 1960, apud CUNHA,
1990, p. 93).
A nova proposta educacional ensaiada pelo SPI a partir dessa autocrítica não
chegou a ser implantada, dadas as limitações de recursos humanos e econômicos do órgão,
que não possibilitou sequer a criação de escolas em todos os seus postos. A própria
existência do SPI começou a ser questionada no início da década de 1960, a partir de
denúncias de irregularidades administrativas, corrupção e gestão fraudulenta do patrimônio
indígena, o que levou à extinção do órgão indigenista pela Ditadura Militar no ano de 1967
97
(PALADINO; ALMEIDA, 2012). Com a extinção do SPI, encerrou-se o período
correspondente à segunda fase da educação escolar para povos indígenas no Brasil, que se
diferenciou da fase anterior basicamente pelo seu caráter laico, e não pelo objetivo
principal, que continuou sendo o de impor aos índios os costumes e crenças da sociedade
nacional.
3.3 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil na Ditadura Militar: a face
bilíngue e protestante da escola na aldeia
Em substituição ao SPI, o Governo Militar criou a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), através da Lei nº 5371, de 5 de dezembro de 1967, que deu continuidade todavia
ao objetivo de integração na política indigenista, com a diferença de que, em sua proposta
educacional, elaborou um programa de educação bilíngue, orientando-se pela experiência
do Instituto Indigenista da América Latina e em resoluções técnicas oriundas dos
Congressos Indigenistas realizados no México (PALADINO; ALMEIDA, 2012). Todavia,
dada a falta de infraestrutura e de recursos humanos, bem como o desconhecimento sobre
as línguas indígenas, a FUNAI se viu incapacitada de levar a cabo sua proposta
educacional bilíngue autonomamente, recorrendo novamente a instituições religiosas para
esse fim.
Assim, em 1969, a FUNAI firmou convênio com o Summer Institute of Linguistics
(SIL), uma organização religiosa norte-americana com experiência em ensino escolar
bilíngue para povos indígenas na América-Latina, delegando a esta instituição o monopólio
da educação escolar para indígenas no país. Nos anos seguintes, o novo órgão indigenista
celebrou outros convênios com missões religiosas, delegando a instituições estrangeiras o
dever da tutela dos povos indígenas no campo educacional, da saúde e da assistência
comunitária (FERREIRA, 2001).
No Brasil, o SIL também ficou conhecido como Instituto Linguístico de Verão. Em
1954, essa organização já havia tentado estabelecer um convênio com o SPI para a atuação
no campo educativo junto a povos indígenas, mas não havia obtido êxito dada a posição
contrária do SPI a respeito da atuação de missões religiosas entre os povos indígenas
brasileiros. Então, sob o pretexto de desenvolver pesquisas sobre línguas indígenas, a
organização religiosa conseguiu firmar um convênio com o Museu Nacional em 1957.
Com o passar do tempo, o SIL passou a receber muitas críticas, incluindo-se a acusação de
que, sob o pretexto de realizar estudos linguísticos ou de promover o ensino escolar
98
bilíngue como forma de valorização das línguas indígenas, a instituição promovia a
alfabetização na língua materna como um método eficaz para a introdução do cristianismo
entre os povos indígenas (PALADINO; ALMEIDA, 2012).
O tipo de ensino praticado pelo SIL caracterizou-se como um bilinguismo de
transição, que servia para que as crianças indígenas saíssem do monolinguismo da sua
língua de origem para o monolinguismo em Português. Nesse sentido, a alfabetização na
língua materna era usada como uma ponte para a aprendizagem na escola, mas com o
objetivo último de conversão religiosa dos índios na condição de leitores do Evangelho
traduzido (FERREIRA; SILVA, 2007).
3.4 Educação Escolar para Povos Indígenas no Brasil no período 1970-1988:
mobilização indígena e a reivindicação de uma nova face para a escola na aldeia
A partir da década de 1970, o movimento indígena brasileiro começou a ganhar
força com a articulação dos diferentes povos frente aos problemas comuns enfrentados,
referentes principalmente à defesa dos territórios tradicionais e à criação de alternativas
econômicas que proporcionassem maior autonomia para as comunidades indígenas. Entre
as organizações indígenas criadas nesse período se destaca a União das Nações Indígenas
(UNI).
A partir desse período, surgiram também entidades da sociedade civil que passaram
a assessorar e dar apoio às causas indígenas, tais como Comissão Pró-Índio de São Paulo
(CPI/SP), Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), Associação
Nacional de Apoio ao Índio (ANAI), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Operação
Anchieta (OPAN) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI), sendo estas duas últimas
vinculadas à Igreja Católica, como tentativa de alterar sua postura em relação aos
indígenas, por meio da oferta de um serviço de educação escolar. Passam a reforçar
também o apoio ao movimento indígena várias universidades, cujas assessorias
contribuíram para a realização de experiências alternativas de educação em áreas
indígenas, paralelas à política do órgão indigenista oficial (FERREIRA, 2001).
A partir de meados da década de 1970, as mobilizações indígenas apoiadas pelas
entidades não-governamentais dão início a uma contestação da ação educativa da FUNAI e
instituições religiosas, propondo novos modelos diferenciados de escola, com vistas à
superação da tutela do Estado e às políticas educacionais de cunho integracionista. A
articulação das organizações representativas dos povos indígenas se fortifica no país, na
99
busca de soluções a problemas comuns relativos à proteção dos territórios e da diversidade
cultural, e relativos ao acesso a serviços públicos de saúde e educação. Assim, por meio de
suas organizações representativas, os povos indígenas passaram a reivindicar mudanças na
legislação e na política indigenista do país, em um grau crescente de articulação nacional4.
Toda essa mobilização culminou com as garantias constitucionais inscritas na nova
Constituição Federal de 1988.
A nova Constituição superou os princípios integracionistas presentes na legislação
brasileira até então, rompendo com uma perspectiva que visava incorporar ou assimilar os
povos indígenas à sociedade nacional e pressupunha que os povos indígenas estavam
fadados à extinção. Em substituição a essa concepção tradicional, a nova legislação
incorporou o princípio de que todos os povos tem o direito às suas diferenças culturais, o
direito de continuarem a ser indígenas, bem como o direito a uma educação escolar que
respeite seus conhecimentos e formas próprias de ensino e aprendizagem.
3.5 Educação Escolar Indígena no Brasil Pós-Constituição de 1988: sai a FUNAI,
entra o MEC e propõe-se uma face diferenciada, bilíngue, específica e intercultural
para a escola na aldeia
Em cumprimento ao previsto na nova Constituição, e em decorrência das massivas
críticas direcionadas à política educacional dirigida pelo órgão indigenista oficial e
praticadas por organizações religiosas nas aldeias, o Decreto 26, de 4 de fevereiro de 1991,
transferiu da FUNAI para o Ministério da Educação (MEC) as responsabilidades principais
pelo planejamento e coordenação de uma nova política nacional de educação escolar
indígena, ficando sua execução sob responsabilidade dos estados e municípios
(GRUPIONI, 2004, p. 47). Todavia, conforme relatam Paladino e Almeida (2012), os
funcionários e professores dos projetos de educação da FUNAI continuaram atuando nas
aldeias, o que acarretaria nos anos seguintes uma disputa, entre FUNAI e MEC, pela
prerrogativa de conduzir a educação escolar em diferentes contextos indígenas, disputa esta
que persiste em maior ou menor grau ainda hoje.
A nova legislação e a transferência de responsabilidade pelo setor ao MEC
marcaram uma nova fase na educação escolar indígena no Brasil, não mais orientada pelos
princípios civilizatórios que caracterizaram as fases anteriores, mas embasada em novos
4
A esse respeito, Albert (2001) apresenta dados segundo os quais, entre os anos de 1980 e 2000, aproximadamente 183 organizações indígenas foram criadas somente na região amazônica.
100
princípios que pressupunham o direito à diferença cultural e à afirmação identitária. Do
modelo real experimentado durante os séculos de catequização, civilização e integração
forçadas à sociedade nacional, os povos indígenas passaram a vislumbrar um novo modelo
de educação escolar orientado para a promoção da interculturalidade. Nesse novo modelo
almejado, a escola na aldeia deve deixar de ser um lugar de negação das culturas dos povos
indígenas para se transformar em espaço de revitalização de saberes e fazeres, tornando-se
um “instrumento que pode lhes trazer de volta o sentimento de pertencimento étnico,
resgatando valores, práticas e histórias esmaecidas pelo tempo e pela imposição de outros
padrões socioculturais (GRUPIONI, 2006, p. 43).
Em 1991, no âmbito do MEC, foi criada a instância responsável pelo
acompanhamento e coordenação da educação escolar indígena no país, atualmente
denominada de Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena. Visando garantir uma
assessoria nos assuntos relacionados ao planejamento de uma educação diferenciada aos
povos indígenas, o MEC criou em julho de 1992 o Comitê de Educação Escolar Indígena,
composto por representantes indígenas, membros de ONGs, representantes de
universidades e um representante da FUNAI.
Em 2001, esse Comitê foi transformado na Comissão Nacional de Professores
Indígenas, composta apenas por professores indígenas, medida que recebeu críticas por
restringir as discussões e decisões do setor apenas a professores, sem incluir a participação
de lideranças políticas e de representantes de organizações indígenas e de ONGs. Em
atendimento a essas críticas, a instância assessora foi novamente recomposta em 2004,
passando a se chamar Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI),
formada por professores, lideranças e outros representantes indígenas (PALADINO;
ALMEIDA, 2012).
Até 2004, a educação escolar indígena era responsabilidade da Secretaria de
Educação Infantil e Fundamental (SEIF) do MEC, passando então nesse ano para a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), que, a partir
de 2011, passou a se chamar Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (SECADI). Verifica-se que essa variação na nomenclatura da
instância do MEC responsável pelas políticas educacionais dos Governos para os povos
indígenas foi mudando à medida que a oferta de educação escolar indígena foi
gradativamente se expandindo no país, passando do Ensino Fundamental para o Ensino
Médio, chegando mais recentemente à oferta de Ensino Superior, principalmente para
formação de professores indígenas.
101
Nos planos jurídico e administrativo, após a Constituição de 1988, seguiram-se
vários marcos importantes para a regulamentação e garantia de direitos relativos à
educação escolar indígena no país, entre os quais se destacam as Diretrizes para a Política
Nacional de Educação Escolar Indígena, publicadas em 1993 para servir de referência aos
estados e municípios na elaboração e execução de seus planos educacionais com vistas a
garantir o direito às especificidades das populações indígenas; a Lei nº 9394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabeleceu novas Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
incluindo características específicas da educação escolar indígena, tais como o
bilinguismo, a interculturalidade e a reafirmação identitária; o Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), publicado em 1998, composto de um
conjunto de orientações e parâmetros para a atuação de professores em escolas indígenas; o
Parecer CNE/CEB nº 14/1999, referente às Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Escolar Indígena, regulamentadas pela Resolução nº 03/CNE, de 10 de novembro de 1999,
que fixou a formulação de diretrizes da política nacional de educação escolar indígena
como competência da União, e a execução e oferta como competência dos estados; a Lei nº
10172, de 9 de janeiro de 2001, que instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE) para o
período de 2001 a 2010, estabelecendo objetivos e metas da educação escolar indígena, a
curto e longo prazos, incluindo-se a universalização da oferta de Ensino Fundamental e a
autonomia dos povos indígenas na formulação dos projetos pedagógicos e na gestão dos
recursos financeiros destinados às escolas, além de criar a categoria de “professor
indígena” como carreira específica do magistério; o Decreto Presidencial, de 15 de março
de 2002, que criou uma vaga no Conselho Nacional de Educação (CNE) a ser preenchida
por um representante indígena; os Referenciais Curriculares para a Formação de
Professores Indígenas, publicados em 2002; o Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho
de 2002, que aprovou a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, formulada na Conferência de Genebra, de 1989; e a
Lei nº 11645/2008, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígenas
nos sistemas público e privado de ensino do país.
Com esse novo arcabouço jurídico, associado ao fortalecimento político das
organizações indígenas, com o apoio de instituições e organizações não-indígenas ligadas
às questões indígenas, originou-se uma nova perspectiva quanto ao direito dos povos
indígenas a uma educação escolar diferenciada, bilíngue, específica e intercultural,
considerada como direito social essencial, com vistas à garantia do acesso à informação e
aos conhecimentos que garantam uma participação plena dos índios na sociedade nacional,
102
bem como com vistas à valorização e reprodução dos conhecimentos indígenas pertinentes
às formas próprias de existência dos povos. Ocorre então, no período atual, uma nova fase
na história da educação escolar indígena, que visa superar o paradigma da integração dos
povos à sociedade nacional, propondo em substituição o paradigma da interculturalidade,
que pressupõe a coexistência simultânea de diferentes culturas na composição de um Brasil
multicultural e pluriétnico.
Orientada por esse novo paradigma, compete à escola na aldeia um novo papel que,
se está claro e definido no plano jurídico, ainda esboça os primeiros passos no plano
pedagógico das escolas concretas já instaladas nas aldeias desde as fases anteriores. A
concretização desse novo tipo de educação escolar indígena passa pela construção de
espaços de diálogo entre povos indígenas e governos, com a necessária autonomia a ser
conquistada pelos primeiros frente à formulação de políticas públicas executadas pelos
segundos. Em outra frente de trabalho, relacionada à primeira, encontra-se a necessária
produção de conhecimentos sobre esse novo projeto de escola, a partir do estudo de
situações reais e de experiências vivenciadas pelos atores envolvidos com o novo
paradigma, aí incluídos professores e estudantes indígenas, lideranças, comunidades,
universidades, organizações não-governamentais e governos.
3.6 Escola na aldeia como espaço de hibridação cultural
Como se observa pelo histórico da educação escolar entre povos indígenas no
Brasil, a escola na aldeia, como instituição inexistente em sociedades indígenas nos
períodos anteriores ao contato com os colonizadores europeus, sempre proporcionou, em
todo o percurso de desenvolvimento da educação escolar indígena, um espaço de alteração
de culturas. Quer se orientasse pelo paradigma da assimilação ou da integração, quer se
oriente pelo da interculturalidade, introduzem-se pela instituição escolar práticas,
comportamentos e saberes novos na aldeia, e por essa via, ocasiona-se a fusão de
elementos culturais inicialmente distintos, e por vezes antagônicos, em novas
manifestações culturais, nem sempre facilmente resolvidas.
No espaço da interculturalidade, há que se considerar sempre as tensões, os
conflitos, a instabilidade e a provisoriedade das soluções. Nesse sentido, a escola na aldeia,
projetada a partir do paradigma da interculturalidade, passa a ser um espaço de hibridação
cultural, onde processos e práticas inicialmente discretas, próprias da sociedade local ou
103
oriundas de fora, unem-se, negam-se ou se complementam, dando origens a novos
processos e práticas.
Nesse sentido, ao se pensar o paradigma da interculturalidade para a educação
escolar indígena, busca-se caracterizar a escola na aldeia não como espaço de integração e
assimilação de culturas indígenas a uma “cultura nacional”, ou um ajuste das primeiras à
segunda, mas como espaço de fortalecimento identitário para a luta contra estruturas
opressivas e de dominação política e cultural. Assim, a escola na aldeia passa a ser um
espaço onde
[...] as diferenças culturais não se diluem imediatamente num caldo comum, nem são hierarquizadas, tratadas como superiores ou inferiores, melhores ou piores, mas permanecem em tensão, em ebulição, fazendo com que as mesmas palavras, as mesmas imagens, os mesmos símbolos não apenas produzam diversas interpretações, mas se mantenham ambivalentes e, assim, flexíveis, podendo continuar a interagir e mudar (AZIBEIRO, 2003, p. 85).
A escola na aldeia, nessa perspectiva, torna-se um espaço de ressignificação das
relações sociais, políticas, econômicas e culturais, de questionamentos, de constante
problematização dos mais diversos setores da vida cotidiana. Ela pode proporcionar novos
elementos para análise e reflexão da sociedade local e de sua posição em um plano global,
no percurso histórico que conecta passado, presente e futuro. Conforme Azibeiro (2003, p.
85), trata-se de um “espaço da ressignificação, da possibilidade de dissolução de
estereótipos e preconceitos e de empowerment, ou seja, de fortalecimento da autoconfiança
e da capacidade de ação das pessoas e dos grupos populares”.
A interculturalidade na educação escolar indígena pressupõe uma reflexão crítica da
comunidade local sobre a própria instituição escolar, suas potencialidades, ambiguidades,
perigos e benefícios. Não sem razão, é relativamente comum que a escola na aldeia seja
compreendida por povos indígenas como devoradora de diferenças culturais (NEVES,
2009). Historicamente, desde a chegada dos missionários com seu projeto civilizatório
etnocêntrico, a intenção predominante foi mesmo a de aniquilar comportamentos, ideias,
cosmologias, rituais, formas de produção e sobrevivência dos povos indígenas submetidos
à escolarização, impondo-se no lugar a cultura “ocidental”, letrada, cristã e capitalista.
Como espaço novo no interior da aldeia, a escola passa a exercer uma função
institucional que equivale ou mesmo substitui outras instituições tradicionais de
104
reprodução da cultura através da educação. Ao se estabelecer uma rotina escolar com o
objetivo de educar, com currículo, horário e local determinados, reduzem-se no transcorrer
cotidiano da vida comunitária os momentos e espaços de natureza educativa. Nesse
sentido, é ilustrativo do contraste entre formas educativas paiter anteriores ao contato e a
introduzida pela escola os registros realizados por Mindlin (1985) acerca de um momento
na roça paiter, no ano de 1979, portanto apenas 10 anos após o contato oficial do povo com
os sertanistas da frente de atração. A pesquisadora, em uma seção intitulada “Sala de aula”,
registrou:
A roça tem muito o papel de escola. Em maio, no tempo de colher cará, numa colheita possivelmente ritual, a que se juntaram homens de outras casas, um sábio e pajé interrompe a atividade para contar o passado da tribo, as lutas com os brancos, o sentido das festas. Todos ouvem extasiados. As crianças, com pequenas tarefas, imitam os adultos e participam de seu universo. As conversas podem prolongar-se, ninguém se preocupando de estar ou não parado. Sentam na maloca-paiol, nas redes ou no chão, em comentários, comendo mamões ou amendoins, até voltar ao sol (MINDLIN, 1985, p. 40).
Nesses espaços tradicionais como a roça, os saberes, os costumes, a cosmologia e a
própria história do povo eram reproduzidos com a participação fundamental de um sábio, e
na presença de homens, mulheres e crianças, indistintamente. Tratava-se de uma forma
endógena de reprodução cultural, livre da preocupação de se dominar um saber do outro, o
saber do branco. No entanto, à medida que o advento do contato foi se distanciando no
tempo, o novo contexto social, econômico e político no qual se viram inseridos os Paiter
passou a demandar novos saberes que não se faziam presentes nas formas tradicionais de
educação, principalmente a escrita e a leitura em língua portuguesa e a aritmética
envolvida nas relações comerciais. Surge assim a escola como o novo espaço na sociedade
paiter que teria a função de ser a porta de entrada dos conhecimentos do branco na aldeia,
ao mesmo tempo em que serviria de janela de observação dos paiter para o mundo do
branco.
Sem ter, inicialmente, uma completa compreensão ou mesmo uma preocupação
com todas as potenciais consequências culturais da introdução da educação escolar na
aldeia, mas com a esperança de obter na escola novas ferramentas que lhe dessem
melhores condições de se relacionar com a sociedade envolvente, os próprios Paiter
passaram a reivindicar a construção de escolas em seu território. A FUNAI deu início
105
então à construção de escolas nas aldeias e à contratação de professores não indígenas,
implantando todavia um programa educacional indiferente às particularidades culturais e
linguísticas do povo Paiter. Sem a participação de antropólogos e especialistas para o
planejamento da educação escolar nas aldeias, o órgão indigenista se apressou em elaborar
um plano de educação para os povos indígenas da região como condição para acessar os
recursos do Banco Mundial previstos no Polonoroeste.
A esse respeito, em 1987, registrou Betty Mindlin em seu relatório global do
componente indígena do Polonoreste em Rondônia:
Na área da educação, nada tem sido feito além da construção de escolas e nomeação de professores por salários baixos, sem nenhum conhecimento da vida tribal, ou qualquer orientação para elaborar um programa educacional adequado às comunidades indígenas. Os índios reivindicam com muita firmeza escolas de boa qualidade, e esta é uma de suas maiores frustrações. Esperando receber um financiamento do Banco Mundial na área de educação, a FUNAI elaborou um programa de educação, sem consultar sequer os antropólogos e especialistas que já conhecem os grupos indígenas do Polonoroeste, e apenas aventando a possibilidade de contato com instituições científicas. Não se trata propriamente de um programa ou de idéias concretas. É como se obter os recursos fosse mais importante que ter uma estratégia de ação (MINDLIN, 1987, p. 6).
O registro histórico realizado por Mindlin (1987) não só ilustra a forma como a
educação escolar foi introduzida entre os Paiter, sem se adequar às particularidades
culturais do povo, como também destaca a necessidade de um programa educacional
adequado à realidade das comunidades indígenas. O que se percebe é que, passadas quatro
décadas desde o contato, não houve por parte dos governos ações concretas no sentido de
superar o tipo de educação escolar colonizadora imposta aos Paiter. Todavia, verifica-se
agora um movimento iniciado pelos próprios Paiter no sentido de ressignificar a escola na
aldeia autonomamente, imprimindo-lhe características diferenciadas quanto ao currículo e
às práticas pedagógicas, sendo esse movimento, em grande medida, estimulado pelas
experiências de formação política e acadêmica que os professores paiter estão construindo
com o apoio de parcerias institucionais, incluindo-se a universidade.
Nesse movimento iniciado em direção a uma ressignificação da escola na aldeia
pelos próprios professores paiter, a projeção de uma nova forma de educação escolar, que
seja de fato indígena, se dá de forma tensionada, porque envolve questões de identidade
cultural uma vez que a escola passa a ser pensada como um espaço de hibridação cultural,
106
permeado de elementos culturais provenientes da tradição do povo, mas também de
elementos externos, provenientes da sociedade colonizadora.
Nesse sentido, cultura e identidade cultural passam a ser conceitos que permeiam
uma tentativa de compreensão desse fenômeno, o que nos levou a buscar por referências
teóricas que também tratassem desse tema. Assim, na próxima seção da tese, buscamos
abordar os conceitos de cultura e de identidade cultural, com ênfase na perspectiva dos
estudos culturais.
107
4 CULTURA E IDENTIDADE CULTURAL: A PERSPECTIVA DOS ESTUDOS
CULTURAIS
Nesta seção, são abordados os conceitos de cultura e identidade cultural,
entendidos não em uma perspectiva exótica ou folclórica, mas imbuídos da
intencionalidade de reforçar diferenças culturais para se contrapor a preconceitos e
estereótipos gerados em relações assimétricas de poder entre sociedades distintas. Como
subsídio teórico à compreensão desse fenômeno, busca-se um apoio no subconceito de
hibridismo cultural discutido por autores filiados aos Estudos Culturais.
Assim, com base no arcabouço teórico constituído por trabalhos multidisciplinares
dos Estudos Culturais, evitam-se noções essencialistas de cultura e identidade,
considerando-se que no espaço da interculturalidade há sempre um processo de
continuidade e ruptura, união e fragmentação, isto é, conforme Mansilha, observa-se
sempre uma
[…] tensión existente entre la defesa del propio legado cultural, la apologia de las costumbres prevalecientes en la vida cotidiana e íntima y el apego por las peculiaridades del suelo natal, por una parte, y la necesidad imperiosa de se adoptar lo extranjero y foráneo en los más variados campos (MANSILLA, 2000, p. 25).
No caso particular das interações entre conjuntos de saberes e fazeres de contextos
culturais específicos, estabelecem-se quase sempre tentativas de hierarquização, com
consequentes tensionamentos e atitudes conflitivas. Resultam destes tensionamentos, em
maior ou menor grau, transformações culturais com consequências para a forma como os
integrantes de tais contextos culturais se identificam com eles. Esse fenômeno é observado
particularmente nas interações historicamente estabelecidas entre a sociedade nacional e os
povos indígenas brasileiros, marcada inicialmente pela violência física do contato e pela
posterior extinção de formas próprias de existência dos povos submetidos à colonização.
Não obstante o desequilíbrio de poder nas relações interculturais estabelecidas entre
sociedade nacional e povos indígenas no Brasil, observam-se diferentes formas de
resistência às mudanças decorrentes do contato, que se manifestam desde a tentativa de
108
isolamento ou contato mínimo, até a busca pelo domínio dos saberes e fazeres da
modernidade por meio de instituições como escolas e universidades para fazer frente às
demandas e desafios originados nas relações com a sociedade envolvente.
A teorização como tentativa de compreensão deste fenômeno, qual seja o das
transformações estabelecidas pelo contato entre sociedade nacional colonizadora e povos
indígenas brasileiros, bem como das consequentes dinâmicas praticadas pelos diferentes
povos nas relações com a sociedade envolvente, passa pelo desenvolvimento de dois
conceitos chaves, sendo eles cultura e identidade cultural.
4.1 Cultura: do sentido antropológico aos Estudos Culturais
O termo cultura por si só encerra um conceito complexo e polissêmico. De origem
latina, é comumente empregado tanto para significar o cultivo de espécies agrícolas,
quanto para a erudição e refinamento proporcionado pela educação. Conforme discorre o
antropólogo brasileiro José Luiz dos Santos a esse respeito,
[...] [cultura] vem do verbo latino colere, que quer dizer cultivar. Pensadores romanos antigos ampliaram esse significado e a usaram para se referir ao refinamento pessoal, e isso está presente na expressão cultura da alma. Como sinônimo de refinamento, sofisticação pessoal, educação elaborada de uma pessoa, cultura foi usada constantemente desde então e é até hoje (SANTOS, 2012, p. 28).
Em seu sentido antropológico, cultura é entendida como o conjunto de padrões de
comportamento, instituições, valores materiais e espirituais de um povo (JUNQUEIRA,
2008). Longe de ser um consenso entre as diferentes correntes teóricas da Antropologia,
esse sentido antropológico para o termo cultura originou-se, segundo o antropólogo
brasileiro Roque de Barros Laraia, da fusão dos termos germânico kultur e francês
civilization, promovido por Edward Tylor (1832-1917), dando origem ao termo inglês
culture. Segundo Laraia (1986), até o final do século XVIII, o termo germânico kultur era
utilizado em um sentido amplo para abranger todos os aspectos espirituais de um povo. Por
sua vez, o termo francês civilization era utilizado na mesma época para se referir às
realizações materiais de um povo. Ao fundir os dois termos com a palavra inglesa culture,
109
Tylor intentou abranger todas as realizações humanas, materiais e espirituais, em um só
termo, que
[...] tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (TYLOR apud LARAIA, 1986, p. 25).
Segundo Laraia (1986), uma tentativa de classificação das atuais teorias sobre
cultura foi apresentada pelo antropólogo Roger Keesing, em seu artigo Theories of Culture,
a partir de dois grupos: (i) teorias que consideram cultura como sistema adaptativo
(Marshal Sahlins), e (ii) teorias idealistas que consideram cultura como sistema cognitivo
(W. Goodenough) ou como sistema estrutural (Claude Lévi-Strauss) ou como sistema
simbólico (Clifford Geertz).
De acordo com as teorias que consideram cultura como sistema adaptativo, o
processo de adaptação inicia-se na dimensão em que se encontram a tecnologia, a
economia de subsistência e os elementos da organização social ligados à produção. A partir
desta dimensão, o processo de adaptação atingiria outras dimensões, tais como a espiritual
e a estética. Existem, todavia, entre as teorias deste grupo algumas divergências sobre
como opera o processo de adaptação, e portanto sobre como e por que a cultura se
transforma. Nesse sentido, para Laraia (1986, p. 60), “estas divergências podem ser
notadas nas posições do materialismo cultural, desenvolvido por Marvin Harris, na
dialética social dos marxistas, no evolucionismo cultural de Elman Service e entre os
ecologistas culturais, como Steward”.
Por sua vez, entre as teorias idealistas, há aquelas que consideram cultura como
sistema cognitivo. Estas adotam uma abordagem antropológica por meio do “estudo dos
sistemas de classificação de folk, isto é, a análise dos modelos construídos pelos membros
da comunidade a respeito de seu próprio universo” (LARAIA, 1986, p. 60). Nessa
perspectiva, cultura está epistemologicamente no mesmo domínio da linguagem e concebe-
se que a cultura de uma comunidade é aquilo que os membros dessa comunidade dizem a
respeito de si mesmos. Por exemplo, para W. Goodenough, “cultura é um sistema de
conhecimento: ‘consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para
operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade’” (GOODENOUGH apud LARAIA,
1986, p. 60).
110
Na perspectiva das teorias idealistas para as quais cultura é um sistema simbólico,
sustenta-se que “os símbolos e significados são partilhados pelos atores (os membros do
sistema cultural) entre eles, mas não dentro deles. São públicos e não privados. (...) Estudar
a cultura é portanto estudar um código de símbolos partilhados pelos membros dessa
cultura” (LARAIA, 1986, p. 62).
Independentemente da corrente teórica que se assuma, decorrem do sentido
antropológico atual dois desdobramentos para a compreensão do conceito de cultura. O
primeiro refere-se ao seu caráter histórico, isto é, cada povo ou sociedade humana, em sua
trajetória particular de existência, desenvolveu suas produções materiais e imateriais
particulares, dando origem assim às diversas culturas que compõem a humanidade. O
segundo desdobramento diz respeito ao caráter social da cultura, isto é, sendo produção
humana coletiva, ela não é biologicamente determinada, o que explica o fato de que,
embora exista uma certa homogeneidade genética na espécie humana, uma multiplicidade
de formas de existência caracteriza a humanidade, representada por diferentes
conhecimentos, crenças, valores, leis e costumes de distintos povos.
A necessidade de compreensão do conceito de cultura na contemporaneidade não
pode desconsiderar a existência de diferentes povos e sociedades humanas em processos de
intensa interação. Todavia, a maneira como se concebe cultura na perspectiva da interação
varia de acordo com os pressupostos assumidos para tal. Nesse sentido, um pressuposto
comumente aceito atualmente é o de que cultura não é algo estático, mas se desenvolve por
processos de transformação de origem interna ou de origem externa provenientes das
relações com outras culturas (CANCLINI, 2011; HALL, 2011; EAGLETON, 2005;
SANTOS, 2012; LARAIA, 1986, BARTH, 2011).
É certo que, ainda que se considere o caráter dinâmico da cultura, diferentes
abordagens têm surgido com o propósito de explicar as diferenças culturais
simultaneamente existentes entre povos em interação e as consequentes mudanças e
transformações culturais ocorridas a partir da interação. Por exemplo, conforme aponta
Santos (2012), durante o século XIX, estudos foram desenvolvidos com o objetivo de
hierarquizar todas as culturas humanas, partindo-se do pressuposto de que a humanidade
passaria por etapas sucessivas de evolução social, indo linearmente de um estágio
primitivo ou selvagem para um estágio de barbárie, até atingir o nível de civilização
existente na Europa à época. Desse ponto de vista, “sociedades indígenas da Amazônia
poderiam ser classificadas no estágio da selvageria; reinos africanos, no estágio da
barbárie... [e] ... a Europa ... no estágio da civilização” (SANTOS, 2012, p. 14).
111
Na mesma direção, quanto às diferentes formas de explicar o mundo e os
fenômenos da natureza, houve quem considerasse a possibilidade de existirem sistemas
culturais lógicos e sistemas culturais pré-lógicos, sendo que os diferentes povos do mundo
passariam linearmente do estágio da magia para o da religião, para só então atingir o
estágio da ciência, sendo este o mais complexo e elaborado dos estágios de
desenvolvimento cultural. Conforme Laraia (1986), Levy-Bruhl, com seu livro A
mentalidade primitiva, exemplifica esse ponto de vista, ao admitir que a humanidade
poderia ser dividida entre aqueles que possuíam um pensamento lógico e os que estavam
numa fase pré-lógica.
Não obstante as teorias evolucionistas de cultura não terem encontrado confirmação
empírica em pesquisas de campo, essa visão europeia da humanidade utilizada para
construir uma escala evolutiva linear da cultura serviu, certamente, por muito tempo para
legitimar a expansão do domínio e da exploração de muitos povos do mundo pelas nações
capitalistas modernas, justificando assim o fenômeno social, político, econômico e cultural
denominado colonização. Ao se estabelecer uma crítica a esta concepção etnocêntrica de
tratar das diferenças entre os povos, pode-se assumir que, “ao invés de um contínuo magia,
religião e ciência, temos de fato sistemas simultâneos e não sucessivos na história da
humanidade” (LARAIA, 1986, p. 88).
O movimento em direção à superação do pensamento colonial, no que diz respeito
particularmente à concepção de cultura, foi relativamente lento, complexo e oneroso aos
povos submetidos ao poder e domínio dos colonizadores. De um lado, porque à ideia de
inferioridade cultural dos povos colonizados associou-se a exploração econômica das
colônias pelas metrópoles capitalistas. De outro lado, porque para a Europa colonizadora
todas as culturas existentes no restante do mundo seriam inferiores à sua.
Essa tendência de um povo colocar sua própria cultura como centro do mundo, ou
como modelo a ser imposto e seguido pelos demais, deve-se em parte porque, embora seja
determinada social e historicamente, a própria cultura age sobre seu povo, orientando-o no
modo de conceber o mundo. Em O crisântemo e a espada, a antropóloga americana Ruth
Benedict, ao abordar o universo cultural japonês, escreveu que a cultura é uma lente entre
o homem e o mundo que ele vê. Dessa perspectiva, os modos de conceber o mundo, as leis,
os diferentes valores adotados em uma sociedade humana, são também o resultado da
operação da cultura dessa sociedade sobre seus membros, não fugindo a esta determinação
o fenômeno do etnocentrismo. Conforme discorre Laraia (1986, p. 73), “o etnocentrismo,
de fato, é um fenômeno universal. É comum a crença de que a própria sociedade é o centro
112
da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autodenominações de diferentes
grupos refletem este ponto de vista”. No caso específico das nações modernas, o
nacionalismo também concorreu para o fortalecimento de perspectivas etnocêntricas,
reforçando o pressuposto de que o modo de vida nacional seria o mais correto e o mais
natural.
Em diferentes escalas, sejam elas nas relações entre nações, ou internamente entre
grupos e sociedades locais, o etnocentrismo contribuiu ao longo da história para a origem
de severos conflitos sociais, geralmente com consequências drásticas para os povos
militarmente subjugados. São exemplos a evangelização de povos indígenas brasileiros por
missionários europeus, a ideologia nazista e a perseguição aos judeus, a imposição de
sistemas políticos e econômicos europeus às nações colonizadas na América, África, Ásia
e Oceania.
Particularmente quanto ao fenômeno da colonização promovido pelas nações
capitalistas modernas, não bastasse o domínio político e econômico sobre as sociedades
colonizadas, promoveu-se via de regra a imposição também dos padrões culturais,
incluindo-se sistemas éticos e estéticos, para o que concorreram instituições tais como
escolas e igrejas. De certa forma, isto pode ser explicado em razão de que, conforme Laraia
(1986, p. 74), “comportamentos etnocêntricos resultam também em apreciações negativas
dos padrões culturais de povos diferentes. Práticas de outros sistemas culturais são
catalogadas como absurdas, deprimentes e imorais”.
Para além do etnocentrismo, predominou nas ciências sociais até meados do século
XX uma noção de cultura vinculada à ideia de ordem, regularidade e padrão como formas
de organização das sociedades. Daí que cultura era conceituada como algo estático e
ordenado, e as organizações sócio-culturais seguiriam padrões mecânicos de
funcionamento. Essa noção estava vinculada ao paradigma positivista característico do
pensamento ocidental, no qual a racionalidade e a objetividade eram eleitos como
elementos centrais, influenciando a investigação científica teórica e de campo, tal a força
que representava nas ciências sociais (OLIVEIRA, 1997).
Na tentativa de fortalecer teoricamente o movimento de superação das perspectivas
etnocêntricas, positivistas ou modernas de se conceber cultura e as relações entre distintos
povos e nações, originaram-se a partir da segunda metade do século XX e encontram-se
atualmente em desenvolvimento, entre outros, diferentes trabalhos que se classificam
academicamente como Estudos Culturais. Incluem-se nessa corrente os atuais trabalhos de
Canclini (2011), Bhabha (2010) e Hall (2003; 2011), que partem de uma crítica à
113
Modernidade, caracterizada pela crença no desenvolvimentismo hegemônico e no
fatalismo de que sistemas culturais “atrasados” serão naturalmente substituídos por
sistemas culturais “avançados”. Estabelecem, todavia, uma crítica também aos movimentos
ideológicos e aos estudos antropológicos nos quais a preocupação com a descrição interna
da cultura de povos ou sociedades humanas é o principal ou único foco, deixando-se de
lado a análise das transformações que ocorrem nas relações entre culturas, sejam elas no
contexto do colonialismo, sejam elas nas relações entre povos que constituem uma mesma
nação moderna.
A novidade dos Estudos Culturais em relação a outras perspectivas teóricas na
abordagem da cultura está em que os processos de transformação em andamento nas
relações entre culturas tornam-se foco de análise, superando-se o determinismo de classe,
gênero, etnia, raça e nacionalidade, ou qualquer outra categoria que até então havia sido
utilizada como chave para explicação totalizante dos processos de transformação da
cultura.
Nesse sentido, em sua crítica à perspectiva tradicional da Antropologia, afirma
Canclini:
Essa delimitação do universo de estudo leva a concentrar a descrição etnográfica nos traços tradicionais de pequenas comunidades e a superestimar sua lógica interna. Ao enfocar tanto o que diferencia um grupo dos outros ou o que resiste à penetração ocidental, são deixados de lado os crescentes processos de interação com a sociedade nacional e mesmo com o mercado econômico e simbólico transnacional. Ou os reduzem ao asséptico “contato entre culturas”. Daí que a antropologia tenha elaborado poucos conceitos úteis para interpretar como os grupos indígenas reproduzem em seu interior o desenvolvimento capitalista ou constroem com ele formações mistas. Os conflitos, poucas vezes admitidos, são vistos como se só se produzissem entre dois blocos homogêneos: a sociedade “colonial” e o grupo étnico. No estudo da etnia, são registradas unicamente as relações sociais igualitárias ou de reciprocidade que permitem considerá-la “comunidade”, sem desigualdades internas, confrontadas compactamente com o poder “invasor” (CANCLINI, 2011, p. 248).
Na perspectiva dos Estudos Culturais, considera-se que cada cultura tem uma
história particular, mas é necessário, na análise atual desta história, incluir as relações com
outras culturas, com destaque para aquilo que muda e se transforma unilateralmente ou
mutuamente a partir destas relações, não só por imposição de fatores de transformação
modernizadores oriundos da dominação externa, mediante o exercício do poder por setores
114
hegemônicos, mas também como uma opção voluntária e criativa de automodelação
interna, ou de resistência, a partir da qual criam-se formas híbridas de sistemas de
produção, de manifestações religiosas, de organização política e de produção de arte.
Como exemplo de hibridação cultural, encontram-se os procedimentos pelos quais as
culturas tradicionais de povos indígenas e de trabalhadores camponeses unem-se
sincreticamente a diversas modalidades de cultura urbana e massiva, como forma de
integração às sociedades nacionais na América Latina.
4.2 O conceito de hibridismo cultural
Por hibridismo cultural entendem-se os “processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar
novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2011, p. XIX). Tais processos não
resultam simplesmente da submissão de setores populares a setores hegemônicos, tal como
outros modelos teóricos pressuporiam, considerando a dominação da burguesia sobre o
proletariado, da cultura urbana sobre a rural, do moderno sobre o tradicional. Do ponto de
vista dos Estudos Culturais, consideram-se os processos de hibridismo cultural como
resultado também de criatividade e resistência produzidos pela ação, pelo discurso e pela
representação de quem tem menos poder nas relações entre culturas. Nesse sentido,
transformações culturais não são experiências passivas. Isso pode ocorrer nas relações dos
setores populares frente à indústria cultural de massa, nas relações entre sociedades
indígenas e sociedades nacionais industriais que as circundam, entre nações colonizadas e
as metrópoles colonizadoras capitalistas.
Dessa perspectiva, retira-se o foco de análise das relações entre culturas do plano
do determinismo econômico, atribuindo-se à hibridação uma certa autonomia, não mais
como reflexo direto das relações econômicas. Resulta desse movimento de perspectiva que
o objeto principal de estudo não está na hibridez, mas sim no processo de hibridação.
Interessa ao pesquisador dos Estudos Culturais investigar como a hibridação funde
estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas sociais.
Conforme Canclini (2011), às vezes isso é resultado imprevisto de processos de
intercâmbio econômico ou comunicacional, mas frequentemente está associada à
criatividade individual e coletiva, tanto nas artes como na vida cotidiana e no
desenvolvimento tecnológico.
115
Assim, considerar transformações culturais do ponto de vista da hibridação implica
considerar cultura não mais como objeto epistemológico cuja descrição visa a totalidade,
mas como objeto enunciativo, portanto semiótico, fluido e dinâmico, onde o presente
performático está constantemente sendo ressignificado em articulação com um tempo
retroativo ou prefigurativo, e com espaços narrativos metafóricos, por aqueles que vivem e
estão submetidos às contradições dos processos hegemônicos e modernizadores,
estabelecendo-se com isto espaços híbridos de negociação cultural. Conforme Homi
Bhabha, ao se considerar o presente enunciativo na articulação da cultura, estabelece-se
“um processo pelo qual outros objetificados possam ser transformados em sujeitos de sua
história e de sua experiência” (BHABHA, 2010, p. 248).
4.3 Mudanças culturais na perspectiva do hibridismo
Transferir a tematização da cultura do campo epistemológico para o semiótico
implica abrir espaço para representações contingentes, através das quais hierarquias
culturais são constantemente relocadas, reinscritas, ressignificadas na constituição de
lugares híbridos. Isso porque, conforme Bhabha,
O epistemológico está preso dentro do círculo hermenêutico, na descrição de elementos culturais em sua tendência a uma totalidade. O enunciativo é um processo mais dialógico que tenta rastrear deslocamentos e realinhamentos que são resultado de antagonismos e articulações culturais – subvertendo a razão do momento hegemônico e recolocando lugares híbridos, alternativos, de negociação cultural (BHABHA, 2010, p. 248).
Verifica-se que abordar o conceito de cultura a partir da perspectiva semiótica da
enunciação possibilita uma inversão de categoria, migrando-se do campo da epistemologia
(descrição empírica totalizante), para o campo da representação discursiva (significação
contingente aberta). Nessa perspectiva, a identidade humana como imagem só faz sentido
como imagem discursivamente construída, de modo que a diferença cultural emerge como
resultado de tensionamentos políticos gerados por processos de identificação cultural, que
redirecionam os discursos para lugares múltiplos de significação. Daí que Homi Bhabha
estabelece uma crítica ao multiculturalismo, em razão de seus princípios liberais da
diversidade cultural, e propõe em substituição a perspectiva da interculturalidade, em
116
função de seu potencial político e de produção de campos de força. Nesse sentido, Bhabha
distingue “diversidade cultural” de “diferença cultural”, nos seguintes termos:
A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto do conhecimento empírico – enquanto diferença cultural é o processo da enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força (BHABHA, 2010, p. 63).
No processo de hibridação, a reconversão é uma das principais formas de
transformação adotadas para adaptar um patrimônio cultural, um conjunto de saberes e
técnicas, por exemplo, para novas condições de produção e existência. O significado
cultural de reconversão é ilustrado por Canclini (2011, p. XXII), como “as estratégias
mediante as quais um pintor se converte em designer, ou as burguesias nacionais adquirem
os idiomas e outras competências necessárias para reinvestir seus capitais econômicos e
simbólicos em circuitos transnacionais”. Nesse sentido, também são exemplos de
estratégias de reconversão de setores populares em processo de hibridação cultural a
adaptação pela qual passam os saberes de trabalhadores camponeses para trabalhar e
consumir na cidade, a vinculação dos artesanatos indígenas a usos modernos para
interessar compradores urbanos, ou mesmo “os movimentos indígenas que reinserem suas
demandas na política transnacional ou em um discurso ecológico e aprendem a comunicá-
las por rádio, televisão e internet” (CANCLINI, 2011, p. XXII).
Visto dessa perspectiva, verifica-se que os processos de hibridação cultural, gerados
a partir de estratégias de reconversão, em muitos casos intencionais e criativamente
originados na busca de se apropriar de benefícios da modernidade, podem interessar tanto a
setores populares, tais como sociedades indígenas, grupos de trabalhadores rurais, nações
colonizadas, como a setores hegemônicos que procuram impor aos demais padrões
culturais de produção e consumo. Em qualquer caso, no contexto das relações entre
culturas, o sentido das transformações culturais deve ser analisado a partir das realidades
sociais concretas nas quais se dá a hibridação, isto é, a partir do vivido e do experienciado
tanto pelos setores populares, quanto pelos setores hegemônicos, evitando-se com isso o
117
pressuposto do determinismo unilateral segundo o qual, nas relações assimétricas de poder,
o sentido das transformações culturais vai dos setores hegemônicos para os populares.
Ao se considerar as possibilidades de resistência, de ação e de criatividade
praticadas nas relações assimétricas de poder entre culturas de setores distintos de uma
sociedade, ou mesmo entre nações e povos, afasta-se a hipótese de receptividade passiva,
criando na hibridação um espaço de representação também dos subalternos, isto é,
considera-se também a voz que vem de baixo. No caso particular dos meios de
comunicação de massa, por exemplo, a voz da audiência importa tanto quanto o que se
passa nas telas da televisão e do computador, ou nos textos impressos, como objeto de
análise que permita construir uma visão geral das transformações culturais em curso. Nessa
perspectiva, como conceito central de análise, surge a questão dos processos de formação e
transformação de identidades culturais, não mais como algo fixo e previamente
determinado, mas como algo contingente e vacilante.
4.4 Identidade cultural: da essência fixa à possibilidade cambiante
O conceito de identidade, e, por conseguinte, o de identidade cultural, tem passado
por transformações no conjunto de atuais teorias sociais, carecendo ainda, conforme Hall
(2011), de uma compreensão conclusiva ou segura a respeito das proposições teóricas
produzidas a respeito do tema. Não obstante a inconclusão teórica à qual Stuart Hall faz
referência, observam-se certas alegações comuns entre os teóricos atraídos pelo assunto,
possibilitando assim caracterizar uma nova perspectiva emergente de compreensão dos
sujeitos sociais e dos processos de formação e transformação das identidades na
contemporaneidade.
A descontinuidade, a fragmentação, a ruptura e o deslocamento são características
atribuídas às sociedades contemporâneas, caracterizando-se estas como sociedades em
permanente mudança (GIDDENS, 1990; LACLAU, 1990, HARVEY, 1989). Estas
características resultam do processo de globalização ou mundialização, intensificado no
século XX, a partir do qual diferentes áreas do planeta são postas em conexão entre si,
possibilitando que transformações sociais e culturais ocorram em escalas indefinidas de
espaço-tempo, com a interação ou fusão de espaços e realidades locais com espaços
globais. Uma das consequências das interações globais é o deslocamento e a ruptura das
bases de estruturas locais, que se reorganizam em novas e múltiplas bases, desenvolvendo-
118
se não mais a partir de uma única essência ou núcleo de poder articulador, mas a partir de
vários núcleos ou centros de poder.
A compreensão das sociedades contemporâneas e suas transformações demanda,
então, uma nova teoria social, segundo a qual a sociedade deixa de ser “um todo unificado
e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a
partir de si mesma”, e passa a ser compreendida como sendo algo que está
“constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si mesma” (HALL,
2011, p. 17).
Os deslocamentos e rupturas que caracterizam as sociedades contemporâneas
geram, em consequência, uma multiplicidade de “posições de sujeito” (LACLAU, 1990),
com cada uma das quais os indivíduos podem se identificar, mantendo-se todavia a
estrutura da identidade aberta. Esse fenômeno tem sido tratado como a “crise de
identidade” da modernidade tardia, ou da pós-modernidade (WOODWARD, 2012; HALL,
2011). Em outros termos, os múltiplos e diferentes sistemas sociais e culturais aos quais os
sujeitos das sociedades contemporâneas são expostos geram também uma multiplicidade
de identidades possíveis, com cada uma das quais os sujeitos podem se identificar.
A compreensão das formas pelas quais o sujeito social contemporâneo se localiza
nos sistemas culturais que o rodeiam, isto é, como ele se identifica em tais sistemas,
demanda uma mudança de concepção de sujeito e de identidade cultural em relação às
concepções existentes em períodos anteriores, que caracterizavam a sociedade como
estável e unificada em torno de categorias tais como classe, gênero, etnia e nacionalidade.
Nesse sentido, ao analisar as mudanças pelas quais os conceitos de identidade e de sujeito
estão passando, Hall (2011) identifica três concepções de identidade, sendo elas as
concepções de identidade do sujeito do Iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-
moderno.
Na primeira concepção, a do sujeito do Iluminismo, a identidade é considerada
como um núcleo interior do indivíduo, que o caracteriza desde o seu nascimento até a
morte. Nessa concepção “individualista” de identidade, o sujeito é um indivíduo centrado,
unificado entorno da ideia de um “eu” autônomo, dotado das capacidades de razão e de
consciência.
Na segunda concepção de identidade, a do sujeito sociológico, considera-se que,
embora exista um núcleo ou essência interior que caracteriza o indivíduo, este não é
autônomo e autossuficiente em sua existência, porque depende da mediação simbólica das
pessoas ao seu redor na relação com a cultura do mundo em que vive. Trata-se portanto de
119
uma concepção interativa de identidade, segundo a qual os valores e significados culturais
são internalizados pelo sujeito nas suas interações sociais, preenchendo assim o espaço
existente entre o interior e o exterior, entre o público e o privado, de modo a ajustar seus
sentimentos subjetivos aos lugares objetivos que ocupa na sociedade. Segundo Hall (2011,
p. 12), para essa concepção sociológica, a identidade “costura (ou, para usar uma metáfora
médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura”, e com isso “estabiliza tanto os sujeitos quanto os
mundos culturais que eles habitam”.
Na terceira concepção de identidade, a do sujeito pós-moderno, considera-se que as
mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas colocam o indivíduo em contato com
múltiplos sistemas culturais, empurrando-o em diferentes direções, o que proporciona a
existência de um sujeito com mais de uma identidade, até mesmo contraditórias entre si.
Assim, conforme Hall (2011, p. 13), “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”.
4.5 Hibridação cultural e a multiplicação de identidades
A partir desta terceira concepção de identidade cultural, ou dos processos pelos
quais ela é criada e recriada, passa-se a considerar a identidade não mais como algo que
caracteriza os membros de uma cultura desde seu nascimento até a morte. Nesse sentido,
ao se considerar a hibridação como categoria na análise das relações assimétricas entre
culturas, passa a chamar a atenção consequentemente os processos pelos quais os membros
dos setores populares ou hegemônicos identificam-se com as culturas híbridas resultantes,
ou mesmo como os sujeitos transitam entre as diferentes culturas, ora identificando-se com
certos valores, padrões de comportamento, modos de vida em geral, ora distanciando-se
destes para assumir outros modos de vida, outros valores e outros padrões de
comportamento, de forma intencional ou condicionada por fatores que lhe fogem à
consciência.
Nessa perspectiva, a identidade cultural surge mais como um processo dialético e
dinâmico do que como algo sólido e unificado como pressuporia a visão predominante na
modernidade. Conforme Stuart Hall, “se sentimos que temos uma identidade unificada
desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre
nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’. A identidade plenamente unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2011, p. 13).
Esse ponto de vista é corroborado por Fleuri (2003), segundo o qual
120
A identidade, sendo definida historicamente, é transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam, de tal forma que, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar (FLEURI, 2003, p. 11).
Dessa perspectiva teórica, depreende-se que, nas relações interculturais, pode
ocorrer tanto um abandono parcial de elementos de uma cultura, quanto o surgimento de
novos fenômenos culturais, de modo que no processo de interação entre distintas culturas,
que no caso dos povos indígenas brasileiros, por exemplo, se deu predominantemente de
forma assimétrica, não há apenas a assimilação de uma pela outra ou uma simples fusão
passiva, mas uma coexistência dialética composta de elementos culturais heterogêneos.
Surge assim uma tensão entre síntese e simbiose cultural, fusão e coexistência antagônica
que configuram o fenômeno da hibridação de que trata Canclini.
É, pois, o processo de hibridação de culturas na modernidade tardia que coloca em
colapso as formas pelas quais o indivíduo se identificava ou se ajustava aos padrões
culturais estáveis das sociedades em épocas anteriores, dando lugar atualmente a processos
de identificação provisória, variável e instável, porque reorientada a todo momento para
novas e múltiplas direções. Assim, uma consequência da hibridação cultural em sociedades
contemporâneas é a ruptura com tipos tradicionais de ordem social, ao que Harvey (1989)
chama de rompimento com toda condição precedente em um processo contínuo de
fragmentações internas. Dessa perspectiva, as sociedades e culturas na modernidade tardia
deixam de ser totalidades bem delimitadas a partir de um único centro referencial e
articulador, e passam a ser concebidas como estruturas instáveis, inacabadas e em
constante mutação.
À característica de mudança rápida e abrangente das sociedades contemporâneas,
associa-se outra, que diz respeito ao modo de vida altamente reflexivo originado na
modernidade tardia, de modo que “as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando,
assim, constitutivamente, seu caráter” (GIDDENS, 1990 apud HALL, 2011, p. 15). De
certa forma, isso é o que garante que sociedades contemporâneas, marcadas por diferenças,
divisões e antagonismos sociais não se desintegrem totalmente. Afinal, a multiplicidade de
121
identidades culturais que produzem, com cada uma das quais os sujeitos podem se
identificar, acaba, de alguma maneira, articulando-se e dando origem a novas identidades,
novas “posições de sujeito”, ao que Ernest Laclau denomina de “recomposição da estrutura
em torno de pontos nodais particulares de articulação” (LACLAU, 1990 apud HALL,
2011, p. 18).
4.6 A diferença como categoria mobilizadora da resistência cultural em sociedades
indígenas
A multiplicidade de identidades possíveis coexistentes em sociedades
contemporâneas reflete na reconfiguração dos movimentos sociais, que também passam a
se orientar a partir de múltiplas categorias mobilizadoras, deixando de ser a “classe social”
uma identidade singular que dê conta de abranger os diferentes interesses existentes nas
sociedades. Nesse sentido, segundo Hall (2011, p. 21), “a classe não pode servir como um
dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados
interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e
representadas”.
No caso particular dos movimentos indígenas, percebe-se que uma categoria
mobilizadora passa a ser a diferença reivindicada como direito das gerações mais jovens
poderem continuar a fazer escolhas de futuro tendo como referências as tradições culturais
de suas próprias sociedades, diferentes daquelas existentes na sociedade colonizadora,
todavia assumindo-se identidades novas e contingentes, em razão das violações dos limites
e das fronteiras culturais provocadas pela interação com a sociedade colonizadora.
Assim, frente à experiência de deslocamento resultante do colapso das estruturas
que serviam de base para a inscrição das identidades em períodos anteriores ao contato, no
caso das sociedades indígenas colonizadas que intentam resistir às mudanças impostas pelo
colonizador, busca-se constantemente retraçar os limites e as fronteiras culturais violadas.
Mas, dado que cultura não é essência, muito menos a própria identidade, resultam desse
rearranjo de fronteiras culturas e identidades modificadas, diferentes do que eram
inicialmente. E dado também que as forças homogeneizadoras continuam a agir nas
relações assimétricas de poder entre tradição e modernidade, entre o interno e o externo,
esse processo de retraçar fronteiras violadas torna-se um contínuo na tentativa de
sobrevivência cultural, resultando desse processo sempre novas identidades e novas
fronteiras.
122
A interculturalidade caracteriza-se, assim, exatamente como um entre-lugar de
culturas distintas que se encontram, como um terceiro-espaço (BHABHA, 2010) situado
entre o interno e o externo a fronteiras e limites culturais que são constantemente
realocados, em função das tensões e relações de poder que caracterizam os encontros
interculturais. Em tal espaço de conflitos e tensões, o patrimônio histórico de culturas
tradicionais anteriormente existentes assumem funções contemporâneas não como
essências imutáveis e fossilizadas a se perpetuarem indefinidamente no tempo, mas, como
sustenta Canclini (2011), como conteúdo de referência a partir do qual as sociedades
subjugadas podem teatralizar e celebrar o passado como estratégia para reafirmarem-se no
presente.
Assim, os conteúdos culturais passam a funcionar como critérios de pertença no
sentido de serem compartilhados pelos membros de uma sociedade específica como
estratégia de autoafirmação identitária, ao assumirem uma origem étnica comum, sendo a
etnicidade neste caso concebida de modo inverso ao modo como originalmente foi pensada
no contexto da etnologia e do colonialismo.
4.7 A etnicidade como resultado do exercício da diferença em contextos interculturais
Os conceitos de etnia e de etnicidade surgiram no século XIX no contexto do
colonialismo, no âmbito da etnologia clássica, baseados no pressuposto de que sociedades
e grupos culturais colonizados seriam entidades objetivas, passíveis de serem definidas e
descritas isoladamente por suas características culturais observadas de fora para dentro
(POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 2011). Ocorre que, nas descrições de sociedades e
grupos colonizados, utilizavam-se sempre os padrões e valores dados a priori pelos
próprios colonizadores, resultando assim invariavelmente em uma associação do conceito
de etnia com a ideia de sociedade exótica, primitiva, atrasada, arcaica e,
consequentemente inferior. Assim, essa criação artificial de etnia, em um sentido “de cima
para baixo”, estava a serviço da ordem colonial porque invariavelmente tratava de
inferiorizar povos ou grupos culturais colonizados, justificando desse modo o próprio
fenômeno da colonização.
As raízes etimológicas da palavra étnico de fato associariam originalmente etnia a
uma noção negativa de “outros” povos, distintos daquele de quem faz uso do termo. Nesse
sentido, conforme Sollors (1986, apud POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 2011), entre
os gregos, o termo ethnos era utilizado para fazer referência aos povos considerados
123
bárbaros ou àqueles que não se organizavam em cidades-estados, e o termo latino ethnicus
era utilizado pelos cristãos do século XIV para ser referirem a povos considerados pagãos.
Ocorre que, ao longo do século XX, as noções de etnia e de etnicidade sofreram
uma significativa mudança conceitual, superando a ideia de grupos étnicos como entidades
discretas, homogêneas ou passíveis de serem objetivamente descritas, nomeadas e
catalogadas a partir de traços ou características culturais, por um observador externo. A
partir de então, e na contemporaneidade, novas teorias da etnicidade tendem a considerá-la
como efeito do exercício da diferença cultural reivindicada, buscada constantemente pelos
grupos ou sociedades marginalizadas ou colonizadas, a partir de um movimento de dentro
para fora, no sentido de uma autoafirmação e de uma forma de identificação alternativa à
consciência de classe.
A partir dessa perspectiva, a etnicidade passa a ser concebida como uma dimensão
universal das relações humanas, na medida em que a própria noção de identidade cultural
pressupõe o exercício da diferença ou da distinção, sendo que, portanto, somos todos seres
étnicos na medida mesmo em que somos todos portadores de identidades. Assim, o objeto
das teorias da etnicidade na atualidade deixa de ser a descrição totalizante de povos,
sociedades e grupos culturais com o intuito de promover uma escala cultural comparativa e
passa a ser “o processo de construção das diferenças étnicas e das formas de interação nas
quais os indivíduos agem como membros de grupos étnicos” (POUTIGNAT; STREIFF-
FERNART, 2011, p. 84).
Nesse sentido, a etnicidade emerge no contexto da interculturalidade, em particular
no caso de sociedades indígenas contemporâneas, como estratégia na tentativa de
resistência por diferenciação cultural, numa oposição entre o Nós e os Outros, de modo que
uma identidade étnica passa a ser assumida como sentimento de pertença a um grupo ou
sociedade em interação com outros grupos ou sociedades distintas.
A pertença étnica nesse contexto passa a operar como categoria importante de
mobilização de grupos e sociedades marginalizadas na conquista de direitos coletivos. No
caso particular dos povos indígenas, um efeito imediato da defesa da pertença étnica é a
reivindicação do direito ao território tradicionalmente ocupado pelos povos, sob constante
ameaça dos poderes de setores da sociedade colonizadora que têm interesses conflitantes
com a sobrevivência cultural e, portanto, territorial dos povos tradicionais.
Verifica-se portanto que essa nova noção de etnicidade só faz sentido se
considerada no contexto de relações interculturais, isto é, como resultado do exercício da
diferença em relação a um Outro, de modo que os indivíduos de uma sociedade ou grupo
124
cultural se percebem unidos pelo compartilhamento de um conjunto de tradições,
conhecimentos, saberes, hábitos e comportamentos não compartilhados pelos demais
grupos os sociedades com os quais mantêm relações. Assim, esse conjunto de aspectos da
cultura própria do grupo é utilizado subjetivamente pelos membros do próprio grupo para
se diferenciar de seus vizinhos, produzindo como efeito uma identidade cultural específica
e de natureza étnica.
Dessa perspectiva, os grupos étnicos são concebidos não mais como entidades
objetivamente definíveis por um observador externo, mas como sendo autodefinidos por
seus próprios membros a partir do reconhecimento e da reivindicação de uma tradição
compartilhada internamente, sendo que, no contexto da hibridação cultural, o próprio
conceito de tradição deixa de ser assumido como um congelamento do patrimônio cultural
existente no passado, e passa a ser concebido, conforme Canclini (2011), como um
mecanismo de seleção ou de invenção de patrimônios culturais reconvertidos para uma
legitimação do presente como forma de resistência.
Ainda com base em Canclini (2011), verificamos que, quando a questão da
identidade é pensada no âmbito de espaços de hibridação cultural, é preciso superar a ideia
de etnia como essência caracterizada por um conjunto de traços fixos e congelados, uma
vez que a história dos movimentos identitários demonstra que grupos culturais tradicionais
tendem a selecionar elementos e traços culturais de diferentes épocas, articulando-os no
presente e ressignificando-os com a finalidade de construir um relato coerente de si
mesmos nas relações estabelecidas com as sociedades nacionais. Em outros termos, na
relação entre tradição e modernidade, o presente é significado em termos de algo que se
repete “sob a aparência de um passado que não é necessariamente um signo fiel da
memória histórica, mas uma estratégia de representação da autoridade em termo do
artifício do arcaico” (BHABHA, 2010, p. 65).
Em síntese, a partir da perspectiva teórica exposta nesta seção, torna-se possível
considerar o fenômeno relativo à ressignificação da educação escolar existentes em aldeias
de sociedades indígenas pelos membros das próprias sociedades indígenas, como parte das
estratégias de grupos étnicos contemporâneos se autoafirmarem em contextos de
hibridação cultural a partir da ênfase no compartilhamento de conhecimentos e saberes
tradicionais internamente pelos próprios grupos. A escola concebida como espaço de
hibridação cultural na aldeia torna-se assim também um espaço de ressignificação do
presente cultural dos povos a partir da revitalização de elementos da tradição existentes no
passado.
125
Assim, com a intenção de compreender ideias e pressupostos presentes em
processos enunciativos de professores indígenas, enquanto membros de um grupo étnico,
ao projetarem para as escolas existentes em suas aldeias o ensino de saberes e fazeres
matemáticos da tradição de seu povo, torna-se relevante um aprofundamento em questões
teóricas relativas à etnomatemática, por ser atualmente a área que mais se aproxima, a meu
ver, do contexto da pesquisa. Assim, apresento na próxima seção desta tese, como última
seção de fundamentação teórica, os resultados de uma pesquisa bibliográfica que realizei
sobre etnomatemática.
126
5 ETNOMATEMÁTICA: UMA CONCEPÇÃO TRANSFORMADORA
Ao iniciar um estudo sistemático de textos que tratam de etnomatemática, na busca
de uma definição na qual pudesse basear minha elaboração teórica referente ao tema,
percebi que, desde que uma concepção inicial foi proposta por Ubiratan D’Ambrosio, ela
tem passado por múltiplas abordagens e tentativas de compreensão, gerando conceituações
e definições em diferentes contextos. Essa multiplicidade de tentativas de compreensão
resulta, na literatura, em uma dupla condição: ora Etnomatemática é entendida como
conjunto de saberes e fazeres matemáticos próprios de culturas específicas, ora é entendida
como um programa de pesquisa configurado com a contribuição de diferentes áreas do
conhecimento acadêmico e científico, tais como filosofia, história e antropologia.
Buscar-se-á explorar nessa seção esta variedade de abordagens que tem
caracterizado o movimento teórico pertinente à Etnomatemática, atingindo-se de certo
modo uma confusão conceitual ou um não alinhamento de ideias de diferentes autores em
torno de uma perspectiva única de etnomatemática, conforme uma análise comparada das
diferentes abordagens possibilita verificar.
5.1 Duas formas distintas de se entender Etnomatemática
De modo geral, dois grandes grupos de concepções de etnomatemática têm
caracterizado teoricamente uma nova perspectiva histórica e filosófica de abordar
conhecimentos matemáticos, vinculada originalmente a transformações nos modos de
conceber o mundo, a ciência, a educação e as relações entre povos e culturas. Assim, na
continuidade da fundamentação teórica dessa pesquisa, optamos em abordar a
Etnomatemática, entendida a partir de duas formas distintas: etnomatemática como
conjunto de saberes e fazeres social e culturalmente situados, e Etnomatemática como
programa de pesquisa.
Da primeira perspectiva, tornam-se possíveis expressões presentes em trabalhos tais
como Gerdes (1988): matemática indígena, matemática popular, matemática mundial;
Scandiuzzi (2006): conhecimentos matemáticos de povos indígenas; Fantinato (2006):
práticas de matematizar de grupos culturais específicos; Santos (2006): conhecimento
127
etnomatemático do grupo; Tuesta (2010): conhecimentos matemáticos dos povos
indígenas; D’Ambrosio (2011): etnomatemática do cotidiano, etnomatemática das
culturas africanas, etnomatemáticas das tradições indígenas, etnomatemática de grupos
profissionais, diferentes etnomatemáticas, matemática acadêmica, etnomatemática do
branco, etnomatemática indígena; Knijnik et al. (2012): diferentes matemáticas; Knijnik
(2004): saber e fazer matemático de culturas marginalizadas; Ferreira (1994): matemática-
materna, conhecimento etnomatemático indígena; Wanderer (2009): matemáticas
produzidas pelos diversos grupos culturais; Fernandes (2009): matemática de povos
culturalmente diferenciados, conhecimentos matemáticos Kyikatêjê; Rosa e Orey (2005):
práticas matemáticas de grupos minoritários específicos, várias formas culturais de
matemática; Fernandes e Fernandes (2009): matemática Kaingang, conhecimentos
matemáticos dos povos indígenas; Mastop-Lima (2009): etnomatemática aikewára; Silva
(2007): matemática tapirapé; Costa e Borba (1996): saber matemático construído no
cotidiano indígena, matemática da tribo, conhecimento etnomatemático do grupo,
matemática do não-índio; Ascher e Ascher (1986): ideias matemáticas de povos não
letrados; Ferreira (2002): ideias matemáticas de povos distintos; Silva (2008): saber-fazer
matemático do grupo, matemática indígena, formas distintas de conhecimentos
matemáticos; Costa et al. (2009): múltiplas maneiras de matematizar, conhecimentos
matemáticos indígenas.
Dessa perspectiva, também é possível formular expressões tais como
etnomatemática paiter ou etnomatemática dos pedreiros, sendo que a própria matemática
acadêmica, atualmente constante dos currículos escolares ao redor do mundo, pode ser
definida como uma etnomatemática. Considerando-se essa primeira forma de
compreensão, comumente as práticas matemáticas de grupos específicos são tidas como
etnomatemáticas também específicas.
Da segunda perspectiva, depreendem-se princípios, orientações teóricas e
metodológicas, a partir das quais resultam mudanças no modo de conceber a educação, a
cultura, as relações sociais e as condições humanas no mundo. Nessa segunda forma de
compreensão, a Etnomatemática assume-se como concepção histórica e filosófica do
conhecimento, vinculada originalmente a transformações nos modos de conceber o mundo,
a ciência, a educação e a relações entre povos e culturas.
Particularmente, na presente pesquisa, compreendemos Etnomatemática como uma
concepção filosófica que estabelece princípios gerais e que também situa contextualmente
e diferencia as diferentes práticas matemáticas existentes no mundo da atual prática
128
matemática escolar, considerada esta como homogeneizadora, por não levar em
consideração os saberes das diferentes tradições5 e suas especificidades.
Na tentativa de melhor tratar dessa dupla condição, como saber em si e como
programa de pesquisa, que a expressão etnomatemática remete, far-se-á, a seguir, uma
análise do contexto histórico mais amplo que desencadeou as origens da Etnomatemática
no Brasil e no mundo.
5.2 Etnomatemática: contextos, origens e definições
As origens de uma nova perspectiva de abordagem do conhecimento científico, da
história e da matemática, surgida no século XX, estão vinculadas ao reconhecimento do
caráter ideológico da ciência, da história e da matemática. Uma citação do historiador
soviético Konstantín Ribnikov, reproduzida pelo matemático e educador brasileiro
Ubiratan D’Ambrosio, ilustra as origens de uma compreensão de que não há uma
neutralidade ideológica na história, na ciência e, por conseguinte, na história da
matemática:
A luta entre as forças progressistas e reacionárias na ciência Matemática, que é uma das formas da luta de classes, se revela de forma mais intensa nas questões históricas e filosóficas das Matemáticas [...]. Ela [a História da ciência] deve estar bem organizada como parte da educação ideológica do estudantado e dos trabalhadores científicos (RIBNIKOV, 1987, p. 19, apud D’AMBROSIO, 2009, p. 22).
Partindo desse ponto, pode-se refletir sobre o contexto em que surgiu a
Etnomatemática, e por essa via defini-la como um programa transcultural e
transdisciplinar, tomando por pressupostos as ideias do educador matemático brasileiro
Ubiratan D’Ambrosio. O referido contexto localiza-se temporalmente na segunda metade
do século XX, mas certamente guarda estreitas relações com mudanças de perspectivas do
pensamento ocidental produzidas nas décadas imediatamente anteriores. Data do início do
século a abertura da antropologia para os estudos de campo, a superação do determinismo
biológico e o reconhecimento de que cada cultura possui sua própria história, que só pode
ser compreendida se apreendida em sua totalidade. Nas origens dessa nova antropologia
5 Consideramos aqui que toda tradição é histórica e, portanto, toda tradição é uma invenção, tem uma origem e se caracteriza pela recorrência e pela resistência à mudança.
129
estão os trabalhos de Franz Boas e Bronislaw Malinowski, surgindo nessa época as bases
teóricas do relativismo cultural e a etnografia.
A ideia de que culturas devem ser entendidas como todos orgânicos, constituídos de
uma pluralidade de processos próprios e independentes, levou o filósofo alemão Oswald
Spengler, ao término da Primeira Guerra Mundial, a propor uma nova filosofia da história
do Ocidente. Da obra de Spengler decorreram novos pontos de vista para a maneira de se
compreender a matemática. Permeando os livros A Decadência do Ocidente: Forma e
Realidade, e A Decadência do Ocidente: Perspectivas da História Universal, publicados
respectivamente em 1918 e 1922, estavam novas possibilidades sugeridas por Spengler
para compreensão do pensamento matemático, entendendo a matemática como
manifestação cultural viva.
Conforme Spengler,
Segue-se disso uma circunstância decisiva, que, até agora, escapou aos próprios matemáticos. Se a Matemática fosse uma mera ciência, como a Astronomia ou a Mineralogia, seria possível definir o seu objeto. Não há, porém, uma só Matemática; há muitas Matemáticas. O que chamamos de história “da” Matemática, suposta aproximação progressiva de um ideal único, imutável, tornar-se-á, na realidade, logo que se afastar a enganadora imagem da superfície histórica, uma pluralidade de processos independentes, completos em si (SPENGLER, apud D’AMBROSIO, 2011, p. 16).
Entre as possíveis matemáticas existentes que constituiriam aquilo que se denomina
equivocadamente como única Matemática, Spengler apontou a Matemática Apolínea,
originada na cultura grega e relacionada à geometria, a Matemática Faustiana, nascida na
cultura euro-americana ocidental e relacionada à análise e à geometria analítica, e a
Matemática Mágica, produzida na cultura árabe e relacionada à álgebra (COSTA, 2009).
As ideias de Spengler figuram entre as primeiras indicações de que poderiam existir
outras formas de pensamento matemático e de racionalidade, tomando-se assim a
matemática como algo intimamente integrado às particularidades das culturas que lhe dão
suporte. Abria-se, então, a possibilidade teórica de se investigar a matemática de diferentes
culturas, com implicações para o próprio estatuto da história da matemática até então
conhecida no Ocidente.
Na continuidade dos acontecimentos que marcaram o surgimento de propostas de
novas racionalidades no pensamento ocidental, o ano de 1929 é um marco para a
130
historiografia por ter sido nele que Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram a revista
Annales d’histoire économique et sociale, propondo por meio dela as bases para uma nova
história (BLOCH, 2002). A partir de então, os limites ideológicos e as metodologias de
análise de fontes históricas ganharam novos nuances, abrindo-se espaços para que grupos
sociais e culturais até então marginalizados ou invisibilizados passassem a figurar nos
anais da história, por meio de narrativas próprias e de leituras multiculturais.
A década de 1940 testemunha o nascimento da Antropologia Estrutural, cujo
principal teórico, Claude Lévi-Strauss, baseando-se nos resultados produzidos por Wilhelm
Wundt na psicologia, e por Ferdinand de Saussure na linguística, propõe, de uma
perspectiva estruturalista, uma definição de cultura como um sistema
de signos estruturados a partir de pares de oposição, estabelecendo com isso uma estreita
relação entre cultura e os princípios de funcionamento do intelecto.
Todas essas aberturas teóricas da primeira metade do século XX, que convergiram
para o reconhecimento da existência de vinculações entre formas de pensamento e cultura
em diferentes contextos, forneceram elementos para se repensar as consequências da
adoção de certas perspectivas epistemológicas, históricas e filosóficas acerca do
conhecimento. Particularmente quanto à Matemática, acentuou-se a partir de então uma
perspectiva cultural de estudos, entre os quais destacam-se como precursores, conforme
Rosa e Orey (2005), os livros Arithmetic in Africa, de Otto Raum, publicado em 1938; On
the Sociology of Mathematics, de Dirk Struik, publicado em 1942; e The Locus of
Mathematical Reality: an Anthropological Footnote, de Leslie White, publicado em 1947.
Em consonância com a perspectiva de relacionar matemática e cultura, o educador
Raymond Louis Wilder proferiu a conferência The Cultural Basis of Mathematics, durante
o Congresso Internacional de Matemáticos de 1950 (ROSA; OREY, 2005), e conforme
aponta D’Ambrosio (2011), talvez um dos primeiros registros que se tenha a respeito das
implicações pedagógicas dessa nova perspectiva deva-se ao algebrista japonês Yasuo
Akizuki, que, em 1960, refletindo sobre os métodos de ensino de matemática na Ásia,
afirmou:
Eu posso, portanto, imaginar que podem também existir outros modos de pensamento, mesmo em matemática. Assim, eu penso que não devemos nos limitar a aplicar diretamente os métodos que são correntemente considerados como os melhores na Europa e na América, mas devemos estudar a instrução matemática apropriada à Ásia (AKIZUKI, apud D’AMBROSIO, 2011, p. 17).
131
Como resultado do surgimento de novas perspectivas epistemológicas, cria-se na
história e na filosofia da ciência, a partir da segunda metade do século XX, uma
polarização de ideias em torno de Karl Popper e Thomas Kuhn. O próprio estatuto da
ciência e do método científico é questionado, destacando-se sobre isso as posições opostas
de Imre Lakatos e Paul Feyerabend. É nesse contexto de mudança de postura ideológica e
filosófica de produção da memória humana que surgem, a partir dos anos 1970, os
primeiros trabalhos com o objetivo de promover o conhecimento das atividades
matematizantes de diferentes povos e grupos socioculturais no mundo.
É nessa época que o educador matemático brasileiro Ubiratan D’Ambrosio inicia o
desenvolvimento de uma teoria a respeito da existência de ideias matemáticas em
diferentes contextos históricos e culturais, inspirado inicialmente em seu trabalho no
Centre Pédagogique Superieur de Bamako, na República do Mali (GERDES, 2010;
KNIJNIK et al., 2012). Contemporaneamente, Claudia Zaslavsky publica, em 1973, o livro
Africa Counts: Number and Patterns in African Culture, no qual explora a história e a
prática de atividades matemáticas entre os povos da África saariana, demonstrando que o
cotidiano africano era permeado de conceitos matemáticos (ROSA; OREY, 2005). Nesse
livro, Zaslavsky utiliza a expressão sociomatemática para designar uma matemática com
raízes socioculturais. Essa mesma expressão foi utilizada por D’Ambrosio três anos depois
em um artigo publicado em 1976 na revista Ciência e Cultura (GERDES, 2010).
Data do ano de 1975 a utilização, pela primeira vez, do termo etnomatemática por
D’Ambrosio, ao discutir a importância da noção de tempo no desenvolvimento das ideias
newtonianas relacionadas ao Cálculo Diferencial, vinculando tal desenvolvimento à
atmosfera intelectual onde tais ideias floresceram (KNIJNIK et al., 2012).
Conforme Rosa e Orey (2005), a partir de 1976, D’Ambrosio intensificou a
divulgação de suas ideias em âmbito internacional a respeito das raízes culturais da
matemática, ao presidir a seção Why Teach Mathematics? com o Topic Group: Objectives
and Goals of Mathematics Education, durante o Third International Congress of
Mathematics Education 3 (ICM-3), em Karlsruhe, na Alemanha, e ao proferir uma palestra
no Annual Meeting of the American Association for the Advancement of Science, em
Denver, nos Estados Unidos, no ano de 1977. Como culminação desse movimento
nascente, D’Ambrosio proferiu, em 1984, a palestra de abertura do ICME 5, na Austrália,
com o título Socio-cultural Bases of Mathematics Education, instituindo definitivamente o
programa Etnomatemática como campo de pesquisa.
132
Após uma década de discussões desde a utilização do termo etnomatemática pela
primeira vez, surgiu em 1985 o The International Study Group on Ethnomathematics,
fundado por Ubiratan em parceria com os educadores matemáticos Gloria Gilmer e Rick
Scott (VIEIRA, 2008). Dois anos mais tarde, precisamente em 1987, D’Ambrosio publicou
o clássico livro Etnomatemática: raízes socioculturais da arte ou da técnica de explicar e
conhecer, no qual apresentou sistematicamente o que viria a se consolidar como uma teoria
da Etnomatemática (GERDES, 2010).
Consta destas primeiras publicações de D’Ambrosio sobre etnomatemática algumas
definições, agora clássicas, sobre o tema. Segundo D’Ambrosio (1990), as sociedades
humanas, ao longo da história, produzem conhecimentos, fazeres e saberes que lhes
permitem sobreviver e transcender através de maneiras, modos, técnicas e artes (techné ou
tica) de explicar, de conhecer, de entender (matema) a realidade natural e sociocultural
(etno) em que vivem. Assim, utilizando as raízes etno, matema e tica, D’Ambrosio deu
origem ao termo etnomatemática. Depreende-se desse conceito a perspectiva de que todo
agrupamento humano, que se caracterizou como comunidade ou povo ao longo da história
da humanidade, desenvolveu saberes e fazeres matemáticos próprios.
Vale destacar que o prefixo etno utilizado no contexto da formulação do termo
etnomatemática busca extrapolar o restrito significado de etnia tal como atribuído
originalmente pela etnologia, abarcando um conjunto mais amplo de significados,
incluindo-se contextos culturais, linguagens específicas, códigos de comportamento,
simbologias e práticas sociais (KNIJNIK et al., 2012; VERGANI, 2007), mas esse não
deixa de ser um ponto polêmico da teoria, que vai encontrar reminiscências pelas décadas
seguintes de produção teórica, inclusive porque a “etnologia” surgiu no contexto do
colonialismo, de modo que o termo “etno” ficou por muito associado a “nativo” ou
“exótico”.
Consoante à nova historiografia surgida no século XX, D’Ambrosio então define
etnomatemática como “a matemática praticada por grupos culturais, tais como
comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças de
uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por
objetivos e tradições comuns” (D’AMBROSIO, 2011, p. 9). Ainda segundo o autor, “o
cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres próprios da cultura. A todo instante, os
indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, medindo, explicando,
generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando, usando os instrumentos materiais e
intelectuais que são próprios à sua cultura” (D’AMBROSIO, 2011, p. 22).
133
Destacam-se dessas definições originais d’ambrosianas duas características
essenciais da Etnomatemática. Uma, que vincula matemática à cultura, gerando por
consequência a relativização de um conhecimento por muito tido como universal, além de
reconhecer marcadamente a natureza antropológica de todo conhecimento matemático. E
outra, que circunscreve determinados saberes e fazeres de todo o mundo em um rol de
conhecimentos humanos intitulado matemática. Com isso, criam-se dois movimentos auto-
implicantes: se por um lado a matemática acadêmica, ocidental, europeia ou escolar torna-
se um tipo de etnomatemática, por outro lado, saberes e fazeres matematizantes até então
marginalizados ou invisibilizados são alçados à categoria de matemáticas, matemáticas
com raízes culturais distintas.
Dadas as implicações ideológicas e políticas e, de certo modo, o desconforto
acadêmico que suscitaram, as ideias d’ambrosianas não deixaram de sofrer críticas desde
sua origem, com reminiscência no tempo presente. Quanto a isso, D’Ambrosio registra:
Por subordinar as disciplinas e o próprio conhecimento científico ao objetivo maior de priorizar o ser humano e a sua dignidade como entidade cultural, a etnomatemática, as etnociências em geral, e a educação multicultural, vêm sendo objeto de críticas: por alguns, como resultado de incompreensão; por outros, como um protecionismo perverso. Para esses, a grande meta é a manutenção do status quo, maquiado com o discurso enganador da mesmice com qualidade (D’AMBROSIO, 2011, p. 10).
Tais críticas vão desde a utilização do radical etno, como um termo restrito a etnia
nos moldes como era concebida na etnologia, com todas as limitações que tal interpretação
ocasiona, até a consequência do uso do termo matemática para se referir a saberes e fazeres
específicos de pessoas, grupos de pessoas, povos ou culturas distintas, fora dos estritos
espaços escolares. Para alguns, ao utilizar o termo matemática para classificar tais saberes
e fazeres, a Etnomatemática estaria traindo seu próprio princípio de superação do
paradigma da modernidade, em um inapropriado exercício de utilizar-se de uma categoria
externa, própria do pesquisador, para classificar o que é do outro, do que é diferente.
Há ainda quem reivindique a Etnomatemática como metodologia, colocando como
interesse último das pesquisas, mesmo aquelas que extrapolam os limites da instituição
escolar, a promoção de uma Educação Matemática na escola. É representativa dessas
múltiplas perspectivas apontadas para a Etnomatemática a discussão produzida por
Monteiro, Orey e Domite (2006), ao tentarem responder à pergunta “O que é
134
etnomatemática para você hoje?”. As diferentes e até mesmo divergentes respostas obtidas
representam a confusão multidimensional (BARTON, 2006) que o tema alcançou nos dias
atuais.
Essa multiplicidade de perspectivas parece, no entanto, ser algo intrínseco de fato à
natureza fundante da etnomatemática, no sentido de que a multiplicidade de perspectivas
diferentes a seu respeito que coexistem na literatura proporciona seu não enquadramento
epistemológico ou mesmo sua não disciplinarização, fenômeno às vezes representado pela
oposição a uma “gaiola epistemológica”. Em todo caso, parece que Etnomatemática
poderia ser melhor compreendida se sua tematização partisse sempre do movimento
histórico pelo qual passou o desenvolvimento desse programa de pesquisa.
Assim fazendo, as dificuldades filosóficas relacionadas à distinção entre
etnomatemática e Etnomatemática poderiam ser superadas, e as opiniões divergentes
poderiam passar a ser vistas a partir das relações que existem entre si. Ao final desse
exercício, ver-se-ia que, mesmo em alguns casos sendo antagônicas, tais opiniões são
complementares, pois integram o movimento histórico pelo qual passa a própria área de
conhecimento mais geral, intitulada Educação Matemática.
É na perspectiva de tentar compreender as divergências conceituais, que continuo
esta seção, buscando percorrer a trajetória histórica do desenvolvimento da
Etnomatemática. O objetivo então é mostrar que cada uma das perspectivas teóricas
originadas sobre o assunto enfatizou uma dimensão ou aspecto das relações entre
matemática, cultura e educação, de modo que, atualmente, é improdutivo negar os
pressupostos que ocasionaram cada uma das perspectivas que constituíram a
Etnomatemática, sob pena de se estar negando a própria Etnomatemática. Os pressupostos
originais continuam válidos, se assumidos com finalidades específicas, que vão desde a
interpretação antropológica de saberes e fazeres em distintos espaços ou culturas, até as
consequências educacionais e culturais em contextos escolares específicos, destacando-se
em particular na presente pesquisa uma vinculação ao caráter político de afirmação
identitária.
5.3 Perspectivas da Etnomatemática
Baseando-se na metáfora das fases da Lua sugerida por Tereza Vergani para
descrever o desenvolvimento da Etnomatemática, pode-se dizer que sua origem, isto é, sua
primeira perspectiva, a da Lua Nova (VERGANI, 2007), está vinculada ao reconhecimento
135
de que os diferentes povos do mundo sempre praticaram atividades matemáticas, de formas
próprias e independentes, de acordo com padrões de cada cultura. Portanto, um interesse
inicial foi conhecer estas matemáticas de raízes culturais diversas, isto é, estas diversas
etnomatemáticas, reconhecê-las e traduzi-las para a linguagem matemática universalizante.
Em sintonia com a definição original veiculada por D’Ambrosio, subjaz nesta
primeira perspectiva a concepção de etnomatemática como conjunto de saberes e fazeres
contextualizados em diferentes culturas. Uma consequência disso é que as primeiras
pesquisas buscaram promover o conhecimento mútuo entre diferentes grupos
socioculturais, através do estudo de seus saberes e fazeres locais, como “uma forma de
preservar a riqueza coletiva da memória humana, sobretudo aquela que diz respeito a
povos ou sociedades sem sistema de ‘escrita’” (VERGANI, 2007, p. 9).
Definida a etnomatemática como conjunto de saberes matemáticos em si, que
necessitavam ser conhecidos e compreendidos localmente, com suporte na Antropologia,
na Linguística e na recém criada nova historiografia, os primeiros pesquisadores em
Etnomatemática foram a campo desenvolver pesquisas empíricas nos mais diversos
espaços e culturas. Conforme Knijnik et al. (2012), destacam-se entre as primeiras
pesquisas em Etnomatemática no Brasil os trabalhos de Borba (1987), um estudo com
crianças da periferia de Campinas, São Paulo; Ferreira (1991, 1993, 1994), que realizou
investigações em espaços periféricos de Campinas, São Paulo, e em comunidades
indígenas do Alto Xingu e do Amazonas; Carvalho (1991), que desenvolveu pesquisas
com índios Rikbaktsas; e Knijnik (1988), que desenvolveu pesquisas empíricas em regiões
da periferia urbana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
No plano internacional, filiado a essa primeira perspectiva do desenvolvimento da
etnomatemática, entendida como saberes matemáticos culturalmente contextualizados,
destacam-se as pesquisas de Paulus Gerdes que, em 1978, já propunha o projeto de
pesquisa Conhecimentos matemáticos-empíricos das populações bantu de Moçambique,
que posteriormente se transformaria no projeto Etnomatemática em Moçambique
(GERDES, 2010). Gerdes integrou a equipe internacional de docentes do primeiro curso de
formação de professores de matemática de Moçambique, iniciado em 1977, logo após o
processo de independência daquele país em relação a Portugal. O autor relata que lhe
coube lecionar a disciplina intitulada Aplicações da Matemática na vida corrente das
populações, sendo que o grande desafio era motivar os estudantes moçambicanos para os
quais a matemática era disciplina pouco interessante e pouco útil ao desenvolvimento do
136
país (GERDES, 2010). Desde então, um tema de interesse nas pesquisas de Gerdes tem
sido os motivos geométricos africanos.
Em sua origem, ao propor visibilizar outras formas de matematizar o mundo, para
além da forma hegemônica da matemática já institucionalizada, a Etnomatemática se opôs
teoricamente ao modelo da racionalidade moderna, particularmente quanto ao imperativo
de sua hegemonia. Nesse sentido, quando D’Ambrosio (1990, p. 7) define o objeto de
estudo da Etnomatemática como sendo “os processos de geração, organização e
transmissão de conhecimento em diversos sistemas culturais”, tem-se por consequência
que a própria matemática institucionalizada, ou matemática acadêmica ou escolar,
sustentáculo da racionalidade moderna, passa a ser um tipo de etnomatemática. Portanto,
antes de ser uma negação da matemática praticada hegemonicamente no mundo, a proposta
original da Etnomatemática é a de que se amplie o universo dos conhecimentos
matemáticos, aí se inserindo saberes e fazeres com raízes nas mais diversas culturas, até
então invisibilizadas pelo projeto da modernidade.
Não obstante essa proposta de superação dos pressupostos do pensamento moderno
fazer parte do projeto original da Etnomatemática, particularmente quanto à superação da
homogeneização do conhecimento através da ciência e à relativização do caráter universal
reivindicado pela matemática institucionalizada, críticas surgiram no início dos anos 1990,
tanto no que diz respeito à perspectiva ideológica, quanto ao aspecto operacional do
projeto. Conforme Knijnik et al. (2012), destacam-se nesse sentido os argumentos de
Millroy (1992) e Dowling (1993).
Segundo a crítica de Millroy, haveria no projeto da Etnomatemática um paradoxo
relacionado ao fato de que, embora a proposta fosse identificar e descrever diferentes tipos
de matemáticas em diferentes culturas, nesse processo o pesquisador não conseguiria se
desvencilhar do que ele mesmo entende por matemática. A consequência disso seria que as
pesquisas dessa área de conhecimento se reduziriam a descrever apenas o que se assemelha
à matemática institucionalizada, a partir dos referenciais e categorias do próprio
pesquisador. Nesse sentido a autora questiona: “como pode alguém, que foi escolarizado
dentro da Matemática ocidental convencional, ‘ver’ qualquer outra forma de Matemática
que não se pareça à Matemática convencional, que lhe é familiar?” (MILLROY, 1992, p.
11, apud KNIJNIK et al., 2012, p. 23).
Por sua vez, Dowling teceu uma crítica ao que seria uma ideologia do
monoglossismo existente na proposta da Etnomatemática. Essa ideologia se resumiria ao
fato de que, embora se proponha reconhecer os diferentes saberes matemáticos existentes
137
em diferentes culturas, com a mudança de ênfase de sujeitos individuais para sujeitos
culturais, e a consequente unificação de uma sociedade múltipla, essa unificação seria
artificial, visto que, em cada cultura os sujeitos seriam vistos como falantes de uma voz
única, singular, monoglóssica, e a superação dos conflitos dar-se-ia por meio da busca de
uma unidade racional. Nessa perspectiva, embora a Etnomatemática valorizasse as
diferenças culturais e os saberes matemáticos específicos, conceberia a sociedade “como
uma unidade artificial e o sujeito humano como seu agente unitário” (DOWLING, 1993, p.
37, apud KNIJNIK et al., 2012, p. 22).
Em certo sentido, tais críticas possuem coerência, desde que tomadas sobre
aspectos isolados da proposta original da Etnomatemática, e vinculadas a um recorte
temporal ao qual mencionamos acima como a primeira perspectiva, que teve como ênfase
trabalhos de campo com o objetivo de reconhecimento e tradução de saberes e fazeres
matemáticos em diferentes contextos culturais. Vale ressaltar que, não obstante a
Etnomatemática ter conquistado seu espaço no âmbito das pesquisas em Educação
Matemática, seus fundamentos ainda são pouco debatidos e por vezes, sobre determinados
aspectos, mal interpretados, conforme aponta Conrado (2006).
Um fato que deve ser destacado é que, desde sua origem, a Etnomatemática teve
também por preocupação a difusão de conhecimentos matemáticos por meio da educação,
bem como o questionamento e a revisão dos pressupostos que sustentam práticas escolares
cristalizadas, descontextualizadas, desvinculadas de transformações sociais e esvaziadas de
todo conteúdo crítico. Nesse sentido, a Etnomatemática também se filia a um movimento
maior que se denomina Educação Matemática, cuja origem se deu justamente pela
insatisfação com os resultados de reformas promovidas no ensino por movimentos
anteriores, tais como o Movimento da Matemática Moderna. Não por acaso, a quase
totalidade dos pesquisadores que desenvolveram e desenvolvem trabalhos sobre
Etnomatemática estão ligados à área da educação, muitos deles professores ou estudantes
de programas de pós-graduação. Daí que, nesse universo, por mais que as pesquisas
iniciais tenham realizado uma descrição, ou mesmo tradução de saberes e fazeres
matemáticos contextualizados em diferentes culturas e espaços, convertendo-os em alguns
casos para a linguagem universalizante da matemática acadêmica, elas tiveram a
importância de confirmar o que Spengler, Akizuki e o próprio D’Ambrosio já haviam
apontado teoricamente, isto é, a matemática até então institucionalizada e reproduzida na
escola não é universal, porque existem diferentes saberes e fazeres matemáticos com raízes
em diferentes culturas, inclusive nas culturas de grupos e povos considerados marginais.
138
Sendo assim, as pesquisas em Etnomatemática devem por definição extrapolar a
mera descrição de diferentes saberes e práticas matemáticas existentes no mundo, tendo
por objetivo “dar sentido a modos de saber e de fazer das várias culturas e reconhecer
como e por que grupos de indivíduos, organizados como famílias, comunidades,
profissões, tribos, nações e povos, executam suas práticas de natureza matemática, tais
como contar, medir, comparar, classificar” (D’AMBROSIO, 2009, p. 19).
Essa é justamente a segunda perspectiva da Etnomatemática, equivalente à fase da
Lua Crescente na metáfora de Tereza Vergani. Trata-se do momento em que se enfatiza
que as diferentes práticas matemáticas não devem ser reduzidas em sua descrição a simples
práticas numéricas, geométricas, operativas ou formais. Isso porque “olhá-las como
simples atividades de cálculo ou de exploração espacial é esvaziá-las dos conteúdos
intencionais que se tornam veículos de um saber profundamente significativo”
(VERGANI, 2007, p. 9).
Essa perspectiva da Etnomatemática tem uma profunda consequência
metodológica, que é a de que o pesquisador não deve descontextualizar os diferentes
saberes e fazeres matemáticos no ato de sua descrição. Trata-se de compreender, isto sim,
como essas diferentes práticas numéricas, geométricas e operacionais culturalmente
enraizadas vinculam-se às demais representações existentes na cultura que lhe dá suporte.
Daí que não basta uma descrição ou tradução “matemática” de tais representações. Essa
primeira descrição deve ser complementada com uma tradução “antropológica”, nutrida na
pesquisa etnográfica, que vincule as práticas e saberes matemáticos ao universo
sociocultural maior a que pertencem. Nesse sentido, mais que um exercício de descrição,
trata-se de uma prática de teorização, que busca pelos sentidos da existência de tais
práticas e saberes tradicionais. Subjaz como pressuposto dessa perspectiva a ideia de que a
completa compreensão das práticas e saberes das diferentes culturas contribuirão para uma
melhor compreensão do mundo e para a elevação da criatividade humana.
A esse respeito, afirma D’Ambrosio:
O grande desafio é ampliar as possibilidades de voar/criar para entender e explicar o mundo que nos cerca, com toda a sua complexidade. A criatividade resulta da fusão e incorporação de recursos materiais e intelectuais disponíveis, sejam aqueles próprios do universo acadêmico, obedecendo a padrões epistemológicos conhecidos, sejam aqueles proporcionados pelas tradições, que não obedecem a epistemologias reconhecidas. Isto é, não se reconhece uma teoria dos conhecimentos tradicionais. Procurar uma teorização
139
desse conhecimento é um grande desafio metodológico (D’AMBROSIO, 2009, p. 18).
A partir dessa preocupação de que a Etnomatemática deve ir além do
interconhecimento das diferentes formas de produção, organização e difusão do
conhecimento, nos mais diversos contextos socioculturais, toma corpo sua terceira
perspectiva, equivalente à fase da Lua Cheia na metáfora de Tereza Vergani. Nesta
perspectiva, atribui-se à Etnomatemática uma missão no mundo que extrapola os domínios
restritos da cultura, da ciência, da educação e da matemática, cabendo-lhe “apontar um
caminho de transformação crítica das nossas próprias comunidades ocidentais,
solidariamente abertas a outras formas de refletir, de saber, de sentir e de agir”
(VERGANI, 2007, p. 9).
A partir desta pespectiva, explicita-se a dimensão política da Etnomatemática, que
se firma definitivamente como “um programa de pesquisa em história e filosofia da
matemática, com óbvias implicações pedagógicas” (D’AMBROSIO, 2011, p. 27), de modo
que as pesquisas nessa área passam a ser entendidas como uma “investigação holística da
geração (cognição), organização intelectual (epistemologia) e social (histórica) e difusão
(educação) do conhecimento matemático, particularmente em culturas consideradas
marginais” (idem, p. 23).
É considerando essa dimensão política que se considera que a Etnomatemática pode
ajudar na luta contra o racismo, o colonialismo, o imperialismo e a marginalização de
povos, sociedades e culturas. Considera-se assim que a Etnomatemática pode mostrar, com
igual valor, os conhecimentos de diferentes povos, assim como instituir o respeito mútuo e
reduzir a tendência à exploração e à discriminação entre culturas distintas.
Nesta, que é uma das perspectivas atuais da Etnomatemática, busca-se, conforme
Vergani (2007), enfatizar saberes e comportamentos que questionam o nosso modo de
produzir conhecimentos, induzindo atitudes educacionais mais globalizantes e justas, mais
comprometidas com valores sociais e humanos.
Considerando o percurso que caracterizou o desenvolvimento da Etnomatemática,
desde a busca da descrição de diferentes saberes e fazeres culturalmente contextualizados,
até sua afirmação como programa de pesquisa, percebe-se que as diferentes perspectivas
originadas apresentam, de certa forma, uma interdependência, possibilitando postular
140
inclusive a necessidade de coexistência de todas elas simultaneamente, para que se garanta
uma coerência ideológica e epistemológica.
É diante desse quadro teórico multifacetado da Etnomatemática que se
desenvolvem experiências empíricas atualmente em movimento no sentido de se buscar
introduzir em currículos escolares saberes e fazeres matemáticos próprios de povos e
comunidades tradicionais, porém culturalmente marginalizadas. Nesse caso, a transposição
de saberes da tradição para o interior da sala de aula gera a possibilidade de se estar
praticando genuinamente os princípios da Etnomatemática como proposta de
fortalecimento de culturas até então marginalizadas, rompendo com o etnocentrismo que
permeia a matemática presente no currículo da escola.
Compete aos pesquisadores em Educação Matemática, observar, conhecer e
compreender os saberes que fundamentam estas práticas inovadoras, para com eles
expandirmos nossos próprios horizontes. Em suma, não se trata de propor uma mudança no
espaço do outro, mas antes, ao conhecer e conviver com as práticas do outro, mantermo-
nos abertos à possibilidade de mudanças em nosso próprio etno, porque, afinal, todos
pertencemos a algum grupo étnico, tal qual apontam perspectivas teóricas contemporâneas
a respeito do conceito de etnicidade, conforme abordado na seção anterior desta tese.
É com base nas reflexões teóricas realizadas na construção desta seção sobre
etnomatemática e das demais seções anteriores, sobre cultura e identidade cultural e sobre
educação escolar indígena, que buscarei me dirigir, nas seções seguintes, para a elaboração
de um fazer interpretativo sobre os dados produzidos a partir de uma vivência-campo com
professores paiter. Antes, porém, apresentarei, na próxima seção, os aspectos
metodológicos adotados para a produção e análise de dados.
141
6 ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS
Nesta seção, busco descrever os aspectos metodológicos inerentes à produção e à
análise de dados da pesquisa, refletindo inicialmente sobre alguns fatores que contribuíram
para as escolhas metodológicas adotadas. Nesse sentido, com a proximidade do início da
necessária produção de dados a partir de uma vivência-campo que me permitisse imergir
criticamente no universo cultural e discursivo dos professores paiter com os quais já estava
convivendo na universidade e nas aldeias, na busca de compreender as ideias e
pressupostos por eles assumidos ao discorrerem sobre temas de interesse para a pesquisa,
não deixei de realizar uma busca prévia por referências ou exemplos de pesquisas
semelhantes já realizadas que pudessem servir de parâmetros metodológicos para a
investigação. Embora não tenha encontrado uma pesquisa já realizada sobre o mesmo
objeto em um contexto semelhante, como resultados dessa busca, pude constatar que,
assim como apontado e discutido em diversos momentos da formação doutoral, as
pesquisas em educação no Brasil têm se desenvolvido geralmente a partir de uma crítica às
abordagens positivistas e cartesianas que ainda predominam em outras áreas de
conhecimento.
Nesse sentido, corroborando com tal perspectiva crítica, assumo, como
pressupostos inerentes ao percurso metodológico de produção e de análise dos dados desta
tese, que o fazer científico em educação, e particularmente em educação matemática,
também é possível a partir do reconhecimento da subjetividade e da não neutralidade do
pesquisador, do relativismo e da incomensurabilidade de conceitos e ideias originários de
contextos culturais distintos, da aproximação entre percepção e verdade, assumindo-se esta
última não mais como noção absolutamente objetiva de uma realidade interpretada.
Entendo que, assim fazendo, reduzimos o distanciamento que um certo
artificialismo do fazer científico de certas tradições produziu entre a ciência e a vida, entre
um discurso técnico-erudito e a linguagem-comum utilizada pelas pessoas no cotidiano, e
caminhamos rumo à aproximação entre ciência e senso-comum, conforme apontado por
Santos (2003), na pós-modernidade. Quanto a esse aspecto, ao buscar utilizar uma
linguagem-comum, o mais próxima possível daquela que utilizamos em nossas vidas
142
cotidianas, corroboro também com a perspectiva crítica de Paul Feyerabend, segundo o
qual:
Os intelectuais estão acostumados a lidar com colisões culturais em termos de debates e tendem a aprimorar esses debates imaginários até eles se tornarem tão abstratos e inacessíveis quanto seu próprio discurso. Procedendo dessa maneira, muitos deles afastaram-se da vida e se instalaram em uma área de conhecimento técnico. Já não estão mais interessados nessa ou naquela cultura ou nessa ou naquela pessoa; estão interessados em ideias, tais como a ideia da realidade, ou a ideia da verdade, ou a ideia da objetividade. E não se perguntam como as ideias estão relacionadas com a existência humana, e sim como elas se relacionam entre si. Perguntam, por exemplo, se a verdade é uma noção objetiva, se a prática científica é racional, ou como a realidade depende da percepção – em que “verdade”, “prática científica” e “percepção” são definidas de tal forma que essa definição impede sua pronta identificação com aquilo que ocorre na vida dos cientistas e de outros seres humanos comuns (FEYERABEND, 2010, p. 103).
Vale ressaltar que, na vivência-campo para produção de dados e no momento
seguinte de análise dos dados produzidos, não deixou de me preocupar o fato de que, como
membro externo à cultura do povo Paiter, meu fazer interpretativo sobre a prática
discursiva dos professores participantes da pesquisa não deveria ser assumido como o
único resultado possível da interpretação dos fenômenos observados, visto que os
pressupostos teóricos inerentes à minha formação acadêmica constrangem-me a não
assumir a existência de um ponto de observação supra-histórico sobre determinado
fenômeno a partir do qual uma verdade objetiva e universal possa ser avistada e
comunicada em uma tese de doutorado.
Considerando também que, nos espaços de produção de dados na pesquisa, os
encontros estabelecidos entre mim e os professores paiter estariam permeados por limites e
fronteiras identitárias em função das referências múltiplas que carregamos, provenientes de
diferentes realidades sócio-culturais, uma abordagem metodológica mais coerente seria
aquela concebida como um diálogo, e assim procurei fazer. Desse modo, ao longo do
desenvolvimento da pesquisa, nas convivências proporcionadas pela vivência-campo e na
realização das entrevistas semiestruturadas, a busca pelo diálogo foi sendo aprimorada, de
modo que se percebe nitidamente uma evolução ao longo das transcrições das entrevistas
entre uma postura inicialmente distanciada e presa a um roteiro de questões previamente
143
estabelecido, e uma postura mais livre e aberta, no sentido de um maior envolvimento com
as falas dos sujeitos, nas entrevistas finais.
Inicialmente, a condição de ser um pesquisador externo à cultura dos demais
participantes da pesquisa, mesmo que em um espaço de hibridação cultural como é o entre-
lugar em que se encontram os sujeitos, impôs-me a preocupação quanto ao risco de, em
meu fazer interpretativo, distorcer o sentido que os discursos presentes nas práticas
discursivas dos professores paiter assumiriam para eles mesmos, a partir de um ponto de
vista interno ao universo cultural dos Paiter. Percebi então, mais uma vez, a inevitável
condição de subjetividade que meu fazer interpretativo assumiria na interpretação dos
dados produzidos, visto que minha condição de “membro externo” à cultura paiter limitaria
uma completa compreensão das ideias e pressupostos presentes nas práticas discursivas
dos professores paiter enquanto “membros internos” ao universo cultural de seu povo.
Como medida de compensação a tal preocupação, e ciente de minhas limitações,
assumi como propósito em meu fazer interpretativo aproximar-me o máximo possível dos
sentidos que os dados produzidos assumiriam desde uma perspectiva interna ao universo
cultural dos professores paiter, sem contudo perder de vista minhas próprias referências
construídas ao longo da vida e nos estudos teóricos que resultaram nas seções iniciais dessa
tese. De certo modo, tal preocupação também se amenizou ao perceber que, mesmo para os
antropólogos, cuja formação lhes oferece condições mais plenas de compreensão de
fenômenos imersos em universos culturais distintos dos seus, não se é possível
desvencilhar completamente das amarras estabelecidas por seus próprios universos
culturais de origem, sob pena de, se assim o fizerem, verem inviabilizada a possibilidade
de comunicação de sua compreensão do outro, em contextos de fronteiras e limites
culturais e identitários.
São ilustrativas, nesse sentido, duas citações de Bauman (2012), relativamente
extensas, mas que passo a reproduzir a seguir porque me foram úteis na tentativa de
amenizar a preocupação acima exposta que me afligia no início do desenvolvimento da
pesquisa:
Aspirantes a antropólogo costumavam ser advertidos com a triste história de Frank Cushing, considerado o maior expert em cultura zuni. Quanto mais ele entendia os zunis, mais sentia que seus relatos, recebidos e louvados com gratidão pelos colegas antropólogos, distorciam a realidade zuni, em vez de transmiti-la. Ele começou a suspeitar de que toda tradução fosse uma deformação. Não se satisfazia com sua própria compreensão, não importa em que nível ela estava; a cada base que
144
alcançava, descobria outra por baixo. Em busca da tradução perfeita, Cushing decidiu vivenciar o universo zuni a partir “de dentro”. Conseguiu: os zuni o aceitaram como um deles e lhe concederam a maior honraria que um zuni pode obter, o cargo de arquissacerdote do Arco-Íris. Desde então, porém, Cushing não escreveu uma única frase de antropologia” (BAUMAN, 2012, p. 71).
O historiador ou o etnólogo são obrigados a tentar compreender ou o universo dos babilônios ou dos bororos ... como se o vivenciassem, e ... a evitar introduzir nele determinações que não existiam para essa cultura ... Mas não se pode parar por aí. O etnólogo que tenha assimilado tão profundamente a visão de mundo dos bororos a ponto de não poder continuar vendo o mundo de outra maneira não é mais um etnólogo, mas um bororo, e os bororos não são etnólogos. A raison d’être do etnólogo não é ser assimilado pelos bororos, mas explicar aos parisienses, aos londrinos e aos nova-iorquinos, em 1965, a outra humanidade representada pelos bororos. Portanto, ele só pode fazê-lo pela linguagem (CASTORIADIS, apud BAUMAN, 2012, p. 70).
É pois pela linguagem, em um movimento em direção à alteridade, que busquei me
aproximar ao máximo possível dos universos cultural e discursivo dos professores paiter,
sem contudo perder de vista as referências e, inclusive, os pré-conceitos que estão
impregnados em minha consciência e na constituição de meu ser enquanto estudante,
pesquisador e trabalhador em educação matemática na Amazônia. Certamente que, ao final
de toda a experiência de vida proporcionada pela pesquisa, muitos de meus pré-conceitos e
referências anteriores se viram alterados, revisitados, ressignificados, com reflexos diretos
na continuidade do meu fazer pedagógico no curso de formação de professores indígenas
na universidade.
Assim, partindo destes pressupostos, buscando responder as questões da
problemática inicial da pesquisa e tomando como objeto de estudo práticas discursivas de
professores com suas respectivas ideias e fundamentos subjacentes, contextualizados em
comunidades indígenas, bem como as relações que estas ideias estabelecem com a visão de
mundo, os interesses e as possíveis tensões culturais em que se encontram inseridos os
sujeitos, optei por desenvolver uma pesquisa qualitativa, de abordagem interpretativa.
Conforme Bogdan e Biklen (1994), a abordagem interpretativa baseia-se no
princípio de que a experiência humana é mediada pela interpretação, sendo que existem
múltiplas formas de interpretar as experiências, em função das interações entre os sujeitos,
de modo que a realidade é socialmente construída. Por sua vez, Erickson (1986) destaca
145
que as unidades próprias de estudo da abordagem interpretativa são grupos naturais ou
microculturas, cuja característica é a interação recorrente de seus membros para a
consecução de uma ação comum. No caso da presente pesquisa, trata-se de um grupo de
professores indígenas projetando a introdução do ensino de saberes e fazeres matemáticos
tradicionais em escolas de suas aldeias.
Dada a grande diversidade de povos indígenas no Brasil, o que proporciona a
existência de uma multiplicidade de saberes e fazeres matemáticos, é de se esperar que
cada experiência de introdução ao ensino de tais saberes e fazeres em escolas indígenas do
país configure-se em um caso inédito e particular. Assim, tomando por hipótese que os
princípios orientadores destas experiências sejam fundamentados e permeados pela visão
de mundo, o modo de produção material e de organização social de cada povo, adotou-se
para produção de dados nesta pesquisa o estudo de caso, considerando-o como um estudo
em profundidade de um fenômeno singular.
Embora se trate de uma pesquisa junto a um povo indígena, não se realizou uma
descrição densa da cultura geral do povo Paiter, tal como uma pesquisa etnográfica faria
em Antropologia. Estudos etnográficos nesse sentido já foram realizados junto aos Paiter
por Betty Mindlin (MINDLIN, 1985; 2006; 2007) e foram utilizados como referências para
o presente estudo no sentido de melhor compreendermos as formas de pensamento e de
ação dos professores paiter. Assim, o percurso metodológico empregado nessa pesquisa
direcionou-se particularmente à compreensão dos fenômenos práticos e teóricos
relacionados à introdução do ensino de saberes e fazeres matemáticos por professores
paiter, assumindo-se como lócus primário de investigação as práticas discursivas dos
professores paiter relativas ao tema e contextualizadas nas salas de aula das escolas nas
aldeias e na universidade.
Certamente que a percepção das atividades realizadas ou projetadas para o interior
das escolas, que por sua vez estão inseridas no cotidiano das aldeias, e a análise das
práticas discursivas dos professores perpassam pela compreensão de elementos simbólicos
externos à instituição escolar, não perceptíveis de imediato, carecendo portanto, conforme
discorre Geertz (2008), de uma descrição densa, por mais que tal ação exija de nós
pesquisadores com formação externa à Antropologia um exercício e um sobre-esforço na
tentativa de superar limitações que a falta de domínio de conceitos e teorias dessa área
ocasiona.
No intuito de superar a invisibilidade das atividades cotidianas, para se chegar a
uma compreensão de detalhes das ideias adotadas pelos professores paiter, proporcionando
146
assim um conhecimento dos significados locais que os acontecimentos possuem para as
pessoas envolvidas, busquei, na produção de dados, orientar-me por questionamentos tais
como: O que está acontecendo, especificamente, no contexto da educação escolar paiter
quanto às ações projetadas para a introdução do ensino de saberes e fazeres matemáticos
paiter? Que significados essas ações têm para os professores? Como essas ações vinculam-
se aos padrões de organização social do povo paiter e quais são os princípios culturais e
políticos que conduzem as ações dos professores?
Para a produção de dados, duas técnicas pertinentes ao estudo de caso foram
utilizadas, sendo observação participante, com registro de observações da vivência-campo,
e entrevista semiestruturada. Conforme André (2011), a observação participante exige a
interação constante entre o pesquisador, a situação e os sujeitos da pesquisa, e as
entrevistas têm a finalidade de esclarecer ou aprofundar aspectos da situação observada.
Desse modo, essas técnicas permitem “documentar o não documentado, isto é, desvelar os
encontros e desencontros que permeiam o dia-a-dia da prática (...), descrever as ações e
representações dos seus atores sociais, reconstruir sua linguagem, suas formas de
comunicação e os significados que são criados e recriados no cotidiano do seu fazer”
(ANDRÉ, 2011, p. 41).
Vale ressaltar que, em relação aos aspectos metodológicos envolvidos na produção
de dados da pesquisa e na organização dos dados produzidos para se proceder à análise,
buscamos nos inspirar em teses desenvolvidas em educação matemática no Brasil, com o
uso da técnica de entrevista, servindo-nos de inspiração quanto a esses aspectos
especialmente Wielewski (2005) e Miarka (2011).
6.1 Ações preliminares ao início da produção de dados
Embora já mantivesse com os professores participantes da pesquisa, desde o ano de
2011, uma relação advinda das atividades do curso de licenciatura na universidade, o que
implicava convivências no Campus da UNIR em Ji-Paraná durante as etapas presenciais do
curso, em atividades acadêmicas, como orientação de estudantes em projetos de iniciação
científica, trabalhos de conclusão de curso e projetos de extensão, procuramos apresentar
previamente o projeto de pesquisa de doutorado em cada uma das comunidades em que
residem e trabalham os professores, no início do ano de 2012, no intuito de obter o
consentimento coletivo e, em especial, das lideranças, para o desenvolvimento do trabalho
de campo. Assim, foram realizadas reuniões com lideranças e professores de cada
147
comunidade, nas quais foram apresentados os objetivos, a metodologia e um cronograma
prévio da pesquisa, obtendo-se assim o consentimento para o desenvolvimento das
atividades junto aos professores de cada aldeia.
O convite individual para participação na pesquisa foi feito a cada um dos dezessete
professores paiter matriculados no Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural
da UNIR, por meio da entrega de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(Apêndice A) e de um questionário de caracterização (Apêndice B). Dentre os convidados,
obtive o retorno de dez professores paiter que manifestaram disponibilidade e interesse em
participar da pesquisa.
O Quadro 4 abaixo apresenta informações referentes à caracterização dos sujeitos
participantes6 da pesquisa, quanto a idade, aldeia onde mora, clã, se cursou ou não o
projeto Açaí, tempo de docência em sala de aula e ano de ingresso na universidade.
Quadro 4 – Caracterização dos participantes da pesquisa
Sujeito Idade Aldeia Clã Cursou Projeto
Açaí
Tempo de docência
Ano de Ingresso na
Universidade PP1 28 Gapgir Gapgir Não 3 anos 2011
PP2 30 Lobó Kaban Não 12 anos 2009
PP3 29 Amaral Kaban Não 12 anos 2010
PP4 26 Joaquim Kaban Não 5 anos 2010
PP5 34 Gapgir Gapgir Sim 12 anos 2009
PP6 28 Paiter Gamep Não 3 anos 2010
PP7 34 Paiter Kaban Sim 11 anos 2009
PP8 41 Paiter Gamep Sim 22 anos 2010
PP9 34 Lapetanha Kaban Sim 14 anos 2010
PP10 37 Gapgir Kaban Sim 16 anos 2010
Conforme se observa no quadro acima, a idade média dos professores paiter
participantes da pesquisa é de 32 anos, o que significa que todos pertencem a uma geração
que nasceu após o contato com a sociedade envolvente. Esse dado tornou-se relevante para
6 Com vistas a preservar a identidade dos participantes, adotamos um código para substituir o nome de cada um deles no texto da tese. Assim, para cada um dos sujeitos, utilizamos o código PPi, onde as letras maiúsculas são as iniciais de Professor Paiter e o índice i indica a ordem de realização das entrevistas.
148
a pesquisa ao ajudar a compreender a importância atribuída pelos sujeitos aos mais velhos
das aldeias, ao refletirem sobre o ensino de saberes da tradição. Os professores paiter
julgam serem jovens inexperientes em relação à tradição de seu povo, por não terem vivido
no período anterior ao contato com a sociedade colonizadora.
Verifica-se que o tempo médio de atuação dos professores participantes em sala de
aula é de 11 anos. Destacam-se também os diferentes percursos de formação escolar
percorridos pelos sujeitos, sendo que metade deles teve uma formação docente inicial já no
Ensino Médio, no âmbito do Projeto Açaí, um projeto do governo estadual para formação
de professores indígenas em Rondônia, e os demais iniciaram sua formação docente na
Universidade, no âmbito da Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR.
6.2 Os espaços da produção de dados
Os espaços de produção de dados da pesquisa constituíram-se de seis aldeias do
povo Paiter (Gapgir, Lobó, Lapetanha, Joaquim, Amaral e Paiter) localizadas no interior da
Terra Indígena Sete de Setembro, onde moram e trabalham os professores participantes da
pesquisa; e o Campus de Ji-Paraná, da Universidade Federal de Rondônia, onde os
professores paiter são estudantes do Curso de Licenciatura em Educação Básica
Intercultural.
O acesso à Terra Indígena Sete de Setembro se dá a partir da cidade de Cacoal/RO,
através da Rodovia Estadual RO-486. Perpendicularmente a esta rodovia, partem várias
estradas vicinais, chamadas linhas, feitas de terra batida, que passam pelas sedes das
fazendas, sítios e chácaras dos colonos do entorno, e terminam dentro do território paiter.
Ao longo dessas linhas, encontram-se dispostas as atuais aldeias, assim distribuídas: duas
na Linha 7, duas na Linha 8, duas na Linha 9, duas na Linha 10, cinco na Linha 11, duas na
Linha 12, uma na Linha 13, duas na Linha 14, uma na Linha 15 e uma na estrada de
Pacarana. Percorremos três destas linhas para acessar as comunidades onde moram e
trabalham os professores sujeitos da pesquisa.
Para se chegar à Aldeia Gapgir a partir de Cacoal, percorrem-se 35 quilômetros de
asfalto, e então entra-se na Linha 14. São mais 15 quilômetros de estrada de chão, até a
divisa da última fazenda com a terra indígena. Surge então a primeira aldeia, a Aldeia da
Placa, em alusão à placa que indica o início da terra indígena. Anteriormente funcionava
no local um posto da FUNAI, devido a sua localização estratégica, esquina da Linha 14
com o travessão que dá acesso à Linha 15. Nessa aldeia, vivem 5 famílias, não há escola, e
149
na época da seca, período do ano compreendido entre os meses de junho e setembro,
surgem muitos problemas respiratórios, principalmente entre as crianças, em função da
grande quantidade de poeira provocada pelos veículos que passam pela estrada de chão, a
menos de 30 metros do pátio.
A partir da Aldeia da Placa, a Linha 14 margeia a cerca de arame liso de uma
grande área de pastagem, localizada dentro da terra indígena, anteriormente cultivada por
um colono invasor, e atualmente utilizada pelos próprios Paiter para a criação de gado de
corte. A partir da divisa, percorrem-se cerca de 2 quilômetros, sempre margeando a
pastagem, até chegar à Aldeia Gapgir, no final da Linha 14. A Aldeia Gapgir foi criada em
1971 e é a maior aldeia do território paiter, com 35 famílias. Há uma escola (Figura 5), um
posto de saúde, uma igreja e um campo de futebol. As casas, de madeira e cobertas de
telhas de amianto e de barro, concentram-se mais nas proximidades de um córrego, ao
Norte da aldeia, às margens do início da floresta. Há outras poucas casas mais afastadas,
dentro da área de pastagem, que ainda pertencem a famílias da aldeia. Moram nessa aldeia
três professores sujeitos dessa pesquisa, PP1, PP5 e PP10, sendo os dois primeiros do clã
Gapgir e o terceiro do clã Kaban.
Figura 5 – Escola da Aldeia Gapgir, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO.
Foto: Kécio Leite, 2013.
Atravessando a ponte sobre o pequeno córrego aos fundos da aldeia, e adentrando-
se cerca de 100 metros na floresta por meio de uma trilha, há uma grande clareira, no
150
centro da qual se erguem duas malocas tradicionais7, um espaço onde a aldeia realiza
atividades culturais, celebra datas festivas e outras comemorações. Cada maloca possui
apenas uma abertura de entrada, voltada para o centro do pátio. A maloca maior tem
aproximadamente 12 metros de comprimento, 8 metros de largura e 5 metros de altura. A
menor mede aproximadamente 8 metros de comprimento, 5 metros de largura e 4 metros
de altura. No interior de cada uma delas, dois esteios de madeira centrais e dois esteios
secundários dispostos de forma simétrica nos cantos da construção, unidos por travessões,
sustentam a cobertura e as laterais revestidas de palha, que formam uma elipse no encontro
com a superfície do chão de terra batida.
Outras quatro aldeias nas quais se desenvolveu a pesquisa ficam na Linha 11. Para
se chegar à primeira delas, a Aldeia Lobó, a partir de Cacoal, percorrem-se 26 quilômetros
de asfalto pela Rodovia Estadual RO-486, e então entra-se na Linha 11. São mais 15
quilômetros de estrada de chão, até o início da terra indígena. A partir da divisa,
percorrem-se três quilômetros por uma área de reflorestamento, e então chega-se à Aldeia
Lobó, criada em 1980, onde moram seis famílias. Há na aldeia uma pequena escola (Figura
6), construída em alvenaria, com uma sala de aula, onde dois professores indígenas, do clã
Kaban, um deles sujeito dessa pesquisa, dão aulas para duas turmas multisseriadas, com
alunos do primeiro ao terceiro ano, e do quarto ao quinto ano do Ensino Fundamental.
Figura 6 – Escola da Aldeia Lobó, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.
7 Em novembro de 2012, as malocas deixaram de ser utilizadas porque uma delas consumiu-se em fogo e a cobertura da outra ruiu pela ação natural do tempo. Em janeiro de 2014 construiu-se no local um espaço para reuniões, com cobertura de palha e laterais abertas.
151
Diariamente um ônibus escolar vai até a Aldeia Lobó buscar as crianças e jovens da
comunidade e de outras aldeias próximas para cursarem os anos finais do Ensino
Fundamental e o Ensino Médio em uma escola rural, distante cerca de 10 quilômetros da
terra indígena. Nessa escola rural, não há professores indígenas.
A partir da Aldeia Lobó, a estreita estrada torna-se de difícil acesso, principalmente
na estação das chuvas, que inclui os meses de novembro a abril. Indo em direção ao
interior do território paiter, percorrem-se mais 3 quilômetros, por entre áreas de floresta
densa e áreas em reflorestamento, e então se chega à Aldeia Lapetanha, criada em 1982,
onde vivem 13 famílias. Há na aldeia uma escola (Figura 7), construída em alvenaria, com
duas salas de aula e um alojamento para professores não indígenas, há também uma igreja
e um pequeno campo de futebol.
Figura 7 – Escola da Aldeia Lapetanha, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.
Na Aldeia Lapetanha, as casas são de madeira, cobertas com telhas de barro ou de
amianto. Na parte central da aldeia há uma maloca tradicional, porém não utilizada
atualmente. Moram nessa comunidade três professores indígenas, sendo um deles, PP9, do
clã Kaban e sujeito dessa pesquisa.
Percorrendo-se mais dois quilômetros à frente, passando por uma área de pastagem
para criação de gado de corte, encontra-se a aldeia Joaquim, onde vivem 6 famílias. Nessa
comunidade, criada em 1984, há uma escola construída nos moldes tradicionais, ao estilo
de uma maloca, com esteios de madeira e cobertura de palha (Figura 8). Dois professores
indígenas, do clã Kaban, moram ali, sendo que um deles, PP4, é sujeito dessa pesquisa.
152
Figura 8 – Escola da Aldeia Joaquim, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.
A partir da Aldeia Joaquim, indo-se na direção do interior da terra indígena, várias
picadas partem da estrada principal, inicialmente adentrando a área de floresta, mas
levando a grandes clareiras onde se cultivam roças de café e banana. Dessa área, sai a
maior parte da produção de banana que abastece os comércios dos municípios de Cacoal e
Ji-Paraná.
Percorrendo-se mais 2 quilômetros, chega-se à Aldeia Amaral, criada em 1985,
onde moram 20 famílias. Há uma escola (Figura 9), construída em alvenaria, com duas
salas de aula, onde atuam dois professores indígenas e três professoras não indígenas, um
posto de saúde, um grande campo de futebol e uma igreja. As casas são construídas em
madeira, com telhados em telha de barro ou de amianto. Há duas casas com cobertura
tradicional de palha.
Aos fundos da aldeia, separando as casas da floresta, destacam-se três construções
tradicionais, com coberturas de palha e laterais abertas, usadas para atividades culturais ou
grandes encontros religiosos. Sob uma das coberturas existem bancos de madeira fixados
ao chão, com capacidade para recepcionar até 300 pessoas em festas, reuniões ou
cerimônias religiosas. Nessa aldeia, mora um professor indígena, PP3, do clã Kaban,
sujeito dessa pesquisa.
153
Figura 9 – Escola da Aldeia Amaral, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.
A sexta aldeia na qual se desenvolveu parte da produção de dados na pesquisa
localiza-se na Linha 09, e para se chegar até ela, a partir de Cacoal, percorrem-se 18
quilômetros de asfalto pela Rodovia Estadual RO-486, e então entra-se na Linha 09. São
mais cerca de 16 quilômetros de estrada vicinal, até o início do território indígena, na
divisa com a última fazenda de criação de gado do entorno. A partir da divisa, percorrem-
se mais dois quilômetros por uma área de floresta, e então chega-se à Aldeia Paiter, criada
em 1984, onde moram 18 famílias. Há na aldeia uma escola (Figura 10), construída em
alvenaria, com duas salas de aula, onde atuam três sujeitos dessa pesquisa, sendo dois
professores paiter do clã Gamep, PP6 e PP8, e um professor paiter do clã Kaban, PP7. Na
escola dessa comunidade, os professores indígenas atuam em turmas multisseriadas, com
alunos do primeiro ao terceiro ano, e do quarto ao quinto ano do Ensino Fundamental, e
duas professoras não-indígenas dão aulas em turmas de sexto ao nono ano do Ensino
Fundamental.
Figura 10 – Escola da Aldeia Paiter, Terra Indígena Sete de Setembro, Cacoal/RO. Foto: Kécio Leite, 2013.
154
Em todas as aldeias dos professores participantes desta pesquisa, existe energia
elétrica 24 horas por dia, o que proporciona à maioria das famílias a possibilidade de terem
geladeiras, liquidificadores e outros equipamentos elétricos e eletrônicos. Nota-se que, em
cerca de um quarto das casas das comunidades, há instalada uma antena parabólica de
televisão, e é comum se ouvir dos pátios das casas o som dos aparelhos ligados nos
diferentes horários do dia, e à noite até cerca de 22:00 h.
6.3 Os dados produzidos
Os dados produzidos na pesquisa compreendem respostas dos participantes a
questionários (Apêndices B a D), anotações referentes à sistematização de observações nas
vivências-campo na aldeia e na universidade, e quinze entrevistas semiestruturadas,
realizadas individualmente nas aldeias e na universidade, que resultaram em 263
perguntas-respostas, gravadas em áudio e vídeo. As entrevistas foram transcritas e
enumeradas em função da ordem de realização. As transcrições estão dispostas no
Apêndice E.
As entrevistas semiestruturadas se deram em função da disponibilidade dos
entrevistados, e variaram em duração e quantidade de perguntas, visto que partiam de
pontos previamente considerados de interesse para a pesquisa, tais como os relativos a
concepções de educação, escola e etnomatemática, mas se desdobravam em questões não
previstas, na medida em que as próprias entrevistas ocorriam e iam abrangendo temas de
interesse para o pesquisador no momento mesmo da enunciação das respostas pelos
entrevistados. Dada minha maior presença em algumas aldeias, em razão da participação
em outras atividades institucionais demandadas pela atuação no curso de formação de
professores na universidade, tive a oportunidade de realizar mais de uma entrevista com
alguns dos professores paiter destas comunidades.
Com vistas a preservar a identidade dos participantes, adotamos um código para
substituir o nome de cada um deles no texto da tese. Assim, para cada um dos sujeitos,
utilizamos o código PPi, onde as letras maiúsculas são as iniciais de Professor Paiter e o
índice i indica a ordem de realização das entrevistas.
O Quadro 5 abaixo apresenta informações sobre as entrevistas realizadas na
produção de dados, na ordem de realização, indicando entrevistado, data, local e número
de perguntas.
155
Quadro 5 – Informações sobre as entrevistas realizadas
Entrevistado Data Local Nº perguntas PP1 21.05.2013 Aldeia Gapgir 7 PP1 21.05.2013 Aldeia Gapgir 9 PP2 22.05.2013 Aldeia Lobó 8 PP3 22.05.2013 Aldeia Amaral 14 PP4 22.05.2013 Aldeia Joaquim 9 PP5 01.06.2013 Aldeia Gapgir 7 PP6 11.10.2013 Aldeia Paiter 6 PP6 19.11.2013 Aldeia Paiter 29 PP7 19.11.2013 Aldeia Paiter 15 PP8 19.11.2013 Aldeia Paiter 7 PP9 24.07.2014 UNIR 32 PP3 19.08.2014 UNIR 14 PP4 01.09.2014 UNIR 58
PP10 03.09.2014 UNIR 24 PP1 09.09.2014 UNIR 24
Total 263
6.3 Categorias de análise de dados
Uma vez transcritas as entrevistas e iniciada a análise dos dados que resultou em
uma versão preliminar da tese, apresentada para avaliação no processo de qualificação
ocorrido em abril de 2014, sentimos a necessidade de eleger categorias de análise, também
por sugestão dos membros avaliadores da banca de qualificação, com o intuito de tornar
viável a análise do universo relativamente grande de dados produzidos, expandido ainda
mais a partir de então com a realização de novas entrevistas.
Assim, na busca de estabelecermos categorias de análise, não consideradas a priori
no início da pesquisa, direcionamos um olhar crítico para as questões que compõem a
problemática de investigação e percebemos que nelas se fazem presentes uma referência ao
espaço escolar na aldeia como lugar de projeção pelos professores paiter de uma relação
entre conhecimentos indígenas (saberes da tradição) e conhecimentos não-indígenas
(saberes escolares), motivados por ideias relacionadas à etnomatemática e à
interculturalidade. Emergiram assim, das questões da pesquisa, três categorias semânticas
inter-relacionadas, consideradas por nós a partir de então como categorias de análise dos
156
dados produzidos, a saber: Etnomatemática, Educação Escolar Indígena e
Interculturalidade.
Com o diagrama da Figura 11 abaixo, buscamos representar as relações
identificadas entre as categorias semânticas presentes nas questões iniciais da pesquisa,
possibilitando concebê-las como categorias de análise dos dados. Verifica-se inicialmente
uma relação entre saberes da tradição e saberes escolares, representada pela base do
triângulo inscrito na circunferência. Dessa relação, resulta o interesse quanto à projeção
pelos professores paiter de uma ressignificação do próprio espaço escolar a partir de ideias
relativas à etnomatemática, representada no diagrama como o terceiro vértice do triângulo,
concebendo-se assim a possibilidade da origem de uma nova concepção de educação
escolar indígena, um espaço escolar ressignificado no interior do triângulo. Todavia, a
ressignificação da escola na aldeia é permeada de questões que extrapolam o espaço
escolar, ligando-se a questões de identidade cultural, mudanças culturais, conflitos com a
sociedade colonizadora e outras tematizações características da interculturalidade,
representada então no diagrama pelo círculo a envolver o triângulo. Daí que as categorias
Educação Escolar Indígena, Etnomatemática e Interculturalidade presentes inicialmente
nas questões da problemática da pesquisa guardam entre si estreitas relações, podendo ser
assumidas como categorias de análise no universo de dados produzidos.
Figura 11 – Diagrama de representação das relações entre as categorias de análise de
dados
Uma vez estabelecidas as categorias de análise e tomando-as por referência,
passamos à seleção e organização dos dados produzidos. Para tanto, adotamos a
Espaço Escolar
Etnomatemática
Conhecimento Indígena (Saberes da Tradição)
Conhecimento Não-Indígena (Saberes Escolares)
Interculturalidade
157
denominação Unidade Textual para cada conjunto pergunta-resposta das questões das
entrevistas transcritas, atribuindo a cada uma delas um código indicado por EiQj, onde E
refere-se a entrevista e Q a questão, sendo os índices i e j indicadores da ordem da
entrevista e do número da questão da entrevista, respectivamente. Assim, por exemplo, a
unidade textual indicada por E7Q3 refere-se à terceira questão da sétima entrevista,
podendo ser assim consultada na transcrição disponível nos apêndices.
Ao iniciarmos a categorização dos dados a partir das categorias de análise,
percebemos que emergiam das unidades textuais, associadas a cada categoria de análise,
subcategorias semânticas que possibilitariam então organizar os dados para análise em
blocos temáticos. Decidimos então denominar estas subcategorias semânticas de
tematizações das categorias de análise, possibilitando assim concebermos blocos de
unidades textuais que se faziam presentes nas transcrições de entrevistas com diferentes
sujeitos, mas interconectadas por tematizações comuns e selecionadas do universo de
dados produzidos através da aplicação das categorias de análise.
Assim, por exemplo, as unidades textuais selecionadas a partir da categoria de
análise etnomatemática foram organizadas em três blocos, considerando as tematizações
Concepções de etnomatemática, Como deve ser o ensino de matemática na escola da
aldeia, e Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola.
A aplicação das categorias de análise na seleção das unidades textuais para análise
resultou em um movimento de redução do universo de dados produzidos, funcionando
como um filtro temático a posteriori. Desse modo, das 263 unidades textuais originalmente
presentes nas transcrições, foram selecionadas 77 para análise, distribuídas em três blocos
temáticos relacionados à categoria etnomatemática, sete blocos temáticos relacionados à
categoria educação escolar indígena, e três blocos temáticos relacionados à categoria
interculturalidade.
As demais unidades textuais presentes nas transcrições das entrevistas e não
selecionadas pela metodologia acima exposta não foram previamente descartadas, sendo
reservadas para ilustrações e contextualizações de falas necessárias durante a elaboração da
síntese final da análise dos dados.
Conforme pode se verificar no Quadro 6 abaixo, a quantidade de unidades textuais
selecionadas para análise variou entre uma categoria e outra, ou mesmo entre os sujeitos,
em função da dinâmica própria das entrevistas semiestruturadas, que possibilita formular
questões aos entrevistados em função das próprias respostas que vão sendo enunciadas no
momento da entrevista, de modo que ao final tem-se uma quantidade de perguntas
158
diferente para cada entrevistado, tendo cada entrevista abrangido com diferentes
intensidades e recorrências os pontos temáticos inicialmente selecionados para formulação
das perguntas.
A maior ou menor disponibilidade dos sujeitos para participação das entrevistas foi
outro fator que contribuiu para a diferença na quantidade de unidades textuais selecionadas
por participante. Assim, verifica-se que os participantes que puderam ser entrevistados
mais de uma vez tiveram mais unidades textuais selecionadas, uma vez que foi
oportunizado ao pesquisador abranger, com mais de uma entrevista, um espectro maior de
tematizações das categorias de análise utilizadas para seleção dos dados a posteriori.
Uma vez selecionadas as unidades textuais do universo de dados produzidos,
iniciamos a análise propriamente dita, tendo sido fundamental para isso a formulação de
um procedimento, como técnica de análise, tomando por base o Percurso Gerativo de
Sentido da semiótica discursiva, também conhecida como semiótica greimasiana. Vale
ressaltar que, para a elaboração do procedimento de análise de dados, foi decisiva e
fundamental a presença de meu orientador, professor Erasmo Borges, quanto à forma
pensada para a realização da análise, sobre a qual busco explicitar os detalhes a seguir.
Quadro 6 – Unidades textuais selecionadas por categorias de análise, tematizações e sujeitos
CATEGORIAS DE ANÁLISE
SUJEITOS
TEMATIZAÇÕES
PP1 PP4 PP9 PP10 PP3 PP7 PP6 PP5 PP2 TOTAL
Etnomatemática
1. Concepções de etnomatemática E1Q2 E2Q8
E5Q6 E11Q17 E14Q14 E4Q10 E9Q14 E8Q16 E6Q3 E3Q3 10
2. Como deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia
E13Q9 E11Q26 E14Q22 3
3. Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola
E1Q4 E5Q8 E13Q1
E9Q15 E8Q17 E3Q5 6
Educação Escolar Indígena
4. Concepções de educação E2Q6 E11Q15 E14Q12 E4Q9 E9Q8 E7Q5 6
5. Concepções de escola E2Q1 E5Q1 E11Q16 E14Q13 E4Q5 E9Q9 E8Q22 E6Q6 E3Q2 9
6. Importância da escola na aldeia E2Q3
E15Q16 E5Q3 E11Q20 E14Q17
E4Q6
E12Q1 E9Q10 8
7. Importância dos velhos para o ensino de saberes da tradição
E1Q5 E15Q15
E13Q6 E11Q19 E14Q16 E9Q6 E8Q20 E6Q5 8
8. O que deve ser ensinado na escola da aldeia
E2Q4 E13Q20 E11Q25 E4Q7 4
9. Motivações para ser professor E2Q7 E5Q5 E14Q3 E4Q3 E7Q1 E3Q1 6
10. Papel do professor na aldeia E15Q22 E13Q48 E11Q30 E14Q23 E12Q13 5
Interculturalidade
11. Estado da cultura paiter em cem anos
E15Q23 E13Q53 E11Q31 E14Q24 E12Q14 5
12. Relação entre educação escolar na aldeia e identidade cultural
E15Q5 E15Q18
E13Q32 E11Q28 4
13. Mudanças na educação do povo E13Q15 E11Q22 E14Q20 3
TOTAL 15 13 11 10 9 6 6 3 4 77
6.5 O Percurso Gerativo de Sentido como simulacro metodológico
Desde a tentativa inicial de análise parcial de dados que resultou em uma versão
preliminar da tese apresentada na qualificação, passou a ser uma preocupação constante na
continuidade da construção da tese a escolha de uma técnica de análise de dados que
possibilitasse um fazer interpretativo sobre o universo de dados produzidos na pesquisa.
Ao cursar no doutorado uma disciplina eletiva de semiótica oferecida por meu
orientador, professor Erasmo Borges, em abril/maio de 2014, entrei em contato com o
Percurso Gerativo de Sentido da semiótica greimasiana8, considerado como um simulacro
metodológico na análise de textos. A partir dali, vislumbramos uma possibilidade de
elaborarmos uma técnica de análise de dados para a pesquisa de doutorado em andamento
com aporte na semiótica greimasiana, e inspirados pelo Percurso Gerativo de Sentido.
Assim, busco explicar abaixo os principais conceitos sobre os quais nos apoiamos e como
construímos, a partir deles, a técnica empregada na análise dos dados produzidos na
pesquisa.
A semiótica greimasiana é entendida como uma teoria geral da significação, que
busca explicitar as condições de apreensão e de produção de sentido em um texto. O texto,
nesse caso, não é apenas o verbal escrito (linguístico), mas pode ser uma fotografia
(visual), uma música (sonoro), um filme (sincrético) ou qualquer outro elemento que se
configura como uma tessitura de relações que dão origem a significações, e que, portanto,
suporta um conteúdo que pode ser interpretado (FIORIN, 2008). Texto é entendido assim
como uma unidade resultante da união de dois planos, um plano de expressão, relativo à
forma ou à estética, que serve de suporte a um conteúdo, e um plano de conteúdo, no qual
se encontram estruturas discursivas que suportam o discurso.
Assim, na busca de se compreender a produção e de se gerar uma interpretação do
significado de um texto, a semiótica greimasiana considera como unidade de análise o
texto como um todo e não apenas partes isoladas, como frases ou sentenças, propondo o
Percurso Gerativo de Sentido como um simulacro metodológico a ser aplicado para se
chegar ao discurso presente no plano de conteúdo. De forma geral, na análise e
interpretação de um texto, o Percurso Gerativo de Sentido “vai do mais simples e mais
abstrato ao mais complexo e concreto”, pressupondo-se que o discurso é “como um
dispositivo em forma de ‘massa folheada’, constituído de certo número de níveis de
8 Em alusão a Algirdas Julien Greimas, nascido na Rússia em 1917, foi um dos teóricos fundadores da semiótica discursiva. Faleceu em 1992, em Paris.
161
profundidade superpostos, dos quais somente o último, o mais superficial, poderá receber
uma representação” (GREIMAS; COURTÉS, 2012, p. 145).
A partir dessa definição mais ampla de texto concebida pela semiótica greimasiana,
vislumbramos a possibilidade de considerarmos como textos as respostas atribuídas pelos
professores paiter nas entrevistas gravadas e transcritas no decorrer da pesquisa. Portanto,
passamos a considerar as respostas dos professores como unidades passíveis de serem
interpretadas com aporte no Percurso Gerativo de Sentido para se chegar ao discurso
presente em cada uma delas, que seriam, no caso concreto da pesquisa, as ideias e
pressupostos dos próprios sujeitos participantes expressos em suas práticas discursivas.
Ao se considerar o Percurso Gerativo de Sentido com vistas à identificação do
discurso, o texto é analisado no plano de conteúdo em três níveis: fundamental, narrativo e
discursivo. Como unidades das estruturas elementares da significação no nível
fundamental do plano de conteúdo, encontram-se as categorias semânticas, que não
aparecem necessariamente de forma escrita no texto dado seu caráter abstrato, podendo
assumir um valor positivo ou um valor negativo. No primeiro caso, diz-se que a categoria
semântica é eufórica, no segundo, disfórica. Assim, define-se euforia como “o termo
positivo da categoria tímica que serve para valorizar os microuniversos semânticos”
(GREIMAS; COURTÉS, 2012, p. 192). Por sua vez, a disforia é definida como “o termo
negativo da categoria tímica, que serve para valorizar os microuniversos semânticos,
instituindo valores negativos” (idem, p. 149).
Uma vez que as categorias semânticas eufóricas e disfóricas estejam identificadas
no nível fundamental do plano de conteúdo, busca-se identificar entre elas a mais geral, a
fim de se identificar a oposição semântica fundamental, considerada como eixo central ou
fio condutor para a continuidade da análise e interpretação do texto. Assim, considera-se
que todo texto estrutura-se a partir de uma oposição semântica fundamental passível de ser
identificada no nível fundamental do plano de conteúdo.
No caso das práticas discursivas dos professores paiter registradas em entrevistas,
transcritas e consideradas como texto, percebemos que, por exemplo, no nível fundamental
do plano de conteúdo, as categorias tradição, interior e particularidade assumem valores
positivos, sendo portanto eufóricas, enquanto as categorias modernidade, exterior e
generalidade são disfóricas, porque assumem valores negativos na enunciação. Assim,
algumas das oposições semânticas fundamentais identificadas como eixos centrais nas
respostas dadas pelos sujeitos são tradição vs modernidade, interior vs exterior e
particularidade vs generalidade. Observa-se ainda que algumas categorias semânticas
162
podem estar escritas ou apenas subentendidas no texto, dado o seu caráter abstrato. Por
exemplo, as expressões “de cada povo”, “de cada sociedade”, “de cada cultura”, “de cada
contexto” presentes na transcrição de um entrevista pode ser relacionada à categoria
semântica particularidade, oposta portanto à categoria generalidade, sem que se tenha
necessariamente estas duas categorias expressas de forma escrita no texto.
Após a identificação da oposição semântica fundamental, o próximo passo no
Percurso Gerativo de Sentido é a análise do texto no nível narrativo do plano de conteúdo.
Neste nível, busca-se reconstruir a narrativa presente no texto com base nas categorias
semânticas e na oposição semântica fundamental identificadas no nível fundamental, com
o intuito de identificar como o sujeito da enunciação faz para enunciar o que diz. Nessa
reconstrução da narrativa, considera-se que sempre está presente no texto um fazer
persuasivo do enunciador no sentido de levar o enunciatário a crer no conteúdo que está
presente na enunciação. Para tanto, o enunciador lança mão de recursos como ênfases,
reiterações e mecanismos de manipulação tais como provocação, sedução, intimidação e
tentação que passam a permear o fazer interpretativo do enunciatário.
Assim, no contexto das práticas discursivas dos professores paiter, ao
considerarmos as respostas constantes das entrevistas como textos, verificamos que no
nível narrativo as categorias semânticas eufóricas são usadas pelos sujeitos, por exemplo,
para enfatizar o valor da tradição, da cultura e da identidade do povo Paiter, de forma
reiterada, e as categorias semânticas disfóricas são usadas para enfatizar os riscos da
modernidade, da troca de identidade, do ofuscamento da tradição. Tais formas de organizar
a narrativa dizem respeito ao fazer persuasivo dos sujeitos na enunciação de respostas às
questões das entrevistas realizadas na pesquisa, e estão relacionadas ao “como fazem para
dizerem o que dizem”.
Como última instância do Percurso Gerativo de Sentido, busca-se analisar o texto
no nível discursivo do plano de conteúdo. Esse é o nível mais superficial, no entanto o
mais complexo e concreto do percurso. Neste terceiro e último nível do percurso, busca-se
identificar o sentindo ou o discurso presente no texto como concretização dos conteúdos
abstratos identificados como categorias semânticas e oposição semântica fundamental no
nível fundamental, e como conteúdo narrativo também abstrato e permeado de recursos
persuasivos no nível narrativo. Assim, o discurso presente no texto é identificado através
de um fazer interpretativo final do enunciatário, que se concretiza por meio de um juízo
epistêmico emitido sobre os enunciados do enunciador, considerando-se o juízo epistêmico
como uma assunção do numenal a partir do fenomenal interpretado, isto é, por meio dele o
163
enunciado deixa o plano do parecer ser e é assumido no plano do ser (GREIMAS;
COURTÉS, 2012). Assim, conforme Barros (2005, p. 53), “o discurso nada mais é,
portanto, que a narrativa ‘enriquecida’”, ou, em outros termos, a moral da história, a
conclusão da narrativa, ou simplesmente o sentido interpretado do texto.
No caso empírico das práticas discursivas dos sujeitos participantes da pesquisa, ao
considerarmos como textos as respostas constantes das transcrições das entrevistas,
vislumbramos a possibilidade de identificarmos as ideias e pressupostos inerentes às
questões da problemática inicial da pesquisa como discursos dos professores paiter
presentes na enunciação das respostas às questões das entrevistas, passíveis de serem
identificados portanto através de uma técnica elaborada por analogia ao Percurso Gerativo
de Sentido da semiótica greimasiana.
Percebemos em suma que o Percurso Gerativo de Sentido, ao considerar os três
níveis do plano de conteúdo, possibilita uma interpretação gradativa do texto, partindo de
estruturas elementares no nível fundamental, passando por estruturas narrativas no nível
narrativo até chegar ao sentido final do texto, no nível discursivo. Não se trata certamente
de uma técnica puramente objetiva e livre de toda e qualquer contingência na interpretação
de um texto, visto que todo fazer interpretativo depende relativamente do contexto sócio-
histórico em que se encontram enunciador e enunciatário, assim como depende
sensivelmente do repertório de quem busca interpretar o texto. Nesse sentido, conforme
Fiorin (1997, p. 31),
[...] o percurso gerativo é um modelo que simula a produção e a interpretação do significado, do conteúdo. Na verdade, ele não descreve a maneira real de fabricar um discurso, mas constitui, para usar as palavras de Denis Bertrand, um “simulacro metodológico”, que nos permite ler, com mais eficácia, um texto.
Assim, a partir das potencialidades por nós identificadas no Percurso Gerativo de
Sentido como inspiração para a análise dos dados produzidos no decorrer da pesquisa,
passamos ao próximo passo, que foi elaborar um quadro que contemplasse os três níveis de
análise do plano de conteúdo, os elementos de análise de cada nível e o próprio texto a ser
analisado. Não tendo encontrado um dispositivo equivalente na literatura para isso,
formulamos o quadro apresentado a seguir.
164
6.6 Dispositivo prático para análise de unidades textuais
A fim de que fosse possível analisar, com aporte na semiótica greimasiana e por
analogia ao Percurso Gerativo de Sentido, cada uma as 77 unidades textuais selecionadas
do universo de dados produzidos na pesquisa a partir das três categorias de análise
estabelecidas a posteriori, no intuito de identificar os discursos dos professores paiter
presentes nas respostas por eles enunciadas nas entrevistas, concebemos um quadro
composto por duas colunas e oito linhas.
A primeira linha foi destinada à identificação das unidades textuais, de acordo com
o código atribuído previamente a cada uma delas. Na segunda linha, apresentamos a
pergunta realizada ao entrevistado, que é submetida a uma autoanálise na terceira linha,
com o intuito principal de identificar o fazer persuasivo do pesquisador inserido na
enunciação. Está presente na decisão de contemplar no quadro de análise essa autoanálise o
pressuposto por nós assumido a partir da semiótica greimasiana de que todo ato de
comunicação envolve um fazer persuasivo e um fazer interpretativo. Assim, entendemos
que a forma de enunciar a pergunta em uma entrevista pode interferir diretamente na
resposta obtida, na medida em que o fazer persuasivo do pesquisador pode induzir o fazer
interpretativo do entrevistado, direcionando a resposta formulada para certas perspectivas
que correspondem às expectativas prévias do próprio pesquisador. Em outros termos, pode
induzir o entrevistado a dizer exatamente o que o pesquisador desejaria ouvir.
Antes de servir como critério de validação ou não dos dados produzidos, esta
autoanálise da pergunta a posteriori serve para ilustrar o fato de que, em pesquisas
qualitativas como esta, estabelecem-se também intersubjetividades entre os participantes,
de modo que o próprio pesquisador contribui com suas expectativas pessoais para o teor e
o conteúdo dos dados gerados na pesquisa. Trata-se da não neutralidade do pesquisador e
da subjetividade inerente à produção e à análise de dados na pesquisa qualitativa.
A quarta linha do quadro de análise destina-se à resposta do entrevistado,
considerada então como texto, que é analisado inicialmente no nível fundamental do plano
de conteúdo, para identificação de categorias semânticas eufóricas e disfóricas que, por sua
vez, são apresentadas na quinta linha. No processo de identificação das categorias
semânticas no nível fundamental, são estabelecidas marcas no plano de expressão do texto,
ressaltando palavras e expressões a partir das quais as categorias foram identificadas.
Assim, por exemplo, a partir das expressões “não vai existir mais” e “valorizarem a
cultura” presentes na resposta enunciada por PP9 na unidade textual E11Q31, foram
165
identificadas as categorias semânticas “mudança” e “resistência”, respectivamente, sendo a
primeira considerada disfórica (negativa), e a segunda eufórica (positiva).
Na sexta linha, apresenta-se a oposição semântica fundamental entre duas
categorias semânticas mais gerais identificadas na linha anterior, que será considerada
como eixo central da narrativa e fio condutor para se chegar ao discurso presente no texto.
Passa-se então para o nível narrativo do plano de conteúdo, reconstruindo a
narrativa na sétima linha, a partir das categorias semânticas e da oposição semântica
fundamental identificadas no nível fundamental. Nesta linha, busca-se explicar como ou
por que os sujeitos da enunciação dizem o que estão dizendo.
Finalmente, considerando o conjunto das informações constantes das linhas
anteriores, apresenta-se na oitava linha a análise do texto no nível discursivo, a partir de
um juízo epistêmico final através do qual o conteúdo enunciado na resposta do
entrevistado deixa o plano do parecer ser e é assumido pelo pesquisador no plano do ser
como discurso.
Apresentamos na Figura 12 abaixo o exemplo de análise de uma unidade textual a
partir do quadro de análise concebido com aporte na semiótica greimasiana e tomando por
analogia o Percurso Gerativo de Sentido.
UNIDADE TEXTUAL
E4Q10
KÉCIO Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nesta questão, com o objetivo de conhecer a concepção de etnomatemática de PP3, introduzo a pergunta a partir de uma contextualização referente à experiência de formação do entrevistado no curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Assim, direciono PP3 a emitir uma definição de etnomatemática a partir de suas referências acadêmicas, uma vez que eu sei que ele tem estudado referências bibliográficas que tratam de etnomatemática.
PP3
Etnomatemática para mim é... cada povo tem sua matemática, tem sua forma de contar, tem sua forma de medir. Então, para mim, etnomatemática é a matemática do povo, é a matemática de cada etnia, de cada povo que tem sua forma de contagem, sua forma de medir, sua forma de conhecer outros tipos de contagem.
CATEGORIAS SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Povo, Etnia, Cultura, Conhecimento.
Disfórica: Generalidade
OPOSIÇÃO SEMÂNTICA
Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP3 apresenta uma concepção de etnomatemática a partir da oposição particularidade vs generalidade. De forma geral, etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em todos os povos e culturas. Assim, para PP3, em uma dimensão geral, etnomatemática é a matemática que todos os povos ou etnias possuem relacionada a formas de conhecer, de medir, de contar. Por outro lado, a particularidade se faz presente na enunciação de PP3 ao destacar a singularidade da matemática de cada povo ou etnia. Verifica-se ao final da resposta de PP3 a indicação de que a etnomatemática também contempla formas de conhecer o outro, no sentido de ir além das formas de contar e medir de um povo em particular.
DISCURSO Etnomatemática é a matemática de povos ou etnias em geral e está relacionada a formas particulares de contar, medir e conhecer de cada povo ou etnia.
Figura 12 – Quadro concebido para análise semiótica de unidades textuais
O texto
Nível fundamental
Nível narrativo
Nível discursivo
166
6.7 O movimento de redução dos dados
Uma vez concebido o quadro como dispositivo para análise semiótica das unidades
textuais selecionadas do universo de dados produzidos, procedemos à identificação dos
discursos dos professores paiter presentes em cada unidade textual. Em seguida, reunimos
os discursos identificados em blocos de discursos, denominados Sínteses de Discursos,
organizados de acordo com as treze tematizações das categorias da análise a fim de realizar
uma análise final dos dados, em direção à elaboração de respostas às questões da
problemática inicial da pesquisa.
Desse modo, no percurso metodológico referente à análise dos dados produzidos na
pesquisa, ocorreu um movimento de redução de dados, de modo que as 263 unidades
textuais originalmente produzidas se reduziram a 77 unidades textuais após a seleção por
aplicação das categorias de análise e, finalmente, a 13 sínteses de discursos, a partir das
quais buscou-se elaborar uma síntese, como fazer interpretativo final sobre os dados, na
última seção da tese.
As duas próximas seções da tese contemplam, respectivamente, a análise das 77
unidades textuais selecionadas do universo de dados produzidos e a análise das 13 sínteses
de discursos resultantes.
167
7 UM FAZER INTERPRETATIVO SOBRE OS DADOS PRODUZIDOS: ANÁLISE
SEMIÓTICA DE UNIDADES TEXTUAIS
Nesta seção, apresentamos a análise semiótica de 77 unidades textuais selecionadas
do universo de dados produzidos ao longo da pesquisa. As unidades textuais foram
selecionadas a partir de três categorias de análise estabelecidas a posteriori, e agrupadas
em treze tematizações das categorias de análise, conforme informações constantes no
Quadro 6 da seção anterior.
Cada unidade textual, composta de uma pergunta enunciada pelo pesquisador e a
respectiva resposta dada pelo entrevistado, é inserida em um quadro de análise apresentado
na seção anterior, concebido como um dispositivo auxiliar para o fazer interpretativo do
pesquisador. Realiza-se então uma autoanálise da pergunta, visando identificar a posteriori
a intensão e o fazer persuasivo do pesquisador no ato de comunicação durante a realização
da entrevista. Segue-se uma análise da resposta do entrevistado, considerando-a como um
texto. Assim, com aporte no Percurso Gerativo de Sentido da semiótica greimasiana,
analisa-se o texto em três níveis do plano de conteúdo: fundamental, narrativo e discursivo.
No nível fundamental, são identificadas as categorias semânticas eufóricas e
disfóricas e a oposição semântica fundamental que se constitui como eixo central de
estruturação do texto. No processo de identificação das categorias semânticas, termos ou
expressões são destacados, resultando em marcas (grifos) sobre o texto em seu plano de
expressão. No nível narrativo do plano de conteúdo, busca-se reconstruir a narrativa a
partir das categorias semânticas identificas, destacando-se como e por que o sujeito da
enunciação diz o diz no texto.
No terceiro e último nível, identifica-se o discurso presente no texto, considerado
no contexto da pesquisa como ideias e pressupostos presentes nas práticas discursivas dos
professores paiter em cada unidade textual. Na seção seguinte da tese, os discursos
identificados em cada unidade textual serão reunidos para comporem sínteses de discursos
a partir dos quais se fará uma análise final, relacionando-a às questões da problemática
inicial da pesquisa.
168
7.1 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de
etnomatemática da categoria de análise etnomatemática
Quadro 7 – Análise semiótica da unidade textual E1Q2
UNIDADE
TEXTUAL E1Q2
KÉCIO
No curso de licenciatura, você está tendo acesso a textos sobre
etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você
define etnomatemática? O que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nesta pergunta, introduzo a questão da entrevista fazendo
referência ao curso de licenciatura. Isso induz (fazer persuasivo) o
entrevistado a responder a pergunta a partir de uma perspectiva
acadêmica, a partir de referências construídas nos estudos na
universidade.
PP1
A etnomatemática eu entendo que é um conhecimento de povos em
relação à matemática, ou seja, cada povo tem a sua forma,
expressão e meios para fazer contagem, e para fazer formas
geométricas, medidas e tudo mais. Cada povo tem seu
conhecimento. Então, a etnomatemática, cada povo... A
etnomatemática eu entendo que é... cada povo, cada cultura, cada
etnia tem sua forma de expressão e conhecimento ao longo do
tempo. Adquiriram esses conhecimentos por meio de necessidades,
buscando no seu dia a dia, nas atividades. Então, nessas atividades
sempre há formas de trabalhar essas atividades em termos
matemáticos. Então a etnomatemática nada mais é para mim do que
a matemática de cada povo, de acordo com sua cultura e
conhecimento ao longo do tempo, construído ao longo do tempo,
dos anos milenares.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Povo, Particularidade, Diferença,
Tradição, Cultura, Etnia, Cotidiano, Interior, Identidade.
Disfóricas: Generalidade, Exterior.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
169
ANÁLISE
A concepção de etnomatemática enunciada por PP1 baseia-se na
oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele define
etnomatemática como conhecimento matemático de povos em
geral, sendo um conhecimento diferente em relação à tradição e à
cultura particular de cada povo ou etnia, de acordo suas
necessidades cotidianas.
DISCURSO
Etnomatemática é um conhecimento matemático que os povos em
geral têm, sendo um conhecimento matemático diferente e
particular de cada povo, de acordo com sua cultura e suas
necessidades cotidianas.
Quadro 8 – Análise semiótica da unidade textual E2Q8
UNIDADE
TEXTUAL E2Q8
KÉCIO O que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, solicito a PP1 uma definição de etnomatemática,
sem indicar onde a definição deve ser ancorada. Assim, o
entrevistado fica livre para emitir uma resposta pessoal, com base
em suas concepções individuais, ou buscar apoio em perspectivas
acadêmicas que permeiam sua formação universitária.
PP1
Etnomatemática é saberes, fazeres, conhecimentos... cada atividade
cotidiana de cada povo, de cada etnia no mundo, que se usa como
contagem, medição de tempo, se localizar no tempo. Então,
etnomatemática para mim é saberes e fazeres matemáticos de cada
povo, de cada etnia, de acordo com sua cultura, de acordo com as
suas tradições, de acordo com suas atividades cotidianas. Então, a
exemplo, vamos dizer, a etnomatemática paiter de acordo com a
escolha da roça, como que é, em que tempo, como que seria a área,
que é diferente de uma matemática do engenheiro civil. Então, quer
dizer, a etnomatemática é um conhecimento matemático de acordo
com cada povo, de acordo com cada cultura, de cada sociedade.
CATEGORIAS Eufóricas: Conhecimento, Cotidiano, Povo, Particularidade, Etnia,
170
SEMÂNTICAS Cultura, Tradição, Paiter, Diferença.
Disfóricas: Mundo, Generalidade, Matemática.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção de etnomatemática enunciada por PP1 baseia-se na
oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, a
definição dada por PP1 parte de uma perspectiva de
etnomatemática enquanto conjunto geral de conhecimentos
matemáticos existentes no mundo, não restrito a apenas um povo
ou cultura. Por outro lado, PP1 particulariza a etnomatemática
como um conhecimento matemático específico de cada povo,
relacionado às tradições, à cultura e ao cotidiano de cada etnia ou
sociedade. Em particular, enfatiza a diferença entre a
etnomatemática de seu povo, o povo Paiter, e a matemática do
engenheiro civil.
DISCURSO
Etnomatemática é o conjunto de conhecimentos matemáticos
existentes em todo o mundo, sendo um conhecimento diferente em
cada cultura, de acordo com as tradições e o cotidiano de cada
povo, etnia ou sociedade.
Quadro 9 – Análise semiótica da unidade textual E14Q14
UNIDADE
TEXTUAL E14Q14
KÉCIO
Ao longo do curso de licenciatura, vocês tiveram acesso a vários
textos, discutiram, debateram, estudaram, escreveram sobre
etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você
define etnomatemática? O que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nesta questão, antes de solicitar a PP10 uma definição de
etnomatemática, busco contextualizar a pergunta, direcionando o
entrevistado a emitir uma definição de etnomatemática a partir de
referências acadêmicas (licenciatura), uma vez que eu sei que PP10 é
acadêmico universitário, e que tem estudado referências bibliográficas
171
relacionadas à etnomatemática.
PP10
Etnomatemática nos traz bastante pensamento de falar. Pode ser uma
contagem da minha maneira do povo Paiter, como eles contavam,
como mediam o espaço, como eles tinham cálculo de fazer uma
maloca, uma casa, na plantação também, e medição de tempo,
contagem do tempo, qual tempo a gente pode fazer derrubada,
plantação, colheita. Então, etnomatemática está na vida, no dia-a-dia
de cada cultura diferente, de cada povo.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Povo, Tradição, Cotidiano, Cultura.
Disfórica: Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A definição de etnomatemática enunciada por PP10 se dá a partir da
oposição particularidade vs generalidade. Assim, no plano geral,
etnomatemática é algo inerente à vida e à cultura de cada povo. No
plano específico, por sua vez, a etnomatemática é a maneira particular
de cada povo contar, medir e realizar cálculos relacionados ao
cotidiano no interior de cada cultura.
DISCURSO
Etnomatemática é algo inerente à vida humana, sendo a maneira de
cada povo contar, medir e realizar cálculos relacionados a suas
atividades cotidianas.
Quadro 10 – Análise semiótica da unidade textual E11Q17
UNIDADE
TEXTUAL E11Q17
KÉCIO
Também considerando sua experiência e, principalmente, sua
formação na universidade, pois você já deve ter lido sobre e
estudado esse assunto, como você define etnomatemática? O que é
etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Inicio a questão com o termo “também”, que relaciona a pergunta
ao contexto de uma entrevista mais ampla, com questões
anteriormente já realizadas. Contextualizo a pergunta direcionando
172
PP9 a emitir uma definição de etnomatemática a partir de sua
experiência (enquanto estudante e professor), indicando como
pontos de referência, ou de partida, a vivência no curso de
formação de professores indígenas (licenciatura) e os possíveis
estudos e leituras já realizadas por ele sobre o tema.
PP9
Etnomatemática... dentro da universidade mesmo eu consegui esse
conhecimento. Antes de entrar na universidade, eu não sabia o que
era etnomatemática. Etnomatemática é... foi muito bom para mim,
porque, a partir desse conhecimento eu sei: “Ah, cada povo tem sua
matemática”. Não é reconhecida, mas a partir daí que a gente... não
só na sociedade não-indígena, mas dentro da sociedade indígena
existe matemática. Cada povo tem a sua matemática. Aí eu percebi:
“Ah, cada povo, cada grupo tem a sua matemática”. Aí, como eu
vejo também que dentro da minha sociedade tem matemática... só
que não é escrita... porque não foi escrita ainda... mas existe
matemática lá. E a partir... quem vai fazer essa matemática do
nosso povo... quem vai fazer essa pesquisa encima desse... da
matemática do povo dele.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Particularidade, Indígena, Interior, Povo,
Tradição, Identidade.
Disfóricas: Desconhecimento, Não-Indígena, Exterior,
Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Generalidade vs Particularidade
ANÁLISE
PP9 inicialmente contextualiza sua definição, enfatizando que
etnomatemática é um conhecimento que ele conseguiu adquirir no
interior da universidade. Assim, a temporalidade antes-agora-
depois se faz presente na resposta do entrevistado como marcos do
domínio de um conhecimento sobre etnomatemática. PP9 considera
que adquirir conhecimentos sobre etnomatemática foi algo bom
para ele porque lhe possibilitou perceber que conhecimentos
matemáticos não existem apenas na sociedade não-indígena.
Assim, a oposição particularidade vs generalidade permeia a prática
173
discursiva de PP9, sendo a partir dessa oposição que ele expressa
sua definição de etnomatemática. Assim, para ele, etnomatemática
é um conhecimento geral no sentido de que todos os povos ou
grupos têm matemática. Porém, a matemática de cada povo ou
grupo é particular, a exemplo da matemática de seu próprio povo, o
povo Paiter, que ainda não está escrita. A pesquisa e a escrita na
definição de PP9 assumem um valor positivo e são indicadas como
ações necessárias à valorização e legitimação de uma matemática
específica do povo Paiter, ainda não reconhecida pela sociedade
não-indígena.
DISCURSO
Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em
geral no interior da cultura de todos os povos, sendo diferente e
particular em cada povo ou grupo, a exemplo da matemática do
povo Paiter que ainda não está reconhecida pela sociedade não-
indígena.
Quadro 11 – Análise semiótica da unidade textual E5Q6
UNIDADE
TEXTUAL E5Q6
KÉCIO
Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre
etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você
define etnomatemática? O que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nesta questão, com o objetivo de conhecer a concepção de
etnomatemática que PP4 tem, inicio a pergunta com uma
contextualização do tema a partir das vivências de formação
acadêmica que sei que o entrevistado possui. Assim, direciono PP4
a emitir uma definição de etnomatemática a partir de referências
acadêmicas, uma vez que eu sei que PP4 é estudante universitário
em um curso de licenciatura, e que tem estudado referências
bibliográficas que tratam de etnomatemática.
PP4 Em cada grupo ou etnia, de acordo com as necessidades das
pessoas, acontecem diferentes matemáticas. Como existe a
174
matemática do europeu, nós indígenas temos também nossa
matemática.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Grupo, Etnia, Cotidiano, Diferença,
Indígena, Identidade
Disfóricas: Não-Indígena, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
Na concepção de etnomatemática enunciada por PP4, a categoria
semântica “diferença” se faz presente, fundamentando sua
definição a partir da oposição particularidade vs generalidade.
Assim, por um lado, para ele, etnomatemática é conhecimento
matemático que todos os grupos e etnias em geral possuem, sendo
resultado das necessidades das pessoas. Por outro lado, para PP4,
etnomatemática é a matemática particular que acontece de forma
diferente em cada grupo ou etnia. Há uma ênfase na enunciação de
PP4 em relação à diferença existente entre a matemática do
europeu e a matemática dos povos indígenas. Nesta ênfase, o uso
do termo “também” indica uma autoafirmação identitária, opondo-
se a uma perspectiva que considera a matemática como
conhecimento exclusivo de determinadas sociedades ou culturas,
particularmente a não-indígena.
DISCURSO
Etnomatemática é um conhecimento matemático presente em todos
os grupos ou etnias em geral, sendo particular e diferente em cada
caso, a exemplo da matemática dos povos indígenas que é diferente
da matemática do europeu.
Quadro 12 – Análise semiótica da unidade textual E4Q10
UNIDADE
TEXTUAL E4Q10
KÉCIO
Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre
etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você
define etnomatemática? O que é etnomatemática?
175
AUTOANÁLISE
Nesta questão, com o objetivo de conhecer a concepção de
etnomatemática de PP3, introduzo a pergunta a partir de uma
contextualização referente à experiência de formação do
entrevistado no curso de Licenciatura em Educação Básica
Intercultural da UNIR. Assim, direciono PP3 a emitir uma
definição de etnomatemática a partir de suas referências
acadêmicas, uma vez que eu sei que ele tem estudado referências
bibliográficas que tratam de etnomatemática.
PP3
Etnomatemática para mim é... cada povo tem sua matemática, tem
sua forma de contar, tem sua forma de medir. Então, para mim,
etnomatemática é a matemática do povo, é a matemática de cada
etnia, de cada povo que tem sua forma de contagem, sua forma de
medir, sua forma de conhecer outros tipos de contagem.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Povo, Etnia, Cultura, Conhecimento.
Disfórica: Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP3 apresenta uma concepção de etnomatemática
a partir da oposição particularidade vs generalidade. De forma
geral, etnomatemática é um conhecimento matemático que existe
em todos os povos e culturas. Assim, para PP3, em uma dimensão
geral, etnomatemática é a matemática que todos os povos ou etnias
possuem relacionada a formas de conhecer, de medir, de contar.
Por outro lado, a particularidade se faz presente na enunciação de
PP3 ao destacar a singularidade da matemática de cada povo ou
etnia. Verifica-se ao final da resposta de PP3 a indicação de que a
etnomatemática também contempla formas de conhecer o outro, no
sentido de ir além das formas de contar e medir de um povo em
particular.
DISCURSO
Etnomatemática é a matemática de povos ou etnias em geral e está
relacionada a formas particulares de contar, medir e conhecer de
cada povo ou etnia.
176
Quadro 13 – Análise semiótica da unidade textual E9Q14
UNIDADE
TEXTUAL E9Q14
KÉCIO E o que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP7 uma definição relacionada à
concepção que ele tem de etnomatemática. Nesse caso, não realizei
uma contextualização inicial que indicasse uma perspectiva diretiva
para a resposta do entrevistado (fazer persuasivo). Assim, PP7
ficou livre tanto para emitir uma resposta pessoal a partir de suas
concepções individuais, como para buscar elementos teóricos
resultantes de sua vivência no curso de formação de professores
indígenas do qual participa na universidade.
PP7
Etnomatemática são conhecimentos nossos próprios. Nós temos
nossos próprios conhecimentos, frente aos conhecimentos
ocidentais. Como eu estava falando, nós temos o número um, com
relação à nomenclatura dos números. Isso não é um nome, mas tem
um significado de cada número. Um é um, apenas um. Dois quer
dizer um par. Três, um par e meio, significa tudo isso. Isso é
conhecimento tradicional nosso. Nós temos nosso próprio
conhecimento, que seria etnomatemática. Nós temos nosso próprio
conhecimento sobre medida de espaço, de tempo. Tudo isso para
mim é etnomatemática.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Particularidade, Identidade, Tradição
Disfórica: Ocidente, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
PP7 inicia sua resposta destacando uma autoafirmação, no sentido
de que etnomatemática refere-se ao conhecimento tradicional
próprio que seu povo tem. Assim, a concepção de etnomatemática
enunciada por PP7 se dá a partir da oposição particularidade vs
generalidade, destacando que há diferenças entre os conhecimentos
particulares de seu povo e os conhecimentos ocidentais. Para
ressaltar essa diferença, o entrevistado destaca a existência de
177
termos numéricos e formas de medida do espaço e do tempo como
conhecimentos próprios de seu povo, que se distinguem dos
conhecimentos ocidentais. Assim, na resposta dada por PP7,
etnomatemática relaciona-se aos conhecimentos matemáticos
próprios de seu povo referentes a formas tradicionais de contagem
e de medida.
DISCURSO
Etnomatemática são conhecimentos matemáticos tradicionais e
particulares de um povo referentes a formas de contar e medir,
diferentes dos conhecimentos ocidentais.
Quadro 14 – Análise semiótica da unidade textual E8Q16
UNIDADE
TEXTUAL E8Q16
KÉCIO Vou citar um termo e gostaria que você dissesse o que significa
para você. O que você entende por etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, objetivo ouvir de PP6 uma definição de
etnomatemática, sem indicar onde a definição deve ser ancorada,
isto é, intento obter uma resposta do entrevistado em termos de
significados pessoais atribuídos a um termo. Assim, PP6 ficou livre
para emitir uma resposta particular, podendo tanto se basear em
concepções individuais, como buscar apoio em perspectivas
acadêmicas oportunizadas por sua vivência no curso de formação
de professores do qual participa na universidade.
PP6
Etnomatemática é onde a gente tem a nossa própria matemática,
dentro da nossa cultura. Porque no espaço e no tempo, a gente tem
etnomatemática, a gente tem nosso próprio conhecimento. No caso
da questão da medida, medida de espaço, a gente tem na nossa
própria cultura, a gente tem forma de medida através dos marcos.
Então, a medida do não-indígena é medida através da
quilometragem, pelo metro, centímetro, essas coisas. Então, a gente
tem nossas medidas através dos marcos, dos lugares. Como posso
dizer um quilômetro? Eu posso comparar um lugar, que tal lugar é
178
marcado um quilômetro, comparando um lugar. Posso falar: - Ah,
tal lugar, matei um porcão lá. Ah, posso dizer, daquele lugar, mais
para frente, tal lugar, coloquei um saco de castanha. Então, a gente
marca uma medida através de um lugar, do espaço de um lugar.
Então, na parte da medida mesmo, a gente pode usar muito na
construção de casas. No caso do metro, centímetro, a gente pode
usar muito na construção de casas. A gente usa pela quantidade de
pessoas que vai morar naquela casa. Então, a gente faz uma medida
certa através da quantidade de pessoas. A gente tem a presença de
figura geométrica nos artesanatos, que tem a presença das listas, as
figuras desenhadas nos artesanatos, como na cesta, na flecha, onde
a gente faz uma pena de uma arara, que a gente possa cortar
certinho, na medida, para colocar na flecha. Tem que colocar na
medida certinha da flecha, para que a flecha vá alcançar até o alvo.
Se não colocar certinho a medida certa daquela pena de uma ave,
ela não vai alcançar o alvo que a gente está querendo acertar. A
gente tem que trabalhar muito bem na parte de geometria por esta
questão.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Identidade, Interior, Uso, Cultura,
Conhecimento, Indígena, Tradição
Disfóricas: Não-Indígena, Exterior, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção de etnomatemática enunciada por PP6 estrutura-se a
partir da oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido,
ele define etnomatemática como sendo a matemática que está
dentro da cultura particular de seu povo, sendo diferente de um
conhecimento geral não-indígena. Assim, ele entende
etnomatemática como sendo um conhecimento matemático próprio
de seu povo, relacionado a formas de medir o espaço e o tempo e às
formas geométricas presentes no artesanato. O uso é uma categoria
que emerge da resposta de PP6 como elemento justificador da
existência de formas particulares de conhecimento, relacionadas a
179
fazeres específicos de seu povo, tais como construir uma maloca,
coletar castanha, caçar um porcão, produzir uma flecha, sendo
esses conhecimentos indicados na prática discursiva do
entrevistado como elementos de autoafirmação identitária.
DISCURSO
Etnomatemática é a matemática que está dentro da cultura
particular de um povo, sendo um conjunto de conhecimentos
diferentes dos conhecimentos gerais não-indígenas.
Quadro 15 – Análise semiótica da unidade textual E6Q3
UNIDADE
TEXTUAL E6Q3
KÉCIO
Dado esse seu ponto de vista a respeito da importância do projeto,
qual é a sua concepção hoje a respeito do que seja etnomatemática?
Como você define etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, parti inicialmente da alusão a um projeto de
extensão em andamento sobre saberes e fazeres matemáticos do
povo Paiter, do qual PP5 participava. Assim, solicitei a PP5 que
enunciasse uma definição de etnomatemática a partir da
importância que ele atribuía ao projeto, considerando também que
naquele momento (hoje) ele já possuía uma vivência na
universidade que lhe havia proporcionado estudar referências
bibliográficas sobre etnomatemática.
PP5
Dentro do meu conhecimento, também o que eu venho aprendendo
desde a minha formação inicial até agora, estou no processo de
finalização de minha primeira etapa de aprendizagem na minha
formação no ensino superior. Então, na minha concepção, o que eu
entendo de etnomatemática é que cada povo, cada grupo,
dependendo de onde for, tem o seu modo de pensar, o seu modo de
ver, de como calcular, de como multiplicar, de como quantificar, de
como medir. Então, tudo isso faz parte da etnomatemática de um
grupo. Estou falando apenas uma delas. E com certeza nós temos
esses conhecimentos dentro da nossa cultura do povo Paiter. Então,
180
eu citei alguns temas, algumas partes do que é etnomatemática.
Porque muitas vezes as pessoas não sabem identificar ainda quais
são os processos de etnomatemática dentro da sua cultura, e hoje eu
identifico um pouco dessas partes que eu citei.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Povo, Grupo, Identidade, Interior,
Cultura, Paiter, Conhecimento
Disfóricas: Generalidade, Exterior, Desconhecimento
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção de etnomatemática enunciada por PP5 estrutura-se a
partir da oposição particularidade vs generalidade. Em sua
concepção, etnomatemática é um conhecimento particular, nem
sempre identificado pelas pessoas, que está, em geral, no interior da
cultura de cada povo ou grupo. Assim, de forma geral,
etnomatemática são modos de pensar, ver, calcular, quantificar e
medir que os povos possuem. Fazendo referência a sua experiência
de formação acadêmica, PP5 destaca que atualmente (hoje)
consegue identificar processos de etnomatemática dentro de sua
cultura particular, que é a cultura do povo Paiter.
DISCURSO
Etnomatemática é um conhecimento, nem sempre identificado, que
está no interior da cultura de cada povo ou grupo em geral, relativo
a formas particulares de pensar, ver, calcular, quantificar e medir.
Quadro 16 – Análise semiótica da unidade textual E3Q3
UNIDADE
TEXTUAL E3Q3
KÉCIO
Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre
etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você
define etnomatemática? O que é etnomatemática?
AUTOANÁLISE
Nesta questão, antes de solicitar uma definição de etnomatemática
a PP2, introduzo a pergunta a partir de uma contextualização
referente à experiência de formação do entrevistado no curso de
181
Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Isso
direciona a resposta de PP2 para uma definição de etnomatemática
a partir de referências acadêmicas, considerando que ele participa
de um curso de formação de professores indígenas, no âmbito do
qual tem estudado referências bibliográficas que tratam de
etnomatemática.
PP2
Etnomatemática, pelo meu entender, pelo que eu andei pesquisando
antes de fazer o TCC... etnomatemática é um projeto que tem
dentro da cultura de cada um. Então, etnomatemática é o
conhecimento dos cálculos matemáticos que envolvem dentro da
cultura. Então, pelo que eu entendi sobre etnomatemática, ela é um
pouco de cada coisa dentro da cultura. Então, pelo meu entender,
etnomatemática já vem no dia-a-dia de cada comunidade, não só da
comunidade paiter, mas também em outras culturas. Por exemplo, o
povo Paiter Suruí tem etnomatemática em seus cálculos... seus
cálculos que eles fazem antes da construção, tem os cálculos das
mulheres na confecção, que fazem os cálculos de quantas peças vão
confeccionar, quantas palhas vão confeccionar a construção da
maloca, quantos metros deve medir. Então, tudo isso que o povo
Suruí usa, pelo meu entender, é etnomatemática. E dentro dessa
etnomatemática, nós também temos nossa matemática cultural.
Pelo meu pensamento sobre etnomatemática, onde estou tentando
pesquisar ainda... está sendo muito proveitoso. Então, quer dizer,
onde temos nossa numeração, nossos cálculos diante da matemática
da sociedade não-indígena. Então o uso no nosso dia-a-dia, a fala
no nosso dia-a-dia, e o modo de fazer no nosso dia-a-dia também
envolvem várias matemáticas. Então, eu acho que isso é uma
etnomatemática, é a descoberta de um novo conhecimento com
uma cultura diferente, que traz em si uma descoberta sobre vários
cálculos tradicionais sobre a cultura de um povo, inclusive no povo
Paiter também no qual a gente está tentando fazer essa pesquisa.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Interior, Cultura, Particularidade, Conhecimento,
Cotidiano, Identidade, Paiter, Indígena, Diferença
182
Disfóricas: Generalidade, Não-Indígena, Exterior
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção de etnomatemática enunciada por PP2 estrutura-se a
partir da oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido,
ele entende etnomatemática como conhecimentos matemáticos que
existem em geral no interior da cultura de cada povo em particular.
Assim, a generalidade está relacionada ao fato de que a
etnomatemática é um conhecimento presente em todas as culturas,
e a particularidade enfatiza a diferença desses conhecimentos entre
distintas culturas. A diferença é uma categoria utilizada por PP2
para destacar uma oposição entre conhecimentos de seu povo e
conhecimentos da sociedade não-indígena. PP2 destaca que, assim
como existem conhecimentos matemáticos na sociedade não-
indígena referentes a formas de medir e calcular, no interior da
cultura de seu povo existem também conhecimentos dessa natureza,
porém diferentes dos primeiros e diretamente relacionados a
fazeres cotidianos da comunidade, tais como construir uma maloca
e confeccionar artesanatos. A tais conhecimentos PP2 denomina
“matemática cultural”, demonstrando com isso conhecimento de
diferentes termos e expressões que permeiam a literatura referente à
etnomatemática na academia. Ao destacar etnomatemática como
conhecimentos matemáticos específicos de cada cultura, em
particular da cultura de seu povo, PP2 associa sua concepção a uma
autoafirmação identitária (por distinção), destacando que a
matemática da sociedade não-indígena é diferente da matemática
de seu povo.
DISCURSO
Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em
geral no interior da cultura particular de cada povo, relacionado ao
uso em fazeres cotidianos como construir, confeccionar, medir e
enumerar, sendo diferente entre o povo Paiter e a sociedade não-
indígena.
183
7.2 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização como deve ser o
ensino de matemática na escola da aldeia da categoria de análise etnomatemática
Quadro 17 – Análise semiótica da unidade textual E14Q22
UNIDADE
TEXTUAL E14Q22
KÉCIO Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de
sua comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, ao perguntar a PP10 como deve ser o ensino de
matemática na escola da comunidade, estou pressupondo a
existência da escola e o ensino de matemática nessa escola como
algo dado a priori, ou como algo necessário (dever ser) na
comunidade. Indico assim, com meu fazer persuasivo, uma
perspectiva para a resposta do entrevistado, sem especificar,
todavia, que “tipo” de matemática deve ser ensinado na escola.
PP10
Os dois tipos, né professor. A matemática que podemos estar
trabalhando em nossa escola, e na comunidade também, é a
matemática não-indígena, e da cultura também, trazendo os mais
velhos e experientes para a sala de aula, para estarem explicando e
a gente vai trabalhando conforme eles vão falando, e registrando
isso, sempre trabalhando encima disso.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Diferença, Tradição, Cultura, Experiência, Indígena,
Particularidade, Interior
Disfóricas: Escola, Não-Indígena, Generalidade, Exterior
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção enunciada por PP10 sobre como deve ser o ensino de
matemática na escola da comunidade baseia-se na oposição
particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele argumenta que
devem ser ensinados dois tipos de matemática, a não-indígena em
geral, e a da cultura de seu povo em particular. Para tanto, PP10
considera necessária a participação dos mais velhos de seu povo no
184
ensino de saberes da tradição.
DISCURSO
O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar tanto
os conhecimentos matemáticos não-indígenas em geral quanto os
conhecimentos matemáticos da cultura e da tradição do povo em
particular, sendo necessário para isso a participação dos mais
velhos.
Quadro 18 – Análise semiótica da unidade textual E11Q26
UNIDADE
TEXTUAL E11Q26
KÉCIO
Ainda a pouco, você falou de matemática e etnomatemática.
Voltando a esse assunto, como você acha que deve ser o ensino de
matemática na escola de sua comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, antes de enunciar a pergunta a PP9, menciono que
nas questões anteriores foram tratados dos temas “matemática” e
“etnomatemática”. Assim, ao iniciar a pergunta com a expressão
“voltando a esse assunto”, indico, com meu fazer persuasivo, ao
entrevistado uma perspectiva de resposta, qual seja aquela que
considera a existência de diferentes saberes e fazeres matemáticos
entre povos e culturas distintas.
PP9
O ensino de matemática deve ser... aplicar aquele conhecimento da
matemática daquele povo. Por quê? Porque os alunos, os alunos
mesmo, não conhecem aquela matemática do nosso povo mesmo.
Falta aquele... falta nós professores pesquisarmos, escrevermos e
aplicarmos na sala de aula, com os alunos. Como a gente tem muito
pouco esse conhecimento da matemática, a gente não aprofunda
muito isso aí. E falta muito esse... a matemática do povo Paiter,
para pesquisar e fazer um livro didático para os alunos. Porque a
matemática do povo Paiter... algumas não estão... não estão... como
eu posso dizer?... feito, não está... não foi pesquisado ainda. Está
isolado ainda. Dá para fazer pesquisa ainda. Então, a matemática
deveria aplicar... a etnomatemática deveria aplicar o conhecimento
185
daquele povo na sala de aula.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Povo, Particularidade, Cultura, Paiter,
Tradição, Interior
Disfóricas: Escola, Generalidade, Exterior
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta enunciada por PP9 baseia-se na oposição particularidade
vs generalidade. Nesse sentido, PP9 enfatiza a necessidade de se
ensinar na escola os conhecimentos matemáticos de seu povo em
particular. Embora não esteja presente textualmente a referência a
conhecimentos matemáticos externos à cultura de seu povo, o
entrevistado trata em sua enunciação do ensino de um
conhecimento particular na escola, que é um espaço geral e externo
à tradição de seu povo. Ao considerar que a matemática de seu
povo ainda está isolada, no sentido de não ter sido pesquisada e
apresentada em livro didático na escola, PP9 destaca a necessidade
de pesquisas sobre esses conhecimentos para sua aplicação em sala
de aula. Nesse sentido, na fala de PP9, a pesquisa destaca-se como
instância necessária para a relação entre escola (geral) e tradição
(particular) no espaço da comunidade.
DISCURSO
O ensino de matemática na escola da comunidade deve considerar
os conhecimentos matemáticos particulares do povo, sendo
necessária para isso a realização de pesquisas sobre conhecimentos
que ainda estão isolados na cultura e na tradição do povo.
Quadro 19 – Análise semiótica da unidade textual E13Q9
UNIDADE
TEXTUAL E13Q9
KÉCIO Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de
sua comunidade?
AUTOANÁLISE Nessa questão, ao enunciar a pergunta a PP4, indico, com meu
fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado, ao
186
pressupor em minha fala a existência da escola na comunidade e o
ensino de matemática nessa escola como algo dado a priori, ou
como algo necessário (dever ser).
PP4
Na minha comunidade, eu penso assim, que seria na língua
indígena... na matéria... e em português. Porque, lá na minha
comunidade, as crianças indígenas não entendem muito bem
português, porque é difícil eles saírem da aldeia, só quando eles vão
para a cidade. Por isso, eu penso assim, que deve ser ensinado a
partir da realidade da comunidade, como de costume... através da
realidade do aluno. Como no caso, se eu ensinar a matemática do
não-indígena na comunidade, claro que não vão saber. Tem que
começar da realidade dele.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Indígena, Interior, Tradição, Particularidade, Contexto
Disfóricas: Não-Indígena, Exterior, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta enunciada por PP4 baseia-se na oposição particularidade
vs generalidade. Nesse sentido, ao falar sobre como dever ser o
ensino de matemática na escola da aldeia, PP4 destaca as
particularidades que devem ser consideradas nesse ensino, tais
como a especificidade da língua de seu povo, o fato de que o
cotidiano específico da aldeia, onde vivem os estudantes, é
diferente do cotidiano urbano ou da sociedade não-indígena em
geral. Assim, PP4 problematiza o ensino de uma matemática não-
indígena (geral) descontextualizada da realidade e da tradição
(particular) dos alunos indígenas.
DISCURSO
O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar em
particular a tradição, a língua e a realidade dos estudantes
indígenas, que vivem em uma cultura específica, distinta daquela
da sociedade não-indígena.
187
7.3 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância de se
trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da categoria de análise
etnomatemática
Quadro 20 – Análise semiótica da unidade textual E1Q4
UNIDADE
TEXTUAL E1Q4
KÉCIO Qual é a importância hoje de se ensinar saberes e fazeres
matemáticos paiter na escola da comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, considerando a distinção estabelecida entre saberes
e fazeres matemáticos paiter e matemática escolar dada por PP1 na
resposta à questão anterior, manifestei com essa pergunta o
interesse em ouvir do entrevistado sua percepção a respeito da
importância de se ensinar esses saberes da tradição na escola. Os
termos “hoje” e “escola” direcionam PP1 a considerar em sua
resposta o contexto atual, no qual a escola já se faz presente na
comunidade e ainda não pratica em seu interior o ensino de saberes
e fazeres da tradição. A expressão “qual é a importância” presente
no início da pergunta que fiz a PP1 pressupõe que o ensino de
saberes e fazeres matemáticos paiter na escola “é importante”.
Nesse sentido, meu fazer persuasivo indica ao entrevistado uma
perspectiva de resposta relacionada à justificação dessa
importância, como um fato dado a priori.
PP1
Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de
suma importância, porque o conhecimento matemático que
conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do
Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje,
trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância
para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional,
conhecimento milenar que foi passado de geração em geração.
Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma
matemática não-indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até
188
para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos
etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior é até
mesmo de questão de identidade cultural paiter.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Povo, Paiter, Particularidade, Interno,
Tradição, História, Autoafirmação, Identidade, Cultura
Disfóricas: Não-Indígena, Externo, Generalidade, Europa, Pressão
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta dada por PP1 está baseada na oposição particularidade
vs generalidade. Nesse sentido, ele destaca que atualmente a
matemática ensinada na escola da aldeia é proveniente de um
contexto geral externo à cultura de seu povo, que não considera as
particularidades do conhecimento matemático interno à tradição de
sua cultura. Desse modo, PP1 entende que a escola, ao não ensinar
os saberes e fazeres matemáticos da tradição, exerce uma pressão
sobre a identidade cultural de seu povo. Para fazer frente a essa
pressão, PP1 destaca a importância de se ensinar os conhecimentos
matemáticos de seu povo na escola, como forma de revitalizar e
valorizar esses conhecimentos, para que eles não se percam e com
isso haja uma alteração na identidade cultural de seu povo. A
resposta do entrevistado indica sua percepção da relação entre
conhecimentos da tradição e identidade cultural. Desse modo, ele
destaca a importância de se ensinar saberes matemáticos da
tradição na escola, na atualidade (hoje), porque percebe que a
escola ainda ensina apenas a matemática europeia. A expressão
“matemática europeia” utilizada por PP1 indica seu conhecimento
de discussões de cunho acadêmico, proveniente possivelmente do
curso de formação de professores do qual participa. A ausência dos
saberes matemáticos da tradição na escola representa para o
entrevistado um risco de perda de identidade, de um afastamento da
tradição, resultante de uma pressão representada pelo atual
currículo escolar (programa do Estado). Assim, a importância de se
ensinar saberes matemáticos paiter na escola relaciona-se com a
189
possibilidade de resgate e revitalização de um modo específico de
pensar do povo paiter, construído historicamente antes da presença
da escola na aldeia, porém por ela desconsiderado na atualidade
(hoje). Observa-se a noção de povo como uma categoria semântica
fundamental na fala do entrevistado, a partir do qual ele elabora seu
discurso na construção de uma resposta à pergunta. Isto é, os
conhecimentos matemáticos da tradição não se autojustificam, de
modo que não são importantes por si sós, mas apenas na medida em
que são indicados como necessários à manutenção da identidade
cultural do povo Paiter.
DISCURSO
Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da
comunidade é importante para fazer frente à pressão exercida pelo
ensino da matemática europeia sobre a identidade cultural do povo.
Quadro 21 – Análise semiótica da unidade textual E5Q8
UNIDADE
TEXTUAL E5Q8
KÉCIO Qual a importância de se ensinar etnomatemática paiter na escola
da comunidade hoje?
AUTOANÁLISE
A expressão “qual é a importância” presente no início da pergunta
que fiz a PP4 pressupõe que o ensino de saberes e fazeres
matemáticos paiter na escola “é importante”, indicando assim ao
entrevistado uma perspectiva de resposta relacionada à justificação
dessa importância. Também insiro na pergunta um concepção de
etnomatemática como conjunto de saberes e fazeres passíveis de
serem ensinados na escola.
PP4
É importante para nós porque, como a nossa matemática tradicional
do povo Paiter... usávamos essa matemática. E quando não
registramos, vai se esquecendo, os mais jovens. Por isso é bom
registrar e aprender.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Tradição, Povo, Uso, Paiter, Interno
Disfóricas: Externo, Generalidade
190
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta dada por PP4 está baseada na oposição particularidade
vs generalidade. Assim, em sua prática discursiva, PP4 enfatiza a
particularidade da matemática tradicional de seu povo, o povo
Paiter. A categoria “uso” emerge da fala do entrevistado como
justificativa para o ensino da matemática tradicional de seu povo,
destacando o risco do esquecimento dessa matemática pelas novas
gerações, caso não seja registrada e aprendida pelos jovens.
DISCURSO
Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da
comunidade é importante para que as novas gerações do povo
Paiter não se esqueçam de como esses saberes e fazeres particulares
do povo eram tradicionalmente usados.
Quadro 22 – Análise semiótica da unidade textual E13Q1
UNIDADE
TEXTUAL E13Q1
KÉCIO
PP4, na entrevista anterior, você disse que o povo Paiter usava uma
matemática tradicional, e que se não registrar essa matemática, ela
será esquecida, e que por isso seria bom registrar e aprender esses
conhecimentos tradicionais. Você poderia explicar por que esses
conhecimentos deveriam ser preservados e ensinados às novas
gerações?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, com o interesse verificar mais detalhadamente um
possível vínculo entre educação escolar e identidade cultural,
associo a pergunta a outra questão de uma entrevista anterior, na
qual havia interrogado PP4 sobre a importância do ensino de
saberes e fazeres paiter na escola. A temática é retomada nessa
nova entrevista, no intuito de verificar mais especificamente a
relação que PP4 estabelece entre o ensino de saberes e fazeres
tradicionais e a identidade das novas gerações. Assim, a expressão
“às novas gerações” presente em minha fala direciona (enquanto
191
um fazer persuasivo) a resposta do entrevistado para uma possível
relação entre o ensino de saberes e fazeres da tradição e a
identidade cultural das novas gerações.
PP4
Porque, hoje, estamos tendo muitos cruzamentos de indígena e não-
indígena. Como nós usávamos aquela matemática anterior... a gente
está na escola aprendendo a matemática não-indígena. Por isso a
gente está deixando de lado a que antes nós usávamos. Por isso.
Porque, hoje em dia, os jovens mais usam é a matemática... como
que fala?... europeu... é a que mais domina hoje.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Identidade, Indígena, Tradição, Uso
Disfóricas: Não-Indígena, Abandono, Europa, Dominação
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-indígena
ANÁLISE
A resposta de PP4 está baseada na oposição indígena vs não-
indígena. Em sua prática discursiva, o entrevistado menciona a
dominação de uma matemática europeia não-indígena sobre uma
matemática indígena que era usada tradicionalmente por seu povo
antes do processo de colonização a que foi submetido. Nessa
relação de poder estabelecida pela interação entre os distintos
saberes, PP4 destaca que as novas gerações estão abandonando os
saberes da tradição e adotando outros saberes, provenientes da
cultura do colonizador europeu, e ensinados na escola. Verifica-se
assim na fala de PP4 uma preocupação com a manutenção dos
saberes e fazeres matemáticos indígenas paiter para fazer frente a
um quadro de mudanças culturais e de identidades provocadas
pelas relações de poder presentes na escola e advindas do processo
de dominação após o contato com o colonizador não-indígena.
DISCURSO
Os conhecimentos matemáticos paiter devem ser preservados e
ensinados às novas gerações para fazer frente às mudanças
culturais, às alterações de identidades e à dominação cultural que o
ensino de matemática não-indígena na escola representa.
192
Quadro 23 – Análise semiótica da unidade textual E9Q15
UNIDADE
TEXTUAL E9Q15
KÉCIO Qual a importância da escola ensinar, além dos saberes não
indígenas, esses saberes matemáticos da cultura paiter?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, está presente em minha fala a pressuposição de que
existem saberes matemáticos na cultura do povo Paiter e que esses
saberes são passíveis de serem ensinados na escola. Desse modo,
direciono a resposta do entrevistado apenas para a justificativa
desse ensino, considerando a existência dos saberes e a
possiblidade de seu ensino na escola como algo já dado. Também
se faz presente em minha fala, ao enunciar a pergunta, uma
oposição entre saberes indígenas e saberes não-indígenas,
indicando assim, com meu fazer persuasivo, uma perspectiva de
resposta ao entrevistado.
PP7
Além da matemática não-indígena, nós, povo Paiter, precisamos
dos conhecimentos nossos mesmo, para prevalecer nosso
conhecimento, para ficar como registro da memória, para as
gerações não esquecerem da história da nossa contagem, história da
nossa matemática tradicional.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Identidade, Indígena, Povo, Paiter, Conhecimento,
Particularidade, História, Tradição
Disfóricas: Não-Indígena, Esquecimento, Mudança
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A resposta enunciada por PP7 baseia-se na oposição indígena vs
não-indígena. Assim, ele estabelece uma distinção entre a
matemática de seu povo, considerada como uma matemática
tradicional, que tem sua história particular presente na memória, e a
matemática não-indígena relacionada a mudanças e esquecimento
da tradição. A partir dessa oposição, PP7 enfatiza a necessidade
que seu povo tem de manter e fazer prevalecer seus próprios
conhecimentos, enquanto povo Paiter, que tem uma identidade
193
própria, cuja existência é posta em risco pela possibilidade de
esquecimento de sua própria história pelas novas gerações.
Verifica-se que, para PP7, o ensino de saberes matemáticos paiter
na escola é importante para contribuir com a manutenção da
história e da identidade cultural de seu povo.
DISCURSO
O ensino de saberes matemáticos paiter na escola, como saberes
distintos da matemática não-indígena, é importante para contribuir
com a manutenção da cultura e da identidade cultural do povo.
Quadro 24 – Análise semiótica da unidade textual E8Q17
UNIDADE
TEXTUAL E8Q17
KÉCIO
Você está falando de vários saberes matemáticos presentes na
cultura. Minha pergunta agora é: Qual é sua opinião quanto a se
trabalhar também com esses saberes matemáticos na escola da
aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, considerando a fala de PP6 em resposta a questões
anteriores, nas quais eles menciona a existência de saberes
matemáticos da cultura de seu povo, pergunto então a ele sobre sua
opinião a respeito do ensino desses saberes na escola. O termo
“também” presente em minha fala indica que outros saberes já são
trabalhados na escola, oferecendo assim, com meu fazer
persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado, que
poderia partir de uma distinção entre os saberes próprios de sua
cultura e aqueles presentes na escola da aldeia e externos à cultura
de seu povo.
PP6
Seria muito bom trabalhar em cima desses materiais, porque, eu,
como jovem, muito jovem mesmo, eu queria tanto aprender, para
trabalhar com meus alunos. Mas a questão é que hoje em dia, a
gente tem poucos materiais. Então, quem pode me ensinar sobre
isso seria os mais velhos. Então, a gente precisa dos mais velhos
para trazer esses conhecimentos para dentro da sala. Para que as
194
crianças possam aprender. Então, na minha opinião, eu queria
muito aprender a praticar, colocar em prática essas atividades,
porque a teoria eu posso explicar muito bem para as crianças, mas a
prática eu não sei muito bem. Então, por isso eu queria tanto a
presença dos mais velhos para colocar em prática esses
conhecimentos com os alunos.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Atualidade, Experiência, Tradição, Cotidiano,
Conhecimento, Prática, Presença
Disfóricas: Inexperiência, Mudança, Teoria, Ausência, Escola,
Modernidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência
ANÁLISE
A resposta de PP6 está baseada na oposição experiência vs
inexperiência. Nesse sentido, ele destaca que as novas gerações de
jovens e crianças de seu povo são inexperientes em relação aos
saberes da tradição. Por isso, seria importante, para superar essa
inexperiência, levar para o interior da sala de aula os saberes
matemáticos da cultura de seu povo, sendo para tanto necessária a
presença dos mais velhos, que são os membros da comunidade que
detêm a experiência, não só em teoria, mas também na prática. PP6
destaca a diferença entre as dimensões teóricas e práticas da
educação escolar, associando a primeira ao seu próprio fazer
enquanto professor, porém inexperiente em relação aos saberes
matemáticos paiter, e a segunda ao fazer dos velhos e experientes.
Verifica-se assim que PP6 concebe o ensino de saberes
matemáticos de seu povo a partir do espaço escolar, porém
associado à tradição representada pela presença dos sabedores mais
velhos.
DISCURSO
Trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da aldeia é
importante para superar a inexperiência das novas gerações em
relação aos conhecimentos práticos e teóricos da tradição do povo,
sendo fundamental para isso a presença dos mais velhos e
experientes na sala de aula.
195
Quadro 25 – Análise semiótica da unidade textual E3Q5
UNIDADE
TEXTUAL E3Q5
KÉCIO Qual é a importância de se ensinar saberes e fazeres matemáticos
paiter em sala de aula?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, ao destacar na pergunta que fiz a PP2 a
“importância” do ensino de saberes e fazeres matemáticos paiter,
estou partindo do pressuposto de que estes saberes e fazeres são
passíveis de serem ensinados na escola, sendo esse um aspecto
implícito em minha própria concepção enquanto pesquisador.
Nesse sentido, induzo o sujeito, como meu fazer persuasivo, a focar
sua resposta na justificativa da importância de tal ensino,
considerado já a priori em minha fala como possível de acontecer.
PP2
No meu ponto de vista, como professor indígena dentro da minha
comunidade, é um grande benefício para os meus alunos, até tanto
para mim quanto para meus alunos também, porque a partir do
momento que eu comecei a me envolver com a etnomatemática na
universidade, isso fez eu adquirir um grande conhecimento sobre a
minha cultura mesmo. Então, isso me fez sentir que isso tem um
grande benefício para mim, e pode trazer também para os meus
alunos, e até dentro da cultura, da comunidade também. Isso me fez
pensar em participar desse projeto, para poder transmitir isso para
os meus alunos, para eles terem conhecimento da própria cultura,
porque se a pessoa não tem conhecimento da própria cultura, ele
não dá valor a sua cultura. Então, a partir do momento que ele vai
pegar sobre o conhecimento da etnomatemática da própria cultura,
então ele vai saber dar valor sobre o que está sendo feito dentro da
comunidade, como arco, a confecção de anéis, a confecção de
balaios. Então, a partir desse momento, ele vai entender que aquilo
tem um significado muito grande para eles, não só o cálculo da
cultura não-indígena, mas também tem a sua própria cultura, os
seus cálculos, os modos do dia-a-dia da sua cultura. Então isso vai
fazer com que ele goste daquilo que está fazendo, e não tenha
196
vergonha daquilo que faz. Então, eu, para trabalhar com meus
alunos, primeiramente eu vejo assim mais a minha cultura, para
depois eu repassar esse valor para eles em forma da
etnomatemática, ou seja, de outra forma que eles gostem da própria
cultura. Porque se eles não conhecerem a própria cultura, gostarem
da própria cultura, como é vão dar valor à própria cultura? Então,
para mim, eu defendo essa metodologia por eu entender que tem
uma grande importância para mim e para meus alunos e para minha
comunidade.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Interior, Indígena, Particularidade, Conhecimento,
Cultura, Identidade, Cotidiano, Etnomatemática
Disfóricas: Exterior, Não-indígena, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta de PP2 está baseada na oposição particularidade vs
generalidade. Nesse sentido, ele considera importante o ensino de
saberes e fazeres matemáticos de seu povo na escola como forma
de proporcionar aos seus alunos o conhecimento e a valorização de
sua própria cultura em particular, em oposição à generalidade dos
saberes matemáticos não-indígenas. PP2 concebe a etnomatemática
e o ensino de saberes matemáticos de seu povo como instâncias de
valorização identitária, no sentido de levar os alunos a valorizarem
sua própria cultura e superarem os preconceitos existentes quanto à
sua condição particular de ser indígena, representados na fala do
entrevistado pela categoria “vergonha”. A oposição interior vs
exterior permeia a fala de PP2, ao destacar que o ensino de saberes
matemáticos de seu povo deve voltar-se para o fazer cotidiano que
se passa no interior da comunidade, frente ao exterior não-indígena
representado pelo ensino de saberes matemáticos de uma cultura
geral não-indígena.
DISCURSO
Ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter em sala de aula é
importante para que os alunos conheçam e valorizem sua própria
cultura em particular e com isso reafirmem sua identidade cultural
197
e superem os preconceitos advindos da relação com a sociedade
não-indígena em geral.
7.4 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de
educação da categoria de análise educação escolar indígena
Quadro 26 – Análise semiótica da unidade textual E2Q6
UNIDADE
TEXTUAL E2Q6
KÉCIO O que é educação?
AUTOANÁLISE
Fiz essa pergunta ao PP1 com o intuito de ouvir sua concepção de
educação, sem indicar uma perspectiva acadêmica, cultural ou
tradicional onde a resposta do entrevistado pudesse se ancorar.
Assim, PP1 ficou livre para responder de acordo com sua
concepção pessoal, na perspectiva da tradição de seu povo, ou
ainda na perspectiva acadêmica, uma vez que ele é estudante em
um curso de licenciatura.
PP1
Educação para mim... hoje eu vejo que... educação é eu ter um
rumo de vida, quer dizer, eu tornar... educação para mim é eu
seguir um rumo de acordo com o que é minha identidade, de acordo
com o que é paiter, e também é o que eu penso no futuro, como
paiter, como que eu vou ser paiter no futuro. Então, educação para
mim hoje é direcionar a minha vida, direcionar a vida da minha
comunidade como educador, para que eu consiga ser paiter no
futuro, mesmo com essa pressão, e que eu garanta minha
identidade. Então, educação para mim é nada mais do que adquirir
o conhecimento para que eu torne, eu pegue, eu siga um rumo para
alcançar, não só agora, mas no futuro, continuar sendo paiter. Quer
dizer, é um caminho que vou seguir ao longo da minha vida para
ser paiter. Ou eu posso seguir um caminho, um rumo, me perder no
198
meio, vamos dizer... e eu não consigo no futuro ser paiter. Então,
educação para mim é o que? É você fazer o seu rumo, seguir o que
é... seguir a sua visão de mundo, de futuro, por meio da educação.
Então, educação é o caminho para mim. Educação não é ensinar um
conhecimento, educação para mim é eu ter um rumo de acordo com
o que é minha visão de futuro, de acordo com o conhecimento que
eu tenho como paiter. Essa é minha visão com educação.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Identidade, Particularidade, Paiter, Comunidade,
Tradição, Conhecimento.
Disfóricas: Perda, Mudança, Generalidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção de educação que PP1 expõe está baseada na oposição
particularidade vs generaliade. Nesse sentido, ele define educação
como um caminho que pode conduzi-lo para um futuro no qual ele
continue a ser paiter, mantendo sua identidade no interior da
tradição particular de seu povo, como pode também conduzi-lo
para fora dessa tradição, transformando sua identidade, em razão de
pressões provenientes das relações interculturais que seu povo
estabelece com outros povos em geral na atualidade e no futuro.
PP1 estabelece uma relação entre educação e visão de mundo de
acordo com o conhecimento que ele tem do que é ser paiter.
Verifica-se que o entrevistado estabelece uma estreita relação entre
educação e identidade, tomando como referência sempre a
identidade que ele possui como membro de um povo indígena
particular, o povo Paiter. Assim, PP1 atribui à educação uma
característica processual, vinculada à cultura, associada a uma
perspectiva não essencialista de identidade, visto que esta pode ser
alterada em função dos rumos e dos caminhos tomados ao longo da
vida. Destaca-se a dimensão pessoal das decisões, escolhas e
direções a seguir ao longo da vida expressas na concepção de
educação de PP1. Essa perspectiva é característica do universo
cultural paiter, no qual o indivíduo, seja ele criança ou não, mantém
199
uma certa autonomia nos processos de ensino-aprendizagem, e,
portanto, de educação.
DISCURSO
Educação é um processo orientado por conhecimentos vinculados a
uma tradição no interior de uma cultura particular ou por pressões
advindas do exterior geral de uma cultura, que pode manter ou
alterar a identidade cultural das pessoas.
Quadro 27 – Análise semiótica da unidade textual E14Q12
UNIDADE
TEXTUAL E14Q12
KÉCIO Considerando sua experiência e sua formação, como você define
educação? O que é educação?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, mencionei as categorias “experiência” e “formação”
antes de solicitar uma definição de educação a PP10. Desse modo,
indiquei ao entrevistado duas possíveis âncoras para sua resposta,
podendo ele partir tanto de sua vivência e experiência enquanto
professor, quanto de sua vivência e experiência acadêmica no curso
de licenciatura do qual participa como estudante.
PP10
Educação, principalmente para o povo, não só para o povo Paiter,
pode estar relacionada dentro da cultura de cada povo. Então, cada
povo leva sua educação dentro das possibilidades que eles têm
dentro das comunidades. Para nós Paiter, na educação está inserido
o respeito dentro da comunidade, uns aos outros... as crianças vêm
aprendendo com as pessoas idosas, como cantar, fazer artesanato,
falar direito. Então, tudo isso para nós é educação dentro da
comunidade. Agora, hoje, depois do contato com não-indígena, a
gente sabe que educação também é escrita... a gente aprende a ler,
escrever, fazer conta... isso leva a gente a conhecer mais adiante...
por exemplo, nós estamos aqui sentados, mas se a gente quer saber
hoje, agorinha mesmo, o que está acontecendo lá em outro estado,
outro país, é só a gente entrar na Internet agora e ver, com se nós
estivéssemos vendo pessoalmente lá. Então, tudo isso é educação, é
200
o que a gente vem aprendendo.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Povo, Paiter, Particularidade, Interior, Identidade,
Comunidade, Tradição
Disfóricas: Contato, Mudança, Não-indígena, Exterior,
Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A concepção de educação enunciada por PP10 baseia-se na
oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele destaca
que, no interior da cultura particular de cada povo indígena, a
educação reproduz tradições entre diferentes gerações. No plano
geral e exterior, a educação insere na cultura elementos novos, o
que, no caso de povos indígenas, significou a introdução da escrita
e da matemática escolar após o contato, passando esses elementos
culturais gerais não-indígenas a serem reproduzidos no interior das
sociedades indígenas na atualidade em função das relações
interculturais estabelecidas.
DISCURSO
Educação é um processo de reprodução de tradições particulares de
cada povo indígena e também de inclusão de elementos culturais
não-indígenas gerais no interior da cultura de cada povo.
Quadro 28 – Análise semiótica da unidade textual E11Q15
UNIDADE
TEXTUAL E11Q15
KÉCIO Considerando sua experiência e sua formação, como você define
educação? O que é educação?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, a solicitação de uma definição de educação a ser
dada por PP9 foi precedida pela menção às categorias
“experiência” e “formação”. Isto indicou um direcionamento à
resposta do entrevistado que poderia enunciar sua concepção de
educação tanto a partir de suas experiências de vida e profissionais,
quanto a partir das referências acadêmicas que tem vivenciado no
201
curso de licenciatura na universidade.
PP9
Eu vejo a educação assim... a gente não só aprende na escola. A
gente aprende também na sociedade. Através da convivência com a
sociedade, a gente aprende muitas coisas também. E a gente
também tem... aprende também na escola... como... a gente aprende
aquele conteúdo que é lecionado para dar para os alunos, ensinar
para os alunos. A gente aprende isso lá. Agora, aquela experiência
de vida mesmo a gente aprende na sociedade. Isso é educação para
mim.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Aprendizagem, Cotidiano, Tradição, Convivência
Disfóricas: Escolarização
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
ANÁLISE
A concepção de educação enunciada por PP9 estrutura-se a partir
da oposição tradição vs escolarização. Assim, ele concebe
educação tanto como um processo pelo qual se aprende conteúdos
na escola, quanto como o processo que proporciona outros
aprendizados no interior de uma sociedade. Verifica-se que PP9
atribui a este segundo processo, o da convivência em sociedade,
fora da escola, a instância em que ocorre a educação para a vida.
Nesse sentido, a concepção de PP9 atribui à educação vinculada à
tradição uma importância maior, mais completa, em relação à
educação que ocorre por meio do processo de escolarização, ao
sustentar que esta última não contribui diretamente para uma
experiência de vida necessária à convivência em sociedade.
DISCURSO
Educação é um processo vinculado à tradição e também à escola,
que proporciona o aprendizado de experiências de vida no convívio
em sociedade e o aprendizado de conteúdos específicos na escola.
Quadro 29 – Análise semiótica da unidade textual E4Q9
UNIDADE
TEXTUAL E4Q9
202
KÉCIO O que é educação?
AUTOANÁLISE
Nessa pergunta dirigida ao PP3 com o intuito de conhecer sua
concepção de educação, não indiquei previamente uma perspectiva
para sua resposta, podendo ela se dar com base na tradição de seu
povo, em suas experiências profissionais ou em suas vivências no
curso de licenciatura do qual participa como estudante na
universidade.
PP3
A educação é um saber, é um conhecimento que os pais passam
para os filhos. São os conhecimentos... porque a educação não é só
na escola, a educação começa em casa. Geralmente os pais falam
da sua história, como deve ser respeitado o próximo, como é que
pode cumprimentar o próximo, como é que deve receber a pessoa
que visita eles. Então, a educação se inicia a partir de casa, mas
educação a gente também aprende na escola, tem muitos
conhecimentos que a gente não aprende em casa, mas aprende na
escola. A educação é o que aprende na escola ou em casa.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Tradição, Valores
Disfórica: Escolarização
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
ANÁLISE
A concepção de educação enunciada por PP3 baseia-se na oposição
tradição vs escolarização. Nesse sentido, ele concebe que educação
é um conhecimento que tem início no âmbito da tradição (casa), no
interior da qual se aprendem procedimentos, valores e a história do
povo, e é complementado no interior da escola, onde se aprendem
conhecimentos que não são proporcionados pela tradição. Essa
dualidade casa-escola presente na concepção exposta por PP9
aproxima-se de uma perspectiva intercultural de educação, pois
considera elementos que são oriundos de sua tradição, a casa (aqui
revestida de significados próprios da cultura de seu povo, como a
história, os costumes e valores sociais), e de um espaço até
recentemente inexistente em sua sociedade, a escola, considerada
em sua resposta como espaço em que se aprendem conhecimentos
203
inexistentes na tradição.
DISCURSO
Educação é um processo pelo qual os conhecimentos da tradição
são reproduzidos, sendo também o aprendizado resultante do
processo de escolarização.
Quadro 30 – Análise semiótica da unidade textual E9Q8
UNIDADE
TEXTUAL E9Q8
KÉCIO Considerando sua experiência como professor e sua formação,
como você define educação? O que é educação para você?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, a pergunta a PP7 foi precedida pela menção às
categorias “experiência” e “formação”, direcionando a resposta do
entrevistado para suas experiências profissionais e referências
acadêmicas no âmbito do curso de licenciatura na universidade do
qual participa como estudante. Assim, com meu fazer persuasivo,
dou mais ênfase para aspectos distintos dos conhecimentos que o
entrevistado tem a respeito de suas próprias tradições e de sua
própria cultura. Revela-se assim em minha fala um tendência,
enquanto pesquisador, de colar em primeiro plano sempre minhas
próprias referências acadêmicas e profissionais, frente aos
conhecimentos tradicionais dos outros, nesse caso de PP7.
PP7
Eu, como professor, entendo que educação... bem antes a gente
educava os filhos, assim como meu pai falou assim para mim que
tínhamos a educação tradicional, e hoje nós temos outra educação,
a escolar, da educação escolar. E bem antes do contato, nós
usávamos a educação tradicional. Mas como isso acontecia?
Diariamente os pais educavam os filhos: - Esse aqui é seu parente,
você não pode fazer isso para ele. Então, tudo o que era de bom
com relação à família, o pai orientava o filho. Mas hoje, a educação
escolar já é outra visão para nós, já é uma outra visão. Então,
educação escolar é tudo o que a gente enfrenta da educação dentro
da escola não-indígena. Isto eu entendo sobre educação.
204
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Costume, Particularidade, Indígena
Disfóricas: Escolarização, Colonização, Mudança, Não-indígena,
Enfrentamento
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
ANÁLISE
A concepção de educação enunciada por PP7 baseia-se na oposição
tradição vs escolarização. Nesse sentido, ele concebe educação em
duas perspectivas distintas, sendo uma a da educação tradicional, e
outra a da educação escolar. PP7 caracteriza a primeira como os
processos pelos quais os pais educavam os filhos no âmbito da
família no período anterior ao contato, e a segunda como aquela
introduzida pela escola com o advento do contato. Destaca-se na
prática discursiva do entrevistado a dicotomização entre as
diferentes visões características de cada tipo de educação,
ressaltando-se que a visão da educação escolar é diferente da visão
que se tinha na educação tradicional. Gamolonô expõe assim uma
consciência de que a colonização imposta a seu povo e a introdução
da escola após o contato alterou os processos tradicionais de
reprodução da cultura, inserindo-se nesse processo perspectivas e
valores não-indígenas. A categoria “enfrentamento” emerge de sua
fala como consequência das transformações e mudanças de
perspectivas introduzidas pela escola em sua sobreposição em
relação à tradição e à família.
DISCURSO
Educação é tanto o processo pelo qual, no interior da tradição, os
conhecimentos e valores são reproduzidos, quanto o processo de
alteração da cultura introduzido pela colonização e enfrentado pelo
povo no interior da escola.
Quadro 31 – Análise semiótica da unidade textual E7Q5
UNIDADE
TEXTUAL E7Q5
KÉCIO Na sua concepção, o que é educação?
205
AUTOANÁLISE
Nessa questão, vinculo a pergunta à concepção pessoal que PP6
tem sobre educação, não restringindo a resposta do entrevistado a
perspectivas específicas, tais como aquelas oriundas de
experiências profissionais ou acadêmicas. Todavia, considero que a
minha própria presença, enquanto pesquisador não-indígena, e a
relação professor-aluno que mantenho com o entrevistado
ocasionam um fazer persuasivo que indica a PP6 uma perspectiva
acadêmica a partir da qual pode enunciar uma resposta à questão.
PP6
Educação é ensinar a criança para dar os primeiros passos, para ela
saber... educação é a criança aprender a ler e escrever, respeitar os
mais velhos, e aprender a realidade da comunidade. É aprender a
organização dentro e fora da comunidade. Porque a educação vem
trazendo muita coisa, aquilo que se pode aprender.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Ensino, Iniciação, Tradição, Aprendizagem, Realidade,
Comunidade, Interior, Particularidade.
Disfóricas: Exterior, Escolarização, Generalidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Interior vs Exterior
ANÁLISE
A concepção de educação enunciada por PP6 baseia-se na oposição
interior vs exterior. Desse modo, ele define educação como o
ensino de procedimentos tais como ler e escrever, característicos da
sociedade não-indígena e originariamente externos à sua
comunidade, ao mesmo tempo em que considera que educação
também é a iniciação nos valores tradicionais e no conhecimento da
realidade interna de sua comunidade. Nesse sentido, enquanto, de
um lado, “ler” e “escrever” estão associados na fala de PP6 a
educação promovida pela escolarização, por outro lado, “velhos”
representa o aspecto da educação relacionado à tradição e à
realidade da comunidade. PP6 expressa assim uma concepção de
educação que se aproxima de uma perspectiva intercultural ao
considerar processos e procedimentos oriundos tanto do interior
quanto do exterior de sua comunidade e de sua cultura.
DISCURSO Educação é um aprendizado de procedimentos e valores internos à
206
cultura e à tradição de uma comunidade indígena, assim como é o
aprendizado de procedimentos não-indígenas tais como ler e
escrever, provenientes de um meio externo e promovidos pela
escolarização.
7.5 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização concepções de
escola da categoria de análise educação escolar indígena
Quadro 32 – Análise semiótica da unidade textual E2Q1
UNIDADE
TEXTUAL E2Q1
KÉCIO PP1, na sua concepção, o que é uma escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, solicito a PP1 que enuncie sua concepção de escola,
sem indicar uma perspectiva específica que oriente sua resposta, tal
como a cultural, a política, a pedagógica ou a arquitetônica. O uso
do artigo indefinido “uma” também contribui para a livre resposta
do entrevistado no sentido de não ter que se ater a um conceito ou a
uma definição restrita de escola.
PP1
Para mim, a escola é o espaço onde se ensina um conhecimento já
trabalhado, conhecimento que já foi sistematizado. Para mim a
escola é aquela estrutura física para ensinar algo, algum conteúdo,
algum conhecimento... Para mim a escola é isso. Na minha
concepção a escola é... escola indígena, ou seja, um espaço onde se
ensina para indígena, não o conhecimento indígena, mas onde se
ensina o conhecimento para indígena. Então, na minha concepção
hoje, para mim a escola é isso. Mas que para mim não tem nada a
ver com a realidade, com a visão de mundo indígena, pelo menos
paiter.
CATEGORIAS Eufóricas: Indígena, Tradição, Interior, Identidade, Paiter
207
SEMÂNTICAS Disfóricas: Não-indígena, Escolarização, Negação, Colonização,
Exterior
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A concepção de escola enunciada por PP1 baseia-se na oposição
indígena vs não-indígena. Nesse sentido, ele define escola como
um espaço ou estrutura física onde se ensina para indígenas
conhecimentos não-indígenas. Em sua definição, PP1 destaca a
diferença existente entre a visão de mundo da escola e a visão de
mundo indígena, ressaltando que a escola é um elemento estranho e
nada tem a ver com a realidade ou com a identidade de seu povo. A
resposta de PP1 associa-se a uma visão crítica da escola, como
espaço colonizador que foi estabelecido entre os povos indígenas
após o contato com a sociedade não-indígena, promovendo,
juntamente com outros espaços, a mudança de visão de mundo
existente em distintas culturas indígenas.
DISCURSO
Escola é um espaço onde se ensina para indígenas conhecimentos
não-indígenas que nada têm a ver com a identidade e a visão de
mundo indígena.
Quadro 33 – Análise semiótica da unidade textual E14Q13
UNIDADE
TEXTUAL E14Q13
KÉCIO E o que é escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, fiz uma pergunta genérica a PP10, esperando
receber uma resposta na qual pudesse perceber sua concepção de
escola, sem indicar previamente uma perspectiva que pudesse
orientar sua resposta. A conjunção “e” que inicia a pergunta indica
que a questão foi realizada na sequência de outras questões que
compuseram a entrevista.
PP10 Escola é um ensinamento que a gente tem, que recebe dos pais, dos
mais velhos também. A escola não é só um lugar de estudar. Escola
208
não é uma construção. Escola está dentro de um povo. Nós estamos
aqui trocando ideias... talvez você vai aprender uma coisa comigo
agora que nem esperava que eu falasse. Então pra mim isso é uma
escola. Se a gente estiver andando e conversando, e trocando uma
ideia, e você aprender uma palavra nova naquele lugar, ou uma
experiência nova naquele lugar... é uma escola. Então, para o
indígena, onde ele está conversando, trocando ideias, aprendendo, é
uma escola.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Tradição, Experiência, Interior, Povo,
Indígena.
Disfóricas: Generalidade, Limitação, Não-Indígena, Exterior
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Generalidade vs Particularidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP10 enuncia uma concepção de escola baseada
na oposição generalidade vs particularidade. Ele define escola
como toda situação em geral que oportuniza aprendizagens,
ensinamentos, troca de ideias no interior de um povo. Ele opõe uma
concepção indígena generalista à perspectiva particularista não-
indígena que concebe escola apenas como uma construção, um
espaço físico, delimitado como um lugar de se estudar. Desse
modo, verifica-se que a concepção de escola apresentada por PP10
está relacionada a características do contexto cultural de seu povo
cuja história só passou a registrar recentemente a presença de
escola como um espaço físico e delimitado com a finalidade de
ensinar.
DISCURSO
Escola é toda situação social em geral que oportuniza
aprendizagens, ensinamentos, troca de ideias no interior de um
povo, para além do espaço restrito e particular de uma construção
física.
Quadro 34 – Análise semiótica da unidade textual E11Q16
UNIDADE
TEXTUAL E11Q16
209
KÉCIO O que é escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, formulei uma pergunta sobre escola de forma
genérica a PP9, sem indicar-lhe uma perspectiva específica
(cultural, pedagógica, política) a qual sua resposta pudesse ser
dirigida. Assim, ele ficou livre para enunciar uma concepção de
escola desde uma perspectiva pessoal ou com base em referências
acadêmicas proporcionadas pelo curso de formação de professores
indígenas do qual participa como estudante.
PP9
Escola é um espaço que a gente... que ensina ao aluno aquilo que
estou falando, aqueles conteúdos... ensinar conteúdos para aquelas
disciplinas. No caso, assim, disciplinas de Português, Matemática...
aquelas matérias.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Currículo, Disciplinarização,
Formalidade.
Disfórica: Informalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Formalidade vs Informalidade
ANÁLISE
A concepção de escola enunciada por PP9 baseia-se na oposição
formalidade vs informalidade. Nesse sentido, ele apresenta uma
definição de escola como um espaço formal, restrito e específico,
no qual se ensinam conteúdos também específicos de forma
disciplinar. Essa concepção de escola apresentada pelo entrevistado
relaciona-se com a natureza dos espaços escolares historicamente
impostos em contextos indígenas.
DISCURSO Escola é um espaço formal onde se ensinam conteúdos específicos
de forma disciplinar.
Quadro 35 – Análise semiótica da unidade textual E5Q1
UNIDADE
TEXTUAL E5Q1
KÉCIO PP4, na sua concepção, o que é a escola?
AUTOANÁLISE Nessa questão, solicitei a PP4 que enunciasse sua concepção de
210
escola, sem indicar uma perspectiva específica que orientasse sua
resposta (acadêmica, cultural, política, pedagógica).
PP4 A escola, como eu penso, é um espaço onde as crianças aprendem a
ler e escrever.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Formalidade, Particularidade.
Disfórica: Informalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Formalidade vs Informalidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP4 enuncia uma concepção de escola com base
em uma oposição formalidade vs informalidade. Nesse sentido,
define escola como um espaço formal que promove o aprendizado
da leitura e da escrita. Essa concepção de escola apresentada pelo
entrevistado relaciona-se com uma perspectiva comum de escola
historicamente imposta em contextos indígenas com a finalidade de
introduzir tão somente práticas não-indígenas em culturas
indígenas, em particular as práticas da leitura e da escrita.
DISCURSO Escola é um espaço formal onde se aprende a ler e escrever.
Quadro 36 – Análise semiótica da unidade textual E4Q5
UNIDADE
TEXTUAL E4Q5
KÉCIO Na sua concepção, o que é uma escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, solicito a PP3 sua concepção de escola, sem indicar
uma perspectiva específica que possa orientar a resposta. O artigo
indefinido “uma” contribui para a liberdade de resposta do
entrevistado no sentido de não ter que se ater a um conceito ou a
uma definição restrita de escola.
PP3
Escola para mim é um lugar onde a gente aprende um
conhecimento que não é aprendido em casa, um conteúdo
específico. Mas tem muito... tem muitas coisas que a gente aprende
em casa, a educação... mas a escola, além de educar, ela também
pode dar novas ideias para a gente adquirir mais conhecimento.
211
Então a escola é um espaço em que a gente aprende além do que a
gente aprende em casa.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Currículo, Conhecimento, Formalidade
Disfóricas: Tradição, Generalidade, Informalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Formalidade vs Informalidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP3 enuncia uma concepção de escola a partir da
oposição formalidade (escola) vs informalidade (casa). Nesse
sentido, ele define escola como um espaço formal onde se
aprendem conteúdos específicos e se adquirem conhecimentos que
não são adquiridos em casa ou no espaço da tradição. A concepção
de PP3 aproxima-se de uma perspectiva de escola enquanto espaço
de hibridação cultural, um elemento externo à tradição que tanto
pode reproduzir saberes e fazeres da tradição (aqueles que também
se aprendem em casa), quanto pode incluir em espaços tradicionais
novos saberes (novas ideias).
DISCURSO Escola é um espaço formal em que se reproduzem saberes e
conhecimentos específicos que não fazem parte da tradição.
Quadro 37 – Análise semiótica da unidade textual E9Q9
UNIDADE
TEXTUAL E9Q9
KÉCIO Nesse sentido, como você define escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, a expressão “nesse sentido” que utilizei no início da
pergunta indicou a PP7 uma perspectiva para sua definição de
escola, vinculando-a à resposta da questão anterior da entrevista,
que tratava de sua concepção de educação e na qual ele se baseou
na oposição tradição vs escolarização.
PP7
Escola é um local onde os alunos vão estudar, buscar os
conhecimentos ocidentais. Mas, comparando com nossa tradição,
não existia escola, escola para nós era a nossa casa, não tinha um
lugar assim isolado fora de casa. Então, existe um pouco de
212
diferença entre a escola não-indígena e a escola tradicional. Escola
era a nossa casa, antes, e hoje a escola já tem um lugar apropriado
para os alunos.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Indígena, Generalidade, Interior, Passado
Disfóricas: Ocidente, Particularidade, Não-Indígena, Exterior,
Presente, Colonização, Modernidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A concepção de escola enunciada por PP7 baseia-se na oposição
tradição vs modernidade. Nesse sentido, ele define escola como um
espaço não-indígena isolado, distinto da tradição (casa), para onde
os alunos indígenas vão em busca de conhecimentos ocidentais
(modernidade). A categoria “diferença” emerge da resposta de PP7
ao destacar a distinção entre a tradição indígena e a escola como
espaço deslocado e estranho à realidade indígena. Sua definição de
escola relaciona-se a uma perspectiva crítica relativa às mudanças
pós-contato de seu povo com a sociedade não-indígena (ocidente)
como uma das consequências do processo de colonização. A escola
é apresentada assim como um resultado desse contato com o
Ocidente, sendo ela mesma o espaço representativo do Ocidente na
atualidade (hoje) dentro da comunidade, assumindo as funções que
anteriormente eram exercidas pela tradição (casa).
DISCURSO Escola é um espaço não-indígena isolado e diferente da tradição
indígena, onde alunos indígenas buscam conhecimentos ocidentais.
Quadro 38 – Análise semiótica da unidade textual E8Q22
UNIDADE
TEXTUAL E8Q22
KÉCIO Na sua opinião, o que é escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, não indiquei a PP6 uma perspectiva específica que
pudesse orientar sua definição de escola, ficando assim o
entrevistado livre para enunciar sua concepção de escola a partir de
213
sua experiência profissional, acadêmica ou de vida em geral.
PP6
É onde o educador vai ensinar o aluno, no caso a ler e escrever.
Não é só a ler e escrever, mas sim educar o aluno. Onde ele possa
ensinar o aluno a como escrever. Não só escrever, mas como
respeitar as pessoas, o que é certo e o que pode fazer, e também
aquilo que é errado e não pode fazer. Então, a escola é o lugar onde
vai ensinar e capacitar o conhecimento do aluno, da criança.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Leitura, Escrita, Conhecimento,
Tradição.
Disfóricas: Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP6 expõe uma concepção de escola com base na
oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, define
escola como um local particular para se ensinar e se aprender a ler e
a escrever. Destacam-se na resposta de PP6 a “leitura” e a “escrita”
como categorias que caracterizam de forma específica a escola,
havendo nela o papel de quem ensina e o de quem aprende. O
poder de classificar o certo e o errado em uma visão de mundo
geral é outra característica atribuída por PP6 à escola. Essa
concepção enunciada pelo entrevistado aproxima-se da perspectiva
de escola historicamente introduzida em comunidades indígenas
sob o pretexto de se ensinar a ler e a escrever, introduzindo porém
outros saberes e valores originários do mundo não-indígena.
DISCURSO
Escola é um espaço específico onde se aprende a ler, escrever e
valores para distinguir o que é certo do que é errado, o que pode ser
feito do que não pode se fazer.
Quadro 39 – Análise semiótica da unidade textual E6Q6
UNIDADE
TEXTUAL E6Q6
KÉCIO A gente percebe que, ao falarmos de etnomatemática, a gente
214
sempre está relacionando com a escola, ou seja, parece que esse é
um espaço em que a etnomatemática vai se fazer presente. Nesse
sentido, gostaria que você desse uma definição de escola. Na sua
concepção, o que é escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, antes de enunciar a pergunta a PP5 sobre sua
concepção de escola, fiz referência a falas anteriores ocorridas na
entrevista que relacionavam etnomatemática e escola.
PP5
No meu modo de ver o que é escola, a escola para mim tem vários
sentidos. A escola não é uma escola que está lá, plantada, feitinha,
bonitinha, com estrutura legal. A escola também existe em vários
lugares, em vários contextos: dentro da família, dentro de casa,
dentro da comunidade, dependendo do nosso entender. Então, para
mim a escola é tudo isso. Onde você está lidando, vivendo naquele
meio. Muitas vezes a gente acha que o que está estruturado,
construído e lá plantado é uma escola. Essa escola lá é apenas um
espaço de sistematizar o nosso conhecimento, é um espaço de a
gente mais discutir o que nós estamos vivendo a cada dia. Então,
para mim a escola é essa, mas, como eu falei, é tudo o que nós
estamos vivendo na nossa vida.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Generalidade, Contexto, Interior, Tradição,
Conhecimento, Cotidiano.
Disfóricas: Particularidade, Exterior, Estrutura, Limitação,
Sistematização.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
Em sua resposta, PP5 enuncia uma concepção com base na
oposição particularidade vs generalidade. Nesse sentido, ele define
escola como espaços em geral em que ocorrem aprendizagens, para
além do espaço particular, específico e restrito da escola enquanto
estrutura física. PP5 distingue assim uma concepção generalista de
uma concepção restritiva de escola, considerando que a família e a
comunidade também são espaços a serem considerados como
escola. Ao espaço físico, delimitado e específico comumente
215
chamado de escola, PP5 atribui a função de sistematizar
conhecimentos e debater as questões cotidianas da comunidade.
Verifica-se que a concepção de escola enunciada por PP5
aproxima-se de uma perspectiva crítica pela qual se busca superar o
modelo de instituição escolar, restritivo e delimitado,
historicamente introduzido em sociedades indígenas, em detrimento
das formas próprias de educação já existentes em suas culturas e
tradições.
DISCURSO
Escola é um conjunto de espaços gerais, múltiplos e diversos
existentes no contexto de uma comunidade e relacionados à vida
das pessoas, além de ser uma estrutura física que tem a finalidade
de sistematizar conhecimentos e discutir questões relativas ao
cotidiano.
Quadro 40 – Análise semiótica da unidade textual E3Q2
UNIDADE
TEXTUAL E3Q2
KÉCIO O que é uma escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, solicito a PP2 que enuncie sua concepção de escola,
mas não indico uma perspectiva específica que possa orientar a
resposta do entrevistado. O artigo indefinido “uma” presente na
questão contribui para que a resposta de PP2 seja livre no sentido
de não ter que se ater a um conceito ou a uma definição restrita de
escola.
PP2
Escola, assim... pelo nosso entendimento eu falo, mas pela Língua
Portuguesa eu não sei se vou conseguir explicar. Pelo que a gente
pensa a escola... a escola é uma estrutura onde a gente se reúne
juntamente com as crianças para poder debater sobre algum assunto
importante, como aula... não só aulas, mas também ouvir histórias
da cultura dentro dessa escola. É uma estrutura física, assim...
dentro dela nós conseguimos explanar muitas coisas importantes na
comunidade, não só da cultura não-indígena, mas também o que
216
vem da nossa cultura. É muito importante a gente dizer essa
importância da escola para a comunidade. A importância que ela
tem é muito fundamental, até porque nós precisamos da escola
dentro da comunidade. Pelo meu entender, a escola é algo que a
gente necessita dentro da comunidade para poder aprender,
informar, passar informações que a gente tem dentro da sociedade
envolvente.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Tradição, Cultura, Comunidade,
Interior, Importância.
Disfóricas: Exterior, Não-Indígena, Generalidade, Colonização.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Interior vs Exterior
ANÁLISE
A concepção de escola enunciada por PP2 está baseada na oposição
interior vs exterior. Nesse sentido, ele define escola como uma
estrutura que existe no interior da comunidade indígena, mas ao
mesmo tempo possui relações como o exterior da comunidade,
porque é um espaço onde se obtém informações sobre a sociedade
envolvente, através de relações estabelecidas pelo processo de
colonização. Emerge da resposta de PP2 a categoria “importância”
utilizada por ele para justificar a presença da escola na comunidade
como espaço para promoção da cultura local, em particular, e do
acesso à cultura não-indígena, em geral. Nesse sentido, a
concepção de educação escolar presente na prática discursiva de
PP2 aproxima-se de uma perspectiva intercultural de escola,
considerada esta como um espaço que considera e reproduz
simultaneamente elementos de espaços culturais distintos.
DISCURSO
Escola é uma estrutura que existe no interior da comunidade para
reproduzir tanto conhecimentos internos à cultura indígena quanto
conhecimentos externos, provenientes da sociedade envolvente.
217
7.6 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância da
escola na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena
Quadro 41 – Análise semiótica da unidade textual E2Q3
UNIDADE
TEXTUAL E2Q3
KÉCIO Qual a importância dessa escola existente hoje na comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP1 sua perspectiva sobre a
importância da escola na aldeia. Ao utilizar o termo “hoje”, indico
com meu fazer persuasivo uma perspectiva de resposta a PP1, no
sentido de destacar uma temporalidade, a partir da qual o
entrevistado pode se valer da comparação entre uma situação
anterior, existente antes do contato, no qual a escola não existia na
aldeia, e outra situação posterior, na qual a escola se faz presente.
PP1
A importância dessa escola hoje é o fato de que ela já existe como
instituição dentro da comunidade... A importância dela é que ela já
existe dentro da comunidade, é reconhecida pelo estado, pelo
estado brasileiro, pelo estado estadual... e que podemos usar os
conhecimentos paiter de acordo com a visão de mundo e visão de
futuro paiter, ensinar isso nessa escola. Então, usar esse mecanismo
escola, instituição escola para ensinar de acordo com a visão de
mundo paiter. Então, a importância que a escola tem hoje, para
mim é isso, ela tem uma função, e a gente tem que fazer com que
essa funcionalidade dela sirva para o povo Paiter, não
simplesmente ser uma escola sem ter... de acordo com a visão de
mundo paiter.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Existência, Interior, Comunidade, Reconhecimento,
Funcionalidade, Indígena, Tradição, Identidade, Particularidade,
Povo, Paiter
Disfóricas: Não-indígena, Exterior, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
218
ANÁLISE
A resposta de PP1 está baseada na oposição particularidade vs
generalidade. Nesse sentido, escola é uma estrutura ou instituição
de caráter geral, que tem um reconhecimento externo, enquanto
espaço instituído pelo estado, mas que deve ser utilizado no interior
da comunidade para fins de promoção da visão de mundo particular
do povo Paiter, residindo nisso sua importância. PP1 destaca assim
que a funcionalidade da escola enquanto espaço para se ensinar e se
aprender deve ser direcionada para a promoção da tradição e da
identidade de seu povo, em oposição a uma visão de mundo
genérica e não-indígena. A prática discursiva de PP1 apresenta uma
ressignificação da escola na aldeia, deixando esta de ser
caracterizada apenas como um espaço de imposição de uma cultura
não-indígena para assumir o papel de reproduzir a tradição da
própria comunidade na qual está inserida.
DISCURSO
A importância da escola existente na aldeia é que ela é uma
instituição de caráter geral, reconhecida e instituída pelo estado,
mas cuja funcionalidade deve ser utilizada para a promoção da
tradição e da identidade cultural particular do povo.
Quadro 42 – Análise semiótica da unidade textual E15Q16
UNIDADE
TEXTUAL E15Q16
KÉCIO Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O
que o povo Paiter espera da escola na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, objetivo ouvir de PP1 sua impressão a respeito de
como seu próprio povo percebe a escola na aldeia. Enquanto fazer
persuasivo, introduzo em minha fala o termo “hoje”, o que indica
ao entrevistado uma perspectiva de resposta, uma vez que insere a
temporalidade como elemento condutor da resposta. Essa
temporalidade pode sugerir a PP1 uma distinção entre um estado de
pensamento anterior e outro atual na forma de seu povo conceber a
escola na aldeia.
219
PP1
A escola hoje, professor, acho que ela tem uma função bem
diferente, pensada pelo povo Paiter, do que eles pensavam antes.
Porque o papel da escola nas comunidades paiter tinha uma função
de você aprender... vamos supor... de você aprender as coisas do
branco, as coisas do não-indígena. Você fazer com que a escola...
quer dizer, a FUNAI colocou uma escola dentro das comunidades
paiter, mas no sentido de que os paiter começassem a aprender a
falar português, fazer as coisas que não eram do paiter. E, ao
mesmo tempo, os paiter perceberam que isso realmente tem que ser
assim... que eu preciso aprender para me dar bem fora... eles
pensaram mesmo que eles precisavam aprender aquilo. Mas hoje,
atualmente, já tem uma controvérsia em relação a isso. A escola
hoje tem um papel de que você não precisa somente aprender
aquilo que a escola está passando para você. Você tem que colocar
os elementos da sua cultura dentro da escola para você aprender, e
também os elementos que são de fora. Então, quer dizer, antes,
como paiter, você pensava em aprender tudo o que a escola te
ensinava. Agora, você tem que... hoje o pensamento, visto pelos
paiter, é que você tem que colocar dentro da escola o que é próprio
do paiter... e o que ela tem que trazer também de fora. Já tem outro
pensamento, em relação ao anterior. A gente vai perceber três fases,
no caso. Primeiro, na inserção da escola pela FUNAI, somente para
aprender português, a falar português, matemática, para que você
fosse igual ao branco. A outra concepção, a segunda, é um
pouquinho diferente... só na questão de você não... como é falado
muito pelos indígenas, “não ser passado para trás” [risos]... essa
concepção de que você tem que aprender aquilo, para que você não
se deixe passar para trás, porque você já tem um domínio daquilo
que você tem de português, matemática e tal. E a terceira, talvez... a
gente tem que pensar um pouco qual é a diferença um do outro...
mas vamos supor que a terceira é a que você... que os paiter tem o
elemento... o papel da escola assim... ela não tem que carregar
somente conteúdo não-indígena. Tem que inserir também conteúdo
220
paiter, conhecimento paiter, para que seja ensinado esse
conhecimento paiter, e também o que ela traz consigo. Então, hoje,
o papel da escola visto pelos paiter é de fortalecimento da
identidade, de conhecer realmente esses dois mundos.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Diferença, Povo, Paiter, Indígena, Particularidade,
Interior, Identidade, Conhecimento, Tradição, Empoderamento,
Interculturalidade.
Disfóricas: Não-indígena, Generalidade, Exterior, Colonização.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A resposta de PP1 baseia-se na oposição indígena vs não-indígena.
Nesse sentido, ele percebe que seu povo espera que a escola na
aldeia atualmente seja um espaço tanto de valorização de sua
própria cultura e identidade indígena particular, quanto de
promoção de conhecimentos não-indígenas necessários para a
existência do povo após o contato. Destaca-se na fala do
entrevistado uma visão crítica a respeito das transformações pelas
quais passou a concepção de escola pelo seu povo. Assim, PP1
identifica três momentos distintos que caracterizaram a escola na
aldeia, considerada desde um espaço de introdução de saberes
exclusivamente não-indígenas na aldeia, cuja consequência
inicialmente o povo não tinha consciência, passando por um
momento de reconhecimento da necessidade da escola em razão
das relações interculturais com a sociedade colonizadora, até atingir
uma criticidade a partir da qual se espera que a escola também sirva
para a promoção da própria cultura paiter, fortalecendo assim a
identidade cultural do povo.
DISCURSO
A escola na aldeia, atualmente, deve servir tanto como um espaço
para se aprender conhecimentos não-indígenas necessários para a
convivência com a sociedade colonizadora, quanto para promover
os conhecimentos indígenas, fortalecendo a cultura e a identidade
do povo.
221
Quadro 43 – Análise semiótica da unidade textual E14Q17
UNIDADE
TEXTUAL E14Q17
KÉCIO Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O
que o povo Paiter espera da escola na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, o termo “hoje” indica ao entrevistado uma
perspectiva contrastiva entre uma situação situada em um tempo
passado e a atual. Assim, ao inserir na pergunta uma
temporalidade, meu fazer persuasivo indica ao entrevistado a
“mudança” como possível eixo condutor de sua resposta, isto é,
está presente em minha fala a pressuposição de que a percepção
que o povo tem de escola hoje deve ser diferente da que ele tinha
em tempos passados.
PP10
Professor, eu acho que, na minha opinião particular, eu vejo isso...
até porque eu trabalhei como executor lá na SEDUC de Cacoal, e
eu andei e convivi também em várias aldeias, várias escolas do
povo Suruí, onde eu tenho uma experiência boa, que eu vi. Eu acho
que, na minha opinião particular, eles estão vendo mais assim... que
é tipo uma coisa comum, que você pode ter, usar... só de usar. Até
porque, a maioria, dentro das aldeias hoje, a maioria é jovem, que
construiu sua aldeia não pelo objetivo de construir uma família
legal, ele saiu de uma aldeia em que morava e foi construir uma
aldeia por ignorância. Por que eu falo isso, ignorância? Porque ele
foi abrir uma aldeia pelo objetivo de ter uma escola, um postinho
de saúde construído pela FUNASA, e ganhar alguma coisa, que a
FUNAI pode dar, e eles serem os donos daquilo, e se mostrar para
as pessoas: “não, eu também sou uma pessoa respeitável, como
você, e não é só você que pode estar mandando em mim. Então,
não é só o seu parente que pode ser professor e agente de saúde. O
meu filho também pode ser o professor, o agente de saúde”. Então,
isso eu acho, no meu pensamento particular, eu fico pensando e
anotando isso, porque a divisão dentro dos Suruí está demais,
professor. Há uns quinze anos atrás, o povo Suruí só tinha seis
222
aldeias, seis linhas. Hoje, está um avanço danado. Hoje está em...
quando eu trabalhei, há uns oito meses atrás, na última vez que eu
fiz uma viagem, eu contei vinte e sete aldeias. Então, a escola não
está dentro da aldeia, onde ela está localizada, porque a pessoa está
pensando: “Eu quero ter uma escola que vai trazer e vai levar a vida
do meu filho adiante, para meu filho aprender uma coisa que hoje
tem que aprender dentro da cultura do não-indígena mesmo, e
trazer para beneficiar minha comunidade”. Não está dessa forma.
Hoje está uma briga, uma disputa. Se não contratou seu filho, ou
seu parente que você quer contratar, eu pego e saio, a pessoa sai, e
vou construir uma aldeia. Lá eu posso ter o direito de contratar a
pessoa que eu quero. Então, a escola está uma bagunça dentro da
comunidade. Eu vejo isso.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Tradição, Povo, Comunidade,
Harmonia, Consenso, União, Coletividade.
Disfóricas: Generalidade, Inexperiência, Colonização, Ambição,
Disputa, Poder, Não-indígena, Discórdia, Conflito, Desunião,
Individualidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Harmonia vs Conflito
ANÁLISE
A resposta de PP10 baseia-se na oposição harmonia vs conflito.
Nesse sentido, ele percebe que a escola na aldeia, antes de ser
considerada um espaço de harmonia interna, de promoção da
tradição particular de seu povo ou de aquisição de conhecimentos
não-indígenas, tem sido pretexto para conflitos e disputas entre
membros das comunidades, motivados por interesses individuais.
Desse modo, a escola é concebida como um espaço de privilégios,
que garante a quem dela participa benefícios pessoais em
detrimento da coletividade. Essa perspectiva crítica da resposta de
PP10 relativa ao seu modo particular de interpretar a percepção que
seu povo tem da escola ilustra as alterações de visão de mundo, de
identidade e de valores que a presença da instituição escolar em
comunidades tradicionais pode ocasionar. Verifica-se, a partir da
223
prática discursiva de PP10, que, no caso particular dos Paiter, a
inserção da escola na aldeia como parte do processo de colonização
não é só instância subjetiva de inclusão de conhecimentos não-
indígenas para o interior da fronteira cultural e identitária do povo,
mas também é fortemente instância objetiva de desestabilização das
relações de poder tradicionalmente existentes nas comunidades. A
escola assume-se assim entre os Paiter como espaço permeado de
contradições.
DISCURSO
A escola na aldeia tem se destacado entre os Paiter como um
espaço de conflitos, motivados por interesses individuais que
permeiam as relações de poder, em desacordo com a harmonia
coletiva que se espera em relação à promoção da cultura, da
tradição e da identidade do povo.
Quadro 44 – Análise semiótica da unidade textual E11Q20
UNIDADE
TEXTUAL E11Q20
KÉCIO Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O
que o povo Paiter espera da escola na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP9 a respeito da importância e do
papel que seu povo atribui à escola. Ao utilizar o termo “hoje” em
minha fala, indico a PP9, com meu fazer persuasivo, uma
perspectiva de resposta, ao pressupor que a escola de hoje pode ser
diferente da que foi originalmente introduzida em sua sociedade
tradicional em tempos passados.
PP9
O povo Paiter espera dentro da aldeia do jeito que eles querem.
Como? Com a cara do índio. Respeitando, assim... ter autonomia...
ser dirigida pelos índios. Eles não querem que o funcionamento da
escola venha de fora. Eles querem que, a partir dali mesmo, nasça e
do jeito que eles querem que seja, com um funcionamento como...
com uma merenda diferenciada, não mais aquela merenda de
alimentos de não-índio. Dali mesmo, a merenda pode ser carne de
224
caça, chicha na merenda... e assim, tornar mais para o tradicional. E
também aplicar mais os conhecimentos, igual para igual com o
conhecimento não-indígena, aplicar dentro da sala de aula. Agora,
por que todas as escolas indígenas estão aplicando mais os
conhecimentos do não-indígena e muito menos ainda o
conhecimento do povo dentro da escola? Não está do jeito que os
índios querem. Falta muito para melhorar.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Interior, Identidade, Autonomia, Particularidade,
Diferença, Indígena, Tradição, Interculturalidade
Disfóricas: Exterior, Dominação, Generalidade, Não-Indígena,
Contradição
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A resposta de PP9 está baseada na oposição indígena vs não-
indígena. Nesse sentido, ele considera que se espera da escola na
aldeia uma outra perspectiva, distinta da atualmente existente. A
escola na aldeia deve ser autônoma e diferenciada, assumindo uma
identidade indígena (ter a cara do índio) particular, voltada para a
tradição. Nesse sentido, ela deve ser diferente daquela existente
atualmente na aldeia, onde os conhecimentos não-indígenas ainda
prevalecem em sala de aula, em uma relação de dominação
proveniente do processo de colonização. PP9 concebe a escola
diferenciada que seu povo espera como aquela que supere essa
contradição, e na qual os conhecimentos indígenas e não-indígenas
sejam tratados de igual para igual, sem deméritos para a tradição e
a cultura de seu povo. Tal concepção de escola diferenciada
enunciada por PP9 aproxima-se de uma perspectiva de educação
intercultural, segundo a qual a escola deve considerar o diálogo
entre saberes provenientes de distintos contextos, em particular, do
contexto indígena e do não-indígena.
DISCURSO
A escola na aldeia, se autônoma e diferenciada, é importante para a
manutenção dos saberes da tradição indígena e para a aquisição de
conhecimentos da sociedade não-indígena, devendo para tanto
225
buscar superar contradições e relações de dominação que ainda
existem em seu interior provenientes do processo de colonização.
Quadro 45 – Análise semiótica da unidade textual E5Q3
UNIDADE
TEXTUAL E5Q3
KÉCIO Qual é a importância da escola na comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, solicito a PP4 que fale sobre a importância da
escola existente em sua comunidade. Está presente em minha fala a
pressuposição de que a escola é importante, indicando assim, com
meu fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado,
sendo esta a de justificar a importância considerada como dada em
minha fala.
PP4
A importância da escola estar na comunidade é que, antes, as
crianças indígenas saíam da comunidade para ir para a escola não-
indígena, onde tinham muita dificuldade de aprendizagem, porque
não sabiam a Língua Portuguesa. Já na comunidade, melhorou,
porque professores indígenas já estão atuando nas escolas
indígenas, o que facilita o aprendizado das crianças.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Interior, Comunidade, Indígena, Particularidade
Disfóricas: Exterior, Não-Indígena, Generalidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A resposta de PP4 está baseada na oposição indígena vs não-
indígena. Nesse sentido, ele considera que a importância da escola
na aldeia está relacionada com a possibilidade dos estudantes
indígenas não precisarem mais sair da comunidade para estudar em
um espaço não-indígena, fora de seu território, como ocorria em
tempos anteriores. Estando a escola agora na aldeia, diminuem as
dificuldades de aprendizagem dos alunos, porque podem estudar
com professores indígenas e aprenderem em sua própria língua
materna. Assim, na perspectiva de PP4, a escola estando situada em
226
um espaço geral exterior à comunidade, sendo um espaço não-
indígena, impõe dificuldades aos estudantes indígenas ao não
considerar suas particularidades, em especial, sua língua materna.
DISCURSO
A escola na comunidade é importante para que os estudantes
indígenas possam aprender em sua própria língua materna, com
professores da comunidade, sem ter que sair de seu território, de
modo a não sofrer dificuldades impostas por uma escola não-
indígena que não leva em consideração suas particularidades
linguísticas.
Quadro 46 – Análise semiótica da unidade textual E4Q6
UNIDADE
TEXTUAL E4Q6
KÉCIO Por que é importante ter uma escola na comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, está presente em minha fala, enquanto um fazer
persuasivo, a pressuposição de que a escola na comunidade é
importante a priori. Assim, direciono a resposta de PP3 para uma
justificativa dessa importância, enquanto uma característica da
escola já dada.
PP3
Porque a escola está ensinando a cultura, está ensinando a cultura
que foi se esquecendo um pouco. Além de ensinar da cultura, estão
ensinando do conhecimento não-indígena, para reivindicar seus
direitos, para formar uma área específica voltada para sua
comunidade. Nós que estamos nos formando não é para só pensar
em si, para manter... além de se manter, ele possa contribuir para a
comunidade também.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Cultura, Tradição, Indígena, Direito, Particularidade,
Comunidade, Coletividade.
Disfóricas: Esquecimento, Colonização, Não-Indígena,
Generalidade, Individualidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
227
ANÁLISE
A resposta de PP3 está baseada na oposição indígena vs não-
indígena. Nesse sentido, ele considera que a escola na aldeia é
importante porque, por um lado, ensina a cultura e a tradição
indígena, contrapondo-se assim ao processo de colonização que
provoca o esquecimento das particularidades que caracterizam seu
povo. Por outro lado, a importância da escola também está
relacionada ao ensino de conhecimentos não-indígenas em geral,
necessários ao empoderamento de seu povo para a reivindicação de
direitos e para a formação de profissionais em áreas específicas
necessárias ao atendimento de necessidades contemporâneas da
comunidade. Está presente na prática discursiva de PP3 elementos
de uma perspectiva intercultural de educação escolar, visto que ele
considera ser importante estar presente na escola tanto saberes da
tradição indígena quanto outros saberes provenientes da sociedade
não-indígena.
DISCURSO
A escola na comunidade é importante para garantir a manutenção
da cultura e das tradições indígenas, além de possibilitar o acesso a
conhecimentos não-indígenas necessários à sobrevivência do povo
na contemporaneidade.
Quadro 47 – Análise semiótica da unidade textual E12Q1
UNIDADE
TEXTUAL E12Q1
KÉCIO
PP3, em maio de 2013 você me concedeu uma entrevista na
comunidade Amaral. Na época você respondeu a algumas
perguntas sobre escola, educação e etnomatemática. Você
manifestou uma preocupação com o tipo de escola existente na
comunidade. Você disse que escola é um lugar em que se aprende
um conhecimento que não é aprendido em casa, e além de educar
ela deve dar novas ideias para se adquirir mais conhecimentos.
Então, retomando essa pergunta, PP3, um ano após a primeira
resposta, no seu ponto de vista, qual é o papel da escola na aldeia?
228
AUTOANÁLISE
Nessa questão, retomo o assunto tratado com PP3 em entrevista
anterior, com o intuito de aprofundar a compreensão da
importância atribuída por ele à escola na aldeia. Ao relembrar em
minha fala o que PP3 havia dito na entrevista anterior, ofereço a ele
um ponto de partida para resposta à nova pergunta.
PP3
Eu vejo assim... que, além de ensinar a adquirir conhecimento, a
escola tem o papel fundamental de preservar a cultura, transmitir a
cultura. Hoje, é muito difícil a gente, os pais, os mais velhos... eu
digo que hoje o que constrói a família já é novo, são famílias novas.
Então, a escola tem o papel hoje de transmitir, passar o
conhecimento do povo Paiter.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Cultura, Tradição, Preservação, Povo,
Paiter, Identidade, Resistência.
Disfóricas: Mudança, Transformação, Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP3 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele indica em sua fala que o papel
fundamental da escola é o de preservação e manutenção da tradição
e da cultura, frente às transformações e mudanças advindas da
modernidade. Considerando que o espaço familiar já é distinto
daquele que existia em tempos anteriores, estando baseado em
novos valores, PP3 atribui à escola o papel de contribuir com a
manutenção da identidade cultural paiter, enquanto transmissora
dos conhecimentos particulares do povo. Nesse sentido, PP3 atribui
à escola um papel de resistência cultural, contrapondo-se a uma
perspectiva de escola integracionista, a serviço da colonização, que
historicamente foi imposta às sociedades indígenas.
DISCURSO
A escola na aldeia tem o papel fundamental de contribuir com a
manutenção da tradição e da cultura do povo, fazendo frente às
transformações advindas da modernidade.
229
Quadro 48 – Análise semiótica da unidade textual E9Q10
UNIDADE
TEXTUAL E9Q10
KÉCIO Então, essa escola, esse lugar específico hoje que se chama escola,
qual a sua importância para a comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, retomo a concepção de escola enquanto espaço
específico dentro da comunidade, expressa por PP7 em questão
anterior da entrevista, para perguntar-lhe sobre a importância da
escola para a comunidade. Nesse caso, está presente em minha fala
o pressuposto de que a escola é importante para a comunidade (de
outro modo, a pergunta poderia ser: A escola é importante para
comunidade?), e esse pressuposto, uma vez enunciado, caracteriza-
se como um fazer persuasivo que indica a PP7 uma perspectiva
para sua resposta: a da justificativa de uma importância considerada
como dada.
PP7
A importância da escola para a comunidade hoje é que ela passa
conhecimentos tradicionais e não tradicionais. Hoje, o povo Paiter
não define muito bem a escola. Quem pode passar esses
conhecimentos aos alunos são os professores que entendem. Hoje,
temos professores contratados pelo estado, e os professores são os
pesquisadores da comunidade ou do povo. E esse professor pode
passar esse conhecimento aos alunos. E a importância da escola
para nós é para valorizar a nossa cultura, que está sendo deixada de
se valorizar, e para passar conhecimentos às gerações.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Tradição, Interior, Povo, Paiter,
Comunidade, Valorização, Cultura, Manutenção, Resistência.
Disfóricas: Modernidade, Exterior, Desvalorização, Mudança,
Esquecimento, Transformação.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta enunciada por PP7 baseia-se na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, para ele a escola atualmente é
importante para a comunidade porque, além de ensinar
230
conhecimentos externos à tradição, pode também valorizar a
cultura e a tradição do seu povo, fazendo frente às transformações e
ao esquecimento ocasionado pela modernidade advinda do contato
e das relações com a sociedade não indígena. Destaca-se na fala do
entrevistado a caracterização da escola como um espaço de
resistência cultural, ao mesmo tempo em que se reconhece nela um
espaço para se aprender conhecimentos que não fazem parte da
tradição. Assim, PP7 expressa uma concepção de escola que se
aproxima de uma perspectiva intercultural de educação, ao
reconhecer a coexistência de conhecimentos com distintas raízes
culturais na escola, que se relacionam de forma tensa e
problemática, tanto como prática de resistência (com vínculos
internos na tradição) quanto como mudança (com vínculos externos
à tradição ou na modernidade).
DISCURSO
A importância da escola para comunidade atualmente é que, além
de ensinar conhecimentos externos à tradição, ela pode contribuir
para a manutenção da cultura do povo, fazendo frente às
transformações advindas da modernidade.
7.7 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização importância dos
velhos para o ensino de saberes da tradição da categoria de análise educação escolar
indígena
Quadro 49 – Análise semiótica da unidade textual E1Q5
UNIDADE
TEXTUAL E1Q5
KÉCIO Qual é a importância dos velhos em relação aos saberes
tradicionais?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP1 sua opinião a respeito da
importância que os membros mais velhos de seu povo têm para a
manutenção e reprodução das tradições e da cultura. Ao enunciar a
231
pergunta, busquei direcionar o olhar do entrevistado para um dos
principais símbolos da tradição, os velhos. Considerando o peso
atribuído à tradição por PP1 nas respostas a questões anteriores da
entrevista, essa pergunta levou o entrevistado a destacar a
importância dos velhos em relação ao saberes tradicionais, sem
delimitar, todavia, a tipologia de saberes. Nesse sentido, a pergunta
foi de natureza aberta, não limitada, dando margem para que o
entrevistado discorresse sobre a importância dos velhos em relação
aos saberes em geral da tradição. Está presente em minha fala o
pressuposto de que os velhos são importantes para a manutenção
dos saberes da tradição, indicando também ao entrevistado, com
meu fazer persuasivo, que apenas justificasse tal importância (de
outro modo, a pergunta poderia ser: Os velhos são importantes para
a manutenção dos saberes tradicionais?).
PP1
Uma das referências que a gente tem no ensino da etnomatemática,
de repassar esses conhecimentos hoje, são os mais velhos. Então,
eles têm uma grande importância para transmitir esse saber, porque
se não fosse por meio dos velhos transmitir esses conhecimentos, o
único conhecimento matemático que a gente tem são nas escolas, e
as escolas têm a matemática não-indígena, que vem pressionando
cada vez mais nossos alunos, cada vez mais o povo Paiter, que
acaba diminuindo a força do conhecimento etnomatemático paiter.
Então, quer dizer, os nossos mais velhos hoje são uma escola para
nós, hoje são os livros orais para a gente. Então, é de suma
importância a gente valorizar esse conhecimento tradicional em
relação à etnomatemática paiter. Os mais velhos são os que detêm
esse conhecimento hoje da etnomatemática paiter suruí.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Conhecimento, Sabedoria, Particularidade,
Indígena, Povo, Paiter, Interior, Identidade.
Disfóricas: Não-Indígena, Escolarização, Pressão, Colonização,
Conflito, Exterior.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
232
ANÁLISE
A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs
escolarização. Nesse sentido, os velhos são concebidos por PP1
como representantes da tradição, da sabedoria particular de seu
povo, e por isso são importantes para garantir a perpetuação de
saberes da tradição, para fazer frente à pressão que o processo de
escolarização impõe sobre a identidade cultural do povo. Destaca-
se na fala de PP1 o tensionamento existente entre as forças
transformadoras impostas pela colonização, representada pelo
ensino de matemática não-indígena na escola, e a resistência da
tradição, cuja maior referência são os velhos, considerados
depositários dos saberes particulares do povo, livros orais. Verifica-
se na resposta de PP1 que, embora a pergunta fosse aberta, no
sentido de não fazer referência a um tipo específico de saberes da
tradição, o entrevistado inicia sua fala tratando de etnomatemática,
seguindo assim um raciocínio já iniciado nas respostas às questões
anteriores da entrevista. Os velhos são apresentados como “livros
orais”, isto é, como detentores dos saberes e fazeres matemáticos
paiter, sendo assim indicados como fundamentais para a
continuidade da tradição, visto que na escola tem apenas
matemática não-indígena. Destaca-se na fala de PP1 a
dicotomização Paiter vs Não-Paiter, a partir da qual desenvolve-se
o raciocínio do entrevistado sobre as relações de poder entre
diferentes conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento paiter
possui força, mas a escola também, causando assim uma pressão
sobre o povo. Essa pressão é compensada pela presença dos velhos
na reprodução da tradição, residindo nisto a importância deles para
a transmissão de saberes e fazeres, incluindo-se, em particular, os
saberes e fazeres matemáticos.
DISCURSO
Os velhos são importantes para garantir a manutenção dos saberes
da tradição, frente à pressão exercida sobre a identidade cultural do
povo pelo processo de escolarização imposto pela colonização.
233
Quadro 50 – Análise semiótica da unidade textual E15Q15
UNIDADE
TEXTUAL E15Q15
KÉCIO
Voltando à questão dos mais velhos, é comum os professores paiter
apontarem os mais velhos, os curubey, como referências para a
inclusão dos conhecimentos tradicionais na escola. Na prática,
quais são as principais dificuldades para isso acontecer? Por que os
velhos participam diretamente tão pouco da educação escolar na
aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, retomo o tema “velhos” tratado em entrevista
anterior, com o objetivo de aprofundar a compreensão das ideias de
PP1 a respeito da importância dos velhos no ensino de saberes da
tradição. Está presente em minha fala uma distinção entre a
importância atribuída pelos professores indígenas aos velhos e a
participação efetiva dos velhos na educação escolar, observada no
cotidiano da aldeia. Assim, considero em minha fala como dada
uma dificuldade para a participação direta dos velhos na escola da
aldeia e indico ao entrevistado a perspectiva da justificativa dessa
dificuldade como alternativa de resposta.
PP1
Sabe o que eu percebi, professor? Primeiro, não há esse costume
dos mais velhos ensinarem do jeito que se ensina na escola: “Hei,
vai ter aula hoje! Tal hora todo mundo tem que estar lá! Para
ensinar tal coisa e tal coisa!”. Eu percebi isso, experiência própria.
O que se tem de costume... o que eles estão acostumados é o
seguinte... tradição paiter. O que eu percebi, como são ensinadas as
coisas, eu percebi o seguinte, professor... ninguém vai chamar
alguém para aprender. “Hei, vem aprender isso aqui! Vou te
ensinar!”. Simplesmente, os mais velhos vão fazendo... eu já
conversei sobre isso com meus tios, e eles me ensinaram como que
se aprendia... e o mais interessado fica ali, percebe ali, vai fazendo
igual o mais velho está fazendo. Se há uma dúvida, pergunta. Ele só
vai falar para você... se precisa de ajuda, ele vai fazer. Mas, em
nenhum momento ele vai dizer é assim, é assim, é assim. Você vai
234
aprender ali com ele. Se o mais velho tiver que sair agora, ele vai
sair, vai deixar você aí. Mas você já vai saber como ele estava
fazendo. Várias tentativas você vai fazer. Por isso que meu pai fala:
“Os não-indígenas falam assim: ‘Os mais velhos sabem’”. Aí ele
fala: “Nem todos os mais velhos sabem”. Olha só, é em primeira
mão essa conversa, professor, do meu pai. Eu não sei se ele já
conversou com você sobre isso... acho que uma vez ele conversou...
acho que naquela primeira visita. Mas vou reforçar de novo. Eu me
lembro muito bem que ele falou para você. Ele fala: “Os brancos
falam assim: “Ah, o mais velho! A gente tem que valorizar o mais
velho!”. Aí ele fala: “Nem todo mais velho que está na aldeia sabe
de tudo, porque nem toda criança vai aprender. Só vai aprender o
mais interessado. E o desinteressado não vai aprender. Mas esses
dois vão ficar velhos. A diferença é que um aprendeu e o outro não.
Aí, você vai saber diferenciar dentro da comunidade quem é o mais
velho sabedor e quem é o mais velho que não aprendeu na vida”.
Então, é assim que se aprende, professor, naturalmente... vai
aprendendo. E esse costume vem com eles. É chato chamar eles:
“Vamos para a sala de aula ensinar alguém”. É chato para eles. Eu
percebi isso uma vez. E outra questão, a segunda questão, é a
questão do financeiro hoje, o sistema capitalista... faz o mais velho
pensar duas ou três vezes antes de fazer isso. Tem um que vai com
convicção de ensinar aos alunos para que não percam o que ele
aprendeu, porque ele percebe que é importante. Mas, no geral, uma
coisa que prende eles é a questão financeira. “Ah, eu preciso ir na
minha roça, ou caçar! Eu vou ter que ensinar! Será que eu vou lá?
Onde que eu vou?”. Então, são essas duas coisas. Uma bem
tradicional, e outra bem da inserção do capitalismo. Então, eu
percebi essas duas coisas. Por isso que é difícil levar eles para
dentro da sala de aula. Mas tem uns que vão com a convicção de
ensinar as crianças. Mas, se for para ser todo dia, ele não vai. Ele
pode ir uma vez por mês. Não chega a se estabelecer uma rotina
assim. Mas o que seria interessante, professor, é se a gente pensasse
235
numa metodologia... onde o mais velho estivesse ali, fazendo o que
ele estiver fazendo, artesanato dele, ou caçada... de alguma forma, a
gente buscar um meio de acompanhar ele, como se fosse no
cotidiano, anteriormente. Eu andei muito com meu pai quando eu
era criança, na mata. Andei, andei, andei. E eu sei bastante coisa...
andar na mata. Eu sei dos passarinhos... eu sei um sinal de grilo, de
gafanhoto, de passarinho... quando estão marcando horas. A gente
vai percebendo: “Ah, é tal hora, tal hora”, porque meu pai ensinou
para mim. Então, cada passarinho... tem espécie de passarinho que
vai cantando de hora em hora. Um canta agora, e outro canta, e o
outro que cantou na outra hora não vai... e é impressionante,
professor, como eles batem igualzinho com o relógio. Você pode
usar o relógio assim... você vai tal hora e algum pássaro canta. “Ah,
são três horas”. Então, são conhecimentos que a gente tem que
buscar uma metodologia para que a gente possa aproveitar esses
momentos. Não aquela galera, ir todos os alunos... mas vamos uma
vez por aluno, talvez... você vai acompanhar tal, tal, tal. Então, são
coisas que a gente precisa realmente buscar como a gente aprender
com os mais velhos de uma maneira... da maneira deles. É isso.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Informalidade, Liberdade, Identidade,
Autonomia, Indígena, Sabedoria, Cotidiano.
Disfóricas: Escolarização, Formalidade, Dominação, Restrição,
Homogeneização, Não-indígena, Capitalismo, Colonização, Perda,
Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que a tradição paiter,
quanto à forma de educar dos mais velhos, é distinta da forma de
educar da escola, sendo esta oriunda da modernidade. Em sua fala,
a tradição é caracterizada pela liberdade que as pessoas têm de
aprenderem em situações informais, de maneira autônoma, livre e
sem rotinas, a partir da observação dos mais velhos no cotidiano.
236
Por outro lado, a modernidade é caracterizada pela formalidade,
pela dominação da escola sobre as pessoas, com o estabelecimento
de rotinas, de restrições quanto ao local e aos saberes que devem
ser aprendidos, resultando em um processo de homogeneização, ao
qual todos são submetidos. Assim, PP1 considera que essas
diferenças entre a tradição e a modernidade seriam um dos motivos
pelos quais os velhos participam pouco do processo de
escolarização das novas gerações na aldeia, gerando um
constrangimento ao serem convidados para ensinar os saberes da
tradição na escola, porque este espaço é muito distinto (artificial)
daquele característico do cotidiano (natural) da aldeia. Outro
motivo indicado por PP1 para a pequena participação dos velhos na
escola da aldeia está relacionado ao interesse econômico surgido
entre os velhos após o contato, a partir do qual consideram ser
necessária uma recompensa econômica por suas contribuições na
educação das novas gerações. Assim, não havendo a remuneração,
poucos velhos se interessam em contribuir com o ensino de saberes
da tradição, sendo que aqueles que o fazem, o fazem por convicção.
DISCURSO
Os velhos são importantes para a manutenção dos saberes da
tradição, mas participam pouco da educação escolar na aldeia
porque a escola, enquanto espaço de formalidade, dominação,
restrição e homogeneização característico da modernidade é
diferente da tradição paiter, segundo a qual as pessoas são livres e
autônomas para aprender por observação dos mais velhos no
cotidiano informal da aldeia.
Quadro 51 – Análise semiótica da unidade textual E14Q16
UNIDADE
TEXTUAL E14Q16
KÉCIO Como os mais velhos, os sábios, os curubey, podem contribuir para
a educação escolar na aldeia?
AUTOANÁLISE Nessa questão, intento ouvir de PP10 suas considerações sobre a
237
participação dos velhos de seu povo na educação escolar existente
na aldeia. Está presente em minha fala o pressuposto de que os
velhos podem contribuir com a educação escolar, indicando assim,
com meu fazer persuasivo, a perspectiva da explicação de como
isso deve se dar como alternativa de resposta ao entrevistado (de
outro modo, a pergunta deveria ser: Os velhos são importantes para
a educação escolar na aldeia?).
PP10
Então, eu ia falar... hoje, a gente trabalha na escola da forma como
eles mandam o planejamento, o conteúdo para a gente estar
trabalhando. A gente ainda está forte ainda, até porque a
comunidade pede para que isso não seja eliminado. O cacique LP1
sempre cobra isso. Se uma pessoa não está trabalhando, se nem
todas as disciplinas estão sendo realizadas, trabalhado um pouco de
cada... dentro de sua cultura, então pelo menos que um professor
esteja trabalhando, uma parte pelo menos, como na identidade
étnica, na língua. Isso o LP1 tem sempre cobrado da gente e dos
supervisores que trabalham com a gente. Então, os mais velhos,
eles têm bastante... eles acompanham, eles nunca quiseram que os
filhos... eles sempre cobraram que tem que aprender as duas
culturas, do não-indígena e a cultura deles, porque o medo deles é
que eles veem, hoje em dia, que a língua e a cultura do povo Paiter
estão se extinguindo... que está muito recente o contato, e eles estão
perdendo demais isto daí. Então, o LP1 sempre cobrou, pelo menos
na aldeia nossa, que os alunos aprendessem a ler na sua língua,
saber dançar, caçar, cantar, fazer artesanato... tudo isso é intenção
dele, até porque nossa associação tem um projeto de ponto de
cultura, que duas vezes por ano faz um projeto de oficina para
ensinar as crianças. Essa é também uma das escolas da gente.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Identidade, Comunidade, Interior, Cultura,
Interculturalidade, Indígena.
Disfóricas: Currículo, Exterior, Dominação, Escolarização, Não-
indígena, Colonização, Extinção, Modernidade.
OPOSIÇÃO Tradição vs Modernidade
238
SEMÂNTICA
ANÁLISE
A resposta de PP10 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que há uma preocupação
e uma cobrança de lideranças e dos mais velhos quanto à
manutenção das tradições, da cultura e da identidade cultural do
povo, frente às transformações advindas da modernidade a partir do
contato com a sociedade não-indígena. Assim, os velhos
compreendem que é importante as novas gerações aprenderem os
saberes da tradição para que eles não sejam extintos, dado o
acelerado processo de transformação cultural pelo qual o povo está
passando, ao mesmo em que consideram importante o domínio de
saberes da sociedade não-indígena. Assim, os velhos contribuem
com a educação escolar na aldeia, acompanhando e cobrando dos
professores o ensino de saberes de dois mundos distintos, o
indígena e o não-indígena.
DISCURSO
Os velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia
acompanhando e cobrando dos professores o ensino de saberes da
tradição indígena e de saberes da sociedade não-indígena, de modo
a manter a cultura e a identidade do povo frente às transformações
advindas do contato.
Quadro 52 – Análise semiótica da unidade textual E11Q19
UNIDADE
TEXTUAL E11Q19
KÉCIO Você pode explicar como os mais velhos, os sábios, podem
contribuir para a educação escolar na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, solicito a PP9 que expresse sua percepção a respeito
do modo como os velhos podem contribuir com a educação escolar
na aldeia. Está presente em minha fala o pressuposto de que os
velhos podem contribuir com a educação escolar, indicando assim,
com meu fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao
entrevistado vinculada à explicação de como essa contribuição
239
pode se dar.
PP9
Ah, sim. Eles podem contribuir na... o papel desses curubey é
muito importante dentro da sociedade porque eles têm muito
conhecimento sobre o nosso povo. Nós, geração nova, não temos
muito esse conhecimento. Mas como eles já viveram isso lá atrás,
eles são nossas bibliotecas, nossos... como eu posso dizer?... nossas
bibliotecas... neles estão todos esses conhecimentos. Por isso, o
papel deles é muito importante dentro da sociedade. Para mim, eles
podem contribuir com a escola, ou no espaço da aldeia mesmo,
como é a vida do povo Paiter, como... dando uma experiência de
vida para os mais jovens. Isso é fundamental e muito importante.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Experiência, Sabedoria, Tradição, Interior, Povo,
Identidade, Conhecimento, Cotidiano, Particularidade.
Disfóricas: Inexperiência, Desconhecimento, Juventude, Exterior,
Generalidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência
ANÁLISE
A resposta enunciada por PP9 baseia-se na oposição experiência vs
inexperiência. Assim, ele identifica os velhos com a experiência, a
tradição, a sabedoria e o conhecimento sobre seu povo, enquanto a
inexperiência é associada à juventude, às novas gerações. Está
presente na fala de PP9 uma referência ao passado (lá trás),
enquanto situação distinta da que se vive atualmente, sendo
importante assim a presença dos velhos na educação escolar para
garantir que os conhecimentos construídos por eles em suas
experiências de vida, em outro momento distinto do atual, cheguem
às novas gerações do povo Paiter. Deste modo, PP9 considera que
os velhos são bibliotecas, no sentido de terem acumulado ao longo
da vida os conhecimentos necessários para se viver de acordo com
um modo específico de ser do seu povo. Ao considerar que o papel
dos velhos é fundamental para a educação das novas gerações em
relação ao modo de vida do povo, está presente na fala de PP9 a
alusão à distância que a educação escolar mantém em relação à
240
tradição, sendo por isso ressaltada em sua prática discursiva a
importância da presença dos velhos na educação das novas
gerações. A presença dos velhos na educação escolar, como
exemplos de vida e de tradição, é concebida então por PP9 como
um complemento na atual educação existente entre os Paiter.
DISCURSO
Os velhos são detentores da sabedoria, dos conhecimentos
tradicionais e da experiência, e por isso são fundamentais na
educação escolar das novas gerações inexperientes quanto ao modo
de vida particular praticado pelo povo Paiter em tempos passados.
Quadro 53 – Análise semiótica da unidade textual E13Q6
UNIDADE
TEXTUAL E13Q6
KÉCIO
Na entrevista anterior, você mencionou que os saberes matemáticos
tradicionais do povo Paiter deveriam ser ensinados na escola pelos
professores, com a participação dos sabedores indígenas. Você
poderia explicar qual seria o papel dos sabedores indígenas no
ensino de saberes matemáticos na escola?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, retomo uma afirmação de PP4 dada em entrevista
anterior, na qual ele mencionou a participação dos velhos de seu
povo na educação escolar existente na aldeia. Assim, fiz essa nova
pergunta no intuito de aprofundar a compreensão a respeito da ideia
que PP4 tem sobre o papel dos velhos na escola, em particular
sobre o papel dos velhos no ensino de saberes matemáticos.
PP4
O papel dos sabedores seria... primeiro o professor e o sabedor
mandava marcar encontro, falar de si... depois iria levar para a
escola. Porque hoje em dia, lá na comunidade onde eu trabalho, eu
tentei fazer isso com o sabedor, levar o sabedor para a sala de aula
para, junto com o professor, explicar como era. Só que não deu
certo.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Sabedoria, Tradição, Comunidade
Disfóricas: Escolarização
241
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
ANÁLISE
A oposição tradição vs escolarização é a base da resposta de PP4.
Assim, ele atribui ao sabedor o conhecimento da tradição, o
domínio de uma experiência vivida em tempos passados, mas que
não está presente na escola. Desse modo, PP4 atribui ao sabedor
indígena o papel de informar ao professor da comunidade tais
conhecimentos da tradição, a fim de que o professor introduza esses
conhecimentos no processo de escolarização existente atualmente
na aldeia. Destaca-se na fala de PP4 a incompatibilidade entre a
tradição, representada pelo sabedor, e a escolarização, representada
pela sala de aula, ao relatar que sua tentativa de levar o sabedor
para ensinar na escola não deu certo. Verifica-se que, para PP4, o
professor atua como um intermediador entre os saberes da tradição,
presentes na memória dos mais velhos, e o processo atual de
escolarização existente na aldeia.
DISCURSO
O papel dos velhos no ensino de saberes da tradição é o de informar
aos professores sobre os conhecimentos construídos nas
experiências vivenciadas em tempos passados, a fim de que os
professores possam introduzir esses conhecimentos no processo de
escolarização atualmente existente na comunidade.
Quadro 54 – Análise semiótica da unidade textual E9Q6
UNIDADE
TEXTUAL E9Q6
KÉCIO Então na sua opinião os mais velhos podem contribuir com a
educação escolar na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, faço referência a uma fala anterior de PP7 na qual
ele disse que consulta os mais velhos para preparar suas aulas. O
termo “então” presente no início da pergunta indica uma
continuação de uma questão anterior, mas também insere em minha
fala uma conclusão, a de que os velhos podem contribuir com a
242
educação escolar. Assim, está presente na enunciação da pergunta
um pressuposto de que a contribuição dos velhos para educação
escolar na aldeia é algo dado, sendo esse um aspecto de meu fazer
persuasivo que oferece como perspectiva de resposta ao
entrevistado a confirmação desse pressuposto (de outro modo, a
pergunta poderia ser: Os mais velhos podem contribuir com a
educação escolar na aldeia?).
PP7
Podem. Hoje os velhos são muito... vamos dizer... peças raras para
nós, peças muito importantes, devido a contribuírem com o ensino
da língua materna, tanto com os sons, como com todos os fonemas
da língua materna. Durante meu trabalho, sempre precisei de apoio
dos sabedores, como no conto de mitos do [povo] Paiter.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Experiência, Sabedoria, Tradição.
Disfóricas: Escolarização, Inexperiência.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência
ANÁLISE
A resposta de PP7 baseia-se na oposição experiência vs
inexperiência. Nesse sentido, enquanto professor, ele se considera
inexperiente em relação aos saberes da tradição, à língua materna e
à história de seu povo. Por isso, em seu trabalho ele depende da
experiência e da sabedoria dos velhos, que contribuem com a
educação escolar informando ao professor os conhecimentos da
tradição e da história particular de seu povo.
DISCURSO
Os mais velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia
informando ao professor os conhecimentos da tradição e da história
particular de seu povo.
Quadro 55 – Análise semiótica da unidade textual E8Q20
UNIDADE
TEXTUAL E8Q20
KÉCIO Por que você acha que está faltando essa pessoa? Os velhos não
têm interesse em ensinar? Os mais jovens não procuram os mais
243
velhos para aprender?
AUTOANÁLISE
Introduzo essa questão fazendo referência a uma fala anterior de
PP6, na qual ele atribuiu o desconhecimento que as novas gerações
têm da tradição à falta de uma pessoa experiente que as ensine. Em
minha fala, vinculo essa percepção de PP6 aos velhos, e intento
aprofundar a compreensão dessa percepção de PP6 sobre o
fenômeno, perguntando se é falta de interesse dos velhos ou dos
jovens. Nesse caso, está presente em minha fala o pressuposto de
que o fenômeno se explique a partir de uma dimensão pessoal e
individual das pessoas, e não a partir de fatores externos ou sociais,
tais como as relações interculturais estabelecidas após o contato.
Então, com meu fazer persuasivo, acabo indicando a perspectiva
individual ou pessoal como alternativa de resposta ao entrevistado.
PP6
Eu acho, assim, que hoje tudo é... acho que para eles o trabalho é
vão. Hoje, todos querem saber de ganhar um troquinho. Então, eles
não vão querer trabalhar sem ganhar nada. Então, isso é prejudicial.
Agora, se contratar um educador só para ensinar aquilo mesmo,
com certeza ele poderia chegar até aqui na sala, para ensinar aqui.
Então, isso é o que dificulta.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Valorização, Recompensa, Coletividade, Tradição.
Disfóricas: Desvalorização, Desinteresse, Trabalho,
Individualidade, Escolarização, Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP6 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele vincula a ausência dos mais velhos
em relação ao ensino da tradição aos jovens como consequência da
ideia de trabalho advinda da modernidade e assumida pelos velhos
após o contato (hoje), segundo a qual o ensino é um fazer que
requer uma recompensa financeira a quem o pratica. Destaca-se na
fala de PP6 o valor negativo que ele atribui a essa individualização
do papel do educador, apontando como solução ao problema a
contratação formal do velho, como forma de fazê-lo chegar à sala
244
de aula. Há nessa aparentemente simples resposta de PP6 uma
significativa inversão de valores nas relações sociais
tradicionalmente existentes na comunidade. Se antes os jovens
eram educados de uma forma social e coletivamente organizada,
após o contato as mudanças de valores impostas pela modernidade
e a presença da escola na aldeia produziram ressignificações dos
papéis sociais, submetendo-se os velhos à lógica do trabalho e da
venda de sua mão-de-obra, entendida esta como tudo o que for
relativo à ação de educar as novas gerações no espaço da sala de
aula da escola instalada na comunidade.
DISCURSO
Os velhos, enquanto detentores de conhecimentos da tradição, são
importantes para a educação escolar das novas gerações, mas para
que participem da escola na aldeia é necessário recompensá-los
financeiramente, pois novos valores advindos da modernidade
passaram a ser assumidos nas relações sociais após o contato.
Quadro 56 – Análise semiótica da unidade textual E6Q5
UNIDADE
TEXTUAL E6Q5
KÉCIO Dentro desse contexto e desse movimento, como você percebe a
importância e o papel dos mais velhos da comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP5 sua percepção a respeito do
papel dos velhos na introdução de saberes da tradição na educação
escolar existente na aldeia. Está presente em minha fala o
pressuposto de que os velhos são importantes e tem um papel na
introdução desses saberes na escola da aldeia, de modo que meu
fazer persuasivo oferece ao entrevistado a perspectiva de
confirmação do papel e da importância dos velhos nesse processo
(de outro modo, a pergunta poderia ser: Os velhos são importantes
para a introdução de saberes da tradição na escola da
comunidade?).
PP5 Dentro de tudo isso que eu acabei de falar agora, o papel dos
245
sábios, como a gente costuma falar, é tão importante, porque
sempre a gente está junto, sempre a gente está ligado, sempre a
gente está perguntando o que nós não sabemos. Nós jovens, que
estamos ainda no processo de conhecimento, no processo de
aprendizagem própria, dentro da nossa cultura, a gente precisa
ainda de apoio dos mais velhos, precisamos ainda dos conselhos
dos mais velhos da nossa aldeia, quer dizer, da nossa cultura na
verdade. Então, o papel dos mais velhos é fundamental no processo
de aprendizagem, no processo da construção da política da nossa
educação escolar indígena, dentro da nossa cultura. Então, pela
minha experiência, eu diria assim que todos os processos que nós
construímos nos outros trabalhos, na normatização da escrita do
Paiter Suruí, e outros que virão, que a gente está pensando também,
que seja bem vinda a contribuição dos mais velhos do nosso povo,
da nossa comunidade. Então, a gente sempre está junto, para que
nosso trabalho seja mais fortalecido, mais reforçado também dentro
da nossa cultura.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Experiência, Cultura, Particularidade, Tradição, Interior,
Identidade.
Disfóricas: Inexperiência, Exterior, Escola, Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Experiência vs Inexperiência
ANÁLISE
A resposta enunciada por PP5 está baseada na oposição experiência
vs inexperiência. Nesse sentido, os velhos representam a
experiência em relação aos saberes da tradição no interior da
cultura e têm o papel fundamental de contribuir com a formação
dos professores, que ainda são inexperientes e jovens, para fins de
fortalecer o trabalho destes em relação à educação escolar indígena.
Verifica-se na fala de PP5 o papel intermediário atribuído ao
professor, que tem a função de aprender com os mais velhos para
ensinar na escola. Assim, o papel dos velhos na educação escolar
indígena não se dá de forma direta com sua presença em sala de
aula na escola da aldeia, mas através da contribuição na formação
246
dos professores a partir de referenciais internos da cultura do povo.
Nessa perspectiva, a mediação entre a tradição e a modernidade
cabe aos professores indígenas e não aos velhos, sendo entretanto
os velhos as referências internas para a formação dos professores
naquilo que diz respeito à tradição e à cultura do seu povo.
DISCURSO
Os velhos são importantes porque tem a experiência em relação aos
saberes da tradição no interior da cultura, contribuindo assim para a
formação dos professores voltada para a mediação entre tradição e
modernidade no âmbito da educação escolar indígena.
7.8 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização o que deve ser
ensinado na escola da aldeia da categoria de análise educação escolar indígena
Quadro 57 – Análise semiótica da unidade textual E2Q4
UNIDADE
TEXTUAL E2Q4
KÉCIO O que deve ser ensinado na escola de sua comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP1 sua percepção quanto às
especificidades da escola na comunidade, em particular sobre o que
deve ser ensinado. Está presente em minha fala o pressuposto de
que a escola deve ensinar algo na comunidade, e isso induz o
sujeito a especificar ou tipificar esse ensino como perspectiva de
resposta (de outro modo, a pergunta seria: Sua comunidade precisa
de escola?).
PP1
Primeiramente, o que pode ser ensinado na escola é priorizar o
conhecimento paiter, porque inicialmente, quem está na escola são
as crianças, os jovens. Então, não podemos ultrapassar... seria
prematuro a gente colocar um conhecimento não paiter primeiro
para as crianças. Como as crianças tem facilidade de aprender
qualquer coisa, não só paiter, mas qualquer criança no mundo,
247
então a gente está trocando a identidade e o conhecimento dela, que
servia de identidade para ela... por meio da escola a gente está
trocando a identidade dela, e colocando a identidade que seria dela
como uma segunda opção. Então, eu vejo que a escola tem que
ensinar primeiramente conhecimento paiter, o que precisa ser
ensinado para aquela criança, aquele jovem, aquela pessoa para ser
paiter, para ser reconhecida como paiter. Então, eu vejo que a
escola tem que ensinar o conhecimento paiter para depois conhecer
outros conhecimentos, áreas de conhecimento, porque está aí, o
Português está aí, o conhecimento ocidental está em qualquer lugar,
mas o conhecimento paiter não, o conhecimento paiter está
ofuscado, está perdido no meio dessa turma toda, e se a gente não
buscar, acaba se perdendo, e um conhecimento não paiter acaba
sendo priorizado por paiter, e acaba perdendo essa identidade.
Então é isso.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Identidade, Paiter, Manutenção,
Tradição, Resistência.
Disfóricas: Generalidade, Não-Paiter, Mudança, Ocidente,
Ofuscamento, Perda, Modernidade, Homogeneização, Dominação.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs
modernidade, visto que as categorias eufóricas estão relacionadas
ao plano interno da cultura do povo Paiter, enquanto as categorias
disfóricas relacionam-se às mudanças e transformações
provenientes do contato com o plano externo à cultura e à
sociedade do povo Paiter. Assim, PP1 enfatiza a particularidade do
valor da tradição, da cultura e da identidade do povo Paiter, de
forma reiterada, destacando os riscos da generalidade enquanto
característica associada à modernidade, à troca de identidade, ao
ofuscamento da tradição. PP1 destaca a particularidade da cultura
de seu povo, de forma repetida e reiterada, em oposição à
generalidade das transformações promovidas pela modernidade e
248
disseminada pelo Ocidente. PP1 aborda a escola na aldeia como um
espaço ambíguo, que tanto pode fortalecer a identidade paiter,
quanto pode substituí-la por outra. Assim, o conteúdo e a ordem do
que deve ser ensinado na escola é determinante para a reprodução
ou não da tradição, da cultura e da identidade. O ordenamento
temporal enunciado por PP1 em relação ao que deve ser ensinado
na escola (primeiramente, segunda opção, depois) indica que, para
ele, a educação escolar na aldeia também deve contemplar os
saberes da modernidade, da cultura não-Paiter, tratados como
“outros conhecimentos” ou “conhecimento ocidental”. PP1
apresenta em sua fala uma concepção não essencialista de
identidade, visto que considera a possibilidade de sua substituição e
troca por meio da educação, que no espaço empírico da aldeia
converte-se na possibilidade das crianças e jovens deixarem ou não
de ser uma pessoa paiter.
DISCURSO
Antes de tudo, o que a escola na aldeia deve ensinar deve estar
orientado para a continuidade da cultura e da identidade do povo
Paiter, porque a escola na aldeia pode ser um espaço de
fortalecimento ou de substituição de identidades.
Quadro 58 – Análise semiótica da unidade textual E11Q25
UNIDADE
TEXTUAL E11Q25
KÉCIO Que tipo de conhecimento ou saberes deve ser trabalhado na escola
da aldeia?
AUTOANÁLISE
Com essa questão, tive a intenção de compreender a percepção que
PP9 tem quanto às especificidades do que ensinar na escola de sua
comunidade. Permeia minha fala, enquanto fazer persuasivo, o
pressuposto de que a escola deve ensinar algo na comunidade, o
que indica a PP9 uma perspectiva de resposta que é a de tipificar os
saberes a serem ensinados (de outro modo, a pergunta seria: Sua
comunidade precisa de escola?).
249
PP9
Como nós vivíamos antes. Conhecimentos sobre como nós
vivíamos antes. Como era nosso território antigamente. E como os
clãs se organizavam antes do contato com não-indígena. E como
eram os guerreiros, se era por clã, se era misturado mesmo. E como
funcionava o casamento. E qual pessoa tinha mais mulheres, se era
aquele guerreiro ou só o chefe. Não só esses conhecimentos. Tem
vários conhecimentos que a gente pode aplicar na escola.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Território, Interior, Indígena, Particularidade.
Disfóricas: Não-indígena, Exterior, Contato, Mudança,
Generalidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta de PP9 está baseada na oposição particularidade vs
generalidade. Nesse sentido, ele considera que na escola da aldeia,
entre conhecimentos gerais que podem ser aplicados, devem ser
ensinados conhecimentos sobre o modo particular de vida de seu
povo, que existia no interior de seu território antes do contato com
a sociedade externa e não-indígena. Há na fala de PP9 uma ênfase
em a escola abordar os modos próprios de organização social de
seu povo, fazendo referência a uma tradição particular de relações
de parentesco e de organização clânica que se alterou após o
contato. O contato é uma categoria que emerge na fala de PP9
como uma cisão, entre o passado e o presente, o antes e o agora,
entre uma forma tradicional e particular de vida, vinculada a uma
identidade cultural existente no passado, e outra forma de vida
alterada e relacionada a uma identidade cultural contemporânea
marcada pelas relações com a sociedade não-indígena
colonizadora. PP9 aponta assim, em sua fala, a possibilidade de a
escola na aldeia, a partir da escolha de saberes particulares de seu
povo, revisitar um modo particular de vida distinto do que
atualmente se dá no território de seu povo, fazendo com que a
educação escolar na comunidade ganhe contornos particulares
dentro de um universo generalista de conhecimentos que
250
caracteriza o currículo da escola não-indígena.
DISCURSO
Entre os saberes gerais a serem trabalhados na escola da aldeia
devem estar os relacionados à forma particular de vida que o povo
tinha antes do contato com a sociedade não-indígena,
especialmente quanto à organização social e às relações
tradicionais de parentesco praticadas no interior do território.
Quadro 59 – Análise semiótica da unidade textual E13Q20
UNIDADE
TEXTUAL E13Q20
KÉCIO Que tipo de conhecimento ou saberes deve ser trabalhado então na
escola da aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP4 a forma como ele concebe o
tipo de conhecimento ou saber a ser trabalhado na escola da aldeia.
O termo “então” presente em minha fala vinculada a pergunta a
outras questões feitas anteriormente na entrevista, nas quais foram
abordadas mudanças pelas quais a cultura e a identidade do povo
sofreram com o contato e a chegada da escola na aldeia. Desse
modo, ao assim formular a pergunta, nesse contexto da entrevista,
meu fazer persuasivo indica ao entrevistado a possibilidade de
responder a partir de uma perspectiva problematizadora e crítica
quanto ao que se ensina na escola, enquanto prática que se
contraponha às mudanças que estão ocorrendo na cultura de seu
povo.
PP4
Poderia se trabalhar para contribuir para a comunidade, com a
educação tradicional, artesanatos... e deixar o de hoje para os
professores... tem que estar por perto ajudando os professores como
era antes.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Comunidade, Tradição.
Disfóricas: Modernidade, Mudança.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
251
ANÁLISE
A resposta de PP4 baseia-se na oposição tradição vs modernidade.
Nesse sentido, ele considera que a escola na aldeia deveria abordar
tanto os conhecimentos da tradição, relacionados a uma existência
cultural de seu povo situada no passado, quanto os conhecimentos
da modernidade, conhecimentos contemporâneos, sobre os quais os
professores têm o domínio. Em relação aos primeiros saberes, PP4
destaca a necessidade de os professores receberem ajuda, uma vez
que não vivenciaram e não possuem experiências e conhecimentos
sobre a forma tradicional de vida que seu povo tinha no passado.
Verifica-se que em sua prática discursiva PP4 pressupõe a
existência de uma tradição a ser revisitada pela escola (artifício do
arcaico), ao mesmo tempo em que considera a necessidade de os
professores ensinarem novos saberes característicos da
contemporaneidade. Destaca-se assim um apelo (tem que) às
memórias de um saber experienciado ou vivido no passado e o
reconhecimento da necessidade do domínio de conhecimentos
necessários nas relações com a sociedade envolvente no presente.
Tal perspectiva aproxima-se de um a concepção de escola enquanto
espaço de hibridação cultural, na qual e educação escolar na aldeia
está voltada para a promoção da interculturalidade.
DISCURSO
Os conhecimentos a serem ensinados na escola da aldeia devem
estar relacionados tanto à tradição, que permeava a vida do povo no
passado, quanto à modernidade, relacionada ao modo vida do povo
no presente.
Quadro 60 – Análise semiótica da unidade textual E4Q7
UNIDADE
TEXTUAL E4Q7
KÉCIO O que deve ser ensinado na escola da comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP3 sua percepção a respeito do
que deve ser ensinado na escola. Está presente em minha fala o
pressuposto de que a escola deve ensinar na comunidade. Assim,
252
indico ao entrevistado uma perspectiva de resposta relacionada
apenas à caracterização do que deve ser ensinado (de outro modo, a
pergunta seria: A escola deve ensinar na comunidade?).
PP3
O que deve ser ensinado na escola são os conteúdos não-indígenas,
do currículo da escola não-indígena, e deve ensinar também a
cultura indígena, para ele não se esquecer do que ele é.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Indígena, Cultura, Identidade, Interior.
Disfóricas: Não-indígena, Esquecimento, Mudança, Exterior.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A resposta de PP3 está baseada na oposição indígena vs não-
indígena. Nesse sentido, PP3 considera que a escola na aldeia deve
ensinar tanto conhecimentos da sociedade não-indígena, enquanto
provenientes de uma cultura distinta e exterior, quanto
conhecimentos internos à cultura indígena. Destaca-se em sua fala
a tensão resultante da relação entre escolarização e mudança
cultural, uma vez que PP3 considera o risco de perda de identidade
que os membros de seu povo podem sofrer caso a escola também
não ensine na aldeia os conhecimentos de sua própria cultura.
Nessa perspectiva apontada por PP3 em sua prática discursiva, a
escola assume uma função política de afirmação de identidade, a
partir de uma perspectiva contrastiva de identificação e
diferenciação cultural, garantindo a existência de uma diferença
entre o interno e o externo a uma fronteira identitária. PP3 expõe
assim uma concepção não essencialista de identidade e sua fala
vincula educação escolar na aldeia com a possibilidade de
promoção da etnicidade de seu povo.
DISCURSO
A escola na aldeia deve ensinar tanto conhecimentos não-indígenas
quanto indígenas, de modo que continue a existir uma
diferenciação cultural entre o interno e o externo à fronteira
identitária do povo.
253
7.9 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização motivações para
tornar-se professor da categoria de análise educação escolar indígena
Quadro 61 – Análise semiótica da unidade textual E2Q7
UNIDADE
TEXTUAL E2Q7
KÉCIO Por que você se tornou professor?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tenho a intenção de compreender os motivos que
levaram PP1 a se tornar professor. A pergunta enunciada de forma
aberta, sem indicação de uma perspectiva particular que orientasse
a resposta de PP1, tal como a de uma motivação pessoal, uma
indicação coletiva ou outro fator que pudesse estar relacionado.
PP1
Sinceramente, professor Kécio, nunca imaginei que um dia seria
professor. Então, minha vida me colocou num caminho assim, meio
que pego de surpresa. Nunca imaginei ser professor. Mas o que me
fez ser professor é que faltou professor na minha comunidade,
pessoa com nível de escolaridade razoável para se tornar professor
indígena, e a comunidade acabou escolhendo eu como professor.
Mas como eu não queria, não imaginava ser professor, eu me tornei
por necessidade da minha comunidade. Então, por necessidade da
minha comunidade, hoje sou professor, contribuindo à minha
comunidade devido à confiança que a comunidade deu a mim.
Então eu me tornei professor por meio da minha comunidade, por
necessidade deles mesmo.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Escolaridade, Indígena, Coletividade.
Disfórica: Individualidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade
ANÁLISE
A resposta de PP1 baseia-se na oposição individualidade vs
coletividade. Nesse sentido, antes de ser uma decisão individual, o
tornar-se professor no caso de PP1 se deu por uma necessidade da
coletividade, por um pedido de sua comunidade. Assim, a
254
motivação para PP1 se tornar professor indígena não foi uma
vontade individual, prevista e perseguida como plano de vida por
ele, mas um papel social lhe imposto como função dentro de sua
comunidade. Destaca-se na fala de PP1 o peso atribuído à
escolarização em detrimento da experiência de vida e domínio da
tradição na escolha feita pela comunidade, visto que PP1 é um
jovem que teve uma formação escolar maior que a de outros
membros de sua comunidade. Nesse caso, a categoria
“escolaridade” presente na fala de PP1 se mostra fortemente
presente na concepção de professor construída pela comunidade,
superando outras características pessoais que poderiam ganhar em
relevância, caso fosse outra a concepção de professor, tais como a
experiência de vida e o conhecimento das tradições, que quase
sempre estão associadas aos membros mais velhos do povo.
DISCURSO
Eu me tornei professor indígena não por uma vontade individual,
mas por necessidade e por indicação de minha comunidade, em
razão do meu nível de escolaridade.
Quadro 62 – Análise semiótica da unidade textual E14Q3
UNIDADE
TEXTUAL E14Q3
KÉCIO Então você se tornou professor por necessidade e por um convite da
comunidade?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, faço alusão à resposta dada por PP10 em uma
questão anterior da entrevista. Anteriormente, PP10 havia dito que
foi escolhido pela comunidade para ser professor, em razão de sua
escolaridade. Está presente em minha fala o pressuposto de que a
decisão de PP10 se tornar professor não foi individual, mas
motivada pela coletividade. Ofereço assim, com meu fazer
persuasivo, uma perspectiva de resposta ao entrevistado que é a de
confirmar esse pressuposto (de outro modo, a pergunta poderia ser:
Você tinha planos de ser professor?).
255
PP10
Isso. Porque não tinha outro professor para dar aula. Quando surgiu
aquela lei, de que só indígena vai trabalhar e que pode trabalhar
com a sua comunidade, então a comunidade já pensava que eu
poderia estar praticando e trabalhando com os outros indígenas
também para estar passando experiência que eu estou pegando com
pessoas que tem experiência, que já trabalharam com outros
indígenas... igual a maioria dos professores que tem... que deu aulas
para nós, são experientes nessa área. Então, era tudo dentro da
forma da convivência de cada cultura do povo que eles trabalhavam
e explicavam, trabalhavam com a gente na sala de aula.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Coletividade, Indígena, Experiência
Disfóricas: Não-indígena, Individualidade, Inexperiência
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade
ANÁLISE
A resposta de PP10 baseia-se na oposição individualidade vs
coletividade. Nesse sentido, ele considera que se tornou professor
por uma necessidade da coletividade de sua comunidade, antes de
ser apenas uma motivação individual. Destaca-se na fala de PP10
sua necessidade de aprender com outras pessoas com mais
experiência para sua atuação como professor (em resposta a uma
questão anterior da entrevista – E14Q2, PP10 disse que, quando foi
indicado para ser professor, era o membro da comunidade com
maior nível de escolaridade). Verifica-se assim que o critério da
experiência de vida em relação à tradição e à cultura não é
determinante para a escolha que a comunidade realiza entre seus
membros para a indicação à função de professor indígena. Assim,
não tendo a experiência vivida pelo povo em tempos passados,
PP10 se vê como mediador entre a tradição e a modernidade,
recorrendo via de regra aos velhos e sábios quando necessita de
referências internas à cultura para atuação em sala de aula.
DISCURSO Tornei-me professor por necessidade e indicação coletiva de minha
comunidade e em razão do meu nível de escolaridade.
256
Quadro 63 – Análise semiótica da unidade textual E5Q5
UNIDADE
TEXTUAL E5Q5
KÉCIO Por que você se tornou professor?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, fiz uma pergunta aberta a PP4 no sentido de
entender os motivos que o levaram a ser professor, sem oferecer,
com meu fazer persuasivo, uma perspectiva particular de resposta
ao entrevistado.
PP4
Foi um caso de necessidade da comunidade. Eu não pensava em ser
professor, mas a comunidade me chamou para ser professor da
comunidade.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Coletividade
Disfóricas: Individualidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Coletividade vs Individualidade
ANÁLISE
A resposta de PP4 baseia-se na oposição coletividade vs
individualidade. Nesse sentido, ele considera que se tornou
professor não por um plano individual de vida, mas por indicação
coletiva de sua comunidade. Destaca-se na fala de PP4 que o
tornar-se professor no caso dele deu-se como cumprimento de uma
responsabilidade atribuída a ele por sua comunidade, de modo que
ser professor indígena é a assumir um papel social de relevância
coletiva, acima de anseios pessoais ou individuais de vida.
DISCURSO Tornei-me professor não por uma vontade individual, mas por
indicação da coletividade de minha comunidade.
Quadro 64 – Análise semiótica da unidade textual E4Q3
UNIDADE
TEXTUAL E4Q3
KÉCIO Por que você se tornou professor?
AUTOANÁLISE Nessa questão, fiz uma pergunta aberta a PP3 com o intuito de
perceber motivos que o levaram a ser professor, não oferecendo
257
com meu fazer persuasivo uma perspectiva particular de resposta
ao entrevistado.
PP3
Em 2001, terminei o Ensino Fundamental, o oitavo ano. A partir do
momento que eu terminei o ensino fundamental, vi que a minha
comunidade estava precisando de professor... e um dos que eu me
preocupei foi a minha comunidade, porque se eu me preocupasse
com meu futuro, eu enfrentaria o Ensino Médio e faculdade por
mim mesmo, mas a minha preocupação foi a minha comunidade,
porque não tinha outra pessoa que tinha o ensino... que tinha
concluído até o oitavo ano, que hoje é o nono ano. E, a partir de
2002, entrei para dar aula. Desde aquele ano eu trabalho na escola.
Em 2009 fiz vestibular para ingressar na universidade, passei, só
que eu não concluí o Ensino Médio naquele ano, estava incompleto
ainda, por isso eu não entrei naquele ano. Eu continuei fazendo no
CEEJA, que é onde a gente faz por módulo, terminei e fiz outro
vestibular em 2010, passei e comecei a estudar. Sou estudante da
UNIR, do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural.
Escolhi a parte da linguagem... a área de linguagem.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Escolaridade, Coletividade.
Disfóricas: Individualidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade
ANÁLISE
A resposta de PP3 baseia-se na oposição individualidade vs
coletividade. Nesse sentido, ele aponta que a decisão de se tornar
professor se deu por uma necessidade da coletividade de sua
comunidade, em razão da ausência de outra pessoa que, como ele,
tivesse concluído o ensino fundamental. Assim, para cumprir um
papel social importante para a coletividade, PP3 abandonou planos
pessoais de continuação dos estudos para trabalhar como professor
em sala de aula na comunidade. Emerge da fala de PP3 a categoria
“escolaridade” como sendo uma característica associada à
concepção de professor indígena em sua comunidade, em
detrimento de outras características pessoais tais como aquelas
258
relativas à experiência de vida e ao conhecimento das tradições do
povo existentes em tempos passados.
DISCURSO Tornei-me professor não por motivações pessoais, mas por
necessidade de minha comunidade.
Quadro 65 – Análise semiótica da unidade textual E7Q1
UNIDADE
TEXTUAL E7Q1
KÉCIO PP6, por que você se tornou professor?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intentei perceber possíveis razões que levaram PP6
a se tornar professor. Com esse intuito, fiz uma pergunta aberta,
não oferecendo com meu fazer persuasivo uma perspectiva
particular de resposta ao entrevistado.
PP6
Porque, como a gente fala, as crianças tinham muita dificuldade de
aprender. Falo da minha própria experiência. Sem professor
indígena, eu tive muita dificuldade de aprender. Meus alunos
também estavam falando disso. Quando o professor não indígena
fala, eu não entendo muito bem o que ele está falando, e não
compreendo muito bem o que ele está falando. Então eu tomei uma
decisão, precisava ter um professor indígena para esclarecer e
ensinar melhor aos alunos, porque as crianças não vão entender e
falar na língua portuguesa. Então, precisa ter um professor que
saiba falar, que compreenda e fale dos dois conhecimentos. Então
eu tomei essa decisão, vendo nossa realidade, porque tem muitos
alunos daqui que concluem o Ensino Fundamental e vão para a
cidade porque está sem professor na aldeia. Então eu escolhi ser
professor para ajudar a comunidade.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Particularidade, Indígena, Coletividade,
Interculturalidade, Compromisso, Dedicação, Preocupação.
Disfóricas: Não-indígena, Dificuldade, Ausência, Incompreensão,
Indiferença.
OPOSIÇÃO Preocupação vs Indiferença
259
SEMÂNTICA
ANÁLISE
A resposta de PP6 baseia-se na oposição preocupação vs
indiferença. Nesse sentido, ele afirma que a decisão de se tornar
professor foi individual, mas motivada por uma preocupação com
os estudantes de sua comunidade, que apresentavam dificuldades
de aprendizagem dada a indiferença da educação escolar não-
indígena em relação às particularidades culturais das crianças
indígenas. Assim, tocado por essa situação de incompreensão que
ele próprio vivenciou em sua experiência de escolarização, decidiu
ser professor como um compromisso de contribuir com sua
comunidade, proporcionando uma educação escolar intercultural a
seus alunos.
DISCURSO
A decisão de me tornar professor foi pessoal, mas motivada pela
preocupação com as dificuldades de aprendizagem dos alunos de
minha comunidade, dada a indiferença dos professores não-
indígenas com as particularidades culturais das crianças indígenas.
Quadro 66 – Análise semiótica da unidade textual E3Q1
UNIDADE
TEXTUAL E3Q1
KÉCIO PP2, por que você se tornou professor?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, fiz uma pergunta aberta a PP2 relacionada às razões
pelas quais ele se tornou professor. Não ofereci em minha fala uma
perspectiva particular que pudesse direcionar a resposta do
entrevistado.
PP2
Foi assim, antes de começar tudo isso, eu estudei na escola rural.
Comecei muito tarde também, comecei a estudar a primeira série
do ensino fundamental, naquela época era primeira série ainda, com
10 anos de idade. Então, eu tinha perdido muito tempo. Na época
meu pai era cacique, liderança geral da comunidade, então na época
ele não parava em casa, e onde ele ia eu ia junto com ele, até que
em um tempo a gente parou nessa aldeia para poder dar tempo para
260
estudar. Então, comecei a estudar na escola dos Colonos, e a partir
daí, eu comecei a seguir um pouco de estudo. Terminei aqui, depois
fui estudar na escola Celso Ferreira da Cunha, lá em Riozinho, que
é distrito de Cacoal. Lá terminei o Ensino Fundamental, a oitava
série na época, e depois cursei a primeira série do ensino médio lá,
e assim eu terminei o estudo lá, e então parei, fiquei um bom tempo
parado. Quando foi em 2004, comecei a estudar me descolando
daqui para a cidade, de moto, para tentar terminar o Ensino Médio.
Então eu cursei o ensino regular, terminei o segundo ano do Ensino
Médio, terminando no ano de 2004. Fiquei parado de novo e voltei
a estudar em 2007, para tentar terminar o terceiro ano do Ensino
Médio, na escola seriada, na escola Onorina Lucas de Brito. Então,
terminei em 2007 e assim eu consegui estudar. Foi a maior
dificuldade para mim estudar, porque comecei a estudar em uma
escola que não era da comunidade, que não era bilíngue, de uma
cultura diferente, onde eu tive muita dificuldade de aprender na
língua portuguesa. Então, a partir daí, começamos a pensar junto
com a comunidade a necessidade da comunidade. Vimos essa
dificuldade de nossos alunos, nossos meninos terem a dificuldade
de entender a língua portuguesa. Então essa necessidade fez a
comunidade pensar qual seria a melhor opção para a comunidade...
para a educação da comunidade. Nisso, a comunidade pensou em
chamar uma pessoa da comunidade para que pudesse dar aula, para
que nossos alunos não sofressem muito, não tirassem um pouco da
cultura. Então, essa dificuldade fez com que eles me escolhessem
como professor, na escola paiterey, onde a gente estuda. Então, isso
facilita muito para nossos meninos, porque ao mesmo tempo em
que a gente vai dando aula, ou traduzindo um livro para nossa
língua, transmitimos para eles o que está significando essa fala.
Então, usando o bilíngue na aula é muito importante, porque a
gente transmite uma coisa que a gente tem dificuldade de transmitir
para eles. Então essa necessidade fez com que a comunidade
escolhesse professores, professores indígenas para trabalhar dentro
261
da comunidade.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Escolaridade, Particularidade, Indígena, Coletividade,
Compromisso, Cultura, Bilinguismo, Interior
Disfóricas: Dificuldade, Não-Indígena, Generalidade, Sofrimento,
Dificuldade, Exterior, Indiferença.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade
ANÁLISE
A resposta de PP2 está baseada na oposição individualidade vs
coletividade. Nesse sentido, ele considera que o motivo principal de
ter se tornado professor está relacionado à necessidade coletiva de
sua comunidade em ter professores indígenas compromissados com
as particularidades culturais dos estudantes indígenas. Destaca-se
no início de sua fala a categoria “escolaridade” como importante
para a comunidade ter lhe escolhido para ser professor. PP2
considera que ser professor indígena em sua comunidade é
importante para a superação das dificuldades sofridas pelos
estudantes em razão da indiferença da educação escolar não-
indígena em relação às particularidades internas da cultura de seu
povo.
DISCURSO
Tornei-me professor em razão de minha escolaridade e por escolha
coletiva de minha comunidade, para fins de contribuir com a
adequação da educação escolar de nossos alunos às particularidades
da cultura do nosso povo.
7.10 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização papel do
professor na aldeia da categoria de análise educação escolar indígena
Quadro 67 – Análise semiótica da unidade textual E15Q22
UNIDADE
TEXTUAL E15Q22
262
KÉCIO
Uma penúltima pergunta: Na sua opinião, em termos gerais, qual é
o papel dos professores Paiter em suas comunidades? O que deve
se esperar desses professores?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intentei ouvir de PP1 sua percepção a respeito do
papel que os professores paiter têm em suas comunidades e o que
deve se esperar desses professores. Penúltima questão de uma série
de quinze entrevistas, tive o interesse de compreender com essa
pergunta, em síntese, como PP1 se percebe enquanto professor
dentro de um movimento de resistência ou de transformações
culturais pelas quais passa seu povo na contemporaneidade. Nesse
sentido, está presente em minha fala o pressuposto de que os
professores paiter tem um papel a cumprir e que deles se espera
algo, alguma ação, comportamento ou atitude. Esse pressuposto
indica, como fazer persuasivo, uma perspectiva de resposta ao
entrevistado, que pode formula-la a partir da confirmação de tal
pressuposto.
PP1
Os professores, eu acredito que eles têm uma função fundamental
em todo esse processo que a gente debateu aqui, professor. Sem
eles, não vai ter a oportunidade de a gente debater realmente os
problemas que existem e tirar as reflexões disso. Os professores
têm essa tarefa, essa missão, de não somente dar aulas, mas de
fazer refletir os problemas nas comunidades indígenas. Ao longo
do tempo, a gente percebe que a escola fez transformar pessoas, do
jeito que as pessoas pensam. Vamos supor uma pessoa que pensa
uma escola, e coloca essa escola em uma comunidade... quer dizer,
a intenção dessa pessoa é transformar esse grupo do jeito que ela
pensou aqui. Aí, o papel dos professores indígenas é ao contrário...
eles pensarem como é que a gente vai escolarizar a nossa
comunidade, as nossas crianças, mas pensando primeiro na visão de
mundo dos paiter e na visão de futuro. Porque na visão de mundo,
você vai conhecer todo o pensamento paiter como paiter. Você vai
partir dessa visão de mundo para uma visão de futuro, para onde
você vai, e como você vai daí para frente. O papel dos professores é
263
fundamental nesta questão. Então, volto mais uma vez. O professor
tem que ter um pensamento crítico por causa disso, não somente ser
um professor de dar aula, mas um papel de professor de fazer
mudanças nessa perspectiva, ser conhecedor da visão de mundo
paiter e também ser um estratégico, uma pessoa estratégica para
fazer acontecer a visão de futuro paiter... de ser um grande líder
também. É isso.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Consciência, Transcendência, Indígena, Identidade,
Criticidade, Particularidade, Engajamento, Liderança.
Disfóricas: Problema, Escolarização, Alienação, Imanência,
Negação.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Imanência vs Transcendência
ANÁLISE
A resposta de PP1 baseia-se na oposição imanência vs
transcendência. Nesse sentido, ele considera que o professor paiter
tem o papel fundamental de extrapolar os limites de uma
compreensão circunscrita ao que é imanente à vida cotidiana e ao
espaço da sala de aula, a fim de atingir uma consciência
transcendente do estado em que o povo se encontra no mundo,
podendo assim provocar mudanças e reorientar o futuro de seu
povo, de acordo com uma visão de mundo que lhe é própria.
Consciente de que o processo de escolarização a que seu povo foi
submetido provocou transformações na forma de pensar das
pessoas, PP1 atribui ao professor paiter a missão de usar o próprio
processo de escolarização em favor da reversão desse processo
alienante. Para tanto, ele considera necessário fundar a escola sobre
bases orientadas por uma visão de mundo paiter, sendo
fundamental para isso a atuação do professor como ser engajado e
crítico.
DISCURSO
O professor paiter tem a missão de transcender os limites de uma
compreensão circunscrita ao que é imanente à vida cotidiana, a fim
de atingir uma consciência que lhe possibilite reorientar a
escolarização de seu povo com base na visão de mundo própria dos
264
paiter.
Quadro 68 – Análise semiótica da unidade textual E14Q23
UNIDADE
TEXTUAL E14Q23
KÉCIO
Considerando tudo o que você disse, qual é, na sua opinião, o papel
do professor na aldeia? O que deve se esperar do professor na
aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intentei ouvir de PP10, em síntese, como ele
percebe o papel do professor no contexto dos problemas e desafios
da educação escolar indígena e de seu povo na contemporaneidade.
Ao enunciar as perguntas que compõem a questão, inseri em minha
fala, como um fazer persuasivo, o pressuposto de que os
professores paiter tem um papel a cumprir. Esse pressuposto
constitui-se em uma perspectiva de resposta ao entrevistado, sendo
a de confirmar tal pressuposto (de outro modo, a pergunta poderia
ser: O professor tem um papel a cumprir na aldeia?).
PP10
Que o professor seja honesto com a sua comunidade. Porque, como
eu estava falando, tem gente que não vai... que é professor não
porque querem e tem vontade de trabalhar com o seu povo, mas por
indicação da família, e está só pelo salário, vamos dizer assim.
Então, o professor tem que estar ciente que a responsabilidade, a
vida de crianças está dentro da mão dele, do professor. Porque ele
está na frente, falando, incentivando. Porque as crianças estão
olhando, espelhando nele, aprendendo com ele. Ele tem que estar
sempre na frente, ali, ensinando a verdade... porque as crianças
estão aprendendo com ele ali. Então, o papel do professor é estar
ali, honesto, com as crianças... principalmente com a vida da sua
comunidade, do seu povo.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Compromisso, Coletividade, Consciência,
Responsabilidade, Liderança, Comunidade, Povo.
Disfóricas: Individualidade, Descompromisso.
265
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade
ANÁLISE
A resposta de PP10 está baseada na oposição individualidade vs
coletividade. Nesse sentido, ele considera que o professor na aldeia
deve ter um compromisso com a coletividade de seu povo, em
detrimento de interesses individuais. Para PP10, o professor tem o
papel de ser um líder a indicar com responsabilidade e honestidade
às novas gerações a distinção entre o verdadeiro e o falso.
Atribuindo ao professor na aldeia a condição de espelho da
comunidade, PP10 considera que o professor tem o papel de ser
responsável pela vida de seu povo. Está presente na fala de PP10
uma referência a tensões existentes na educação escolar na aldeia
quanto à atuação do professor, visto que, além de valores e
referências da tradição, outros valores da modernidade e do mundo
ocidental também permeiam a constituição e o fazer do professor,
entre eles o interesse econômico, característico das relações
capitalistas da alienação da mão-de-obra em troca de um salário.
DISCURSO
O professor deve ser um líder a serviço da coletividade,
preocupando-se com a vida de seu povo de forma honesta e
verdadeira.
Quadro 69 – Análise semiótica da unidade textual E11Q30
UNIDADE
TEXTUAL E11Q30
KÉCIO Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas
comunidades? O que deve se esperar desses professores?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de compreender o papel que PP9
atribui ao professor em geral no espaço da aldeia. Está presente em
minha fala ao enunciar as perguntas um pressuposto de que os
professores tem um papel a cumprir na aldeia. Tal pressuposto
constitui-se em um fazer persuasivo, oferecendo ao entrevistado a
perspectiva de resposta relacionada à confirmação de tal
266
pressuposto (de outro modo, a pergunta poderia ser: O professor
tem um papel a cumprir na aldeia?).
PP9
O papel dos professores dentro da comunidade é... o papel do
professor é muito importante dentro da comunidade dele, porque
ele é o espelho da comunidade. Porque ele tem um pouco de
conhecimento. Eu vou falar verdade, que não temos muitos
conhecimentos. Ele tem um pouco de experiência e conhecimentos.
E por isso, ele deve falar para a comunidade que isso é certo, que
isso é errado. Pode até puxar a comunidade para melhorar a escola,
para melhorar o funcionamento da escola. Como eu estou falando...
depende do professor, depende do interesse do professor. O
professor indígena é muito importante dentro da comunidade. A
partir de mim mesmo eu tiro essa ideia, essa experiência. Para a
comunidade mesmo acompanhar esses... quem deve explicar esses
conhecimentos para a comunidade, para a comunidade ficar ligada
nesses conhecimentos, é o próprio professor. O próprio professor
tem que ter contato com a comunidade. Não é isolado, não é
separado da comunidade. Tem que trabalhar junto com a
comunidade, porque ele é a força da comunidade, assim como a
comunidade é a força dele.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Interior, Conhecimento, Sabedoria, Coletividade,
Liderança, Compromisso, Experiência, Consciência, Interesse.
Disfóricas: Individualidade, Isolamento, Inexperiência,
Desinteresse.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Individualidade vs Coletividade
ANÁLISE
A resposta de PP9 está baseada na oposição individualidade vs
coletividade. Nesse sentido, PP9 considera que o professor, com
sua experiência e conhecimento individual, tem o compromisso de
liderar a coletividade de sua comunidade, indicando-lhe o que é
certo e o que é errado. PP9 destaca a íntima relação entre o
professor e sua comunidade, afirmando que um é a força do outro,
de modo que o trabalho do professor não deve ser isolado da
267
realidade do seu povo. Nesse sentido, a concepção que PP9
manifesta sobre o papel do professor na aldeia é a de um líder,
responsável por ser o mediador entre sua comunidade e a escola, o
elo entre a tradição e os novos conhecimentos necessários à vida do
seu povo na contemporaneidade.
DISCURSO
O papel do professor na aldeia é o de ser um líder que, com sua
sabedoria e experiências individuais, tem o compromisso de guiar a
coletividade de seu povo entre o certo e o errado, ligando a tradição
aos conhecimentos necessários à vida na contemporaneidade.
Quadro 70 – Análise semiótica da unidade textual E13Q48
UNIDADE
TEXTUAL E13Q48
KÉCIO
Para concluirmos, na sua opinião, qual é o papel dos professores
paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses
professores?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, após uma sequência de outras perguntas de uma
entrevista, intento ouvir de PP4, em síntese, qual é a sua percepção
do papel do professor na aldeia. Ao enunciar as pergunta a PP4,
parti de um pressuposto de que os professores tem um papel a
cumprir na aldeia. Esse pressuposto manifesto por mim constitui-se
em um fazer persuasivo, indicando a PP4 como alternativa de
resposta a confirmação ou justificação desse pressuposto (de outro
modo, a pergunta poderia ser: O professor tem um papel a cumprir
na aldeia?).
PP4
Meu papel é levar os conhecimentos de fora para dentro da
comunidade. E também, os conhecimentos que eu tenho de dentro
da comunidade, tentar levar para dentro da escola, para juntar esses
conhecimentos e tentar melhorar a educação da comunidade, da
escola indígena da comunidade.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Conhecimento, Interior, Tradição, Indígena.
Disfóricas: Exterior, Modernidade, Não-Indígena.
268
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Interior vs Exterior
ANÁLISE
A resposta de PP4 baseia-se na oposição interior vs exterior. Nesse
sentido, ele considera que o papel do professor é o de introduzir no
interior de sua comunidade conhecimentos existentes no exterior do
território, advindos da sociedade não-indígena. De igual modo, tem
também o professor o papel de levar para o interior da escola da
aldeia os conhecimentos que estão fora dela, mas que pertencem à
tradição de seu povo. Nessa perspectiva manifesta por PP4, o
professor é responsável por promover o encontro de conhecimentos
da tradição e da modernidade, juntando-os no interior da escola.
Tal concepção aproxima-se de uma perspectiva intercultural de
educação escolar.
DISCURSO
O professor tem o papel de levar para o interior da comunidade
conhecimentos que são do exterior, advindos da sociedade não-
indígena, promovendo na escola da aldeia o encontro entre tradição
e modernidade.
Quadro 71 – Análise semiótica da unidade textual E12Q13
UNIDADE
TEXTUAL E12Q13
KÉCIO Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas
comunidades? O que deve se esperar desses professores?
AUTOANÁLISE
Com essa questão, pretendia compreender o papel que PP3 atribui
ao professor na aldeia. Verifica-se que a forma como eu enunciei as
perguntas está permeada pelo pressuposto de que os professores
tem um papel a cumprir na aldeia, e esse pressuposto torna-se um
fazer persuasivo, indicando a PP3 a possibilidade de confirmação
ou justificação desse pressuposto como perspectiva de resposta.
PP3
O papel dos professores paiter é incentivar mais a cultura paiter,
buscar, pesquisar a cultura paiter e transmitir para seus alunos...
Hoje a maioria dos professores são jovens e não sabem a história...
269
eu vejo também que não sabem as formas de contagem, como os
velhos sabem.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Engajamento, Cultura, Pesquisa, Tradição,
Conhecimento, Experiência, Sabedoria.
Disfóricas: Modernidade, Inexperiência, Desconhecimento,
Mudança.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP3 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que o papel do professor
na aldeia é fortalecer a tradição por meio da educação, em oposição
às mudanças provocadas pela modernidade. Em sua resposta, PP3
enfatiza a importância de o professor paiter, geralmente ainda
jovem, ser um pesquisador de sua própria cultura, buscando superar
assim o desconhecimento e a inexperiência da juventude em
relação à história e à cultura de seu próprio povo.
DISCURSO
O papel do professor na aldeia é fortalecer a tradição por meio da
educação e da pesquisa sobre a história de seu povo, em oposição
às mudanças provocadas pela modernidade.
7.11 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização estado da cultura
paiter em cem anos da categoria de análise interculturalidade
Quadro 72 – Análise semiótica da unidade textual E15Q23
UNIDADE
TEXTUAL E15Q23
KÉCIO
Uma última pergunta então, infelizmente [risos]. Considerando
tudo o que você falou hoje aqui, suas reflexões, esse seu ponto de
vista crítico sobre vários assuntos, como você imagina que a cultura
do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos?
270
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP1 suas expectativas em relação à
situação da cultura de seu povo após um período de um século. Em
minha fala, faço menção ao que PP1 disse de forma crítica em
questões anteriores da entrevista, permeando assuntos tais como a
necessidade de resistência frente às mudanças culturais e de
identidade provocadas pela modernidade. Assim, indico ao
entrevistado uma perspectiva de resposta relacionada à oposição
mudança vs resistência.
PP1
Cem anos, professor? É... realmente, você me pegou agora [risos].
Deixa eu fazer uma conta aqui, professor. Estou com trinta anos.
Daqui a cem anos, cento e trinta. Bom, professor, eu acho que vai
haver uma mudança significativa, em relação, primeiro, a sua
cultura anterior ao contato. Vamos ter pequenas coisas que se
fazem hoje, de coisas paiter que são artesanato hoje... algumas
pessoas com certeza vão fazer. Ou não... ou simplesmente fazer
para vender alguma coisa. Ou talvez, um mais esperto possa
aparecer, possa aparecer um empreendedor e fazer disso um
negócio. Temos que pensar várias coisas ao longo de cem anos, né.
E outra coisa, não vai ser o mesmo estilo de vida, não vai ser a
mesma coisa do que é realmente hoje. Cem anos, nem eu vou estar
vivo. Só se eu viver cento e trinta anos. Eu imagino assim,
professor, que vai haver grande avanço nas tecnologias... quer
dizer, inseridas em aldeias... aldeias digitais. Um estilo de vida
parecido com o daqui da cidade. E acredito que, também, há
pessoas que vão optar em viver mais de forma tradicional. Eu estou
imaginando uma pessoa que vai “Ah, eu vou escolher viver...”.
Mesmo com todo o conhecimento, mesmo com todo o
conhecimento do mundo ocidental... porque eu tenho esse
pensamento, eu tenho esse pensamento comigo... eu conviver não
com todas essas tecnologias, não com todos esses aparatos
materiais, mas viver com o essencial, na floresta. Mas eu tenho um
pensamento sobre tudo. Então, em cem anos, eu percebo que há
pessoas paiter que vão optar em viver assim, e vão ter grandes
271
pensadores também, que vão optar em viver mais tranquilos, mas
contribuindo de tal forma em todos os sentidos. Acho que o futuro
paiter daqui a cem anos vai ser bem diferente. E, com certeza,
professor, a gente não pode esquecer o outro lado... vai haver mais
problemas sociais. Atípicos ou típicos, urbanos. Vai ter esse
problema também, com certeza. Então... você me pegou agora. Eu
nunca tinha refletido em cem anos. Eu tinha refletido dez, vinte,
trinta, cinquenta anos. Mas cem anos [risos]. Acho que a memória
da gente se limita a nossa idade, e a gente é incapaz de pensar
[risos] em tempos mais longos.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Cultura, Identidade, Resistência, Consciência,
Conhecimento.
Disfóricas: Mudança, Colonização, Modernidade, Conflitos,
Ocidente, Perda.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Resistência vs Mudança
ANÁLISE
A resposta de PP1 baseia-se na oposição resistência vs mudança.
Nesse sentido, ele considera que em cem anos a cultura de seu povo
poderá sofrer profundas mudanças, mas também haverá resistência
a tais mudanças no interior do próprio povo. PP1 considera a
possibilidade de que princípios capitalistas passarão a fundamentar
os modos de produção material do povo, de modo que o estilo de
vida nas aldeias poderá passar a ser permeado de tecnologias novas,
em um processo de urbanização das aldeias. Com essa urbanização,
PP1 prevê o agravamento de conflitos e problemas sociais típicos
dos meios urbanos, ou novos problemas possíveis de se originarem.
Em oposição a essas transformações, PP1 considera a possibilidade
de que haverá resistência às mudanças de estilo de vida por alguns,
em particular entre aqueles que construírem um conhecimento mais
amplo sobre o mundo, denominado por PP1 como “grandes
pensadores”. Nesse sentido, PP1 considera que o conhecimento
geral, para além das questões imanentes ao contexto particular de
seu povo, é fundamental para uma consciência das transformações
272
que se abaterão sobre o povo, sendo condição para a resistência e a
manutenção de um estilo de vida tradicional que ainda caracteriza
os Paiter, representado em sua fala pelo “viver com o essencial no
interior da floresta”.
DISCURSO
Em cem anos, a cultural dos Paiter poderá sofrer profundas
mudanças, passando a ser permeada por valores ocidentais, mas
também haverá resistência a tais mudanças, a partir de uma recusa
consciente da modernidade e de uma opção por um estilo de vida
tradicional no interior da floresta.
Quadro 73 – Análise semiótica da unidade textual E14Q24
UNIDADE
TEXTUAL E14Q24
KÉCIO Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a
100 anos?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de compreender a forma como PP10
projeta para o futuro a situação da cultura de seu povo. Por se tratar
de uma pergunta enunciada dentro de uma série de outras questões
que a precederam, e já tendo abordado temas tais como as
mudanças culturais pelas quais atravessa o povo Paiter, está
presente em minha fala o pressuposto de que a cultura do povo
sofrerá mudanças no decorrer de um século. Indico assim, com meu
fazer persuasivo, a PP10 a perspectiva da confirmação desse
pressuposto como possibilidade de resposta.
PP10
Professor... se chegar pertinho de cem anos, vai ser muito tempo,
porque, do jeito que eu estou vendo, a cultura do povo Suruí está
muito acelerada, demais, assim... ficando para trás. E a cultura do
não-indígena está muito acelerada. Eles [os Suruí] estão pegando
mais aquela lá, e deixando a cultura indígena para trás. Hoje, a
mocidade, os jovens de hoje, eles não se interessam muito em
praticar a sua cultura. Estão mais focados na cultura não-indígena,
como na música, na dança, estão falando mais em português dentro
273
da aldeia entre si mesmos. Então, se eu chegar na minha aldeia
hoje, sair de Ji-Paraná agora e ir para minha aldeia hoje, se eu
chegar lá e falar para uma criança: “Vamos lá para o mato bater
timbó, fazer uma pescaria tradicional, e nós voltaremos só amanhã,
depois de amanhã”, eu acho que ela recusaria isso. Pode ser que
eles vão montados em animal, bicicleta ou numa moto para voltar
no mesmo dia, para não dormir lá, esquentando o fogo, comendo a
comida que a gente faz lá. Então, se eu chegar lá e pedir... eu
mesmo não sei cantar na minha língua. Eu canto assim... eu tenho
que aprender bastante. A pessoa tem que cantar para mim várias
vezes, aí eu canto, aí eu pego o ritmo, aí eu canto. Agora, eu criar
música, igual os mais velhos criam, para eu criar é difícil. Então,
isso no caso já é prejudicial para minha cultura, para mim. Então,
por tudo isso, eu falo que... as línguas mesmo... é colocar muito
cinquenta anos... Suruí nenhum vai estar falando... cinquenta anos e
olha lá ainda, porque agora, os jovens, a intenção deles é casar com
não-indígena, muita gente já está trazendo outra etnia indígena para
sua aldeia, e deixa de falar sua língua com ela, e ela também com
ele, e vão falar só em português. E o filho que nascer, vai falar em
português. Então, não vai... eu falo que é muito cinquenta anos...
não vai chegar nem isso. Está muito acelerada demais a cultura que
hoje nós vivemos, e a nossa cultura mesmo está ficando para trás.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Cultura, Identidade, Indígena, Tradição, Etnicidade
Disfóricas: Mudança, Transformação, Colonização, Não-indígena,
Desinteresse, Abandono, Modernidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP10 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que a tradição que
caracteriza a identidade e a cultura de seu povo está sofrendo um
processo acelerado de mudanças advindas da modernidade. Assim,
as novas gerações estão abandonando o estilo de vida particular e
tradicional do povo, para assumir valores e comportamentos da
274
sociedade não-indígena. PP10 considera que tais transformações
são prejudiciais ao futuro do povo, e estão acontecendo em um
ritmo tão acelerado que não há esperança quanto à possibilidade de
que a cultura de seu povo vá resistir ao período de um século.
DISCURSO
Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá praticamente
desaparecido, porque está havendo um processo acelerado de
substituição de valores da tradição por outros advindos da
modernidade, e as novas gerações estão deixando para trás a
identidade cultural e o modo de vida tradicional de seu povo.
Quadro 74 – Análise semiótica da unidade textual E11Q31
UNIDADE
TEXTUAL E11Q31
KÉCIO Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a
100 anos?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intento ouvir de PP9 sua projeção para o estado da
cultura de seu povo em um período de um século. Dado o contexto
da entrevista e as questões precedentes, está presente em minha fala
o pressuposto de que a cultura do povo sofrerá mudanças no
decorrer do período enunciado. Desse modo, meu fazer persuasivo
indica a PP9 uma perspectiva de resposta referente à confirmação
desse pressuposto.
PP9
Eu acho que, se nós não registrarmos tudo, se nós não trabalharmos
isso dentro da sala de aula... ou até trabalhar na comunidade, com
certeza, daqui cem anos não vai existir mais. Se nós, professores,
não fizermos assim... trabalhar encima disso aí... Agora, se nós
trabalharmos encima disso aí e mostrar para a comunidade... para
eles valorizarem a cultura deles... aí, pode até chegar mais ou
menos ou um pouco. Como o não-indígena... os filhos do não-
indígena aprendem na escola e vão valorizando sua cultura...
mesma coisa, se nós não fizermos isso, com certeza acaba. Se nós
não registrarmos esse nosso conhecimento do povo Paiter, com
275
certeza acaba. Se nós fizermos, e a escola ir passando para as novas
gerações, então vai mantendo ainda.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Registro, Escolarização, Cultura, Particularidade, Povo,
Identidade, Resistência, Tradição, Valorização.
Disfóricas: Extinção, Não-Indígena, Mudança.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Mudança vs Resistência
ANÁLISE
A resposta de PP9 está baseada na oposição mudança vs
resistência. Nesse sentido, ele considera que a cultura de seu povo
está suscetível a mudanças que podem levar à sua extinção.
Entretanto, considera também que há a possibilidade de resistência
a essas mudanças, sendo a escolarização das novas gerações um
processo fundamental para tanto. Destaca-se na fala de PP9 a
importância por ele atribuída ao registro da cultura de seu povo e a
reprodução dos saberes da tradição na escola como forma de
manter a identidade e a particularidade cultural do povo Paiter,
frente às mudanças às quais o povo está exposto na atualidade. PP9
enuncia uma concepção de escola que atua a favor da manutenção
da cultura e da identidade cultural de seu povo. Nesse sentido, a
escolarização é por ele assumida como um processo ou como forma
de reprodução, podendo o conteúdo de tal processo ou forma ser
ajustado à realidade cultural de seu povo para atuar a seu favor.
Trata-se assim de uma ressignificação da escola no espaço da
aldeia, pois antes de ser concebida como um espaço de introdução
de saberes externos à cultura local, atua como reprodutora dessa
cultura em oposição às mudanças advindas do exterior.
DISCURSO
Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter poderá ter se extinguido
pelas mudanças impostas a ela nesse período, mas também poderá
ter sobrevivido em função da resistência possível de ocorrer por
meio do registro de nossa cultura e da reprodução de nossa tradição
e identidade cultural através da escolarização das novas gerações.
276
Quadro 75 – Análise semiótica da unidade textual E13Q53
UNIDADE
TEXTUAL E13Q53
KÉCIO
Então, uma última pergunta. Considerando tudo isso que você
disse, das transformações que aconteceram, dos conflitos
atualmente existentes, como você imagina que a cultura do povo
Paiter vai estar daqui a cem anos?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP4 suas expectativas
quanto ao futuro da cultura de seu povo no período de um século.
Em minha fala, vinculo a pergunta a reflexões já realizadas por PP4
anteriormente, em particular sobre transformações e conflitos que
permeiam a vida contemporânea do povo Paiter. Com isso, insiro
em minha fala um pressuposto de que a cultura do povo Paiter
poderá passar por mudanças no decorrer do próximo século,
indicando assim, com meu fazer persuasivo, a PP4 a perspectiva da
confirmação desse pressuposto como possibilidade de resposta.
PP4
Boa pergunta, hein. Eu penso assim, professor, que não vai
demorar tanto assim, cem anos, não. Eu fico pensando que, daqui a
trinta... nem trinta não... daqui a uns vinte anos, o povo Paiter vai
deixar de ser falante da língua paiter e deixar os costumes para trás.
Porque a gente já está com quarenta e cinco anos só de contato,
né... [emocionado]... e já perdeu muita coisa... a língua... um jovem
que está nascendo agora, não fala nem cem por cento mais não.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Particularidade.
Disfóricas: Mudança, Abandono, Perda, Colonização,
Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP4 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que a tradição do seu
povo está sofrendo um acelerado processo de mudança, em função
do contato com a sociedade não-indígena e as transformações
advindas da modernidade. Destaca-se na fala de PP4 sua
277
constatação de que as novas gerações estão abandonando os
costumes e a língua de seu povo, de modo em menos de um século
a identidade cultural, as tradições e a língua do povo Paiter terá
deixado de existir (ficado para trás). PP4 manifesta uma falta de
esperança quanto ao futuro de seu povo, ao confrontar a
possibilidade de sobrevivência cultural futura com o profundo
processo de mudança iniciado em período recente após o contato
com a modernidade e o processo de colonização que se abateu
sobre seu povo.
DISCURSO
Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá deixado de existir,
porque vivemos um acelerado processo de mudanças impostas pela
colonização, através da qual a modernidade substitui a tradição e a
identidade cultural do povo é abandonada pelas novas gerações.
Quadro 76 – Análise semiótica da unidade textual E12Q14
UNIDADE
TEXTUAL E12Q14
KÉCIO Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a
cem anos?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de perceber como PP3 projeta para o
futuro o estado da cultura de seu povo. Considerando as questões
precedentes da entrevista, embora não faça menção a elas ao
enunciar a pergunta, insere-se em minha fala o pressuposto de que
a cultura do povo sofrerá mudanças no decorrer de um século.
Desse modo, meu fazer persuasivo indica a PP3 uma perspectiva de
resposta referente à confirmação desse pressuposto.
PP3
Eu vejo assim, professor. Se não preservar a cultura... e com
certeza a gente quer preservar... a gente quer utilizar a cultura do
povo Paiter e a cultura da sociedade envolvente. E, com certeza, eu
espero que isso possa acontecer daqui a cem anos... Não totalmente
como hoje, mas pelos menos a língua e algumas coisas da cultura
eu acredito possa acontecer... a forma de se alimentar, de se vestir...
278
os cantos e rituais.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Cultura, Resistência, Preservação, Identidade, Povo,
Tradição.
Disfóricas: Colonização, Mudança, Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Resistência vs Mudança
ANÁLISE
A resposta de PP3 está baseada na oposição resistência vs
mudança. Nesse sentido, ele considera que para fazer frente às
mudanças impostas pela colonização da sociedade envolvente à
cultura de seu povo, é necessária uma resistência por meio da
valorização interna da cultura pelo próprio povo. PP3 destaca que
há esse interesse em preservar a cultura, embora considere que em
cem anos inevitavelmente ocorrerão mudanças, podendo todavia
manter-se a identidade cultural do povo relativa a tradições tais
como a forma de se alimentar e de se vestir, os cantos e rituais. Está
presente na fala de PP3 sua percepção do interesse de seu povo em
manter as tradições e ao mesmo tempo se apropriar da cultura da
sociedade envolvente. Percebe-se assim, na fala de PP3, uma
concepção de que é possível manter uma identidade cultural
indígena mesmo em um contexto de relações com a sociedade
colonizadora envolvente.
DISCURSO
Daqui a cem anos, se houver uma valorização da cultura e uma
resistência às mudanças impostas pela colonização, a cultura do
povo Paiter ainda existirá, sendo que o povo estará praticando sua
própria cultura e a cultura da sociedade envolvente.
7.12 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização relação entre
educação escolar na aldeia e identidade cultural da categoria de análise
interculturalidade
279
Quadro 77 – Análise semiótica da unidade textual E15Q5
UNIDADE
TEXTUAL E15Q5
KÉCIO
Na entrevista anterior, você mencionou a existência de uma relação
entre os conhecimentos tradicionais e a identidade cultural paiter.
Você poderia detalhar, segundo seu ponto de vista, que relação o
ensino de matemática na aldeia pode ter com a identidade cultural
das novas gerações de paiter?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, faço menção a uma entrevista anterior, na qual PP1
considerou haver uma relação entre o ensino de saberes paiter e a
identidade cultural do povo. Intento com essa nova pergunta
compreender a relação que PP1 estabelece particularmente entre
ensino de matemática e identidade cultural. Considero como
pressuposto em minha fala a existência dessa relação.
PP1
Conhecimento tradicional... eu procuraria outro nome [risos]. Acho
que tradicional está relacionado a mais velho [risos]. Eu
simplesmente diria conhecimento paiter... não conhecimento
tradicional paiter. Ou, para eu me referir a uma época ou outra, eu
poderia dizer o conhecimento paiter antes do contato, vamos supor.
Sinceramente, professor, eu não gosto desse nome, de
conhecimento tradicional paiter. Eu fico meio perdido aí. Mas a
matemática paiter, ela tem um valor, um significado. E, ao longo da
pesquisa que a gente conversou, a gente discutiu, em lugares onde a
gente vai se encontrando... a gente vai discutindo, né professor, não
realmente na matemática, mas no sentido geral, e a gente vai
percebendo que uma coisa se liga a outra. E o que eu achei
importante nesse sentido é que a matemática paiter não se resume
somente a contar, distâncias... porque ela está inserida de
pensamento, de pensamento filosófico, sociológico... vamos supor
que até espiritual. Então, quer dizer, esses elementos fazem com
que não seja somente um conhecimento que eu poderia [dizer]:
“Ah, conhecimento matemático paiter. Mas isso não vai fazer
diferença no mundo em que hoje a gente está. Então deixa para lá”.
280
Mas, se a gente for pensar em outra perspectiva, a gente vai pensar
desse jeito: “É um conhecimento a partir do filosófico, do
sociológico, do espiritual”... todos esses relacionamentos. E não há
como um paiter dizer: “Ah, esse conhecimento para mim não
serve”. Ele pode ignorar ele aprender, mas em algum momento,
com certeza, ele vai praticar aquele saber, porque ele é paiter. Ele
pode até pensar que ele não vai praticar aquilo, porque aquela
matemática paiter não vai servir no mundo que a gente hoje está, no
mundo moderno. De alguma forma, ele vai usar aquele
conhecimento sem ele perceber. Basta ele estar em um espaço que
dá a possibilidade de ele falar, de ele pensar aquilo filosoficamente,
de ele pensar aquilo... ele vai chegar na roça dele, conversar com
um irmão, alguém, alguém... ele vai falar. Como eu vou ignorar
esse conhecimento, se automaticamente, naturalmente eu vou estar
praticando isto? O que falta é entender como a gente tem que lidar
com isso. E, a questão do mundo cultural paiter ser inserido no
mundo... moderno, né professor [risos]... aí eu percebo que, em
nenhum momento, eu tenho que ignorar um conhecimento,
principalmente alguma coisa que é advinda de mim. Todos eles vão
servir de serventia... paiter e o conhecimento não-paiter. Por quê?
Se ele ignorar aquele conhecimento paiter, ele pode ignorar
pessoalmente... falar: “Eu não vou mais falar essas coisas de paiter
porque não servem para nada”. Mas ele ser paiter, o subconsciente,
o que é carregado dele de paiter, vai fazer com que ele pratique
aquilo. Então, não é uma coisa que não tenha ligação uma com a
outra. O que basta é você entender que você tem que saber
realmente como... como não ignorar um conhecimento ou outro.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Identidade, Conhecimento, Particularidade, Cultura,
Tradição, Consciência, Resistência, Interculturalidade.
Disfóricas: Modernidade, Negação, Recusa, Colonização,
Ignorância, Mudança, Generalidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
281
ANÁLISE
A resposta de PP1 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que ser paiter é possuir
uma forma particular de existência caracterizada pela tradição de
um conhecimento diferente daquele existente no mundo moderno.
Assim sendo, a matemática paiter em particular, embora não tenha
aparentemente uma aplicação imediata no mundo moderno, é um
conhecimento que possui dimensões sociais, filosóficas e
espirituais específicas do modo ser paiter. Nesse sentido,
conhecimento paiter e identidade cultural paiter estão intimamente
relacionados, não sendo possível continuar a ser paiter deixando de
lado tais conhecimentos próprios e específicos da cultura do povo.
PP1 reconhece que, como efeito da colonização iniciada com o
contato, faz-se necessário atualmente que o povo Paiter também
domine conhecimentos da modernidade. Todavia, ele considera que
isso não pode significar um abandono de conhecimentos paiter, sob
o risco de assim deixar-se de lado a própria identidade cultural do
povo. Tal concepção exposta por PP1 aproxima-se dos
pressupostos da interculturalidade, ao considerar que a coexistência
de modos distintos de pensamentos, vinculados a culturas
inicialmente discretas, se dá de forma tensionada, de modo que há
sempre uma pressão de uma cultura sobre a outra no sentido de
produzir mudanças nas identidades culturais. Em síntese, verifica-
se na fala de PP1 o reconhecimento por ele assumido de que ser e
conhecer formam uma unidade na constituição da identidade
cultural paiter.
DISCURSO
Conhecimento paiter e identidade cultural paiter estão intimamente
relacionados, de modo que o conhecimento da matemática paiter
em suas dimensões sociais, filosóficas e espirituais é importante
para que o povo Paiter se mantenha na particularidade de sua
cultura, mesmo tendo que adquirir os conhecimentos necessários
para as relações com o mundo moderno.
282
Quadro 78 – Análise semiótica da unidade textual E15Q18
UNIDADE
TEXTUAL E15Q18
KÉCIO
Então, existe a escola na aldeia, existe esse fato que você menciona
como sendo um fato triste, no seu ponto de vista, de algumas
famílias colocarem os filhos para estudar em escolas fora do
território, em outro mundo, como você diz. Aí, eu volto a insistir
em uma questão, apesar de você já ter explicado muito bem, que
tem a ver com esse fato. É o seguinte: Que relação você estabelece
entre a educação escolar oferecida atualmente na aldeia e a
identidade cultural das novas gerações do povo Paiter?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, faço referência a falas anteriores de PP1 nas quais
ele mencionou uma relação entre educação escolar e identidade
cultura. Com essa pergunta, tive a intenção de aprofundar a
compreensão da concepção que PP1 tem dessa relação. Desse
modo, está presente em minha fala o pressuposto de que existe uma
relação entre educação escolar e identidade cultural, oferecendo a
PP1 a perspectiva de justificação dessa relação como alternativa de
resposta (de outro modo, a pergunta poderia ser: Existe relação
entre educação escolar e identidade cultural?).
PP1
Primeiro, é que... a escola que ensina... a escola que se tem hoje
dentro dos paiter, ela traz consigo hoje, mesmo que seja pouco
significativo, alguns elementos da cultura. Simplesmente de o
professor ser indígena, é um elemento significativo, na concepção
nossa, de que aquilo é uma escola paiter. Então, isso influencia
também, de uma certa forma, a um aluno paiter se identificar com a
escola... se identificar: “Eu tenho um professor que é paiter”. Então,
esse elemento é fundamental... Claro que faltam mais coisas ainda,
como o que ensinar dentro da escola, materiais para o ensino,
materiais paiter... E a questão de você ser um professor paiter, acho
que é um grande diferencial eu também pensar como um
professor... Qual é o meu reflexo para os alunos? O que eles
pensam de mim? Qual é minha atuação, e qual é a conclusão que
283
meus alunos têm de mim? Talvez eu tenha que exercer uma função,
não somente como profissional, mas eu também tenho que pensar
no social, cultural... que é diferente de um pai que simplesmente
pensa: “Vou colocar meu filho em uma escola não-indígena”, sem
essa reflexão. Uma das coisas que eles falam é que eles vão
aprender mais... Com certeza, podem aprender mais coisas. Mas,
talvez não vão ter a chance de ter... de ter esse momento que eu
tive... mesmo estudando fora da aldeia, voltar para as comunidades.
Quer dizer, você tem uma porcentagem, um percentual, uma
probabilidade de que aquele aluno talvez não possa voltar para a
aldeia. Então, isso pode parecer normal ou tranquilo. Mas, para
nossa concepção de ser paiter, simplesmente [o fato] de uma pessoa
sair do berço familiar e tentar aprender outra coisa, somente por
pensar que vai ser melhor para ela... a gente percebe, como paiter,
que não é legal. Não é legal no sentido de não aceitar... de dizer que
não aceitamos isso, mas, pelo contrário... a gente sabe que a gente
precisa conhecer mais fora da escola. Mas o momento não é esse.
Talvez o momento seria de pessoas que já estão mais habituadas a
viver com os pais... já vai ter outra mentalidade. Agora,
simplesmente [o fato] de eu tirar... vamos supor, o Natan. O Natan,
com quatro anos... tem crianças com quatro anos que estudam na
escola rural. Aí, eu pensar um futuro para ele, a partir da minha
comunidade... eu pensar um futuro para ele a partir do povo... como
pai, eu posso ter esse pensamento. Mas o que ele vai aprender, no
lugar onde ele vai estar, não vai ensinar a ele com essa concepção.
Então, simplesmente [o fato] de o professor ser indígena, dentro de
uma escola indígena, é um diferencial muito grande.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Interior, Tradição, Indígena, Identidade, Manutenção,
Resistência, Interior, Povo, Particularidade.
Disfóricas: Escolarização, Não-indígena, Perda, Colonização,
Mudança, Exterior, Generalidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
284
ANÁLISE
A resposta de PP1 está baseada na oposição particularidade vs
generalidade. Nesse sentido, ele considera que as particularidades
da educação escolar na aldeia, como a de ter professores paiter e se
dar no interior da comunidade, servem para contribuir com a
manutenção da identidade cultural do povo, frente às mudanças
provocadas pela colonização e por uma escolarização não-indígena
generalista fora da aldeia e da cultura do povo Paiter. Assim sendo,
PP1 destaca a importância de as novas gerações do povo Paiter
permanecerem no espaço da aldeia, estudando em escolas
indígenas, com professores da própria comunidade, sob o risco de
se assim não for, perderem-se as referências identitárias internas
próprias do povo, em razão das mudanças de concepção de futuro
provocadas pela escola não-indígena.
DISCURSO
A educação escolar oferecida na aldeia, com a participação de
professores indígenas, contribui para a manutenção da identidade
cultural particular do povo, distintamente de uma educação escolar
generalista não-indígena, oferecida fora da comunidade, que
contribui para a alteração das concepções de mundo e de futuro das
novas gerações.
Quadro 79 – Análise semiótica da unidade textual E11Q28
UNIDADE
TEXTUAL E11Q28
KÉCIO
Qual a sua opinião sobre a proposta de a escola na aldeia trabalhar
então com saberes tradicionais do povo Paiter e saberes ocidentais?
O fato de as novas gerações estarem aprendendo esses diferentes
conhecimentos, com diferentes origens, vai interferir na identidade
cultural do povo Paiter?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP9 sua percepção a
respeito da relação entre educação escolar e identidade cultural.
Está presente em minha fala a oposição tradição vs modernidade,
sugerindo assim ao entrevistado uma perspectiva de resposta
285
relacionada à possibilidade de mudanças de identidade resultantes
da relação entre saberes de mundos culturais distintos.
PP9
Acho que não interfere não. Porque é importante eles conhecerem
esses dois conhecimentos, levar esses dois conhecimentos juntos,
porque eles dependem do conhecimento dos não-indígenas e têm
que valorizar os seus conhecimentos também. Por isso, eles devem
levar os dois [conhecimentos] juntos.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Indígena, Conhecimento, Valorização, Tradição.
Disfóricas: Não-Indígena, Dependência, Modernidade.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Indígena vs Não-Indígena
ANÁLISE
A resposta de PP9 baseia-se na oposição indígena vs não-indígena.
Nesse sentido, ele destaca a diferença existente entre
conhecimentos indígenas tradicionais e não-indígenas modernos,
mas considera importante que a educação escolar na aldeia abranja
os dois tipos distintos de conhecimento. Considerando uma
dependência do povo Paiter em relação aos conhecimentos não-
indígenas, PP9 propõe que eles sejam reproduzidos pela educação
escolar simultaneamente com a valorização dos conhecimentos que
são próprios do seu povo. Desse modo, considerando a coexistência
dos dois tipos de conhecimento, PP9 entende que a educação
escolar não interfere na identidade cultural das novas gerações do
povo Paiter. A concepção exposta por PP9 aproxima-se de uma
perspectiva de escola na aldeia como espaço de hibridação cultural,
embora considere que a coexistência de distintos saberes na
educação escolar das novas gerações não interfira diretamente na
identidade cultural de seu povo. Verifica-se, de todo modo, que a
possibilidade de a escolarização não interferir na identidade
cultural está condicionada, na fala de PP9, à valorização dos
conhecimentos que são próprios do universo cultural do povo.
DISCURSO
A educação escolar, se trabalhar simultaneamente com
conhecimentos indígenas e não-indígenas, valorizando os
primeiros, não interfere na identidade cultural do povo.
286
Quadro 80 – Análise semiótica da unidade textual E13Q32
UNIDADE
TEXTUAL E13Q32
KÉCIO
O tipo de educação escolar oferecido na aldeia possui alguma
relação com a identidade cultural das novas gerações do povo
Paiter? A maneira como os jovens hoje em dia se veem tem relação
com a escola na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, intentei ouvir de PP4 sua percepção sobre a relação
entre educação escolar e identidade cultural. Está presente em
minha fala o pressuposto de que a identidade cultural das novas
gerações do povo Paiter atualmente (hoje em dia) pode ter uma
relação com a educação escolar praticada na aldeia.
PP4
Nesses dois últimos anos em que estamos lá, está havendo. A
escola na aldeia pode ser intercultural. Pode ser de um lado
indígena e de outro não. Aí, a escola está tentando puxar mais do
lado da cultura.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Indígena, Tradição
Disfóricas: Não-Indígena, Modernidade
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Modernidade
ANÁLISE
A resposta de PP4 está baseada na oposição tradição vs
modernidade. Nesse sentido, ele considera que a escola na aldeia,
nos últimos anos, tem busca contemplar referências da tradição, de
um lado, e da modernidade, de outro, de modo a se tornar
intercultural. Destaca-se na fala de PP4 a ênfase na tentativa da
escola priorizar a própria cultura do povo Paiter. Assim, PP4
concebe que tem havido uma relação entre a educação escolar
existente na aldeia e a identidade cultural do povo, estando a escola
voltada especialmente para a manutenção da cultura do povo.
DISCURSO
A educação escolar na aldeia, quando desenvolvida de forma
intercultural entre a tradição e a modernidade, com ênfase na
cultura do próprio povo, contribui para a manutenção da identidade
cultural das novas gerações.
287
7.13 Análise semiótica de unidades textuais referentes à tematização mudanças na
educação do povo da categoria de análise interculturalidade
Quadro 81 – Análise semiótica da unidade textual E14Q20
UNIDADE
TEXTUAL E14Q20
KÉCIO O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola
na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP10 sua percepção das
mudanças ocorridas na forma tradicional de educação do povo após
a introdução da escola na aldeia. Está presente em minha fala o
pressuposto de que a chegada da escola na aldeia produziu
mudanças na educação do povo, indicando ao entrevistado a
perspectiva de confirmação desse pressuposto em sua resposta.
PP10
Mudou bastante. Como eu estava falando para você, o povo Suruí
dividiu, e foi criando aldeias, foi distanciando um grupo de outro
grupo. Então, assim, não existe mais a educação que a gente tinha...
a educação de quando a gente morava juntos. Então, um grupo
pequeno não consegue fazer aquelas festas tradicionais, músicas
tradicionais, e agora só estão interessados na educação não-
indígena, em uma escola de prédio... só quer colocar os filhos
dentro disso.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Povo, União, Convivência, Coletividade, Tradição.
Disfóricas: Mudança, Desunião, Fragmentação, Não-indígena,
Escolarização.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
ANÁLISE
A resposta de PP10 baseia-se na oposição tradição vs
escolarização. Nesse sentido, ele considera que a escolarização
introduzida na aldeia alterou formas tradicionais de educação
existentes nas relações sociais dos grupos que compunham o povo.
Assim, houve uma fragmentação do povo, com a criação de novas
288
aldeias (para criação de novas escolas), impossibilitando a
convivência cotidiana que garantia a realização de atividades
tradicionais como festas e outros eventos coletivos. PP10 destaca
que atualmente a escolarização não-indígena prevalece sobre
formas tradicionais de educação de seu povo.
DISCURSO
A introdução da escola não-indígena na aldeia alterou as formas
tradicionais de educação do povo, fragmentando e dividindo os
grupos, cuja convivência anterior garantia a manutenção da
tradição por meio da realização de atividades tradicionais coletivas.
Quadro 82 – Análise semiótica da unidade textual E11Q22
UNIDADE
TEXTUAL E11Q22
KÉCIO O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola
na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, tive a intenção de ouvir de PP9 sua percepção das
mudanças provocadas pela escola sobre a forma tradicional de
educação do povo. Ao enunciar a pergunta, inseri em minha fala o
pressuposto de que a introdução da escola na aldeia produziu
mudanças na educação tradicional do povo. Indico assim, como um
fazer persuasivo, perspectiva de confirmação desse pressuposto
como possibilidade de resposta ao entrevistado.
PP9
Para falar a verdade, no meu ponto de vista, está diminuindo muito.
Porque acho que os pais não estão muito dando essa educação
tradicional para os filhos... deixando eles crescerem... e poucos pais
dão conselhos para eles... não são todos. No meu ponto de vista,
está muito pouco. Por que eu vejo isso? Antigamente, através da
educação que os pais estavam passando para os filhos, os filhos não
faziam tanto as coisas erradas, porque o pai dizia: “Ah, não pode
fazer isso! Nossa cultura não é isso! Se fizer essas coisas, você não
é gente! Quem quer ser gente de verdade, não pode ser mal
educado! A pessoa que quer ser gente mesmo de verdade tem que
289
ser educado, respeitar os outros, respeitar os mais velhos, respeitar
os seus próximos!” Não é só respeitar o pai. Tem que respeitar
todos. A pessoa assim era “Ah, fulano é gentil. Ah, fulano é bem
educado!” Ele era bem falado dentro da aldeia. Agora, aquela
pessoa que fala mal, aquele que briga, aquele que fala na cara da
pessoa, que faz aquela bagunça... não era bem falado dentro da
aldeia não: “Ah, fulano é isso, fulano é aquilo”. Então, hoje, como
o pai não está mais passando educação para o filho, hoje a nova
geração está bem confusa. Por isso, eu vejo isso... a partir disso, o
que eu vejo é que a nossa educação não está bem aplicada. Está
acabando. Porque as novas gerações estão seguindo o modelo do
não-índio. Assim... falando frente a frente... isso não é do nosso
costume. Isso não é ser gente, gente que quer ser respeitada dentro
da sociedade. Isso não é papel dela.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição, Interior, Particularidade, Cultura, Indígena,
Identidade.
Disfóricas: Não-indígena, Mudança, Enfraquecimento, Exterior,
Generalidade, Colonização, Escolarização.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Particularidade vs Generalidade
ANÁLISE
A resposta de PP9 está baseada na oposição particularidade vs
generalidade. Nesse sentido, ele considera que seu povo possuía
particularidades no modo de educar as novas gerações de forma a
garantir a manutenção de sua identidade (gente de verdade), mas
que atualmente, com a introdução da forma de educação generalista
não-indígena na aldeia, novos valores e atitudes estão
enfraquecendo a forma tradicional de educação existente no
passado. Desse modo, para PP9, a introdução da escola não-
indígena na aldeia representou um enfraquecimento da tradição e
dos costumes particulares do povo Paiter, alterando a forma com a
qual a identidade cultural do povo era reproduzida anteriormente
(deixando de ser gente de verdade).
DISCURSO A introdução da escola na aldeia alterou as formas tradicionais e
290
particulares de educação do povo, modificando a identidade
cultural das novas gerações a partir de valores não-indígenas.
Quadro 83 – Análise semiótica da unidade textual E13Q15
UNIDADE
TEXTUAL E13Q15
KÉCIO O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola
na aldeia?
AUTOANÁLISE
Nessa questão, está presente em minha fala o pressuposto de que a
introdução da escola na aldeia produziu mudanças na educação
tradicional do povo. Indico assim, com meu fazer persuasivo, uma
perspectiva de confirmação desse pressuposto como possibilidade
de resposta ao entrevistado.
PP4 A educação mudou porque deixou de lado essa educação
tradicional, e agora a gente está indo na educação da escola.
CATEGORIAS
SEMÂNTICAS
Eufóricas: Tradição.
Disfóricas: Mudança, Abandono, Escolarização.
OPOSIÇÃO
SEMÂNTICA Tradição vs Escolarização
ANÁLISE
A resposta de PP4 baseia-se na oposição tradição vs escolarização.
Nesse sentido, ele considera que após a introdução da escola na
aldeia, houve um abandono da forma tradicional de educação do
povo, passando a prevalecer, após essa mudança, o processo de
escolarização.
DISCURSO
A introdução da escola na aldeia modificou a forma tradicional de
educação do povo, passando a prevalecer o processo de
escolarização em detrimento da tradição anteriormente existente.
291
8 INTERCULTURALIDADE E ETNOMATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO
ESCOLAR PAITER
Após analisar cada unidade textual selecionada na seção anterior, retomamos nesta
seção as questões que compuseram a problemática inicial da pesquisa, buscando verificar
nas práticas discursivas dos professores paiter, agora interpretadas como discursos, os
elementos que possibilitam a elaboração de uma síntese. Para tanto, reunimos em blocos os
discursos dos professores, denominados de sínteses de discursos, organizados a partir das
análises das unidades textuais feitas na seção anterior referentes às treze tematizações das
categorias de análise, buscando assim produzir um fazer interpretativo relacionado à
construção de respostas às questões iniciais da pesquisa.
Conforme exposto na primeira seção, duas questões compuseram a problemática de
investigação, diretamente relacionadas às demandas de minha atuação docente no curso de
formação de professores indígenas na universidade, do qual participam, como estudantes,
os professores paiter sujeitos desta pesquisa, sendo elas: Que motivações e ideias subjazem
às atuais práticas de professores paiter voltadas para a revitalização de saberes e fazeres
matemáticos tradicionais significativos para a cultura paiter nas escolas das aldeias? e
Que problematizações isto pode produzir para a ressignificação de práticas pedagógicas
institucionalizadas nas escolas das aldeias, que priorizam a matemática escolar em
detrimento dos saberes da tradição paiter?
Percebemos que os discursos identificados na seção anterior a partir de um fazer
interpretativo dos dados, se reunidos em sínteses, já se constituem em elementos
interpretativos do universo da problemática pesquisada, relativos a motivações e ideias de
professores paiter em relação à projeção de uma educação escolar que contemple as
particularidades da cultura de seu povo. No entanto, percebemos que um incremento à
interpretação pode se dar a partir de um olhar para os discursos considerados em blocos
temáticos, possibilitando assim identificar ênfases e reiterações que a análise de cada
discurso isoladamente não possibilitaria.
Nesse sentido, buscaremos nesta seção, a partir de conceitos explorados nos
referenciais teóricos abordados nas seções iniciais, realizar um fazer interpretativo sobre
sínteses de discursos dos professores paiter, buscando compreender ideias, pressupostos,
292
problematizações e ressignificações relativas à educação escolar atualmente existente ou
projetada para as aldeias do povo, conforme estabelecido nas questões iniciais da pesquisa.
8.1 Um fazer interpretativo final sobre sínteses de discursos
Considerando as três categorias de análise emergidas da problemática da pesquisa –
educação escolar indígena, interculturalidade e etnomatemática, treze tematizações se
destacam nas práticas discursivas dos professores geradas em seções de entrevistas,
enquanto manifestações de ideias, motivações e problematizações presentes nos discursos,
sendo elas: Concepções de educação, Mudanças na educação do povo, Concepções de
escola, Importância da escola na aldeia, Motivações para ser professor, Papel do
professor na aldeia, O que deve ser ensinado na escola da aldeia, Relação entre educação
escolar na aldeia e identidade cultural, Concepções de etnomatemática, Como deve ser o
ensino de matemática na escola da aldeia, Importância de se trabalhar com os saberes
matemáticos paiter na escola, Importância dos velhos para o ensino de saberes da
tradição, Estado da cultura paiter em cem anos.
Passaremos, a seguir, à apresentação e discussão das sínteses de discursos
referentes a cada uma destas tematizações relacionadas às categorias de análise.
8.1.1 Concepções de educação
As concepções de educação enunciadas pelos professores baseiam-se nas oposições
particularidade vs generalidade, tradição vs modernidade e interior vs exterior. Há nos
discursos uma ênfase em aspectos da cultura do próprio povo no modo como concebem
educação, relacionando-a à particularidade e à tradição existente internamente ao que
consideram ser uma identidade cultural paiter, assim como também destaca-se nos
discursos o aspecto não-indígena da educação, entendida como um processo vinculado à
reprodução de conhecimentos e saberes externos à cultura, por meio da escolarização, com
ênfase na aquisição da leitura e da escrita.
Quadro 84 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de educação da categoria de
análise educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1 Educação é um processo orientado por conhecimentos vinculados a
293
uma tradição no interior de uma cultura particular ou por pressões
advindas do exterior geral de uma cultura, que pode manter ou
alterar a identidade cultural das pessoas.
PP10
Educação é um processo de reprodução de tradições particulares de
cada povo indígena e também de inclusão de elementos culturais
não-indígenas gerais no interior da cultura de cada povo.
PP9
Educação é um processo vinculado à tradição e também à escola,
que proporciona o aprendizado de experiências de vida no convívio
em sociedade e o aprendizado de conteúdos específicos na escola.
PP3
Educação é um processo pelo qual os conhecimentos da tradição
são reproduzidos, sendo também o aprendizado resultante do
processo de escolarização.
PP7
Educação é tanto o processo pelo qual, no interior da tradição, os
conhecimentos e valores são reproduzidos, quanto o processo de
alteração da cultura introduzido pela colonização e enfrentado pelo
povo no interior da escola.
PP6
Educação é um aprendizado de procedimentos e valores internos à
cultura e à tradição de uma comunidade indígena, assim como é o
aprendizado de procedimentos não-indígenas tais como ler e
escrever, provenientes de um meio externo e promovidos pela
escolarização.
As concepções de educação presentes nos discursos dos professores paiter
relacionam-se com seus contextos de atuação profissional e de formação acadêmica.
Atualmente, as escolas existentes na Terra Indígena Sete de Setembro são mantidas pelas
secretarias estaduais de educação de Rondônia e de Mato Grosso, dada a localização do
território paiter sobre a divisa entre os dois estados. Conforme exposto anteriormente, os
professores paiter participantes desta pesquisa moram e trabalham em aldeias que se
situam “dentro” do estado de Rondônia, e portanto possuem seus vínculos empregatícios
com a Secretaria de Estado de Educação de Rondônia – SEDUC. Todos os professores
participantes são também acadêmicos do Curso de Licenciatura em Educação Básica
Intercultural, oferecido pelo Departamento de Educação Intercultural da Universidade
294
Federal de Rondônia. Portanto, estão recebendo uma formação em serviço, em
continuidade, em alguns casos, à formação recebida no Projeto Açaí, e essa condição
propicia-lhes uma reflexão sobre as práticas existentes nas escolas nas aldeias,
possibilitando problematizar os fins da educação escolar implementada como política
pública de educação para o povo Paiter.
Assim, situados entre o espaço cotidiano e de trabalho na aldeia e o espaço
acadêmico na universidade, os professores paiter estão colocando em movimento ações
que questionam a ordem das práticas escolares e problematizam o currículo, na direção de
incluir no âmbito da educação escolar implantada em seu território características próprias
do universo paiter, até então inexistentes ou excluídas da educação das novas gerações.
Nesse contexto, ressignificar o próprio conceito de educação torna-se uma ação
fundamental para as mudanças que projetam para a escola inserida em suas comunidades,
relacionando ao conceito características próprias da cultura e da identidade cultural do
povo.
Destaca-se nos discursos o aspecto atribuído à educação referente à reprodução ou
alteração da cultura e da identidade cultural do povo. Assim, a educação é concebida como
um caminho que pode conduzir o indivíduo paiter para um futuro no qual ele continue a ser
paiter, mantendo sua identidade no interior da tradição particular de seu povo, como pode
também conduzi-lo para fora dessa tradição, transformando sua identidade. Desse modo,
em conjunto, as ideias presentes nos discursos dos professores vinculam-se a uma
concepção de educação como caminho, como um rumo a seguir, algo que projeta o
indivíduo no futuro e determina o que ele vai ser. Todavia, não é algo determinístico, pois,
no meio desse caminho, o sujeito pode se perder, em razão das pressões que existem, de
modo que ser paiter no futuro é algo que depende do rumo a seguir e do caminho a tomar,
orientando-se por uma visão de futuro.
Nesse sentido, como processo existente no interior da cultura particular de cada
povo, a educação reproduz tradições entre diferentes gerações, mas no plano geral e
exterior, por meio de pressões culturais, a educação insere na cultura elementos novos, o
que, no caso de povos indígenas, significou a introdução da escrita e da matemática escolar
após o contato. Os professores buscam distinguir assim em seus discursos educação
tradicional de educação escolar. A primeira é caracterizada como processos pelos quais
pais educam filhos no âmbito da família ou por meio da convivência em sociedade, sendo
uma preparação para a vida. A segunda é assumida como forma de se aprender, na escola,
conteúdos e valores não-indígenas. Ao primeiro tipo de educação atribui-se uma
295
importância maior, porque seria mais completa em relação à educação que ocorre por meio
do processo de escolarização, visto que esta última não contribuiria diretamente para uma
experiência de vida necessária à convivência em sociedade.
Ao conceberem uma dicotomização entre diferentes visões características de cada
tipo de educação, os professores expõem uma consciência de que a colonização imposta a
seu povo e a introdução da escola após o contato alterou processos tradicionais de
reprodução da cultura, inserindo-se nesse processo perspectivas e valores não-indígenas,
sendo a categoria “enfrentamento” a que representa a vontade de resistência às
transformações e mudanças de perspectivas introduzidas pela escolarização quando oposta
à tradição.
A estreita relação estabelecida nos discursos entre educação e identidade se dá
sempre tomando como referência o que é particular do povo Paiter e a possibilidade de
continuar ou não a ser paiter. Assim, atribui-se à educação uma característica processual
associada a uma perspectiva não essencialista de identidade, visto que esta pode ser
alterada em função dos rumos e dos caminhos tomados ao longo da vida.
A dualidade tradição vs modernidades presente nos discursos aproxima-se de uma
perspectiva intercultural de educação, pois considera elementos que são oriundos de dois
universos culturais distintos, sendo de um lado o paiter, revestido de significados próprios
como a história, os costumes e valores sociais, e de outro lado um espaço até recentemente
inexistente nas aldeias, a escola, considerada como lugar em que se aprendem
conhecimentos inexistentes na tradição.
8.1.2 Mudanças na educação do povo
Baseando-se nas oposições tradição vs escolarização e particularidade vs
generalidade, os professores paiter manifestam uma consciência de que a introdução da
escola na aldeia provocou mudanças na forma tradicional de educação do povo. Nesse
sentido, como promotora de uma educação generalista não-indígena na aldeia, a escola
passou a promover novos valores e atitudes, enfraquecendo com isso a forma tradicional de
educação existente em tempos anteriores ao contato, e alterando a forma com a qual a
identidade cultural do povo era reproduzida anteriormente (deixando de ser gente de
verdade).
296
Quadro 85 – Síntese de discursos referentes à tematização mudanças na educação do povo da categoria
de análise interculturalidade
SUJEITO DISCURSO
PP10
A introdução da escola não-indígena na aldeia alterou as formas
tradicionais de educação do povo, fragmentando e dividindo os
grupos, cuja convivência anterior garantia a manutenção da
tradição por meio da realização de atividades tradicionais coletivas.
PP9
A introdução da escola na aldeia alterou as formas tradicionais e
particulares de educação do povo, modificando a identidade
cultural das novas gerações a partir de valores não-indígenas.
PP4
A introdução da escola na aldeia modificou a forma tradicional de
educação do povo, passando a prevalecer o processo de
escolarização em detrimento da tradição anteriormente existente.
Destacam-se, em particular no discurso de PP10, as mudanças provocadas pela
educação escolar sobre a organização social do povo Paiter. Isto porque, ao proporcionar a
origem de interesses conflitantes nas comunidades, a escola passou a contribuir com a
fragmentação do povo, estimulando a criação de novas aldeias (para criação de novas
escolas), alterando a convivência cotidiana que garantia a realização de atividades
tradicionais como festas e outros eventos coletivos.
8.1.3 Concepções de escola
Baseando-se nas oposições indígena vs não-indígena, generalidade vs
particularidade, formalidade vs informalidade, tradição vs modernidade e interior vs
exterior, os professores definem escola como um espaço formal, generalista, onde se
ensinam para indígenas conhecimentos não-indígenas, mas também a ressignificam, ao
considerarem a possibilidade de ser compreendida como todo espaço que proporcione
aprendizagens. Destaca-se assim no discurso dos professores a diferença existente entre
uma visão de mundo característica da escola não-indígena, de caráter disciplinar, e uma
visão de mundo indígena, caracterizando a atual escola na aldeia com um elemento
estranho à realidade do povo. Escola não-indígena é assumida, nesse sentido, como um
espaço colonizador, estabelecido entre os povos indígenas após o contato com a sociedade
297
não-indígena, e que age, juntamente com outros espaços, para a alteração da visão de
mundo e da identidade de povos e sociedades colonizadas.
Quadro 86 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de escola da categoria de análise
educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1
Escola é um espaço onde se ensina para indígenas conhecimentos
não-indígenas que nada têm a ver com a identidade e a visão de
mundo indígena.
PP10
Escola é toda situação social em geral que oportuniza
aprendizagens, ensinamentos, troca de ideias no interior de um
povo, para além do espaço restrito e particular de uma construção
física.
PP9 Escola é um espaço formal onde se ensinam conteúdos específicos
de forma disciplinar.
PP4 Escola é um espaço formal onde se aprende a ler e escrever.
PP3 Escola é um espaço formal em que se reproduzem saberes e
conhecimentos específicos que não fazem parte da tradição.
PP7 Escola é um espaço não-indígena isolado e diferente da tradição
indígena, onde alunos indígenas buscam conhecimentos ocidentais.
PP6
Escola é um espaço específico onde se aprende a ler, escrever e
valores para distinguir o que é certo do que é errado, o que pode ser
feito do que não pode se fazer.
PP5
Escola é um conjunto de espaços gerais, múltiplos e diversos
existentes no contexto de uma comunidade e relacionados à vida
das pessoas, além de ser uma estrutura física que tem a finalidade
de sistematizar conhecimentos e discutir questões relativas ao
cotidiano.
PP2
Escola é uma estrutura que existe no interior da comunidade para
reproduzir tanto conhecimentos internos à cultura indígena quanto
conhecimentos externos, provenientes da sociedade envolvente.
298
Uma crítica à atual organização da educação escolar na aldeia é estabelecida pelos
professores indígenas, ao exporem suas concepções de escola. De modo geral, os
professores reconhecem a importância da presença da escola na aldeia, como espaço de
promoção da cultura e de aquisição de conhecimentos não-indígenas necessários à
convivência intercultural, mas também indicam que este não é o tipo real de escola
atualmente existente na aldeia.
As críticas elaboradas pelos professores indígenas revelam uma representação de
instituição escolar existente nas aldeias do povo Paiter que, não obstante as transformações
jurídicas e formais ocorridas ao longo da história, ainda não se diferencia essencialmente
dos modelos característicos das fases integracionista ou assimilacionista. Trata-se ainda de
uma educação escolar para os índios, e não propriamente de uma educação escolar
indígena. Isso não significa, todavia, que os professores não contemplem em suas
representações críticas a necessidade de que a escola na aldeia seja uma janela para o
acesso aos conhecimentos da realidade cultural externa que os circundam. Por isso,
também se faz presente nos discursos a ideia de um currículo escolar que contemple tanto
os “conteúdos não-indígenas” quanto a “cultura indígena”, para “ele não se esquecer do
que ele é”.
Não obstante a visão crítica a respeito da escola não-indígena, destaca-se nos
discursos dos professores uma tentativa de ressignificação do espaço escolar, projetando
para seu interior, para além do ensino da leitura e da escrita e da reprodução de
conhecimentos ocidentais, a função de sistematizar conhecimentos e debater questões
cotidianas da comunidade. Com tal ressignificação, os professores buscam superar um
modelo de instituição escolar, restritivo e delimitado, historicamente introduzido em
sociedades indígenas, em detrimento de formas próprias de educação já existentes em suas
culturas e tradições.
Mesmo quando assumida como espaço formal não-indígena dentro da aldeia,
voltado principalmente para o ensino da leitura e da escrita, observa-se nas práticas dos
professores paiter na escola características próprias do universo cultural específico de seu
povo. Nesse sentido, por exemplo, no cotidiano da escola e das salas de aula na aldeia, as
práticas pedagógicas dos professores se diferenciam das observadas em geral em escolas
não-indígenas quanto ao controle sobre o fazer dos alunos.
Nesse caso, a relação entre professor e aluno é orientada por padrões internos da
cultura paiter, segundo os quais o interesse em aprender deve partir do próprio indivíduo.
Isso explica o fato de os professores problematizarem a representação que nós, não-
299
indígenas, fazemos dos velhos na aldeia. Tendemos a assumir que ser velho significa ser
sábio. Mas, para os Paiter, a velhice nem sempre implica sabedoria, porque nem toda
criança manifesta o mesmo interesse em aprender. Assim, os indivíduos que não têm
interesse em aprender quando crianças tornar-se-ão, quando velhos, pessoas menos sábias.
Tal concepção se faz presente na escola paiter, refletindo no não direcionamento direto do
professor sobre o fazer do aluno, tal como é comum se observar na escola não-indígena.
Assim, as crianças paiter são livres para entrar e sair da sala quando desejam e suas
anotações nos cadernos não são “corrigidas” quanto ao certo ou ao errado com o mesmo
grau de censura que geralmente se observa na escola não-indígena.
Em síntese, verifica-se que, embora a escola seja concebida pelos professores paiter
como resultado do contato com o Ocidente, sendo ela mesma o espaço representativo do
Ocidente na atualidade no interior das comunidades, ocupando funções que anteriormente
eram exercidas pela tradição, não há uma recusa no sentido de eliminá-la da sociedade
paiter. Há, isto sim, um interesse em ressignificá-la, ampliando inclusive sua própria
definição, a fim de incorporar a ela outros espaços como o da família e o da comunidade
em geral como espaços a serem considerados como escola.
Nesse sentido, escola passa a ser assumida como uma estrutura que existe no
interior da comunidade indígena para reproduzir conhecimentos e valores da sociedade
envolvente, mas também é pensada como espaço para promoção da cultura local. Nesse
sentido, como espaço aparentemente ambíguo e contraditório, a escola é concebida a partir
de uma perspectiva intercultural, porque projeta-se para seu interior expandido a
reprodução simultânea de elementos de espaços culturais distintos, indígenas e não-
indígenas, tradicionais e colonizadores.
8.1.4 Importância da escola na aldeia
Os discursos dos professores paiter sobre a importância da escola na aldeia estão
baseados nas oposições particularidade vs generalidade, indígena vs não-indígena,
tradição vs modernidade e harmonia vs conflito. Nesse sentido, escola é concebida como
estrutura ou instituição de caráter geral, que tem um reconhecimento externo oficial,
enquanto espaço instituído pelo estado, e sua importância na comunidade está associada à
possibilidade de promoção da visão de mundo particular do povo Paiter. Embora
reconheçam, como indicado anteriormente, que a escola insere no seio da comunidade
valores e conhecimentos estranhos ou opostos aos da tradição, os professores também
300
concebem que a funcionalidade da escola pode ser direcionada para a promoção da
tradição e da identidade de seu povo. Verifica-se assim uma ressignificação da escola na
aldeia, deixando esta de ser considerada apenas como um espaço colonizador de imposição
de uma cultura não-indígena sobre o povo, para assumir o papel de reproduzir a tradição da
própria comunidade na qual está inserida.
Quadro 87 – Síntese de discursos referentes à tematização importância da escola na aldeia da categoria
de análise educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1
A importância da escola existente na aldeia é que ela é uma
instituição de caráter geral, reconhecida e instituída pelo estado,
mas cuja funcionalidade deve ser utilizada para a promoção da
tradição e da identidade cultural particular do povo.
PP1
A escola na aldeia, atualmente, deve servir tanto como um espaço
para se aprender conhecimentos não-indígenas necessários para as
relações com a sociedade colonizadora, quanto para promover os
conhecimentos indígenas, fortalecendo a cultura e a identidade do
povo.
PP10
A escola na aldeia tem se destacado entre os Paiter como um
espaço de conflitos, motivados por interesses individuais que
permeiam as relações de poder, em desacordo com a harmonia
coletiva que se espera em relação à promoção da cultura, da
tradição e da identidade do povo.
PP9
A escola na aldeia, se autônoma e diferenciada, é importante para a
manutenção dos saberes da tradição indígena e para a aquisição de
conhecimentos da sociedade não-indígena, devendo para tanto
buscar superar contradições e relações de dominação que ainda
existem em seu interior provenientes do processo de colonização.
PP4
A escola na comunidade é importante para que os estudantes
indígenas possam aprender em sua própria língua materna, com
professores da comunidade, sem ter que sair de seu território, de
modo a não sofrer dificuldades impostas por uma escola não-
indígena que não leva em consideração suas particularidades
linguísticas.
301
PP3
A escola na comunidade é importante para garantir a manutenção
da cultura e da tradição indígena, além de possibilitar o acesso a
conhecimentos não-indígenas necessários à sobrevivência do povo
na contemporaneidade.
PP3
A escola na aldeia tem o papel fundamental de contribuir com a
manutenção da tradição e da cultura do povo, fazendo frente às
transformações advindas da modernidade.
PP7
A importância da escola para a comunidade atualmente é que, além
de ensinar conhecimentos externos à tradição, ela pode contribuir
para a manutenção da cultura do povo, fazendo frente às
transformações advindas da modernidade.
A dualidade indígena vs não-indígena permeia as ideias dos professores referentes
à importância da escola na aldeia, ao assumirem que a escola pode ser um espaço tanto de
valorização de sua própria cultura e identidade indígena particular, quanto de promoção de
conhecimentos não-indígenas necessários para a existência do povo nas relações existentes
com a sociedade envolvente. Para se chegar a esta concepção de escola e de sua
importância, faz-se presente nos discursos dos professores, especialmente no discurso de
PP1, a consciência histórica de que três momentos distintos caracterizaram a escola na
aldeia, sendo o primeiro voltado para a introdução de saberes exclusivamente não-
indígenas na aldeia, cuja consequência escapava à consciência do povo; o segundo
caracterizado pela necessidade reconhecida pelo próprio povo de dominar conhecimentos
não-indígenas em razão das relações estabelecidas com a sociedade colonizadora; e o
terceiro como sendo aquele em que se espera que a escola também sirva para a promoção
da própria cultura paiter, fortalecendo assim a identidade cultural do povo.
Embora reconheçam a possibilidade da escola assumir valores interculturais e
reproduzir simultaneamente conhecimentos ocidentais e da tradição, não escapa à
percepção dos professores os conflitos que a introdução da escola no território paiter
ocasionou na organização social do povo. Nesse sentido, percebe-se que a escola na aldeia
também tem sido pretexto para conflitos e disputas entre membros das comunidades,
motivados por interesses individuais, que, ao não serem satisfeitos, transformam-se em
propulsores de cisões internas que acabam culminando com a criação de novas aldeias
(para a criação de novas escolas).
302
Assim, a escola é percebida como espaço de privilégios, produtor de status, um
espaço de poder, que garante a quem dela participa benefícios pessoais em detrimento da
coletividade. Segue-se disso o potencial de alterações de visão de mundo, de identidade e
de valores que a presença da instituição escolar em comunidades tradicionais pode
ocasionar, sendo a inserção da escola na aldeia, como parte do processo de colonização,
não só instância subjetiva de inclusão de conhecimentos não-indígenas para o interior da
fronteira cultural e identitária do povo, mas também fortemente instância objetiva de
desestabilização das relações de poder tradicionalmente existentes nas comunidades. A
escola, vista por esse ângulo, assume-se assim entre os professores paiter como um espaço
que, embora concebido como necessário por sua importância na contemporaneidade, está
permeado de ambiguidades e contradições.
Emerge dos discursos dos professores a esperança de que a escola na aldeia assuma
nova perspectiva, distinta da atualmente existente. Nesse sentido, reivindicam para a escola
na aldeia autonomia, reconhecimento de diferenças e uma identidade indígena (ter a cara
do índio) particular, vinculada à tradição. Para expressar essa ideia, os professores
estabelecem uma crítica à prevalência de conhecimentos não-indígenas em sala de aula na
atualidade, símbolo de dominação resultante do processo de colonização, pressupondo,
então, que uma escola diferenciada do povo deve superar essa contradição, tratando
conhecimentos indígenas e não-indígenas de modo equivalente, sem desmerecer a tradição
e a cultura paiter. Pressupõe-se assim possível a promoção de um diálogo, embora tenso e
problemático em função das relações de poder presentes, entre saberes provenientes de
distintos contextos, em particular, do contexto indígena e do não-indígena.
Em síntese, os discursos dos professores estão voltados para o reconhecimento da
importância da escola na aldeia por proporcionar o ensino de conhecimentos não-indígenas
em geral, necessários ao empoderamento de seu povo para a reivindicação de direitos e
para a formação de profissionais em áreas específicas necessárias ao atendimento de
necessidades contemporâneas da comunidade, ao mesmo tempo em que pode reproduzir a
cultura e a tradição indígena, contrapondo-se assim ao processo de colonização e ao
consequente abandono de particularidades que caracterizam o povo em função de
mudanças advindas da modernidade. Assim, atribui-se à escola um papel de resistência
cultural, contrapondo-se e buscando-se superar uma perspectiva de escola integracionista, a
serviço da sociedade colonizadora, historicamente imposta às sociedades indígenas, mas
agora problematizada de dentro para fora pelos próprios professores indígenas.
303
8.1.5 Motivações para ser professor
Para se compreenderem as motivações que levam os professores paiter a
problematizarem a escola na aldeia e a projetarem para o seu interior novos saberes e
novos valores, é importante compreender como pensam os Paiter a respeito do ser
professor indígena. Nesse sentido, verifica-se no discurso dos professores a predominância
da coletividade sobre a individualidade no ato de decisão e de escolha das pessoas da
comunidade que atuarão como professores das escolas nas aldeias. Invariavelmente, essa
decisão não é unicamente pessoal, não parte apenas de uma motivação individual. Há
sempre uma indicação da própria comunidade para a ocupação desse papel social na aldeia.
Quadro 88 – Síntese de discursos referentes à tematização motivações para ser professor da categoria de
análise educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1
Eu me tornei professor indígena não por uma vontade individual,
mas por necessidade e por indicação de minha comunidade, em
razão do meu nível de escolaridade.
PP10 Tornei-me professor por necessidade e indicação coletiva de minha
comunidade e em razão do meu nível de escolaridade.
PP4 Tornei-me professor não por uma vontade individual, mas por
indicação da coletividade de minha comunidade.
PP3 Tornei-me professor não por motivações pessoais, mas por
necessidade de minha comunidade.
PP6
A decisão de me tornar professor foi pessoal, mas motivada pela
preocupação com as dificuldades de aprendizagem dos alunos de
minha comunidade, dada a indiferença dos professores não-
indígenas com as particularidades culturais das crianças indígenas.
PP2
Tornei-me professor em razão de minha escolaridade e por escolha
coletiva de minha comunidade, para fins de contribuir com a
adequação da educação escolar de nossos alunos às particularidades
da cultura do nosso povo.
Destaca-se neste ato de indicação coletiva o peso atribuído à escolarização dos
sujeitos. Nesse sentido, atribui-se ao nível de escolaridade da pessoa uma maior
304
importância em detrimento da experiência de vida e do domínio da tradição, o que faz com
que a maioria dos professores paiter sejam jovens, que alegam conhecer pouco da cultura e
das tradições existentes em tempos anteriores ao contato. Nesse caso, a categoria
“escolaridade” presente nos discursos indica uma concepção de professor construída pela
comunidade na qual a experiência escolar não-indígena, pressuposta como domínio dos
conhecimentos ocidentais, supera outras características pessoais que poderiam ganhar em
relevância, caso fosse outra a concepção de professor, tais como a experiência de vida e o
conhecimento das tradições, que quase sempre estão associadas aos membros mais velhos
do povo.
Não deixa de ser relevante observar neste caso que a própria secretaria de educação,
ao contratar os professores indígenas, exige deles que se tenha uma formação escolar
julgada como “compatível” com o cargo, o que exclui do rol dos potenciais professores os
sabedores tradicionais, os velhos, os sábios (curubey), que, embora detentores de muitos
conhecimentos, são julgados inaptos para o ensino escolar na própria aldeia.
Assim, como o critério da experiência de vida em relação à tradição e à cultura não
é determinante para a escolha que a comunidade realiza entre seus membros para a
indicação à função de professor indígena, os jovens professores se veem como mediadores
entre a tradição e a modernidade, recorrendo sempre que possível aos velhos9 e sábios em
busca de referências internas à cultura para atuação em sala de aula.
8.1.6 Papel do professor na aldeia
O papel atribuído pelos professores paiter a si mesmos na aldeia orienta-se pelas
oposições imanência vs transcendência, individualidade vs coletividade, interior vs
exterior e tradição vs modernidade. Nesse sentido, faz-se presente na prática discursiva
dos professores a ideia de que o professor na aldeia é um líder, cuja atuação deve se dar em
prol da coletividade da comunidade, sendo um elo entre o interior e o exterior ao que
caracterizam como cultura paiter, orientando as novas gerações frente às mudanças
estabelecidas nas relações entre tradição e modernidade.
9 Uma vez presente nas práticas discursivas dos sujeitos, a categoria velho passou a ser de interesse para essa pesquisa, contando como ponto de questões das entrevistas, que resultaram nos discursos reunidos no tópico 8.1.12 desta seção.
305
Quadro 89 – Síntese de discursos referentes à tematização papel do professor na aldeia da categoria de
análise educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1
O professor paiter tem a missão de transcender os limites de uma
compreensão circunscrita ao que é imanente à vida cotidiana, a fim
de atingir uma consciência que lhe possibilite reorientar a
escolarização de seu povo com base na visão de mundo própria dos
paiter.
PP10
O professor deve ser um líder a serviço da coletividade,
preocupando-se com a vida de seu povo de forma honesta e
verdadeira.
PP9
O papel do professor na aldeia é o de ser um líder que, com sua
sabedoria e experiências individuais, tem o compromisso de guiar a
coletividade de seu povo entre o certo e o errado, ligando a tradição
aos conhecimentos necessários à vida na contemporaneidade.
PP4
O professor tem o papel de levar para o interior da comunidade
conhecimentos que são do exterior, advindos da sociedade não-
indígena, promovendo na escola da aldeia o encontro entre tradição
e modernidade.
PP3
O papel do professor na aldeia é fortalecer a tradição por meio da
educação e da pesquisa sobre a história de seu povo, em oposição
às mudanças provocadas pela modernidade.
Para fazer jus à liderança atribuída pela comunidade na condução da educação das
novas gerações, os professores consideram ser necessário dominar a história de seu povo e
ao mesmo tempo os conhecimentos da sociedade não-indígena, porém de forma crítica, a
fim de ser possível distinguir o certo do errado. Essa consciência histórica destaca-se nas
práticas discursivas dos sujeitos, ao considerarem que o professor paiter tem o papel
fundamental de extrapolar os limites de uma compreensão circunscrita ao que é imanente à
vida cotidiana, a fim de atingir uma compreensão que transcenda a situação histórica em
que o povo se encontra no mundo. Essa é uma condição indicada como necessária para a
reorientação do futuro do povo, de acordo com uma visão de mundo que lhe é própria.
O papel dos professores na aldeia, compreendido pelos próprios professores em
suas práticas discursivas, associa-se a uma ressignificação do processo de escolarização a
306
que seu povo foi submetido. Assim, considerando as transformações culturais provocadas a
partir do contato, incluindo mudanças na forma de pensar das pessoas, os professores
destacam a missão a eles incumbida de usar o próprio processo de escolarização em favor
da reversão das transformações associadas à colonização. Para tanto, torna-se fundamental
ressignificar a escola, fundando-a sobre outros valores característicos de uma visão de
mundo paiter.
Em relação aos desafios e dificuldades para a atuação crítica e engajada dos
professores em suas comunidades orientados por valores da tradição, destacam-se nos
discursos as referências a tensões provenientes das relações com os valores da
modernidade e do mundo ocidental, que enfatizam a individualidade, em detrimento do
sentido coletivo e comunitário do fazer docente na escola da aldeia. Destaca-se assim nas
práticas discursivas dos sujeitos a consciência de que o fazer do professor na aldeia se
constitui em um estado de tensão entre a tradição paiter e o interesse econômico
característico das relações capitalistas da alienação da mão-de-obra em troca de um salário.
Ao considerarem que o professor na aldeia tem a responsabilidade de promover o
encontro de conhecimentos da tradição e da modernidade, juntando-os no interior da
escola, ao mesmo tempo em que deve fortalecer a tradição por meio da educação escolar,
em oposição às mudanças provocadas pela modernidade, faz-se presente na prática
discursiva dos sujeitos uma concepção de escola na aldeia como espaço de hibridação
cultural, sendo o professor indígena seu principal agente.
Assim, antes de atuarem contra a escola na aldeia, ou contra a modernidade, como
alternativa de retorno a uma forma tradicional de educação existente em um estágio
anterior ao contato e aos efeitos da colonização sobre a organização social e à cultura do
povo, buscam os professores paiter projetarem na contemporaneidade um papel
ressignificado a si mesmos e à escola na aldeia, como forma alternativa de garantir a
existência social e cultural do povo, com identidade própria, mesmo que de forma híbrida,
dentro da modernidade.
8.1.7 O que deve ser ensinado na escola da aldeia
Na busca de uma ressignificação da escola na aldeia, e portanto do que nela deve
ser ensinado, os professores paiter baseiam suas práticas discursivas nas oposições
tradição vs modernidade, particularidade vs generalidade e indígena vs não-indígena.
Assim, ao refletirem sobre os conhecimentos que devem permear o currículo da escola,
307
partem inicialmente de uma valorização do plano interno da cultura do povo Paiter,
situando a escola entre esse plano e outro associado às mudanças e transformações
provenientes do contato com a cultura e à sociedade não-indígena. A escola é concebida
assim como um entre-lugar, ou como um terceiro-espaço, no qual se deve dar ênfase às
particularidades do valor da tradição, da cultura e da identidade do povo Paiter, ao mesmo
tempo em que se assumem os riscos da generalidade enquanto característica associada à
modernidade, à troca de identidade, ao ofuscamento da tradição, por também se pressupor
a necessidade de se incluir na escola da aldeia os conhecimentos não tradicionais,
provenientes da sociedade colonizadora.
Quadro 90 – Síntese de discursos referentes à tematização o que deve ser ensinado na escola da aldeia
da categoria de análise educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1
Antes de tudo, o que a escola na aldeia deve ensinar deve estar
orientado para a continuidade da cultura e da identidade do povo
Paiter, porque a escola na aldeia pode ser um espaço de
fortalecimento ou de substituição de identidades.
PP9
Entre os saberes gerais a serem trabalhados na escola da aldeia
devem estar os relacionados à forma particular de vida que o povo
tinha antes do contato com a sociedade não-indígena,
especialmente quanto à organização social e às relações
tradicionais de parentesco praticadas no interior do território.
PP4
Os conhecimentos a serem ensinados na escola da aldeia devem
estar relacionados tanto à tradição, que permeava a vida do povo no
passado, quanto à modernidade, relacionada ao modo de vida do
povo no presente.
PP3
A escola na aldeia deve ensinar tanto conhecimentos não-indígenas
quanto indígenas, de modo que continue a existir uma
diferenciação cultural entre o interno e o externo à fronteira
identitária do povo.
Vista pelo ângulo do que deve ser ensinado, a escola na aldeia destaca-se nos
discursos dos professores como um espaço ambíguo, que tanto pode fortalecer a identidade
paiter, quanto pode substituí-la por outra, dependendo do conteúdo, e portanto do currículo
308
presente e praticado, e da ordem do que nela é ensinado. Assim, pressupõem-se que,
quanto à particularidade do povo, a escola da aldeia deve ensinar sobre o modo de vida que
existia no interior do território antes do contato com a sociedade externa e não-indígena,
com destaque para os modos próprios de organização social, as relações de parentesco e de
organização clânica. Ao mesmo, tempo, os professores assumem como necessário o ensino
de conhecimentos da modernidade, conhecimentos contemporâneos, sobre os quais os
professores já têm relativo domínio (sendo inclusive um dos critérios de escolha dos
membros da comunidade para exercer a docência na aldeia).
Destaca-se nas práticas discursivas dos professores o contato como uma categoria
que introduz nos discursos uma cisão, entre o passado e o presente, entre uma identidade
cultural existente no passado e uma identidade cultural contemporânea, marcada pelas
relações de poder com a sociedade não-indígena colonizadora.
É justamente a consciência histórica dessa cisão que instiga os professores a
redirecionarem o papel e a função da escola na aldeia, projetando para seu interior saberes
particulares de seu povo que possibilitem uma revisita a um modo particular de vida
distinto do que atualmente se dá no território de seu povo. É por essa via, com ênfase no
conhecimento sobre o modo de vida anteriormente praticado pelo povo, que os professores
intentam fazer com que a educação escolar na aldeia ganhe novos contornos, distinguindo-
se dos atualmente existentes e dos tradicionalmente caracterizadores da escola não-
indígena imposta a seu povo.
Verifica-se também que compõe o conjunto de ideias dos professores referentes ao
que deve ser ensinado na escola da aldeia um apelo (tem que) às memórias de um saber
experienciado ou vivido no passado (artifício do arcaico) e o reconhecimento da
necessidade do domínio de novos conhecimentos necessários nas relações com a sociedade
envolvente no presente, de modo que a escola é assumida, na prática discursiva dos
sujeitos, como portadora de uma função política de afirmação de identidade, a partir de
uma perspectiva contrastiva de identificação e diferenciação cultural, pressupondo-se uma
distinção permanente, embora maleável e flexível, entre o que caracteriza o interior e o
exterior a uma fronteira identitária.
Associa-se a essa perspectiva uma concepção de escola como espaço de hibridação
cultural, no qual a educação escolar na aldeia é projetada para a promoção da
interculturalidade, assumindo-se uma concepção não essencialista de identidade e a
possibilidade da educação escolar na aldeia promover a etnicidade do povo Paiter (para ele
não se esquecer de quem ele é).
309
8.1.8 Relação entre educação escolar na aldeia e identidade cultural
Embora já tenha permeado os discursos dos professores paiter nas sínteses
anteriores, a relação por eles concebida entre escola e identidade cultural é o foco da
presente síntese. Sobre tal relação, os professores organizam seus discursos a partir das
oposições tradição vs modernidade, particularidade vs generalidade e indígena vs não-
indígena. Assim, partindo do pressuposto de que ser paiter significa também ter um
conhecimento diferente daquele existente no mundo moderno, nas dimensões sociais,
filosóficas e espirituais, faz-se presente no discurso dos professores a ideia de que
conhecimento paiter e identidade cultural paiter mantêm estreitas relações, de tal forma
que a escola é vista como um espaço que pode reforçar ou alterar a identidade cultural do
povo, dependendo dos conhecimentos que se fazem presentes em seu interior.
Quadro 91 – Síntese de discursos referentes à tematização relação entre educação escolar na aldeia e
identidade cultural da categoria de análise interculturalidade
SUJEITO DISCURSO
PP1
Conhecimento paiter e identidade cultural paiter estão intimamente
relacionados, de modo que o conhecimento da matemática paiter
em suas dimensões sociais, filosóficas e espirituais é importante
para que o povo paiter se mantenha na particularidade de sua
cultura, mesmo tendo que adquirir os conhecimentos necessários
para as relações com o mundo moderno.
PP1
A educação escolar oferecida na aldeia, com a participação de
professores indígenas, contribui para a manutenção da identidade
cultural particular do povo, distintamente de uma educação escolar
generalista não-indígena, oferecida fora da comunidade, que
contribui para a alteração das concepções de mundo e de futuro das
novas gerações.
PP9
A educação escolar, se trabalhar simultaneamente com
conhecimentos indígenas e não-indígenas, valorizando os
primeiros, não interfere na identidade cultural do povo.
PP4
A educação escolar na aldeia, quando desenvolvida de forma
intercultural entre a tradição e a modernidade, com ênfase na
cultura do próprio povo, contribui para a manutenção da identidade
310
cultural das novas gerações.
Percebe-se nas práticas discursivas dos professores paiter que a relação entre escola
na aldeia e identidade cultural do povo é por eles concebida de forma tensionada, porque
consideram que há sempre uma pressão da cultura da sociedade colonizadora sobre a
cultura paiter, na coexistência dos modos distintos de pensamento que caracterizam cada
uma delas como unidades discretas, resultando em efeitos sobre a constituição da
identidade cultural do povo. É em razão desse potencial efeito que os professores destacam
a importância da educação escolar na aldeia estar sob responsabilidade e controle dos
próprios professores paiter, como garantia de que a escola abranja tanto os conhecimentos
indígenas quanto os não-indígenas.
Ao destacarem em suas práticas discursivas a oposição tradição vs modernidade,
percebe-se que os professores não intentam negar a presença de conhecimentos não-
indígenas na escola da aldeia, mas sim que problematizam o predomínio de conhecimentos
não-indígenas na educação escolar das novas gerações, cujo efeito imediato é a mudança
de visão de mundo, de valores e, consequentemente de identidade, na direção de uma
homogeneização com as demais identidades que permeiam a sociedade não-indígena.
Em síntese, verifica-se que a criticidade dos professores paiter indica o domínio de
uma compreensão teoricamente elaborada a respeito das potencialidades da escola dentro
da aldeia. Ela tanto pode levar a caminhos que distanciam os sujeitos de quem ele é,
ofuscando suas origens, levando-o a esquecer de quem ele era, quanto pode fortalecer o
sujeito, mantendo-o vinculado a quem ele é dentro de sua cultura. Trata-se evidentemente
de uma questão de identidade cultural e de identificação cultural. Nesse sentido, para os
professores paiter, a escola é um espaço de transformação identitária, mas também pode
ser um espaço de fortalecimento étnico desde uma perspectiva intercultural.
8.1.9 Concepções de etnomatemática
Como elemento importante para compreendermos a elaboração teórica que os
professores manifestam em suas práticas discursivas, vale destacar, como foi dito
anteriormente, que todos são acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Básica
Intercultural da UNIR, onde entraram em contato com referências bibliográficas
relacionadas à etnomatemática, tais como D’Ambrosio (2002), Gerdes (2002), Ferreira
(2002) e Vergani (2007). Embora não tenham encontrado uma definição única de
311
etnomatemática em tais referenciais, pelos motivos já expostos na seção 5 desta tese,
verifica-se por parte dos professores paiter tentativas de compreensão teórica de
etnomatemática, relacionando-a tanto às consequências de um ensino não diferenciado de
matemática na aldeia, quanto ao potencial de fortalecimento da identidade cultural paiter
por distinção em relação aos modos de pensar da sociedade não-indígena.
Quadro 92 – Síntese de discursos referentes à tematização concepções de etnomatemática da categoria
de análise etnomatemática
SUJEITO DISCURSO
PP1
Etnomatemática é um conhecimento matemático que os povos em
geral têm, sendo um conhecimento matemático diferente e
particular de cada povo, de acordo com sua cultura e suas
necessidades cotidianas.
PP1
Etnomatemática é o conjunto de conhecimentos matemáticos
existentes em todo o mundo, sendo um conhecimento diferente em
cada cultura, de acordo com as tradições e o cotidiano de cada
povo, etnia ou sociedade.
PP10
Etnomatemática é algo inerente à vida humana, sendo a maneira de
cada povo contar, medir e realizar cálculos relacionados a suas
atividades cotidianas.
PP9
Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em
geral no interior da cultura de todos os povos, sendo diferente e
particular em cada povo ou grupo, a exemplo da matemática do
povo Paiter que ainda não está reconhecida pela sociedade não-
indígena.
PP4
Etnomatemática é um conhecimento matemático presente em todos
os grupos ou etnias em geral, sendo particular e diferente em cada
caso, a exemplo da matemática dos povos indígenas que é diferente
da matemática do europeu.
PP3
Etnomatemática é a matemática de povos ou etnias em geral e está
relacionada a formas particulares de contar, medir e conhecer de
cada povo ou etnia.
PP7 Etnomatemática são conhecimentos matemáticos tradicionais e
312
particulares de um povo referentes a formas de contar e medir,
diferentes dos conhecimentos ocidentais.
PP6
Etnomatemática é a matemática que está dentro da cultura
particular de um povo, sendo um conjunto de conhecimentos
diferentes dos conhecimentos gerais não-indígenas.
PP5
Etnomatemática é um conhecimento, nem sempre identificado, que
está no interior da cultura de cada povo ou grupo em geral, relativo
a formas particulares de pensar, ver, calcular, quantificar e medir.
PP2
Etnomatemática é um conhecimento matemático que existe em
geral no interior da cultura particular de cada povo, relacionado ao
uso em fazeres cotidianos como construir, confeccionar, medir e
enumerar, sendo diferente entre o povo Paiter e a sociedade não-
indígena.
Percebe-se que os professores paiter concebem etnomatemática como um
conhecimento matemático particular de um povo, organizando suas práticas discursivas a
partir da oposição particularidade vs generalidade. Assim, a etnomatemática é concebida
como a matemática presente no cotidiano e no interior da cultura de cada povo, sendo
diferente, portanto, entre o povo Paiter e a sociedade não-indígena. A diferença, nesse
caso, é enfatizada não para criar uma escala de valor funcional, no sentido de se tratar de
um conhecimento mais válido do que outro, um verdadeiro outro falso, um certo outro
errado, mas antes para superar uma situação de invisibilidade em busca de um
reconhecimento nas atuais relações estabelecidas entre sociedades e culturas distintas.
A ênfase na configuração discreta de um saber matemático próprio do povo é assim
assumida pelos professores paiter como característica imanente a um modo particular de
existência, não reconhecido, no contexto das relações interculturais contemporâneas, pela
sociedade colonizadora não-indígena. A particularidade do saber matemático paiter é
justificada assim a partir de práticas cotidianas de pensar, ver, calcular, quantificar e medir,
que caracterizam a singularidade da cultura do povo, frente ao restante dos povos e etnias
existentes no mundo, que possuem outros conhecimentos matemáticos inerentes à suas
próprias etnomatemáticas.
Verifica-se nas representações discursivas construídas pelos professores uma
distinção entre, de um lado, saberes e fazeres matemáticos cotidianos, pertencentes (no
sentido de estar dentro) à cultura paiter, e, de outro lado, a matemática escolar, distinta e
313
diferente dos saberes tradicionais. A dicotomização destes saberes passa a sustentar então
uma crítica à atual educação escolar oferecida na aldeia, porque nela não se vê
representada a matemática tradicional. A crítica se estende, todavia, aos próprios saberes e
fazeres utilizados atualmente no cotidiano das comunidades por crianças, jovens e adultos,
apontados como distintos daqueles tradicionalmente praticados antes do conhecimento da
matemática europeia. Tal crítica se dá, por exemplo, na seguinte fala de PP1, ao refletir
sobre a educação das novas gerações de paiter:
No meu ponto de vista... eu faço até uma análise crítica sobre isso. O que eles podiam estar aprendendo de acordo com sua faixa etária em relação ao conhecimento paiter suruí, nada é ensinado a eles. Quer dizer, hoje temos uma forma de vida bastante diferente para termos oportunidade ou ocasião de conhecer um conhecimento tradicional paiter. A exemplo, a etnomatemática. Nem todas as crianças, nem todos os jovens, até mesmo as pessoas adultas... elas não usam a etnomatemática no seu dia-a-dia. Estão mais habituados hoje... os adultos estão mais habituados hoje na questão da matemática não indígena, principalmente os jovens e as crianças. Se os mais velhos e os adultos não estão praticando a matemática paiter, muito menos as crianças e os jovens, porque hoje eles estão aí nascendo e crescendo, e daqui a pouco entra na sala de aula, e na sala de aula tem apenas a matemática europeia. Então não tem uma matemática na qual eles teriam a oportunidade de conhecer a etnomatemática, pelo menos na sala de aula, se no dia-a-dia não tem essa oportunidade. Então uma visão crítica que eu tenho em relação a isso é que não temos oportunidade, ocasião de estar praticando esses conhecimentos tradicionais no nosso dia-a-dia, nas nossas atividades cotidianas (PP1 – Aldeia Gapgir).
Ao conceberem etnomatemática como conhecimentos matemáticos específicos de
cada cultura, em particular da cultura do povo Paiter, faz-se presente nos discursos dos
sujeitos o esforço e a intenção de promoção de uma autoafirmação identitária (por
distinção), destacando que a matemática da sociedade não-indígena é diferente da
matemática de seu povo. Assim, a categoria semântica “diferença” se faz presente nos
discursos a partir da oposição particularidade vs generalidade, assumindo-se que, por um
lado, etnomatemática é conhecimento matemático que todos os grupos e etnias em geral
possuem, mas que, por outro lado, etnomatemática é a matemática particular de cada grupo
ou etnia. Nota-se uma ênfase nas práticas discursivas em relação à diferença existente entre
a matemática do europeu e a matemática dos povos indígenas, opondo-se com tal ênfase a
uma perspectiva que considera a matemática como conhecimento exclusivo de
determinadas sociedades ou culturas, particularmente a não-indígena.
314
Em síntese, podemos perceber nos discursos dos professores paiter que a concepção
de etnomatemática por eles enunciada busca estabelecer diferenças entre os conhecimentos
particulares de seu povo e os conhecimentos ocidentais, associando-se tais diferenças (ou
diferenciações) a um movimento de autoafirmação identitária (por distinção), que vai
refletir na problematização do ensino de matemática na escola da aldeia, conforme
abordado no próximo tópico dessa seção.
8.1.10 Como deve ser o ensino de matemática na escola da aldeia
Ao problematizarem o atual ensino de matemática na aldeia, os professores paiter
projetam para a educação escolar a inclusão de saberes matemáticos da tradição, que são
distintos dos saberes não-indígenas ainda predominantes na escola. Reconhecem todavia a
necessidade de se ensinar também os conhecimentos matemáticos externos à cultura do
povo, coexistindo assim tradição e modernidade na escola da aldeia. Observa-se, também
nesse caso, a oposição particularidade vs generalidade como eixo central sobre o qual se
elaboram as práticas discursivas dos professores paiter, ao enfatizarem a distinção entre
saberes paiter e outros saberes a serem tratados pela educação escolar atualmente existente
na aldeia.
Quadro 93 – Síntese de discursos referentes à tematização como deve ser o ensino de matemática na
escola da aldeia da categoria de análise etnomatemática
SUJEITO DISCURSO
PP10
O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar tanto
os conhecimentos matemáticos não-indígenas em geral quanto os
conhecimentos matemáticos da cultura e da tradição do povo em
particular, sendo necessário para isso a participação dos mais
velhos.
PP9
O ensino de matemática na escola da comunidade deve considerar
os conhecimentos matemáticos particulares do povo, sendo
necessária para isso a realização de pesquisas sobre conhecimentos
que ainda estão isolados na cultura e na tradição do povo.
PP4
O ensino de matemática na escola da aldeia deve considerar em
particular a tradição, a língua e a realidade dos estudantes
indígenas, que vivem em uma cultura específica, distinta daquela
315
da sociedade não-indígena.
Os símbolos principais desse encontro de saberes na contemporaneidade passam a
ser, de um lado, os velhos, representantes maiores da cultura e da tradição, e, de outro lado,
a escola, até então caracterizada como um espaço estranho à identidade indígena, porque
agente de inculcação de valores, comportamentos e conhecimentos ocidentais no interior
da sociedade paiter. Verifica-se que a projeção dos distintos saberes matemáticos para o
interior da escola na aldeia é permeada de tensões relacionadas à necessidade de distinguir
o que é conhecimento indígena, tradição, e o que não é. Tais tensões são características de
espaços interculturais de existência e de educação, nos quais a mudança e a resistência
estabelecem uma relação de forças entre unidades culturais inicialmente discretas que
tendem a se hibridizar, dando origem a novas unidades discretas, porém híbridas, novas
identidades e novas realidades socioculturais.
Assim, verifica-se no discurso dos professores paiter atualmente a intensão
projetada para o trabalho com os saberes e fazeres matemáticos produzidos por seu povo
ao longo de sua história, assim como se observa o esboçar de uma crítica sobre os moldes
da atual educação escolar existente nas aldeias, em particular sobre a natureza, o tipo e a
forma que o ensino de matemática vem ocorrendo nas turmas escolares de crianças e
jovens das comunidades de seu território.
A compreensão das motivações que impulsionaram professores paiter a
problematizarem o ensino de matemática nas escolas das aldeias permeia a análise do
percurso de formação escolar de cada um, em especial a atual fase que se desenvolve no
curso de formação de professores indígenas na universidade. Diferentes trajetórias de
formação escolar foram percorridas pelos participantes da pesquisa. Alguns cursaram o
Ensino Fundamental na aldeia e o Ensino Médio no âmbito do Projeto Açaí. Outros foram
alfabetizados na aldeia, mas concluíram o Ensino Fundamental e o Ensino Médio em
escolas rurais ou na cidade, em cursos propedêuticos ou em escolas agrotécnicas.
Embora a idade média dos participantes seja de 32 anos, o que significa que a
formação escolar deles já se deu sob a existência de uma fase contemporânea da educação
escolar indígena no país, com um arcabouço jurídico pós-Constituição de 1988, as
experiências vivenciadas na escola por cada um foram marcadas por desafios, dificuldades
e estranhamentos, que permearam a inexistência de oferta de educação escolar diferenciada
nas aldeias e as limitações de comunicação e entendimento encontrados na escola
monolíngue em Língua Portuguesa.
316
A trajetória de formação escolar do professor PP2, por exemplo, é ilustrativa dos
percalços e das dificuldades enfrentadas para se concluir a educação básica:
Foi assim, antes de começar tudo isso, eu estudei na escola rural. Comecei muito tarde também, comecei a estudar a primeira série do ensino fundamental, naquela época era primeira série ainda, com 10 anos de idade. Então, eu tinha perdido muito tempo. Na época meu pai era cacique, liderança geral da comunidade, então na época ele não parava em casa, e onde ele ia eu ia junto com ele, até que em um tempo a gente parou nessa aldeia para poder dar tempo para estudar. Então, comecei a estudar na escola dos colonos, e a partir daí, eu comecei a seguir um pouco de estudo. Terminei aqui, depois fui estudar na escola Celso Ferreira da Cunha, lá em Riozinho, que é distrito de Cacoal. Lá terminei o Ensino Fundamental, a oitava série na época, e depois cursei a primeira série do ensino médio lá, e assim eu terminei o estudo lá, e então parei, fiquei um bom tempo parado. Quando foi em 2004, comecei a estudar me deslocando daqui para a cidade, de moto, para tentar terminar o Ensino Médio. Então eu cursei o ensino regular, terminei o segundo ano do Ensino Médio, terminando no ano de 2004. Fiquei parado de novo e voltei a estudar em 2007, para tentar terminar o terceiro ano do Ensino Médio, na escola seriada, na escola Onorina Lucas de Brito. Então, terminei em 2007 e assim eu consegui estudar. Foi a maior dificuldade para mim estudar, porque comecei a estudar em uma escola que não era da comunidade, que não era bilíngue, de uma cultura diferente, onde eu tive muita dificuldade de aprender na língua portuguesa (PP2 – Aldeia Lobó).
Uma característica comum dos diferentes percursos formativos pelos quais
passaram os professores, marcados por uma educação não diferenciada, e não voltada para
as especificidades de suas realidades culturais e linguísticas, foi uma ausência de
discussões a respeito da existência de saberes e fazeres matemáticos no cotidiano das
aldeias, relacionados às formas próprias de resolver problemas surgidos ao longo da
existência do povo Paiter, desde tempos anteriores ao contato.
Assim, ao ingressarem na universidade e darem início aos estudos de referenciais
teóricos relacionados à Etnomatemática, ocorreu uma tomada de consciência de que
formas próprias de matematizar o mundo podem existir em diferentes culturas e realidades
sociais. Ao mesmo tempo, de forma crítica, passaram a se dar conta de que a matemática
ensinada na escola na aldeia não está contemplando os saberes e fazeres matemáticos
próprios da cultura paiter. Uma primeira reação surgiu então entre os professores
indígenas, que passaram a ter elementos teóricos para problematizar o ensino de
matemática atualmente em andamento nas escolas das aldeias.
317
8.1.11 Importância de se trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola
Ao problematizarem o ensino de matemática na escola da aldeia, os professores
paiter projetam para a escola a inclusão de saberes matemáticos próprios de seu povo,
como forma de contraposição a uma pressão cultural exercida pela predominância de
saberes não-indígenas na educação das novas gerações. Percebe-se assim, no discurso dos
professores, as oposições particularidade vs generalidade e indígena vs não-indígena
como representativas das tensões e contradições de uma escola atual que não considera em
seu interior os saberes que são particulares do povo a qual ela deve servir.
Quadro 94 – Síntese de discursos referentes à tematização importância de se trabalhar com os saberes
matemáticos paiter na escola da categoria de análise etnomatemática
SUJEITO DISCURSO
PP1
Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da
comunidade é importante para fazer frente à pressão exercida pelo
ensino da matemática europeia sobre a identidade cultural do povo.
PP4
Ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da
comunidade é importante para que as novas gerações do povo
Paiter não se esqueçam de como esses saberes e fazeres particulares
do povo eram tradicionalmente usados.
PP4
Os conhecimentos matemáticos paiter devem ser preservados e
ensinados às novas gerações para fazer frente às mudanças
culturais, às alterações de identidades e à dominação cultural que o
ensino de matemática não-indígena na escola representa.
PP7
O ensino de saberes matemáticos paiter na escola, como saberes
distintos da matemática não-indígena, é importante para contribuir
com a manutenção da cultura e da identidade cultural do povo.
PP6
Trabalhar com os saberes matemáticos paiter na escola da aldeia é
importante para superar a inexperiência das novas gerações em
relação aos conhecimentos práticos e teóricos da tradição do povo,
sendo fundamental para isso a presença dos mais velhos e
experientes na sala de aula.
PP2 Ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter em sala de aula é
318
importante para que os alunos conheçam e valorizem sua própria
cultura em particular e com isso reafirmem sua identidade cultural
e superem os preconceitos advindos da relação com a sociedade
não-indígena em geral.
Está presente no discurso dos professores uma ênfase ao fato de que atualmente a
matemática ensinada na escola da aldeia é proveniente de um contexto geral externo à
cultura de seu povo, que não considera as particularidades do conhecimento matemático
interno à tradição de sua cultura. Desse modo, os professores entendem que a escola na
aldeia, ao não ensinar os saberes e fazeres matemáticos da tradição, exerce uma pressão
sobre a identidade cultural de seu povo.
Para fazer frente à pressão resultante da reprodução de um saber não-paiter na
escola da aldeia, os professores destacam a importância e a necessidade de se ensinar os
conhecimentos matemáticos de seu povo na escola, como forma de revitalizar e valorizar
esses conhecimentos, para que eles não se percam e com isso haja uma alteração na
identidade cultural de seu povo. Estabelece-se assim, nas práticas discursivas dos sujeitos,
uma forte relação entre ser e saber, entre conhecimentos da tradição e identidade cultural.
Desse modo, eles destacam a importância de se ensinar saberes matemáticos da tradição na
escola, na atualidade, por perceberem que a escola ainda ensina apenas a matemática
“europeia”.
As expressões “matemática europeia” ou “matemática não-indígena” presentes nas
falas dos sujeitos indicam um conhecimento de discussões de cunho acadêmico,
proveniente possivelmente do curso de formação de professores do qual participam na
universidade, e sobre o que temos direta ou indiretamente uma participação. Desse modo, é
importante destacar que, como as autoanálises das perguntas realizadas nas entrevistas
mostram, há um fazer persuasivo do próprio pesquisador presente no conteúdo enunciado
nas práticas discursivas dos sujeitos, caracterizando-se assim uma certa interação entre os
discursos dos sujeitos e nossas próprias expectativas e pressupostos como pesquisador.
Observa-se que a noção de povo se faz presente no discurso dos professores como
uma categoria semântica fundamental na oposição com o que não caracteriza a tradição ou
a cultura particular dos Paiter. A distinção Nós Mesmos vs Os Outros opera assim como
orientadora da compreensão que os professores fazem da escola, do ensino de saberes e
fazeres matemáticos e das relações em geral estabelecidas entre o que é interno e o que é
externo a uma fronteira cultural e identitária.
319
Em suma, verifica-se que a ausência dos saberes matemáticos da tradição na escola
representa para os professores paiter um risco de perda de identidade, de um afastamento
da tradição, resultante de uma pressão representada pelo atual currículo escolar (programa
do Estado). Assim, a importância de se ensinar saberes matemáticos paiter na escola
relaciona-se com a possibilidade de resgate e revitalização de um modo específico de
pensar, construído historicamente antes da presença da escola na aldeia, porém por ela
desconsiderado e negado na atualidade.
A projeção que os professores fazem da introdução dos saberes matemáticos da
tradição na escola motiva-se não por uma função utilitária que venham a ter na
modernidade em comparação com o uso que se faz da matemática não-indígena, mas antes
como forma de distinção e de promoção da etnicidade do povo. Isto é, os conhecimentos
matemáticos da tradição não se autojustificam, de modo que não são importantes por si
sós, mas apenas na medida em que são indicados como necessários à manutenção da
identidade cultural do povo Paiter.
Assim, partindo da representação da ausência de saberes matemáticos paiter na
escola, mas também da relativa ausência destes saberes no cotidiano das próprias
comunidades, dadas as transformações pelas quais as instituições tradicionais paiter
passaram após o contato com a sociedade envolvente, os professores paiter, instigados
possivelmente pelas discussões promovidas pelo curso na universidade, e pela participação
em projetos de pesquisa e de extensão, deram início a ações voltadas à identificação e
registro escrito de saberes e fazeres matemáticos do povo (apresentados parcialmente na
segunda seção dessa tese).
Para isso, tomaram por fontes de informação as memórias relatadas pelos membros
mais velhos de suas comunidades, considerados estes como livros orais dos Paiter. E, ao
discorrerem sobre as motivações e a importância de se pesquisar os saberes e fazeres
matemáticos da tradição, os professores paiter indicam a reprodução e valorização destes
saberes através da educação, em particular através da educação escolar:
Até o momento, a gente está descobrindo números até dez, e as pinturas, que dentro das pinturas tem formas geométricas, tipo quadrado, retângulo, triângulo. Na flecha também... na flecha que os mais velhos confeccionam, tem as formas geométricas também parecido com isso aí. Então, a etnomatemática... isso faz pensar na etnomatemática da nossa cultura. A partir dali, a gente tenta buscar novos conhecimentos dentro da cultura, e a partir dessa descoberta, a gente tenta transmitir esse conhecimento na sala de aula. Isso fez com que eu pensasse com meu TCC... buscar esses conhecimentos, antes que eu pudesse passar isso para a comunidade (PP2 – Aldeia Lobó).
320
Uma das referências que a gente tem no ensino da etnomatemática, de repassar esses conhecimentos hoje, são os mais velhos. Então, eles tem uma grande importância para transmitir esse saber, porque se não fosse por meio dos velhos transmitir esses conhecimentos, o único conhecimento matemático que a gente tem são nas escolas, e as escolas tem a matemática não indígena, que vem pressionando cada vez mais nossos alunos, cada vez mais o povo Paiter, que acaba diminuindo a força do conhecimento etnomatemático paiter. Então, quer dizer, os nossos mais velhos hoje são uma escola para nós, hoje são os livros orais para a gente (PP1 – Aldeia Gapgir). Nessa perspectiva de registrar, de coleta de dados, sistematizar e ensinar em sala de aula os dados coletados e sistematizados, que entramos com esse projeto sobre saberes e fazeres etnomatemáticos paiter ... Então, o projeto é um dos meios que vai ser... vai ser um mecanismo que pode contribuir, e que vai contribuir para que esses conhecimentos se perpetuem ao longo do tempo, seja na comunidade através da escola, seja em livros didáticos, e também no meio acadêmico dentro da universidade (PP1 – Aldeia Gapgir). Hoje, os sábios, os adultos, os curubey que a gente fala, só eles estão sabendo de forma certa, da contagem, da medida, da sua história. Por isso que essa importância tem que ser registrada, tem que ser publicada, porque a escola tem que ter esse referencial dentro dela (PP3 – Aldeia Amaral).
A educação escolar é apontada então pelos professores indígenas como instância
privilegiada para a promoção de uma reabilitação da cultura, incluindo-se a reprodução dos
saberes e fazeres matemáticos produzidos pelo povo Paiter ao longo de sua história.
Evidencia-se nos discursos a busca de uma diferenciação emblemática entre
conhecimentos paiter e conhecimentos não-paiter, de modo que a inclusão ou exclusão de
saberes e fazeres matemáticos tradicionais na escola são vinculadas a processos de
afirmação ou de negação de identidade cultural, conforme ilustram as falas de PP1 e PP2:
Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de suma importância, porque o conhecimento matemático que conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje, trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional, conhecimento milenar que foi passado de geração em geração. Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma matemática não indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior
321
é até mesmo de questão de identidade cultural paiter (PP1 – Aldeia Gapgir). No meu ponto de vista, como professor indígena dentro da minha comunidade, [a etnomatemática em sala de aula] é um grande benefício para os meus alunos, até tanto para mim quanto para meus alunos também, porque a partir do momento que eu comecei a me envolver com a etnomatemática na universidade, isso fez eu adquirir um grande conhecimento sobre a minha cultura mesmo. Então, isso me fez sentir que isso tem um grande benefício para mim, e pode trazer também para os meus alunos, e até dentro da cultura, da comunidade também. Isso me fez pensar em participar desse projeto, para poder transmitir isso para os meus alunos, para eles terem conhecimento da própria cultura, porque se a pessoa não tem conhecimento da própria cultura, ele não dá valor a sua cultura. Então, a partir do momento que ele vai pegar sobre o conhecimento da etnomatemática da própria cultura, então ele vai saber dar valor sobre o que está sendo feito dentro da comunidade, como arco, a confecção de anéis, a confecção de balaios. Então, a partir desse momento, ele vai entender que aquilo tem um significado muito grande para eles, não só o cálculo da cultura não indígena, mas também tem a sua própria cultura, os seus cálculos, os modos do dia-a-dia da sua cultura. Então isso vai fazer com que ele goste daquilo que está fazendo, e não tenha vergonha daquilo que faz. Então, eu, para trabalhar com meus alunos, primeiramente eu vejo assim mais a minha cultura, para depois eu repassar esse valor para eles em forma da etnomatemática, ou seja, de outra forma que eles gostem da própria cultura. Porque se eles não conhecerem a própria cultura, gostarem da própria cultura, como é que vão dar valor à própria cultura? Então, para mim, eu defendo essa metodologia por eu entender que tem uma grande importância para mim e para meus alunos e para minha comunidade (PP2 – Aldeia Lobó).
Verifica-se em suma que a projeção da inserção de saberes e fazeres matemáticos
tradicionais na escola da aldeia pelos próprios professores indígenas assume uma função
política de afirmação de identidade, a partir de uma perspectiva contrastiva de
identificação e diferenciação cultural, voltada para uma reabilitação da cultura, não no
sentido de um retorno a um estágio pretérito da história do grupo étnico circunscrita em
uma apologia do arcaico, mas sim como símbolo de diferenciação atual entre o interno e o
externo a uma fronteira identitária fluida e performática. Nesse sentido, projetam-se os
saberes e fazeres matemáticos na educação escolar na aldeia como critérios de
identificação étnica, superando o caráter utilitário atribuído usualmente à matemática
escolar e realçando no aspecto teórico da etnomatemática sua relação com a etnicidade.
322
8.1.12 Importância dos velhos para o ensino de saberes da tradição
A tratarem da importância dos velhos em relação à educação, os professores paiter
baseiam seus discursos nas oposições tradição vs escolarização, tradição vs modernidade
e experiência vs inexperiência. Nesse sentido, os velhos são apresentados como “livros
orais”, isto é, como detentores dos saberes e fazeres do povo, construídos desde tempos
imemoriais e, portanto, anteriores ao contato recente com a sociedade não-indígena.
Assim, os velhos são indicados nas práticas discursivas dos professores como referências
fundamentais para a continuidade da tradição, visto que na escola instalada na aldeia
predominam conhecimentos e valores não-indígenas.
Quadro 95 – Síntese de discursos referentes à tematização importância dos velhos para o ensino de
saberes da tradição da categoria de análise educação escolar indígena
SUJEITO DISCURSO
PP1
Os velhos são importantes para garantir a manutenção dos saberes
da tradição, frente à pressão exercida sobre a identidade cultural do
povo pelo processo de escolarização imposta pela colonização.
PP1
Os velhos são importantes para a manutenção dos saberes da
tradição, mas participam pouco da educação escolar na aldeia
porque a escola, enquanto espaço de formalidade, dominação,
restrição e homogeneização característico da modernidade é
diferente da tradição paiter, segundo a qual as pessoas são livres e
autônomas para aprender por observação dos mais velhos no
cotidiano informal da aldeia.
PP10
Os velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia
acompanhando e cobrando dos professores o ensino de saberes da
tradição indígena e de saberes da sociedade não-indígena, de modo
a manter a cultura e a identidade do povo frente às transformações
advindas do contato.
PP9
Os velhos são detentores da sabedoria, dos conhecimentos
tradicionais e da experiência, e por isso são fundamentais na
educação escolar das novas gerações inexperientes quanto ao modo
de vida particular praticado pelo povo Paiter em tempos passados.
323
PP4
O papel dos velhos no ensino de saberes da tradição é o de informar
aos professores sobre os conhecimentos construídos nas
experiências vivenciadas em tempos passados, a fim de que os
professores possam introduzir esses conhecimentos no processo de
escolarização atualmente existente na comunidade.
PP7
Os mais velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia
informando ao professor os conhecimentos da tradição e da história
particular de seu povo.
PP6
Os velhos, como detentores de conhecimentos da tradição, são
importantes para a educação escolar das novas gerações, mas para
que participem da escola na aldeia é necessário recompensá-los
financeiramente, pois novos valores advindos da modernidade
passaram a ser assumidos nas relações sociais após o contato.
PP5
Os velhos são importantes porque tem a experiência em relação aos
saberes da tradição no interior da cultura, contribuindo assim para a
formação dos professores voltada para a mediação entre tradição e
modernidade no âmbito da educação escolar indígena.
Verifica-se nos discursos dos professores uma dicotomização entre conhecimentos
paiter e conhecimentos não-paiter, a partir da qual desenvolvem-se as ideias sobre relações
de poder entre diferentes conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento paiter possui
força, mas a escola também, causando assim uma pressão sobre o povo. Essa pressão é
compensada pela presença dos velhos na reprodução da tradição, residindo nisto a
importância deles para a transmissão de saberes e fazeres, incluindo-se, em particular, os
saberes e fazeres matemáticos.
Os velhos são concebidos pelos professores como representantes da tradição, da
sabedoria de seu povo, e por isso são importantes para garantir a reprodução de saberes da
tradição, para fazer frente à pressão que o processo de escolarização impõe sobre a
identidade cultural do povo. A criticidade presente nas práticas discursivas dos professores
possibilitam-lhes perceber forças transformadoras impostas pela colonização, representada
por exemplo pelo ensino de matemática não-indígena na escola, frente às quais percebem
também a resistência da tradição, cuja maior referência são os velhos, considerados
depositários dos saberes particulares do povo.
324
Reconhecendo que a forma de educar dos mais velhos é distinta da forma de educar
da escola introduzida na aldeia, os professores refletem criticamente sobre a quase
ausência dos velhos na educação escolar das novas gerações. Assim, por um lado, opondo
tradição e modernidade, velhos e escola, a educação tradicional é caracterizada pela
liberdade que as pessoas têm de aprenderem em situações informais, de maneira autônoma,
livre e sem rotinas, a partir da observação dos mais velhos no cotidiano.
Por outro lado, a modernidade é caracterizada pela formalidade, pela dominação da
escola sobre as pessoas, com o estabelecimento de rotinas, de restrições quanto ao local e
aos saberes que devem ser aprendidos, resultando em um processo de homogeneização, ao
qual todos são submetidos. Tais diferenças entre a tradição e a modernidade seriam um dos
motivos pelos quais os velhos participam pouco do processo de escolarização das novas
gerações na aldeia, gerando um constrangimento ao serem convidados para ensinar os
saberes da tradição na escola, porque este espaço é muito distinto (artificial) daquele
característico do cotidiano (natural) da aldeia.
O interesse econômico surgido entre os velhos após o contato, como um valor
proveniente da sociedade capitalista, também é indicado nos discursos como um fator
importante para o real envolvimento dos velhos na educação escolar na aldeia. Quanto a
isso, os professores consideram que a ausência de uma remuneração ao trabalho dos
velhos tem se constituído em desestímulo à participação deles na reprodução dos saberes e
fazeres tradicionais na educação escolar existente na comunidade.
Verifica-se assim uma inversão de valores nas relações sociais tradicionalmente
existentes na comunidade, visto que, antes do contato, os jovens eram educados de uma
forma social e coletivamente organizada, e na atualidade, após as mudanças de valores
impostas pela modernidade, produziram-se ressignificações dos papéis sociais,
submetendo-se os velhos à lógica do trabalho e da venda de sua mão-de-obra, entendida
esta como tudo o que for relativo à ação de educar as novas gerações no espaço da sala de
aula da escola instalada na comunidade.
Ao considerarem que os velhos têm um papel fundamental para a educação das
novas gerações em relação ao modo de vida do povo, emerge dos discursos dos professores
a alusão à distância que a educação escolar mantém em relação à tradição. Assim, a
presença dos velhos na educação escolar, como exemplos de vida e de tradição, é
concebida como um complemento na atual educação existente entre os Paiter, e o papel
dos próprios professores, jovens e inexperiente que se consideram, torna-se o de serem
mediadores entre a experiência dos velhos e a sala de aula.
325
Desse modo, permeia a prática discursiva dos sujeitos a ideia de que ao sabedor
indígena compete informar ao professor da comunidade a respeito dos conhecimentos da
tradição, a fim de que o professor introduza esses conhecimentos no processo de
escolarização existente atualmente na aldeia. Assume-se, de certo modo, nessa relação,
uma incompatibilidade entre a tradição, representada pelos velhos, e a escolarização,
representada pela sala de aula, ao se destacar que tentativas empíricas de levar os velhos
para ensinarem diretamente na escola não deram certo.
Em suma, verifica-se nos discursos a ideia de que ao professor na aldeia compete
ser um intermediário entre os velhos e a sala de aula. Assim, ao refletirem sobre o papel
dos velhos na educação escolar indígena, considera-se que isso não se dá de forma direta
com a presença dos sabedores em sala de aula na escola da aldeia, mas através da
contribuição indireta na formação dos professores a partir de referenciais internos da
cultura do povo. Assim, cabe aos professores indígenas e não aos velhos serem os atuais
mediadores diretos entre as novas gerações e a tradição, sendo todavia os velhos
importantes referências internas no que diz respeito à cultura do povo existente em um
estágio anterior ao contato com a sociedade envolvente.
8.1.13 Estado da cultura paiter em cem anos
Ao refletirem sobre o futuro da cultura do povo Paiter, os professores organizam
suas práticas discursivas a partir das oposições resistência vs mudança e tradição vs
modernidade. Nesse sentido, consideram que as relações existentes com a sociedade
envolvente a partir do processo recente de colonização continuarão a provocar
inevitavelmente mudanças no modo de produção material do povo e no estilo de vida
existente nas aldeias, a partir da assimilação de princípios capitalistas e do uso de novas
tecnologias, pondo em risco a sobrevivência de uma identidade cultural que distinga o
povo das demais sociedades e povos no mundo. Todavia, apesar de uma consciência de
que a situação histórica em que se encontra o povo acarretará mudanças na cultura,
empurrando-a para além de uma moldura fixa e estática, os professores consideram a
possibilidade de resistência, para a qual pode contribuir a educação escolar desde que de
uma perspectiva ressignificada.
326
Quadro 96 – Síntese de discursos referentes à tematização estado da cultura paiter em cem anos da
categoria de análise interculturalidade
SUJEITO DISCURSO
PP1
Em cem anos, a cultura dos Paiter poderá sofrer profundas
mudanças, passando a ser permeada por valores ocidentais, mas
também haverá resistência a tais mudanças, a partir de uma recusa
consciente da modernidade e de uma opção por um estilo de vida
tradicional no interior da floresta.
PP10
Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá praticamente
desaparecido, porque está havendo um processo acelerado de
substituição de valores da tradição por outros advindos da
modernidade, e as novas gerações estão deixando para trás a
identidade cultural e o modo de vida tradicional de seu povo.
PP9
Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter poderá ter se extinguido
pelas mudanças impostas a ela nesse período, mas também poderá
ter sobrevivido em função da resistência possível de ocorrer por
meio do registro de nossa cultura e da reprodução de nossa tradição
e identidade cultural através da escolarização das novas gerações.
PP4
Daqui a cem anos, a cultura do povo Paiter terá deixado de existir,
porque vivemos um acelerado processo de mudanças impostas pela
colonização, através da qual a modernidade substitui a tradição e a
identidade cultural do povo é abandonada pelas novas gerações.
PP3
Daqui a cem anos, se houver uma valorização da cultura e uma
resistência às mudanças impostas pela colonização, a cultura do
povo Paiter ainda existirá, sendo que o povo estará praticando sua
própria cultura e a cultura da sociedade envolvente.
Como condição para a resistência cultural, emerge dos discursos dos professores a
importância da pesquisa e do registro da cultura de seu povo, como condição para a
reprodução dos saberes da tradição na escola. Assim, mais uma vez, escola passa a ser
concebida pelos sujeitos como um espaço que atua a favor da manutenção da cultura e da
identidade cultural do povo, mesmo que em um contexto aparentemente contraditório de
327
transformações e mudanças. Nesse sentido, a educação escolar na aldeia é assumida como
um processo a ser ajustado à realidade cultural paiter para atuar em seu favor.
Em síntese, verifica-se nos discursos dos professores paiter um misto de incertezas
quanto ao futuro da cultura e da identidade cultural do povo frente às transformações
impostas pela colonização e pela modernidade, ao mesmo tempo em que buscam
considerar a educação escolar como instância de resistência a tais transformações desde
uma perspectiva de escola ressignificada e voltada para a valorização interna da cultura
pelo próprio povo. Percebe-se assim, nas práticas discursivas dos professores, uma
concepção de que é possível manter uma identidade cultural paiter mesmo em um contexto
de relações interculturais tensas, contraditórias e homogeneizantes com a sociedade
colonizadora envolvente.
328
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atual experiência de professores paiter ao projetarem a introdução do ensino de
saberes e fazeres matemáticos de seu povo nas escolas de suas aldeias situa-se em um
contexto de tensões entre a apropriação de elementos culturais da sociedade envolvente e a
tentativa de garantir a permanência do que lhes é próprio. Essas tensões, características do
fenômeno do hibridismo cultural, aparecem implícita ou explicitamente nos discursos dos
professores indígenas.
Caso resultem exitosos na continuidade dessa experiência no espaço da
interculturalidade, a educação escolar introduzida em suas aldeias poderá compensar a
falência de instituições indígenas tradicionais de reprodução social, e portanto de
educação, resultante de um processo de mudanças pós-contato, contribuindo, se não para a
manutenção de saberes e fazeres tradicionais de uma forma rígida e imutável, pelo menos
para o equilíbrio necessário nas relações assimétricas de poder estabelecidas com a
sociedade envolvente, contribuindo para o fortalecimento de uma identidade cultural em
permanente reconstrução.
Quando se observa a ausência de registros escritos de saberes e fazeres matemáticos
paiter, e um movimento iniciado para revitalização da cultura por meio da introdução
destes saberes na instituição escolar visando o fortalecimento da identidade cultural paiter,
não há que se falar de uma identidade paiter fixa ou congelada no tempo e no espaço.
Mesmo que o contato ainda não tivesse ocorrido, mudanças internas quanto à forma de
organização social, dos modos de produção material e imaterial, da representação da
natureza e de seus fenômenos, bem como em relação à língua poderiam ocorrer, embora
em outras direções e em uma escala de tempo diferente daquela em que atualmente tais
mudanças estão ocorrendo.
No caso particular das tensões e coexistência antagônica entre os Paiter e a
sociedade envolvente, inicialmente marcada por conflitos físicos, que implicaram em
mortes e assassinatos, com massacrante desvantagem para os Paiter, à medida que tal
coexistência é marcada por assimetrias e relações desiguais de poder, reforçadas em muitos
casos pela igreja e pela educação escolar homogeneizadora inseridas nas aldeias, surge o
risco de perda e desaparecimento de saberes e fazeres próprios da cultura desse povo, que
329
vai se alterando, particularmente a língua, o modo de organização social e de produção
material, a história e os saberes e fazeres matemáticos.
Nesse contexto de assimetrias, o discurso e a prática de professores indígenas paiter
referentes ao ensino de matemática em escolas de suas aldeias revelam uma tensão entre o
interesse de apropriação de um conhecimento exterior e a garantia de continuidade de
saberes próprios à cultura local. Esse antagonismo se reforça a partir da crítica em
elaboração pelos próprios professores paiter quanto aos fins da educação escolar em
contextos indígenas.
São representativas desse fenômeno, particularmente quanto às relações entre
saberes matemáticos externos e locais à cultura, as práticas discursivas dos professores
indígenas ao se referirem a: falta de ocasião para aprenderem um conhecimento
tradicional, os adultos estão mais habituados hoje na questão da matemática não-
indígena, na sala de aula tem apenas a matemática europeia, por não se ensinar a
matemática do povo, a gente tem essa dificuldade de compreender a matemática europeia,
a escola tem que ensinar primeiramente conhecimento paiter, existe uma pressão de uma
matemática não-indígena, revitalizar e valorizar os conhecimentos paiter é uma questão
de identidade cultural.
As práticas discursivas dos professores paiter voltadas para a introdução dos
saberes matemáticos do povo na escola, antes de visarem a diversidade cultural para a qual
contribuiriam particularmente os saberes matemáticos do povo, buscam marcar posição
(oposição/diferenciação) em relação a uma matemática do currículo presente na escola
inserida na aldeia.
Essa abordagem origina inevitavelmente tensões, relacionadas a questões de
identidade cultural, descentramento cultural e hibridismo cultural, porque, ao mesmo
tempo em que, conforme Bhabha, o processo enunciativo pressupõe a existência de uma
tradição (artifício do arcaico), ele introduz uma quebra no presente performativo da
identificação cultural ao eleger novos significados e saberes como necessidades do
presente político em uma constante prática de resistência.
No caso particular dos Paiter, observa-se no discurso dos professores (espaço
enunciativo), simultaneamente (mas também de forma tensionada) um apelo às memórias
de um saber matemático experienciado ou vivido “pelos mais velhos”, e o reconhecimento
da necessidade do domínio da matemática escolar como estratégia de empoderamento nas
relações de poder assimétricas com a sociedade envolvente no presente enunciativo
(conhecer para não ser “passado para trás”).
330
Nesse contexto, tornam-se problemáticas as noções de originalidade e pureza da
cultura, e ganha espaço o conceito de hibridismo, a partir do qual cultura é enunciada mais
como categoria flutuante e instável do que como essência ou unidade fixa. Nas palavras de
Bhabha, “a cultura se torna uma prática desconfortável, perturbadora, de sobrevivência e
suplementaridade – entre a arte e a política, o passado e o presente, o público e o privado –
na mesma medida em que seu ser resplandecente é um momento de prazer, esclarecimento
ou libertação” (BHABHA, 2010, p. 245).
O caso dos professores paiter exemplifica que, após vinte e cinco anos de
promulgação da atual Constituição Federal, povos indígenas do Brasil, entre outras ações
de seus interesses e de fundamental importância, estão efetivamente se colocando em
posição de transformar a educação escolar inserida em seus territórios, conforme previsão
legal, contando para isso com o apoio de universidades (em todos os estados da federação),
e outras instituições, governamentais ou não.
Como trabalhadores, pesquisadores e estudantes da Educação Matemática,
compete-nos participar desse movimento. Discutir educação escolar indígena a partir dos
referenciais da Interculturalidade e da Etnomatemática pode ser um dos caminhos,
podendo resultar em uma expansão da produção teórica nacional sobre a formação de
professores indígenas no país, concebida no encontro entre culturas distintas, com toda a
problemática que tal fenômeno ocasiona em função das relações de poder envolvidas.
Afinal, conforme observação de Ferreira (2005, p. 127):
Ao fundar-se teoricamente na cultura, a etnomatemática traz para o rol das suas discussões os encontros entre culturas distintas. Nestes encontros, os quais promovem um movimento em dupla direção, as culturas envolvidas na nova relação passam a se transformar de um modo até então inexistente. Uma nova dinâmica é estabelecida, tanto para uma quanto para outra, e, assim, novas referências passam a participar do cotidiano de todos. Entretanto, o rosto assumido por esta dinâmica está intrinsecamente ligado ao poder que uma civilização exerce sobre a outra. Por isso, a história tem registrado violências múltiplas quando a temática em questão é a interculturalidade.
Foi a partir da imersão nessa problemática da interculturalidade no contexto de
minha atuação docente na universidade que busquei desenvolver essa pesquisa, a partir de
uma análise dos contextos e das práticas discursivas de professores paiter envolvidos na
projeção da introdução de saberes e fazeres matemáticos de seu povo em sala de aula, e de
uma busca de teorização sobre as ideias, motivações e interesses que permeiam os
331
fundamentos de tais representações, perpassando desde a discussão de saberes e fazeres
matemáticos a serem ensinados na escola até a ressignificação da própria escola na aldeia.
Apoiado em subprojetos de pesquisa e de extensão vinculados à minha prática
docente na universidade, da qual não fui afastado para a formação doutoral, a produção de
dados na pesquisa buscou enfocar saberes e fazeres matemáticos do povo Paiter, mudanças
culturais pelas quais o povo atravessou e atravessa, e as representações críticas elaboradas
por professores a respeito da educação escolar, particularmente sobre o ensino de
matemática na aldeia.
Os elementos disponibilizados forneceram uma base para um aprofundamento no
universo da educação escolar existente nas aldeias paiter e uma interpretação da projeção
de uma educação escolar almejada pelos professores indígenas, que passarão a fazer parte
de minhas referências na continuidade de minha atuação na licenciatura intercultural.
Assim, se no início de minha atuação no curso de formação de professores indígenas na
universidade minha principal preocupação era como ensinar matemática aos estudantes
indígenas, agora percebo que, antes de nos colocarmos como detentores e provedores de
conhecimentos, devemos nos assumir primeiramente como ignorantes de um universo
cultural extremamente complexo e rico, estabelecendo como preocupação primeira como
participar com os estudantes indígenas da ressignificação da educação escolar no
contexto intercultural, e, em particular, como ressignificar com eles a educação
matemática e a etnomatemática nesse contexto.
É única a sensação de poder acompanhar como pesquisador a construção de uma
leitura crítica da educação escolar por professores indígenas, que ao mesmo tempo são
acadêmicos universitários. A contribuição teórica desta experiência empírica para minha
formação como pesquisador aponta para a possibilidade de uma nova perspectiva de se
conceber etnomatemática, não apenas relacionada à existência de saberes matemáticos
cultural e socialmente situados, nem somente como um programa de pesquisa acadêmico,
mas como uma concepção filosófica que aponta caminhos reflexivos que podem contribuir
para a vinculação entre educação escolar e identidade cultural de maneira crítica.
Esses caminhos podem ser possíveis justamente pela vinculação com a etnicidade
que a etnomatemática adquire ao sofrer uma inversão epistemológica, de um conjunto de
saberes atribuídos para um conjunto de saberes reivindicados. Essa inversão passa a ser
possível quando o espaço discursivo é ocupado por sujeitos que pertencem tanto ao
teoricamente representado, o universo indígena, quanto à instância teorizante, a academia.
A figura do professor-indígena-pesquisador-acadêmico é assim o provocador e o causador
332
de uma necessária revisão de nossas perspectivas sobre etnomatemática, que deixa de ser
uma categoria exclusiva dos discursos de sujeitos não-indígenas e externos ao universo da
educação escolar indígena. Nesse sentido, no caso empírico das práticas discursivas de
professores paiter, a etnomatemática como constructo ultrapassa a dimensão
epistemológica do caráter totalizante de um saber em si, e ganha contornos políticos de
afirmação identitária, e portanto vincula-se à etnicidade porque se assume mais como saber
reivindicado do que como saber atribuído.
Por suas ideias manifestas em discursos, não pensam os professores paiter em
voltar a um estágio de existência do povo anterior ao contato. Se assim fosse, pensariam
em abolir a própria escola de seu território, inexistente que era como elemento da tradição.
Intentam os professores, isto sim, revitalizar o passado (apologia do arcaico) para com suas
referências próprias ressignificar a existência contemporânea do povo dentro da
modernidade. Trata-se de uma oposição à modernidade não para dela sair, mas para, ao se
afirmar como diferente, nela permanecer com identidade própria.
É justamente por esse movimento aparentemente contraditório que a
etnomatemática se insere no discurso dos professores, não como conhecimento aplicável
no mundo moderno, como um equivalente utilitário da matemática escolar, mas antes
como mais um recurso de distinção cultural para afirmação identitária. Estar na
modernidade e nela permanecer como diferente requer distinguir-se inclusive por possuir
uma forma própria de conhecer e de se expressar. Etnomatemática paiter é concebida na
prática discursiva dos professores e projetada para a educação escolar da aldeia com essa
natureza.
Essas reflexões possibilitadas pela vivência experienciada com professores paiter
permitem, ao término dessas considerações, esboçar uma conclusão aos moldes de uma
tese a posteriori, tendo por base não referências teóricas acadêmicas, mas ideias,
motivações e problematizações presentes nos discursos dos professores paiter que
participaram desta pesquisa:
No caso empírico dos professores paiter, a etnomatemática ocupa um espaço
funcional no discurso como produtora de diferenciação e de afirmação identitária,
ressaltando-se assim em seu aspecto teórico uma proximidade com a etnicidade. Não se
trata de um saber étnico, porque etnia não é essência, mas de um saber produtor de
etnicidade, porque etnia é processo, é movimento, é reivindicação.
333
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342
Apêndice A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezado senhor _________________________________________, O senhor está sendo convidado a participar de uma pesquisa de doutorado intitulada “Da tradição oral
à escrita: práticas de introdução ao ensino de saberes matemáticos paiter” a ser realizada nos anos de 2012 a 2014. Para a realização dessa pesquisa serão coletados dados por meio de questionários, entrevistas, observações na sua comunidade e na sua sala de aula, tendo como objetivo compreender os processos, as ideias e os fundamentos da prática de introdução ao ensino de saberes matemáticos paiter na escola da aldeia. Serão previamente marcados a data e o horário para realização das entrevistas e observações. Não é obrigatório responder a todas as perguntas e se submeter a todas as observações.
O seu nome será preservado, sendo adotado um pseudônimo quando necessário nomeá-lo no relatório da pesquisa.
A realização deste estudo poderá trazer como benefício uma produção teórica e empírica sobre os processos próprios de ensino e aprendizagem de saberes matemáticos paiter, podendo contribuir para a formação de futuros professores paiter. Poderá também contribuir para a reflexão dos processos didáticos e pedagógicos praticados na escola da comunidade quanto ao ensino e aprendizagem de matemática.
A pessoa que realizará as entrevistas e as observações é o pesquisador Kécio Gonçalves Leite, professor do Departamento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, e doutorando em Educação em Ciências e Matemática pela Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática.
O senhor poderá se retirar do estudo a qualquer momento, sem qualquer tipo de constrangimento. Solicitamos sua autorização para o uso dos dados coletados na pesquisa para produção de uma tese
de doutorado, bem como para a produção de artigos técnicos e científicos. Agradecemos por sua participação e colaboração.
Nome do pesquisador: Kécio Gonçalves Leite Telefone para contato: (69) 9273-1783 Endereço: Rua Rio Amazonas, 351, Jardim dos Migrantes, Ji-Paraná/RO.
Assinatura do pesquisador
TERMO DE CONSENTIMENTO
Declaro que fui informado sobre todos os procedimentos da pesquisa e que recebi de forma clara e objetiva todas as explicações pertinentes ao projeto, e que será garantido o sigilo quanto ao meu nome e aos meus dados pessoais. Eu compreendo que neste estudo serão realizadas observações durante minhas aulas na escola e observações na comunidade, bem como serão realizadas entrevistas sobre os processos, práticas e fundamentos do ensino e aprendizagem de saberes matemáticos paiter, sendo que fui informado que posso me retirar do estudo a qualquer momento. Nome por extenso _________________________________________________________________________ Assinatura ___________________________ Local: ___________________ Data: ____/____/____ .
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ UNIVERSIDADE ESTADUAL DO AMAZONAS
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Apêndice B – Questionário de caracterização dos participantes da pesquisa
QUESTIONÁRIO Nº 1 Caracterização dos Participantes da Pesquisa
1) Qual é o seu nome completo?
2) Qual é o seu clã?
3) Qual é a sua idade?
4) Em qual aldeia você mora?
5) Onde você nasceu?
6) Quantos filhos ou filhas você tem?
7) Onde e quando você aprendeu a ler e a escrever em Língua Portuguesa?
8) Onde e quando você aprendeu a ler e a escrever em Paiter?
9) Em quais escolas você estudou?
10) Em que ano você começou a dar aulas?
11) Você cursou o Projeto Açaí?
12) Se você cursou o Projeto Açaí, em que ano iniciou e em que ano concluiu o curso?
13) Em qual escola você dá aulas hoje?
14) Para qual série você dá aulas hoje?
15) Você dá aulas de quais disciplinas?
16) Você tem outra fonte de renda além do salário de professor?
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Apêndice C – Questionário de caracterização do espaço da pesquisa
QUESTIONÁRIO Nº 2 Caracterização do Espaço da Pesquisa
Nome:____________________________________________________
1) Em que ano ocorreu o contado do povo Paiter com não indígenas?
2) Há na comunidade algum membro que nasceu antes do contato?
3) Algum membro da comunidade não fala Português?
4) Em que ano sua aldeia foi criada?
5) Quantas famílias moram hoje na sua aldeia?
6) Quais são as fontes de renda das famílias de sua aldeia?
7) Quem são as lideranças de sua aldeia?
8) Quando foi criada a escola em sua aldeia?
9) A escola em que você trabalha é mantida pelo estado ou pelo município?
10) Quantos alunos estão matriculados na escola da aldeia?
11) Quantas turmas e quais séries existem na escola de sua aldeia?
12) Alguma criança ou jovem da aldeia estuda em escola não indígena?
13) Quantos professores indígenas trabalham na escola de sua aldeia?
14) Quantos professores não indígenas trabalham na escola de sua aldeia?
15) A escola da aldeia tem biblioteca?
16) Você dá aulas para quantos alunos?
17) Todos os seus alunos falam Paiter e Português?
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Apêndice D – Questionário sobre concepções de escola, educação e etnomatemática
QUESTIONÁRIO Nº 3 Concepções de escola, educação e etnomatemática
Nome:__________________________________________________________
1) Na sua concepção, o que é uma escola?
2) Na sua concepção, qual é a importância da escola para sua comunidade?
3) O que deve ser ensinado na escola de sua comunidade?
4) Como e quem define o que vai ser ensinado na escola de sua comunidade?
5) Na sua concepção, o que é educação?
6) Por que você se tornou professor?
7) Na sua concepção, o que é etnomatemática?
8) Você acha importante ensinar saberes matemáticos paiter na escola de sua comunidade?
Por quê?
9) Com que idade uma criança já deve saber contar na língua paiter?
10) Todos os membros de uma comunidade paiter sabiam contar, medir o tempo e as distâncias antes do contato?
11) Todos os alunos da escola da aldeia têm interesse em aprender a escrever na língua paiter?
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Apêndice E – Entrevistas ENTREVISTA 1
Sujeito: PP1 Data: 21/05/2013 Local: Aldeia Gapgir – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP1, você está participando de um projeto de extensão, no âmbito do PROEXT, que trata dos saberes e fazeres matemáticos do seu povo. Qual a importância desse projeto? O objetivo do projeto é fazer um documentário sobre os conhecimentos etnomatemáticos paiter, por meio do projeto PROEXT. O nome do projeto é “Registrando saberes e fazeres matemáticos Paiter Suruí”. A importância do projeto é registrar os saberes, que até então são desconhecidos pelos não índios, principalmente no meio acadêmico. Então, a partir dessa pesquisa, desse trabalho, propomos colocar em pauta o que concerne... mostrar os saberes matemáticos e ensinar por meio de pesquisa, coleta de dados, sistematização, e esses dados, esse material entrar como conteúdo nas escolas indígenas paiter. 2) No curso de licenciatura, você está tendo acesso a textos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? A etnomatemática eu entendo que é um conhecimento de povos em relação à matemática, ou seja, cada povo tem a sua forma, expressão e meios para fazer contagem, e para fazer formas geométricas, medidas e tudo mais. Cada povo tem seu conhecimento. Então, a etnomatemática, cada povo... A etnomatemática eu entendo que é... cada povo, cada cultura, cada etnia tem sua forma de expressão e conhecimento ao longo do tempo. Adquiriram esses conhecimentos por meio de necessidades, buscando no seu dia a dia, nas atividades. Então, nessas atividades sempre há formas de trabalhar essas atividades em termos matemáticos. Então a etnomatemática nada mais é para mim do que a matemática de cada povo, de acordo com sua cultura e conhecimento ao longo do tempo, construído ao longo do tempo, dos anos milenares. 3) Fale um pouco dos saberes e fazeres matemáticos do povo Paiter. Os conhecimentos etnomatemáticos paiter são um pouco diferentes da matemática que conhecemos como matemática formal que se ensina na escola não indígena hoje. São significados em termos numéricos que usam objetos, fenômenos da natureza, pessoas, as próprias pessoas, para designar tal número, termo numérico. Por exemplo, para a gente se localizar em horas, os Paiter utilizam referências como o Sol, e também para contagem, uma das referências são os dedos... não necessariamente os dedos, mas uma das referências que se leva para fazer contagem são os dedos. Então são várias formas que aparecem para designar tal termo numérico Paiter, e esse é um dos poucos exemplos que se tem. 4) Qual é a importância hoje de se ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter na escola da comunidade?
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Ensinar esses conhecimentos na escola hoje para os Paiter é de suma importância, porque o conhecimento matemático que conhecemos hoje é o que é ensinado por meio dos programas do Estado, ou seja, a matemática europeia. Então, ensinar hoje, trabalhar em cima da etnomatemática paiter é de suma importância para os Paiter para não perder esse conhecimento tradicional, conhecimento milenar que foi passado de geração em geração. Então, sentindo essa necessidade, sentindo essa pressão de uma matemática não indígena que pensamos em fazer esse trabalho, até para resgatar e revitalizar e valorizar mesmo os conhecimentos etnomatemáticos paiter suruí. Então, a importância maior é até mesmo de questão de identidade cultural paiter. 5) Qual é a importância dos velhos em relação aos saberes tradicionais? Uma das referências que a gente tem no ensino da etnomatemática, de repassar esses conhecimentos hoje, são os mais velhos. Então, eles têm uma grande importância para transmitir esse saber, porque se não fosse por meio dos velhos transmitir esses conhecimentos, o único conhecimento matemático que a gente tem são nas escolas, e as escolas tem a matemática não indígena, que vem pressionando cada vez mais nossos alunos, cada vez mais o povo Paiter, que acaba diminuindo a força do conhecimento etnomatemático paiter. Então, quer dizer, os nossos mais velhos hoje são uma escola para nós, hoje são os livros orais para a gente. Então, é de suma importância a gente valorizar esse conhecimento tradicional em relação à etnomatemática paiter. Os mais velhos são os que detêm esse conhecimento hoje da etnomatemática paiter suruí. 6) Como estão as gerações mais novas, elas estão sabendo o que deveriam saber nas suas devidas faixas etárias? No meu ponto de vista... eu faço até uma análise crítica sobre isso. O que eles podiam estar aprendendo de acordo com sua faixa etária em relação ao conhecimento paiter Suruí, nada é ensinado a eles. Quer dizer, hoje temos uma forma de vida bastante diferente para termos oportunidade ou ocasião de conhecer um conhecimento tradicional paiter. A exemplo, a etnomatemática. Nem todas as crianças, nem todos os jovens, até mesmo as pessoas adultas... elas não usam a etnomatemática no seu dia-a-dia. Estão mais habituados hoje... os adultos estão mais habituados hoje na questão da matemática não indígena, principalmente os jovens e as crianças. Se os mais velhos e os adultos não estão praticando a matemática paiter, muito menos as crianças e os jovens, porque hoje eles estão aí nascendo e crescendo, e daqui a pouco entra na sala de aula, e na sala de aula tem apenas a matemática europeia. Então não tem uma matemática na qual eles teriam a oportunidade de conhecer a etnomatemática, pelo menos na sala de aula, se no dia-a-dia não tem essa oportunidade. Então uma visão crítica que eu tenho em relação a isso é que não temos oportunidade, ocasião de estar praticando esses conhecimentos tradicionais no nosso dia-a-dia, nas nossas atividades cotidianas. 7) O projeto de extensão está relacionado à preocupação dos professores com essa situação? Nessa perspectiva de registrar, de coleta de dados, sistematizar e ensinar em sala de aula os dados coletados e sistematizados, que entramos com esse projeto sobre saberes e fazeres etnomatemáticos paiter por meio do projeto PROEXT. Então, o projeto é um dos meios que vai ser... vai ser um mecanismo que pode contribuir, e que vai contribuir para que esses conhecimentos se perpetuem ao longo do tempo, seja na comunidade através da
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escola, seja em livros didáticos, e também no meio acadêmico dentro da universidade. Então, perpetuar esse conhecimento na escola indígena e também no meio acadêmico por meio de pesquisa, por meio de artigos, por meio de coleta de dados. Então, o projeto é um dos mecanismos que a gente está usando para que esses conhecimentos se perpetuem ao longo do tempo, chegando até as gerações futuras. ENTREVISTA 2 Sujeito: PP1 Data: 21/05/2013 Local: Aldeia Gapgir – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP1, na sua concepção, o que é uma escola? Para mim, a escola é o espaço onde se ensina um conhecimento já trabalhado, conhecimento que já foi sistematizado. Para mim a escola é aquela estrutura física para ensinar algo, algum conteúdo, algum conhecimento... Para mim a escola é isso. Na minha concepção a escola é... escola indígena, ou seja, um espaço onde se ensina para indígena, não o conhecimento indígena, mas onde se ensina o conhecimento para indígena. Então, na minha concepção hoje, para mim a escola é isso. Mas que para mim não tem nada a ver com a realidade, com a visão de mundo indígena, pelo menos paiter. 2) Então, para você, existe a escola de hoje, a escola real, mas você tem uma concepção de como deveria ser a escola? Sim. Para mim a escola seria de acordo com a visão de mundo, visão futura de cada etnia, de cada povo, de cada sociedade. Hoje, a escola indígena não tem nada a ver com a visão de futuro e a visão de mundo dos Paiter. A escola está aí, porque o estado mantém ela. Então, é uma coisa já formalizada, sem tomar conhecimento da visão de mundo e visão de futuro daquele povo, no caso Paiter Suruí... uma coisa que já é programada já... então não tem nada a ver com a visão de mundo e com a visão de futuro paiter. 3) Qual a importância dessa escola existente hoje na comunidade? A importância dessa escola hoje é o fato de que ela já existe como instituição dentro da comunidade... A importância dela é que ela já existe dentro da comunidade, é reconhecida pelo estado, pelo estado brasileiro, pelo estado estadual... e que podemos usar os conhecimentos paiter de acordo com a visão de mundo e visão de futuro paiter, ensinar isso nessa escola. Então, usar esse mecanismo escola, instituição escola para ensinar de acordo com a visão de mundo paiter. Então, a importância que a escola tem hoje, para mim é isso, ela tem uma função, e a gente tem que fazer com que essa funcionalidade dela sirva para o povo Paiter, não simplesmente ser uma escola sem ter... de acordo com a visão de mundo paiter. 4) O que deve ser ensinado na escola de sua comunidade?
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Primeiramente, o que pode ser ensinado na escola é priorizar o conhecimento paiter, porque inicialmente, quem está na escola são as crianças, os jovens. Então, não podemos ultrapassar... seria prematuro a gente colocar um conhecimento não paiter primeiro para as crianças. Como as crianças tem facilidade de aprender qualquer coisa, não só paiter, mas qualquer criança no mundo, então a gente está trocando a identidade e o conhecimento dela, que servia de identidade para ela... por meio da escola a gente está trocando a identidade dela, e colocando a identidade que seria dela como uma segunda opção. Então, eu vejo que a escola tem que ensinar primeiramente conhecimento paiter, o que precisa ser ensinado para aquela criança, aquele jovem, aquela pessoa para ser paiter, para ser reconhecida como paiter. Então, eu vejo que a escola tem que ensinar o conhecimento paiter para depois conhecer outros conhecimentos, áreas de conhecimento, porque está aí, o Português está aí, o conhecimento ocidental está em qualquer lugar, mas o conhecimento paiter não, o conhecimento paiter está ofuscado, está perdido no meio dessa turma toda, e se a gente não buscar, acaba se perdendo, e um conhecimento não paiter acaba sendo priorizado por paiter, e acaba perdendo essa identidade. Então é isso. 5) Quem define hoje o que deve ser ensinado na escola de sua comunidade e como é feita essa escolha? Hoje é ensinado... hoje ainda está... as coisas ainda não estão muito direcionadas não. Quem define hoje a maior parte das coisas é o próprio estado, o que vai ser ensinado desde a entrada da criança na sala de aula. Então, quer dizer, eles colocam um monte de conteúdos, de disciplinas, de matérias, para ser ensinado a partir daquela idade, seguindo, avançando de acordo com a idade. Então, quem define isso é o próprio estado. E como definem? Eles definem sozinhos... definem sozinhos, não tem uma participação da comunidade e de professores. Supostamente dizem que tem a participação dos professores, que para mim, como eu sou professor há uns dois anos, participei de uma reunião onde a gente discutiu currículo escolar. A maior parte que está no currículo é um conhecimento não indígena, e o conhecimento paiter que é colocado lá, supostamente, é apenas para dizer que a escola está fazendo isso... mas que a escola, o estado dá suporte a isso, não. Então, quem define o que vai ser ensinado, hoje, até o momento, eu vejo que é o próprio estado mesmo. Não é a comunidade, o professor não tem autonomia para dizer: eu vou ensinar conhecimento etnomatemático, e essa vai ser a minha disciplina principal dentro do currículo. Não tem essa autonomia. O que vai ser ensinado primeiramente é a matemática, e se tiver conhecimento etnomatemático vai ser ensinado... se tiver... mas a matemática não paiter é priorizada ainda. 6) O que é educação? Educação para mim... hoje eu vejo que... educação é eu ter um rumo de vida, quer dizer, eu tornar... educação para mim é eu seguir um rumo de acordo com o que é minha identidade, de acordo com o que é paiter, e também é o que eu penso no futuro, como paiter, como que eu vou ser paiter no futuro. Então, educação para mim hoje é direcionar a minha vida, direcionar a vida da minha comunidade como educador, para que eu consiga ser paiter no futuro, mesmo com essa pressão, e que eu garanta minha identidade. Então, educação para mim é nada mais do que adquirir o conhecimento para que eu torne, eu pegue, eu siga um rumo para alcançar, não só agora, mas no futuro, continuar sendo paiter. Quer dizer, é um caminho que vou seguir ao longo da minha vida para ser paiter. Ou eu posso seguir um caminho, um rumo, me perder no meio, vamos dizer... e eu não consigo no futuro ser paiter. Então, educação para mim é o que? É você fazer o seu rumo, seguir o que é... seguir
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a sua visão de mundo, de futuro, por meio da educação. Então, educação é o caminho para mim. Educação não é ensinar um conhecimento, educação para mim é eu ter um rumo de acordo com o que é minha visão de futuro, de acordo com o conhecimento que eu tenho como paiter. Essa é minha visão com educação. 7) Por que você se tornou professor? Sinceramente, professor Kécio, nunca imaginei que um dia seria professor. Então, minha vida me colocou num caminho assim, meio que pego de surpresa. Nunca imaginei ser professor. Mas o que me fez ser professor é que faltou professor na minha comunidade, pessoa com nível de escolaridade razoável para se tornar professor indígena, e a comunidade acabou escolhendo eu como professor. Mas como eu não queria, não imaginava ser professor, eu me tornei por necessidade da minha comunidade. Então, por necessidade da minha comunidade, hoje sou professor, contribuindo à minha comunidade devido à confiança que a comunidade deu a mim. Então eu me tornei professor por meio da minha comunidade, por necessidade deles mesmo. 8) O que é etnomatemática? Etnomatemática é saberes, fazeres, conhecimentos... cada atividade cotidiana de cada povo, de cada etnia no mundo, que se usa como contagem, medição de tempo, se localizar no tempo. Então, etnomatemática para mim é saberes e fazeres matemáticos de cada povo, de cada etnia, de acordo com sua cultura, de acordo com as suas tradições, de acordo com suas atividades cotidianas. Então, a exemplo, vamos dizer, a etnomatemática paiter de acordo com a escolha da roça, como que é, em que tempo, como que seria a área, que é diferente de uma matemática do engenheiro civil. Então, quer dizer, a etnomatemática é um conhecimento matemático de acordo com cada povo, de acordo com cada cultura, de cada sociedade. 9) Fale um pouco sobre a etnomatemática paiter. Existe a etnomatemática paiter, porque existe contagem de números, de quantidade, existe a localização de um ponto a outro, no tempo. Existe em relação ao tempo hora também. Existem as geometrias paiter, que são usadas, que são vistas em artefatos, que são vistas em casas, construções paiter. Então existe a etnomatemática paiter. Há pouco tempo não se falava em etnomatemática, em pesquisas, em escola, mas hoje, por meio de pesquisas, por meio de estudos, está sendo realizada coleta de dados, estudos sobre a etnomatemática paiter. Então, é isso.
ENTREVISTA 3 Sujeito: PP2 Data: 22/05/2013 Local: Aldeia Lobó – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP2, por que você se tornou professor?
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Foi assim, antes de começar tudo isso, eu estudei na escola rural. Comecei muito tarde também, comecei a estudar a primeira série do ensino fundamental, naquela época era primeira série ainda, com 10 anos de idade. Então, eu tinha perdido muito tempo. Na época meu pai era cacique, liderança geral da comunidade, então na época ele não parava em casa, e onde ele ia eu ia junto com ele, até que em um tempo a gente parou nessa aldeia para poder dar tempo para estudar. Então, comecei a estudar na escola dos Colonos, e a partir daí, eu comecei a seguir um pouco de estudo. Terminei aqui, depois fui estudar na escola Celso Ferreira da Cunha, lá em Riozinho, que é distrito de Cacoal. Lá terminei o Ensino Fundamental, a oitava série na época, e depois cursei a primeira série do ensino médio lá, e assim eu terminei o estudo lá, e então parei, fiquei um bom tempo parado. Quando foi em 2004, comecei a estudar me descolando daqui para a cidade, de moto, para tentar terminar o Ensino Médio. Então eu cursei o ensino regular, terminei o segundo ano do Ensino Médio, terminando no ano de 2004. Fiquei parado de novo e voltei a estudar em 2007, para tentar terminar o terceiro ano do Ensino Médio, na escola seriada, na escola Onorina Lucas de Brito. Então, terminei em 2007 e assim eu consegui estudar. Foi a maior dificuldade para mim estudar, porque comecei a estudar em uma escola que não era da comunidade, que não era bilíngue, de uma cultura diferente, onde eu tive muita dificuldade de aprender na língua portuguesa. Então, a partir daí, começamos a pensar junto com a comunidade a necessidade da comunidade. Vimos essa dificuldade de nossos alunos, nossos meninos terem a dificuldade de entender a língua portuguesa. Então essa necessidade fez a comunidade pensar qual seria a melhor opção para a comunidade... para a educação da comunidade. Nisso, a comunidade pensou em chamar uma pessoa da comunidade para que pudesse dar aula, para que nossos alunos não sofressem muito, não tirassem um pouco da cultura. Então, essa dificuldade fez com que eles me escolhessem como professor, na escola paiterey, onde a gente estuda. Então, isso facilita muito para nossos meninos, porque ao mesmo tempo em que a gente vai dando aula, ou traduzindo um livro para nossa língua, transmitimos para eles o que está significando essa fala. Então, usando o bilíngue na aula é muito importante, porque a gente transmite uma coisa que a gente tem dificuldade de transmitir para eles. Então essa necessidade fez com que a comunidade escolhesse professores, professores indígenas para trabalhar dentro da comunidade. 2) O que é uma escola? Escola, assim... pelo nosso entendimento eu falo, mas pela Língua Portuguesa eu não sei se vou conseguir explicar. Pelo que a gente pensa a escola... a escola é uma estrutura onde a gente se reúne juntamente com as crianças para poder debater sobre algum assunto importante, como aula... não só aulas, mas também ouvir histórias da cultura dentro dessa escola. É uma estrutura física, assim... dentro dela nós conseguimos explanar muitas coisas importantes na comunidade, não só da cultura não indígena, mas também o que vem da nossa cultura. É muito importante a gente dizer essa importância da escola para a comunidade. A importância que ela tem é muito fundamental, até porque nós precisamos da escola dentro da comunidade. Pelo meu entender, a escola é algo que a gente necessita dentro da comunidade para poder aprender, informar, passar informações que a gente tem dentro da sociedade envolvente. 3) Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática?
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Etnomatemática, pelo meu entender, pelo que eu andei pesquisando antes de fazer o TCC... etnomatemática é um projeto que tem dentro da cultura de cada um. Então, etnomatemática é o conhecimento dos cálculos matemáticos que envolvem dentro da cultura. Então, pelo que eu entendi sobre etnomatemática, ela é um pouco de cada coisa dentro da cultura. Então, pelo meu entender, etnomatemática já vem no dia-a-dia de cada comunidade, não só da comunidade paiter, mas também em outras culturas. Por exemplo, o povo Paiter Suruí tem etnomatemática em seus cálculos... seus cálculos que eles fazem antes da construção, tem os cálculos das mulheres na confecção, que fazem os cálculos de quantas peças vão confeccionar, quantas palhas vão confeccionar a construção da maloca, quantos metros deve medir. Então, tudo isso que o povo Suruí usa, pelo meu entender, é etnomatemática. E dentro dessa etnomatemática, nós também temos nossa matemática cultural. Pelo meu pensamento sobre etnomatemática, onde estou tentando pesquisar ainda... está sendo muito proveitoso. Então, quer dizer, onde temos nossa numeração, nossos cálculos diante da matemática da sociedade não indígena. Então o uso no nosso dia-a-dia, a fala no nosso dia-a-dia, e o modo de fazer no nosso dia-a-dia também envolvem várias matemáticas. Então, eu acho que isso é uma etnomatemática, é a descoberta de um novo conhecimento com uma cultura diferente, que traz em si uma descoberta sobre vários cálculos tradicionais sobre a cultura de um povo, inclusive no povo Paiter também no qual a gente está tentando fazer essa pesquisa. 4) Você está participando de um projeto de extensão, no âmbito do PROEXT, que trata dos saberes e fazeres matemáticos do seu povo. Qual a importância desse projeto? Ele tem várias importâncias. A partir do momento que ele começa a ser explorado, a gente pensa em muitas coisas. Porque hoje a gente vê que nós Paiter não temos muitos materiais didáticos sobre a etnomatemática. Isso está sendo recente agora dentro da comunidade. Então, esse projeto PROEXT seria muito importante dentro do povo Paiter, não dentro de uma comunidade, mas sim dentro da terra indígena. Ele traria uma importância muito grande para a comunidade, porque, a partir do momento que a gente começa a descobrir vários conhecimentos sobre a etnomatemática do povo Paiter, então ela também começa a expandir nas escolas indígenas, o produto começa também a expandir nas escolas indígenas, até para os professores indígenas poderem transmitir isso para os alunos indígenas das escolas. Então, isso faz com que esse projeto tenha uma grande importância, dá um salto muito grande dentro da comunidade. Então, a partir do momento que a gente começa a explorar mais o livro, então quem sabe a gente não pode também classificar os livros de acordo com as séries, livros de séries futuramente, para poder repassar para os alunos pequenos. Então, no momento, está sendo uma discussão muito importante, até para poder professores indígenas e professores da universidade discutirem isso, sobre isso, na comunidade. Então, esse é o valor e a importância que o projeto está trazendo para nós Paiter Suruí. 5) Qual é a importância de se ensinar saberes e fazeres matemáticos paiter em sala de aula? No meu ponto de vista, como professor indígena dentro da minha comunidade, é um grande benefício para os meus alunos, até tanto para mim quanto para meus alunos também, porque a partir do momento que eu comecei a me envolver com a etnomatemática na universidade, isso fez eu adquirir um grande conhecimento sobre a minha cultura mesmo. Então, isso me fez sentir que isso tem um grande benefício para mim, e pode
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trazer também para os meus alunos, e até dentro da cultura, da comunidade também. Isso me fez pensar em participar desse projeto, para poder transmitir isso para os meus alunos, para eles terem conhecimento da própria cultura, porque se a pessoa não tem conhecimento da própria cultura, ele não dá valor a sua cultura. Então, a partir do momento que ele vai pegar sobre o conhecimento da etnomatemática da própria cultura, então ele vai saber dar valor sobre o que está sendo feito dentro da comunidade, como arco, a confecção de anéis, a confecção de balaios. Então, a partir desse momento, ele vai entender que aquilo tem um significado muito grande para eles, não só o cálculo da cultura não indígena, mas também tem a sua própria cultura, os seus cálculos, os modos do dia-a-dia da sua cultura. Então isso vai fazer com que ele goste daquilo que está fazendo, e não tenha vergonha daquilo que faz. Então, eu, para trabalhar com meus alunos, primeiramente eu vejo assim mais a minha cultura, para depois eu repassar esse valor para eles em forma da etnomatemática, ou seja, de outra forma que eles gostem da própria cultura. Porque se eles não conhecerem a própria cultura, gostarem da própria cultura, como é vão dar valor à própria cultura? Então, para mim, eu defendo essa metodologia por eu entender que tem uma grande importância para mim e para meus alunos e para minha comunidade. 6) Você está escrevendo um TCC sobre a etnomatemática paiter. Como você está fazendo a pesquisa e quais os resultados até o momento? Em relação ao meu TCC, escolhi esse tema da etnomatemática porque é um novo conhecimento que está sendo... foi uma experiência nova para mim. Então eu pensei que poderia ser uma coisa muito importante eu pesquisar minha própria cultura, meu próprio modo de viver, para poder entender o que tem de matemático dentro dele. Então, com essa pesquisa, que ainda está em andamento, descobri que cada função tem o seu valor, sua metodologia. Então, para que você confeccione um artesanato, dentro desse artesanato confeccionado do povo Paiter, vi que eles tem traços que são conhecidos, que são iguais à matemática, tipo formas geométricas, o modo de contar do povo Suruí também, tanto é que a contagem Suruí, no momento, descobrimos que tem números até dez. Quem sabe, com essas pesquisas, a gente consiga avançar muito mais nos números, por meio dessa pesquisa. Até o momento, a gente está descobrindo números até dez, e as pinturas, que dentro das pinturas tem formas geométricas, tipo quadrado, retângulo, triângulo. Na flecha também... na flecha que os mais velhos confeccionam, tem as formas geométricas também parecido com isso aí. Então, a etnomatemática... isso faz pensar na etnomatemática da nossa cultura. A partir dali, a gente tenta buscar novos conhecimentos dentro da cultura, e a partir dessa descoberta, a gente tenta transmitir esse conhecimento na sala de aula. Isso fez com que eu pensasse com meu TCC... buscar esses conhecimentos, antes que eu pudesse passar isso para a comunidade. E também, não só... na minha graduação eu quero usar isso, mas quem sabe na continuação, não podemos ampliar esse conhecimento, essa pesquisa, para poderem usar em prol da comunidade. Então, isso é o começo da pesquisa que a gente está fazendo, assim... eu PP2 estou fazendo. Espero me aprofundar muito mais futuramente. 7) Antes do contato, todos os membros da comunidade, homens, mulheres, jovens, crianças, sabiam contar, medir, comparar da mesma forma? Pela pesquisa que eu consegui fazer com algumas pessoas mais velhas, antigamente, cada pai tinha a função de contar histórias para seus filhos, netos, entre outros. A partir daí, com essa participação conjunta, dentro da família, dá para perceber que, antigamente, a partir da juventude passava-se a usar essa escrita... não é uma escrita, mas é uma fala, fala oral
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dentro da comunidade em que eles viviam. Tanto é que... ainda faltam coisas para eu pesquisar para por no meu TCC sobre essa relação... já pensei nisso... já fiz algumas perguntas para meu pai e outro tio do meu pai e já consegui fazer isso. Pelo que eu entendi da fala deles, eles falaram que existia sim o uso dessa etnomatemática na comunidade no passado. 8) Existe uma idade ideal para se aprender a matemática paiter? Quanto ao que se vem estudando hoje, acho que sim. Dá também de se reaproveitar o uso dessas pesquisas para transformar em livros. E eu acho que sim. Futuramente dá para se usar esses conhecimentos a partir de crianças, na sala de aula, a partir do primeiro ano dentro da sala. Porque a criança começa a perceber as coisas a partir do momento que ela começa a falar e a conviver no dia-a-dia, falando no dia-a-dia. Hoje, essas coisas não acontecem. Hoje, as coisas já se modificaram, porque antigamente, os pais, os tios viviam falando sobre a história e o conhecimento, com as crianças, a partir do momento que elas começavam a entender e perceber as coisas. Até a própria criança começa a perguntar. Hoje isso também acontece. A criança pergunta: Pai, o que é aquilo? Então, muitas vezes, nós mesmos não temos quase respostas para isso. E por que não temos respostas? Porque não começamos a explorar os mais velhos. Então, a partir do momento que a gente começar a explorar, perguntar aos nossos mais velhos sobre esse conhecimento, então é claro que a gente vai poder saber, explicar e transmitir para nossas crianças. Então, a partir daí, facilita para eles aprenderem e falarem sobre essa oralidade. ENTREVISTA 4 Sujeito: PP3 Data: 22/05/2013 Local: Aldeia Amaral – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP3, como surgiu o clã Kaban? Segundo a história fala, o clã surgiu... teve uma guerra, e durante essa guerra, o paiter, depois de guerrear contra o cinta-larga, pegou mulher do cinta-larga. O que casou com a mulher cinta-larga era Gamep, e a mulher era do clã Kaban. Surgiram os filhos, e o último, caçula, o filho mais novo, caçula, a mãe falou que aquele filho poderia ser do clã dela, para o clã dela continuar. A história que sei do surgimento do clã é essa. 2) Como se originou a comunidade Amaral? Foi aqui que você nasceu? Eu nasci no posto Sete de Setembro, que é da Linha 12, onde Funai teve o contato com povo Suruí. Nasci em 1984 lá. Só que eu vim na Linha 11 aqui mais ou menos em 1985. A partir de 1983 e 1984, o pessoal estava se deslocando de lá para abrir outras aldeias novas. Essa aldeia abriu com uma família, depois chegou o cunhado do cacique, os três, depois veio surgindo através do... que a família estava aumentando. Veio cada vez mais de outra aldeia. Veio para casar com a filha, porque a tradição é que a gente tem que mudar para onde a gente casa com a menina. A gente tem que morar junto com o pai da menina. E essa aldeia é toda formada com os familiares mesmo daqui.
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3) Por que você se tornou professor? Em 2001, terminei o Ensino Fundamental, o oitavo ano. A partir do momento que eu terminei o ensino fundamental, vi que a minha comunidade estava precisando de professor... e um dos que eu me preocupei foi a minha comunidade, porque se eu me preocupasse com meu futuro, eu enfrentaria o Ensino Médio e faculdade por mim mesmo, mas a minha preocupação foi a minha comunidade, porque não tinha outra pessoa que tinha o ensino... que tinha concluído até o oitavo ano, que hoje é o nono ano. E, a partir de 2002, entrei para dar aula. Desde aquele ano eu trabalho na escola. Em 2009 fiz vestibular para ingressar na universidade, passei, só que eu não concluí o Ensino Médio naquele ano, estava incompleto ainda, por isso eu não entrei naquele ano. Eu continuei fazendo no CEEJA, que é onde a gente faz por módulo, terminei e fiz outro vestibular em 2010, passei e comecei a estudar. Sou estudante da UNIR, do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural. Escolhi a parte da linguagem... a área de linguagem. 4) Você dá aulas para quais turmas e em quais disciplinas? Dou aula para o sexto ao nono ano, com a língua materna, e também da disciplina Identidade Étnica Histórica, que é um dos cursos que estão tentando a revitalização do povo, porque as crianças de hoje estão muito deixando de praticar a sua cultura, sua fala, sua história. E os professores que estão dando essa disciplina estão tentando resgatar o que se deixou de praticar. 5) Na sua concepção, o que é uma escola? Escola para mim é um lugar onde a gente aprende um conhecimento que não é aprendido em casa, um conteúdo específico. Mas tem muito... tem muitas coisas que a gente aprende em casa, a educação... mas a escola, além de educar, ela também pode dar novas ideias para a gente adquirir mais conhecimento. Então a escola é um espaço em que a gente aprende além do que a gente aprende em casa. 6) Por que é importante ter uma escola na comunidade? Porque a escola está ensinando a cultura, está ensinando a cultura que foi se esquecendo um pouco. Além de ensinar da cultura, estão ensinando do conhecimento não indígena, para reivindicar seus direitos, para formar uma área específica voltada para sua comunidade. Nós que estamos nos formando não é para só pensar em si, para manter... além de se manter, ele possa contribuir para a comunidade também. 7) O que deve ser ensinado na escola da comunidade? O que deve ser ensinado na escola são os conteúdos não indígenas, do currículo da escola não indígena, e deve ensinar também a cultura indígena, para ele não se esquecer do que ele é. 8) Atualmente, como são definidos os conteúdos ensinados na escola em quem define? Hoje, quem escolhe são os professores não indígenas, que sentaram em um lugar e pensaram o que iam ensinar para o aluno. Agora, o conteúdo de séries iniciais, de primeiro
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ao quinto [ano], não foi definido ainda, e quem escolheu foram os próprios supervisores e supervisoras que estão escolhendo, mas não tem um conteúdo diferenciado para a escola indígena ainda. 9) O que é educação? A educação é um saber, é um conhecimento que os pais passam para os filhos. São os conhecimentos... porque a educação não é só na escola, a educação começa em casa. Geralmente os pais falam da sua história, como deve ser respeitado o próximo, como é que pode cumprimentar o próximo, como é que deve receber a pessoa que visita eles. Então, a educação se inicia a partir de casa, mas educação a gente também aprende na escola. Têm muitos conhecimentos que a gente não aprende em casa, mas aprende na escola. A educação é o que aprende na escola ou em casa. 10) Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Etnomatemática para mim é... cada povo tem sua matemática, tem sua forma de contar, tem sua forma de medir. Então, para mim, etnomatemática é a matemática do povo, é a matemática de cada etnia, de cada povo que tem sua forma de contagem, sua forma de medir, sua forma de conhecer outros tipos e contagem. 11) Qual é a relação entre etnomatemática e cultura? O que é ensinado hoje na escola é a matemática do europeu. E por essa dificuldade... geralmente os alunos indígenas tem essa dificuldade. Porque, a partir da matemática do povo ser ensinada, com certeza ele entenderia melhor essa matemática. Por causa de não ensinar a matemática do povo, a gente tem essa dificuldade de compreender a matemática europeia. 12) No seu ponto de vista, qual é a importância do projeto “Registrando e preservando saberes etnomatemáticos com o povo Paiter”? A importância desse projeto de registro seria... registro de matemática, seria muito bom porque, hoje, os sábios, os adultos, os curubey que a gente fala, só eles estão sabendo de forma certa, da contagem, da medida, da sua história. Por isso que essa importância tem que ser registrada, tem que ser publicada. Porque a escola tem que ter esse referencial dentro dela. Porque, a partir do momento que os adultos se forem, a gente já tem esse material na mão, a gente não fica com aquela dúvida. Porque os adultos hoje são bibliotecas... vamos supor que são bibliotecas. Só eles que conhecem a matemática e a sua história. Por isso, essa é a importância do registro. Tem que ser... tem que fazer esse registro mesmo. 13) Como ensinar os saberes e fazeres matemáticos paiter na escola? Falando com a língua primeiro, explicando a matemática da sua realidade, e também falar da matemática europeia, para que o aluno possa entender a matemática indígena, e possa também entender a matemática europeia. E nas séries iniciais, seria melhor a matemática do povo, para entender melhor.
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14) Quais são suas principais preocupações em relação às transformações na cultura do povo Paiter? Minha preocupação é com que os pais casem com mulher não indígena e gera um descendente já cruzado, vamos supor que um pouco índio e um pouco branco. A preocupação minha é que esse filho que surgiu possa casar novamente com a branca, com a mulher não indígena. A partir daquele momento que ele casar com a mulher não indígena, esse filho com certeza não vai ter meio-a-meio de indígena e de não indígena. Essa é minha preocupação, essa é a preocupação que eu tenho. E outra coisa também que, com essa mudança de família também pode acontecer de aquela pessoa não falar mais a sua língua, porque ele está convivendo com a pessoa que não é da realidade dele, que não fala sua língua... a língua pode ser extinta também, e a sua cultura. ENTREVISTA 5 Sujeito: PP4 Data: 22/05/2013 Local: Aldeia LP1 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP4, na sua concepção, o que é escola? A escola, como eu penso, é um espaço onde as crianças aprendem a ler e escrever. 2) Qual a função da escola na comunidade? A função da escola na comunidade é fazer com que a criança saiba ler, escrever e registrar as palavras na sua língua e na língua portuguesa. 3) Qual é a importância da escola na comunidade? A importância da escola estar na comunidade é que, antes, as crianças indígenas saíam da comunidade para ir para a escola não indígena, onde tinham muita dificuldade de aprendizagem, porque não sabiam a Língua Portuguesa. Já na comunidade, melhorou, porque professores indígenas já estão atuando nas escolas indígenas, o que facilita o aprendizado das crianças. 4) Na sua concepção, o que é educação? Educação é qualquer espaço, qualquer meio onde acontece a educação, seja dentro da escola ou fora da escola, como na família, na comunidade. 5) Por que você se tornou professor? Foi um caso de necessidade da comunidade. Eu não pensava em ser professor, mas a comunidade me chamou para ser professor da comunidade.
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6) Na universidade, você está realizando leituras e estudos sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Em cada grupo ou etnia, de acordo com as necessidades das pessoas, acontecem diferentes matemáticas. Como existe a matemática do europeu, nós indígenas temos também nossa matemática. 7) Você poderia falar um pouco sobre a etnomatemática do povo Paiter? No caso do nosso povo Paiter, nós tínhamos um diferente tipo de contagem, como através do tempo, que nós usávamos através da lua, das estrelas... e na contagem também usávamos sempre os dedos das mãos. 8) Qual a importância de se ensinar etnomatemática paiter na escola da comunidade hoje? É importante para nós porque, como a nossa matemática tradicional do povo Paiter... usávamos essa matemática. E quando não registramos, vai se esquecendo, os mais jovens. Por isso é bom registrar e aprender. 9) Quando se fala em ensinar etnomatemática paiter na escola, como deve ser esse ensino? Como você, como professor paiter, pode ensinar esse saber na escola? Como eu sou professor, esse ensinamento de etnomatemática na comunidade deveria acontecer por meio dos professores indígenas e sabedores indígenas também, que deveria explicar como era a contagem antigamente e como está sendo usada hoje. ENTREVISTA 6 Sujeito: PP5 Data: 01/06/2013 Local: Aldeia Gapgir – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP5, você trabalha com quais séries na escola da comunidade? Trabalho na Escola Sertanista desde 2002, e há quatro anos atrás eu comecei a trabalhar com uma turma de sexto a nono ano. E continuo lecionando nas disciplinas de Língua Materna e de Identidade Étnica e Histórica. 2) Então, sua atuação já se dá no espaço da educação escolar indígena propriamente dita, não só com um currículo não indígena, mas com componentes curriculares voltados para a educação escolar indígena. Nesse contexto, como você percebe a importância do projeto de extensão que propõe trabalhar com os saberes matemáticos do povo Paiter?
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A importância desse projeto para nossa educação escolar indígena é complexa, porque é uma oportunidade que está tendo agora para que a gente aprofunde mais o nosso conhecimento nos saberes indígenas, na etnomatemática principalmente. Até porque a gente não teve iniciativa ainda dentro dessa área. Já iniciamos a normatização da nossa escrita, a gramática paiter, e não essa parte da área da etnomatemática. Então é importante tanto para nós quanto para nossos alunos também, não só dentro da escola, mas dentro da comunidade, dentro do conhecimento tradicional. Como tem a participação dos mais velhos da comunidade, é um primeiro passo que a gente está tendo agora, de chegar nessa oportunidade de a gente iniciar esse processo de etnomatemática dentro da nossa comunidade. 3) Dado esse seu ponto de vista a respeito da importância do projeto, qual é a sua concepção hoje a respeito do que seja etnomatemática? Como você define etnomatemática? Dentro do meu conhecimento, também o que eu venho aprendendo desde a minha formação inicial até agora, estou no processo de finalização de minha primeira etapa de aprendizagem na minha formação no ensino superior. Então, na minha concepção, o que eu entendo de etnomatemática é que cada povo, cada grupo, dependendo de onde for, tem o seu modo de pensar, o seu modo de ver, de como calcular, de como multiplicar, de como quantificar, de como medir. Então, tudo isso faz parte da etnomatemática de um grupo. Estou falando apenas uma delas. E com certeza nós temos esses conhecimentos dentro da nossa cultura do povo Paiter. Então, eu citei alguns temas, algumas partes do que é etnomatemática. Porque muitas vezes as pessoas não sabem identificar ainda quais são os processos de etnomatemática dentro da sua cultura, e hoje eu identifico um pouco dessas partes que eu citei. 4) A partir dessa sua definição de etnomatemática, e considerando que já existem iniciativas, projetos iniciados, como o de iniciação científica em que o professor PP1 participa, com alguns resultados que já foram sistematizados, como você avalia a possibilidade de inserir esses conhecimentos em sala de aula, com os alunos? Isso é possível? Com certeza isso é possível sim de inserir dentro da nossa educação escolar indígena. Principalmente na política da educação escolar, no sistema da educação escolar indígena. Porque hoje a legislação garante isso. E nós temos que garantir mais ainda, para que isso aconteça na realidade, porque muitas vezes, como eu disse, até agora isso não foi inserido na grade curricular da educação escolar indígena, e principalmente na nossa educação escolar. Então é importante inserir isso, até para garantir o nosso trabalho, até para garantir o que nós estamos passando, o que nós estamos realizando dentro da escola, dentro da comunidade e para os alunos. Então, sem garantir, e a gente trabalhar, isso para mim não seria certo, vamos dizer assim. Então, só depende de nós, da gente valorizar que isso seja reconhecido nacionalmente dentro da legislação da educação escolar indígena. 5) Dentro desse contexto e desse movimento, como você percebe a importância e o papel dos mais velhos da comunidade? Dentro de tudo isso que eu acabei de falar agora, o papel dos sábios, como a gente costuma falar, é tão importante, porque sempre a gente está junto, sempre a gente está ligado, sempre a gente está perguntando o que nós não sabemos. Nós jovens, que estamos ainda no
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processo de conhecimento, no processo de aprendizagem própria, dentro da nossa cultura, a gente precisa ainda de apoio dos mais velhos, precisamos ainda dos conselhos dos mais velhos da nossa aldeia, quer dizer, da nossa cultura na verdade. Então, o papel dos mais velhos é fundamental no processo de aprendizagem, no processo da construção da política da nossa educação escolar indígena, dentro da nossa cultura. Então, pela minha experiência, eu diria assim que todos os processos que nós construímos nos outros trabalhos, na normatização da escrita do Paiter Suruí, e outros que virão, que a gente está pensando também, que seja bem vinda a contribuição dos mais velhos do nosso povo, da nossa comunidade. Então, a gente sempre está junto, para que nosso trabalho seja mais fortalecido, mais reforçado também dentro da nossa cultura. 6) A gente percebe que, ao falarmos de etnomatemática, a gente sempre está relacionando com a escola, ou seja, parece que esse é um espaço em que a etnomatemática vai se fazer presente. Nesse sentido, gostaria que você desse uma definição de escola. Na sua concepção, o que é escola? No meu modo de ver o que é escola, a escola para mim tem vários sentidos. A escola não é uma escola que está lá, plantada, feitinha, bonitinha, com estrutura legal. A escola também existe em vários lugares, em vários contextos: dentro da família, dentro de casa, dentro da comunidade, dependendo do nosso entender. Então, para mim a escola é tudo isso. Onde você está lidando, vivendo naquele meio. Muitas vezes a gente acha que o que está estruturado, construído e lá plantado é uma escola. Essa escola lá é apenas um espaço de sistematizar o nosso conhecimento, é um espaço de a gente mais discutir o que nós estamos vivendo a cada dia. Então, para mim a escola é essa, mas, como eu falei, é tudo o que nós estamos vivendo na nossa vida. 7) Nessa sua definição de escola, como um espaço mais amplo para além da estrutura física propriamente dita, como você visualiza o ensino de etnomatemática paiter nessa escola mais ampla? A etnomatemática paiter especificamente a gente não teve oportunidade, como eu disse no início da minha fala, de chegar, de como é esse sistema paiter. Mas sei que no meu conhecimento, no modo que a gente pensava, no modo que a gente organizava, no modo que a gente preparava, na construção da maloca, na roçada, na confecção do artesanato, tanto no trabalho masculino como no feminino, incluía tudo isso. Cada gênero entendia qual era seu trabalho naquele momento. Então, tudo isso seria etnomatemática para mim, a forma como cada pessoa via, no momento que estava realizando seu trabalho. Não só no trabalho, mas no modo de pensar também. Então, isso existia no nosso conhecimento. Para passar a entender como identificar isso tudo... como a gente entende agora... quais e como a gente pode identificar isso como etnomatemática. Então existia e existe ainda, e agora, como eu disse, é só a gente esclarecer, sistematizar e identificar a partir de agora, e dizer: isso é etnomatemática para o povo Paiter. ENTREVISTA 7 Sujeito: PP6 Data: 11/10/2013 Local: Aldeia Paiter Linha 09 – Terra Indígena Sete de Setembro
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1) PP6, por que você se tornou professor? Porque, como a gente fala, as crianças tinham muita dificuldade de aprender. Falo da minha própria experiência. Sem professor indígena, eu tive muita dificuldade de aprender. Meus alunos também estavam falando disso: Quando o professor não indígena fala, eu não entendo muito bem o que ele está falando, e não compreendo muito bem o que ele está falando. Então eu tomei uma decisão, precisava ter um professor indígena para esclarecer e ensinar melhor aos alunos, porque as crianças não vão entender e falar na língua portuguesa. Então, precisa ter um professor que saiba falar, que compreenda e fale dos dois conhecimentos. Então eu tomei essa decisão, vendo nossa realidade, porque tem muitos alunos daqui que concluem o Ensino Fundamental e vão para a cidade porque está sem professor na aldeia. Então eu escolhi ser professor para ajudar a comunidade. 2) Atualmente, como e quem define o que vai ser ensinado na escola de sua comunidade? Nós professores mesmo, porque nós mesmos fazemos o planejamento do tema que vamos ensinar aos alunos. Então, a primeira coisa que eu faço é perguntar para os mais velhos, no caso o meu tio. De acordo com a explicação dele, eu anoto algumas coisas e, de acordo com o que ele fala, eu trago aqui para a sala de aula e falo sobre aquilo que foi explicado. 3) E quando você está dando aula de matemática, como você escolhe os conteúdos? Eu escolho no livro didático. E nesse caso aqui [aponta para o quadro], eu estava explicando um problema de divisão. Então eu comparo com os números dos Paiter também. Vou trabalhando com os dois conhecimentos. No caso, hoje estava explicando a divisão, e um menino perguntou: - Professor, como eu posso saber dividir? Eu disse que ele pode imaginar assim, que tem quatro bananas para dividir por duas pessoas, com quantas cada um vai ficar? Aí ele compreendeu: - Ah, sim, como duas, cada um vai ficar com duas bananinhas. Então é assim, comparando com a realidade nossa, comparando os conteúdos. No caso de geografia, a gente está chegando na época da chuva. Então eu falo que a época da chuva é um período chuvoso, e a seca do rio é no período da seca, quando o rio baixa, e então a gente vai ficar sabendo que é o tempo da seca. Quando as folhas caem também, a gente percebe que está no tempo da seca. 4) Então, você busca trabalhar com a realidade dos alunos? Sim. Na biologia a gente tem mais facilidade, porque a gente compara a medicina com as ervas, as plantas. 5) Na sua concepção, o que é educação? Educação é ensinar a criança para dar os primeiros passos, para ela saber... educação é a criança aprender a ler e escrever, respeitar os mais velhos, e aprender a realidade da comunidade. É aprender a organização dentro e fora da comunidade. Porque a educação vem trazendo muita coisa, aquilo que se pode aprender. 6) Você acha que a educação ocorre fora da escola também?
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Com certeza. Porque a educação está dentro da casa dele também. O pai e a mãe ensinam o que ele pode saber. No caso, o pai ensina a plantar, pescar e caçar, ensina caçar lenha. Então, para mim, fora da escola tem uma educação. Quando uma criança vai com o pai caçar, lá mesmo ela vai aprender a como esperar o bicho que quer caçar, e assim vai aprendendo. ENTREVISTA 08
Sujeito: PP6 Data: 19/11/2013 Local: Aldeia Paiter Linha 09 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP6, você fez cursou o Ensino fundamental na cidade? Foi, foi na cidade. 2) E o Ensino Médio? Foi na cidade também. 3) Na escola agrícola? É, numa escola agrícola, num internato. 4) Você fez qual curso lá? Do primeiro até o terceiro ano. Lá era um internato de uma igreja. A escola funcionava só para os membros da igreja. Aí, como meu tio era reconhecido por aqueles membros da igreja, ele pediu para eles me darem um bolsa de estudar lá. Aí eles pediram para fazer um formulário, para perguntar sobre mim, como eu era. Aí eu mandei o formulário lá. Aí eles me chamaram. Aí eu fui lá. E como a escola era particular, cada aluno pagava seu estudo lá. E eu não tinha como pagar meu estudo lá, aí eu trabalhava na parte da jardinagem, limpava, cuidava da parte da jardinagem, depois eu cuidava da parte da horta. Então, isso cobria como pagamento do meu estudo. Três anos eu fiquei lá. 5) Outros alunos trabalhavam juntos com você para pagar o curso, ou só você? Indígena só era eu mesmo. Não indígena, tinha cinquenta que trabalhava lá. 6) Você começou a dar aula em que ano? Foi em 2009. 7) Você dá aulas para quais séries? 4º e 5º ano.
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8) Com quais disciplinas você trabalha na escola? Português, Matemática, Ciências, Geografia, História e Língua Materna. 9) O que você entende por educação escolar? Educação escolar para mim é onde educa as crianças, como na sala de aula, para ler e escrever, e outras atividades. Onde possa aprender na parte de teoria, e também a parte prática. 10) Além da educação escolar, pode-se falar em uma educação tradicional. O que você entende por educação tradicional do povo Paiter? Educação tradicional do povo Paiter é onde a gente tem educação dentro da nossa cultura, como o pai pode educar o filho, o tio pode educar o sobrinho, o avô e a avó podem educar a neta e o neto. Então, a gente tem uma educação tradicional que é própria. Vários de nossos parentes, como tio, tia, tio pela parte do pai, parte da mãe, podem me educar. Então, todos os parentes que estão próximos de mim têm autoridade, tem autonomia de me educar. 11) Você, como professor, como membro da comunidade, como você vê hoje a relação da escola na aldeia com a educação tradicional? Que relação existe entre educação escolar e educação tradicional hoje na aldeia? A educação escolar é onde a gente trabalha na parte de teoria, e em cada final de bimestre, a gente coloca em prática, tipo uma apresentação de teatro, como a gente teve uma apresentação de como a menstruação passou para a mulher. Então, a gente fez uma apresentação, demonstrando como isso aconteceu no passado. Então, comparando isto, os professores não indígenas fizeram uma apresentação da parte da educação escolar. Então, em cada bimestre, a gente tem uma apresentação da parte da educação tradicional e outra da educação escolar. 12) E quanto à matemática, quando falamos matemática ou matemática escolar, o que você entende por matemática escolar? Entendo a matemática escolar como sendo onde tem a presença de matemática didática, como nos livros que são publicados pelo governo. Então esses livros que a gente está trabalhando, para mim é uma matemática da educação escolar. 13) O que você ensina de matemática escolar aos seus alunos? Eu ensino sobre os números, no caso a subtração, a adição, a multiplicação e a divisão. Então, ensino meus alunos a educação escolar, através dos livros produzidos pelo governo, livros didáticos. 14) Então, os conteúdos que você ensina são aqueles que estão no livro didático? Você segue o livro didático, para dar sua aula?
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Isso. Agora, de matemática tradicional, eu vejo assim, desse lado, que a gente tem matemática dentro da nossa cultura também, como na produção das coletas, que é onde a gente pode coletar nossa coleta na roça. Pode ser os frutos que a gente coleta na mata. Tem as sementes que a gente coleta na mata para plantar. Tem os produtos da roça mesmo. A quantidade que a gente vai plantar, dos produtos que a gente vai plantar na roça. No caso do milho, a gente tem uma quantidade certa para plantar o milho, para que eles possam futuramente germinar certo, e bem fértil, bem produtiva. Se a gente ultrapassar aquela quantidade de plantar, de sementes, elas não vão produzir bem. Então, a gente tem uma quantidade certa para plantar o milho, quantidade certa de plantar os pedaços de cará, de inhame, batata, a gente tem a quantidade certa de cada produto. Amendoim. Então, se a gente ultrapassar a quantidade, não vão produzir bem futuramente. 15) Que outros saberes matemáticos você considera que existem na cultura paiter, para além destes referentes à quantidade de sementes no plantio? Acho que temos muito com relação à matemática, como na relação com a natureza. Na natureza, temos a época da chuva, época da seca, onde, na seca, temos a presença de um tempo, no caso, tipo calendário, em que mês vamos fazer derrubada, em que mês vamos fazer queimada, em que mês vamos plantar. Dentro da natureza, temos o canto do pássaro, como um marcador de tempo. Tem época da seca que temos um pássaro que canta na hora e no lugar que ele vai dormir. Antes de subir numa árvore, ele canta. Isso é na época seca. Agora, na época da chuva, ele não canta. Ele deixa de cantar e sobe sem nada de assovio. Então, tem vários tipos de matemática que existem dentro da cultura. Época da fruta, a gente sabe, qual tempo vai ter as flores dos frutos, que futuramente vai ser comida pelos próprios índios. Então, a gente já sabe o tempo certo das flores, o tempo das frutas, o tempo da colheita das frutas. Então, esses são marcos do tempo da matemática. Além disso, tem muitas outras que eu posso dizer. Tempo da seca é quando temos mais facilidade de matar os animais. É que nessa época tem animais bem gordurosos, bem de saúde. É uma época certa para matar. E tem época que o animal está magro, porque não se alimenta bem naquela época. Na época da fruta, vão se alimentar bem. Na época que não tiver fruta, naquela época, naquele tempo, o animal não vai se alimentar bem, e por isso vai ter pouca carne, pouca gordura. Então, além disso, tem muitos exemplos matemáticos. 16) Vou citar um termo e gostaria que você dissesse o que significa para você. O que você entende por etnomatemática? Etnomatemática é onde a gente tem a nossa própria matemática, dentro da nossa cultura. Porque no espaço e no tempo, a gente tem etnomatemática, a gente tem nosso próprio conhecimento. No caso da questão da medida, medida de espaço, a gente tem na nossa própria cultura, a gente tem forma de medida através dos marcos. Então, a medida do não indígena é medida através da quilometragem, pelo metro, centímetro, essas coisas. Então, a gente tem nossas medidas através dos marcos, dos lugares. Como posso dizer um quilômetro? Eu posso comparar um lugar, que tal lugar é marcado um quilômetro, comparando um lugar. Posso falar: - Ah, tal lugar, matei um porcão lá. Ah, posso dizer, daquele lugar, mais para frente, tal lugar, coloquei um saco de castanha. Então, a gente marca uma medida através de um lugar, do espaço de um lugar. Então, na parte da medida mesmo, a gente pode usar muito na construção de casas. No caso do metro, centímetro, a gente pode usar muito na construção de casas. A gente usa pela quantidade de pessoas que vai morar naquela casa. Então, a gente faz uma medida certa através da quantidade de pessoas. A gente tem a presença de figura geométrica nos artesanatos, que tem a presença
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das listas, as figuras desenhadas nos artesanatos, como na cesta, na flecha, onde a gente faz uma pena de uma arara, que a gente possa cortar certinho, na medida, para colocar na flecha. Tem que colocar na medida certinha da flecha, para que a flecha vá alcançar até o alvo. Se não colocar certinho a medida certa daquela pena de uma ave, ela não vai alcançar o alvo que a gente está querendo acertar. A gente tem que trabalhar muito bem na parte de geometria por esta questão. 17) Você está falando de vários saberes matemáticos presentes na cultura. Minha pergunta agora é: Qual é sua opinião quanto a se trabalhar também com esses saberes matemáticos na escola da aldeia? Seria muito bom trabalhar em cima desses materiais, porque, eu, como jovem, muito jovem mesmo, eu queria tanto aprender, para trabalhar com meus alunos. Mas a questão é que hoje em dia, a gente tem poucos materiais. Então, quem pode me ensinar sobre isso seria os mais velhos. Então, a gente precisa dos mais velhos para trazer esses conhecimentos para dentro da sala. Para que as crianças possam aprender. Então, na minha opinião, eu queria muito aprender a praticar, colocar em prática essas atividades, porque a teoria eu posso explicar muito bem para as crianças, mas a prática eu não sei muito bem. Então, por isso eu queria tanto a presença dos mais velhos para colocar em prática esses conhecimentos com os alunos. 18) Na sua opinião, como está a relação dos jovens e das crianças com os conhecimentos tradicionais? O que eles estão conhecendo ou sabendo? Olha, eu mesmo não tenho habilidades para fazer aquela flecha, colocar as peninhas, tudo enfeitadinho e bonitinho, porque eu nunca tive... fazer isso. Eu acho que a maioria dos jovens tem interesse em aprender isso. Mas cabe o papel do educador ou do mais velho que possa dar oficinas para a gente, para aprender a fazer aquilo. Tem alguns projetinhos aí, da FUNAI mesmo, onde as meninas da FUNAI vêm fazer um levantamento de projetinhos para as mulheres da aldeia, onde os mais velhos ensinam a fazer os balaios, cestos, redes e a panelinha de barro. Então, eles estão fazendo o levantamento, estão resgatando. De hoje estou falando. Mas até agora, não teve esse levantamento da parte do homem, como a gente possa fazer flecha, cocar e outros. 19) Na sua opinião, por que os jovens de hoje não dominam mais esses saberes? Acho que é falta de uma pessoa que vai ensinar o mais novo. Então, eu acho que é falta dessa pessoa que orienta, acho que é isso. 20) Por que você acha que está faltando essa pessoa? Os velhos não têm interesse em ensinar? Os mais jovens não procuram os mais velhos para aprender? Eu acho, assim, que hoje tudo é... acho que para eles o trabalho é vão. Hoje, todos querem saber de ganhar um troquinho. Então, eles não vão querer trabalhar sem ganhar nada. Então, isso é prejudicial. Agora, se contratar um educador só para ensinar aquilo mesmo, com certeza ele poderia chegar até aqui na sala, para ensinar aqui. Então, isso é o que dificulta. 21) Na sua opinião, por que é importante continuar ensinando esses saberes para as novas gerações?
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É muito importante a gente aprender a resgatar essa cultura. Mas... É por isso que nossa cultura está acabando, porque é falta de valorização. Como eu estou falando, o mais velho não vai vir à toa aqui para ensinar o mais novo, vão querer alguma coisa. Então, seria muito bom se ele pensasse futuramente, como mais para frente os netos, os filhos, que vão ter muitos problemas de voltar à cultura. Porque, se não praticar agora, hoje, porque os velhos têm tempo ainda de ensinar nós, jovens, mais para frente a gente não vai ter chance de aprender, porque cada vez mais os velhos estão acabando, falecendo. E se acabar tudo, com certeza a cultura vai acabar também. Então, para mim, seria muito melhor que eles vissem essa questão. Porque, a partir dali, eles podem: - Ah, vamos resgatar nossa cultura, vamos ensinar os mais novos para futuramente possam enriquecer nossa cultura. Então, há uma falta de organização, acho que é falta de organização. Se organizasse, com certeza o mais velho ia voltar a ensinar os alunos aqui dentro da sala. Acho que é falta de organização. Não é falta de interesse dos mais jovens. Os jovens têm interesse de aprender, mas falta o educador, o ensinador. Então, é falta de organização mesmo. 22) Na sua opinião, o que é escola? É onde o educador vai ensinar o aluno, no caso a ler e escrever. Não é só a ler e escrever, mas sim educar o aluno. Onde ele possa ensinar o aluno a como escrever. Não só escrever, mas como respeitar as pessoas, o que é certo e o que pode fazer, e também aquilo que é errado e não pode fazer. Então, a escola é o lugar onde vai ensinar e capacitar o conhecimento do aluno, da criança. 23) Isso não incluiria, como você mencionou anteriormente, a escola como um espaço para ensinar a fazer flecha, cestos, pinturas, conhecer os mitos, além de ser um lugar para se ensinar a escrever, a fazer contas e a ler? Não deveria ser um lugar para também se ensinar esses saberes tradicionais que você mencionou anteriormente? Sim. 24) E essa escola existe hoje? Como é a escola atual? Isso eu posso falar assim... essa da cultura mesmo não é muito praticada não, falando em prática. No caso da pintura, a gente não pratica isso na prática ainda. A gente só [inaldível] a ler, a escrever, só na parte de teoria, só na parte teórica... contar os mitos, qual o significado das pinturas do corpo, contagem dos números tradicionais, mas em prática a gente não colocou ainda, mas sim na teoria a gente ensina os alunos. 25) Então, na sua opinião, é como se a escola ainda fosse incompleta? Isso. 26) Então, o que seria a escola ideal, na sua opinião? Ideal seria se tivesse esse ensino, completo, no caso, o conhecimento tradicional e o conhecimento não indígena. Se tivesse esse ensino, seria o ideal. Também seria melhor para a aprendizagem dos alunos, porque a gente não tem parte prática da atividade da cultura tradicional, a gente só explica em parte de teoria. Então, se tivesse tudo em conhecimento que é aplicado na escola, seria ideal, muito bom. Agora, como eu estou
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falando, é incompleto, porque a gente não tem muita [inaudível] completa de ensinar essas atividades para os alunos. No caso da pintura do corpo, não é ensinada aos alunos na sala, a produção da cesta, da flecha... a gente não chegou ainda a trazer esse conhecimento para dentro da sala. Então, isso está em falta, para colocar em prática. 27) Quais são suas preocupações em relação à cultura paiter? Minha preocupação da cultura é perder a cultura. 28) O que isso significaria? O que seria perder a cultura? Deixar de praticar. Porque, como vejo muitas outras etnias indígenas, que deixam de praticar a sua cultura, eles não têm aquela sua tradição de indígena mesmo, porque eles deixaram de praticar a sua cultura. Então, o que nos valoriza mais hoje em dia é através da nossa cultura, ali que vai mostrar que somos realmente índios verdadeiros, através da prática de nossa cultura. Então se a gente não usar, praticar nossa cultura, com certeza a gente vai perder nosso valor, não vamos ter mais a valorização de ser indígena paiter, porque não estará tendo a cultura tradicional. Então, se a gente praticar nossa cultura tradicional, aí que vai fortalecer futuramente a nossa origem, a qual a gente é. Então, se a gente deixar de praticar isso, a gente não vai ter mais aquele espírito de ser indígena. É por isso que minha preocupação é essa, da perda da cultura. Ali que a gente vai perder nossos direitos, ali que a gente vai perder nosso território. Esse é meu medo da perda da cultura. Porque, se a gente perder tudo isso, a gente não vai ter mais aquela liberdade que a gente tem aqui na nossa terra, na nossa moradia. Então esse é meu medo. Eu vejo comparando com os outros, outras etnias, porque quando eles perderam suas culturas, perderam a terra, perderam suas culturas tradicionais, perderam tudo. 29) Quando você diz praticar a cultura, o que está incluído nessa expressão? Isso está incluído no movimento, no movimento mesmo, nas festas tradicionais... a gente tem festa de plantação, festa de primeira colheita do plantio, a festa principal de nossa cultura que é a festa de Mapimaí, onde se relembra os momentos em que se iniciou nossa origem. Então, essas são as relações que eu estou dizendo, as práticas da cultura. E a gente tem que praticar. Também está incluído dentro da nossa alimentação também, porque a alimentação, se a gente não mantiver nossa alimentação tradicional, a gente vai perder também nossa cultura. Se a gente está se alimentando só da alimentação não indígena, isso é que está adoecendo a gente aqui. Se a gente só se alimentasse na cultura tradicional, como o alimento não tradicional, nós estaríamos fazendo muito bem a nossa saúde. Então, tem muitas coisas que a gente pode voltar a praticar na nossa cultura. Não é só a festa, não é só a alimentação, mas sim também a maneira de convivência. No caso, essa maneira de convivência, estou dizendo assim uma maneira de organização, tipo a comunicação de um ao outro, comunicação com a família. Em síntese, com certeza tem muitas coisas para resgatar, para praticar a cultura tradicional. ENTREVISTA 9 Sujeito: PP7 Data: 19/11/2013
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Local: Aldeia Paiter Linha 9 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP7, em que ano você começou a dar aula? No ano de 2003. 2) Atualmente você dá aulas para que séries? Sexto ao nono ano. 3) Você trabalha com quais disciplinas? Língua Materna e Identidade Étnica e Histórica. 4) Na sua opinião, que tipo de escola existe hoje na comunidade? Falta escola, falta mais alguma coisa para completar, para que a escola fique bem mais adequada para o ensino aos alunos indígenas. 5) Na sua opinião, o que está faltando hoje na escola? Falta ampliação das salas, toda a estrutura da escola, como... durante nosso trabalho aqui dentro da aldeia, nós não temos todos os equipamentos para dar aula, como material didático e material pedagógico, principalmente dentro da língua materna. Como eu trabalho na língua materna? Através da pesquisa. Isso dificulta muito nosso trabalho. E se tivesse material didático, seria mais fácil para eu trabalhar, porque eu tenho planejado muito, antes de eu ir para meu trabalho, com o mais velho. Escolhe-se um tema, um conteúdo, e com esse conteúdo eu vou ao sabedor da aldeia. Daí, todas essas pesquisas eu trago para a sala de aula para trabalhar com meus alunos. 6) Então na sua opinião os mais velhos podem contribuir com a educação escolar na aldeia? Podem. Hoje os velhos são muito... vamos dizer... peças raras para nós, peças muito importantes, devido a contribuírem com o ensino da língua materna, tanto com os sons, como com todos os fonemas da língua materna. Durante meu trabalho, sempre precisei de apoio dos sabedores, como no conto de mitos do [povo] Paiter. 7) Você acha que hoje os mais jovens, as novas gerações, estão sabendo os conhecimentos tradicionais que eles deveriam saber? Sem sabedor, não tem como trabalhar, porque eu sou sabedor da língua materna, só vou trabalhar na escrita, eu não vou trabalhar com conhecimento tradicional, eu não sei conhecimento tradicional. Por isso, durante meu trabalho, o sabedor tem um papel muito importante para mim, porque vai contribuir com conhecimento tradicional, para eu passar esse conhecimento aos alunos. 8) Considerando sua experiência como professor e sua formação, como você define educação? O que é educação para você?
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Eu, como professor, entendo que educação... Bem antes a gente educava os filhos, assim como meu pai falou assim para mim que tínhamos a educação tradicional, e hoje nós temos outra educação, a escolar, da educação escolar. E bem antes do contato, nós usávamos a educação tradicional. Mas como isso acontecia? Diariamente os pais educavam os filhos: - Esse aqui é seu parente, você não pode fazer isso para ele. Então, tudo o que era de bom com relação à família, o pai orientava o filho. Mas hoje, a educação escolar já é outra visão para nós, já é uma outra visão. Então, educação escolar é tudo o que a gente enfrenta da educação dentro da escola não indígena. Isto eu entendo sobre educação. 9) Nesse sentido, como você define escola? Escola é um local onde os alunos vão estudar, buscar os conhecimentos ocidentais. Mas, comparando com nossa tradição, não existia escola, escola para nós era a nossa casa, não tinha um lugar assim isolado fora de casa. Então, existe um pouco de diferença entre a escola não indígena e a escola tradicional. Escola era a nossa casa, antes, e hoje a escola já tem um lugar apropriado para os alunos. 10) Então, essa escola, esse lugar específico hoje que se chama escola, qual a sua importância para a comunidade? A importância da escola para a comunidade hoje é que ela passa conhecimentos tradicionais e não tradicionais. Hoje, o povo Paiter não define muito bem a escola. Quem pode passar esses conhecimentos aos alunos são os professores que entendem. Hoje, temos professores contratados pelo estado, e os professores são os pesquisadores da comunidade ou do povo. E esse professor pode passar esse conhecimento aos alunos. E a importância da escola para nós é para valorizar a nossa cultura, que está sendo deixada de se valorizar, e para passar conhecimentos às gerações. 11) Quando você diz valorizar a cultura, como a escola, esse lugar aqui, específico da educação escolar, pode contribuir para valorizar a cultura paiter? Dentro do currículo das escolas indígenas, nós temos uma disciplina de Língua Materna, e Identidade Étnica e Histórica que é uma disciplina de História. Através dessas disciplinas, vamos desenvolver projetos, juntamente com a comunidade. Através dessas duas disciplinas, nós vamos ter conhecimentos tradicionais e não tradicionais, comparando duas culturas, a nossa cultura e a cultura da língua portuguesa. 12) E em relação ao ensino de matemática, como está ocorrendo hoje na escola da comunidade? Como eu sou professor de língua materna, eu trabalho dentro da disciplina da língua materna. Trabalho com a escrita, como se escreve um na nossa língua, como se escreve dois na nossa língua, até dez. E dentro da disciplina de Identidade Étnica e Histórica, trabalho como tradicionalmente media o espaço, como media o tempo. Vem aquela história de como media o espaço. Então, hoje na Identidade Étnica e Histórica, o professor busca essa pesquisa. 13) Como você define cultura tradicional paiter?
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Cultura tradicional paiter é toda a cultura para nós. Eu defino assim: cultura é aquele elemento que prevalece coletivamente. Isso é cultura para nós. 14) E o que é etnomatemática? Etnomatemática são conhecimentos nossos próprios. Nós temos nossos próprios conhecimentos, frente aos conhecimentos ocidentais. Como eu estava falando, nós temos o número um, com relação à nomenclatura dos números. Isso não é um nome, mas tem um significado de cada número. Um é um, apenas um. Dois quer dizer um par. Três, um par e meio, significa tudo isso. Isso é conhecimento tradicional nosso. Nós temos nosso próprio conhecimento, que seria etnomatemática. Nós temos nosso próprio conhecimento sobre medida de espaço, de tempo. Tudo isso para mim é etnomatemática. 15) Qual a importância da escola ensinar, além dos saberes não indígenas, esses saberes matemáticos da cultura paiter? Além da matemática não indígena, nós, povo Paiter, precisamos dos conhecimentos nossos mesmo, para prevalecer nosso conhecimento, para ficar como registro da memória, para as gerações não esquecerem da história da nossa contagem, história da nossa matemática tradicional. ENTREVISTA 10 Sujeito: PP8 Data: 19/11/2013 Local: Aldeia Paiter Linha 9 – Terra Indígena Sete de Setembro 1) PP8, há quantos anos você é professor? Eu comecei a lecionar na escola, como professor... primeiramente comecei a partir do curso do IAMÁ, em 1992. Então, eu comecei a partir desse curso, e depois o pessoal me convidou. Então, até hoje estou trabalhando na sala de aula. Naquele tempo eu trabalhava sem receber salário. Naquele curso, eu participei durante três anos, e depois eu fiquei parado mais dois anos, e eu não tinha escolaridade naquela época. Então eu fiz o provão no supletivo, consegui passar e peguei meu certificado. E aquele certificado me serviu para ser professor. Então, o governo do estado me contratou considerando aquele certificado que eu consegui passar no supletivo. 2) Atualmente você dá aulas para quais séries? Atualmente eu dou aula para primeiro a terceiro ano. 3) Em quais disciplinas? Bom, para mim muito facilita ensinar as crianças, os alunos, em primeiro lugar a minha língua paiter. Isso facilita muito o aprendizado das crianças. As crianças entendem quando falo na minha língua, e assim eles dominam a língua portuguesa. Eu mesmo ensino as crianças na minha língua, depois eles entendem na língua portuguesa.
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4) Considerando essa sua experiência como professor, como você define escola? Escola... eu estou pensando futuramente na minha escola. Minha comunidade está pensando muito em uma educação melhor, com ensino de qualidade para nossas crianças, para a gente resgatar nossa cultura, nossa língua, que deixamos muito para trás. Hoje em dia, as crianças usam muito as palavras novas, e a gente deixou as palavras novas... não como era antes, como a gente usava. Então, essa é a escola que a gente quer hoje. Então, essa é a escola que minha comunidade quer hoje. Uma escola com qualidade diferenciada. 5) Considerando isso que você disse, que com o tempo foi se deixando de usar as palavras que eram usadas antes, na sua opinião, o que levou as pessoas paiter a deixarem de usar a língua e de conhecer as tradições? Hoje em dia, as crianças estão vendo muito a cultura do branco. Por isso, esqueceram um pouco e deixaram para trás o que são delas. Então, a gente precisa, nós professores índios, precisamos pesquisar mais o que era nosso, porque nós, professores, precisamos muito ver esse problema que a gente tem hoje. Porque nós professores índios precisamos mostrar a nossas crianças, através das pesquisas com nossos velhos. Isso é o que estamos vendo hoje. 6) Considerando essas mudanças que você mencionou, com a língua e as tradições, o que você acha do ensino de saberes matemáticos não indígenas na escola da aldeia hoje? Hoje, estou vendo que minha comunidade reclama, porque quer que seus filhos aprendam o cálculo, as contas da matemática, como calcular a conta, e isso a comunidade quer que seus filhos aprendam. Porque hoje vivemos no mundo do branco, e a gente precisa. Ao mesmo tempo, para mim, professor índio, é muito importante também a nossa matemática, para conhecer como era nossa matemática. Então, essa também é minha preocupação com as crianças, para que elas aprendam. 7) Você considera que a maneira como essa escola aqui está trabalhando hoje com o ensino de matemática é suficiente para atender essa necessidade de trabalhar com conhecimentos não indígenas e conhecimentos da tradição? Ou falta alguma coisa que é necessário melhorar? Não professor, para mim está bom. Porque o professor não índio está trabalhando com a matemática. Então, ao mesmo tempo, a gente explica como é o cálculo da matemática na nossa língua e nosso aluno entende melhor. E através disso ele domina como é o cálculo da matemática. Isso é o que a gente ensina aos nossos alunos para dominar a matemática. ENTREVISTA 11 Sujeito: PP9 Data: 24/07/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 1) PP9, onde você estudou ao longo de sua formação escolar?
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Estudei na aldeia mesmo, lá na aldeia Lapetanha. Quando a FUNAI estava... teve a educação naquele tempo... tinha uma escola lá na aldeia. Estudei lá. Depois, quando estava fazendo a segunda série, estudei na zona rural. Aí, terminei o primário lá. 2) Então, você fez a primeira série na aldeia, na escola da FUNAI, e depois, da segunda série em diante, você foi para uma escola rural? Sim. 3) Você aprendeu a ler e escrever na escola da FUNAI? Sim, na escola Tancredo Neves, dentro da aldeia mesmo. 4) Quem eram os professores? Naquele tempo, quando eu estudava, era o índio Terena, e depois o Renato [Suruí]. 5) O índio Terena ensinava em que língua? Português. 6) Então você aprendeu a ler e escrever em português? Sim. 7) Quantos anos você tinha, na época? Uns nove anos. 8) Há quanto tempo você é professor? Eu iniciei a dar aula em dois mil. 9) Você fez o Projeto Açaí? Eu fiz. Fiz o magistério indígena. Terminei meu Ensino Médio lá. 10) Por que você se tornou professor? Porque, lá onde eu morava... eu morava na [Linha] Doze, né. Aí não tinha professor lá. Aí eu fui contratado para ser professor lá. Estava faltando professor indígena lá. Aí eu fui contratado. 11) Você começou a dar aula antes ou depois de fazer o Açaí? Antes. 12) Você terminou o Açaí em que ano? Em 2006.
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13) Hoje você dá aula para quais turmas? Agora eu estou dando a disciplina de língua materna, da língua do povo Paiter... e estou dando aula para sexto ano, sétimo, oitavo e nono. 14) Só língua materna? Língua materna e identidade nossa. 15) Considerando sua experiência e sua formação, como você define educação? O que é educação? Eu vejo a educação assim... a gente não só aprende na escola. A gente aprende também na sociedade. Através da convivência com a sociedade, a gente aprende muitas coisas também. E a gente também tem... aprende também na escola... como... a gente aprende aquele conteúdo que é lecionado para dar para os alunos, ensinar para os alunos. A gente aprende isso lá. Agora, aquela experiência de vida mesmo a gente aprende na sociedade. Isso é educação para mim. 16) O que é escola? Escola é um espaço que a gente... que ensina ao aluno aquilo que estou falando, aqueles conteúdos... ensinar conteúdos para aquelas disciplinas. No caso, assim, disciplinas de português, matemática... aquelas matérias. 17) Também considerando sua experiência e, principalmente, sua formação na universidade, pois você já deve ter lido sobre e estudado esse assunto, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Etnomatemática... dentro da universidade mesmo eu consegui esse conhecimento. Antes de entrar na universidade, eu não sabia o que era etnomatemática. Etnomatemática é... foi muito bom para mim, porque, a partir desse conhecimento eu sei: “Ah, cada povo tem sua matemática”. Não é reconhecida, mas a partir daí que a gente... Não só na sociedade não indígena, mas dentro da sociedade indígena existe matemática. Cada povo tem a sua matemática. Aí eu percebi: “Ah, cada povo, cada grupo tem a sua matemática”. Aí, como eu vejo também que dentro da minha sociedade tem matemática... só que não é escrita... porque não foi escrita ainda... mas existe matemática lá. E a partir... quem vai fazer essa matemática do nosso povo... quem vai fazer essa pesquisa encima desse... da matemática do povo dele. 18) A Constituição brasileira de 1988 prevê o direito dos povos indígenas a uma educação escolar bilíngue, intercultural e diferenciada. Na sua opinião, a educação escolar existente na sua aldeia atualmente está de acordo com as características previstas na constituição? Para falar a verdade, professor... eu acho que... não está do jeito que está... não está do jeito que a constituição está amparando o direito à educação diferenciada dos povos indígenas, porque... essa lei está muito bem bonita, mas na prática a educação não está do jeito que
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está garantido na lei. Porque eu vejo mesmo... como eu sou professor, eu vejo que não está de acordo com a lei... assim, não está sendo realizada do jeito que a lei garante. 19) Você pode explicar como os mais velhos, os sábios, podem contribuir para a educação escolar na aldeia? Ah, sim. Eles podem contribuir na... O papel desses curubey é muito importante dentro da sociedade porque eles têm muito conhecimento sobre o nosso povo. Nós, geração nova, não temos muito esse conhecimento. Mas como eles já viveram isso lá atrás, eles são nossas bibliotecas, nossos... como eu posso dizer?... nossas bibliotecas... neles estão todos esses conhecimentos. Por isso, o papel deles é muito importante dentro da sociedade. Para mim, eles podem contribuir com a escola, ou no espaço da aldeia mesmo, como é a vida do povo Paiter, como... dando uma experiência de vida para os mais jovens. Isso é fundamental e muito importante. 20) Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O que o povo Paiter espera da escola na aldeia? O povo Paiter espera dentro da aldeia do jeito que eles querem. Como? Com a cara do índio. Respeitando, assim... ter autonomia... ser dirigida pelos índios. Eles não querem que o funcionamento da escola venha de fora. Eles querem que, a partir dali mesmo, nasça e do jeito que eles querem seja, com um funcionamento como... com uma merenda diferenciada, não mais aquela merenda de alimentos de não índio. Dali mesmo, a merenda pode ser carne de caça, chicha na merenda... e assim, tornar mais para o tradicional. E também aplicar mais os conhecimentos, igual para igual com o conhecimento não indígena, aplicar dentro da sala de aula. Agora, por que todas as escolas indígenas estão aplicando mais os conhecimentos do não indígena e muito menos ainda o conhecimento do povo dentro da escola? Não está do jeito que os índios querem. Falta muito para melhorar. 21) Você poderia explicar como era a educação do povo Paiter antes do contato? A educação do povo Paiter antes do contato já veio de lá... desde a criação da humanidade. A educação era transmitida assim: do pai para o filho. E também alguma coisa se aprende dentro da sociedade, da comunidade. Mas quem dá mais educação mesmo para o filho é o pai e a mãe. E alguns, eles aprendem dentro da sociedade, dentro da comunidade. 22) O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola na aldeia? Para falar a verdade, no meu ponto de vista, está diminuindo muito. Porque acho que os pais não estão muito dando essa educação tradicional para os filhos... deixando eles crescerem... e poucos pais dão conselhos para eles... não são todos. No meu ponto de vista, está muito pouco. Por que eu vejo isso? Antigamente, através da educação que o pais estavam passando para os filhos, os filhos não faziam tanto as coisas erradas, porque o pai dizia: “Ah, não pode fazer isso! Nossa cultura não é isso! Se fizer essas coisas, você não é gente! Quem quer ser gente de verdade, não pode ser mal educado! A pessoa que quer ser gente mesmo de verdade tem que ser educado, respeitar os outros, respeitar os mais velhos, respeitar os seus próximos!” Não é só respeitar o pai. Tem que respeitar todos. A pessoa assim era “Ah, fulano é gentil. Ah, fulano é bem educado!” Ele era bem falado dentro da aldeia. Agora, aquela pessoa que fala mal, aquele que briga, aquele que fala na cara da pessoa, que faz aquela bagunça... não era bem falado dentro da aldeia não: “Ah, fulano é
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isso, fulano é aquilo”. Então, hoje, como o pai não está mais passando educação para o filho, hoje a nova geração está bem confusa. Por isso, eu vejo isso... a partir disso, o que eu vejo é que a nossa educação não está bem aplicada. Está acabando. Porque as novas gerações estão seguindo o modelo do não índio. Assim... falando frente a frente... isso não é do nosso costume. Isso não é ser gente, gente que quer ser respeitada dentro da sociedade. Isso não é papel dela. 23) Do seu ponto de vista, quais foram as alterações que a cultura do povo Paiter sofreu após o contato? Ocorreram muitas mudanças dentro da cultura. Porque, na nossa cultura, nós nos casávamos com nossas sobrinhas mesmo, que já eram para ser nossas mulheres mesmo. A gente não segue essa cultura mais. A gente está casando com qualquer... assim... que não é mulher dele... assim... não indígena, ou mulher do outro, da outra etnia. Até as festas tradicionais estão sendo diminuídas. Não estamos fazendo mais. E até aquela cultura da caçada mesmo está... quase acabou. Está só vinte por cento, dez por cento, porque, quando o Suruí caçava, ele dava para o sogro, dava para o cunhado... assim... distribuía tudo, com a família toda. Hoje, não acontece isso mais. Hoje, se matar um bicho, pode dar um pedacinho, mas não é para todos. Pode ser só para o sogro. Antes, a pessoa distribuía tudo. Matava um bicho e chamava a comunidade para distribuir. Hoje não acontece isso mais. Dificilmente acontece isso. Então, muitas coisas mudaram dentro da cultura do povo Paiter. 24) Você considera a escola na aldeia como um elemento positivo ou negativo para a cultura do povo Paiter? Aí depende, professor. Para mim ela é um elemento positivo também. Porque é onde a gente pode... eu mesmo... como a comunidade não está fazendo mais festa, não está fazendo mais aquela cultura, eu mesmo uso o espaço da escola para fazer esse trabalho dentro da sala de aula. Porque eu ensino aos alunos a música e a dança, como a gente caçava. Falo na teoria primeiro e no outro dia levo os alunos para fazer tudo o que eu falei na sala de aula. Então, aí depende, professor, se a escola pode ser um elemento bom. Se o professor não estiver trabalhando do jeito que a comunidade quer, pode ser negativo para a comunidade. 25) Que tipo de conhecimento ou saberes devem ser trabalhados na escola da aldeia? Como nós vivíamos antes. Conhecimentos sobre como nós vivíamos antes. Como era nosso território antigamente. E como os clãs se organizavam antes do contato com não indígena. E como eram os guerreiros, se era por clã, se era misturado mesmo. E como funcionava o casamento. E qual pessoa tinha mais mulheres, se era aquele guerreiro ou só o chefe. Não só esses conhecimentos. Tem vários conhecimentos que a gente pode aplicar na escola. 26) Ainda a pouco, você falou de matemática e etnomatemática. Voltando a esse assunto, como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de sua comunidade? O ensino de matemática deve ser... aplicar aquele conhecimento da matemática daquele povo. Por quê? Porque os alunos, os alunos mesmo, não conhecem aquela matemática do
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nosso povo mesmo. Falta aquele... falta nós professores pesquisarmos, escrevermos e aplicarmos na sala de aula, com os alunos. Como a gente tem muito pouco esse conhecimento da matemática, a gente não aprofunda muito isso aí. E falta muito esse... a matemática do povo Paiter, para pesquisar e fazer um livro didático para os alunos. Porque a matemática do povo Paiter... algumas não estão... não estão... como eu posso dizer?... feito, não está... não foi pesquisado ainda. Está isolado ainda. Dá para fazer pesquisa ainda. Então, a matemática deveria aplicar... a etnomatemática deveria aplicar o conhecimento daquele povo na sala de aula. 27) E a matemática não indígena? Também deve ser aplicada. Também pode ser aplicada lá. Como eu estou falando... não é aplicar mais a matemática portuguesa e menos a matemática indígena, do povo Paiter. Tem que ser aplicada de igual para igual. Assim [mostra dois dedos paralelos]. O conhecimento deve acompanhar assim, juntos. 28) Qual a sua opinião sobre a proposta de a escola na aldeia trabalhar então com saberes tradicionais do povo Paiter e saberes ocidentais? O fato de as novas gerações estarem aprendendo esses diferentes conhecimentos, com diferentes origens, vai interferir na identidade cultural do povo Paiter? Acho que não interfere não. Porque é importante eles conhecerem esses dois conhecimentos, levar esses dois conhecimentos juntos, porque eles dependem do conhecimento dos não indígenas e têm que valorizar os seus conhecimentos também. Por isso, eles devem levar os dois [conhecimentos] juntos. 29) Além da escola, que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Pode ser a associação. Só que a associação não pode garantir muito. Ela pode ajudar também. Só que, por outro, se não funcionar, ela pode não fazer esse papel mais. Mas quando está funcionando, ela pode ajudar também a manter a cultura. Mas depende da condição dela, do funcionamento dela. 30) Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? O papel dos professores dentro da comunidade é... O papel do professor é muito importante dentro da comunidade dele, porque ele é o espelho da comunidade. Porque ele tem um pouco de conhecimento. Eu vou falar verdade, que não temos muitos conhecimentos. Ele tem um pouco de experiência e conhecimentos. E por isso, ele deve falar para a comunidade que isso é certo, que isso é errado. Pode até puxar a comunidade para melhorar a escola, para melhorar o funcionamento da escola. Como eu estou falando... depende do professor, depende do interesse do professor. O professor indígena é muito importante dentro da comunidade. A partir de mim mesmo eu tiro essa ideia, essa experiência. Para a comunidade mesmo acompanhar esses... quem deve explicar esses conhecimentos para a comunidade, para a comunidade ficar ligada nesses conhecimentos, é o próprio professor. O próprio professor tem que ter contato com a comunidade. Não é
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isolado, não é separado da comunidade. Tem que trabalhar junto com a comunidade, porque ele é a força da comunidade, assim como a comunidade é a força dele. 31) Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Eu acho que, se nós não registrarmos tudo, se nós não trabalharmos isso dentro da sala de aula... ou até trabalhar na comunidade, com certeza, daqui cem anos não vai existir mais. Se nós, professores, não fizermos assim... trabalhar encima disso aí... Agora, se nós trabalharmos encima disso aí e mostrar para a comunidade... para eles valorizarem a cultura deles... aí, pode até chegar mais ou menos ou um pouco. Como o não indígena... os filhos do não indígena aprendem na escola e vão valorizando sua cultura... mesma coisa, se nós não fizermos isso, com certeza acaba. Se nós não registrarmos esse nosso conhecimento do povo Paiter, com certeza acaba. Se nós fizermos, e a escola ir passando para as novas gerações, então vai mantendo ainda. 32) Nesse sentido, a escola contribuiria para a manutenção da cultura? Isso. A escola é uma ferramenta importante, muito boa. Depende da pessoa. Ou ela pode eliminar a identidade, ou ela pode ajudar a manter viva a comunidade. Como eu estou falando, depende do professor. ENTREVISTA 12 Sujeito: PP3 Data: 19/08/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01) PP3, em maio de 2013 você me concedeu uma entrevista na comunidade Amaral. Na época você respondeu a algumas perguntas sobre escola, educação e etnomatemática. Você manifestou uma preocupação com o tipo de escola existente na comunidade. Você disse que escola é um lugar em que se aprende um conhecimento que não é aprendido em casa, e além de educar ela deve dar novas ideias para se adquirir mais conhecimentos. Então, retomando essa pergunta, PP3, um ano após a primeira resposta, no seu ponto de vista, qual é o papel da escola na aldeia? Eu vejo assim... que, além de ensinar a adquirir conhecimento, a escola tem o papel fundamental de preservar a cultura, transmitir a cultura. Hoje, é muito difícil a gente, os pais, os mais velhos... Eu digo que hoje o que constrói a família já é novo, são famílias novas. Então, a escola tem o papel hoje de transmitir, passar o conhecimento do povo Paiter. 02) E como você avalia que está funcionando a escola hoje? A maneira como a escola está trabalhando já atende ao que você está citando em sua fala? Atualmente, acho que os saberes que os alunos estão aprendendo lá são os conteúdos mais da sociedade envolvente. Os professores... Eu que trabalho com a língua materna e com identidade, eu tenho essa dificuldade porque eu não conheço profundamente a história do povo Paiter. Eu preciso de alguém que possa ajudar a transmitir esse conhecimento. Eu
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espero... estou esperando alguém que possa ajudar, auxiliar, repassar esse conhecimento do povo Paiter. 03) Você mencionou seu trabalho com a língua na escola, e essa preocupação em se trabalhar na escola também com conhecimentos em geral da cultura paiter. Em relação à etnomatemática, especificamente, eu me lembro que, na entrevista anterior, você disse que etnomatemática para você é a matemática que cada povo tem. Como está hoje o ensino dos conhecimentos matemáticos do povo Paiter na escola? Eu quero ser claro assim... A etnomatemática do povo Paiter existe, só que... eu vejo que não está acontecendo na escola ainda, mas eu espero que um dia possa acontecer. A etnomatemática geralmente acontece mais na sociedade, na aldeia mesmo, mas falta chegar na escola. 04) O que está faltando para esses conhecimentos chegarem na escola? Os conteúdos da matemática são geralmente conteúdos específicos. Os professores indígenas e não indígenas não... como eu posso dizer?... eles não transformaram essa etnomatemática ainda, no contexto da etnomatemática paiter. Eu vejo isso, porque a matemática geralmente é a da sociedade europeia. Mas a matemática tem que... Se for etnomatemática, a gente tem que ver e transformar essa matemática em realidade da aldeia, no contexto que a sociedade paiter vive naquela aldeia. 05) Ainda em relação à etnomatemática, que saberes matemáticos do povo Paiter poderiam ser ensinados na escola? A forma de contagem. Como os mais velhos observavam o passar do tempo. Geralmente, a gente sabe pelo passar do tempo as estações... os trezentos e sessenta e cinco dias. Então, eu vejo que isso não está se praticando hoje. A demarcação do espaço também... hoje a gente conta por metro para descobrir a área quadrada de um determinado espaço, mas isso... eu não sei como o povo Paiter contava antigamente, mas, com certeza, tinha o seu método de contagem também para isso. 06) Em termos gerais, o que você considera que mudou na cultura do povo Paiter após o contato? O que mais mudou foi a vestimenta, a alimentação... Antigamente, antes do contato, o povo Paiter tinha um lugar onde se comunicava, onde tinha um diálogo, e tinha mais tempo com seu filho em casa também, para conversar sobre história, sobre educação, como a gente pode respeitar o próximo, modos de tratamento. Essa educação, eu vejo que foi cada vez mais enfraquecendo. 07) Você avalia essas mudanças como boas ou como ruins? Não é uma mudança tão ruim. Razoavelmente, tem coisa que a gente precisa preservar sim, como educar o filho, como deve respeitar o próximo, modo de tratamento. Geralmente, na sociedade não indígena, isso não tem tempo. Por essa falta, os filhos hoje podem ser... como posso falar?... não têm respeito com o próximo.
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08) Historicamente, a escola na sua comunidade contribuiu mais para preservar ou para modificar a cultura do seu povo? No momento, eu vejo que essas mudanças, esse modo de ensinar na escola fez mais para mudar mesmo, porque... até 2011, era só do primeiro ao quinto [ano], e agora, de 2011 até 2014, tem um professor da língua, que tenta repassar para os alunos a história antiga. 09) Na sua opinião, o que deveria mudar na escola da aldeia para contribuir mais com a manutenção da cultura do seu povo? Principalmente os conteúdos que são ensinados lá têm que ser mais voltados para a realidade paiter. O calendário escolar tem que ser mais específico do povo. A alimentação, a merenda, tem que ser diferenciada. 10) Que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Além da escola, eu vejo que as religiões contribuem, porque chegam lá e adotam as suas regras... que não pode se alimentar de certos alimentos... isso vai enfraquecendo... não pode praticar mais a festa. Eu acho que isso vai enfraquecendo a cultura paiter. 11) Que opinião você tem sobre a presença da televisão na aldeia? A televisão é como se fosse uma escola, só que leva a pessoa a mudar a cultura também. As notícias, a novela, isso causa uma mudança da cultura também. 12) Lembro-me de que na entrevista anterior você falava da preocupação com os casamentos dos Paiter com não indígenas. Essa sua preocupação está relacionada com uma questão de identidade cultural paiter? Sim, porque eu vejo que, hoje, o povo Paiter tem na sua identidade mais a língua materna. A língua materna está forte ainda, eu acho. E, através do casamento, isso pode enfraquecer, porque a não índia casa com o índio, e a partir disso ela se comunica com o marido na língua portuguesa. Isso vai cada vez mais enfraquecendo a língua paiter... Até o segundo ou terceiro casamento, não vai mais existir o povo Paiter. 13) Na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? O papel dos professores paiter é incentivar mais a cultura paiter, buscar, pesquisar a cultura paiter e transmitir para seus alunos... Hoje a maioria dos professores são jovens e não sabem a história... Eu vejo também que não sabem as formas de contagem, como os velhos sabem. 14) Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a cem anos? Eu vejo assim, professor. Se não preservar a cultura... e com certeza a gente quer preservar... a gente quer utilizar a cultura do povo Paiter e a cultura da sociedade envolvente. E, com certeza, eu espero que isso possa acontecer daqui a cem anos... Não
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totalmente como hoje, mas pelos menos a língua e algumas coisas da cultura eu acredito possa acontecer... a forma de se alimentar, de se vestir... os cantos e rituais. ENTREVISTA 13 Sujeito: PP4 Data: 01/09/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01) PP4, na entrevista anterior, você disse que o povo Paiter usava uma matemática tradicional, e que se não registrar essa matemática, ela será esquecida, e que por isso seria bom registrar e aprender esses conhecimentos tradicionais. Você poderia explicar por que esses conhecimentos deveriam ser preservados e ensinados às novas gerações? Porque, hoje, estamos tendo muitos cruzamentos de indígena e não indígena. Como nós usávamos aquela matemática anterior... a gente está na escola aprendendo a matemática não indígena. Por isso a gente está deixando de lado a que antes nós usávamos. Por isso. Porque, hoje em dia, os jovens mais usam é a matemática... como que fala?... europeu... é a que mais domina hoje. 02) Quando você fala assim: “Usavam uma matemática”, você se refere ao quê, exatamente? Essa matemática que se usava era através de sinais, como pedaços de pau, dedos ou até pedras. 03) Em quais situações do dia-a-dia esses sinais eram usados? Era na pesca. Quando o índio saía para pescar, na volta falava que matou tantos peixes. Era mais através dos dedos: “Matei tantos peixes”. E na caça também. E para fazer artesanato, nas flechas: “Naquele dia eu fiz tanto, hoje eu fiz tanto, e está tal quantidade agora”. 04) Hoje em dia já não se está usando mais essa forma de contagem na língua? Não. Hoje em dia a gente já fala assim... por exemplo, eu vou na roça... hoje em dia a gente tem roça, a gente trabalha na roça... ou, como eu que sou professor, eu vou lá na escola dar minha aula... hoje, a gente conta de semanas, o horário de aula... hoje, “tantas horas já trabalhei”. Mas, antigamente, não. Era por dia. A quantidade em um dia, e no outro... e no final, somava. E, hoje, não. Já vai direto na soma da semana. 05) Então, a importância de se ensinar esses conhecimentos hoje, é para não se esquecer dessa tradição? Sim, a tradição. Por exemplo, eu tenho um filho. Então, como eu vou explicar para ele, se ele perguntar: “Pai, como era antigamente, como era nossa contagem?”. E como eu vou explicar?
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06) Na entrevista anterior, você mencionou que os saberes matemáticos tradicionais do povo Paiter deveriam ser ensinados na escola pelos professores, com a participação dos sabedores indígenas. Você poderia explicar qual seria o papel dos sabedores indígenas no ensino de saberes matemáticos na escola? O papel dos sabedores seria... primeiro o professor e o sabedor mandava marcar encontro, falar de si... depois iria levar para a escola. Porque hoje em dia, lá na comunidade onde eu trabalho, eu tentei fazer isso com o sabedor, levar o sabedor para a sala de aula para, junto com o professor, explicar como era. Só que não deu certo. 07) Por quê? O pessoal pensa mais no dinheiro: “Você vai me dar quanto pelo horário que eu ficar lá?”. Eu falei: “Eu posso dar tanto para você”. “É?”. Só que um dia eu posso... eu tenho que ter sempre por lá então. 08) E os próprios sabedores indígenas, eles não se preocupam em preservar esses conhecimentos, passá-los às próximas gerações? Não tem um interesse por parte deles mesmos em ensinar isso para os jovens? Ou esse interesse hoje é só dos professores? Na verdade, nós pensamos assim, nós e a comunidade... queria que fosse interesse dos dois. Mas só que o professor sozinho não consegue, porque eu sou novo. Aí, eu não sei como que eu vou lá no passado e trazer para mim. Aí, como eu falei, o sabedor fala que precisa, só que na hora de ir para a sala ajudar lá, ou na comunidade mesmo, ele não ajuda. Isso que é o problema. 09) Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de sua comunidade? Na minha comunidade, eu penso assim, que seria na língua indígena... na matéria... e em português. Porque, lá na minha comunidade, as crianças indígenas não entendem muito bem português, porque é difícil eles saírem da aldeia, só quando eles vão para a cidade. Por isso, eu penso assim, que deve ser ensinado a partir da realidade da comunidade, como de costume... através da realidade do aluno. Como no caso, se eu ensinar a matemática do não indígena na comunidade, claro que não vão saber. Tem que começar da realidade dele. 10) Então, o ensino envolveria a matemática do não indígena e do indígena? Os dois ao mesmo tempo. 11) Na entrevista anterior, você disse que a educação pode ocorrer em qualquer meio, na escola e fora dela. Você poderia explicar como era a educação do povo Paiter antes do contato? A educação era... cada pai tinha sua responsabilidade de educar seu filho. Eu vou falar do meu pai e da minha mãe. No caso, meu pai me educou assim: a pessoa tem que respeitar um ao outro, para que seja respeitado. Como, no caso, se eu chegar no colega assim, e eu agredir fisicamente, ou também verbalmente. Quem vai ser culpado disso? Se eu agredir um colega meu, claro que eu vou me sentir culpado, sentir vergonha. Por isso, tem que estar sempre respeitando seu próximo, para que ninguém faça o mal com você também. Aí,
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olhando para o outro, eu também posso aprender com a educação do outro. Como meu pai fala, ele nunca teve pai, porque tiraram a vida do pai dele quando ele era criança ainda. Aí, foi se educando vendo os outros educando os filhos deles. 12) A educação dos homens era igual à educação das mulheres? Na educação feminina, no Paiter... quem educava a filha era a mãe. É claro que o pai tem que colocar um pouco da dele também. Era diferente. 13) E como você avalia o fato de que, hoje, meninos e meninas estão juntos na escola, recebendo o mesmo tipo de educação escolar, no mesmo espaço? Agora, mudou muito, né. Aquilo que eu falei anteriormente, cada um tinha sua... hoje em dia, todo mundo está indo junto, na mesma educação. 14) Como você avalia essa mudança? Avalia como algo bom ou como algo ruim? Por quê? Eu penso que é algo ruim. Porque hoje em dia, através disso aí, as meninas da aldeia não estão como eram no passado... agora é tudo do jeito que querem para elas. Por exemplo, “eu posso fazer isso”. Isso está modificando muito a nossa cultura, como no casamento, como no convívio da família. A gente já está estudando fora da aldeia, muitas meninas. Aí, já vai conhecer lá... vendo que a outra realidade é diferente e não quer voltar para sua realidade. 15) O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola na aldeia? A educação mudou porque deixou de lado essa educação tradicional, e agora a gente está indo na educação da escola. 16) Você avalia isso como bom ou como ruim? De um lado é bom, e de um lado é ruim. O lado ruim é porque está deixando esse costume tradicional de lado. O lado bom é que a gente está aprendendo através da escola, aprendendo a educação do outro lado, que não é da nossa etnia. 17) Esse “outro lado”, você acha que ele é necessário hoje em dia, ou você acha que ele poderia ser abandonado? Como você vê essa questão? Do jeito que estamos hoje, tem que acontecer. Porque, claro que para frente a gente vai precisar. Porque, como eu falei, o tradicional a gente está deixando um pouco. E uns já não... só os velhos hoje estão praticando ainda. Como eu sou jovem, eu tenho que ir para frente. Como dizer? Ser dinâmico... a vida de uma pessoa. 18) Então, de modo geral, você considera a escola na aldeia como um elemento positivo ou negativo para a cultura do povo Paiter? Positivo. 19) Apesar dos problemas apontados, você acha que ainda assim é positivo?
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É positivo. 20) Que tipo de conhecimento ou saberes devem ser trabalhados então na escola da aldeia? Poderia se trabalhar para contribuir para a comunidade, com a educação tradicional, artesanatos... e deixar o de hoje para os professores... tem que estar por perto ajudando os professores como era antes... 21) A Constituição brasileira de 1988 garantiu o direito dos povos indígenas a uma educação escolar bilíngue, intercultural e diferenciada. Na sua opinião, a educação escolar existente na sua aldeia está de acordo com as características previstas na constituição? Hoje, a escola da minha comunidade trabalha assim, com ensino bilíngue e intercultural também. 22) Os professores indígenas, né? Os professores indígenas. Só que os outros professores não indígenas, que atuam de sexto a nono ano, não trabalham assim. 23) Você gostaria que mudasse alguma coisa na educação escolar oferecida na sua comunidade? Gostaria. Como eu disse que, na escola que a gente estuda lá, tem os professores não indígenas, que querem trabalhar na realidade deles, mas não querem olhar para o nosso lado. Como assim? Tem que... por exemplo, na aula de matemática, ele vai ter todo dia só adição e subtração, ou as quatro operações. E no outro dia vai ter outros de matemática. Só que, para o aluno entender, tem que voltar na realidade do aluno, para ver se, através daquilo, tem como ele entender. Esses dias, eu estava lá, na aula de matemática... reprovou muita gente. 24) É a sua pesquisa de TCC, né? Sobre as dificuldades no ensino-aprendizagem de matemática? Sim. 25) Após o contato, quais foram as principais mudanças na cultura do povo Paiter? Na cultura, foi a língua e a alimentação. 26) Os professores paiter têm planejado de forma autônoma a educação escolar em seu território? Acontece que a própria secretaria [de educação] faz, né. No início já faz, e manda o conteúdo que vai ser trabalhado durante o ano. Mas já manda pronto para os professores. Aí os professores, através daquela lista, veem os conteúdos e tenta fazer um planejamento. Tem uns que não dão certo, daí deixam aqueles ali e fazem outros que já sabem.
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27) Historicamente, a escola na sua comunidade contribuiu mais para preservar ou para modificar a cultura do seu povo? Pelo pouco que eu estou lá, eu vi que não preservou. Porque... eu não sei como aconteceu, porque lá na escola, onde eu trabalho hoje, é da outra comunidade, Amaral... 28) Qual a sua opinião sobre a proposta de a escola na aldeia trabalhar com saberes tradicionais do povo Paiter e saberes ocidentais ao mesmo tempo? Se os sabedores tradicionais trabalhassem lá [na escola], contribuiriam muito. Como no caso de repassar para os alunos os conhecimentos sobre o passado, como era a educação. E também passaria muitas coisas que o povo conhecia antes. Se ajudassem assim o professor em sala de aula, contribuiria muito. 29) Esses diferentes conhecimentos, os tradicionais e os novos, em algum momento entram em conflito na escola? Tem uma parte que entra em conflito. 30) Você pode citar um exemplo? Na aula de biologia... eu vou citar a aula de biologia. Na nossa tradição, na nossa cultura, a gente fala que pode casar com a sobrinha por parte da mãe. Como, no caso, eu tenho uma irmã. Aí eu posso casar com a filha dela, e não com a filha do meu irmão. Já na biologia, fala que isso não pode acontecer. Aí vira conflito. Alguém fala “Ah, meu filho vai nascer alejado”. 31) E como tem sido resolvida essa questão? Hoje em dia, os jovens estão com medo. Deixou a cultura para trás e olhou mais o lado de hoje. Eles ficam com medo. As meninas não querem mais casar, e os meninos também. 32) O tipo de educação escolar oferecido na aldeia possui alguma relação com a identidade cultural das novas gerações do povo Paiter? A maneira como os jovens hoje em dia se veem tem relação com a escola na aldeia? Nesses dois últimos anos em que estamos lá, está havendo. A escola na aldeia pode ser intercultural. Pode ser de um lado indígena e de outro não. Aí, a escola está tentando puxar mais do lado da cultura. 33) Que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Quem está tentando preservar são as associações, né. O povo Paiter tem quatro clãs, e cada clã tem sua associação. E uma ou duas vezes por ano, cada associação está tendo um projeto para ensinar os alunos ou as crianças da aldeia para praticar o tradicional, como era antes. 34) Então as associações contribuiriam para preservar a cultura. E existem outras instituições que ajudam a mudar a cultura?
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Uns falam que é a religião, né. 35) Em que sentido a religião mudaria a cultura? Como eu falei, né, prejudica mais é no casamento. Como eu citei, não pode casar com um parentesco próximo. Porque, na religião, eles falam que... para mim está tudo bem, né, porque eu mesmo casei com a minha sobrinha. Aí falam que isso é pecado... tem que casar com uma pessoa distante. Aí falam que a pessoa não pode ter mais de um casamento. E também querer só casar com pessoa que a pessoa ama, e não obrigado. 36) Então, essas são mudanças introduzidas pela igreja nas relações de parentesco? Pela igreja. 37) Você frequenta alguma igreja? Frequento. 38) Qual? Adventista do Sétimo Dia. 39) Há quanto tempo? Está com seis meses. 40) Sua esposa também? Sim. 41) Você tinha a pretensão de casar mais alguma vez, antes de ir para a igreja? Pretendia. 42) E hoje? Hoje... até que a pessoa quer. Só que, o que dificulta mais é o financeiro, né. Eu olhei mais pelo lado financeiro. 43) O que você acha das igrejas existentes na aldeia, de modo geral? De modo geral, eu acho bom de dois lados, positivo e negativo. É que muita coisa através da igreja muda, ou talvez não muda, né. E também... cada um quer seguir onde quer, quer estar livre. Não considero nenhum lado ruim, dos dois lados. 44) No que você acredita, hoje: no gênese da bíblia ou no mito da origem do povo Paiter? Como está sua crença hoje em dia?
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Eu vou falar a verdade... eu acredito na bíblia. Eu também acredito nesse nosso surgimento tradicional, como era nos mitos e nos ritos. Eu ainda acredito muito. Porque, como meu pai contava as histórias para mim, alguns batem com a bíblia... eu fico pensando: “Uai, será que isso aconteceu mesmo?”. Aí eu acredito cinquenta por cento do lado que era nosso, e também na bíblia. 45) Que opinião você tem sobre a presença da televisão na aldeia? A presença da televisão na aldeia tem ajudado muito a comunidade, como... leva notícia... muitas coisas. E também, muita coisa estragou lá também. 46) Por exemplo? Por exemplo, como o filme e a novela, né, que a criança fica assistindo lá e fica com a mente poluída. Se a criança assiste o filme e vê aquele monte de tiro, vai querer atirar também. Só que antigamente... quando eu era criança, não tinha televisão, e eu ficava de boa lá. E hoje em dia as crianças ficam quase vinte e quatro horas na frente da TV, não querem sair dali... Eu mesmo, quando tinha doze, treze anos, não falava em português. Hoje em dia, a criança com dois anos já fica falando. 47) Qual a sua opinião sobre os casamentos dos paiter com não indígenas? Eu penso assim... se um paiter casar com não índio, claro que o filho que nascer depois não será considerado cem por cento Paiter. Ali, já vai ser visto como mistura, misturado, né. É o caso da minha mulher. Falam que ela é misturada. E uns já rejeitam muito ela, e ela sente isso, né, ela sente isso. E, se no caso é só entre índio e índio, vai respeitar, porque ele é parente e parente. Só que quando é misturado assim, a gente não considera como índio. 48) Para concluirmos, na sua opinião, qual é o papel dos professores paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? Meu papel é levar os conhecimentos de fora para dentro da comunidade. E também, os conhecimentos que eu tenho de dentro da comunidade, tentar levar para dentro da escola, para juntar esses conhecimentos e tentar melhorar a educação da comunidade, da escola indígena da comunidade. 49) Mesmo que esses diferentes conhecimentos às vezes entrem em conflito, você acha que devem estar os dois na escola? Os dois. 50) Como resolver os conflitos? Por exemplo, a tradição diz uma coisa, a biologia diz outra. Como o professor resolve essa situação? Está um pouco difícil, né. A comunidade tem que tentar entender que isso deve acontecer, porque... a gente, esses tempos atrás, a gente tentou fazer isso, tentar reunir os dois para tornar um só. Só que não deu, porque... as crianças falam: “Ah, minha igreja falou isso”. Aí o pastor fala que: “Não, a escola está errada. Se fizer isso, é pecado. E quem é pecador é a família”. Claro que a família vai ficar com medo, né. Desse lado, quem perde um pouco,
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que recua para trás é a escola. Porque o professor não pode ir contra uma igreja que tem várias comunidades lá, né. É por isso. 51) Então, você acha que, na relação de poder entre escola e igreja, a igreja está mais poderosa? A igreja está mais poderosa do que a escola. 52) Ou seja, o que o pastor fala tem mais poder do que o que o professor fala? Isso. Porque a comunidade pensa que a bíblia está ali, né, que o que está ali está tudo ok. 53) Então, uma última pergunta. Considerando tudo isso que você disse, das transformações que aconteceram, dos conflitos atualmente existentes, como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Boa pergunta, hein. Eu penso assim, professor, que não vai demorar tanto assim, 100 anos, não. Eu fico pensando que, daqui a trinta... nem trinta não... daqui a uns vinte anos, o povo Paiter vai deixar de ser falante da língua paiter e deixar os costumes para trás. Porque a gente já está com quarenta e cinco anos só de contato, né... [emocionado]... e já perdeu muita coisa... a língua... um jovem que está nascendo agora, não fala nem cem por cento mais não. 54) Você acha que seria possível mudar a escola para ajudar a preservar a cultura e a identidade cultural do povo? Os professores indígenas, os professores paiter, não conseguiriam na escola fazer com que, daqui a cem anos, o povo continuasse a falar sua língua, a manter suas tradições? Tentar, até que tenta. Só que tem que registrar, gravar entrevistas com os mais velhos falando na língua, e passar os conhecimentos dos velhos para os mais novos. Tentar registrar e guardar na escola. Como eu falei, está difícil. 55) Então, sua previsão é de que muitas mudanças vão acontecer em médio prazo? Sim. Em cem anos, não terá mais nenhum paiter falante na língua. 56) Então, a gente percebe a missão importante dos professores para não deixar isso acontecer, né? Só que hoje a comunidade também... tem muitos professores aqui do Intercultural que estão levando seus filhos de cinco anos para a escola não indígena. Até o ano passado, as escolas estavam com quatrocentos alunos ou quinhentos alunos, na TI Sete de Setembro. Só que ano passado a gente fez levantamento, e metade caiu para trás. 57) Os pais estão tirando os filhos das escolas do território e colocando-os em escolas não indígenas? Isso. 58) Por que os pais fazem isso?
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Esses dias, a gente fez uma reuniãozinha lá na aldeia, lá na [Linha] Onze. Acho que foram cinco escolas que se reuniram lá. E os professores juntos. E a comunidade. Aí, um pai levantou e perguntou para nós: “Vocês professores, será que vocês têm a mesma capacidade que os professores não indígenas poderia ensinar para os nossos alunos, nossos filhos? O que vocês esperam de ensinar meu filho?”. [Respondeu-se ao pai] “A gente já tem a mesma capacidade. Basta você e os professores... os pais, né... têm que colaborar. Não os alunos irem para a escola só quatro horas”. E a gente falou para ele assim: “Você tem filho. Eu também tenho. E parece que você tem dois ou três dentro da sua casa. E a gente tem uns dez ou quinze dentro da sala de aula. Durante só quatro horas. A gente poderia atender quinze alunos durante só quatro horas? E o restante das horas? O dia tem vinte e quatro horas. Você pode contribuir conosco aí? Por que você, antes de dizer que a gente não ensina, você já leva o seu filho para outra escola?”. Aí ele sentou e falou: “Pois é, pai...”. Falou para outro pai, né. “A gente poderia olhar por esse lado. Ajudar os professores também”. Então, não são os professores de quinze ou trinta alunos, durante quatro anos, que vão tirar nossos filhos de uma hora para outra. ENTREVISTA 14 Sujeito: PP10 Data: 03/09/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01)PP10, onde você estudou, ao longo de toda a sua formação escolar? Eu estudei, da primeira à quarta série, que hoje é primeiro ao quarto ano, na minha aldeia. E o quinto a oitavo ano eu fiz na zona rural, onde tinha supletivo. Na época a escola era supletivo, agora é do campo. Depois do oitavo ano, fui convidado pela comunidade para participar do Projeto Açaí 1, onde eu participei e concluí. Em seguida, eu passei para Licenciatura Intercultural, que é onde estou participando. E assim eu quero continuar estudando, até onde eu puder. 02) Durante sua formação escolar, você se tornou professor e começou a dar aulas. Há quanto tempo você é professor? Eu tenho... durante minha formação mesmo, depois que eu concluí o primeiro grau, que é a oitava série, eu me tornei professor lá na minha aldeia. Até porque, naquele tempo, em 94, 95, não tinha... a única pessoa que tinha estudos bem avançados era eu, onde fui indicado, votado... fizeram eleição... tinha mais um indígena também, só que fizemos votação de quem seria. Aí a comunidade achou por bem que eu fosse o professor. 03) Então você se tornou professor por necessidade e por um convite da comunidade? Isso. Porque não tinha outro professor para dar aula. Quando surgiu aquela lei, de que só indígenas vai trabalhar e que pode trabalhar com a sua comunidade, então a comunidade já pensava que eu poderia estar praticando e trabalhando com os outros indígenas também para estar passando experiência que eu estou pegando com pessoas que tem experiência, que já trabalharam com outros indígenas... igual a maioria dos professores que tem... que
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deu aulas para nós, são experientes nessa área. Então, era tudo dentro da forma da convivência de cada cultura do povo que eles trabalhavam e explicavam, trabalhavam com a gente na sala de aula. 04) Você disse que do primeiro ao quarto ano você estudou na aldeia. Foi com professores indígenas ou com professores não indígenas? Não indígenas. 05) De algum projeto específico? Não, lá na minha aldeia, estudei com funcionários da FUNAI. Na época era a FUNAI ainda que tomava conta da educação indígena... escolar indígena. E depois de um tempo, estudei com professores da rede municipal, depois que a educação indígena foi passada para a rede municipal. Depois de uns tempos, passou para a rede estadual. 06) Ao longo dessa sua formação escolar, você teve professores indígenas? Não. 07) Hoje você dá aula para quais turmas? Hoje eu trabalho com alunos do quarto ano. 08) Quais disciplinas você trabalha na escola? A gente trabalha com todas as disciplinas dentro da sala de aula: Português, Matemática, História, Ciência, Línguas Indígenas. 09) Eu tive a oportunidade, no ano passado, de assistir a umas aulas suas. Eu gostaria de saber o seguinte: a maneira como você dá aula, você aprendeu no Açaí e aqui na Licenciatura, ou é uma experiência que você traz dessa sua formação escolar, com os professores que foram seus professores na escola rural? A maneira como você dá aula hoje está mais relacionada ao Açaí e à Licenciatura ou a sua experiência de escola que você teve antes? Bom, professor, tudo a gente aprende vivendo, assim, de uma experiência, onde a gente convive com os outros, conversando. Então, eu aprendi... eu tenho uma experiência boa de dar aula. Um pouco eu aprendi no Projeto Açaí, e um pouco aqui no Intercultural. Um pouco também eu fui pensando de que forma eu posso estar trabalhando melhor com meus alunos. Então, a cada dia que passa, a gente vai criando uma ideia, e aprendendo com os outros também. E é assim que a gente trabalha. 10) Eu pude observar nas suas aulas, assim como nas aulas de outros professores, a relação professor aluno. Geralmente, os alunos na aldeia tem um comportamento diferente daquele dos alunos na cidade... a relação professor-aluno, a relação aluno-aluno. Eu observei que na sua aula, você não estabelece um controle direto sobre aquilo que o aluno está fazendo. Aparentemente, o aluno tem uma liberdade para fazer sua atividade, observar o que o professor está falando ou fazendo, entrar e sair
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da sala. A minha pergunta é: Por que a relação professor aluno na aldeia se dá dessa forma? Professor, é da cultura mesmo isso, porque a gente... eu tive uma pergunta para o meu tio, para os mais velhos lá da minha aldeia... como era e como é a vida do povo Paiter... assim... dentro do respeito de um ao outro. Eles contam como era, como é, e qual é a regra que nós trazemos, e que nos coloca no caminho certo, que nos leva a uma vida saudável. Porque, na história do povo Suruí, a pessoa respeitando um ao outro, a vida da pessoa é mais longa, mais saudável e muito alegre. Então a gente trabalha com os alunos, baseando nessa forma... eles também já têm esse dom dentro de si mesmos, porque ali dentro da sala a gente vê, quando a gente está lá na frente falando, explicando, todos ficam quietos, ouvindo, ninguém se levanta da cadeira e fica gritando ou fica atrapalhando quem está concentrado. Então, eu acho que isso vem da cultura mesmo. 11) E essa atitude do professor Paiter de não interferir no que a criança está fazendo? Parece que em sala a criança tem uma autonomia para fazer o que ela tem vontade, inclusive para entrar e sair da sala sem a necessidade de autorização do professor. Como você explica isso? Então, isso aí... tem que deixar em liberdade, até porque a gente não está ali porque se sentou ali e tem que estar preso até o horário... porque a gente, na nossa cultura, a gente quer ficar livre no ambiente em que vivemos. Então, se ele está saindo é por uma necessidade... então a gente percebe, a gente vê que não é sair para fazer bagunça. E também não é toda hora que estão saindo por querer, é uma necessidade que faz eles saírem. Então a gente respeita essa saída. Eles não falam dentro da sala, não gritam dentro da sala, mas sim fora da sala, dentro do espaço onde pode estar fazendo isso. 12) Considerando sua experiência e sua formação, como você define educação? O que é educação? Educação, principalmente para o povo, não só para o povo Paiter, pode estar relacionada dentro da cultura de cada povo. Então, cada povo leva sua educação dentro das possibilidades que eles têm dentro das comunidades. Para nós Paiter, na educação está inserido o respeito dentro da comunidade, uns aos outros... as crianças vem aprendendo com as pessoas idosas, como cantar, fazer artesanato, falar direito. Então, tudo isso para nós é educação dentro da comunidade. Agora, hoje, depois do contato com não indígena, a gente sabe que educação também é escrita... a gente aprende a ler, escrever, fazer conta... isso leva a gente a conhecer mais adiante... por exemplo, nós estamos aqui sentados, mas se a gente quer saber hoje, agorinha mesmo, o que está acontecendo lá em outro estado, outro país, é só a gente entrar na Internet agora e ver, com se nós estivéssemos vendo pessoalmente lá. Então, tudo isso é educação, é o que a gente vem aprendendo. 13) E o que é escola? Escola é um ensinamento que a gente tem, que recebe dos pais, dos mais velhos também. A escola não é só um lugar de estudar. Escola não é uma construção. Escola está dentro de um povo. Nós estamos aqui trocando ideias... talvez você vai aprender uma coisa comigo agora que nem esperava que eu falasse. Então pra mim isso é uma escola. Se a gente estiver andando e conversando, e trocando uma ideia, e você aprender uma palavra nova
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naquele lugar, ou uma experiência nova naquele lugar... é uma escola. Então, para o indígena, onde ele está conversando, trocando ideias, aprendendo, é uma escola. 14) Ao longo do curso de licenciatura, vocês tiveram acesso a vários textos, discutiram, debateram, estudaram, escreveram sobre etnomatemática. Então, após estas leituras e estudos, como você define etnomatemática? O que é etnomatemática? Etnomatemática nos traz bastante pensamento de falar. Pode ser uma contagem da minha maneira do povo Paiter, como eles contavam, como mediam o espaço, como eles tinham cálculo de fazer uma maloca, uma casa, na plantação também, e medição de tempo, contagem do tempo, qual tempo a gente pode fazer derrubada, plantação, colheita. Então, etnomatemática está na vida, no dia-a-dia de cada cultura diferente, de cada povo. 15) A Constituição brasileira de 1988 prevê o direito dos povos indígenas a uma educação escolar bilíngue, intercultural e diferenciada. Na sua opinião, a educação escolar existente na sua aldeia atualmente está de acordo com as características previstas na constituição? Não, professor. Quanto a isso, a gente vem reclamando, principalmente com o governo do estado de Rondônia. Como movimento indígena, sempre reclamamos. Nós também reclamamos como OPIRON, porque isso não está sendo cumprido dentro das aldeias. O que é realizado dentro das aldeias, que a gente vê, é o que a secretaria de cada base está montando, como o planejamento. Eles montam o planejamento no começo do ano, e se trabalha encima daquilo. Daí, quando a gente questiona, eles falam que isso vem de cima, eles falam assim... que é Porto Velho que manda para a SEDUC de Cacoal, por exemplo. Então, a gente tem que cumprir isso daí. 16) Como os mais velhos, os sábios, os curubey, podem contribuir para a educação escolar na aldeia? Então, eu ia falar... hoje, a gente trabalha na escola da forma como eles mandam o planejamento, o conteúdo para a gente estar trabalhando. A gente ainda está forte ainda, até porque a comunidade pede para que isso não seja eliminado. O cacique LP1 sempre cobra isso. Se uma pessoa não está trabalhando, se nem todas as disciplinas estão sendo realizadas, trabalhado um pouco de cada... dentro de sua cultura, então pelo menos que um professor esteja trabalhando, uma parte pelo menos, como na identidade étnica, na língua. Isso o LP1 tem sempre cobrado da gente e dos supervisores que trabalham com a gente. Então, os mais velhos, eles têm bastante... eles acompanham, eles nunca quiseram que os filhos... eles sempre cobraram que tem que aprender as duas culturas, do não indígena e a cultura deles, porque o medo deles é que eles veem, hoje em dia, que a língua e a cultura do povo Paiter estão se extinguindo... que está muito recente o contato, e eles estão perdendo demais isto daí. Então, o LP1 sempre cobrou, pelo menos na aldeia nossa, que os alunos aprendessem a ler na sua língua, saber dançar, caçar, cantar, fazer artesanato... tudo isso é intenção dele, até porque nossa associação tem um projeto de ponto de cultura, que duas vezes por ano faz um projeto de oficina para ensinar as crianças. Essa é também uma das escolas da gente. 17) Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O que o povo Paiter espera da escola na aldeia?
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Professor, eu acho que, na minha opinião particular, eu vejo isso... até porque eu trabalhei como executor lá na SEDUC de Cacoal, e eu andei e convivi também em várias aldeias, várias escolas do povo Suruí, onde eu tenho uma experiência boa, que eu vi. Eu acho que, na minha opinião particular, eles estão vendo mais assim... que é tipo uma coisa comum, que você pode ter, usar... só de usar. Até porque, a maioria, dentro das aldeias hoje, a maioria é jovem, que construiu sua aldeia não pelo objetivo de construir uma família legal, ele saiu de uma aldeia em que morava e foi construir uma aldeia por ignorância. Por que eu falo isso, ignorância? Porque ele foi abrir uma aldeia pelo objetivo de ter uma escola, um postinho de saúde construído pela FUNASA, e ganhar alguma coisa, que a FUNAI pode dar, e eles serem os donos daquilo, e se mostrar para as pessoas: “não, eu também sou uma pessoa respeitável, como você, e não é só você que pode estar mandando em mim. Então, não é só o seu parente que pode ser professor e agente de saúde. O meu filho também pode ser o professor, o agente de saúde”. Então, isso eu acho, no meu pensamento particular, eu fico pensando e anotando isso, porque a divisão dentro dos Suruí está demais, professor. Há uns quinze anos atrás, o povo Suruí só tinha seis aldeias, seis linhas. Hoje, está um avanço danado. Hoje está em... quando eu trabalhei, há uns oito meses atrás, na última vez que eu fiz uma viagem, eu contei vinte e sete aldeias. Então, a escola não está dentro da aldeia, onde ela está localizada, porque a pessoa está pensando: “Eu quero ter uma escola que vai trazer e vai levar a vida do meu filho adiante, para meu filho aprender uma coisa que hoje tem que aprender dentro da cultura do não indígena mesmo, e trazer para beneficiar minha comunidade”. Não está dessa forma. Hoje está uma briga, uma disputa. Se não contratou seu filho, ou seu parente que você quer contratar, eu pego e saio, a pessoa sai, e vou construir uma aldeia. Lá eu posso ter o direito de contratar a pessoa que eu quero. Então, a escola está uma bagunça dentro da comunidade. Eu vejo isso. 18) São vinte e sete aldeias, e quantas escolas? Doze escolas. Mas, assim, vinte e sete aldeias estão dentro do estado de Rondônia e outras em Mato Grosso. Então são doze escolas dentro de Rondônia. 19) Você poderia explicar como era a educação do povo Paiter antes do contato? Como eu tinha falado no início da minha fala, as crianças vêm aprendendo junto com os mais velhos. Quando elas estão numa festa, por exemplo, dentro de uma aldeia, tem que estar dois clãs, dois grupos, porque não pode morar só um grupo ou um clã ali, porque como é que eles vão casar, ter filhos, para o crescimento da família, do clã também? Então, tem que estar dois clãs ali. Porque, querendo ou não, eu tenho que buscar a minha esposa em outra família, trazer para mim e criar o clã dela ali. E outra pessoa que for buscar em outra aldeia também, buscar o mesmo parente dela, o clã dela vem trazendo. E assim, vamos... Então... por que eu quero dizer isso? Onde tem dois clãs, tem que acontecer uma diversão, uma festa, por exemplo. Porque, sem diversão, o povo não vive. Então, tem que existir o dono da chicha, que é o dono da festa, e quem vai beber, as pessoas que vão beber, que vão dar presentes em troca da bebida. Isso é a diversão para o povo Suruí. Então, sempre as crianças estão convivendo com as mães, com os pais, e vendo o dia-a-dia do trabalho ali, e aprendendo a fala também, o artesanato, as músicas... lá onde as mães e os pais estão orientando, que você pode chegar perto daquilo ou não, que você pode fazer aquilo e aquilo não, que você pode falar isso e aquilo não. Então, a educação que nós tínhamos antes do contato era isso. 20) O que mudou na educação do povo Paiter após a chegada da escola na aldeia?
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Mudou bastante. Como eu estava falando para você, o povo Suruí dividiu, e foi criando aldeias, foi distanciando um grupo de outro grupo. Então, assim, não existe mais a educação que a gente tinha... a educação de quando a gente morava juntos. Então, um grupo pequeno não consegue fazer aquelas festas tradicionais, músicas tradicionais, e agora só estão interessados na educação não indígena, em uma escola de prédio... só quer colocar os filhos dentro disso. 21) Então, você considera a escola na aldeia como um elemento positivo ou negativo para a cultura do povo Paiter? Professor, hoje eu posso dizer que a escola apresenta positivo e negativo. Negativo de um lado, porque a gente vai deixando... praticando com isso mais o português na leitura, aprendendo mais a cultura não indígena e esquecendo a nossa, deixando de praticar a nossa. E positivo, porque a gente também aprende a ler e escrever, algo que hoje nós dependemos para cobrar as autoridades na forma escrita, falando bem também. Então, querendo ou não, a gente um dia vai se misturar, população indígena com não indígena. Porque já está começando o casamento de indígenas com não indígenas. E isso vai acabar... então a educação, desse lado... a educação é um ponto positivo. 22) Como você acha que deve ser o ensino de matemática na escola de sua comunidade? Os dois tipos, né professor. A matemática que podemos estar trabalhando em nossa escola, e na comunidade também, é a matemática não indígena, e da cultura também, trazendo os mais velhos e experientes para a sala de aula, para estarem explicando e a gente vai trabalhando conforme eles vão falando, e registrando isso, sempre trabalhando encima disso. 23) Considerando tudo o que você disse, qual é, na sua opinião, o papel do professor na aldeia? O que deve se esperar do professor na aldeia? Que o professor seja honesto com a sua comunidade. Porque, como eu estava falando, tem gente que não vai... que é professor não porque querem e tem vontade de trabalhar com o seu povo, mas por indicação da família, e está só pelo salário, vamos dizer assim. Então, o professor tem que estar ciente que a responsabilidade, a vida de crianças está dentro da mão dele, do professor. Porque ele está na frente, falando, incentivando. Porque as crianças estão olhando, espelhando nele, aprendendo com ele. Ele tem que estar sempre na frente, ali, ensinando a verdade... porque as crianças estão aprendendo com ele ali. Então, o papel do professor é estar ali, honesto, com as crianças... principalmente com a vida da sua comunidade, do seu povo. 24) Como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Professor... se chegar pertinho de cem anos, vai ser muito tempo, porque, do jeito que eu estou vendo, a cultura do povo Suruí está muito acelerada, demais, assim... ficando para trás. E a cultura do não indígena está muito acelerada. Eles [os Suruí] estão pegando mais aquela lá, e deixando a cultura indígena para trás. Hoje, a mocidade, os jovens de hoje, eles não se interessam muito em praticar a sua cultura. Estão mais focados na cultura não indígena, como na música, na dança, estão falando mais em português dentro da aldeia
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entre si mesmos. Então, se eu chegar na minha aldeia hoje, sair de Ji-Paraná agora e ir para minha aldeia hoje, se eu chegar lá e falar para uma criança: “Vamos lá para o mato bater timbó, fazer uma pescaria tradicional, e nós voltaremos só amanhã, depois de amanhã”, eu acho que ela recusaria isso. Pode ser que eles vão montados em animal, bicicleta ou numa moto para voltar no mesmo dia, para não dormir lá, esquentando o fogo, comendo a comida que a gente faz lá. Então, se eu chegar lá e pedir... eu mesmo não sei cantar na minha língua. Eu canto assim... eu tenho que aprender bastante. A pessoa tem que cantar para mim várias vezes, aí eu canto, aí eu pego o ritmo, aí eu canto. Agora, eu criar música, igual os mais velhos criam, para eu criar é difícil. Então, isso no caso já é prejudicial para minha cultura, para mim. Então, por tudo isso, eu falo que... as línguas mesmo... é colocar muito cinquenta anos... Suruí nenhum vai estar falando... cinquenta anos e olha lá ainda, porque agora, os jovens, a intenção deles é casar com não indígena, muita gente já está trazendo outra etnia indígena para sua aldeia, e deixa de falar sua língua com ela, e ela também com ele, e vão falar só em português. E o filho que nascer, vai falar em português. Então, não vai... eu falo que é muito cinquenta anos... não vai chegar nem isso. Está muito acelerada demais a cultura que hoje nós vivemos, e a nossa cultura mesmo está ficando para trás. ENTREVISTA 15 Sujeito: PP1 Data: 09/09/2014 Local: UNIR – Campus de Ji-Paraná 01) PP1, há um ano atrás você me concedeu uma entrevista, respondendo a algumas questões sobre cultura, educação, escola e etnomatemática. Naquela oportunidade, você definiu etnomatemática, segundo seu ponto vista, como sendo “o conhecimento de cada povo em relação à matemática, ou seja, cada povo tem a sua forma, expressão e meios para fazer contagem, e para fazer formas geométricas e medidas”. Você disse também que atualmente há uma “pressão da matemática não indígena” sobre o conhecimento paiter. Voltando a esse tema, você poderia explicar em que sentido ocorre essa pressão da matemática não indígena sobre o conhecimento do povo Paiter? Bem, professor, eu agradeço primeiramente. Acredito que essa construção é importante, principalmente quando se trata de conhecimento paiter. Nesse sentido, reforço mais uma vez que sua pesquisa é importante. E estou aqui mais uma vez a contribuir com isso. Acho que conhecimento se constrói dialogando mesmo. Bom, naquela ocasião, eu disse que a matemática, o conhecimento matemático paiter, ela sofre pressão no sentido assim, professor... todos os conhecimentos relacionados a modos de contar, medir, os conhecimentos matemáticos, estão com os mais velhos, quer dizer, eles conhecem, eles sabem, eles praticaram aquilo no seu cotidiano, como uma matemática única... media, contava, fazia roça, caçava, dormia vários tempos. Isso envolvia todo o conhecimento matemático. E, hoje, o meio, o estilo de vida, o próprio meio onde se vive é diferente daquele meio anterior, de antes do contato. E aí... esse conhecimento não se pratica mais entre os mais velhos... eles têm o conhecimento, aquele conhecimento... e muito menos os mais jovens, os mais novos, conhecem esse conhecimento, quer dizer, a matemática que poderia estar se praticando ali, para dar continuidade, para que esse conhecimento continue
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ainda, seria essa ligação entre os mais velhos e os mais novos... e não há essa ligação. E a matemática ocidental, ela é praticada entre os mais velhos, entre os adultos, os mais jovens, os adolescentes, até a criança. Então, em todas essas faixas etárias, em todos os gêneros, você vai encontrar a prática da matemática ocidental. E em nenhum momento você vai encontrar a prática da matemática tradicional paiter. Em algum momento ou outro você vai ouvir um mais velho falando com outro, mas mesmo assim vai aparecer a prática da matemática ocidental. Sem percepção, ela é praticada... ela meio que se torna uma coisa normal da tradição. Ela meio que... como se a matemática tradicional paiter fosse normal na época anterior ao contato. Então, a matemática ocidental, ela está sendo praticada em todas as faixas etárias dos paiter. E nesse sentido que eu falo que a pressão, ou o afastamento, do conhecimento tradicional matemático paiter... ela vai meio afastando aos poucos e ninguém percebendo, e aos poucos a matemática ocidental vai tomando conta, vai tomando o lugar. É nesse sentido que eu falei que a matemática tradicional paiter vem sofrendo pressão, não somente na escola, mas principalmente na escola, porque não tem uma sistematização dessa matemática tradicional paiter que seja ensinada na escola, que seja uma referência de conhecimento paiter dentro da escola... não tem isso. Então, o que se vê no ensino na escola é somente a matemática ocidental. Ela sofre mais pressão na escola no sentido de que essas pessoas que poderiam dar continuidade são as crianças, são os alunos. E eles, principalmente eles, mantêm contato primeiro com a matemática ocidental... e a gente não sabe se vai manter o contato com matemática paiter... porque é uma prática bem pequena com os mais velhos, os únicos que podem... vamos dizer... praticar. Então, nesse sentido, a escola é um espaço que ajuda a propagar mais essa pressão. 02) Você já tinha conhecimento das discussões relativas à etnomatemática antes de ingressar na universidade? Como você teve contato com essas ideias? Eu nunca tinha... antes de entrar na universidade, mais precisamente aqui na UNIR, eu nunca tinha conhecimento da palavra etnomatemática, seu conceito, definição, significado. Eu nunca tive a oportunidade de conhecer essa nomenclatura, etnomatemática. Aí, eu conheci aqui na universidade. Inclusive, o primeiro contato que eu tive foi por causa do PIBIC-Af, que a gente tentou fazer e não conseguiu. Então, meu primeiro contato foi por meio daquela pesquisa, daquele projeto. Eu não tinha contato assim de dizer o que era etnomatemática. 03) Na Gapgir, tive a oportunidade de assistir algumas de suas aulas. Percebi seu esforço em introduzir na escola da aldeia o ensino de saberes matemáticos paiter. O que te motiva a ensinar esses conhecimentos a seus alunos? Primeiro, é que eu acredito que pensar em paiter é mais fácil para as crianças. Pensar em paiter... o contato mais próximo que eles têm de linguagem é o próprio paiter. Então, se existe a matemática paiter, primeiro eles têm que ter contato com esse conhecimento paiter. E a matemática paiter não se resume a números, aqueles signos, aqueles algarismos. A matemática se resume a todo o contexto... fala, sinal, gesto, movimento. Então, as crianças precisam saber que aquilo é uma matemática paiter. Não somente fazer. Se simplesmente fizer sem você refletir sobre aquilo, você não será capaz de saber realmente o que é aquilo. Então, como professor, discutir isso com os alunos na escola... eu acredito que isso é um fator fundamental para que se permaneça, no campo do conhecimento, no conhecimento paiter... porque simplesmente eu dar aula, e ao mesmo eu como professor não valorizar ou não entender que aquele conhecimento é paiter, que aquele conhecimento
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é daquele aluno, que aquele aluno é paiter... se eu não levar em consideração, eu vou estar realmente tirando, vamos dizer, uma fase do conhecimento paiter daquela criança. Então, eu preciso, como professor, mostrar esse lado para eles também. Então, com certeza, a matemática ocidental vai estar em todo lugar... então, para eles conhecerem que existe esse conhecimento, mas de outra forma, de outro modelo, de outra maneira de fazer... o aluno tem que pelo menos saber disso. Então, a minha preocupação é nesse sentido. Acho que todo conhecimento é válido. A matemática paiter, ela tem que ser ensinada na escola. 04) Como você avalia que está ocorrendo a aprendizagem desses conhecimentos tradicionais pelos seus alunos? Suas aulas estão atingindo os resultados que você esperava? Eu avalio, assim, de primeira mão, professor... parece que, naquele conhecimento ali, quando eu vou dar aula para os alunos, mesmo que eles não entendam muito bem... não entendam muito bem no sentido assim... que não tiveram contato realmente com aquele conhecimento... mas eu percebo que aquilo é natural para eles. O contato que eles vão ter na hora da aula, parece que aquilo é uma coisa normal para eles, uma coisa natural. Eles recebem com tanta facilidade aquilo, entendem. Então, na hora que eu explico, eles relacionam com várias coisas: “Ah, professor, é mesmo, a gente foi com a minha mãe, e a gente fez isso, tal e tal”. E, nas histórias que eles vão contando, eu percebo que eles vão contando as histórias, assim, do cotidiano deles, mas eles não percebem totalmente o que a gente está explicando ali. Então, quer dizer, acontece tão naturalmente no cotidiano deles... mas o que precisa é fazer o seguinte... sistematizar, mostrar isso para eles: “Essa é a matemática paiter. É assim que é a matemática paiter”. Então, nessa avaliação, eu vejo que, se é uma coisa natural para eles, essa sistematização de conhecimentos matemáticos paiter valeria muito, nesse sentido, na aprendizagem das crianças. Porque eu vejo que há essa facilidade de aprender... uma coisa natural... sistematizar de alguma forma, de uma metodologia mais prática, mais assim... para sala de aula. Eles aprendem muito mais do que realmente simplesmente praticar. Então, a minha avaliação é a seguinte... falta é sistematizar esses conhecimentos e mostrar realmente para eles assim na sala de aula ou nas práticas cotidianas. Porque eu vi, eu percebi que eles vivem isso, essa prática, mas eles não sabem ainda. 05) Na entrevista anterior, você mencionou a existência de uma relação entre os conhecimentos tradicionais e a identidade cultural paiter. Você poderia detalhar, segundo seu ponto de vista, que relação o ensino de matemática na aldeia pode ter com a identidade cultural das novas gerações de paiter? Conhecimento tradicional... eu procuraria outro nome [risos]. Acho que tradicional está relacionado a mais velho [risos]. Eu simplesmente diria conhecimento paiter... não conhecimento tradicional paiter. Ou, para eu me referir a uma época ou outra, eu poderia dizer o conhecimento paiter antes do contato, vamos supor. Sinceramente, professor, eu não gosto desse nome, de conhecimento tradicional paiter. Eu fico meio perdido aí. Mas a matemática paiter, ela tem um valor, um significado. E, ao longo da pesquisa que a gente conversou, a gente discutiu, em lugares onde a gente vai se encontrando... a gente vai discutindo, né professor, não realmente na matemática, mas no sentido geral, e a gente vai percebendo que uma coisa se liga a outra. E o que eu achei importante nesse sentido é que a matemática paiter não se resume somente a contar, distâncias... porque ela está inserida de pensamento, de pensamento filosófico, sociológico... vamos supor que até espiritual. Então, quer dizer, esses elementos fazem com que não seja somente um conhecimento que
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eu poderia “Ah, conhecimento matemático paiter. Mas isso não vai fazer diferença no mundo em que hoje a gente está. Então deixa para lá”. Mas, se a gente for pensar em outra perspectiva, a gente vai pensar desse jeito: “É um conhecimento a partir do filosófico, do sociológico, do espiritual”... todos esses relacionamentos. E não há como um paiter dizer: “Ah, esse conhecimento para mim não serve”. Ele pode ignorar ele aprender, mas em algum momento, com certeza, ele vai praticar aquele saber, porque ele é paiter. Ele pode até pensar que ele não vai praticar aquilo, porque aquela matemática paiter não vai servir no mundo que a gente hoje está, no mundo “moderno”. De alguma forma, ele vai usar aquele conhecimento sem ele perceber. Basta ele estar em um espaço que dá a possibilidade de ele falar, de ele pensar aquilo filosoficamente, de ele pensar aquilo... ele vai chegar na roça dele, conversar com um irmão, alguém, alguém... ele vai falar. Como eu vou ignorar esse conhecimento, se automaticamente, naturalmente eu vou estar praticando isto? O que falta é entender como a gente tem que lidar com isso. E, a questão do mundo cultural paiter ser inserido no mundo... “moderno”, né professor [risos]... aí eu percebo que, em nenhum momento, eu tenho que ignorar um conhecimento, principalmente alguma coisa que é advinda de mim. Todos eles vão servir de serventia... paiter e o conhecimento não paiter. Por quê? Se ele ignorar aquele conhecimento paiter, ele pode ignorar pessoalmente... falar “Eu não vou mais falar essas coisas de paiter porque não servem para nada”. Mas ele ser paiter, o subconsciente, o que é carregado dele de paiter, vai fazer com que ele pratique aquilo. Então, não é uma coisa que não tenha ligação uma com a outra. O que basta é você entender que você tem que saber realmente como... como não ignorar um conhecimento ou outro. 06) Você vê nisso uma relação dos conhecimentos com a identidade? Sim. Principalmente nisso, professor. Porque, vamos supor... um paiter faz matemática, ou física, ou química, ou qualquer engenharia. Ele vai se dar com a matemática, a matemática não paiter. E, nessa questão, ele vai ver que há a possibilidade de fazer tanta coisa com a matemática ensinada para ele, que ele vai achar em algum momento que aquilo não vale para ele, a matemática paiter. Quer dizer, ele vai sofrer uma pressão sem ele perceber. Se você adquire um conhecimento, e o que você conhece já não vale nada para você, não há porque você buscar aquilo. Por exemplo, se eu simplesmente for um grande matemático, que domina toda a matemática não paiter... por eu ser paiter, quando eu chegar lá com a minha vó e perguntar: “Vó, que você está fazendo aí?” E ela vai falar para mim: “Niti ar [verificar escrita na língua]”. Quer dizer, aquilo que ela vai dizer ali para mim são conhecimentos matemáticos paiter no sentido geométrico, e não vai ter como eu fugir dessas coisas. Então, o que falta entender mesmo é que são vários conhecimentos que precisam ser dialogados, principalmente quando é advindo de você... você tem que se dar conta de que você vai ter que usar. Então, professor, na questão da identidade, essas coisas para mim... assim... por exemplo... às vezes para mim é até meio estranho falar isso, porque... eu não aprendi a fazer casa... maloca... maloca tradicional paiter. Eu não aprendi a fazer aquelas flechas trabalhadas, com pelo de porcão. Eu não aprendi a fazer aqueles lindos cocares... mas eu me surpreendo, eu fico admirado com quem faz. Até onde vai o raciocínio ou a lógica da pessoa para fazer aquilo? E aí uma pessoa vai dizer que o conhecimento paiter em relação à matemática, geometria, tamanhos, formas, não vale? Como assim? Então, são pensamentos que a gente tem que refletir para dizer que... aí, uma coisa que eu tenho percebido é o seguinte, professor... Por que eu não aprendi? Eu tenho grande vontade de aprender um dia, pelo menos fazer... pelo menos saber a lógica de construir a maloca. Meu pai sabe. Ele é um grande... como se fala?... engenheiro civil. Meu pai, ele sabe fazer. E eu não sei fazer. Aí, a grande reflexão que eu trago é... todo esse
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conhecimento que meu pai tem, em relação à matemática paiter, eu não tenho, mas posso ir lá conversar com ele. Vontade de fazer uma casa, eu tenho. Vontade de fazer um cocar, uma flecha, eu tenho. Mas, por que isso eu não aprendi? Será que, simplesmente, por eu ignorar? Não. Porque o mundo em que a gente está hoje nos coloca numa situação em que a gente tem que escolher entre praticar uma coisa que é nossa, escolher aquilo que é nosso, ou escolher tentar sobreviver em um mundo, onde a gente sofre pressão... e para a gente viver naquele mundo, a gente tem que se apropriar de algumas coisas que são do outro mundo para conseguir sobreviver. Você não imagina... Você pensa que eu estou aqui, mas que eu não queria estar na aldeia fazendo a minha casa, flecha? Eu tenho que estar na universidade agora para que eu consiga sobreviver pelo menos. E aí, muitos brancos falam assim: “Olha o índio aí, dando uma de estudar. Eles podiam estar na floresta, pescando”. E quem não queria estar? Isso a gente poderia estar fazendo se ninguém perturbasse a gente. Então, no mundo onde a situação nos coloca, a gente tem que se apropriar de outras coisas para fazer, para conseguir pelo menos estar ali... e nesse contexto, o conhecimento paiter, ele vai se perdendo, professor... Até então, os povos indígenas, de uma maneira, assim, mais superficial, entendiam que a escola era um grande vilão das culturas dos povos indígenas... meio superficial assim... eles querem, eles sabem que a escola é um grande aliado, mas superficialmente eles falam: “Não, é vilão”. Mas quem vai colocar que essa escola seja o maior aliado são pessoas que estão aqui na universidade estudando hoje. 07) É interessante esse movimento que você consegue fazer, de olhar de maneira crítica para o mundo em que você vive, a posição que você ocupa nesse mundo, essa sua reflexão crítica. Foi o senhor LP1 que me fez essa reflexão um dia. Aí eu comecei a pensar sobre isso. 08) Seu pai? [Risos] É. Até então, professor, ele era... eu fico pensando até hoje... até um certo tempo, o maior desejo dele era que eu casasse. Lá pelos dezesseis anos, já era para eu ter uma ideia: “E aí, cara, você não vai casar não? Está passando da época, aí” [risos]. Até um certo tempo, ele veio assim, né. Mas, depois do 500 Anos, que ele foi participar do 500 Anos, a mentalidade dele mudou totalmente. E aí ele percebeu que, para... ele falou para mim que, do jeito que a gente está aqui, não é necessário... não, necessário não... não é... esqueci a palavra... a palavra está em paiter, mas eu estou procurando em português [risos]. Quer dizer, ele foi para lá e percebeu que simplesmente eu estar na aldeia, casado, isso não ia contribuir muito, tanto para mim quanto para meus filhos, para ele, e para meu povo no contexto geral... Ele veio de lá no outro ano, porque era quase no final do ano... no outro ano ele falou: “Não, você tem que continuar a estudar”. Aí eu até estranhei, né. Como é que meu pai está querendo que eu estude? Aí ele falou para mim: “Não, se simplesmente você viver aqui na aldeia, isso não vai dar para você entender como funcionam as coisas no contexto geral, tanto aqui na nossa vida quanto lá fora. Mas eu digo para você: você tem que me ouvir aqui, conversar comigo sempre, não desgrudar das suas raízes, não abandonar o que sou eu”... estou usando as palavras dele, tá, professor... “não abandonar o que sou eu aqui e simplesmente você achar que sabe mais do que eu e deixar as coisas daqui. Porque, não vai ser o seu mundo. O seu mundo está aqui. Você precisa só adquirir outro conhecimento para continuar a viver em seu mundo”. E aí, daquela vez, eu nunca mais pensei em simplesmente estudar. Acho que a gente... acho que ele, em outras palavras, falou que eu tinha um missão. Não somente... acho que todas as pessoas têm, inclusive os alunos do Intercultural. Mas eu acho que ninguém teve a oportunidade de
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dizer essas palavras que meu pai disse para todos eles. Mas, com certeza, cada um que está aqui tem essa missão atualmente. 09) Muito bom. O LP1 tem umas sacadas, assim, realmente excepcionais. É um filósofo, poderia se dizer, né. Então, dando continuidade ao meu roteiro aqui... Eu pude observar nas suas aulas, assim como nas aulas de outros professores paiter, a relação professor aluno. Geralmente, os alunos na aldeia tem um comportamento diferente daquele dos alunos na cidade... a relação professor-aluno, a relação aluno-aluno. Eu observei que, na sua aula, você não estabelece um controle direto sobre aquilo que o aluno está fazendo, no sentido de ir lá na carteira, ver se o aluno está escrevendo, fazendo a atividade, como geralmente os professores não indígenas costumam fazer. Aparentemente, seus alunos têm uma liberdade para fazer suas atividades, observar o que o professor está falando ou fazendo, entrar e sair da sala. A minha pergunta é: Por que a relação professor aluno na aldeia se dá dessa forma? [Risos] Eu também não tinha percebido isso não. Mas é fácil de explicar [risos]. Professor, é até estranho para a gente... assim... a maneira como a gente vai tratar as pessoas, né. E, a gente ali, eu vejo aqueles alunos ali, mesmo que sejam crianças ali... aquela faixa de onze a treze anos... pré-adolescentes... a minha relação com eles é de respeito. Eu não sou nenhum professor que sabe tudo, e nem o pai deles ali. Eu sou somente um intermediador do que a gente pensa que eles precisam conhecer. E o que eu estou ensinando para eles pode não ser também o que eles querem aprender ou... da maneira que eu estou ensinando para eles, que eu penso em ensinar para eles, não é a maneira que eles vão querer também. Então, vamos fazer o espaço da sala de aula no cotidiano mais perto possível da nossa casa... como a gente estaria em casa. E daí, eu não vou tomar uma certa rigidez “Não, faça isso, tal, tal”. Eu tenho que tomar a liberdade de deixar ele ali, mas até um certo ponto. No sentido da escola, se ele não produzir, eu vou ter que perceber isso a um determinado tempo... em um determinado tempo, vamos supor, uma semana. Se eu ver que ele não produziu, agora como professor, o que eu queria que ele tivesse adquirido, fazendo já... se ele não produzir, aí eu falo com ele “Nosso objetivo é isso, tal, tal, você não está conseguindo”. Mas não numa rigidez de sala de aula, sempre ali. Eu vou até um certo tempo e, ao perceber que não está rendendo, aí eu converso com eles. Para quê? Para que não percebam ali eu como um cara sabedor... para eles vai ser ruim, porque talvez eles podem me ignorar “Pô, o cara está querendo me ensinar, tal”. Eu tento ser o cara mais adolescente possível, mas com a intenção de passar algumas informações para eles, para eles pegarem também. Então, é um convívio ali realmente de amigos. 10) E essa atitude do professor paiter de não interferir no que a criança está fazendo? Parece que em sala a criança tem uma autonomia para fazer o que ela tem vontade, inclusive para entrar e sair da sala sem a necessidade de autorização do professor. Como você explica isso? Então. Primeiro, é que a gente está em um ambiente em que ninguém está ali preso. Ali, a pessoa vai querer... principalmente criança... a gente entende essa questão... principalmente criança, ela vai querer tomar um arzinho, porque ali é sala, né. Ela vai querer ir ao banheiro. Ela vai querer olhar fora, se tem um amigo que não está na sala. Ela vai querer conversar com ele lá. Simplesmente ela vai querer sair. Se ela não atrapalhar a aula, tudo bem. Mas essa forma de... vamos supor... “Ninguém sai até a hora do intervalo”. Talvez isso mexa com a cabeça deles também. É ruim para eles. Então, a gente ensina para eles, explica para eles que a sala está ali, aberta, mas que a gente tem que ter um rendimento na
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sala, na aprendizagem, e assim buscar mais ainda compreender as coisas... sem prejudicar a aula e os demais. Nesse sentido, está livre, ninguém está preso. Quer dizer, você tem que fazer da sala de aula um lugar mais... que termine a hora da aula que eles querem permanecer ali. Então, no jeito de prender eles ali, não vão ver a hora de ir embora e vão querer sair da sala. Então, eu particularmente tento fazer da sala de aula um lugar de se aprender e de ensinar, mas um espaço em que ninguém quer sair dali, simplesmente querem sempre aprender ali. 11) Sua formação escolar e acadêmica se deu principalmente com professores não indígenas. Tive a oportunidade de estudar sua trajetória a partir das informações que você forneceu no questionário de caracterização e em nossas conversas cotidianas. Então, sua formação escolar se deu basicamente com professores não indígenas, em escolas fora do seu território, tanto na educação básica como no ensino superior. Você iniciou um curso de direito e agora está na licenciatura. Certamente, nesses espaços estranhos à cultura tradicional de seu povo, você teve poucas oportunidades de observar exemplos de educação diferenciada ou intercultural. Então, a probabilidade era grande de você reproduzir em sua prática pedagógica o mesmo modelo de educação da escola não indígena. No entanto, minhas observações permitem dizer o contrário. Percebo você procurando fazer diferente, inclusive liderando o movimento por uma educação escolar indígena diferenciada. De onde você tira suas motivações para procurar fazer diferente? Por que você faz assim? Realmente... eu fiz até a quarta série na escola indígena, mas com professores não indígenas. Aos onze anos, saí da aldeia para estudar fora. Estou estudando fora até hoje [risos]. Mas, realmente, né professor... eu não tinha parado para pensar nisso. Mas, como falei anteriormente, eu tinha outro pensamento, e a minha prática como professor indígena hoje... e eu percebo que com outros professores... é totalmente diferente do que com o que eu convivi na escola não indígena. E aí, eu poderia ter muita chance de reproduzir tudo aquilo que eu convivi. Mas, eu não sei o que deu em mim para... mas, a grande contribuição mesmo, eu vejo que foi essa aproximação que eu tenho com meu pai. E a percepção dele em relação à cultura, conhecimento, pensamento paiter é muito forte. E é difícil a gente conversar esses temas assim, mais filosóficos paiter com meu pai, mas quando ele senta para falar ele fala mesmo. Eu não sei qual é a estratégia dele, acho que ele tem toda uma metodologia de ensinar a pessoa, que eu tenho que descobrir. Porque, toda a formação que eu tive não tem nada a ver com o pensamento que eu levo hoje. Então, todas essas coisas são advindas do meu pai. Essa questão de eu ser uma pessoa diferente, mas que ao mesmo tempo eu tenho que conviver em um espaço que não é meu... que eu tenho que passar a conviver daquela forma... mas, realmente, as coisas não são assim... Uma das coisas que ele falou para mim, e uma vez repetiu para o meu irmão, porque meu irmão tinha... meu irmão, não, meu primo... ele tinha pintado o cabelo, feito aquele cabelo de Neymar... daí ele falou “Ah, por que você está querendo fazer isso? Aquele cara é artista, aquele cara é artista. Em todo lugar que ele vai, ele é bem vindo. Mas vai com esse cabelo aí na rua... O primeiro não indígena, o primeiro branco que te achar estranho e ver isso feio em você, ele vai querer te bater, porque você não é nenhum artista, você não é nenhum artista. Você tentar ser outro, sendo diferente, você nunca vai conseguir. O que você tem que ser é você ser você mesmo. Só que você entender aquele outro”. 12) Palavras de LP1?
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É, ele falando com meu irmão... para o meu primo... para nós é irmão... estou falando na linguagem do branco. E a mesma coisa ele tinha falado para mim uma vez. E aí, quer dizer, todas essas falas, as conversas dele, as atitudes dele como líder, me fizeram me espelhar nele próprio. Eu me lembro até de uma música dos Racionais... como ele fala?... “A gente se espelha em quem está mais perto” [risos]. Aí, ouvindo essas músicas, e até algumas reflexões que eu tenho em alguns momentos da minha vida, me faz pensar nisso, professor. Acho que eu me espelho nele, sem eu saber mesmo, assim... E, assim... Eu tinha muita chance mesmo de eu não ser o que eu sou hoje, se eu não tivesse essa interferência dele, essa interferência oculta dele [risos]. Mas, assim, professor, ele é um grande batalhador nessa questão. Eu acho que eu me espelhei nele. Eu acho que é isso [risos]. 13) Atualmente você coordena a Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso – OPIRON. Em que medida o movimento dos professores indígenas tem conseguido mudanças na organização da educação escolar indígena na região? Quais têm sido os principais desafios e as principais conquistas do movimento dos professores indígenas? Voltando àquela pergunta anterior, àquela questão anterior, professor... que eu poderia ser outra pessoa... para mim, nesse sentido, isso foi muito rápido, a minha inserção na questão da educação escolar indígena. Porque, em dois mil e doze, eu me tornei professor, tem pouco tempo. E aí, ano passado, dois mil e treze... vai fazer um ano que estou na coordenação da OPIRON. São mudanças muito rápidas na minha vida. E, assim, para uma pessoa que nunca esteve nessas discussões assim... eu acredito que estou me inserindo bem na questão. Anteriormente, eu já participava do movimento da juventude, fiquei dois anos na CNPI como representante nacional. Isso me fez ter uma visão muito ampla, muito mais ampla do que pensar simplesmente no Estado... Quer dizer, eu já tinha uma visão ampla, uma visão maior, e isso me fez muito... me ajudou muito. E os grandes desafios, professor... que é de modo geral, sempre... é a autonomia mesmo dos povos indígenas. E a gente tem que pensar que autonomia que é, como é mesmo que essa autonomia se dá. Vamos pensar aqui na questão da educação. Se tem várias leis aí, várias normas aí em relação à educação escolar indígena... mas se percebe que não há nenhuma implementação na prática, dessas leis. Existe todo um aparato normativo e legal para que se tenha essa escola específica e diferenciada de cada povo. Mas, o que realmente precisa é formar profissionais. Uma liderança indígena não vai ser a pessoa adequada. Quem vai ser, para que aconteça isso realmente, são os próprios professores, os professores que vão fazer graduação, mestrado, doutorado. Porque, nesse mundo, é isso que importa. Se você não tiver isso, não consegue. O grande desafio hoje para que se tenha essa educação escolar indígena específica e diferenciada no estado de Rondônia é a formação dos professores. Formação de professores... tem a lei aí... a OPIRON indica as coordenações do núcleo em Porto Velho. Tem o Conselho de Educação de Rondônia. Então, se os professores indígenas atuarem em todos os cantos, em todos os conselhos, e discutirem isso, aí vai começar a mudança. Enquanto um não indígena pensar para o indígena a questão de [educação] diferenciada e específica, nunca vai acontecer essa coisa de educação diferenciada e específica. Ele pode ser até o maior teórico da questão, mas, mesmo assim, um não indígena não vai conseguir. E aí, o grande desafio, a médio e longo prazo, é a formação dos professores, para discutir isso, para discutir em todos os cantos... e fazer a diferença nas escolas a partir daí. A gente imagina que, professor, vamos supor... a gente se formando e todo mundo vai para a sala de aula... todo mundo vai para a sala de aula... mas quem normatiza, mas quem decide, mas quem decide o que fazer e como fazer são todos os conselhos, secretarias, secretários e governos. Se a gente for pensar nesse contexto, nunca
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vai acontecer [educação] diferenciada e específica. E aí, o grande desafio é esse, formar professores paiter, oro nao, zoró, gavião. E a grande conquista... a gente teve algumas conquistas significativas. Simplesmente os professores estarem contratados, dando aula... a gente tem que ter essa avaliação, que é uma grande conquista. E a gente está prevendo agora o concurso público indígena... vai ser uma grande conquista também. Porque existe, professor... professor com vinte e cinco anos de carreira... porque já tem uma carreira... mas se o cara for demitido hoje, ele vai embora só com o último salário dele. Aí, como a gente pode imaginar um professor que trabalha a vida inteira e não tem mais direito a nada quando vai embora? Esse é o grande desafio também de a gente conseguir para que esses professores tenham garantia trabalhista. Porque são profissionais, né, como qualquer outro. São profissionais como qualquer um. E os outros grandes desafios são trabalhar essa concepção de um modelo de escola para cada etnia, as etnias discutirem isso... e outro mais criminoso ainda... desculpa a expressão na sua entrevista aí, professor... outro mais criminoso ainda por parte do governo... é a questão da construção das escolas, e também... e onde tiver indígenas, ter a escola de ensino fundamental a ensino médio. A gente tem hoje um grande número de alunos indígenas querendo fazer o ensino médio, mas não há uma escola de ensino médio nas aldeias, e também não há como eles terminarem esse ensino médio nas cidades. Então, por parte do governo hoje, isso é um grande crime. O governo sabe disso. Cidadãos brasileiros ali, não tendo onde estudar, um direito garantido. E aí se vai perceber que são grandes desafios aí pela frente que têm que... e, como eu falei, só vai ser mudado quando os professores indígenas tomarem a frente dessas coisas. 14) Atualmente, existe espaço e motivação na OPIRON para se discutir, além de políticas públicas gerais de educação, práticas pedagógicas, currículo e temas mais específicos da educação escolar indígena, mais relacionados ao fazer cotidiano dentro das escolas, tais como formas de planejamento, conteúdos específicos, formas de avaliação, práticas interculturais? Então... de eu tomar conhecimento sobre isso, eu não tenho, até onde eu sei. E desde quando eu estou atuando, não tivemos nenhuma discussão sobre isso. A gente tem mais conversas assim nas CREs, sobre isso... como está sendo, os professores falando de suas experiências. Mas, assim, uma discussão mais específica dentro da OPIRON não tem. Estamos planejando agora, daqui para frente, fazer seminários para discutir todas essas questões. Uma ou duas vezes por ano, para a gente discutir todo o campo da educação escolar indígena, desde as questões políticas, práticas pedagógicas, avaliações, ensino. Então, discutir em todos os campos. E aí, acredito que é possível a gente encontrar potenciais pessoas que têm essa habilidade. E a OPIRON tem que encontrar essas pessoas. Só discutindo, só percebendo no movimento é que a gente vai descobrindo essas pessoas. E como não há esses encontros, não há como a gente descobrir essas pessoas. Aí, vai ser o grande diferencial se a gente fizer esses seminários. Vamos supor que o cara que discute as políticas pode ser um oro nao. O cara que discute as práticas pedagógicas pode ser um gavião, um karitiana. Essas experiências são fundamentais para que os outros percebam e construam também. São experiências de professores indígenas que vão fazer com que outros também façam. Nessa perspectiva, os encontros serão fundamentais também nessa questão, nesses debates... tornar-se em um espaço de formação, onde você vai refletir, discutir sobre a sua prática. Onde você vai dizer o que você pensa, para que esse pensamento, essa ideia, se torne uma coisa mais concreta. 15) Voltando à questão dos mais velhos, é comum os professores paiter apontarem os mais velhos, os curubey, como referências para a inclusão dos conhecimentos
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tradicionais na escola. Na prática, quais são as principais dificuldades para isso acontecer? Por que os velhos participam diretamente tão pouco da educação escolar na aldeia? Sabe o que eu percebi, professor? Primeiro, não há esse costume dos mais velhos ensinarem do jeito que se ensina na escola: “Hei, vai ter aula hoje! Tal hora todo mundo tem que estar lá! Para ensinar tal coisa e tal coisa!”. Eu percebi isso, experiência própria. O que se tem de costume... o que eles estão acostumados é o seguinte... tradição paiter. O que eu percebi, como são ensinadas as coisas, eu percebi o seguinte, professor... ninguém vai chamar alguém para aprender. “Hei, vem aprender isso aqui! Vou te ensinar!”. Simplesmente, os mais velhos vão fazendo... eu já conversei sobre isso com meus tios, e eles me ensinaram como que se aprendia... e o mais interessado fica ali, percebe ali, vai fazendo igual o mais velho está fazendo. Se há uma dúvida, pergunta. Ele só vai falar para você... se precisa de ajuda, ele vai fazer. Mas, em nenhum momento ele vai dizer é assim, é assim, é assim. Você vai aprender ali com ele. Se o mais velho tiver que sair agora, ele vai sair, vai deixar você aí. Mas você já vai saber como ele estava fazendo. Várias tentativas você vai fazer. Por isso que meu pai fala: “Os não indígenas falam assim: ‘Os mais velhos sabem’”. Aí ele fala: “Nem todos os mais velhos sabem”. Olha só, é em primeira mão essa conversa, professor, do meu pai. Eu não sei se ele já conversou com você sobre isso... acho que uma vez ele conversou... acho que naquela primeira visita. Mas vou reforçar de novo. Eu me lembro muito bem que ele falou para você. Ele fala: “Os brancos falam assim: “Ah, o mais velho! A gente tem que valorizar o mais velho!”. Aí ele fala: “Nem todo mais velho que está na aldeia sabe de tudo, porque nem toda criança vai aprender. Só vai aprender o mais interessado. E o desinteressado não vai aprender. Mas esses dois vão ficar velhos. A diferença é que um aprendeu e o outro não. Aí, você vai saber diferenciar dentro da comunidade quem é o mais velho sabedor e quem é o mais velho que não aprendeu na vida”. Então, é assim que se aprende, professor, naturalmente... vai aprendendo. E esse costume vem com eles. É chato chamar eles: “Vamos para a sala de aula ensinar alguém”. É chato para eles. Eu percebi isso uma vez. E outra questão, a segunda questão, é a questão do financeiro hoje, o sistema capitalista... faz o mais velho pensar duas ou três vezes antes de fazer isso. Tem um que vai com convicção de ensinar aos alunos para que não percam o que ele aprendeu, porque ele percebe que é importante. Mas, no geral, uma coisa que prende eles é a questão financeira. “Ah, eu preciso ir na minha roça, ou caçar! Eu vou ter que ensinar! Será que eu vou lá? Onde que eu vou?”. Então, são essas duas coisas. Uma bem tradicional, e outra bem da inserção do capitalismo. Então, eu percebi essas duas coisas. Por isso que é difícil levar eles para dentro da sala de aula. Mas tem uns que vão com a convicção de ensinar as crianças. Mas, se for para ser todo dia, ele não vai. Ele pode ir uma vez por mês. Não chega a se estabelecer uma rotina assim. Mas o que seria interessante, professor, é se a gente pensasse numa metodologia... onde o mais velho estivesse ali, fazendo o que ele estiver fazendo, artesanato dele, ou caçada... de alguma forma, a gente buscar um meio de acompanhar ele, como se fosse no cotidiano, anteriormente. Eu andei muito com meu pai quando eu era criança, na mata. Andei, andei, andei. E eu sei bastante coisa... andar na mata. Eu sei dos passarinhos... eu sei um sinal de grilo, de gafanhoto, de passarinho... quando estão marcando horas. A gente vai percebendo: “Ah, é tal hora, tal hora”, porque meu pai ensinou para mim. Então, cada passarinho... tem espécie de passarinho que vai cantando de hora em hora. Um canta agora, e outro canta, e o outro que cantou na outra hora não vai... e é impressionante, professor, como eles batem igualzinho com o relógio. Você pode usar o relógio assim... você vai tal hora e algum pássaro canta. “Ah, são três horas”. Então, são conhecimentos que a gente tem que buscar uma metodologia para que a gente possa aproveitar esses momentos. Não
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aquela galera, ir todos os alunos... mas vamos uma vez por aluno, talvez... você vai acompanhar tal, tal, tal. Então, são coisas que a gente precisa realmente buscar como a gente aprender com os mais velhos de uma maneira... da maneira deles. É isso. 16) Você poderia explicar como o povo Paiter percebe a escola hoje? O que o povo Paiter espera da escola na aldeia? A escola hoje, professor, acho que ela tem uma função bem diferente, pensada pelo povo Paiter, do que eles pensavam antes. Porque o papel da escola nas comunidades paiter tinha uma função de você aprender... vamos supor... de você aprender as coisas do branco, as coisas do não indígena. Você fazer com que a escola... quer dizer, a FUNAI colocou uma escola dentro das comunidades paiter, mas no sentido de que os paiter começassem a aprender a falar português, fazer as coisas que não eram do paiter. E, ao mesmo tempo, os paiter perceberam que isso realmente tem que ser assim... que eu preciso aprender para me dar bem fora... eles pensaram mesmo que eles precisavam aprender aquilo. Mas hoje, atualmente, já tem uma controvérsia em relação a isso. A escola hoje tem um papel de que você não precisa somente aprender aquilo que a escola está passando para você. Você tem que colocar os elementos da sua cultura dentro da escola para você aprender, e também os elementos que são de fora. Então, quer dizer, antes, como paiter, você pensava em aprender tudo o que a escola te ensinava. Agora, você tem que... hoje o pensamento, visto pelos paiter, é que você tem que colocar dentro da escola o que é próprio do paiter... e o que ela tem que trazer também de fora. Já tem outro pensamento, em relação ao anterior. A gente vai perceber três fases, no caso. Primeiro, na inserção da escola pela FUNAI, somente para aprender português, a falar português, matemática, para que você fosse igual ao branco. A outra concepção, a segunda, é um pouquinho diferente... só na questão de você não... como é falado muito pelos indígenas, “não ser passado para trás” [risos]... essa concepção de que você tem que aprender aquilo, para que você não se deixe passar para trás, porque você já tem um domínio daquilo que você tem de português, matemática e tal. E a terceira, talvez... a gente tem que pensar um pouco qual é a diferença um do outro... mas vamos supor que a terceira é a que você... que os paiter tem o elemento... o papel da escola assim... ela não tem que carregar somente conteúdo não indígena. Tem que inserir também conteúdo paiter, conhecimento paiter, para que seja ensinado esse conhecimento paiter, e também o que ela traz consigo. Então, hoje, o papel da escola visto pelos paiter é de fortalecimento da identidade, de conhecer realmente esses dois mundos. 17) Eu pude observar, em diferentes comunidades paiter que, mesmo tendo a escola na aldeia, algumas famílias matriculam seus filhos em escolas fora do território, ou mesmo na cidade. Tanto é que, às vezes, o ônibus escolar vai até a aldeia buscar as crianças, os alunos, para levar para a escola rural, a escola polo. Como você entende a decisão de algumas famílias paiter matricularem seus filhos em escolas urbanas ou rurais, fora de seu território, tirando-os da escola na aldeia? É um fato muito triste, pessoalmente para mim. Porque, a grande conquista hoje, dos paiter, é manter a escola, mas nessa mesma escola que trás coisas de fora, que sejam ensinadas coisas da cultura também. E quando um pai pensa em levar, tirar o filho daquela escola que está com essa intenção de ensinar duas coisas aqui, a concepção do pai é que o filho, aprendendo, estar matriculado fora da escola da aldeia, ele vai estar aprendendo mais coisas. Essa é a concepção que eles têm... que ele vai conseguir mais coisas, que ele vai aprender mais coisas, que ele vai se sair melhor do que aquelas crianças que vão estar estudando na escola indígena. Então, quer dizer, para mim é um equívoco muito grande,
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porque não há uma reflexão dentro das aldeias, mais especificamente nesta questão. Algumas aldeias têm... principalmente nossa aldeia. A gente tem refletido muito sobre isso. Se tem uma escola dentro da aldeia, qual é o motivo do pai tirar... vamos supor... do berço que ela está ali, para colocar em outro mundo? Porque, para a criança paiter, simplesmente de ela estar falando paiter e, de repente, ela estar em um lugar onde todo mundo está falando outra língua, é um choque muito grande. E como é que você vai aprender... como é que você vai pensar que seu filho vai se dar bem? Pode se dar bem, talvez... pode não. Esse é o motivo dos pais tirarem seus filhos da escola, com o pensamento de que vai ser melhor para eles, que vai ser melhor do que os alunos que estão na aldeia, e que o branco, o professor não indígena, vai ensinar melhor para eles. 18) Então, existe a escola na aldeia, existe esse fato que você menciona como sendo um fato triste, no seu ponto de vista, de algumas famílias colocarem os filhos para estudar em escolas fora do território, em outro mundo, como você diz. Aí, eu volto a insistir em uma questão, apesar de você já ter explicado muito bem, que tem a ver com esse fato. É o seguinte: Que relação você estabelece entre a educação escolar oferecida atualmente na aldeia e a identidade cultural das novas gerações do povo Paiter? Primeiro, é que... a escola que ensina... a escola que se tem hoje dentro dos paiter, ela traz consigo hoje, mesmo que seja pouco significativo, alguns elementos da cultura. Simplesmente de o professor ser indígena, é um elemento significativo, na concepção nossa, de que aquilo é uma escola paiter. Então, isso influencia também, de uma certa forma, a um aluno paiter se identificar com a escola... se identificar: “Eu tenho um professor que é paiter”. Então, esse elemento é fundamental... Claro que faltam mais coisas ainda, como o que ensinar dentro da escola, materiais para o ensino, materiais paiter... E a questão de você ser um professor paiter, acho que é um grande diferencial eu também pensar como um professor... Qual é o meu reflexo para os alunos? O que eles pensam de mim? Qual é minha atuação, e qual é a conclusão que meus alunos têm de mim? Talvez eu tenha que exercer uma função, não somente como profissional, mas eu também tenho que pensar no social, cultural... que é diferente de um pai que simplesmente pensa: “Vou colocar meu filho em uma escola não indígena”, sem essa reflexão. Uma das coisas que eles falam é que eles vão aprender mais... Com certeza, podem aprender mais coisas. Mas, talvez não vão ter a chance de ter... de ter esse momento que eu tive... mesmo estudando fora da aldeia, voltar para as comunidades. Quer dizer, você tem uma porcentagem, um percentual, uma probabilidade de que aquele aluno talvez não possa voltar para a aldeia. Então, isso pode parecer normal ou tranquilo. Mas, para nossa concepção de ser paiter, simplesmente [o fato] de uma pessoa sair do berço familiar e tentar aprender outra coisa, somente por pensar que vai ser melhor para ela... a gente percebe, como paiter, que não é legal. Não é legal no sentido de não aceitar... de dizer que não aceitamos isso, mas, pelo contrário... a gente sabe que a gente precisa conhecer mais fora da escola. Mas o momento não é esse. Talvez o momento seria de pessoas que já estão mais habituadas a viver com os pais... já vai ter outra mentalidade. Agora, simplesmente [o fato] de eu tirar... vamos supor, o Natan. O Natan, com quatro anos... tem crianças com quatro anos que estudam na escola rural. Aí, eu pensar um futuro para ele, a partir da minha comunidade... eu pensar um futuro para ele a partir do povo... como pai, eu posso ter esse pensamento. Mas o que ele vai aprender, no lugar onde ele vai estar, não vai ensinar a ele com essa concepção. Então, simplesmente [o fato] de o professor ser indígena, dentro de uma escola indígena, é um diferencial muito grande.
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19) Até agora, a gente falou basicamente da escola. Que outros elementos, espaços ou instituições existentes na aldeia hoje podem contribuir para preservar ou alterar a cultura e a identidade cultural do povo Paiter? Hoje a gente tem vários lugares que podem tanto fortalecer quanto tirar também. Temos escola na aldeia, que pode tanto fortalecer quanto tirar. Temos convívios em reuniões, discussões, que também podem valer para os mais jovens tirarem uma reflexão, uma conclusão do que realmente é ser indígena: “Em que mundo estou, onde estou, em que possibilidade eu estou aqui”. Essas reflexões, elas têm que ser causadas com sabedoria, professor... no sentido de... assim... sabedoria... você tem que mostrar para o jovem que, ao longo da história, o convívio paiter, ele sofreu mudança com o contato com outras etnias. Mas você tem que diferenciar essas mudanças com o contato com a sociedade não indígena. Às vezes a gente tem discutido muito sobre isso, mas acaba não se alcançando o ponto que tem que ser alcançado daquilo que é realmente o que acontece, é o que a gente sente como indígena. Eu, indígena, professor, jovem... tenho que saber hoje... saber hoje que aquela terra que está onde ele está, a família dele está, os filhos dele vão estar, não é de garantia dele. Há uma coisa que a gente fala, o nosso povo fala, que a gente vive no mundo, mas não entendemos para onde vai realmente aquilo que a gente quer. E isso a gente tem percebido quando os direitos dos povos indígenas são atacados constantemente. Você não tem garantias de estar ali simplesmente porque você é ser humano... Essa mudança cultural com os outros contatos com as outras etnias é bem diferente do outro contato agora. Ao mesmo tempo em que você está vivendo, você pode não existir mais daqui a pouco... Essa questão da mudança cultural é uma coisa mais complexa que eu estava querendo chegar, mas... A gente fala que o Estado é uma instituição, e tudo aquilo que vem dela é discutido por eles para a gente. Então, a gente tem que conhecer isso. E o outro espaço, e esse espaço é uma coisa que vai mudando e a gente não percebe... o outro espaço é a gente ter contato sempre com a cidade, um contato assim quase todo dia, quase toda semana. Será que eu tenho uma reflexão dessa minha vida, desse meu cotidiano? Se eu não tiver uma reflexão disso, eu vou ser simplesmente um cara que está ali, de mudança, indo todo dia para a cidade, sem ter um conclusão do que realmente eu estou fazendo. Esses espaços, além da escola, que eu digo... indo para a cidade, indo fazer tratamento, indo fazer compra, o contato mais próximo com os colonos da linha. E também uma grande influência hoje, professor, é a tecnologia. Tecnologia é um espaço... mesmo que ela não tenha um espaço assim... mas vamos supor que ela seja um espaço hoje... Na aldeia hoje todo jovem tem celular, e todo jovem tem no celular vários tipos de música, vídeos. O mesmo espaço que a gente está dizendo que garante essa cultura, essa tradição paiter, está sendo invadido pelos próprios... que a gente está querendo que mantenham a cultura. Então, tem que se pensar muito... são coisas... O que eu estava falando naquela palestra, professor, de segunda-feira... foi segunda-feira?... Que a gente está voltado o olhar tanto para as coisas grandes, e as pequenas violências, o que mais é prejudicial, a gente não vê. Eu chamo isso de pequenas violências [risos]. Porque [o fato] de você simplesmente estar ali, com o celularzinho tocando funck, é um mundo completamente... não que você não pode ouvir isso, mas você tem que ter uma mentalidade de saber o que é um e o que é outro, o que eu sou e o que é o outro, e qual é a minha posição em relação a isso... que hoje não tem. Então, essa propagação de tecnologia sem precedente pode causar uma significativa função de eliminar... a cultura paiter. 20) O que você acha das igrejas existentes na aldeia?
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A igreja é... pessoalmente, eu acho uma coisa muito distante do nosso mundo, eu como paiter. Se eu for pensar a partir do pensamento do que é paiter, a partir do... vamos supor, um paiter que nunca teve um contato com a igreja, mas que vai conhecer isso e tirar uma reflexão disso. Com certeza ele vai saber que o que é dele é mais importante. Não no sentido de mais importante... o que é dele... ele prefere o dele do que o do outro. No meu ponto de vista, a igreja teve um papel fundamental também de tirar uma maior parte, um dos princípios mais importantes da cultura paiter... que é a espiritualidade própria paiter. [Quando] tirou isso, acho que os paiter ficaram a mercê de qualquer coisa... porque você não tem realmente uma ligação... além, sobrenatural... própria do paiter. Você tem um sobrenatural pensado a partir de um outro. Você não sabe, você não viveu aquilo. Você dizer para um paiter, hoje: “Jesus morreu na cruz. Filho de um deus, morreu por nós”, ele se joga no chão, cai, levanta, sobe nas paredes, porque ele acredita. Mas está havendo pessoas aí que estão questionando isso. Pessoas adultas, velhos, líderes. Uma concepção de igreja é de... manter... vamos supor... o bem, a paz. Mas essas mesmas pessoas... como meu pai fala... toda vez eu me refiro a ele, né [risos]... ele fala que são falastrões, aqueles que falam, falam, falam e não praticam o que eles falam. Então, há uma certa dúvida por causa disso na igreja. Mas eles vão tomando aquilo de uma outra forma. Até porque, dentro dos paiter, não existem mais missionários que dão conta da igreja. Não tem mais igreja batista. Hoje tem igreja Suruí. Eles mesmos tomaram posição. Mas com aquele pensamento ainda. E, tudo o que for pensar a partir do paiter, para eles não vale, é coisa do demônio. E aí, assim, o princípio mais importante dos paiter foi tirado, que é a sua espiritualidade. Daí que não há outra coisa na floresta, não tem significado para você... A gente está ouvindo aqui cigarras... Meu pai fala que cigarra tem espírito, ela não é simplesmente um inseto... Um crente da igreja acreditava, mas não acredita mais. Coisas da floresta não têm mais sentido para ele, perdeu essa ligação. E aí, nessa questão, professor... na construção do pensamento dos paiter, se a gente for analisar, vai ter uma interrupção, uma ruptura, assim... você corta uma coisa aqui, e de repente coloca outra coisa... e a gente vai perceber um dia que os paiter viveram numa época vagos do próprio eu deles, do próprio eu do paiter. Ele sendo paiter de carne e osso, mas ele viveu de outra forma. Então, como é que eu vou pensar no futuro essa ligação depois?... Um paiter espiritual, das coisas que existem... e um paiter que teve em uma geração essa ruptura, essa lacuna. Como é que depois vai ter um pensamento para ligar essas coisas? Houve uma lacuna. Como é que a gente vai refletir isso depois como paiter? Essa lacuna? É uma perda significativa do pensamento paiter. Então, a presença da igreja, nesse sentido, vai ser dessa forma. Porque, a gente sabe que... eu mesmo tenho uma posição pessoal quanto à igreja. Não precisava ter a igreja nas comunidades indígenas. Não precisava, não há necessidade. A gente acredita no criador. Olha só, a gente chama Palohp, Nosso Pai. O Palohp não tem mais uma tradução de um paiter dizendo “Ah, Nosso Criador!”, ou “O Criador!”. Ele vai dizer Deus, com um pensamento já com uma figura criada por igreja. Ele já não fala mais o deus com o pensamento com aquela figura do paiter. Ele fala de deus pensando na figura criada por igreja. E aí, eu pessoalmente sei que a igreja sofreu transformações ao longo da história, e nem o próprio Ocidente sabe mais qual é a função da igreja hoje. Os grandes religiosos, as grandes igrejas, estão todos aí por causa do dinheiro. Quer dizer, dentro do próprio Ocidente, ela perdeu a função. Imagina dentro das comunidades indígenas. E aí, o pensamento filosófico nessa lacuna dos paiter... são coisas assim para a gente pensar, para ter uma noção realmente de qual é a função da igreja nas comunidades indígenas. 21) Por mim, nossa conversa se estenderia aqui por mais algumas horas, mas temos que encerrar, até porque a Maria está te esperando. Então, só mais umas questões pontuais. Que opinião você tem sobre a presença da televisão na aldeia?
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A televisão é um mundo pequeno, que é capaz de entrar na nossa casa, sem a gente ter essa reflexão. Em algum momento, ela pode se transformar em uma outra pessoa. Você muda o comportamento, você muda a maneira de pensar. Ela te faz pensar da maneira dela. Então, hoje, o modo de viver, o modo de pensar dos paiter é muito da televisão... a maneira de se vestir... ela te influencia em tudo. Quando é que você vai pensar em um paiter que está ali, vinte e quatro horas na televisão... novela principalmente... filme, propaganda... ela te dá uma noção de um mundo que não é seu. Eu percebo hoje que os paiter tentam ser aquilo, mas não conseguem ser. O pensamento das crianças hoje é ser um Ronaldinho, Neymar, Luan Santana... E no meu ponto de vista, professor, isso é um grande problema, um problema seríssimo. Seria legal se os pais tivessem condições de fazer eles desse jeito... Nas condições que os paiter hoje estão, pode ser uma grande frustração, e um grande problema a partir daí dentro das comunidades... a partir da televisão. Porque um problema social de um outro, de uma outra sociedade, entra na minha casa do tamanho daquele negocinho ali... e aí você perde a maneira de se comportar com seus pais, seus amigos... ela de influencia em tudo, professor... A gente tem que pensar em como utilizar essa ferramenta dentro da aldeia, não simplesmente ignorar, mas realmente pensar como a gente pode fazer proveito dessa tecnologia e dos celulares também, de uma maneira social, conviver com esse mundo. Não ignorar, mas conviver. Então, a televisão, no meu ponto de vista, sem reflexão, ela é o problema do mundo inteiro dentro da nossa casa. 22) Uma penúltima pergunta: Na sua opinião, em termos gerais, qual é o papel dos professores Paiter em suas comunidades? O que deve se esperar desses professores? Os professores, eu acredito que eles têm uma função fundamental em todo esse processo que a gente debateu aqui, professor. Sem eles, não vai ter a oportunidade de a gente debater realmente os problemas que existem e tirar as reflexões disso. Os professores têm essa tarefa, essa missão, de não somente dar aulas, mas de fazer refletir os problemas nas comunidades indígenas. Ao longo do tempo, a gente percebe que a escola fez transformar pessoas, do jeito que as pessoas pensam. Vamos supor uma pessoa que pensa uma escola, e coloca essa escola em uma comunidade... quer dizer, a intenção dessa pessoa é transformar esse grupo do jeito que ela pensou aqui. Aí, o papel dos professores indígenas é ao contrário... eles pensarem como é que a gente vai escolarizar a nossa comunidade, as nossas crianças, mas pensando primeiro na visão de mundo dos paiter e na visão de futuro. Porque na visão de mundo, você vai conhecer todo o pensamento paiter como paiter. Você vai partir dessa visão de mundo para uma visão de futuro, para onde você vai, e como você vai daí para frente. O papel dos professores é fundamental nesta questão. Então, volto mais uma vez. O professor tem que ter um pensamento crítico por causa disso, não somente ser um professor de dar aula, mas um papel de professor de fazer mudanças nessa perspectiva, ser conhecedor da visão de mundo paiter e também ser um estratégico, uma pessoa estratégica para fazer acontecer a visão de futuro paiter... de ser um grande líder também. É isso. 23) Uma última pergunta então, infelizmente [risos]. Considerando tudo o que você falou hoje aqui, suas reflexões, esse seu ponto de vista crítico sobre vários assuntos, como você imagina que a cultura do povo Paiter vai estar daqui a 100 anos? Cem anos, professor? É... realmente, você me pegou agora [risos]. Deixa eu fazer uma conta aqui, professor. Estou com trinta anos. Daqui a cem anos, cento e trinta. Bom, professor, eu acho que vai haver uma mudança significativa, em relação, primeiro, a sua
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cultura anterior ao contato. Vamos ter pequenas coisas que se fazem hoje, de coisas paiter que são artesanato hoje... algumas pessoas com certeza vão fazer. Ou não... ou simplesmente fazer para vender alguma coisa. Ou talvez, um mais esperto possa aparecer, possa aparecer um empreendedor e fazer disso um negócio. Temos que pensar várias coisas ao longo de cem anos, né. E outra coisa, não vai ser o mesmo estilo de vida, não vai ser a mesma coisa do que é realmente hoje. Cem anos, nem eu vou estar vivo. Só se eu viver cento e trinta anos. Eu imagino assim, professor, que vai haver grande avanço nas tecnologias... quer dizer, inseridas em aldeias... aldeias digitais. Um estilo de vida parecido com o daqui da cidade. E acredito que, também, há pessoas que vão optar em viver mais de forma tradicional. Eu estou imaginando uma pessoa que vai “Ah, eu vou escolher viver...”. Mesmo com todo o conhecimento, mesmo com todo o conhecimento do mundo ocidental... porque eu tenho esse pensamento, eu tenho esse pensamento comigo... eu conviver não com todas essas tecnologias, não com todos esses aparatos materiais, mas viver com o essencial, na floresta. Mas eu tenho um pensamento sobre tudo. Então, em cem anos, eu percebo que há pessoas paiter que vão optar em viver assim, e vão ter grandes pensadores também, que vão optar em viver mais tranquilos, mas contribuindo de tal forma em todos os sentidos. Acho que o futuro paiter daqui a cem anos vai ser bem diferente. E, com certeza, professor, a gente não pode esquecer o outro lado... vai haver mais problemas sociais. Atípicos ou típicos, urbanos. Vai ter esse problema também, com certeza. Então... você me pegou agora. Eu nunca tinha refletido em cem anos. Eu tinha refletido dez, vinte, trinta, cinquenta anos. Mas cem anos [risos]. Acho que a memória da gente se limita a nossa idade, e a gente é incapaz de pensar [risos] em tempos mais longos. 24) PP1, fiz minha última pergunta aqui da entrevista. É sempre um prazer ouvi-lo. Mais uma vez eu queria agradecer por essa oportunidade. Às vezes, aqui na universidade a gente tem uma relação professor-aluno em que parece que o conhecimento vai sempre do professor para o aluno, mas esse aqui é um momento que exemplifica o fato de que às vezes é o contrário, os ditos professores aqui na universidade é que aprendem com os chamados alunos. Numa situação como essa aqui hoje não há essa relação professor-aluno, a menos que seja professor você e aluno eu. Realmente sempre é uma oportunidade de se aprender. Eu queria registrar minha felicidade de ter essa oportunidade de conversar contigo, ainda tão jovem. Como já te falei mais de uma vez, eu acho que você tem potencial para ser futuramente... já é um líder, e certamente no futuro será em proporções ainda maiores, em um futuro próximo. Então, eu sou um felizardo de ter a oportunidade de ter esse tipo de convivência contigo hoje. Sei que, futuramente, a sua contribuição para o movimento indígena, para o seu povo será ainda maior. Então, muito obrigado por essa oportunidade. Mais uma vez, eu que agradeço, professor. Acho que se a gente não tiver essa oportunidade, e essas perguntas, acho que a gente é incapaz de, sozinho, pensar em umas coisas assim. Acho que, nesse ponto, é importante, eu vejo uma importância muito grande nesse sentido dessa nossa conversa. E, com certeza, professor, independente de doutorado ou não, eu acho que a gente tem que continuar com essas conversas. Acho que a gente, para contribuir com o pensamento de uma forma ou de outra, estamos aí sempre. E, com certeza, também eu vou te chamar um dia: “Professor, vamos discutir um assunto aí” [risos]. Acho que a nossa amizade vai longe ainda, não vai se resumir somente à universidade. Então, fico feliz também, professor, de ter essa pessoa que você é, uma pessoa próxima da gente. Obrigado mesmo, de coração.