Tese Marcelo Michalczuc Marcelino

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    Mrcio Michalczuk Marcelino

    UMA LEITURA DO SAMBA RURAL AO SAMBA URBANO

    NA CIDADE DE SO PAULO

    Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao Stricto Sensu

    em Geografia Humanada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    da Universidade de So Paulosob a orientao do Prof. Dr. Jlio Csar Suzuki

    2007

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    UMA LEITURA DO SAMBA RURAL AO SAMBA URBANO

    NA CIDADE DE SO PAULO

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    Para meus pais, Maria e Marcelino,Para minha filha, Maria Fernanda,

    Para minha mulher, Fabia.

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    Agradecimentos

    Ao meu pai Marcelino e minha me Maria que sempre me respeitaram,

    incentivaram e acreditaram no meu percurso. Obrigado pelo dom da vida. A minha

    filha Maria Fernanda que mesmo muito pequena compreendeu o valor desse

    trabalho e me permitiu muitas vezes furtar seu valioso tempo junto a mim.

    Verdadeira inspirao de vida e luta! A Fabinha, por compartilhar alegrias e tristezas

    durante a pesquisa e que jamais deixou de acreditar nessa vitria, obrigado por ser

    minha mulher.

    Ao Osvaldo e Selma, braos direitos e esquerdos nos momentos crticos

    da pesquisa, amigos, colaboradores, disponveis em todas as horas, meu muito

    obrigado pelo "trabalho escravo" que realizaram, sem eles no teria chegado a

    esses agradecimentos.

    Ao meu irmo Marcello e minha cunhada Vicky, pelo pronto atendimento

    na confeco do abstract, obrigado tambm por me darem a Julinha como sobrinha

    afilhada!

    Ao Jlio Csar Suzuki, orientador e amigo, pela compreenso,

    pacincia, orientao, sabedoria e por acreditar em mim durante todo o processo da

    construo da pesquisa.Ao Francisco Capuano Scarlato, tambm orientador de "outros

    carnavais", e sempre amigo e a Claudete de Castro Silva Vitte pela disponibilidade

    e idias acrescentadas no exame de qualificao. Obrigado por serem a banca

    examinadora dessa dissertao.

    Ao Departamento de Geografia, professores e funcionrios.

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    Ao Instituto de Estudos Brasileiros - IEB, da USP, nas pessoas da

    Diretora Prof Dr Ana Lcia Duarte Lanna e da sua Supervisora Tcnica do Servio

    de Arquivo Maria Izilda Claro do Nascimento Fonseca Leito.

    Professora Olga Rodrigues de Moraes von Simson por indicar

    possibilidades para a pesquisa e caminhos para obteno de fotos sobre o samba

    paulistano, bem como ao pessoal que trabalha com ela no Centro de Memria da

    Unicamp em Campinas - SP.

    Ao Arquivo Histrico Municipal de Campinas na pessoa de Joana

    Tonon, bibliotecria prestativa na consulta dos salvos-condutos do sculo XIX.

    Ao Museu Histrico e Pedaggico Amador Bueno da Veiga de Rio

    Claro-SP, na pessoa da Sr. Maria Antonieta Cassab, pela autorizao para uso de

    imagens.

    Ao Arquivo Pblico e Histrico do Municpio de Rio Claro, na pessoa da

    Prof Ivani Bianchini Hfling, pela autorizao de uso de imagens.

    Ao Instituto Moreira Salles - IMS/SP, nas pessoas das Sras. Odette

    Jeronimo Cabral Vieira, Coordenadora, Virgnia Maria Albertini, Coordenadora

    Adjunta do Acervo Fotogrfico, e Vera Lucia Ferreira da Silva.

    Aos meus amigos de toda hora, que durante trs anos me suportaram

    ouvindo sempre a palavra "mestrado" em nossos encontros, e que, alm detolerarem isso sem nunca reclamar, foram fundamentais para a pesquisa, Guina e

    Tonho, eternos irmos e comparsas que, alm de trabalharem comigo,

    acompanharam as idas e vindas em diversas pesquisas de campo; Cumpadi

    Toninho, fiel assistente de pesquisa de campo que me acompanhou entre outras as

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    vi

    festas de Pirapora do Bom Jesus; Kal e Albert, pela sabedoria de saber ouvir,

    pensar e falar. Valeu rapaziada!

    Ao meu chefe no trabalho Dr. Marcelo Dias, bem como Glson, parceiros

    de trabalho que acompanharam e viabilizaram horrios durante todo percurso do

    mestrado.

    Ao Waldir Romero e Paulo Fuhro, companheiros e parceiros de projetos

    no mundo do samba e nas viagens comunitrias. Hasta la victoria, siempre!

    Ao amigo Cesar Favilla que numa feijoada no sbado de carnaval em

    2002 iniciou uma conversa comigo e que, entre tantos resultados positivos, passa

    agora pela concluso desta dissertao de mestrado, tenho a certeza de que tantas

    outras vitrias viro, muito obrigado!

    Sandro Dozena e Vanir Belo, interlocutores da pesquisa e gegrafos

    sambistas que tambm investigam esse tema, bem como Eduardo Rezende,

    igualmente gegrafo e apaixonado pelo samba, o qual muito contribuiu nas

    discusses metodolgicas dessa pesquisa. Ao Srgio e Juliana, tambm

    gegrafos, fundamentais no processo de construo dos mapas e na arte final do

    trabalho, obrigado pela pacincia e dedicao.

    Aos verdadeiros conhecedores do samba, que com muita disposio e

    ateno ajudaram em informaes primordiais nesta pesquisa e tornaram-seamigos, Dona Cida (Maria Apparecida Urbano), Seu Carlo do Peruche, Osvaldinho

    da Cuca, Dinho do Peruche, Nen Pauzinho, Penteado da Vai-Vai, Fernando Bom

    Cabelo, Hlio Baguna da Camisa Verde e Branco, Evaristo de Carvalho, Moiss da

    Rocha e T. Kaula, obrigado pelo empenho!

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    A todos os componentes da Unidos do Peruche e aos moradores do

    Parque Peruche, obrigado pelo samba, obrigado por serem minha casa!

    A todo o pessoal do Cruz da Esperana, time de futebol de vrzea na

    zona norte da capital que conserva em seu campo uma verdadeira "quebrada do

    futebol e samba", encontro de velhos sambistas e velhos jogadores, cheios de

    experincia e com muitas histrias para contar.

    A Prefeitura Municipal de Pirapora do Bom Jesus, nas figuras do Sr.

    Prefeito Raul Silveira Bueno Jnior, seu vice Sr. Elias de Arajo, e o Chefe de

    Gabinete Sr. Cladio Cruz, sabedores da importncia daquele municpio na histria

    do samba em So Paulo, e valorizadores dessa cultura. Obrigado pela ateno

    dispensada a esta pesquisa e pela autorizao para uso de imagens.

    Ao Gustavo Mello e Leandro Freire do documentrio Samba Paulista,

    que nos conhecemos nos respectivos incios dos trabalhos em Pirapora do Bom

    Jesus e que trocamos informaes valiosas referentes ao samba e sua gente.

    Ao Marcelo Manzatti, fundamental para a obteno em grande parte das

    fotografias desse trabalho, solidrio pesquisador do samba.

    A todos os entrevistados por mim nessa pesquisa, bem como a todos

    que de uma maneira direta ou indireta acabaram por ajudar na concluso desse

    trabalho, as Velhas Guardas de todas as escolas de samba de So Paulo, as alasde compositores, as baterias, as alas das baianas, enfim ao pessoal do samba que

    conta suas histrias por meio da msica, que feliz e tem orgulho de dizer que

    sambista.

    Ao samba.

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    RESUMO:

    A aglomerao de So Paulo no final do sculo XIX comea a tomar corpo

    de uma cidade moderna que se firma como metrpole em meados do sculo XX. O

    samba, muito mais que um simples estilo musical, chega da zona rural paulista e na

    aglomerao de So Paulo toma caractersticas urbanas passando a ser usado

    como voz por parte dos novos moradores, na grande maioria mo-de-obra barata.

    O crescimento do aglomerado imps ao samba a necessidade de mudanas

    para ser incorporado dinmica urbana insurgente e de conseqentes

    transformaes sociais que ocorriam gerando centralidades peculiares.

    Visto como marginal na sociedade paulistana at praticamente o final dosculo XX, seno at hoje, cabe-nos desvendar em que contexto o samba se

    desenvolveu (incio do sc. XX at incio do sc. XXI), sempre na perspectiva do

    crescimento urbano paulistano, compreendendo seus valores e como estes

    contriburam para a formao de uma cultura urbana paulistana tpica de periferia

    formada em grande parte por pessoas vindas da rea rural: na maioria negros que

    encontraram vasta heterogeneidade de tipos humanos e culturas, que

    aparentemente no poderiam se misturar, mas que acabaram identificando-se efundindo-se no mesmo sentimento de pertena em uma nova realidade, agora

    urbana em suas vidas.

    A trajetria que o samba percorre do rural ao urbano serve como

    fundamento de leitura da metamorfose da sociedade brasileira, tendo So Paulo

    como referncia no bojo da modernizao da aglomerao e de sua metropolizao.

    PALAVRAS-CHAVE: Rural, Urbano, Samba, So Paulo, Centralidades

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    ABSTRACT:

    The gathering of people in So Paulo city at the end of the XIX century starts

    to shape it into a modern city, which establishes itself as a metropolis at the end of

    the XX century. The Samba rhythm, much more than just a musical style, comes

    from the rural areas of the So Paulo State and in the bringing together of people,

    takes urban features and is used as a common voice by the newcomers, the vast

    majority of cheap labour.

    The growth of the gathering imposes a need of change to the Samba, so to

    be incorporated into the upcoming dynamic of it, as well as into social

    transformations which were happening, generating peculiar centralities.Not seen favourably by the society of the city, the Paulistas, until practically

    the end of the XX century, perhaps till today, we place ourselves to reveal in what

    context the Samba developed (from the beginning of the XX century until the

    beginning of the XXI century), always with a point of view based on the urban growth

    of So Paulo city, understanding its values and how these contributed in the

    formation of the city's typically urban and peripheral culture, formed a great deal by

    black rural people who found vast heterogeneity of human and cultural types whichapparently could not mix, but ended up identifying with one another and based

    themselves in the same feeling which belonged to a new reality, now urban, in their

    lives.

    As a trajectory, the Samba travels from rural to urban and serves as a

    reading foundation to the metamorphosis of the Brazilian society, having the city of

    So Paulo as a reference in the interior of the modernization of the gathering and its

    metropolitanization.

    KEYWORDS: Urban, Rural, Samba, So Paulo City, Centralities.

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    Quem quiser saber o meu nome

    No precisa nem perguntar

    Eu me chamo Plnio Marcos

    Sou pagodeiro do lugar

    O samba a forma da gente minha falar dos seus mais ternos sentimentos

    E nesse embalo que eu vou

    Vou contar do samba da paulicia e de sua gente

    Que do tamanho do mundo

    Porque no se acanha de contar as histrias do seu pedao

    De cho de terra firmeCom licena dos mais velhos,

    vamos de samba

    Samba da Paulicia, Plnio Marcos

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    SUMRIO

    Introduo ............................................................................................................. p. 1

    Captulo 1 Samba Rural .................................................................................... p.10

    1.1. O Espao do Samba Rural .................................................................. p.20

    Captulo 2 So Paulo: do Rural ao Urbano ....................................................... p.42

    2.1. O espao da transio do samba rural para o samba urbano ............. p.51

    Captulo3 Samba Urbano ...............................................................................p.110

    3.1. O espao do samba urbano ............................................................... p.122

    Consideraes Finais ....................................................................................... p.153

    Referncias ........................................................................................................ p.158

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figuras

    1 Di Cavalcanti. Samba, leo sobe tela, 33 x 55 cm, 1967 ....................... p.1

    2 Di Cavalcanti. Samba, leo sobre tela, 177 x 154 cm, 1925 ................ p.10

    3 Di Cavalcanti. Baile Popular, leo sobe tela, 89 x 116 cm, 1972 ......... p.42

    4 Di Cavalcanti. Carnaval, leo sobe tela, dcada de 60 ...................... p.110

    5 Plo Cultural e Esportivo Grande Otelo .............................................. p.1426 Di Cavalcanti. Samba, leo sobe tela, 33 x 55 cm, 1967 ................... p.153

    7 Di Cavalcanti. Figuras Carnavalescas, leo sobe tela,

    100 x 82 cm, 1965 .................................................................................... p.158

    Fotos

    1 Autor Desconhecido. Umbigada ........................................................... p.142 Rodolpho Copriva Jr. Samba leno ...................................................... p.15

    3 Rodolpho Copriva Jr. Modistas e batuqueiros....................................... p.16

    4 Mrio de Andrade. Reverncia ao bumbo ............................................ p.17

    5 Claude Lvi-Strauss. Vista de Pirapora ................................................ p.20

    6 Mrcio Michalczuk Marcelino. Vista de Pirapora .................................. p.21

    7 Claude Lvi-Strauss. Anjo de promessa se prepara para procisso..... p.24

    8 Claude Lvi-Strauss. Acampamento de Romeiros ............................... p.26

    9 Autor desconhecido. Barraco dos romeiros ........................................ p.27

    10 Autor desconhecido. Tambu e candongueiro. Jongo ......................... p.29

    11 Autor desconhecido. Grupo Barra Funda na festa de Pirapora........... p.32

    12 Claude Lvi-Strauss. Samba de bumbo do Bairro da Liberdade ....... p.33

    13 Mrcio Michalczuk Marcelino. Festa de Pirapora do Bom Jesus ....... p.35

    14 Mrio de Andrade. Samba de bumbo ................................................. p.38

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    15 Mrcio Michalczuk Marcelino. Memria do Samba de Bumbo ........... p.39

    16 Autor desconhecido. Bloco camponeses do Egito ............................. p.50

    17 Autor desconhecido. Nen da Vila Matilde ......................................... p.52

    18 Claude Lvi-Strauss. Desfile do Cordo Campos Elseos ................. p.54

    19 Autor desconhecido. Rei e Rainha na Escola de Samba Nen da Vila

    Matilde ........................................................................................................ p.57

    20 Claude Lvi-Strauss. Rei e Rainha com estandarte ao fundo ............ p.58

    21 Autor desconhecido. Inaugurao da primeira viagem de bonde na linha

    So Bento-Barra Funda .............................................................................. p.64

    22 Autor desconhecido. Caiaps ............................................................. p.69

    23 Olga von Simson. Dionsio Barbosa ................................................... p.7124 Autor desconhecido. Componentes da Leandro de Itaquera com

    destaque para o bumbo .............................................................................. p.73

    25 Passaporte de Escravo em 1873 Frente ......................................... p.75

    26 Passaporte de Escravo em 1873 Verso .......................................... p.76

    27 Autor desconhecido. Evoluo do Baliza do Grmio Recreativo e

    Carnavalesco Moderado da gua Branca .................................................. p.77

    28 Autor desconhecido. Campo da Bela Vista - incio do sculo XX ...... p.9329 Affonso de Freitas. Tradies e Reminiscncias Paulistanas ......... . p.97

    30 Carro alegrico da Escola de Samba Lavaps .................................. p.98

    31 Autor desconhecido. Destruio de instrumento na Peruche ........... p.106

    32 Autor desconhecido. Depois da invaso policial na Peruche ........... p.107

    33 Autor desconhecido. Ala das Pastoras da Nen da Vila Matilde ...... p.119

    34 Claude Lvi-Strauss. Espera pelos desfiles na Av. So Joo .......... p.125

    35 Autor desconhecido. Carnaval do Parque Xangai ............................ p.12836 Autor desconhecido. Desfile no Anhangaba ................................... p.131

    37 Autor desconhecido. Primeiro desfile aps oficializao pela prefeitura

    em 1968 .................................................................................................... p.132

    38 Autor desconhecido. Desfile na Tiradentes em 1978 ....................... p.136

    39 Mrcio Michalczuk Marcelino. Ensaio para o carnaval de 2006 ....... p.138

    40 Autor desconhecido. Plo Cultural e Esportivo Grande Otelo .......... p.141

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    41 Autor desconhecido. Bateria da Nen desfilando sob a chuva, com seus

    chocalhos de vara ..................................................................................... p.146

    42 Autor desconhecido. Desfile de rua da Nen de Vila Matilde, Largo de

    Vila Esperana .......................................................................................... p.148

    Mapas

    Mapa 1 - Samba Rural: Espao e Representao...................................... p.41

    Mapa 2 - O Espao da Transio do Samba Rural para o Samba

    Urbano......................................................................................................... p.63Mapa 3 - O Espao do Samba Urbano...................................................... p.123

    Mapa 4 - Samba Urbano - 2 Fase: Espao e Pronunciao.................... p.149

    Quadros

    1 Cordo. Formao Original. Dcadas de 10 e 20 .............................. p.1162 Cordo. 2 Fase. Dcadas de 30, 40 e 50 .......................................... p.118

    3 Mapa. Desfile da Unidos do Peruche em 2007 .................................. p.120

    Anexos

    1 Transcrio de materia jornalstica publicada em 28/10/2005, no CadernoZN6-Educao, do Jornal O Estado de So Paulo. ................................. p.169

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    INTRODUO

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    Nossa infncia foi permeada pela presena do samba em virtude de

    morarmos em um bairro paulistano conhecido, sobretudo, por sua escola de samba.

    Muitas pessoas sequer sabiam que o Parque Peruche era um bairro. Quando se

    falava em Peruche, a associao imediata era com a Escola de Samba Unidos do

    Peruche, o bairro ficava relegado a segundo plano, quando no era simplesmente

    ignorado pela maioria dos habitantes da metrpole.

    Estes fatos ficaram gravados em nosso imaginrio e depois, j adultos,

    resolvemos estudar o bairro no Trabalho de Graduao Individual para obteno do

    ttulo de Bacharel pelo Departamento de Geografia da FFLCH/USP, intitulado A

    Evoluo Urbana do Parque Peruche e sua Gente. Por fim, foi transformado em

    livro logo aps sua apresentao.A escolha de eleger este bairro se deveu a toda nossa vivncia, por ter sido

    a nossa morada. Apenas posteriormente demo-nos conta que estudamos o bairro

    em virtude de seu elemento espacial mais conhecido, a Escola de Samba Unidos do

    Peruche.

    Resolvemos, portanto, trilhar o caminho inverso, retomar a evocao que a

    populao da metrpole faz quando citamos o nome Peruche, vamos estudar o

    samba paulistano to presente em nossa vida.Esta deciso no foi to fcil como apenas estudar o bairro; para ter a exata

    percepo da cultura que envolve este universo particular, para ter o contato

    necessrio com o mundo do samba, foi preciso participar efetivamente da Escola de

    Samba Unidos do Peruche. Assim, comeamos como integrantes de ala e

    chegamos a assumir sua direo cultural.

    Nosso objetivo original do mestrado era analisar a cultura e a espacialidade

    do samba de So Paulo, para tanto, o ideal seria remetermo-nos gnese destacultura e sua espacializao, alm, claro, de verific-las no perodo atual. Este

    trabalho, no entanto, seria demasiadamente extenso, por isso resolvemos, nesta

    primeira etapa, focar a transio do samba rural para o samba urbano, que j no

    uma tarefa simples - visto que as informaes sobre o objeto de estudo aqui tratado,

    geralmente, provm de fontes orais que ficaram perdidas ao longo dos anos, e que

    demandam um certo tempo para serem resgatadas. Assim, o objetivo geral da

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    pesquisa foi o de desvendar a trajetria do samba em So Paulo, pois, o mesmo

    serve como fundamento de leitura da metamorfose da sociedade brasileira, tendo a

    aglomerao de So Paulo como referncia no bojo da modernizao da

    aglomerao e de sua metropolizao.

    Muito contriburam para a construo da etapa inicial, as conversas

    mantidas com o Orientador, que oportunizaram possibilidades que no faziam parte

    do projeto inicial, sugerindo recortes para satisfazer os interesses da pesquisa, bem

    como utilizar sua experincia acumulada para assistir na sua construo,

    encaminhando o debate, dessa forma, para a transio do rural ao urbano.

    Como o perodo de mestrado no possibilita o tempo hbil de confeco

    para desvendarmos todo o processo de formao e transformao do samba nacidade, optamos por nos restringir metamorfose do samba gerada pela mudana

    espacial e pretendemos, posteriormente, dar segmento pesquisa aprofundando as

    questes do samba na metrpole por meio do repertrio j acumulado.

    Assim, o que pesquisamos foi o deslocamento do movimento cultural

    nascido na zona rural de So Paulo para a urbana, analisando esta metamorfose

    espacial e a manuteno das caractersticas rurais dessa cultura, demonstrando que

    temporalidades sociais produzidas no passado podem estar presentes naatualidade.

    Esta questo envolve a forma como o modo de produo econmico,

    melhor dizendo, como o capitalismo, por meio da indstria cultural, influenciou o

    samba urbano de So Paulo em detrimento de alguns elementos do samba rural,

    como a religiosidade, por exemplo.

    O ponto central do trabalho a formao do samba urbano paulistano. Para

    sua anlise, voltaremos sua origem, ao samba rural, e principalmente ao perodode transio do samba rural para o samba urbano, que foi marcado pela

    transformao da cidade em metrpole. Este perodo fundamental por apontar

    tendncias que surgiram no samba urbano, por indicar alguns caminhos que o

    samba urbano poderia ter seguido, mas no trilhou, restando apenas como

    reminiscncias nos dias atuais; indicaes provveis para um novo caminho a ser

    seguido, enfim, uma nova possibilidade para o samba.

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    A cidade de So Paulo no final do sculo XIX, por sua estrutura, rede de

    transportes e centralidade financeira e comercial, j se direcionava para o que viria a

    ser uma metrpole em meados do sculo XX. O samba, ao ser trazido da zona rural

    paulista, no apenas incorporou caractersticas urbanas, muito mais que um

    simples estilo musical, passou a ser usado como voz por parte destes novos

    moradores, que l acabaram por se tornar mos-de-obra baratas.

    Em suas pesquisas sobre a industrializao de So Paulo, Sandra Lencioni

    (1991) aponta que, no comeo do sculo XX, havia uma concentrao de indstrias

    no interior e muitas acabaram migrando para a capital, fazendo com que o

    contingente populacional de So Paulo aumentasse.

    Foi, no entanto, o prprio crescimento da cidade e sua transformao emmetrpole que impuseram ao samba as mudanas necessrias para que ele

    pudesse ser incorporado nova dinmica e a todas as transformaes sociais

    espaciais que surgiam.

    Alm deste contingente populacional que j trabalhava na indstria, os

    trabalhadores das fazendas de caf foram particularmente importantes neste

    processo, afinal, era l que o samba vinha sendo realizado.

    Sempre visto como marginal na sociedade paulistana at praticamente ofinal do sculo XX (seno at os dias atuais), cabe-nos desvendar em que contexto

    o samba paulistano surgiu: em um perodo (incio do sculo XIX at incio do sculo

    XXI) em que a pequena cidade com poucos moradores do ltimo quartel do sculo

    XIX comeou a conhecer a chegada de nmero expressivo de migrantes,

    culminando no sculo seguinte na grande metrpole que hoje, sempre na

    perspectiva do crescimento urbano paulistano; cabe-nos ainda compreender a

    contribuio da zona rural para uma cultura suburbana paulistana, que era formadaem sua maioria por pessoas vindas da rea rural e que aqui encontraram uma vasta

    heterogeneidade de culturas que aparentemente no poderiam se misturar, mas que

    acabaram identificando-se e fundindo-se no mesmo sentimento de pertena em uma

    nova realidade, j definitivamente urbana. Ademais, percebemos tambm que

    ocorreu uma identificao de classe social, j que os negros e outras pessoas, como

    os operrios italianos, por exemplo, eram pobres.

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    Sobre a marginalizao do samba, lembramo-nos de nossos tempos de

    escola, do samba feito no final das provas. Ns ramos repreendidos pela direo

    que alegava que o samba era coisa de maloqueiro e vagabundo. Tentvamos

    resistir indo para fora da escola e o samba continuava, entretanto a direo chamava

    a polcia para dispersar os batuqueiros. Apesar da temtica abordada aqui no ser

    samba e educao, queremos ressaltar que a marginalizao do samba ainda

    existe, todavia iniciativas como a da Escola Municipal Garcia Dvila, na figura do

    seu diretor Waldir Romero, tm levado a escola de samba para dentro do Ensino

    Fundamental mostrando que a marginalizao vem diminuindo (vide Anexo 1).

    A nossa contribuio para a Geografia com essa temtica e a importncia

    da Geografia para analisarmos o samba consistem na relao da mudana doespao com as alteraes no samba.

    O samba rural era feito em uma estrutura espacial em que no havia grande

    necessidade de movimento, lembremos que a conformao territorial da rea rural

    marcada por uma nica centralidade e na rea urbana as vrias centralidades tm

    uma conformao territorial diferente que dificulta as apresentaes e as

    manifestaes culturais coletivas e espontneas. Principalmente depois dos desfiles

    da Avenida So Joo e da transformao dos cordes em escolas de samba,observamos o surgimento de uma fase mais mercantil, em que o samba passa a ter

    um espao determinado, voltado ao espetculo, no qual nem todos participam

    ativamente do processo.

    H vrias determinantes na mudana do samba, como a determinao

    econmica via indstria cultural, o mbito poltico afirmando a nacionalidade e

    sufocando manifestaes regionais, por exemplo. No vamos desconsiderar estas

    determinaes, porm o nosso eixo girar em torno da questo espacial.Sobre o samba consideraremos desde o ritmo, as agremiaes (cordes e

    escolas) e o carnaval - j que quando se fala de samba indissocivel o carnaval e

    as escolas de samba, apesar de, no samba rural, podermos fazer esta distino,

    mas como vamos falar do samba urbano, a trade samba, carnaval e escola de

    samba inevitvel.

    O trabalho de campo que realizamos foi composto de entrevistas, presena

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    em eventos e entidades (escolas de samba, organizaes no governamentais),

    alm de consultas em jornais para levantamento de matrias publicadas, consulta

    em acervos de museus e discos de vinil relevantes para a temtica por ns

    pesquisada.

    As entrevistas ocorreram de acordo com a disponibilidade dos

    entrevistados. Entrevistamos, assim, algumas pessoas que julgamos importantes

    para compreendermos melhor nosso objeto de pesquisa: o Sr. Hlio Romo de

    Paula, o Hlio Baguna, Cidado do Samba Paulistano 2005 (01/06/2005 - 1:30 hora

    de gravao); Carlos Alberto Caetano, Sr. Carlo, fundador, em 1956, do Grmio

    Recreativo Cultural Escola de Samba Unidos do Peruche (08/06/2005 - 2 horas de

    gravao); Sra. Maria Esther de Camargo Lara, quase centenria figura de Piraporade Bom Jesus-SP, a qual nos trouxe importantes informaes da origem do samba

    paulistano (06/08/2005 - 1 hora de gravao); Sr. Eurpedes Rosrio, o Dinho,

    nascido no carnaval de 1948, passista, compositor e bamba do samba paulistano

    (08/08/2005 - 2 horas de gravao); Sr. Fernando Penteado pesquisador e

    divulgador do samba paulistano, neto do fundador da Escola de Samba Vai-Vai

    (10/08/2005 - 1 hora de gravao); Sra. Odenise de Camargo, a Denise, Cidad do

    Samba Paulistano 2006 (12/08/2005 - 1 hora de gravao); Sr. Jos Maria Dias,intrprete e compositor do samba paulistano (13/09/2005 - 1 hora de gravao); Sr.

    Dcio Ferreira participou de diversas escolas de samba e foi um dos grandes

    organizadores do carnaval no bairro da Lapa em So Paulo durante os anos 1950

    (05/10/2005 - 1 hora de gravao); Sr. Larcio Mathias Gurgel, o Brando da Zona

    Norte, compositor com passagens por diversas escolas de samba paulistanas desde

    os anos 1950 (08/06/2005 - 1 hora de gravao); a Sra. Maria Apparecida Urbano,

    professora, conferencista, carnavalesca e importante escritora do samba paulistano(15/03/2006 - 2:30 horas de gravao); Professora Olga Rodrigues de Moraes von

    Simson, importante pesquisadora sobre o samba e carnaval em So Paulo e diretora

    do Centro de Memria da UNICAMP - SP (06/03/2007 - 1h30min de gravao); e,

    Osvaldo Barro, o Osvaldinho da Cuca primeiro Cidado-Samba de So Paulo,

    importante sambista e pesquisador do samba paulista (07/03/2007 - 2 horas de

    gravao), alm de depoimentos colhidos no documentrio Samba Paulista,

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    produzido pela USP, donde transcrevemos importantes depoimentos de antigos

    sambistas com quem no conseguimos marcar entrevistas, bem como aqueles que

    j faleceram.

    Tambm freqentamos diversas escolas de samba em ensaios e atividades

    para conhecermos pessoas e histrias, como Unidos do Peruche, Rosas de Ouro,

    Mocidade Alegre, Camisa Verde e Branco, Nen da Vila Matilde, Morro da Casa

    Verde, Unidos de Vila Maria e X-9 Paulistana durante 2005 e 2006. Participamos em

    2005, 2006 e 2007 de desfiles carnavalescos pela Unidos do Peruche, inclusive

    assumindo a Diretoria de Cultura da mesma, fomos tambm Festa de Pirapora de

    Bom Jesus-SP em 06/08/2005 e 06/08/2006 para observamos e colhermos

    informaes na cidade que considerada o bero do samba paulistano, comoveremos durante a pesquisa, alm de mais uma srie de atividades como O Samba

    Rural Paulistano na Galeria Olido, promovido pela Secretaria de Cultura do

    Municpio de So Paulo durante os meses de maio e junho de 2005, que alm de

    apresentaes de sambas antigos, realizou encontros de pessoas que viveram a

    fase do samba rural, coincidentemente no local onde se fazia esse tipo de samba h

    mais de um sculo.

    Consultamos os arquivos da UESP (Unio das Escolas de Samba de SoPaulo), em dezembro de 2005, a qual possui um importante arquivo da memria do

    samba de So Paulo, bem como do MIS (Museu da Imagem e do Som), o qual nos

    possibilitou acesso a uma srie de gravaes em vdeo sobre a memria do samba

    paulistano com entrevistas de pessoas que fizeram essa histria em So Paulo,

    alm de outras que j faleceram e que no poderamos ter outra forma de acesso

    seno por meio de gravaes em vdeos antigos.

    J as consultas em jornais foram obtidas nos arquivos do Correio Paulistano(anos 30 e 40), Jornal Echo Phonographico (So Paulo, 1904), Folha de So Paulo

    e Estado de So Paulo.

    O trabalho de campo foi dificultado pelas escassas fontes, entretanto no

    objetivamos esgotar a questo dentro da proposta, mas sim buscarmos a transio

    do samba rural ao samba urbano, e assim conseguirmos entrevistas dos principais

    agentes desta transio.

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    Na parte iconogrfica, obtivemos fotos de vrias fases do samba paulistano,

    para visualizarmos melhor as descries e tambm nos possibilitar uma anlise do

    espao, como no caso do Barraco de Pirapora do Bom Jesus. O mesmo ocorreu

    com os desfiles da Avenida So Joo/Vale do Anhangaba, Tiradentes e

    Sambdromo (Plo Cultural e Esportivo Grande Otelo).

    Como sntese, na parte grfica, confeccionamos mapas para visualizarmos

    os centros de irradiao do samba e o movimento espacial do samba no Estado de

    So Paulo, e principalmente o movimento do samba na metrpole paulistana.

    A justificativa de uma pesquisa envolvendo samba e urbanizao no

    uma tarefa simples, foi necessria uma ampla compreenso terica e metodolgica

    para que pudssemos construir as possibilidades de explicar a urbanizaopaulistana em fins do sculo XIX at o sculo XX e sua relao com o samba.

    Ocorreu de nossa parte, pela proximidade com o tema, uma empatia, mas era

    preciso muito mais que isso, ou seja, um conjunto terico, o qual levasse para o

    urbano uma compreenso de como os sambistas criam suas identidades com o

    espao em que ele se estabelece, trazendo peculiaridades diferentes daquelas em

    que o mesmo objeto de pesquisa possa significar em outros espaos. A contribuio

    como modelo explicativo para outros espaos e realidades no caso da cultura, podeser fornecido pela geografia cultural para analisarmos a relao entre espao e

    cultura, no caso o samba e a metrpole.

    A Geografia Cultural uma das abordagens da Geografia que analisa o

    espao no somente do ponto de vista econmico, ou seja, no se verifica somente

    a produo do espao nos termos marxistas, mas parte das manifestaes culturais

    no espao, ou melhor, como o espao possibilita ou impossibilita as manifestaes

    culturais.O tema principal do nosso trabalho o espao do samba, ou seja, onde o

    samba criava seus territrios com suas manifestaes. O estudo da cultura em si

    no caracteriza a geografia cultural, necessrio estudar as representaes, os

    rituais. No nosso caso, apesar da pesquisa envolver cultura, no ficamos restritos s

    ao determinante cultural, observamos tambm como o espao foi sendo modificado

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    pelos fatores econmicos e, a partir dessa modificao, como a cultura foi sendo

    alterada.

    Portanto, apesar de estudarmos a cultura popular, a nossa abordagem no

    seguir estritamente a corrente da Geografia Cultural, pois, no nosso entender, o

    principal agente de transformao do espao o modo de produo econmico que

    vai moldando o real de acordo com os seus interesses. Ademais, acreditamos que a

    abordagem terico-metodolgica da Geografia supere a perspectiva mono-

    metodolgica sem ser ecltica e no subdividida a ponto de classificarmos correntes

    deterministas que no nosso caso, engessaria a pesquisa.

    Assim, como o objeto de nossa pesquisa est na transio do samba rural

    para o urbano, dividimos nosso trabalho em trs captulos denominados: SambaRural, que trata da importncia de Pirapora do Bom Jesus como vrtice do encontro

    de negros provenientes de vrias localidades do interior paulista e tambm da

    cidade de So Paulo, que elegeram a referida cidade para a realizao dos

    batuques, tornando-a referncia obrigatria para a compreenso da chegada do

    samba na Capital Paulista; So Paulo: Do Rural ao Urbano, que versa sobre o

    espao da transio do mundo rural para o mundo urbano, dissecando o objeto de

    nossa pesquisa, bem como, a metamorfose do samba e seus arranjos no novoespao; e Samba Urbano, que discorre sobre a apropriao pelos sambistas de

    determinados espaos na cidade para a manifestao do samba, que culminaram

    com grandes mudanas de sua estrutura inicial at os dia atuais.

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    1. SAMBA RURAL

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    O meu santo padroeiro

    Fez sua morada s margens do Tiet

    E a cidade comemorava ms de agosto em Pirapora to linda de se ver

    Procisso vai rio acima

    Nossa Senhora nos conduz

    Na festana dos romeiros tem batuque de terreiro

    Em louvor a Bom Jesus

    Oi Pirapora oi que vem a

    Oi Pirapora oi que vem a

    Samba de Piracicaba, Tiet, Capivari

    Paguei promessa conquistei amigos

    Madrinha Eunice, Seu Zezinho e Seu Carlo

    Geraldo Filme, Tuniquinho Batuqueiro

    Seu Dionsio, Gerib e Frederico

    L no Bexiga com a turma do Sardinha

    Dona Iracema e o saudoso Henrico

    E a ento na capoeira levantava

    Quando o samba esquentava no antigo barraco

    E agora chora viola

    Ai que saudade que eu sinto de Pirapora

    (PIRAPORA, Osvaldinho da Cuca e Aldo Bueno, 2002)

    A msica que introduz este captulo uma sntese dos elementos do samba

    rural paulista coletada por Osvaldinho da Cuca, paulistano do Bom Retiro.

    A letra apresenta elementos presentes no mundo rural como a religiosidade

    (romeiros, terreiros, santo padroeiro, procisso), traz ainda as cidades onde era feito

    o samba rural (Piracicaba, Capivari, Tiet), lugares onde o caf era cultivado.Os sambistas expressos na msica foram fundamentais para fazer a ponte

    do samba rural para o samba urbano. Seu Carlo, por exemplo conhecido no mundo

    do samba como Carlo do Peruche, levou o samba rural para o bairro do Parque

    Peruche, que mais tarde originou trs escolas de samba (Unidos do Peruche,

    Imprio da Casa Verde e Morro da Casa Verde).

    Outro sambista citado na msica, Geraldo Filme, tambm transitava entre o

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    rural (Pirapora de Bom Jesus) e o urbano (Colorado do Brs, Vai-Vai, Unidos do

    Peruche). Uma das duas mulheres mencionadas na msica (Madrinha Eunice) foi

    responsvel pela mais antiga escola de samba em atividade da cidade de So

    Paulo, a Lavaps, que existe at hoje no Cambuci.

    J Henrico, alm de participar do cordo Vai-Vai (depois transformado em

    Escola de Samba), foi o primeiro rei momo negro do carnaval paulistano e tambm o

    primeiro compositor da Vai-Vai.

    Osvaldinho da Cuca muito claro em sua fala, no que diz respeito forma

    como v o samba citado no incio deste captulo:

    Esse samba recente, at o pessoal da Zona Leste queria que euconcorresse, mas esse samba no para a avenida. Fui at a

    escola e fiz uma reunio com os compositores, dei sugestes,

    idias, mas esse eu no cantei porque esse samba bem

    batuque, samba caipira. No quero mudar para samba enredo.

    essa conscincia que est faltando para os jovens, a

    importncia da nossa histria, da nossa cultura. (OSVALDINHO

    apud URBANO, 2004, p.127)

    Como disse Osvaldinho no seu comentrio sobre a msica Esse samba

    no para a avenida, o espao urbano onde ocorre o desfile no comporta o ritmo

    do samba rural, que um samba de roda, em que todos entoam um coro no refro.

    o prprio Osvaldinho quem diz: no quero mudar para samba enredo.

    No samba rural paulista, so muito comuns frases complementadas pelo

    coro e posteriormente por um toque mais intenso do bumbo. Por exemplo, nessa

    msica cantada por Dona Maria Ester e os Batuqueiros de Pirapora, h uma parte

    que dona Maria canta: Eu venho vindo sinh, vamose embora, t indo visit meu

    Bom Jesus de Pirapora, mas eu vim visit, ao que o coro responde Meu Bom

    Jesus de Pirapora. (BRITTO, 1986, p. 44)

    Esta msica uma das mais executadas ainda hoje, quando fomos festa

    de Bom Jesus de Pirapora (2005/2006), cidade situada h cerca de 70 Km de So

    Paulo, pude ouv-la vrias vezes sendo executada.

    As adaptaes que o samba rural foi sofrendo na cidade, dando origem ao

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    samba urbano, foram motivadas principalmente pela questo espacial, ou seja, as

    diferenas entre o espao rural e o espao urbano, assim, foram fundamentais para

    gerar um novo tipo de samba. Antes de caracterizar o espao onde o samba rural

    era produzido e sua caracterstica como gnero musical, vamos tecer algumas

    caractersticas sobre o samba em si.

    Apesar de sua origem africana, o samba no possui uma nica faceta. Na

    verdade, constitui-se de matizes, com tipos dos mais variados, que obtm certas

    caractersticas que do ao termo samba um sem fim de tipos e maneiras de ser

    representado. O certo que a definio de samba pelo prprio dicionrio da lngua

    portuguesa1,d-nos a falsa idia de ser uma manifestao padronizada em todos os

    espaos que percorre. claro que, na prtica, no h tamanho reducionismo, basta-nos observar

    nas centenas de cidades brasileiras onde praticada a cultura do samba e

    veremos logo de imediato as mais diferentes formas dessa manifestao cultural que

    o faz como parte importante da cultura brasileira.

    De utilizao muito abrangente, o termo samba originrio da palavra

    semba em quimbundo (lngua de indgenas bantos de Angola) que designa

    umbigo, ou seja, um gesto coreogrfico quase que onipresente na expressocorporal que acontecia entre os negros escravos aqui no Brasil, executado por meio

    de umbigadas (vide Foto 1). Simbolizando primeiro a dana, para anos mais tarde

    se transformar em composio musical, o samba foi tambm chamado de batuque,

    dana de roda, lundu, chula, maxixe, batucada e partido alto, entre outros, muitos

    deles convivendo simultaneamente (ANDRADE, 1965, p. 148-52), afinal, havia uma

    miscelnea musical na poca (final do sculo XIX, incio do sculo XX), sobretudo na

    poca dos carnavais, gerando assim uma influncia de diversos tipos musicais parasua formao.

    Sabemos tambm que havia diferena entre as denominaes expostas por

    Mrio de Andrade (1965, p.148-52). Precisamos ento buscar suas origens no caso

    1 Samba. S. m. 1. Bras. Dana cantada, de origem africana, compasso binrio e acompanhamentoobrigatoriamente sincopado. 2. Bras. A msica que acompanha essa dana. In: Dicionrio Aurlio Bsico daLngua Portuguesa. So Paulo, J.E.M.M. Editora, 1988.

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    de So Paulo e, no interior do estado, encontramos respostas para o surgimento do

    samba paulistano.

    Foto 1Autor desconhecidoUmbigada.Vila Santa Maria, So Paulo SPc. 1950 1960Museu do Folclore Rossini Tavares de Lima

    Umbigada em So Paulo, reminiscncia do samba ruralna cidade de So Paulo em meados do sculo XX.Identificao com o espao rural na periferia de SoPaulo.

    No estado de So Paulo, em meados do sculo XIX, a mo de obra escrava

    era numerosa no interior do estado para servirem s lavouras de caf (vide Mapa 1).

    Botucatu, Rio Claro, So Simo, Itapira, Itu, So Roque, Araoiaba da Serra,

    Laranjal Paulista, Tiet, Campinas, Redeno da Serra, Jacare, Jundia, Caapava,

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    Capivari e Piracicaba (BRITTO, 1986, p.49) so exemplos de municpios que j

    produziam com escravos africanos o que podemos chamar de samba, conforme

    depoimento do sambista Geraldo Filme:

    O nosso samba vem das festas rurais, dadas ao negro aps as

    colheitas, onde tinha batuque, umbigada, samba-leno [...] Nossa

    origem sambista no vem tanto da religio (africana) e da cidade,

    mas sim das festas rurais, os desfiles, por exemplo, surgiram das

    apostas que os senhores faziam em cima de seu cantador, do

    jogo de pernada, na rasteira, tudo como se fosse uma briga de

    galo (FILME, fita n. 112.14-15-16-17)

    Foto 2Rodolpho Copriva Jr.

    Samba leno.Rio Claro SP13.05.1955Coleo particularSamba Leno em Rio Claro, caracterstico samba rural feito em espao deterreiros.

    Ilustramos a citao imediatamente anterior de Geraldo Filme com a Foto 2,

    de samba-leno em Rio Claro-SP, e Foto 3, de batuqueiros, ambas mostrando os

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    aspectos rurais no ambiente de cho batido e a ltima ilustrando os instrumentos

    confeccionados artesanalmente utilizando-se elementos caractersticos da rea

    rural.

    Foto 3

    Rodolpho Copriva Jr.Modistas e batuqueiros.Rio Claro - SP13.05.1955Coleo particularPresena do tambu, precursor do bumbo, fundamental nas batucadas desde apoca dos escravos. Samba rural feito em terreiros.

    Como j dissemos, tratava-se de um samba que continha como

    caracterstica principal o bumbo, instrumento pouco usual nos demais sambas

    que eram promovidos em outros lugares do pas. Originrio da Pennsula Ibrica, foi

    um instrumento apropriado pelos negros paulistas e usado como veculo de

    expresso musical, da, alm de ser conhecido como samba rural, esse samba

    paulista tambm conhecido como samba de bumbo e samba caipira2

    2Dados obtidos junto ao Espao Cultural Samba Paulista Vivo - Pirapora do Bom Jesus - SP. Disponvel em :. Acesso em : 03.08.2005

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    Foto 4Mrio de AndradeReverncia ao bumbo.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Instituto de Estudos Brasileiros USPSmbolo mximo do samba rural paulista, o bumbo,tambm chamado de zabumba foi o principalinstrumento nas batucadas em Pirapora do Bom Jesus- SP.

    Interessante notar acerca do bumbo que, apesar de ter sido apropriado

    pelos negros paulistas, manteve fortes vnculos com a musicalidade marcial dos

    brinquedos populares europeus e com as marchinhas que tanto marcaram os

    primrdios do samba no Brasil. O bumbo um instrumento de forte marcao, que

    conduz toda a rtmica da manifestao desenvolvida pelo batuque, sem contar com

    a atribuio feita ainda pela fora religiosa que ele representava na poca (vide Foto

    4). plenamente reconhecido que o samba , em sua maior influncia, originado do

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    batuque (um misto de danas rituais de lazer e religiosas), vindo da vertente

    africana angola-conguesa, acompanhado apenas por instrumentos de percusso,

    sendo o mais relevante deles o tambu (vide Foto 3), uma espcie de bumbo feito de

    tronco de rvores. (MORAES, 1995, p.94)

    Outro instrumento do samba rural paulista a frigideira, apesar do mesmo

    j ser usado no Rio de Janeiro. Osvaldinho da Cuca tentou trazer o instrumento

    para a cidade de So Paulo:

    Acho que sou o nico ainda que toca frigideira! A frigideira foi um

    instrumento marcante no samba paulistano. Para preservar a

    histria do instrumento, eu criei a ala de frigideiras na Vai-Vai, em

    1976. (OSVALDINHO, Alma do Samba Paulista, 10/09/2006)

    Originalmente no samba rural paulista, a frigideira era tocada com talheres,

    j no samba paulistano era usada uma varinha de metal. Com a produo em escala

    do reco-reco e do tamborim, a frigideira sai de cena para dar lugar aos instrumentos

    fabricados pela indstria de instrumentos de percusso. Apesar da tentativa de

    Osvaldinho de trazer esse instrumento do samba rural paulista para o samba

    paulistano, ela no foi para frente em virtude do aparecimento de um instrumento

    essencialmente urbano e carioca: o tamborim.

    Comeou-se publicamente a generalizar a palavra (batucada) por

    1930. Alguns a explicam como entre o samba e a marcha

    carnavalesca. Em disco, (Deixa a nega pena, Disco Victor, 33524),

    o samba Mangueira fala em batucada equivalendo-o pois ao

    samba. Numa pea de Sinh (J.B. da Silva), Cais Dourado, vem

    batucada numa enumerao de danas. E tambm a palavra

    Sambador. O que dana samba Instrumento obrigatrio na

    batucada (na medida em que obrigatria uma usana popular

    urbana) o tamborim. na batucada, onde impera o tamborim.

    (ANDRADE, 1989, p.52)

    Vemos que na msica do carioca Sinh que aparece a palavra tamborim,

    sendo o instrumento que impera na batucada. Mrio de Andrade ainda diz que o

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    tamborim o instrumento obrigatrio na msica popular urbana. Como a frigideira

    no propiciava uma acstica ideal para um lugar aberto (avenida) e sim para um

    lugar fechado (o barraco) ou de pequenas propores (o terreiro), ela foi

    substituda no samba urbano pelo tamborim.

    Na modalidade inicial do samba rural paulista, a harmonia era feita

    basicamente pelo modista, que cantava a msica para o coro responder,

    posteriormente o batuque iniciava simultaneamente ao coro.

    Esta do modista, como eram chamados os bons batuqueiros,

    consistia em cantar as dcimas que relatavam um determinado

    fato do universo do grupo. Os participantes ouviam em silncio.Em seguida o modista colocava o ponto, cantava uma quadra para

    que todos gravassem a melodia e a letra que seriam motivo de

    dana e canto. Feito isso, cantava os dois primeiros versos da

    quadra aprendida, a que todos os demais batuqueiros respondiam

    cantando os dois restantes da quadra memorizada coletivamente.

    (ARAJO, 1973, p.81)

    Neste caso acima citado, so cantados os dois versos da quadra pelo coro,

    aquele canto que presenciei em Pirapora do Bom Jesus, cantado por Dona Maria

    Ester e um grupo de pessoas da cidade. O coro cantava apenas um verso da

    quadra. Apesar da pequena variao, a dinmica era sempre esta.

    Esta estrutura de melodia muito parecida com os pontos de macumba,

    que muitas vezes tambm so cantados, portanto a melodia do samba rural paulista

    muito prxima da umbanda. No toa que o samba rural paulista tambm era

    conhecido como samba de terreiro.

    O canto inicial das macumbas o salvamento dos santos e

    expulso de Exu. uma melopia montona, verdadeira litania

    em que repete infindavelmente o coro;

    Vamo sarav.

    A que se segue uma fala mais ou menos melodizada: Oh ojosse,

    Oh Xang, com todo cu da religiosidade negra e de quando em

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    quando Sai, Exu expulsando o diabo. A palavra sarav uma

    deformao de salvar. (ANDRADE, 1963, p.162)

    O canto de Dona Ester e o batuque de Pirapora uma verso catlica paraum canto que nasceu da religio africana, pois o canto de Dona Maria Ester era

    entoado pelos negros que pertenciam s irmandades catlicas.

    Alm da oposio entre a religio catlica e a religio africana, existia uma

    distino espacial entre o terreiro e barraco e a praa da Igreja Matriz.

    1.1. O ESPAO DO SAMBA RURAL

    Foto 5

    Claude Lvi-StraussVista de Pirapora.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularPirapora na dcada de 30, imagem buclica, tpica de uma cidade do interior nasmargens do Rio Tiet, praa matriz e igreja como referncia.

    O espao rural tambm tinha o seu ncleo, que era o centro da cidade onde

    a configurao territorial ainda se mantm nas cidades do interior de pequeno porte,

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    ou seja, a praa matriz, onde est localizada a igreja, o coreto e o comrcio

    ladeando a praa (vide Fotos 5 e 6).

    Foto 6Mrcio Michalczuk MarcelinoVista de Pirapora

    Pirapora do Bom Jesus - SPAgosto de 2005Coleo ParticularPirapora no incio do sculo XXI, imagem quase buclica, o lendrio Tiet damsica de Geraldo Filme mostra-se poludo. Progresso para a cidade e para osamba.

    A praa sempre foi o palco para as manifestaes sociais-coletivas que, na

    maioria das vezes, era mediada pela Igreja. Como muitos negros pertenciam s

    irmandades catlicas (Rosrio, So Benedito) suas manifestaes sempre

    continham msicas que eram sambas de exaltao ao santo padroeiro.

    O mtodo seguido era quase sempre o mesmo: para constituir um

    ncleo urbano, o proprietrio fazia doao ou legado de uma

    poro do terreno Igreja catlica na pessoa do bispo mais

    prximo ou de santo do calendrio brasileiro, que se tornava por

    este fato proprietrio desta doao piedosa chamada patrimnio.

    (DEFFONTAINES, 1952, p.122)

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    Como vemos na citao anterior, a Igreja detinha alm da centralidade da

    vida social, patrimnio via doaes e mantinha-se no centro do ncleo urbano das

    pequenas cidades do Brasil.

    Com a cidade de So Paulo no foi diferente, no entanto, quando se torna

    metrpole, nem sempre a igreja consegue manter-se como ncleo central dos

    bairros, pois aqui, a realidade outra, impondo a multicentralidade.

    Para ilustrar melhor o espao rural de Pirapora do Bom Jesus e sua relao

    com os sambistas da Capital, vamos observar a msica Samba de Pirapora de

    Geraldo Filme, que trabalha bem essa questo.

    Eu era meninoMame disse vamo embora

    Voc vai ser batizado

    No samba de Pirapora

    Mame fez uma promessa

    Pra me vestir de anjo

    Me vestiu de azul celeste

    Na cabea um arcanjo

    Ouviu-se a voz do festeiro

    No meio da multido

    Menino negro no sai

    Aqui nessa procisso!

    Mame mulher decidida

    Ao santo pediu perdo

    Jogou minha asa fora

    E me levou pro barraco

    L no barraco tudo era alegria

    Negro batia na zabumba e o boi gemiaIniciando o neguinho

    No batuque do terreiro

    Samba de Piracicaba, Tiet e Campineiro

    Os bambas da Paulicia

    No consigo esquecer

    Frederico na zabumba

    Fazia a terra tremer

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    Cresci na roda de bamba

    No meio da alegria

    Eunice puxava o ponto

    Dona Olmpia respondia

    Sinh caa na roda gastando a sua sandlia

    E a poeira levantava

    Como o vento das setes saias!

    (SAMBA DE PRAPORA, Geraldo Filme, 1972)

    Na msica anterior, observamos a proximidade dos batuques de Pirapora

    com a umbanda, que pode ser notada quando o autor diz Eunice puxava o ponto.

    A caracterstica rural o bumbo quando o autor menciona Negro batia nazabumba, porm o mais significativo em termos espaciais a oposio entre o

    barraco e a procisso. A negativa ao menino negro, em participar da procisso;

    leva-o para outro espao: o terreiro, o barraco. L, junto dos seus, o samba comia

    solto e a alegria predominava.

    Logramos localizar uma foto onde se v uma criana se preparar para a

    procisso, vestida de anjo, demonstrando tristeza em sua expresso, que nos

    remete ao mencionado na letra de Samba de Pirapora de Geraldo Filme (vide Foto

    7).

    Outras cidades do interior de So Paulo tambm so citadas (Campinas,

    Piracicaba e Tiet), porm em Pirapora do Bom Jesus que podemos marcar o

    ponto de partida para o samba paulistano. O aglomerado, desde o incio do sculo

    XVIII, serviu como importante ponto religioso para as romarias que se dirigiam em

    busca dos milagres de Bom Jesus, onde, desde 1724, uma imagem do mesmo havia

    sido encontrada sobre as pedras do Rio Tiet. Na tentativa de levarem a imagem

    para Parnaba, que era a vila mais prxima, sem explicao alguma, a imagem

    voltava para o local de origem. Diante desse fato, vrios devotos construram uma

    capela no local, originando-se a a vila que se denominou Bom Jesus de Pirapora. A

    notcia se espalhou por toda a provncia criando lendas e milagres atribudos

    imagem, gerando assim um enorme fluxo de pessoas devotas do santo, alm de

    peregrinos. Ficaram estabelecidos ento os dias 3, 4, 5 e 6 de agosto como a

    grande festa e culto a Bom Jesus de Pirapora, em que os crentes banhavam-se nas

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    guas, pagavam suas promessas e agradeciam suas graas, principalmente nos

    ltimos dias dos festejos, em virtude da procisso realizada nesse dia. (CUNHA,

    1937, vol. XLI, p.21)

    Foto 7

    Claude Lvi-StraussAnjo de promessa se prepara para procisso.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularEra comum os pais das crianas vestirem as mesmas de anjos para pagarpromessas na procisso. Nesta foto, destaque para as asas de anjo presentesna msica anterior de Geraldo Filme.

    No trecho citado anteriormente, vemos que o autor considera o nascimento

    do samba em Pirapora do Bom Jesus, todavia ele enfatiza a importncia da religio

    catlica, e no cita os sambas de terreiro ou de barraco, j que, nesse perodo

    (sculo XVIII), ainda no havia as plantaes de caf.

    Entendemos, neste momento, que o samba no surge sem os negros, pois

    os batuques j eram realizados em outros diferentes pontos do Brasil. A questo

    religiosa foi fundamental para os encontros dos negros que se dirigiam para l em

    virtude da festa de Bom Jesus de Pirapora, e ali compartilhavam suas experincias

    musicais, promovendo a gnese do samba paulista.

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    Quando os negros chegaram j existia uma estrutura da Igreja Catlica,

    inclusive com festejos do Bom Jesus de Pirapora, que eram muito sedutores, fato

    que ajudou a incorporao de alguns escravos e de homens livres para as

    irmandades catlicas.

    Cabe ressaltar aqui, que as irmandades catlicas eram formadas por leigos

    e no por pessoas formadas para exercer a vida eclesistica, porm a Igreja

    Catlica administrava indiretamente essas irmandades.

    Outro autor, Moraes, descreve bem a importncia de Bom Jesus de

    Pirapora na constituio e reconhecimento do samba rural paulista:

    Com o crescimento da populao flutuante nos dias de festa,quando os hotis, penses e casas de famlia ficavam lotados, a

    alternativa para vrias pessoas era acampar s margens do rio

    (geralmente os caboclos que utilizavam essa forma de

    alojamento). Afastados da vila tambm existia dois amplos

    edifcios abandonados que haviam servido de moradia de

    seminaristas e religiosos, e neles se alojavam exclusivamente os

    negros vindos de todas as regies e cidades da provncia. nesse

    local que a parte profana dos festejos vai se originar e se

    desenvolver, pois, aps os cultos religiosos, negros batucavam e

    danavam, desafiando-se a noite inteira. Essa dimenso da frao

    profana da festa, e da influncia dos negros na sua realizao,

    reiterada no estudo de Mrio Wagner V. da Cunha, que identifica e

    estabelece tipos diferenciados de protagonistas: havia o devoto

    cumpridor de seu dever religioso; os romeiros, constitudos por

    brancos, que pretendiam cumprir o dever religioso, mas tambm

    acalentavam a idia de participao nos festejos profanos; e,

    finalmente, os piraporeanos, constitudos por negros e mulatosque se dirigiam para Pirapora, exclusivamente em funo da festa

    profana, ou seja, do samba. [...] Nessas comemoraes

    participavam todos os segmentos da populao, sem excluses;

    por isso, seguiam para Pirapora tanto os negros e caboclos

    pobres como a parcela mais privilegiada. (MORAES, 1995, p.90-1)

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    Foto 8Claude Lvi-StraussAcampamento de Romeiros.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularAcampamento dos romeiros, nem todos conseguiam ficar nos barraces. Note-sea presena do elemento branco na festa.

    Na Foto 8, podemos observar o acampamento de romeiros que iam

    procisso em Pirapora do Bom Jesus, podendo notar a presena de caboclos. E, na

    Foto 9, observamos o famoso barraco, onde se alojavam os negros vindos de

    vrias regies.

    O barraco que citamos anteriormente (vide Foto 9), surgiu desse

    alojamento que era, na verdade uma moradia abandonada pelos seminaristas. Nele,

    acontecia a festa profana, paralela ao festejo religioso.

    Na msica Samba de Pirapora, de Geraldo Filme, h o relato de sua me

    indo fazer promessa para o santo (vide Foto 7), entretanto, foi negada a

    permanncia do menino na procisso, a ele se encaminha para o barraco.

    O autor separa as duas festas em profana e religiosa, contudo na nossa

    viso as duas festas eram religiosas, j que o samba rural contm muitos elementos

    da umbanda.

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    Foto 9Autor desconhecidoBarraco dos romeiros.Pirapora do Bom Jesus SPS/ dataColeo particularBarraco utilizado pelos negros em Pirapora do Bom Jesus. Nesse espao, osmesmos permaneciam durante os festejos e tinham contato com os demaisgrupos provenientes de outras regies do estado e que promoviam batuques,oportunizando a troca de experincias musicais.

    A separao espacial (praa/ barraco) marca mais uma diferena; a festa

    oficial, comandada pela Igreja Catlica, e a festa espontnea dos negros avulsos

    sem irmandades.

    No caso da praa, o espao era ocupado pelo povo, todavia a mediao do

    uso do espao era feita pela Igreja Catlica, j no barraco existia uma apropriao

    do espao, livre das prescries da Igreja.A abolio da escravido e a economia cafeeira proporcionavam o impulso

    para que So Paulo recebesse muitos negros oriundos do interior paulista na

    passagem do sculo XIX para o XX e trazem consigo suas manifestaes

    inicialmente associadas aos cultos de devoo a So Benedito e a outros

    padroeiros. Os negros elegeram como ponto de encontro a cidade de Pirapora do

    Bom Jesus onde verdadeiros batalhes de diferentes lugares, alm dos que j

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    moravam na capital, disputavam e testavam suas habilidades no improviso dos

    batuques que incorporavam novos instrumentos musicais como cucas, caixas,

    chocalhos e pandeiros, porm sem deixar de lado o bumbo que, alis, ganhava

    maior importncia por definitivamente marcar a musicalidade que antes acontecia

    at de forma solitria. Principalmente a partir do final do sculo XIX, os negros vo

    at Pirapora pelos desafios de batuque que l ocorriam (MORAES, 1995, p.90-8).

    Eles tocava aquele surdo [...] Aquela caixa bem grande e cada um

    tirava um verso do samba, da msica [...] E a pessoa tinha que na

    hora, da sua cabea, voc responde aquele verso [...] Seno voc

    ficava amarrado ali na roda do samba at voc responder. (DONA

    LOLA, Samba Paulista, 2007, parte I, 3914)

    Notamos que Pirapora do Bom Jesus se tornou uma centralidade em termos

    de samba, tanto para os moradores do interior que para l se dirigiam como para os

    negros da cidade de So Paulo.

    Vemos tambm que, mesmo com a introduo de outros instrumentos no

    samba (pandeiros e chocalhos), o bumbo ainda reinava absoluto, no toa que o

    samba rural paulista at hoje conhecido como samba de bumbo.O que acontecia nos barraces de Pirapora era uma espcie de

    competio, s que ao invs dos quesitos atuais como alegorias e adereos, o que

    contava era a capacidade dos sambistas na improvisao e a habilidade para tocar

    o bumbo, como explica Dona Lola.

    Ento, restritos aos barraces, reuniam-se de acordo com os lugares de

    origem e aps os cultos religiosos, durante a noite, os debates se estabeleciam.

    Moraes (1995, p.92) afirma: Nesse momento, alguns blocos se destacavam pelacompetncia musical e coreogrfica, sublimando os desafios entre eles.

    Verificamos ainda que, alm da parte musical, tambm, existia a coreografia

    com os passos dos sambistas marcando as batidas de bumbo. Esta coreografia era

    um pano de fundo para os partideiros que declamavam os desafios. Tudo isso

    ocorria em uma fuso entre o sagrado e o profano - apesar do autor separar o

    samba como algo depois do religioso - entretanto, a viso que nos fica que o

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    samba detinha muitos elementos da religiosidade afro-brasileira. Moraes, quando se

    refere dimenso religiosa, usa como indicador o catolicismo, esquecendo-se que

    os negros professavam outras religies (aruanda, quimbanda, iketo). A Foto 10

    ilustra muito bem a relao dos instrumentos de percusso com a religiosidade dos

    negros.

    Foto 10Autor desconhecidoTambu e candongueiro. Jongo.Pindamonhangaba SP

    c. 1950 - 1960Museu do Folclore Rossini Tavares de LimaAspecto religioso relacionado aos batuques, note asexpresses dos jongueiros, como em transe tocandoseus instrumentos. O jongo antecessor ao samba,antigos sambistas falam do jongo como grandeinfluncia para a formao do samba rural paulista, foiuma modalidade de batuque muito praticado do Valedo Paraba em So Paulo no final do sculo XVIII esculo XIX.

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    Dentre aqueles grupos de pessoas que iam festa de Pirapora, alguns se

    tornaram famosos, como o de Campinas, comandado por Joo Diogo, o Pai Joo,

    um negro com uma perna de pau e tratado como o general do samba, um outro de

    Itu, chefiado por Joo Mundo, alm dos blocos de So Paulo dirigidos por Z

    Soldado, sambista do Jabaquara e Dionsio Barbosa, sambista da Barra Funda.

    (CUNHA, 1937, vol. XLI, p.21)

    Vemos ento que comeam a surgir lderes regionais e, dentre eles, h

    Dionsio Barbosa, particularmente interessante para nosso trabalho, criador do

    Cordo da Barra Funda de 1914 que, posteriormente, dar origem Escola de

    Samba Camisa Verde e Branco no mesmo bairro.

    Observamos tambm que, alm de irradiar o samba para a cidade de SoPaulo, Pirapora do Bom Jesus espraiava o samba para outras cidades do interior

    paulista, como Itu e Campinas.

    Alm de exmios com o bumbo, comandando as entradas e o ritmo do

    batuque, essas pessoas se tornavam lderes por terem a responsabilidade de

    improvisar os versos iniciais, a deixa. Segundo Moraes:

    A deixa dada pelo chefe era fundamental para influir no bomandamento do samba e na maneira de dan-lo, j que todos os

    danarinos o rodeavam esperando o momento inicial. O debate e

    desafios entre barraces e cidades ocorriam justamente no

    instante de improvisar a deixa, logo seguida pela percusso e

    batalhes de danarinos. (MORAES, 1995, p.92)

    E Moraes completa demonstrando que havia uma separao de gneros, ou

    seja, as mulheres apenas danavam, evocando a sensualidade, como fazem aspassistas atuais e os homens cuidavam da percusso, algo superado nos dias

    atuais, quando as escolas de samba j contam com vrias integrantes femininas na

    bateria.

    Os instrumentistas eram todos homens e na parte coreogrfica

    encontravam-se homens e mulheres quando se concretizava a

    umbigada, movimento prprio do sambista paulista, cheio de

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    sensualidade e malcia. Com o tempo os setores mais

    conservadores de So Paulo passaram a perseguir esse tipo de

    dana, pois o achavam lascivo e libertino. (MORAES, 1995, p.92)

    Desse modo, podemos concluir pelo depoimento de Dionsio Barbosa que

    os agentes sociais presentes na festa tinham seu vis religioso e profano, ao mesmo

    tempo em que esclarece porque o samba rural paulista tambm conhecido como o

    Samba de Bumbo ou Samba de Pirapora:

    Os negros iam por devoo ao Santo e por causa do samba nos

    barraces [...] l surgiu o Bumbo Grande, feito com barrica de

    banha ou azeitona, e couro de cabrito (BARBOSA, fita n.32,

    Acervo MIS-SP)

    Mario de Andrade (1965, p.147) achou estranho e curioso, seno

    humorstico, ter em Pirapora um grupo de samba paulistano, no havia percebido

    que os negros para l se dirigiam para um interesse alm da questo religiosa, era a

    questo da busca de suas razes culturais (vide Fotos 11 e 12).

    Geraldo Filme, sambista da segunda metade do sculo XX, conta que suame organizava caravanas para Pirapora em jardineiras, burros ou trens, e que, na

    cidade, durante os festejos, havia quitutes, o samba-leno, desafios e tudo que

    remetesse tradio do negro, chegando a afirmar:

    L o negro relembrava suas razes, na cidade ele no tinha mais

    condies. (FILME, fita n. 112.14-15-16 e 17, acervo MIS-SP)

    Segundo Moraes, citando o sambista Geraldo Filme:

    Geraldo Filme reconhece, portanto, a identificao das razes

    negras brasileiras com as festas populares catlicas e a

    deteriorao dessa relao nos centros urbanos, que agravava a

    situao dos negros, marginalizando-os ainda mais de qualquer

    participao ou influncia no processo de transformao e

    crescimento da cidade. (MORAES 1995, p.93)

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    Foto 11Autor desconhecidoGrupo Barra Funda na festa de Pirapora.Pirapora do Bom Jesus - SPc. 1915Centro de Memria da UnicampDionsio Barbosa, o fundador do Grupo Barra Fundaera freqentador das festas de Pirapora do Bom Jesusmesmo depois da fundao do seu grupo (1914),continuou a participar da festa com o Grupo Barra

    Funda buscando suas razes.

    Geraldo Filme percebe que, no espao urbano, a identidade do negro era

    muito mais fcil de se esfumaar e viu, em uma reunio no interior de So Paulo,

    como o contato com a terra, a lavoura, enfim o espao outrora da escravido, estava

    mais prximo do que no centro urbano que retirava as referncias do perodo

    escravista e tambm as referncias culturais do negro paulista, da a explicativa da

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    importncia de Pirapora do Bom Jesus para a compreenso do samba urbano na

    cidade de So Paulo.

    Foto 12Claude Lvi-StraussSamba de bumbo do Bairro da Liberdade SP na Festa de Pirapora.

    Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularSambistas de So Paulo buscam suas razes em Pirapora do Bom Jesus - SP.

    Geraldo Filme afirma essa busca de identidade dos negros e ainda

    classifica o samba de So Paulo:

    O nosso samba no tem nada a ver com o samba do Rio, to

    diferente em tudo, os tipo de manifestao da gente, noandamento, o nosso vem mesmo daqueles batuques, daquelas.

    festas que eram dadas aos escravos quando tinham boas

    colheitas de caf. Ento aquelas festas pros escravos nas quais

    eles se manifestavam com aquelas danas, aqueles [...] era

    batuque, era aquele [...] umbigada. (FILME, Samba Paulista,

    2007, parte I, 1250)

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    As palavras de Geraldo Filme talvez expliquem a contradio dos negros

    utilizarem uma festa catlica para poder afirmar e reafirmar a sua cultura, pois o

    espao rural era uma referncia para os negros, j que a reunio dos mesmos era

    mais fcil em virtude da festa realizada em Pirapora do Bom Jesus. Na cidade de

    So Paulo, o distanciamento entre os negros era mais comum em virtude do

    tamanho da aglomerao.

    Moraes segue, agora discutindo sobre o esfacelamento da Festa de

    Pirapora:

    A decadncia da festa manifestou-se por volta de 1930, segundo

    Mrio W.V. da Cunha, Mrio de Andrade e alguns sambistas, eteria ocorrido por dois motivos: a reao da igreja catlica contra a

    supremacia da parte profana em detrimento da religiosa, havendo,

    por isso, proibio do samba nos barraces em 1937; e a

    represso da polcia contra o festejo profano. Como os dois

    momentos estavam umbilicalmente vinculados, a decadncia da

    parte profana leva ao empobrecimento de toda a festa em

    comemorao ao Bom Jesus de Pirapora. Com o tempo, portanto

    a festa deixa de ser referencial para os sambistas paulistanos,

    permanecendo apenas as comemoraes estritamente religiosas.

    (MORAES, 1995, p.95)

    Fato este muito claro em nossa presena na referida festa em 2005 e em

    2006, em que ainda h uma memria no Espao Samba Paulista Vivo Honorato

    Miss, localizado no centro da cidade de Pirapora do Bom Jesus (vide Foto 13),

    mas que existe apenas em nvel do concebido, segundo nossa anlise baseada em

    Lfbvre (SEABRA, 1996, p.7-13), proposito da produo do espao, j que umconhecimento que ganha intencionalidade, ou seja, quando a produo do espao

    concebida para tal, e quando o saber a define como prtica e teoria, pois, a festa

    atual divulgadora da nova msica sertaneja, no tendo relao com o samba,

    mas que h tambm um movimento por parte da Prefeitura de Pirapora do Bom

    Jesus para resgatar essa origem das festas antes da proibio por parte da igreja,

    que consiste em realizar festejos e atrair antigos sambistas com seus sambas para

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    divulgar assim aos mais jovens a histria da prpria cidade, atitude louvvel na

    manuteno da histria da prpria cidade como do samba paulista.

    Foto 13

    Mrcio Michalczuk MarcelinoFesta de Pirapora do Bom Jesus - SPEspao Cultural Samba Paulista VivoAgosto de 2006Coleo ParticularSamba de Bumbo no sculo XX, antigas escolas de samba paulistanasreconhecem e prestigiam a Festa de Pirapora do Bom Jesus em funo dasorigens do samba paulista. Samba Rural e Urbano em momento de reflexo paraos sambistas.

    Na anlise supracitada de Moraes (1995), ele afirma que o samba rural

    pode ser definido alm das coreografias caractersticas. A grosso modo, ele sustentaque a consulta coletiva de compor uma melodia e um texto, lanados pelo deixa

    (improviso) do chefe do samba so caractersticas do samba rural.

    necessrio de nossa parte, transcrever um samba que, feito por Geraldo

    Filme e B. Lobo, em 1969, foi samba enredo da Unidos do Peruche e, de maneira

    muito simples, fala das razes rurais do samba paulistano sintetizando as idias

    tratadas nesse captulo denominado Samba Rural:

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    s margens do lendrio Tiet

    Uma nova cidade surgiu

    De toda parte vinha romaria

    Festejar o grande dia

    E cantar em seu louvor

    Trazemos nessa Avenida Colorida

    Festa do povo e costumes tradicionais

    Dar ao povo o que do povo

    O que fazemos nesse carnaval

    Pirapora h

    Pirapora hBate o bumbo negro

    Quero ver o boi gemer

    L no jardim era festa de branco

    A banda tocava um dobrado

    As negras ditavam preges

    E as moas casadoiras

    Procuravam namorados

    Nos barraces se sambava

    A noite inteira

    Batia zabumba

    Jogava rasteira

    ,,

    Cantando alegre a lua

    De um trovador

    Tem branco no samba

    Tem sim senhor

    Ele batuqueiro saninha

    Ou cantador

    (TRADIO E FESTA DE PIRAPORA, Geraldo Filme e B. Lobo,

    1969)

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    Nesta msica, percebemos alguns elementos presentes da ruralidade, como

    a religiosidade (romaria), dois instrumentos referidos na letra (bumbo e zabumba),

    que so exclusivos do samba rural, alm do jogo de rasteira (tiririca ou capoeira).

    Tambm diz questo relacionada segregao que os sambistas de Pirapora

    sofriam: L no jardim era festa de branco, explica a ntida separao entre os

    negros e os brancos, alm do embate sagrado e profano; contudo na letra tambm

    claro que mesmo havendo segregao, esta no era uma questo de carter

    relacionada cor da pele das pessoas, mas sim s suas prticas, pois aponta que

    Tem branco no samba, tem sim senhor, denotando assim tambm a presena de

    romeiros brancos na festa (Foto 8), alm da questo que vir mais adiante, com a

    chegada do imigrante na cidade de So Paulo e o samba na fase urbana.Outra questo interessante, quando o autor da msica se refere a quero

    ver o boi gemer, pois o couro que era preso ao bumbo para dele se extrair o som

    era de boi, como nos dias atuais, pois mesmo no existindo mais o bumbo, o couro

    de boi ainda usado para grandes instrumentos, como os surdos.

    Vimos portanto, que o grande irradiador do samba para a cidade de So

    Paulo foi o samba feito em Pirapora do Bom Jesus, o grande centro do samba

    paulista. No que fosse ali sua gnese, mas sim a reunio e a coalizo de todas ascomunidades que promoviam o samba pelo interior paulista e principalmente

    buscando resgatar a identidade cultural do negro e do escravo.

    Este captulo nos d subsdios para analisarmos como se processou a

    transformao desse samba rural para o samba urbano, verificando perdas e

    metamorfoses. Nas Fotos 14 e 15, observamos a cidade de Pirapora do Bom Jesus

    em duas pocas distintas (1937 e 2005) durante a festa que ocorre em todos os

    meses de agosto, a primeira, intitulada pelo autor como Samba de Bumbo. Entre oProfano e o Sagrado, e a segunda, intitulada por outro autor como Memria do

    Samba de Bumbo. Entre o Consumo e o Sagrado, ilustrando como o modo de

    produo econmico, ou seja, como o capitalismo influencia a prpria produo da

    festa, revelando em segundo plano os interesses da religiosidade.

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    Foto 14Mrio de AndradeSamba de bumbo. Entre o profano e o sagrado.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Instituto de Estudos Brasileiros USPNesta foto, observamos o grande nmero de negros que parecemassistir a alguma apresentao. Interesse do samba em detrimento religio.

    Construmos, no Mapa 1, o percurso do samba rural rumo cidade de So

    Paulo. Tivemos grandes dificuldades para podermos constru-lo, pois no obtivemos

    registros que pudessem dar as coordenadas das localidades de forma precisa.

    Consultamos arquivos da Matriz de Pirapora do Bom Jesus - SP na inteno de

    chegar a registros que pudessem levar at as pessoas das localidades que

    freqentavam a festa de Pirapora, porm as pesquisas foram infrutferas.

    Resolvemos ento utilizar, como fontes, livros, teses e dissertaes,

    relativos ao tema, bem como as entrevistas de antigos freqentadores da referida

    festa com os quais pudemos dialogar.Por conta das referncias contidas em Britto (1986, p.49), chamamos de

    zona batuqueira no s as localidades citadas por ela, mas tambm toda

    localidade que tivemos registro da presena de manifestaes que caminharam para

    a constituio do samba rural, como o jongo, por exemplo.

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    Foto 15Mrcio Michalczuk MarcelinoMemria do Samba de Bumbo. Entre o consumo e osagrado.Pirapora do Bom Jesus - SPAgosto de 2005Coleo ParticularNesta foto observamos diferentes tipos tnicosandandopela feira montada para a ocasio da festa. Interesseconsumista em detrimento religio

    Somos conhecedores que h probabilidade de pessoas vindas de outras

    regies fora do estado de So Paulo, como norte do Paran, sul do Mato Grosso do

    Sul e Gois, para participarem dos festejos de Pirapora, portanto como zonas

    batuqueiras, mas no obtivemos referncias para confirmar tal afirmao,

    resolvendo no inclulas e deixar apenas o registro para o interesse de possveis

    pesquisadores.

    Tambm incluimos no mapa a cidade de Santos, pois no nosso entender

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    uma importante cidade para compreendermos o percurso do samba rural ao samba

    urbano, visto que obtivemos registros da grande entrada do elemento negro

    (escravo) pelo porto desta cidade - principalmente no sculo XIX - portanto,

    fundamental para a compreenso dos batuques e demais manifestaes que, como

    j dissemos, levaram ao samba rural paulista, sendo certo que os negros so os

    principais responsveis por sua gnese.

    Notamos tambm uma grande concentrao de negros escravos no Vale do

    Paraba (primeiras fazendas de caf em So Paulo), concetrao tal que nos levou a

    crer que tenha ocorrido, em um primeiro momento, os batuques e, logo aps,

    seguindo este mesmo raciocnio, no centro-oeste do estado de So Paulo, onde as

    fazendas de caf se espalharam durante o sculo XIX.Pirapora do Bom Jesus foi eleita a cidade do encontro de todas essas

    pessoas que produziam batuques nas mais diversas formas e foi l que as trocas de

    experincias se deram em razo da festa religiosa por l realizada. Alguns

    moradores, principalmente negros, da cidade de So Paulo tambm freqentavam

    Pirapora nos dias de festa, porm se dirigiam para l em busca de suas razes, pois

    os mesmos tambm eram provenientes do interior antes de chegarem na cidade de

    So Paulo (BRITTO, 1986, p.37).Somente aps o incio do sculo XX que sambistas nascidos em So

    Paulo, portanto no urbano, iam at Pirapora, no s para voltar s suas razes, que

    era o principal para eles, mas tambm para mostrar as novas possibilidades

    musicais; claro que de modo tmido, pois Pirapora do Bom Jesus - SP a cidade do

    Samba de Bumbo, do Samba Rural, o que nos faz concluir que So Paulo foi um

    ponto de reproduo do samba rural, porm com novas caractersticas influenciadas

    pelas novas possibilidades no urbano, mesclando sempre as origens rurais at ofinal da dcade de 1960 e incio da de 1970, como veremos no captulo seguinte.

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    MAPA 1

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    2. SO PAULO: DO RURAL AO URBANO

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    Tebas negro escravo

    Profisso alvenaria

    Construiu a velha S

    Em troca pela carta de alforria

    Trinta mil ducados

    Que lhe deu Padre Justino

    Tornou seu sonho realidade

    Da surgiu a velha S

    Que hoje o marco zero da cidade

    Exalta no cantar

    Da minha gente a sua lenda

    O seu passado e seu presente

    Praa que nasceu de um idealE dos escravos e praa do povo

    Velho relgio encontro dos namorados

    Me lembro ainda do bondinho de tosto

    Engraxate batendo na lata de graxa

    E camel fazendo prego

    O tira-teima do sambista do passado

    Bexiga, Barra Funda e Lavaps

    O jogo de tiririca era formado

    O ruim caa o bom ficava de p

    No meu So Paulo olel

    Era moda

    Vamos na S que hoje tem

    Samba de Roda

    (TEBAS, O ESCRAVO3, Geraldo Filme, 1973)

    Neste samba, vemos presentes elementos do samba rural, como o tira-

    teima do sambista do passado, o samba de roda. Entretanto, j comeamos a notar

    a presena de componentes urbanos, o jogo da tiririca, os engraxates e bairros da

    cidade de So Paulo (Bexiga, Barra Funda e Lavaps).

    A tiririca era uma espcie da capoeira paulista, tambm conhecida como

    3FREITAS (1978, p.59-60) descreve o que era ser Tebas, sinnimo de empreendedor, hbil, inteligente, capazde tudo fazer com acerto e perfeio, expresso essencialmente paulistana, em que se confirma a existncia donegro Tebas e todas as obras que realizou na cidade de So Paulo, inclusive com registros arqueolgicosconstando nos anais do Instituto Histrico de So Paulo de 1919.

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    pernada, o seu jogar consistia em derrubar o planta, que era o tiririqueiro que ficava

    no centro da roda, ele s podia movimentar as pernas para se defender sem tir-las

    do cho, fazendo um movimento parecido com o do alicate.

    Este termo tiririca do tupi guarani e significa mato que espalha, similar

    ao planta que quando caia no cho se espalhava todo, o valente. Ento vemos um

    gnero de dana urbano cujo nome tem uma origem cabocla que tiririca dos ndios

    paulistas.

    O valente era aquele que ia pra linha de frente e ficava no centro

    da roda, apesar de ser carioca eu participei de muitas rodas de

    tiririca na Praa da S. (BARO DO PANDEIRO, entrevista em

    09/12/2004)

    As disputas de tiririca aconteciam na Praa da S, e reuniam sambistas de

    toda a cidade, at do subrbio como diz Alberto Alves da Silva (Seu Nen da Vila

    Matilde):

    Os jogos de pernada e tiririca [...] olha esses jogos, essa tiririca,

    pernada existia na Barra Funda, existia na Praa da S, existia naLapa, existia em tudo quanto era canto que tinha samba, tinha

    essa negrada, esses filhos de africanos que eram fogo! Tinha,

    ento, em tudo quanto era lugar. (SEU NEN apud CISCATI,

    2000, p.159)

    Um dos instrumentos utilizados pelos sambistas desta poca era a lata de

    graxa, usada pelos engraxates da Praa da S e da Praa Joo Mendes. Jarro, um

    desses ritmistas, relatou-nos a atividade.

    Ficvamos na Praa da S, esperando os fregueses, e quando

    estvamos parados aproveitemo pra fazer um sambinha, com a

    latinha e batuque na caixa, era tempo bom lembro do Germano,

    Tuniquinho, Gildo Bahia que at hoje toca na Praa da Repblica.

    (JARRO, entrevista em 17/01/2000)

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    Tuniquinho Batuqueiro, que foi citado por Jarro, fala dos engraxates e da

    razo da concentrao dos mesmos na Praa da S:

    A eu v a Praa da S [...] Mas pra mim cheg ali sozinho ficava

    ruim. A eu encontre o Sirval [...] A que entra o Sirval [...] n?

    [...] O Sirval entra nessa parada [...]

    E ns pegava um parelepipo, botava ali, o fregus vinha, botava o

    p [...] no era nem engrax, era tir barro, porque os cara vinha

    l do Lavap, do Jabaquara, tudo com o p cheio de barro. Ento,

    botava o p ali em cima daquele negcio l, um pauzinho l, tirava

    aquele barro, cobrava ali um tosto [...] duzento Ris [...] no me

    lembro nem quanto [...] E da cansamo de tir barro [...] Descia

    ali pra Praa da S onde tinha um pessoalzinho melhorzinho [...]

    sapato melhorzinho [...] (TUNIQUINHO BATUQUEIRO, Samba

    Paulista, 2007, parte III, 0618)

    E Silval Rosa, citado por Tuniquinho Batuqueiro, completa sobre a relao

    do samba com engraxates, com jogadores de tiririca, com malandros e com a regio

    central de So Paulo:

    Eu engraxava na Joo Mendes, depois fui pra Crvis e meu

    companheiro era o Tunico. Onde o Tunico tava eu tava, onde eu

    tava o Tunico tava [...] Tuniquinho.

    Muitos era engraxate tambm, mas tambm no era s engraxate.

    quem gostava de samba, como Tuniquinho, o Pato Ngua [...]

    S, quando o Pato Ngua tava na roda, ningum entrava [...] N?

    Porque ele era pobrema [...] Isso a de pernada, ele sabia de tudo.

    Era tudo cara da antiga memo. Tudo cara que tinha [...] aquele

    tempo, malandro era malandro mesmo. (SILVAL ROSA, Samba

    Paulista, 2007, parte II, 1206; parte III, 0610 e 0824)

    O ambiente formado por malandros, sambistas, jogadores de tiririca e

    engraxates, no centro de So Paulo, era rico para novas experincias musicais, pois

    era um espao privilegiado para a criao. Novas possibilidades aconteciam nesse

    espao urbano que se descortinava para os sambistas, nesse sentido, at a lata de

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