Tese Sobre Artthur Azevedo
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RESSALVA
Alertamos para ausncia da capa, folha de rosto e pginas pr-textuais, no includas
pela autora no arquivo original.
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1 INTRODUO
De todos os gneros dramticos, o mais difcil, segundo minha opinio, incontestavelmente a comdia.
Quintino Bocaiva
A 22 de agosto de 1906, chegava s mos do pblico leitor carioca, por meio
do jornal O Sculo, o primeiro de uma srie de 105 minidramas ou sainetes1 de
autoria de Arthur Azevedo (1855-1908), na seo por ele intitulada TEATRO A
VAPOR. A partir da, tais escritos dramticos ocupariam, todas as quintas-feiras,
essa seo, o que se deu at 21 de outubro de 1908.
Foram necessrios sessenta e dois anos (1970) para que um brasilianista -
professor Gerald Moser reencontrasse, iniciasse a coleta e fizesse a primeira
anlise crtica para posterior publicao (1977), conservando o ttulo dado por Arthur
Azevedo de Teatro a Vapor, desses ltimos minidramas de um dramaturgo
brasileiro, que, nas palavras de Dcio de Almeida Prado (1999, p. 145): entre 1873,
quando chega ao Rio, com 18 anos, vindo do Maranho, e 1908, ano em que morre,
[...] foi o eixo em torno do qual girou o teatro brasileiro.
A anlise dessa obra de Arthur Azevedo, por meio da seleo de alguns
minidramas, com o objetivo de verificar a quais so os recursos recorrentes
geradores do riso, justifica-se como forma de investigao da maneira pela qual
dramatizava esse grande autor que, nas palavras de G. Moser (1977, p. 23),
reanimou e atualizou a tradicional comdia de costumes, deixando um legado ao
teatro brasileiro do futuro.
Considerando que nosso dramaturgo conseguiu efeitos cmicos com um
mnimo de linhas e pintou quadros de gnero da vida carioca numa quadra em que
as luzes eltricas, os filmes de cinema e os automveis eram novidades, ainda
segundo Moser (1977, p. 23), cabe ao pesquisador trazer tona tal gnio dramtico.
1 Segundo Pavis (1999, p. 349), [...] tipo de pea encontrada na Espanha do sculo XVII, consistindo numa cena cmica destinada a ser representada no entreato de peas srias longas. Utilizamos tal denominao aqui principalmente porque ela j foi empregada para os textos de Teatro a Vapor,tanto por G. Moser (1977), quanto por A. Martins (1988), estudiosos de A. Azevedo.
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Pela inovao dramtica na forma dos minidramas, que, alm de darem
continuidade s formas mais genunas da comdia de costumes, fazendo jus
nossa tradio em comdias deixada por Martins Pena (1815-1848), Frana Jnior
(1838-1890), Macedo (1820-1882) e outros, guardarem muitas semelhanas com o
gnero teatro de revista, bastante utilizado pelo dramaturgo maranhense, vale a
pena estudar, de modo mais sistemtico e detalhado, a obra apontada e procurar a,
aps a seleo de alguns desses escritos, os recursos escolhidos pelo renomado
dramaturgo a fim de gerar o riso.
Almeja-se, com esta pesquisa, contribuir com os estudos sobre a comdia de
costumes na literatura brasileira, tendo em vista os poucos trabalhos realizados
sobre o gnero no Brasil, e com os estudos literrios de modo geral, apresentando
uma obra ainda pouco estudada nos meios acadmicos, de um autor cuja produo
literria, sobretudo a teatral, de inegvel valor.
Para as pesquisas a respeito da comicidade, tomar-se-o como referencial
terico os estudos de V. Propp (1992). O procedimento principal de anlise constitui-
se na aplicao dos conceitos de comicidade e do riso aos minidramas escolhidos
da obra Teatro a Vapor de Arthur Azevedo, buscando, sempre que possvel,
correlacionar a produo dramtica abordada, o efeito cmico obtido e o contexto da
poca.
Na seo 2 Fortuna crtica, procuraremos delinear o momento scio-
histrico da dramaturgia brasileira, mapear, ainda que brevemente, a produo
teatral de Arthur Azevedo e contextualizar os textos dramticos de Teatro a Vapor.
Logo mais, na seo 3 Arthur Azevedo e a capital federal,
apresentaremos uma sucinta biografia do autor e buscaremos compor um panorama
da cidade do Rio de Janeiro, no incio do sculo XX, quando o pas mal sara da
Monarquia, a capital federal sofria enormes transformaes e vivenciava imensos
contrastes. Uma vez que os temas dos minidramas abordam sempre o cotidiano
citadino, parece-nos fundamental tal contextualizao.
Na prxima seo Teatro a Vapor: textos dramticos?, procuraremos
identificar os elementos que constituem os referidos minidramas em textos
dramticos e explicaremos algumas das possveis denominaes para os escritos
dramticos, objetos da pesquisa.
Em seguida, na seo Personagem, espao e tempo na obra estudada,
conceituaremos personagem-tipo, caricatura e alegoria. Em seguida, procuraremos
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exemplificar a tipologia referida; tal procedimento conceito mais exemplo - ser
seguido para a definio de espao e a de tempo teatral.
Na seo 6 Algumas consideraes sobre a comicidade e o riso,
pretendemos estabelecer as teorias da comicidade e do riso que nortearo a anlise
seguinte.
A fim de efetuarmos a descrio, em Recursos cmicos em alguns
minidramas penltima seo, faremos o levantamento dos procedimentos
cmicos observveis nos textos escolhidos, assim como o seu efeito para a
produo dramatrgica do autor, correlacionando-os ao contexto scio-histrico e
cultural da capital federal.
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2 FORTUNA CRTICA
A dramaturgia brasileira [1889-1930], alavancada pelo esforo de atores, autores e empresrios, acompanhou pari passu esta caminhada,cumprindo com toda a dignidade sua funo: foi espelho crtico de seu tempo; tornou-se, como a sociedade que refletia, cada vez mais brasileira.
C. Braga.
Ao iniciarmos as pesquisas sobre a poca em que foram produzidos os
minidramas de Teatro a Vapor (incio do sculo XX), notamos que essa constitui um
perodo de grande importncia na histria brasileira, uma vez que, conforme afirma
Cludia Braga (2003, p. XXI), o do estabelecimento do pas como unidade
independente. nesse momento, mais ainda do que poca da independncia,
que o Brasil busca se consolidar como ptria, e o povo, como nao.
No entanto, conforme nos aprofundamos nesse assunto, percebemos sua
abrangncia e complexidade, por isso a dificuldade em escolher aspectos do
contexto brasileiro que componham um painel significativo, a fim de entendermos a
sociedade daquele perodo e sua produo teatral. Em momento que julgamos mais
apropriado, exploraremos, de modo sistemtico, o contexto histrico da obra
pesquisada.
Quanto produo dramtica daquele princpio de Repblica, de acordo com
N. Veneziano (1991, p. 25): um pas de miscigenao, um povo em formao, uma
sociedade pequeno-burguesa em ascenso s poderiam gerar uma platia receptiva
a um teatro popular. Pesquisas mais recentes, que datam, como a de Neyde
Veneziano, de, aproximadamente, quinze anos para c, trazem como objeto de
estudo esse teatro popular brasileiro, cujas caractersticas exporemos logo mais.
2.1 Para uma reavaliao do perodo
O que se representava nos teatros brasileiros no final do sculo XIX e incio
do XX? Quando comeamos nossa busca por respostas sobre a produo
dramatrgica do perodo denominado Primeira Repblica (1889-1930), qual no foi a
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surpresa (desagradvel) constatarmos ser esse um perodo considerado de
decadncia ou ainda degenerescncia teatral. Logo o peso de semelhante
avaliao compromete o produto de mais de quatro dcadas do teatro brasileiro.
No bastasse isso, o perodo em questo traduz tanto a necessidade quanto a
vontade de consolidar o pas como nao. Temos a duas proposies que no se
estabelecem de forma alguma como causa e efeito.
C. Braga (2003, p. 41) nos responde questo acima: dramas, comdias e
melodramas. De acordo com a noo de teatro como espelho da sociedade, a
autora esclarece que
Nos dramas foram abordados os conflitos vivenciados pelasociedade naquele momento, [...] as comdias, paralelamente afirmao nacionalista, perseveraram na tradio da crticadebochada dos costumes iniciada nos primrdios do Imprio, alm de terem ainda assimilado novos padres da graa cotidiana; no plano do teatro mais abstrado da realidade objetiva, a permanncia do melodrama em nossos palcos trazia tona o gosto popular pela emoo servida s escncaras, enquanto o movimento simbolista, por sua vez, levava aos palcos a controversa corrente esttica da arte pela arte. (BRAGA, 2003, p. 41).
De modo bastante conciso, so esses gneros por meio dos quais se
expressavam nossos escritores da poca. importante destacar que os palcos
nacionais dividiam a cena, quando conseguiam teatro, com muitas companhias
estrangeiras, que aproveitavam a falta de trabalho, devido ao vero europeu, e
excursionavam ao pas, a trabalho.
Procedendo ao levantamento bibliogrfico sobre a poca, encontramos
Ao compararmos a produo teatral encontrada com a dramaturgia que lhe era anterior, na investigao do ponto em que a ruptura, a degenerescncia, se teria manifestado, o que se apresentou em nossas leituras, ao contrrio da decadncia que era imputada produo teatral dos primrdios de nossa Repblica, foi acontinuidade de uma produo dramatrgica, predominantementecmica, popular, cujo objetivo, tambm ao contrrio do queespervamos, era a tentativa de decifrar, compreender e, sobretudo, explicar o Brasil. (BRAGA, 2003, p. XX).
Ou seja, o perodo da Primeira Repblica mostrou-se extremamente frtil em
termos de vida cultural e, conseqentemente, a sua produo dramtica era reflexo
dessa efervescncia. O que se comprova que
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Cada drama ou comdia ali encontrados acabam, em seu conjunto, compondo um vasto quadro da sociedade brasileira dos primeiros anos da Repblica, seja pelos tipos desenhados, ou pelo estilo empregado. A questo do nacionalismo que comeava a sefortalecer, as mudanas comportamentais, as notcias dos fatosmundiais que aqui chegavam, os equvocos sociais que tantas e to boas comdias renderam para seus contemporneos, mesmo atendncia crepuscular do estilo simbolista, l esto, nas obras do perodo, formando o painel representativo de todos os aspectos de nossa sociedade. (BRAGA, 2003, p. XXI, grifo do autor).
Verificamos dessa forma que, embora avaliada de modo sobretudo negativo,
a produo teatral, no perodo da Primeira Repblica, mostra-se continuadora de
uma tradio dramatrgica que se pretendia brasileira e que
[...] o aprofundamento do estudo da vida teatral brasileira naPrimeira Repblica revela-se de vital importncia para acomplementao historiogrfica da produo cultural de nosso pas como um todo, e a produo dramatrgica dos primrdios daRepblica, desprestigiada e praticamente desconhecida... (BRAGA, 2003, p. XXII).
Qual (is) seria(m) o(s) motivo(s) desse desprestgio e desse desconhecimento
apontados pela pesquisadora? Um deles, sem dvida, o predomnio, ento, do
teatro de cunho popular.
Corroborando essa idia, Joo Roberto Faria (2001, p.150) expe que,
embora as platias se divertissem e os empresrios ganhassem rios de dinheiro
com as peas cmicas e musicadas (predominantes na poca), os escritores e os
intelectuais queixavam-se do que consideraram a decadncia do teatro brasileiro,
pois esse teria se afastado da literatura e se voltado apenas para o entretenimento.
No difcil, portanto, encontrarmos, em jornais da poca e mesmo em estudos
sobre a produo teatral de meados do sculo XIX at as trs dcadas do seguinte,
crticas desabonadoras ao fato de esse teatro ter querido e ter agradado ao grande
pblico.
Tambm de acordo com o pesquisador (FARIA, 2001, p. 160), Jos de
Alencar, Machado de Assis, Lus Leito, Joaquim Manuel de Macedo, entre outros
escritores e intelectuais de prestgio, tais como Moreira de Azevedo, Carlos Ferreira,
Francisco Otaviano fazem coro idia de que
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[...] a arte dramtica encontra-se decada, pervertida, que o domnio das tradues absoluto, que o repertrio de baixa qualidadeartstica, formado por operetas, mgicas extravagantes, farsasburlescas, vaudevilles e comdias indecorosas estragou o paladar do pblico. (FARIA, 2001, p.160).
Conforme percebemos, o teatro popular (feito para o grande pblico),
expresso em suas mltiplas faces operetas, mgicas, farsas, vaudevilles e
principalmente, comdias -, a base sobre a qual incidem as crticas negativas
desse perodo.
Flora Sssekind (1993, p. 57-58), em sua anlise sobre a produo dessa
poca, constata que a crtica corrente adotava traos de um gnero hbrido, isto ,
misto de crtica e crnica. As causas do predomnio desse gnero de crtica-crnica,
na imprensa brasileira de fins do sculo XIX e incio do XX, seriam a falta de uma
definio rgida das funes do crtico e a inexistncia de uma diferenciao entre as
funes do autor, do crtico e do cronista.
Explica-nos a pesquisadora (SSSEKIND, 1993, p. 71) as caractersticas
dessa crtica: o decoro, tanto da parte dos autores, quanto dos atores e da platia; a
delimitao de tipos e especialidades entre atores e papis; a idia de talento; a
separao e hierarquizao constantes entre os gneros e - um dos seus traos
principais o uso de um tom cmplice com o leitor, de conversa particular.
Ainda segundo F. Sssekind (1993, p. 80), Arthur Azevedo o exemplo
perfeito e acabado de produtor-crtico-cronista da poca, uma vez que no raro
encontrarmos, na sua produo literria, personagens que comentam criticamente
outras produes dramticas contemporneas, bem como escritos crticos do autor,
que julgam e buscam convencer o leitor, em tom de conversa ntima, da pertinncia
do julgamento feito por ele de determinada obra, postura ou acontecimento.
Verificamos, portanto, que, devido ao seu carter sobretudo intimista uma
conveno da crtica da poca, segundo a pesquisadora (SSSEKIND, 1993, p. 58)
, sujeito ao gosto particular do crtico e idia de certo e errado, a crtica do
perodo em questo, bem como as suas conseqncias, merecem ser reavaliadas.
Num trabalho de flego, em que analisa as idias teatrais brasileiras vigentes
no sculo XIX, J. R. Faria (2001, p. 160-186), em A ascenso da revista de ano e o
teatro para o grande pblico (parte dessa pesquisa), disserta sobre o sucesso
obtido pela revista de ano, e procura descobrir os motivos que levaram nossos
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dramaturgos, includo a A. Azevedo, a comporem obras cujo objetivo era o
entretenimento da populao.
Aqui o pesquisador compe rico e variado painel teatral, desde 1884, com a
encenao de O Mandarim, de A. Azevedo e Moreira Sampaio, at 1900, no qual
discorre sobre o gnero da revista, seus autores, a crtica corrente, as muitas
companhias estrangeiras, que competiam, de forma injusta, devido superior
dramaturgia e talento de seus atores, com a cena nacional. Disputavam inclusive
teatros. Divididos os palcos da poca, dividiam-se tambm os papis,
Aos autores estrangeiros, principalmente franceses, caberia a tarefa de nos fornecer a dramaturgia sria e as chamadas peas bem feitas [...] Aos brasileiros caberia continuar a tradio de umadramaturgia mais popular, menos literria, representada pelas formasdo teatro cmico e musicado. (FARIA, 2001, p. 186).
Pouco mais adiante, o estudioso busca sintetizar a situao dos palcos
brasileiros (de 1884 at 1900)
A dramaturgia sria, de qualidade literria, s fazia sucesso no Rio de Janeiro com as companhias dramticas estrangeiras. Quando estas partiam, o repertrio voltava a ser o que era sempre, ou seja,revistas de ano, operetas, e outras formas teatrais populares de grande prestgio junto ao pblico, como o imbatvel dramalho, o drama fantstico, e a mgica aparatosa, com os seusimpressionantes truques cnicos. Os autores dramticos brasileiros, solicitados pelo mercado, limitaram o seu horizonte esttico e no acompanharam ou ento recusaram as transformaes em curso no teatro europeu, em vias de se modernizar. (FARIA, 2001, p. 186).
No obstante sria e rigorosa, parece-nos que a avaliao feita pelo referido
pesquisador deixa-se influenciar pela crtica elitista daquela poca, uma vez que
endossa a j apontada falta de literatura em nosso teatro do perodo, lamenta a
profuso do teatro voltado para o aparato, portanto mais vistoso e apelativo e
nossa falta de adoo das inovaes dramticas, trazidas pelas muitas companhias
estrangeiras que, naquela poca, tinham temporada cativa entre ns.
Retomando o exposto inicialmente a respeito da predominncia do teatro de
cunho popular na poca, compreendemos que esse teatro, para a crtica do perodo,
se distanciava da viso corrente de alta literatura, primeiro porque aquele era
entendido apenas como expresso desta e no como arte em si; segundo porque,
sendo expresso da literatura, o teatro necessariamente precisaria veicular o que A.
Candido (1987, p. 146) chama ideologia ilustrada, que, diante do analfabetismo e da
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debilidade cultural da populao, assume a responsabilidade de instruir o homem, a
fim de que este se humanize e progrida.
Essa responsabilidade, de acordo com A. Candido (1987, p. 147-148), fez
com que os intelectuais construssem uma viso deformada sobre seu papel, uma
vez que tomariam para si a transformao da sociedade. Como se colocavam
acima da incultura e do atraso, aceitavam e at buscavam a dependncia cultural
de modelos europeus; no que essa dependncia fosse estranha nossa condio
de colonizados, mas, devido ao subdesenvolvimento e penria cultural nacionais,
ela resultaria, muitas vezes, num aristocratismo intelectual, responsvel pelo
contraste existente entre a produo destinada a um pblico ideal (lembremos, por
exemplo, o uso de lngua estrangeira em algumas obras) e o pblico verdadeiro. Por
outro lado, quando se procurava, efetivamente, tratar temas nacionais, produzir
obras que atendessem aos anseios do nosso povo, a intelectualidade, movida pelo
desejo da transformao social, rejeitava fortemente essa produo.
Conclumos disso que a crtica praticada naquela poca, exatamente por
estar submetida quela ideologia ilustrada e ser feita por intelectuais que adotavam
os modelos europeus, considerados superiores, expressa-se negativamente contra
aquilo que considerava desvirtuante, imprprio e sem utilidade (no serviria para
ilustrar, apenas entreter): o teatro popular.
Felizmente o distanciamento permite critica de hoje estudar a sociedade
daquele final de sculo XIX e incio do XX, bem como sua produo, de modo mais
amplo e objetivo.
2. 2 O autor e suas obras
Nos escritos sobre Arthur Azevedo, o dramaturgo freqentemente apontado
como o causador da derrocada do teatro nacional. Durante toda sua vida de
escritor, foi numerosas vezes alvo de crtica por parte, entre outros, de Coelho Neto,
Cardoso Mota, at mesmo de M. de Assis. Os jornais da poca trazem acalorados
debates, e, em sua defesa, o teatrlogo sempre se mostrou sensato e coerente com
seu pblico.
Entre suas peas, muitas alcanaram grande sucesso, como, por exemplo, O
Mandarim (1884) a qual, em parceria com Moreira Sampaio, apresenta, segundo N.
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Veneziano (1991, p. 27-28), um texto inteligente, bem estruturado e bem-humorado.
Inicia-se nas revistas brasileiras uma das convenes mais presentes, a caricatura
pessoal. A partir da, esse dramaturgo iniciaria a trajetria mais brilhante de um
revistgrafo no pas, com obras de inigualvel valor artstico-literrio. Tambm de
acordo com a pesquisadora (VENEZIANO, 1991, p. 32), Arthur Azevedo o autor
mais que paradigmtico do gnero teatro de revista pela ironia, verve satrica e
habilidade com as letras.
Convm recordar que sua produo abrange ainda publicaes em peridicos
os mais variados possveis, pardias de textos teatrais famosos (La Fille de Madame
Angot opereta francesa em A filha de Maria Angu), bem como tradues,
principalmente de textos franceses. (SOUSA, 1960, p. 75)2.
Sbato Magaldi ([197-?], p. 141-154) reserva uma seo, denominada Um
grande animador, em sua obra, produo de Arthur Azevedo. Em sua anlise,
devido s condies fsicas, financeiras, profissionais e, mesmo, intelectuais, esse
dramaturgo, apesar de ter escrito peas de valor (O Dote, O Mambembe, A Jia),
no se mostrou um autor de imaginao. Para o pesquisador, outras qualidades
assinalaram o seu talento e, portanto,
Cabe valorizar, antes de mais nada, sua teatralidade. Teve ele o dom de falar diretamente platia, isento de delongas ou consideraes estticas. Juntando duas ou trs falas, pe de p, com economia e clareza, uma cena viva. Simples, fluente, natural, suas peasescorrem da primeira ltima linha, sem que o espectador se deixe tentar pelo bocejo. [...] No se poderia pr em dvida a objetividade cnica de qualquer obra de Artur [sic] Azevedo. (MAGALDI, [197-?],p. 146).
Ainda fortemente imbudo das idias que relegam o teatro popular ao
segundo plano, S. Magaldi, um dos nossos srios (e poucos) pesquisadores sobre o
teatro nacional, apesar de atribuir obra do dramaturgo maranhense qualidades
excepcionais, analisa-a como obra ligeira. O pesquisador detm-se naquelas mais
conhecidas e mais encenadas: A Capital Federal, O Tribofe, O Mambembe. Por fim,
ele chega a declarar A. Azevedo a maior figura da histria do teatro brasileiro, no
como dramaturgo, mas como
2 Por serem muitas e no estarem diretamente ligadas ao contedo principal deste trabalho, seguem anexas as datas e os ttulos das obras de Arthur Azevedo.
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[...] a personalidade que melhor encarna nossos vcios e nossas virtudes, o talento nacional tpico, aquele que acompanha a corrente e ao mesmo tempo a fixa nas suas marcas privilegiadas (MAGALDI, [197-?], p. 154).
S. Magaldi ([197-?], p.154) encerra sua avaliao declarando que aceitar ou
no A. Azevedo significa gostar ou no do teatro nacional, pois aquele faz parte
entranhada da vida teatral brasileira.
Edwaldo Cafezeiro e Carmem Gadelha (1996, p.237), citando Flvio Aguiar,
enumeram como autores brasileiros que com muito afinco se dedicaram ao teatro
brasileiro: Martins Pena, Frana Jnior, Qorpo-Santo e Arthur Azevedo.
Diferentemente dos demais pesquisadores apontados, eles (CAFEZEIRO, E.;
GADELHA, C.,1996, p. 297) compreendem a obra de A. Azevedo como fruto de uma
equipe de dramaturgos, formada por dez escritores. Aps essa afirmao dos
estudiosos, segue-se extensa anlise das parcerias e obras, do momento scio-
histrico e do contedo de tais escritos. Chegam os pesquisadores concluso de
que a dramaturgia (toda ela) de Arthur Azevedo mereceria ser julgada de maneira
mais favorvel do que j o fora.
Dcio de A. Prado (1999, p. 145) assim se refere ao dramaturgo maranhense:
entre 1873, quando chega ao Rio, com 18 anos, vindo do Maranho, e 1908, ano
em que morre, ele foi o eixo em torno do qual girou o teatro brasileiro. Para o
pesquisador (1999, p.147), as maiores qualidades do autor de Uma Vspera de Reis
(1875) estavam na escrita teatral, feita para o palco, no para a folha impressa. A
partir da, na obra consultada (1999), ele faz a anlise de A Capital Federal (1897),
definida por A. Azevedo como comdia-opereta de costumes brasileiros e de O
Mambembe (1904), classificada como opereta.
O pesquisador (PRADO, 1999, p.165) conclui que, apesar de ter alcanado
uma comdia de costumes de valor, o prprio Arthur Azevedo no a reconheceu
como digna de mrito, pois, imbudo do forte preconceito da poca, tambm
considerava o teatro musicado um gnero inferior.
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2.3 O objeto da pesquisa
Quanto ao nosso objeto de estudo os minidramas de A. Azevedo intitulados
Teatro a Vapor (1906-1908), so parcos os comentrios e mesmo pesquisas que os
abordem.
Encontramos uma introduo crtica, feita pelo brasilianista Gerald Moser, que
foi responsvel, em 1977, por organiz-lo, fazer-lhe uma apresentao crtica e levar
publicao esses ltimos escritos dramticos de A. Azevedo. graas ao seu
empenho de coletar material to precioso, procurar dividi-lo por temas, discorrer
sobre os mesmos e resgatar o sentido de certas expresses e contextualizar alguns
fatos, que temos acesso aos minidramas.
Mais recentemente, Antonio Martins (1988, p. 48-52), grande estudioso da
obra do autor dO Tribofe (1891), reserva algumas pginas para discorrer sobre os
aspectos que diferenciam/aproximam tais minidramas das demais produes do
comedigrafo maranhense. Em tais pginas, o pesquisador associa as revistas de
ano, os entreatos e os sainetes (minidramas) ao vaudeville graas ao carter ldico,
curta extenso, ao fato de o papel dos acontecimentos preterir a explorao de
caracteres e o aprofundamento das paixes, observveis nesses gneros. Em suas
palavras (MARTINS, 1988, p. 48): Os curtos episdios que enformam essas trs
espcies dramticas [revista de ano, entreato e minidrama] so curtos spots da Belle
poque nesta Cidade Maravilhosa que se vai transformando e crescendo.
A anlise que se pretende de tais minidramas, dadas as restries de tempo
para a pesquisa e a natureza do trabalho acadmico (dissertao), est, com
certeza, longe de esgotar todas as possibilidades de estudo e abordagem desses.
Na prxima seo deste texto acadmico, contextualizaremos a vida do autor,
bem como o panorama da capital federal, o Rio de Janeiro, a fim de entendermos
melhor a significao e o valor dos minidramas abordados.
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3 ARTHUR AZEVEDO E A CAPITAL FEDERAL
Aroma do Tempo o ttulo de uma comdia musical encenada
recentemente (09 maro at 11 de junho de 2006), em So Paulo, no Teatro dos
Arcos Bela Vista, cujo argumento central a vida de Arthur Azevedo. Tal comdia
aborda desde a chegada do dramaturgo ao Rio de Janeiro, em 1873, seu
devotamento literatura, sobretudo ao teatro, as lutas pela Abolio e pela
Repblica, as amizades com Olavo Bilac (1865-1918), Jos do Patrocnio (1853-
1905), Raul Pompia (1863-1895) e com o irmo Alusio Azevedo (1857-1913), o
esforo contnuo para que o povo fosse ao teatro, at sua morte precoce em 1908.
O pblico pode apreciar ainda nessa pea a insero de trechos de obras criadas
pelo dramaturgo, como Amor por Anexins 3 (1870), A filha de Maria Angu (1876), O
Escravocrata4 (1884) e A Capital Federal (1897).
Por esse exemplo, notamos que, apesar de transcorrido mais de um sculo
da publicao de grande parte da sua obra, A. Azevedo permanece vivo e atuante.
Quanto aos minidramas, temos conhecimento 5 de encenaes recentes desses
textos teatrais, seja por meio de montagens escolares, seja por representaes de
grupos amadores e profissionais. Com a finalidade de conhecermos um pouco mais
sobre o antigo ocupante da cadeira nmero 29 (patrocinada por Martins Pena) da
Academia Brasileira de Letras, passemos adiante.
3.1 A vida do autor
A 7 de julho de 1855, em So Lus do Maranho, nasce Arthur Nabantino
Gonalves de Azevedo, filho do cnsul portugus no Maranho, Davi Gonalves de
Azevedo, e de Emlia Branco. Consta em algumas biografias que, at os treze anos
de idade, faz os seus estudos primrios e alguns secundrios em escolas pblicas e
liceus oficiais de sua cidade natal. Abandona-os, porm, para se dedicar ao
3 Segundo J. G. de Sousa (1960), esta a primeira pea de A. A. exibida em teatro pblico.4 Drama escrito originalmente, em 1882, sob o nome de A Famlia Salazar, mas proibido de ser levado cena pelo Conservatrio Dramtico (SOUSA, 1960).5 Seguem anexos os informes sobre tais encenaes.
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comrcio, exercendo a funo de caixeiro de uma casa comercial. Desde cedo
demonstra inclinao para as letras com seu primeiro livro de poesias Carapuas.
Tambm por essa poca dirige a revista O Domingo. Exerce, de 1870 a 1873, uma
funo burocrtica na Secretaria do Governo de So Lus.
Decide viver e fazer carreira na cidade do Rio de Janeiro, para a qual parte
com dezoito anos de idade, em 1873. Suas primeiras ocupaes so como mestre-
escola, no Colgio Pinheiro, e como revisor do jornal A Reforma. Em 1875
nomeado adido no Ministrio da Viao, local em que tambm trabalha Machado de
Assis. Ambos travam conhecimento, e essa amizade inspira de modo profundo o
maranhense. Casa-se, mas logo depois se separa. Torna a se casar com uma
senhora viva com a qual tem quatro filhos. Em 1882, viaja para a Europa e, em
1908, fica encarregado de dirigir a companhia dramtica que representar peas de
destaque no panorama brasileiro, na Exposio Nacional. Ainda nesse ano assume,
aps a morte de Machado de Assis, a Diretoria Geral de Contabilidade, no Ministrio
da Viao. Contudo desfruta pouco tempo o cargo, pois falece em outubro de 1908.
Colabora, desde a chegada ao Rio, em numerosos peridicos, e chega
inclusive a fundar alguns. Tambm profcua sua produo literria, mormente a
teatral. Um de seus sonhos a construo do Teatro Municipal e, embora muito se
tenha batido por ele, no chega a ver pronto tal teatro.
A respeito de seu precoce interesse pelo teatro, lemos, nas notas
autobiogrficas publicadas no Almanaque do Teatro, que sua leitura predileta, j aos
oito anos, eram dramas e comdias retirados da biblioteca paterna, a qual, segundo
A. Azevedo, possua bons livros. O fato de haver a muitas obras em francs
instigou-o a aprender tal idioma, no qual veio a tornar-se tanto leitor como tradutor
proficiente (AZEVEDO, 1973, p. 9).
Mais tarde, em vrias ocasies (cf. seus artigos de crtica de arte de Quarenta
Anos de Teatro), demonstrou de maneira explcita a admirao pelas teorias do
crtico francs Francisque Sarcey sobre as convenes teatrais este adotava a lei
das trs unidades: ao, personagens e espao, apesar de o Romantismo francs
t-la ultrapassado. A. Azevedo no se nega a declarar como seu modelo a comdia
francesa e, segundo A. Martins (1988, p. 43), mais de trinta obras teatrais nesse
idioma foram traduzidas, acomodadas, imitadas e parodiadas pelo escritor
maranhense. Em jornal da poca pode-se facilmente comprovar a admirao do
nosso dramaturgo pelo crtico francs:
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Os dramaturgos modernos, que tm a pouco e pouco tomadoposio no teatro francs Brieux, Lematre, Porto-Riche, Hervieu, Lavedan, Curel, Ancey, e outros so fiis tradio da dramaturgia do seu pas, e tm todos embora com ares desdenhosos, seguido a orientao de Sarcey, sem a qual, repito, no h teatro possvel. [...] Para mim, Sarcey ser sempre o mais profundo, o mais sensato, o mais sincero dos crticos teatrais de todos os tempos e oevangelizador do teatro no sculo XX. (AZEVEDO, 1899, p. 2 apud FARIA, 2001, p. 644).
O excerto acima faz parte de uma srie de artigos de A. Azevedo sobre a
dramaturgia preconizada por Sarcey e aquela observada em Ibsen, autor noruegus,
cujas peas, como Casa de Bonecas, recebiam, na poca, grande elogio do pblico
e da crtica (nesse caso particular, de Lus de Castro) pelo carter inovador.
bastante ilustrativo do que, para Arthur Azevedo, era fazer teatro e de como faz-lo.
Esses artigos, coletados por J. R. Faria (2001, p. 643-656), permitem-nos
acompanhar o debate entre as idias do escritor maranhense e as de Lus Castro,
que se estendeu de maio at meados de junho de 1899.
Sobre as convenes pregadas pelo crtico Sarcey, em Os sentimentos de
Conveno (famoso artigo publicado em 1865), A. Martins (1988, p. 43) destaca a
verdade dramtica, como a quarta parede e os apartes; certos caracteres sados da
tragdia como o confidente e da comdia antiga o criado -; e ainda certos
sentimentos: a voz do sangue e o do herosmo trgico.
Seguidor da conveno clssica teatral, inspirado sobretudo pelos
dramaturgos franceses, entre eles Molire6, A. Azevedo no se eximir, no entanto,
de transform-la e adapt-la aos gostos e costumes cariocas da poca, pois o nosso
dramaturgo, homem do seu tempo que era, viveu, acompanhou pelos jornais todas
as transformaes ocorridas na capital e, orientado pela observao, pela
sensibilidade e pela intuio, [...] retratou, com mais riqueza de pormenores e mais
variaes que seus antecessores, as linguagens [e costumes] que se ouviram [e se
praticaram] por trinta e oito anos nesta cidade-capital (MARTINS,1988, p.146, grifo
nosso).
Por acreditarmos que essa observao da sociedade feita pelo comedigrafo,
mediante sua sensibilidade e intuio, busca voltar o olhar do leitor/espectador para
fatos que lhe so desconhecidos, ou que esto encobertos pelo manto da mentira e
da hipocrisia, de acordo com Wlfel (apud SOETHE, 1986, p. 13), entendemos a
6 Influncia declarada pelo prprio autor numerosas vezes, em seus artigos de jornal.
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importncia primeira do olhar do dramaturgo, cujo papel no o de mero cronista,
mas principalmente o de observador satrico, crtico, dos costumes de seu tempo.
So numerosos os trabalhos que abordam a vida, o pensamento, as obras e a
importncia de A. Azevedo enquanto autor de variada gama de literatura. Porm no
nosso objetivo neste trabalho estendermo-nos mais nesse ponto e, por isso,
seguimos com um amplo painel da capital federal do incio do sculo XX.
3.2 A vida da cidade
Em 1895, A. Azevedo publica num jornal um conto cuja histria sobre uma
personagem - o velho Lima (funcionrio pblico de uma repartio do Ministrio do
Interior, no Rio de Janeiro) que, devido a uma sria enfermidade, permanece
acamado por oito dias. Situao bastante comum, no fosse a doena ter-lhe
afastado justamente no dia 14 de novembro de 1889, e ele, como a maioria da
populao, no ter o costume de ler jornal. Ao se restabelecer, parte para o trabalho
ignorando completamente que o Brasil j era uma Repblica. Surpreende-se logo na
viagem de trem, ao ser cumprimentado por um comendador como cidado e
presenciar blasfmias e indignao contra o Imprio. Resolve ser sensato e calar-se
diante do que lhe parecia insanidade total. Na repartio impressiona -se ainda mais
fortemente quando, ao dar pela falta do retrato oficial de D. Pedro II e perguntar a
um funcionrio sobre o paradeiro da litografia, ouve como resposta: Ora, cidado,
que fazia ali a figura do Pedro Banana?. Depois de tudo que ouvira e vira, o velho
Lima chega concluso: No dou trs anos para que isto seja Repblica!
Adotamos, inspirados no exemplo de E. T. Saliba (2002, p. 75), que a utiliza a
modo de ilustrao, a histria engenhada por A. Azevedo, porque elucida o modo
como boa parte da populao citadina carioca via o novo regime poltico: de forma
distante, fragmentada e confusa, embora estivesse no centro dos acontecimentos.
Nas palavras do historiador B. Fausto (2003, p. 245): a passagem do Imprio para
a Repblica foi quase um passeio. Isso se deve principalmente ao fato de no terem
ocorrido grandes manifestaes, nem conflitos de interesse marcantes, pois, desde
1887, a paulatina transformao econmica, a nova lei eleitoral (que deixa de ser
baseada na renda), o fortalecimento da camada mdia, o desenvolvimento industrial
e tecnolgico (entre outros), somados ao gradual afastamento do imperador do
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governo, ao descontentamento do Exrcito, Abolio, preveno contra a
princesa Isabel e seu marido, febre da bolsa, ao positivismo, so fatores que
encaminharam o pas para o novo regime, de modo quase imperceptvel.
A fase seguinte (1889-1892), do primeiro governo provisrio, marcada pelo
aumento cambial, derivado da mudana no sistema de trabalho, chamado
Encilhamento. No entanto, segundo N. W. Sodr (1979, p. 300), as acomodaes do
sistema interno, com a finalidade de adaptar-se s estruturas capitalistas externas,
levaram considervel reduo no padro de vida sobretudo das camadas mdia e
baixa, pois praticamente tudo o que consumiam, de vesturio a alimentos, era
importado. Tal importao implicava alteraes de taxas cambiais, as quais, por
operarem o mecanismo da concentrao de renda, beneficiavam apenas os
exportadores. Essa condio fomentou a primeira crise desse novo regime e, em
conjunto com uma srie de fatores, levou Deodoro a abdicar.
Com o novo lder republicano (Floriano Peixoto), embora brevemente, a
camada mdia passou a ser representada. A seguir, a elite mobilizou-se, pois,
derrocada a monarquia, reformado o aparelho de Estado obsoleto, introduzidas as
alteraes que interessavam classe dominante, no havia mais que aceitar a
aliana, que comeava a tornar-se incmoda (SODR, 1979, p. 302). Interessava
camada alta, ento, livrar-se de Floriano (e da dominao militar) para reassumir o
poder.
A Revoluo Federalista (da qual tomaram parte positivistas do Rio Grande
do Sul e, mais tarde, os do Paran e Santa Catarina) e a Revolta da Armada
(ocorrida na mesma poca) exemplificam os confrontos entre os dois poderes.
Prudente de Morais (1895-1898), Campos Sales (1898-1902) e Rodrigues
Alves (1902-1906) foram presidentes que atendiam aos interesses da elite vigente
na poca, sinalizando a famosa poltica do caf com leite. Coube ao primeiro, com
o incio do declnio do caf (1896), estabelecer a poltica de associao ao capital
estrangeiro (ingls, principalmente). A fim de sanear problemas estaduais, Campos
Sales delega totais poderes aos governadores de estado, pois, dessa forma,
garantiria a confiana dos estrangeiros e seus emprstimos.
Percebemos que, por tal endividamento, tiveram incio as grandes obras
porturias, ferrovias, empresas eltricas, servios pblicos etc (SODR, 1979,
p.306).
Com relao capital federal, de acordo com Nicolau Sevcenko (1999, p. 27),
esta iniciou o sculo XX de maneira promissora, pois, como centro poltico,
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intermediava o dinheiro da economia cafeeira, e, portanto a sociedade carioca se
abastava com recursos derivados do comrcio, das finanas e das indstrias.
Contribuiu para isso o fato de a cidade, no perodo, ser ncleo da maior rede
ferroviria nacional (a qual a ligava aos estados de So Paulo, os do Sul, Esprito
Santo, Minas e Mato Grosso e com o Vale do Paraba) e, por meio do comrcio de
cabotagem para o Nordeste e o Norte (at Manaus), ampliar seu alcance.
O pesquisador (SEVCENKO, 1999, p. 27) cientifica-nos ainda de que, no Rio
de Janeiro, concentravam-se a sede do Banco do Brasil, a da maior Bolsa de
Valores e a da maior parte das casas bancrias nacionais e estrangeiras. Nesse
incio de sculo, a capital federal tornou-se o maior centro populacional do pas,
oferecendo s industrias que ali se instalaram em maior nmero nesse momento o
mais amplo mercado nacional de consumo e de mo-de-obra. 7
Jos M. de Carvalho (1987), por sua vez, mostra-nos a cidade do Rio de
Janeiro do incio da Repblica como um lugar onde o peso das tradies tanto
escravistas quanto coloniais dificultava sobremaneira o desenvolvimento de uma
democracia moderna, isto , no havia como se desenvolverem as liberdades civis.
Ao mesmo tempo, essas tradies contaminavam as relaes entre os habitantes da
cidade e o governo.
J tratamos da cidade do Rio de Janeiro, principalmente daquela do comeo
da Repblica, mas quem eram seus habitantes? O que faziam? Assim nos so
apresentados por J. M. de Carvalho (1987, p.76, grifo nosso), sob o ponto de vista
ocupacional:
No alto [da pirmide] havia um pequeno grupo de banqueiros, capitalistas e proprietrios. Seguia-se um precrio setor mdio, composto basicamente de funcionrios pblicos, comercirios e profissionais liberais. De tamanho semelhante ao anterior era o setor do operariado, que incluaprincipalmente artistas, operrios do Estado, e trabalhadores das novas indstrias txteis, alm de empregados em transportes. Finalmente, vinha o que dava ao Rio marca especial em relao a outras cidades da poca: o enorme contingente de trabalhadores domsticos, de jornaleiros, depessoas sem profisso conhecida ou de profisses mal definidas. Este lumpen representava em torno de 50% da populao economicamente ativa, com pouca variao entre 1890 e 1906.
Mais adiante, o autor (CARVALHO, 1987, p. 77) complementa o painel do
proletariado assinalando os portugueses, cuja imigrao, no perodo referido,
7 Os nmeros da populao do Rio, no perodo de 1890 a 1900, passaram de 522 651 para 691 565 habitantes; j de 1900 a 1920, esse total chegou a 1 157 873. (SEVCENKO, 1999, p.52).
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grande, e os interioranos, vindos de todas as partes do pas, como indivduos que,
ou se encaixavam na parte mais baixa daquela pirmide, ou viravam desocupados
ou marginais.
A rapidez com que se processam as transformaes e o anseio da elite de se
alinhar com os padres europeus evidenciam a urgncia em deixar para trs a
imagem de cidade insalubre e insegura, cuja boa parte da populao era constituda
de gente pobre e mestia.
O total remodelamento, ou regenerao, da cidade vem ao encontro das
necessidades do novo grupo social hegemnico, cujos olhos estavam voltados para
a Europa, principalmente para a Frana. A inaugurao da Avenida Central e a
promulgao da lei sobre a vacina obrigatria, ambas ocorridas em 1904, constituem
o marco inicial da transfigurao da cidade carioca.
Foto 1 - Um dos ancoradouros da cidade do Rio de Janeiro final do sculo XIX. Fonte: ALMA carioca
Segundo Nicolau Sevcenko (1999, p. 30), quatro princpios fundamentais
regeram as transformaes na capital federal da poca: a condenao dos hbitos e
costumes ligados pela memria sociedade tradicional; a negao de todo e
qualquer elemento de cultura popular que pudesse comprometer a imagem civilizada
da sociedade dominante; uma poltica rigorosa de expulso dos grupos populares da
rea central da cidade e um cosmopolitismo agressivo.
Resumidamente, J. M. de Carvalho (1987, p.162) assim avalia a capital
federal:
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Era uma cidade de comerciantes, de burocratas, e de vastoproletariado, socialmente hierarquizada, pouco tocada seja pelos aspectos libertrios do liberalismo, seja pela disciplina do trabalho industrial. Uma cidade em que desmoronava a ordem antiga sem que se implantasse a nova ordem burguesa, o que equivale a outra maneira de afirmar a inexistncia das condies para a cidadania poltica.
O contraste social e o descaso da elite com os menos favorecidos promovem,
nessa sociedade, revoltas, apatia e o acirramento das desigualdades em todos os
nveis.
Para exemplificar a postura da populao diante dessas constantes
transformaes, que a afetavam diretamente, vejamos a manifestao conhecida
como a Revolta da Vacina (1904). O pesquisador Marco Pamplona (2002, p. 65-87),
investigando-lhe as causas, chegou concluso de que o decreto de sua
obrigatoriedade foi o estopim revelador de uma populao extremamente
descontente, proibida, pelo reviver do Cdigo de Posturas, de se expressar
livremente. Para ele, as violentas manifestaes pblicas, ocorridas na poca, foram
em certo grau tambm manipuladas por polticos que se opunham ao governo e
pretendiam um golpe de Estado. Mesmo assim, segundo o citado autor, essas
manifestaes populares teriam conseguido falar em causa prpria, uma vez que,
ao reagirem represso governamental, buscaram dar um basta interveno em
sua vida e invaso autoritria de seus lares e corpos, organizadas por um governo
com o qual em nada se identificavam.
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Foto 2 - Central do Brasil final do sculo XIX. Fonte: Almacarioca.com.br
Percebemos que o desejo das nossas elites de branquear e europeizar essa
populao negra e mestia em sua maioria, no Rio, no perodo estudado, provocou
grandes revoltas, injustias, e isso se refletiu nos jornais da poca (PAMPLONA,
2002, p. 85-87), nos quais, ora a populao era descrita como vadia, desordeira,
incivilizada, ora como trabalhadora, ordeira e sem interesses polticos.
Nos meio literrios, a profuso dos jornais e, em seguida, a criao de vrias
revistas ilustradas permitem aos escritores e cartunistas expressarem-se naquela
forma que mais se adaptava aos contrastes, s agruras, incertezas,
descontentamentos vivenciados ento, ou seja, a forma humorstica.
O pesquisador E. T. Saliba (2002, p. 76), em determinada parte de seu estudo
sobre as razes do riso, seleciona dezesseis humoristas (A. Azevedo inclusive), entre
os mais expressivos da ento capital federal, e nota-lhes caractersticas comuns
como a atividade precoce no jornalismo, o emprego no servio pblico modesto, a
produo de outras formas de expresso que no a literatura etc. Em seguida
(SALIBA, 2002, p. 77, grifo nosso), define, desse modo, o humorista tpico do
perodo assinalado
[...] como se pode notar pela trajetria de muitos deles, [o humorista] condensou em si mesmo as figuras do caricaturista e do cronista da imprensa ligeira, do publicitrio, do revistgrafo e, em alguns casos, do msico e do ator. O humorista foi, assim, uma figura mltipla, com alta capacidade de trnsito entre diferentes prticas culturais, e a trajetria de alguns exemplo desta multiplicidade.
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Essa figura mltipla, com alta capacidade de trnsito descrita pelo ensasta,
-nos muito importante, pois ela ser responsvel, com sua produo literria
vinculada ao humor, stira, ao cmico, pelo delineamento das particularidades no
apenas da populao carioca de ento, mas tambm do povo brasileiro de modo
geral.
Dentre a produo cmica, sobretudo a do teatro, as mais populares foram as
revistas de ano e as comdias de costumes, segundo C. Braga (2003, p. 55). A
pesquisadora (BRAGA, 2003, p. 55) aponta os escritores que se destacaram nas
primeiras e nas ltimas, respectivamente: A. Azevedo, em ambas; Martins Pena,
Alencar, Macedo, Frana Jnior (anteriores ao perodo enfocado), Coelho Neto,
Gasto Tojeiro, Cludio de Souza, Abadie Faria Rosa, Oduvaldo Viana, Viriato
Corra e Armando Gonzaga. Todos foram autores vistos e muito aplaudidos por
seus contemporneos, os quais, em suas peas, viam retratadas as mazelas de seu
tempo.
O que de fato definiria a produo teatral, ou, mais especificamente, o texto
teatral? Com esta dvida seguimos, na seo 3, e buscaremos algumas teorias para
solucion-la.
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4 TEATRO A VAPOR (1906-1908) TEXTOS DRAMTICOS?
Mais que qualquer outra arte da sua situao perigosa e privilegiada ,o teatro, pela articulao texto-representao, e mais ainda pelaimportncia do investimento material e financeiro, expe-se como prticasocial, cuja relao com a produo nunca abolida, nem quando, por momentos, aparece esmaecido, e quando um trabalho mistificador o transforma, por convenincia da classe dominante, em simplesinstrumento de diverso. A. Ubersfeld
Nem sempre so claros os caminhos que levam escolha de determinado
tema ou objeto de pesquisa. Mas feita essa, em algum momento do trabalho,
deparamos com a necessidade de justificar tal seleo. Caberia, ento, esclarecer
que foi, quando cursvamos uma disciplina oferecida pelo curso de ps-graduao
desta faculdade (Fclar-Unesp), na rea de concentrao em Estudos Literrios, em
2003, como aluna em carter especial, a ocasio de nosso primeiro contato com os
textos do escritor maranhense. A professora doutora Maria Celeste C. Dezotti,
responsvel pela disciplina citada Tpicos especiais: formas do teatro na
Antigidade clssica, possibilitou-nos travar conhecimento, dentre numerosos textos
dramticos, com os minidramas de Teatro a Vapor e alertou-nos sobre a falta de
estudos acadmicos que os contemplassem.
Uma vez que o teatro, principalmente na sua manifestao cmica, sempre
nos despertou interesse e, vislumbrada a possibilidade de unir a investigao sobre
esse tema ao crescimento intelectual (pessoal, profissional etc), essa conjuno de
fatores orientou-nos na direo da escolha desses ltimos escritos dramticos de
Arthur Azevedo como objeto de pesquisa.
4.1 A obra estudada
Segundo Antonio Candido e J. Aderaldo Castelo (1988, p.284), as revistas e
alguns jornais do fim do sculo XIX e incio do XX foram muito importantes como
veculo da literatura. Elias T. Saliba (2002, p. 38) esclarece-nos que
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A partir da ltima dcada do sculo XIX houve um significativoincremento da imprensa, trazido pelo aperfeioamento tecnolgico das oficinas grficas, que praticamente acompanha a intensificao do crescimento urbano do pas. Surge, afinal, o jornal mais moderno; segundo Olavo Bilac, aquele jornal leve e barato, verdadeiro espelho da alma popular, sntese e anlise das suas opinies, das suasaspiraes, das suas conquistas, do seu progresso.
Conforme j dissemos antes, os minidramas de Teatro a Vapor foram
primeiramente publicados no jornal O Sculo (recm-fundado por Brcio Filho), entre
1906 e 1908. Coerente com sua produo teatral, o autor de O Mandarim (1884)
mantm, ao longo de 104 minidramas, o dilogo fluente, calcado na linguagem
familiar e popular, e a rpida movimentao. O ttulo tanto pode ser tomado como
explicao para as cenas rpidas, episdicas, situadas na cidade do Rio de Janeiro
do incio do sculo XX e s quais o leitor/espectador tem acesso, quanto para cenas
que tomam carona num meio de transporte (o jornal), bem como os seus
leitores/espectadores o fazem num vapor (embarcao ou trem, e ainda o bonde
eltrico inovao presenciada pelo autor).
Na definio de Reis e Lopes (1988, p.99), a importncia semionarrativa 8 do
ttulo apreende-se sobretudo quando nele se esboam determinaes de gnero
que [...] constituem orientaes de leitura. Teatro a Vapor, portanto, segundo tal
definio, convocaria o leitor a adotar uma atitude psicolgica e esttica adequada
ao gnero dramtico e s estratgias que normalmente o caracterizam. Isso
demonstra que, mesmo sem o aparato do local prprio para a encenao concreta e
desprovido de atores, diretor, msica e demais elementos componentes da
teatralidade, cada texto veiculado pela seo Teatro a Vapor apelaria para a
memria cultural e para o conhecimento das estruturas teatrais do leitor, a fim de
realizar-se como texto dramtico.
Encontramos ainda, nas didasclias externas de alguns minidramas,
referncia explcita ao aparato teatral, neste caso, representado pela cortina. Essa
informao corrobora a idia de que A. Azevedo escreve esses textos para serem
representados. Vamos a dois exemplos. O primeiro deles, retirado de Um moo
bonito (64, p.122-123, grifo nosso), indica-nos: Sala. Ao erguer o pano, a sala est
vazia. Ouve-se cair l fora a chuva.
8 Vemos aqui semionarrativa com o sentido de signo da narrativa, tendo em vista que o gnero dramtico, assim como o narrativo, dotado de ttulo, embora ambos sejam expresses estticas com caractersticas particulares.
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Ou ainda, de F em Deus ou os estranguladores do Rio (22, p. 64-65): O
teatro representa a mesma taverna em que termina a pea. Esta didasclia inicia a
cena de um eplogo, criado pelo dramaturgo maranhense, a partir de um dramalho,
segundo Moser (1977, p. 189), de Alberto F. Pimentel e Rafael Pinheiro, cujo nome
Os estranguladores do Rio, baseado num crime famoso, ocorrido no Rio de Janeiro,
na rua Carioca. Aqui a referncia ao local o teatro incontornvel.
Acreditamos, dessa forma, que, porque nossos teatros estavam lotados ou
pelas muitas companhias estrangeiras, que tinham permanncia assegurada por um
pblico vido de influncias europias, ou pelas nacionais que, a essa altura,
representavam principalmente peas de teor apelativo ou aparatoso, cujo objetivo
maior era a bilheteria, escritores de talento reconhecido, tais qual Arthur Azevedo,
deixaram de encontrar empresrios e, conseqentemente, salas teatrais disponveis.
No faltavam ao nosso teatrlogo, contudo, meios para se comunicar com o seu
pblico, por isso, a publicao de cenas dramticas num jornal.
4.2 Definio da nomenclatura
Ao investigarmos a natureza das peas de Teatro a Vapor, observamos que
muitas poderiam ser as denominaes a elas pertinentes: mimo, sainete, esquete e
minidrama.
Comecemos, por ordem cronolgica, com mimo. Pavis (1999, p. 243-245)
define o mimo (do grego mimos, imitao) pelas oposies, primeiro entre esse e o
rapsodo, segundo entre mimo e pantomima. O mimo conta uma histria por gestos,
estando a fala completamente ausente ou s servindo para a apresentao e os
encadeamentos dos nmeros (PAVIS, 1999, p. 243). Esse o sentido moderno de
mimo. Mas podemos trazer baila um sentido anterior de mimo, como rtulo de um
gnero dramtico grego, de curta extenso e de natureza popular. Segundo M. C. C.
Dezotti (1993, p.37), o mimo uma das formas dramticas de origem drica, sculo
V a.C., que influenciaram a estruturao da comdia antiga, e, apesar de no ser
patrocinado pelo governo, obteve grande prestgio entre os antigos, inclusive entre
as classes mais cultas. As representaes de tal forma dramtica eram bastante
marcadas pela improvisao, mesmo quando baseadas em textos escritos.
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A pesquisadora (DEZOTTI, 1993, p. 38, grifo do autor) nos informa tambm
que
O siracusano Sofro e seu filho Xenarco so os mais antigosescritores de mimos. Viveram no sculo V A.C. e foram osresponsveis pelo estatuto literrio que o mimo alcanou, deprtica improvisada que era. O mimo ganha novo flego no perodo helenstico (sc. III I A.C.), cuja esttica literria passa a valorizar a literatura regional e popular, as temticas do cotidiano e osgneros literrios estruturados em textos de pequena extensopara maior burilamento da forma. Assim, esses minidramas, como se pode definir o mimo, continuam sua trajetria nas mos deescritores como Tecrito, cujos idlios podem ser vistos comomimos buclicos, e Herondas, que se dedicou aos mimos detemtica urbana, explorando aspectos grotescos docomportamento humano.
Confrontando as definies, percebemos que a primeira se detm no sentido
mais recente do fenmeno, enquanto a segunda, mais abrangente e profunda,
aborda a essncia dramtica desse fenmeno. Convm-nos destacar, dessa
definio da pesquisadora, o carter de crnica desse gnero dramtico - o mimo -
com a explorao de temas cotidianos (campestres ou citadinos); a composio de
textos breves, que deixam espaos para a improvisao e a stira ao
comportamento humano, ou seja, aos costumes.
No perodo da Idade Mdia, tal forma se mantm graas s trupes
ambulantes. J no sculo XV, na Itlia, conhece um renascimento sob a forma da
Commdia dell Arte (PAVIS, p. 243-244).
Desse perodo em diante, certo que essa forma literria sobreviveu, mas,
devido ao seu carter marginal comdia - e efmero stira aos costumes de
determinados grupos, em suas respectivas pocas, existem lacunas investigativas
que dificultam estabelecer a continuidade do mimo at recentemente.
Contudo, embora nos faltem evidncias para lig-los ao mimo grego, os
textos de Teatro a Vapor so, segundo D. Lobo (2000, p. 507), feitos para o palco,
passveis de serem enriquecidos pela improvisao do ator e recheados de stira
aos costumes da poca, focalizados na representao de cenas do dia-a-dia e,
portanto, guardam muitas semelhanas com aquele.
Sainete: segundo Pavis (1999, p. 349), na origem, uma pea curta cmica ou
burlesca em um ato no teatro espanhol clssico; serve de intermdio (entremez) ao
curso dos entreatos das grandes peas. Tem-se a que o sainete, a partir do final do
sculo XVII, torna-se uma pea autnoma, com o objetivo de divertir e relaxar a
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platia. Permanece em voga at o final do sculo XIX, e seus expoentes so:
Quiones DE BENAVENTE (1589-1651) e Ramn DE LA CRUZ (1731-1795). No
mesmo verbete, lemos que
Apresentando com poucos recursos e grossos traos burlescos ecrticos um quadro animado e pego da realidade da sociedadepopular, o sainete obriga o dramaturgo a opor-se a seus efeitos, a acentuar os caracteres cmicos e a propor uma stira muitas vezes virulenta do seu crculo. (PAVIS, 1999, p. 349).
Como j mencionamos, tal denominao aparece neste estudo, pois foi
utilizada pelos pesquisadores G. Moser (1977) e A. Martins (1988) para designar os
textos dramticos da obra estudada. Ainda de acordo com P. Pavis (1999, p. 349),
apesar de arcaizante, o termo sainete usado para toda pea curta sem pretenso,
interpretada por amadores ou artistas de teatro ligeiro (gag ou esquete).
Esquete: na definio de Pavis (1999, p. 143), uma
[...] cena curta que apresenta uma situao geralmente cmica,interpretada por um pequeno nmero de atores sem caracterizao aprofundada, ou de intriga aos saltos e insistindo nos momentosengraados ou subversivos. O esquete , sobretudo, o nmero de atores de teatro ligeiro que interpretam uma personagem ou uma cena com base em um texto humorstico e satrico no music hall, no cabar, na televiso ou no caf-concerto. Seu princpio motor a stira, s vezes literria (pardia de um texto conhecido ou de uma pessoa [sic] famosa); s vezes grotesca e burlesca (no cinema e na t.v.), da vida contempornea.
O critrio usado aqui para essa definio o do espao em que ocorre a
representao, ou seja, fora do teatro: cabar, caf-concerto, music hall, televiso.
Minidrama (MOSER,1977, p. 13; DEZOTTI, 1993, p.38) por sua vez,
constituir-se-ia numa tentativa de denominao, devido ao fato de serem de
curtssima durao as cenas (dois quadros, no mximo). Essa seria, ao que nos
parece, a forma mais escorreita de nomear os textos da obra analisada.
Percebemos, assim, que as denominaes mimo (o antigo), sainete, esquete
e minidrama denominam basicamente o mesmo objeto cujas caractersticas bsicas
so: texto breve, destinado representao, passvel de ser enriquecida pela
improvisao, marcado pela stira, que encontra em fatos e acontecimentos
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cotidianos urbanos sua matria. As variadas definies se explicariam por serem
diferentes os aspectos do objeto tomados como critrio definidor. Neste trabalho,
utilizaremos minidrama, por acreditarmos que a forma menos carregada de
significaes, e, por isso, nos permite uma abordagem dos textos de A. Azevedo
sem o peso de tradies, sem tantas interferncias.
4.3 Descrio da obra
Tomemos agora, por emprstimo, a diviso cronolgica desses minidramas,
feita pelo pesquisador A. Martins 9:
Sainetes da srie Teatro a Vapor10
1906 - Pan-americano, A verdade, O homem e o leo, A lista, "A casa de Suzana" (perdido), Um pequeno prodgio, Coabitar, Como h tantos!, Um desesperado, Um dos Carlettos,Depois do espetculo, Tu pra l - tu pra c, Um cancro, As opinies (cena de revista),Projetos, O mealheiro, Um grevista, Festas
1907 - 1906 a 1907, Senhorita "F em Deus ou os Estranguladores do Rio" (eplogo), O caso do Dr. Urbino, Quero ser freira, A domiclio, Sonho de moa, A escolha de um espetculo, Assemblia dos bichos (cena fantstica), Sem dote (em seguimento comdia Dote), Confraternizao, O "raid" , Depois das eleies, Sulfitos, Poltica baiana, A cerveja, Higiene, A vinda de Dom Carlos, Um Lus, O caso das xifpagas, As "Plulas de Hrcules", Entre proprietrios, Um apaixonado, O meu embarao (monlogo), Dois espertos,Liquidao, "Monna Vanna", As reticncias, Modos de ver, Reforma Ortogrfica, Foi melhor assim!, O Vellasquez do Romualdo, O cometa, Economia de genro, Os credores, Osfsforos, Um ensaio, Opinio prudente, Objetos do Japo, De volta da conferncia,Cinematgrafos, Pobres animais, Cinco horas, Um bravo, Um moo bonito, Insubstituvel!, O jurado, Cadeiras ao mar!, Os quinhentos.
1908 - Como se escreve a histria, Cena ntima, Que perseguio, Um homem que fala ingls, Quem pergunta quer saber, Modos de ver, Silncio!..., O novo mercado, A discusso, Uma mscara de esprito, Um ensejo, A Mi-carme, Padre-Mestre, Um susto, O poeta e a lua, Entre sombras, O conde, Pobres artistas!, Cena ntima, Sugesto, Por causa da Tina, Confuso, A ladroeira, Viva So Joo!, Uma explicao, Foi por engano, A famlia Neves, Socialismo de Venda, A vacina, O fogueteiro, Quebradeira (eplogo ao Quebranto, deCoelho Neto), Bahia e Sergipe, A mala, Lendo A Notcia, Trs pedidos (cena histrica), Bons tempos, A despedida.
Mediante essa diviso, podemos visualizar os textos e o ano em que foram
publicados. Os ttulos j nos fornecem a idia da variedade de assuntos abordados
9 Tal diviso pode ser encontrada em meio eletrnico a ser discriminado nas referncias.10 Na edio organizada e publicada por G. Moser (1977), falta um minidrama, temos, portanto, cento e quatro cenas.
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por Arthur Azevedo nessas cenas dramticas. Sempre ligados atualidade, tratam,
por exemplo, de poltica, notcias de crimes, fraquezas humanas, cor local,
relacionamentos familiares, teatro (at metateatro) e mais.
Nesses minidramas, percebe-se que, apesar de mudarem esses assuntos
conforme os interesses que prevalecem nas semanas sucessivas, as situaes
tendem a refletir uniformemente os costumes da classe mdia, remediada ou
modesta. Quase todos os cenrios ilustram a intimidade de uma famlia comum e,
todos fazem parte, de forma explcita ou no, do Rio de Janeiro.
Suas personagens (personagens-tipo como no poderiam deixar de ser na
comdia de costumes) so lojistas, funcionrios pblicos, demais empregados com
horas fixas de trabalho (representantes da classe mdia inferior); senhor doutor,
comendador ou proprietrios (classe superior) e mucamas, cabras, garons
donas de casa (pobre). Encontramos tambm caricaturas e alegorias.
Leiamos esta definio:
[...] consistia num resumo crtico dos acontecimentos [...]. s vistas do pblico, desfilavam os principais fatos [...] relativos ao dia-a-dia, moda, poltica, economia, ao transporte, aos grandes eventos, aos pequenos crimes, s desgraas, imprensa, ao teatro, cidade, ao pas. Era uma histria miniaturizada sob o painel anual, em linguagem popular, teatralizada. Equilibrava-se entre o registrofactual e a ficcionalizao cmica. (VENEZIANO, 1991, p. 88).
No fossem os trechos, que propositalmente suprimimos, essa poderia
perfeitamente ser a definio dos minidramas, tanta a semelhana que mantm
com a outra produo do escritor a revista de ano. medida do possvel,
tentaremos confirmar ou no essa suposio, mais adiante.
4.4 As didasclias
No se tem notcia da representao de tais textos poca de sua
publicao. Uma vez que no foram levados ao palco, caberia cham-los de
dramticos? Ou ainda, o que vem a ser um texto de teatro?
Nas palavras de Anne Ubersfeld (2005, p.6), o texto
[...] composto de duas partes distintas mas indissociveis: o dilogo eas didasclias (ou indicaes cnicas ou direo de cena). A relao textual dilogo-didasclias varivel de acordo com as pocas da histria do teatro. s vezes inexistentes ou quase (mas plenas de
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significao quando existem), as didasclias podem ocupar umespao enorme no teatro contemporneo.
Embora as indicaes cnicas em Teatro a Vapor no sejam abundantes, so
vitais para a resposta s perguntas: quem fala, a quem fala, onde, por que, ou seja,
O que as didasclias designam pertence ao contexto dacomunicao; determinam, pois, uma pragmtica, isto , ascondies concretas de uso da fala: constata-se como o texto das didasclias prepara o emprego de suas indicaes na representao (onde no figuram como falas). (UBERSFELD, 2005, p. 6).
Temos, em A verdade (2, p.34-35), por exemplo:
Gabinete de trabalho. O Juquinha chegou do colgio, entra para tomar a beno ao pai, o Dr. Furtado, que est sentado numapoltrona, a ler jornais (AZEVEDO, 1977, p. 34).
A conversao se d entre pai e filho, isto , quem fala? O pai, doutor
Furtado; a quem fala? Ao filho, Juquinha; onde? No gabinete de trabalho do pai; por
qu? Porque Furtado, ao saber que seu filho anda mentindo na escola, procura
repreend-lo. As didasclias indicam ainda quando: assim que o filho retorna do
colgio. A camada social a que pertencem as personagens vem explcita no ttulo de
doutor do pai, no gabinete de trabalho desse e em sua ocupao ler jornais,
sentado numa poltrona, no momento da chegada do filho.
Por mais breves, rpidas, que sejam, todas as cento e quatro cenas
respondem s perguntas acima descritas, quer nas didasclias externas (marcadas
pelos parnteses), quer nas internas (contidas nos prprios dilogos), ou seja,
ambas as rubricas se complementam garantindo ao leitor/espectador a apreenso
da cena, que certamente ser maior com a sua representao.
Seria a personagem teatral, (como a encontrada nos textos de Teatro a
Vapor), diferente daquela que se encontra nos textos em prosa? Com essa
indagao prosseguiremos na outra seo deste trabalho.
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5 PERSONAGEM, ESPAO E TEMPO NA OBRA ESTUDADA
Antes de enfocarmos a personagem teatral propriamente, caberia enumerar
os elementos que compem a teatralidade. De acordo com a diviso estabelecida
por T. Kowzan (2003, p. 117), o espetculo divide-se em dois componentes
principais: ator e aspectos exteriores a este. Decorrem, ento, as subdivises, nas
quais a palavra, o tom, a mmica, o gesto, o movimento, a maquilagem, o penteado e
o vesturio so elementos diretamente ligados ao ator; enquanto acessrio, cenrio,
iluminao, msica e rudo pertencem ao universo exterior quele do ator.
O espetculo, segundo T. Kowzan (2003, p. 98), serve-se tanto da palavra
quanto de outros sistemas no-lingsticos de significao, ou seja, praticamente
no existe sistema de significao que no possa ser a usado. Em nosso caso,
embora os minidramas sejam destinados representao e, portanto, ao
espetculo, nos limitaremos a alguns componentes essenciais, passveis de serem a
analisados a partir do texto dramtico: a personagem, o espao e o tempo no teatro.
Prticas modernas e teorias mais recentes discutem a atuao e a validade
da personagem de teatro. Entre muitos exemplos, fiquemos com Seis personagens
procura de um autor (1921) de L. Pirandello cuja representao est centrada
basicamente na revelao da estrutura totalmente ficcional do teatro para o pblico,
tocando num dos pontos principais da teoria clssica: a iluso dramtica e, ao
mesmo tempo, confirmando a importncia vital da representao para a personagem
teatral.
Vejamos algumas definies para esse elemento bsico do texto teatral.
5.1 Definio de personagem teatral
De acordo com Dcio de Almeida Prado (1968, p.83), as semelhanas entre o
romance e a pea de teatro so bvias: ambos, em suas formas habituais, narram
uma histria, contam alguma coisa que supostamente aconteceu em algum lugar,
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em algum tempo, a um certo nmero de pessoas. Vemos, contudo, que no romance,
na crnica ou no conto, embora a personagem seja o elemento principal, um entre
vrios outros; no teatro nada existe a no ser por meio dela.
5.2 Os tipos
A personagem-tipo recebe tal denominao uma vez que expe normalmente
traos abrangentes, por meio dos quais o indivduo (espectador/leitor) se reconhea,
ou seja, o universal que visa ao particular. , ento, o elemento primordial da
comdia, pois, ao contrrio da tragdia cuja matria o individual, o particular,
aquela opera com o coletivo, o geral. Portanto, com o nascimento da comdia, d-se
tambm o dos tipos, que sofrero mudanas no tempo e no espao, a fim de
servirem ao propsito de agradar e ao de retratar a sociedade na qual se inscrevem.
Em se tratando do teatro brasileiro, Neyde Veneziano (1988, p 120-135)
mostra-nos como e por que alguns tipos - o malandro, a mulata, o caipira e o
portugus - se fixaram em nossas comdias, principalmente nas revistas de ano, de
tal forma que chegaram a tornar-se convenes do gnero. Durante a descrio dos
procedimentos cmicos encontrados nos minidramas, na sexta parte deste trabalho,
teremos a oportunidade de verificar, de modo mais detalhado, o emprego ou no
desses caracteres.
Segundo Sylvia H. T. de A. Leite (1996, p. 34),
O tipo tem feio mais genrica e amena, diluindo com isso as restries que eventualmente expresse; toma como matriacomportamentos, hbitos e valores que so gerais (uma profisso, um segmento social), [...]; o tipo tende ao coletivo [...].
Nos textos estudados a personagem-tipo apresenta-se, freqentemente,
pelos papis sociais na vida privada pai, filho, me, filha, marido, esposa, amante,
amigo, vizinho, sogra, genro etc; ou na vida pblica vendeiro, funcionrio pblico,
escritor, carregador da alfndega, mdico, chacareiro, comendador, poltico,
delegado etc.
Eis um exemplo:
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No primeiro desses minidramas (111, p. 33-34) Pan-americano, temos o
vendeiro (Manoel) e Chico Facada. Este ltimo, depois de beber duas doses de
parati, afirma que, apesar de ser viajado (j fora at o Acre), era ignorante e gostaria
de saber do interlocutor (visto que este se dava ares de sabedoria) o que vinha a
ser pan-americano. Manoel responde que, como bom conhecedor do que era nosso,
saberia dizer at o que era americano, mas pan no. Chico ento lhe pergunta sobre
um livro que ensina tudo e que o vendeiro havia adquirido para papel de embrulho.
O dono da venda o vai buscar e exalta as qualidades daquele livro. Como o volume
que ele possua era o que continha a letra p, faz-se a consulta e se descobre que
Pan era uma divindade grega, filho de Jpiter e Calisto. Chico interrompe, primeiro
porque quer saber se grega ou americana a divindade, depois, se Pan teria dois
pais. Manoel supe ser Jpiter nome de mulher e segue a leitura dizendo que tal
deus presidia os rebanhos e era tido como inventor da charamela. Mais uma vez o
fregus interrompe inquirindo o significado dessa palavra, ao que o vendeiro diz
tratar-se de uma espcie de flauta. Chico conclui que pan-americano deveria ser
sinnimo de flauteao. O dono da venda concorda e acrescenta que deveria ser
algo relacionado com coisas inventadas para se gastar o dinheiro pblico. Para
encerrar, Chico pede mais uma dose de bebida.
Logo nesse primeiro minidrama, observamos a tipificao das personagens, a
comear pelos nomes bastante comuns Manoel (provavelmente de origem
portuguesa) e Chico Facada (apelido mais habilidade ou marca, estigma).
Outro trao da personagem Manoel sua ocupao: vendeiro, o que refora o
perfil de estrangeiro comerciante em terras brasileiras. Alm do mais, tido por sua
freguesia como metido a sebo, gria de ento para metido a esperto, em
consonncia com o pensamento da poca, segundo Paulo Srgio do Carmo (1988,
p.72; 109-110), de que o estrangeiro era em tudo superior ao nativo. Entretanto, o
fato de Manoel ser de origem portuguesa e tido como metido a sebo indiciam uma
ambigidade, na medida em que, segundo N. Veneziano (1988, p. 133-135), esses
traos compem a personagem-tipo do portugus: comerciante e pouco inteligente .
Para o perodo, a informao dada por Chico Facada, logo no incio da cena
ter ido at o Acre abre a possibilidade de consider-lo um desocupado e sem
moradia, pois era poltica de ento, segundo N. Sevcenko (1999, p. 66), encher
embarcaes com pessoas consideradas vadias e desordeiras e mand-las para o
11 Os nmeros indicados entre parnteses seguem a ordem da edio utilizada (1977).
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Acre. O caracterizador Facada (o que desfere ou o que marcado por)
reforaria seu delineamento como tipo: malandro e, muito provavelmente, mulato.
Diante do estrangeiro, Chico se declara ignorante, e o sabemos brasileiro, no
necessariamente carioca, j que ele se diz um cabra.
A rubrica externa informa-nos estarem os dois j instalados na venda, local
em que toda a ao transcorre e que, por sua vez, indica a camada social abordada.
Manoel est ao balco, e Chico Facada termina a ao de beber o segundo copo de
uma bebida (parati).
O tema desse texto o desconhecimento do significado de palavras (ou
ignorncia da populao, numa referncia mais abrangente), aqui pan-americano
(referncia ao Congresso Pan-americano realizado no Rio de Janeiro, naquela
ocasio). H a brincadeira com os nomes Jpiter e Calisto, sendo que este seria
mais adequado ao de homem, no entender das personagens, porque terminava em
o, e, portanto, masculino. Constatamos tambm o paradoxo: um povo to
necessitado de cultura e saber e um dicionrio vendido para ser papel de embrulho
(Manoel o comprara do copeiro de um doutor). Por outro lado, assim se refere a
personagem Manoel ao livro: obra rara. Seria lcito deduzir que, ao atribuir esse
julgamento a uma figura tida como pouco inteligente, o autor satiriza diretamente o
dicionarista, pois o nomeia de modo explcito.
No obstante sua falta de conhecimento, ambas as personagens chegam
concluso de que so enganadas pelo poder pblico por meio de palavras e
discursos empolados. Nesse caso, a aparente ignorncia se revela como sabedoria.
Propp (1992, p.151) declara haver duas grandes subdivises de riso, ou dois
gneros. Um deles seria o da derriso, o outro, o chamado por ele de riso bom. A
diferena estaria no fato de que suscitariam este riso bom os defeitos considerados
leves, pequenos, que no provocariam condenao, e sim reforariam um
sentimento de afeto, simpatia, por parte do espectador. Consideramos que, ao
ler/ver a cena de Pan-americano, o leitor/espectador riria um riso bom, dado que o
dilogo das personagens Manoel e Chico Facada revela defeitos pequenos
desconhecimento do significado de uma palavra, inabilidade para consultar um
dicionrio, desconhecimento de contedos histricos. Tanto as personagens quanto
seus equvocos e sua sabedoria advinda da experincia provocariam no pblico
(leitor/espectador) simpatia e afeto.
Ao iniciar a srie de Teatro a Vapor justamente com esse texto dramtico, A.
Azevedo d provas, mais uma vez, da sua condio de escritor para o povo nem
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por isso menor! Mostra-nos toda a simpatia pelos mais simples, seu engajamento
com a verdade, j que a nfase no est propriamente no congresso ocorrido, mas
sim na reao, especialmente das pessoas mais comuns (um vendeiro e um
malandro), diante da notcia dele e no conseqente esforo feito por ambas para
alcanar o verdadeiro sentido dessa notcia... O leitor daquela poca, diante desse
minidrama, provavelmente aderiria ao significado de pan-americano proposto pelas
personagens, mesmo conhecendo o real.
Acreditamos que A. Azevedo, herdeiro de longa tradio de teatro de revistas,
estende aos seus minidramas o uso j consagrado de personagens-tipo, tais como a
do portugus, do malandro, da mulata, pois, ao comporem uma realidade
extremamente heterognea vrias etnias, com seus modos de falar, andar, agir,
garantem forte expresso cmica. O que confirmaremos ou no mais adiante neste
trabalho, conforme j mencionado.
5.3 A caricatura
A caricatura, por sua vez, tambm se utiliza da simplificao de traos para
compor a personagem; no entanto, estiliza, por meio do exagero, da exacerbao,
determinados traos fsicos, intelectuais ou morais. Em oposio personagem-tipo,
a caricatura tende a ser mais particularizada e escolhe como matria um indivduo,
comportamentos ou idias mais definidos (LEITE, 1996, p. 34).
Seguindo ainda a argumentao de Sylvia H. T. de A. Leite (p. 34),
A caricatura implica a ampliao intencional do trao bsico que a sustenta, exigindo necessariamente o exagero, a deformao, adistoro, e uma configurao grotesca; [...]. Na construo dacaricatura, um atributo considerado fundamental enfatizado eampliado, assumindo as outras marcas um papel acessrio; h um efeito de contaminao da parte ampliada para o conjunto dapersonagem, espraiando-se o efeito de desgaste daquilo que propositadamente distorcido para toda a figura do caricaturado.
Com efeito, algumas personagens so compostas de tal modo pela
deformao, que, muitas vezes, torna-se difcil saber qual trao deu origem ao
exagero.
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Exemplo de caricatura:
Por causa da Tina (89, p.159-161) nos apresenta um casal o qual recm-
chegado de um espetculo e ceando na sala de jantar rubrica externa. O marido
(Clarimundo) pergunta mulher (Tudica) qual lhe parecera a atriz da pea Tina di
Lorenzo. Ela responde dizendo que no tinha visto nada de especial naquela atriz.
Clarimundo retruca, observando que a famosa atriz tinha representado muito bem o
papel. Dona Tudica corrige-lhe afirmando que a avaliara quanto beleza e no
quanto interpretao; mais tarde confessa-lhe ter assistido ao espetculo com o
nico intuito de averiguar a to propalada beleza da atriz italiana. Em seu af de
desmerecer a beleza da atriz estrangeira, chega a ponto de declarar que no
trocaria a si, pois seria at mais bela que ela se tivesse em mos aquelas pinturas e
toilettes.
Inicia-se a, no texto dramtico, a caricaturao da esposa, que se d
juntamente com a revelao, por parte do marido, dos seus defeitos fsicos:
C. No bastavam pinturas e toilettes, seria preciso arranjares uma dentadura e uma cabeleira postias! (AZEVEDO, 1977, p.160).
Retruca a mulher indagando se seriam verdadeiros os dentes e os cabelos
ostentados no palco pela atriz. O marido lembra a esposa de seu estrabismo e diz
no ser vesga a italiana. D. Tudica afirma dar-lhe graa essa diferena e postula que
Clarimundo, por ser seu marido, tem a obrigao de ach-la a mais bela das
mulheres. Em resumo, no admite ser afrontada com a beleza da atriz.
C. Mas eu no te afronto, Tudica! Apenas no admito que tu, com esse corpo que pesa cem quilos... e esses dentes... e essesfarripas... e esse estrabismo, que no te d nenhuma graa, tejulgues mais bonita que uma mulher cuja formosura clebre!...(AZEVEDO, 1977, p.160).
Sentindo-se ofendida, a esposa se enfurece, atira a xcara ao cho e declara
no querer mais saber do marido. Mas ainda sobra-lhe flego para ridicularizar o
nome da comediante Tina associado tina. Nesse momento o marido desfere o
golpe fatal: se a atriz uma tina, Tudica barrela (palavra que pode ser
associada a barril). D-se, ento, por satisfeito o marido, j que finalmente a
esposa concordara ser a di Lorenzo bonita, a partir da, poderia dizer o que lhe
aprouvesse. Enquanto ele entra tranqilamente em seu quarto, a mulher tem um
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ataque de histeria, esperneando, batendo o p e atirando o bule no cho
indicaes da rubrica externa.
A divergncia de opinio entre os cnjuges quanto ao espetculo ou quanto
beleza da atriz poderia criar um efeito cmico, nessa pea, mas a construo da
figura da mulher como caricata - obesa (mais de cem quilos), sem dentes, sem
cabelos e, ainda por cima, estrbica - evidencia a finalidade satrica da cena
pretendida pelo autor.
A comicidade das figuras obesas, segundo Propp (1992, p. 46), no est nem
na sua natureza fsica, nem na espiritual, mas sim na correlao das duas, onde a
natureza fsica pe a nu os defeitos da natureza espiritual. Lembremos tambm que
o marido se reconhece feio como a necessidade. (uso de dito popular, to ao gosto
do dramaturgo, que, aqui, refora a caricatura do casal, o qual beira o grotesco). A
desavena ocorre principalmente porque, enquanto ao marido interessa analisar a
atuao da atriz, pois, para ele a beleza desta era indiscutvel, esposa interessa
avaliar a beleza da famosa mulher. Chega a comparar-se a ela e a concluir, no
obstante seus defeitinhos, ser-lhe superior. O tom satrico tem por objeto a vaidade
feminina, to antiga e atual, assim como a inveja e o cime.
Uma vez que tanto a vida fsica quanto a vida moral e intelectual do homem
podem tornar-se objeto de riso, nos dizeres de Propp (1992, p. 28), o aspecto fsico
deformado (caricatura da personagem feminina), na construo do cmico, denuncia
por si alguma falta moral, que se revela no discurso marcado pela futilidade do
motivo de discusso entre os dois. Temos, portanto, defeitos considerados graves
pela sociedade: feira em excesso, assim como so excessivos a vaidade da
esposa, seu cime e sua inveja; ocorre da o riso de zombaria.
Cabe ressaltar que muitas vezes a caricatura se constri a partir de um
modelo real, da a denominao caricatura viva. Esta, segundo N. Veneziano (1988,
p. 135), to antiga quanto as primeiras comdias gregas e est estreitamente
ligada stira. Vale-se de retratar pessoas conhecidas da poltica, das artes, das
letras ou da sociedade e, embora tenha sido utilizada, no Brasil, pela primeira vez,
por Jos de Alencar, na comdia Rio de Janeiro Verso e Reverso (1857), foi
introduzida de maneira definitiva nos palcos brasileiros, segundo N. Veneziano
(1991, p. 136), em O Mandarim (1884), de A. Azevedo em parceria com Moreira
Sampaio. Nessa revista, a personagem Baro de Caiap uma caricatura viva de
Joo Jos Fagundes de Rezende e Silva, um baro do caf da poca. Houve, sem
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dvida, polmica e manifestao de total desagrado da parte do caricaturado, mas
houve tambm bastante aplauso pblico, o que garantiu continuidade no uso desse
elemento (caricatura viva) no s pelo dramaturgo maranhense, mas tambm por
seus contemporneos. Tal recurso mostrou-se e mostra-se to eficaz que hoje, no
panorama brasileiro, as caricaturas vivas, juntamente com as pardias, ocupam
considervel lugar na literatura satrica, no cinema, nos programas de rdio e na tv.
A galeria de personagens de Teatro a Vapor muito rica e variada, mas no
saberamos dizer se h nela caricaturas vivas, pois tal recurso, com o passar do
tempo, deixa de significar, uma vez que o que lhe deu origem a figura real
perdeu-se.
5.4 A alegoria
Uma vez que a pesquisadora aborda particularmente a comdia brasileira de
costumes, na sua feio de revista com a qual A. Azevedo obteve boa parte de
sua reputao - retomemos a conceituao de N. Veneziano (1988, p. 138),
segundo a qual a alegoria consiste na representao, por meio de uma personagem,
de abstraes ou ento de coisas inanimadas. Ainda, segundo a pesquisadora, o
pensamento cristo, durante a Idade Mdia, fez com que se desenvolvesse todo um
sistema de representaes alegricas, que personificavam abstraes e entidades
morais ou espirituais. Nesse perodo, a servio da catequese, as moralidades (cujo
objetivo era a transmisso de lies morais) personificadas tornam-se
procedimentos comuns no palco, principalmente naquele teatro popular.
Ao estudarmos as revistas de ano, fcil perceber que o uso da alegoria
passou a a ser recurso comum, pois, por seu intermdio, poderiam ser colocados
em cena os gneros teatrais, as classes, sociais, as instituies, as mazelas, as
doenas, ou seja, as alegorias enriqueciam sobremaneira a representao e
permitiam aos comedigrafos uma stira mais viva e eloqente.
De sua pena de revistgrafo, A. Azevedo tirou com certeza, na composio
dos minidramas de Teatro a Vapor, mais de uma cena com o uso do citado recurso.
A seguir, temos um exemplo:
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As opinies (15, p.54) um minidrama ambientado na Avenida Beira-Mar,
espao pblico, um dos marcos da gesto de Pereira Passos e do cosmopolitismo
da cidade do Rio de Janeiro. Suas personagens so alegricas, pois, ao colocar em
dilogo A Comadre, O Compadre, mais dez Opinies, o autor, sem dvida, utiliza os
elementos condutores das intrigas nas revistas de ano (compre e comre) e
alegoriza (personifica) a populao representada pelas diversas opinies. A primeira
rubrica j esclarece tratar-se de uma cena de revista. Esto a comadre e o
compadre a questionar a idia que o povo faz da figura do ento prefeito Pereira
Passos (1904-1906). Surgem, cantando uma valsa, dez opinies, que
imediatamente so interrogadas a respeito de tal. Todas, por sua vez, desfilam seus
pareceres, uns favorveis s mudanas implementadas pelo poltico, outros contra
as mesmas.
(O tom sarcstico no poderia deixar de aparecer)
9a. opinio De mitrios foi ele prdigo. o prefeito mais diurtico que temos tido! (AZEVEDO, 1977, p.55)
Ao final, as Opinies retiram-se, cantando tambm. O Compadre chega
concluso de que Pereira Passos (1836-1913) no perfeito, assim como nenhum
homem o , mas excepcional e benemrito.
Embora nessa pea haja espao para opinies, idias diferentes e
divergentes at, a figura poltica de Pereira Passos salvaguardada pela fala fi nal
do Compadre. No entanto, ao escolher uma cena de revista para tratar de feitos
polticos, nada impede que a leitura/entendimento seja dupla(o), uma vez que
conveno do gnero da revista o final ser bom/feliz, mas a escolha de seus temas,
segundo N. Veneziano (1988, p.165), permitir crtica ferina e irreverente.
5.5 Espao
Ao analisar o espao, A. Ubersfeld (2005, p 91) denomina tridimensional a
relao estabelecida entre as personagens (representadas por seres humanos), um
dado lugar e os espectadores. O espao, segundo a autora, indissocivel, no texto
teatral, da utilizao de personagens. E mais como o teatro representa atividades
humanas, o espao teatral ser o lugar dessas atividades, lugar que ter,
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obrigatoriamente, uma relao (de fidelidade ou distncia) com o referencial dos
seres humanos. No texto teatral, as informaes essenciais do espao, tais como
indicaes de lugares, de gestos, ocupao de espao, so dadas pelas indicaes
cnicas (didasclias), quando existem, e pelo discurso das personagens.
Para M. Pruner (2001, p. 45-56), o espao dramtico se define por uma
dualidade: espao cnico e espao dramtico. O primeiro o