Tese Sobre Artthur Azevedo

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  • RESSALVA

    Alertamos para ausncia da capa, folha de rosto e pginas pr-textuais, no includas

    pela autora no arquivo original.

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    1 INTRODUO

    De todos os gneros dramticos, o mais difcil, segundo minha opinio, incontestavelmente a comdia.

    Quintino Bocaiva

    A 22 de agosto de 1906, chegava s mos do pblico leitor carioca, por meio

    do jornal O Sculo, o primeiro de uma srie de 105 minidramas ou sainetes1 de

    autoria de Arthur Azevedo (1855-1908), na seo por ele intitulada TEATRO A

    VAPOR. A partir da, tais escritos dramticos ocupariam, todas as quintas-feiras,

    essa seo, o que se deu at 21 de outubro de 1908.

    Foram necessrios sessenta e dois anos (1970) para que um brasilianista -

    professor Gerald Moser reencontrasse, iniciasse a coleta e fizesse a primeira

    anlise crtica para posterior publicao (1977), conservando o ttulo dado por Arthur

    Azevedo de Teatro a Vapor, desses ltimos minidramas de um dramaturgo

    brasileiro, que, nas palavras de Dcio de Almeida Prado (1999, p. 145): entre 1873,

    quando chega ao Rio, com 18 anos, vindo do Maranho, e 1908, ano em que morre,

    [...] foi o eixo em torno do qual girou o teatro brasileiro.

    A anlise dessa obra de Arthur Azevedo, por meio da seleo de alguns

    minidramas, com o objetivo de verificar a quais so os recursos recorrentes

    geradores do riso, justifica-se como forma de investigao da maneira pela qual

    dramatizava esse grande autor que, nas palavras de G. Moser (1977, p. 23),

    reanimou e atualizou a tradicional comdia de costumes, deixando um legado ao

    teatro brasileiro do futuro.

    Considerando que nosso dramaturgo conseguiu efeitos cmicos com um

    mnimo de linhas e pintou quadros de gnero da vida carioca numa quadra em que

    as luzes eltricas, os filmes de cinema e os automveis eram novidades, ainda

    segundo Moser (1977, p. 23), cabe ao pesquisador trazer tona tal gnio dramtico.

    1 Segundo Pavis (1999, p. 349), [...] tipo de pea encontrada na Espanha do sculo XVII, consistindo numa cena cmica destinada a ser representada no entreato de peas srias longas. Utilizamos tal denominao aqui principalmente porque ela j foi empregada para os textos de Teatro a Vapor,tanto por G. Moser (1977), quanto por A. Martins (1988), estudiosos de A. Azevedo.

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    Pela inovao dramtica na forma dos minidramas, que, alm de darem

    continuidade s formas mais genunas da comdia de costumes, fazendo jus

    nossa tradio em comdias deixada por Martins Pena (1815-1848), Frana Jnior

    (1838-1890), Macedo (1820-1882) e outros, guardarem muitas semelhanas com o

    gnero teatro de revista, bastante utilizado pelo dramaturgo maranhense, vale a

    pena estudar, de modo mais sistemtico e detalhado, a obra apontada e procurar a,

    aps a seleo de alguns desses escritos, os recursos escolhidos pelo renomado

    dramaturgo a fim de gerar o riso.

    Almeja-se, com esta pesquisa, contribuir com os estudos sobre a comdia de

    costumes na literatura brasileira, tendo em vista os poucos trabalhos realizados

    sobre o gnero no Brasil, e com os estudos literrios de modo geral, apresentando

    uma obra ainda pouco estudada nos meios acadmicos, de um autor cuja produo

    literria, sobretudo a teatral, de inegvel valor.

    Para as pesquisas a respeito da comicidade, tomar-se-o como referencial

    terico os estudos de V. Propp (1992). O procedimento principal de anlise constitui-

    se na aplicao dos conceitos de comicidade e do riso aos minidramas escolhidos

    da obra Teatro a Vapor de Arthur Azevedo, buscando, sempre que possvel,

    correlacionar a produo dramtica abordada, o efeito cmico obtido e o contexto da

    poca.

    Na seo 2 Fortuna crtica, procuraremos delinear o momento scio-

    histrico da dramaturgia brasileira, mapear, ainda que brevemente, a produo

    teatral de Arthur Azevedo e contextualizar os textos dramticos de Teatro a Vapor.

    Logo mais, na seo 3 Arthur Azevedo e a capital federal,

    apresentaremos uma sucinta biografia do autor e buscaremos compor um panorama

    da cidade do Rio de Janeiro, no incio do sculo XX, quando o pas mal sara da

    Monarquia, a capital federal sofria enormes transformaes e vivenciava imensos

    contrastes. Uma vez que os temas dos minidramas abordam sempre o cotidiano

    citadino, parece-nos fundamental tal contextualizao.

    Na prxima seo Teatro a Vapor: textos dramticos?, procuraremos

    identificar os elementos que constituem os referidos minidramas em textos

    dramticos e explicaremos algumas das possveis denominaes para os escritos

    dramticos, objetos da pesquisa.

    Em seguida, na seo Personagem, espao e tempo na obra estudada,

    conceituaremos personagem-tipo, caricatura e alegoria. Em seguida, procuraremos

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    exemplificar a tipologia referida; tal procedimento conceito mais exemplo - ser

    seguido para a definio de espao e a de tempo teatral.

    Na seo 6 Algumas consideraes sobre a comicidade e o riso,

    pretendemos estabelecer as teorias da comicidade e do riso que nortearo a anlise

    seguinte.

    A fim de efetuarmos a descrio, em Recursos cmicos em alguns

    minidramas penltima seo, faremos o levantamento dos procedimentos

    cmicos observveis nos textos escolhidos, assim como o seu efeito para a

    produo dramatrgica do autor, correlacionando-os ao contexto scio-histrico e

    cultural da capital federal.

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    2 FORTUNA CRTICA

    A dramaturgia brasileira [1889-1930], alavancada pelo esforo de atores, autores e empresrios, acompanhou pari passu esta caminhada,cumprindo com toda a dignidade sua funo: foi espelho crtico de seu tempo; tornou-se, como a sociedade que refletia, cada vez mais brasileira.

    C. Braga.

    Ao iniciarmos as pesquisas sobre a poca em que foram produzidos os

    minidramas de Teatro a Vapor (incio do sculo XX), notamos que essa constitui um

    perodo de grande importncia na histria brasileira, uma vez que, conforme afirma

    Cludia Braga (2003, p. XXI), o do estabelecimento do pas como unidade

    independente. nesse momento, mais ainda do que poca da independncia,

    que o Brasil busca se consolidar como ptria, e o povo, como nao.

    No entanto, conforme nos aprofundamos nesse assunto, percebemos sua

    abrangncia e complexidade, por isso a dificuldade em escolher aspectos do

    contexto brasileiro que componham um painel significativo, a fim de entendermos a

    sociedade daquele perodo e sua produo teatral. Em momento que julgamos mais

    apropriado, exploraremos, de modo sistemtico, o contexto histrico da obra

    pesquisada.

    Quanto produo dramtica daquele princpio de Repblica, de acordo com

    N. Veneziano (1991, p. 25): um pas de miscigenao, um povo em formao, uma

    sociedade pequeno-burguesa em ascenso s poderiam gerar uma platia receptiva

    a um teatro popular. Pesquisas mais recentes, que datam, como a de Neyde

    Veneziano, de, aproximadamente, quinze anos para c, trazem como objeto de

    estudo esse teatro popular brasileiro, cujas caractersticas exporemos logo mais.

    2.1 Para uma reavaliao do perodo

    O que se representava nos teatros brasileiros no final do sculo XIX e incio

    do XX? Quando comeamos nossa busca por respostas sobre a produo

    dramatrgica do perodo denominado Primeira Repblica (1889-1930), qual no foi a

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    surpresa (desagradvel) constatarmos ser esse um perodo considerado de

    decadncia ou ainda degenerescncia teatral. Logo o peso de semelhante

    avaliao compromete o produto de mais de quatro dcadas do teatro brasileiro.

    No bastasse isso, o perodo em questo traduz tanto a necessidade quanto a

    vontade de consolidar o pas como nao. Temos a duas proposies que no se

    estabelecem de forma alguma como causa e efeito.

    C. Braga (2003, p. 41) nos responde questo acima: dramas, comdias e

    melodramas. De acordo com a noo de teatro como espelho da sociedade, a

    autora esclarece que

    Nos dramas foram abordados os conflitos vivenciados pelasociedade naquele momento, [...] as comdias, paralelamente afirmao nacionalista, perseveraram na tradio da crticadebochada dos costumes iniciada nos primrdios do Imprio, alm de terem ainda assimilado novos padres da graa cotidiana; no plano do teatro mais abstrado da realidade objetiva, a permanncia do melodrama em nossos palcos trazia tona o gosto popular pela emoo servida s escncaras, enquanto o movimento simbolista, por sua vez, levava aos palcos a controversa corrente esttica da arte pela arte. (BRAGA, 2003, p. 41).

    De modo bastante conciso, so esses gneros por meio dos quais se

    expressavam nossos escritores da poca. importante destacar que os palcos

    nacionais dividiam a cena, quando conseguiam teatro, com muitas companhias

    estrangeiras, que aproveitavam a falta de trabalho, devido ao vero europeu, e

    excursionavam ao pas, a trabalho.

    Procedendo ao levantamento bibliogrfico sobre a poca, encontramos

    Ao compararmos a produo teatral encontrada com a dramaturgia que lhe era anterior, na investigao do ponto em que a ruptura, a degenerescncia, se teria manifestado, o que se apresentou em nossas leituras, ao contrrio da decadncia que era imputada produo teatral dos primrdios de nossa Repblica, foi acontinuidade de uma produo dramatrgica, predominantementecmica, popular, cujo objetivo, tambm ao contrrio do queespervamos, era a tentativa de decifrar, compreender e, sobretudo, explicar o Brasil. (BRAGA, 2003, p. XX).

    Ou seja, o perodo da Primeira Repblica mostrou-se extremamente frtil em

    termos de vida cultural e, conseqentemente, a sua produo dramtica era reflexo

    dessa efervescncia. O que se comprova que

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    Cada drama ou comdia ali encontrados acabam, em seu conjunto, compondo um vasto quadro da sociedade brasileira dos primeiros anos da Repblica, seja pelos tipos desenhados, ou pelo estilo empregado. A questo do nacionalismo que comeava a sefortalecer, as mudanas comportamentais, as notcias dos fatosmundiais que aqui chegavam, os equvocos sociais que tantas e to boas comdias renderam para seus contemporneos, mesmo atendncia crepuscular do estilo simbolista, l esto, nas obras do perodo, formando o painel representativo de todos os aspectos de nossa sociedade. (BRAGA, 2003, p. XXI, grifo do autor).

    Verificamos dessa forma que, embora avaliada de modo sobretudo negativo,

    a produo teatral, no perodo da Primeira Repblica, mostra-se continuadora de

    uma tradio dramatrgica que se pretendia brasileira e que

    [...] o aprofundamento do estudo da vida teatral brasileira naPrimeira Repblica revela-se de vital importncia para acomplementao historiogrfica da produo cultural de nosso pas como um todo, e a produo dramatrgica dos primrdios daRepblica, desprestigiada e praticamente desconhecida... (BRAGA, 2003, p. XXII).

    Qual (is) seria(m) o(s) motivo(s) desse desprestgio e desse desconhecimento

    apontados pela pesquisadora? Um deles, sem dvida, o predomnio, ento, do

    teatro de cunho popular.

    Corroborando essa idia, Joo Roberto Faria (2001, p.150) expe que,

    embora as platias se divertissem e os empresrios ganhassem rios de dinheiro

    com as peas cmicas e musicadas (predominantes na poca), os escritores e os

    intelectuais queixavam-se do que consideraram a decadncia do teatro brasileiro,

    pois esse teria se afastado da literatura e se voltado apenas para o entretenimento.

    No difcil, portanto, encontrarmos, em jornais da poca e mesmo em estudos

    sobre a produo teatral de meados do sculo XIX at as trs dcadas do seguinte,

    crticas desabonadoras ao fato de esse teatro ter querido e ter agradado ao grande

    pblico.

    Tambm de acordo com o pesquisador (FARIA, 2001, p. 160), Jos de

    Alencar, Machado de Assis, Lus Leito, Joaquim Manuel de Macedo, entre outros

    escritores e intelectuais de prestgio, tais como Moreira de Azevedo, Carlos Ferreira,

    Francisco Otaviano fazem coro idia de que

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    [...] a arte dramtica encontra-se decada, pervertida, que o domnio das tradues absoluto, que o repertrio de baixa qualidadeartstica, formado por operetas, mgicas extravagantes, farsasburlescas, vaudevilles e comdias indecorosas estragou o paladar do pblico. (FARIA, 2001, p.160).

    Conforme percebemos, o teatro popular (feito para o grande pblico),

    expresso em suas mltiplas faces operetas, mgicas, farsas, vaudevilles e

    principalmente, comdias -, a base sobre a qual incidem as crticas negativas

    desse perodo.

    Flora Sssekind (1993, p. 57-58), em sua anlise sobre a produo dessa

    poca, constata que a crtica corrente adotava traos de um gnero hbrido, isto ,

    misto de crtica e crnica. As causas do predomnio desse gnero de crtica-crnica,

    na imprensa brasileira de fins do sculo XIX e incio do XX, seriam a falta de uma

    definio rgida das funes do crtico e a inexistncia de uma diferenciao entre as

    funes do autor, do crtico e do cronista.

    Explica-nos a pesquisadora (SSSEKIND, 1993, p. 71) as caractersticas

    dessa crtica: o decoro, tanto da parte dos autores, quanto dos atores e da platia; a

    delimitao de tipos e especialidades entre atores e papis; a idia de talento; a

    separao e hierarquizao constantes entre os gneros e - um dos seus traos

    principais o uso de um tom cmplice com o leitor, de conversa particular.

    Ainda segundo F. Sssekind (1993, p. 80), Arthur Azevedo o exemplo

    perfeito e acabado de produtor-crtico-cronista da poca, uma vez que no raro

    encontrarmos, na sua produo literria, personagens que comentam criticamente

    outras produes dramticas contemporneas, bem como escritos crticos do autor,

    que julgam e buscam convencer o leitor, em tom de conversa ntima, da pertinncia

    do julgamento feito por ele de determinada obra, postura ou acontecimento.

    Verificamos, portanto, que, devido ao seu carter sobretudo intimista uma

    conveno da crtica da poca, segundo a pesquisadora (SSSEKIND, 1993, p. 58)

    , sujeito ao gosto particular do crtico e idia de certo e errado, a crtica do

    perodo em questo, bem como as suas conseqncias, merecem ser reavaliadas.

    Num trabalho de flego, em que analisa as idias teatrais brasileiras vigentes

    no sculo XIX, J. R. Faria (2001, p. 160-186), em A ascenso da revista de ano e o

    teatro para o grande pblico (parte dessa pesquisa), disserta sobre o sucesso

    obtido pela revista de ano, e procura descobrir os motivos que levaram nossos

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    dramaturgos, includo a A. Azevedo, a comporem obras cujo objetivo era o

    entretenimento da populao.

    Aqui o pesquisador compe rico e variado painel teatral, desde 1884, com a

    encenao de O Mandarim, de A. Azevedo e Moreira Sampaio, at 1900, no qual

    discorre sobre o gnero da revista, seus autores, a crtica corrente, as muitas

    companhias estrangeiras, que competiam, de forma injusta, devido superior

    dramaturgia e talento de seus atores, com a cena nacional. Disputavam inclusive

    teatros. Divididos os palcos da poca, dividiam-se tambm os papis,

    Aos autores estrangeiros, principalmente franceses, caberia a tarefa de nos fornecer a dramaturgia sria e as chamadas peas bem feitas [...] Aos brasileiros caberia continuar a tradio de umadramaturgia mais popular, menos literria, representada pelas formasdo teatro cmico e musicado. (FARIA, 2001, p. 186).

    Pouco mais adiante, o estudioso busca sintetizar a situao dos palcos

    brasileiros (de 1884 at 1900)

    A dramaturgia sria, de qualidade literria, s fazia sucesso no Rio de Janeiro com as companhias dramticas estrangeiras. Quando estas partiam, o repertrio voltava a ser o que era sempre, ou seja,revistas de ano, operetas, e outras formas teatrais populares de grande prestgio junto ao pblico, como o imbatvel dramalho, o drama fantstico, e a mgica aparatosa, com os seusimpressionantes truques cnicos. Os autores dramticos brasileiros, solicitados pelo mercado, limitaram o seu horizonte esttico e no acompanharam ou ento recusaram as transformaes em curso no teatro europeu, em vias de se modernizar. (FARIA, 2001, p. 186).

    No obstante sria e rigorosa, parece-nos que a avaliao feita pelo referido

    pesquisador deixa-se influenciar pela crtica elitista daquela poca, uma vez que

    endossa a j apontada falta de literatura em nosso teatro do perodo, lamenta a

    profuso do teatro voltado para o aparato, portanto mais vistoso e apelativo e

    nossa falta de adoo das inovaes dramticas, trazidas pelas muitas companhias

    estrangeiras que, naquela poca, tinham temporada cativa entre ns.

    Retomando o exposto inicialmente a respeito da predominncia do teatro de

    cunho popular na poca, compreendemos que esse teatro, para a crtica do perodo,

    se distanciava da viso corrente de alta literatura, primeiro porque aquele era

    entendido apenas como expresso desta e no como arte em si; segundo porque,

    sendo expresso da literatura, o teatro necessariamente precisaria veicular o que A.

    Candido (1987, p. 146) chama ideologia ilustrada, que, diante do analfabetismo e da

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    debilidade cultural da populao, assume a responsabilidade de instruir o homem, a

    fim de que este se humanize e progrida.

    Essa responsabilidade, de acordo com A. Candido (1987, p. 147-148), fez

    com que os intelectuais construssem uma viso deformada sobre seu papel, uma

    vez que tomariam para si a transformao da sociedade. Como se colocavam

    acima da incultura e do atraso, aceitavam e at buscavam a dependncia cultural

    de modelos europeus; no que essa dependncia fosse estranha nossa condio

    de colonizados, mas, devido ao subdesenvolvimento e penria cultural nacionais,

    ela resultaria, muitas vezes, num aristocratismo intelectual, responsvel pelo

    contraste existente entre a produo destinada a um pblico ideal (lembremos, por

    exemplo, o uso de lngua estrangeira em algumas obras) e o pblico verdadeiro. Por

    outro lado, quando se procurava, efetivamente, tratar temas nacionais, produzir

    obras que atendessem aos anseios do nosso povo, a intelectualidade, movida pelo

    desejo da transformao social, rejeitava fortemente essa produo.

    Conclumos disso que a crtica praticada naquela poca, exatamente por

    estar submetida quela ideologia ilustrada e ser feita por intelectuais que adotavam

    os modelos europeus, considerados superiores, expressa-se negativamente contra

    aquilo que considerava desvirtuante, imprprio e sem utilidade (no serviria para

    ilustrar, apenas entreter): o teatro popular.

    Felizmente o distanciamento permite critica de hoje estudar a sociedade

    daquele final de sculo XIX e incio do XX, bem como sua produo, de modo mais

    amplo e objetivo.

    2. 2 O autor e suas obras

    Nos escritos sobre Arthur Azevedo, o dramaturgo freqentemente apontado

    como o causador da derrocada do teatro nacional. Durante toda sua vida de

    escritor, foi numerosas vezes alvo de crtica por parte, entre outros, de Coelho Neto,

    Cardoso Mota, at mesmo de M. de Assis. Os jornais da poca trazem acalorados

    debates, e, em sua defesa, o teatrlogo sempre se mostrou sensato e coerente com

    seu pblico.

    Entre suas peas, muitas alcanaram grande sucesso, como, por exemplo, O

    Mandarim (1884) a qual, em parceria com Moreira Sampaio, apresenta, segundo N.

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    Veneziano (1991, p. 27-28), um texto inteligente, bem estruturado e bem-humorado.

    Inicia-se nas revistas brasileiras uma das convenes mais presentes, a caricatura

    pessoal. A partir da, esse dramaturgo iniciaria a trajetria mais brilhante de um

    revistgrafo no pas, com obras de inigualvel valor artstico-literrio. Tambm de

    acordo com a pesquisadora (VENEZIANO, 1991, p. 32), Arthur Azevedo o autor

    mais que paradigmtico do gnero teatro de revista pela ironia, verve satrica e

    habilidade com as letras.

    Convm recordar que sua produo abrange ainda publicaes em peridicos

    os mais variados possveis, pardias de textos teatrais famosos (La Fille de Madame

    Angot opereta francesa em A filha de Maria Angu), bem como tradues,

    principalmente de textos franceses. (SOUSA, 1960, p. 75)2.

    Sbato Magaldi ([197-?], p. 141-154) reserva uma seo, denominada Um

    grande animador, em sua obra, produo de Arthur Azevedo. Em sua anlise,

    devido s condies fsicas, financeiras, profissionais e, mesmo, intelectuais, esse

    dramaturgo, apesar de ter escrito peas de valor (O Dote, O Mambembe, A Jia),

    no se mostrou um autor de imaginao. Para o pesquisador, outras qualidades

    assinalaram o seu talento e, portanto,

    Cabe valorizar, antes de mais nada, sua teatralidade. Teve ele o dom de falar diretamente platia, isento de delongas ou consideraes estticas. Juntando duas ou trs falas, pe de p, com economia e clareza, uma cena viva. Simples, fluente, natural, suas peasescorrem da primeira ltima linha, sem que o espectador se deixe tentar pelo bocejo. [...] No se poderia pr em dvida a objetividade cnica de qualquer obra de Artur [sic] Azevedo. (MAGALDI, [197-?],p. 146).

    Ainda fortemente imbudo das idias que relegam o teatro popular ao

    segundo plano, S. Magaldi, um dos nossos srios (e poucos) pesquisadores sobre o

    teatro nacional, apesar de atribuir obra do dramaturgo maranhense qualidades

    excepcionais, analisa-a como obra ligeira. O pesquisador detm-se naquelas mais

    conhecidas e mais encenadas: A Capital Federal, O Tribofe, O Mambembe. Por fim,

    ele chega a declarar A. Azevedo a maior figura da histria do teatro brasileiro, no

    como dramaturgo, mas como

    2 Por serem muitas e no estarem diretamente ligadas ao contedo principal deste trabalho, seguem anexas as datas e os ttulos das obras de Arthur Azevedo.

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    [...] a personalidade que melhor encarna nossos vcios e nossas virtudes, o talento nacional tpico, aquele que acompanha a corrente e ao mesmo tempo a fixa nas suas marcas privilegiadas (MAGALDI, [197-?], p. 154).

    S. Magaldi ([197-?], p.154) encerra sua avaliao declarando que aceitar ou

    no A. Azevedo significa gostar ou no do teatro nacional, pois aquele faz parte

    entranhada da vida teatral brasileira.

    Edwaldo Cafezeiro e Carmem Gadelha (1996, p.237), citando Flvio Aguiar,

    enumeram como autores brasileiros que com muito afinco se dedicaram ao teatro

    brasileiro: Martins Pena, Frana Jnior, Qorpo-Santo e Arthur Azevedo.

    Diferentemente dos demais pesquisadores apontados, eles (CAFEZEIRO, E.;

    GADELHA, C.,1996, p. 297) compreendem a obra de A. Azevedo como fruto de uma

    equipe de dramaturgos, formada por dez escritores. Aps essa afirmao dos

    estudiosos, segue-se extensa anlise das parcerias e obras, do momento scio-

    histrico e do contedo de tais escritos. Chegam os pesquisadores concluso de

    que a dramaturgia (toda ela) de Arthur Azevedo mereceria ser julgada de maneira

    mais favorvel do que j o fora.

    Dcio de A. Prado (1999, p. 145) assim se refere ao dramaturgo maranhense:

    entre 1873, quando chega ao Rio, com 18 anos, vindo do Maranho, e 1908, ano

    em que morre, ele foi o eixo em torno do qual girou o teatro brasileiro. Para o

    pesquisador (1999, p.147), as maiores qualidades do autor de Uma Vspera de Reis

    (1875) estavam na escrita teatral, feita para o palco, no para a folha impressa. A

    partir da, na obra consultada (1999), ele faz a anlise de A Capital Federal (1897),

    definida por A. Azevedo como comdia-opereta de costumes brasileiros e de O

    Mambembe (1904), classificada como opereta.

    O pesquisador (PRADO, 1999, p.165) conclui que, apesar de ter alcanado

    uma comdia de costumes de valor, o prprio Arthur Azevedo no a reconheceu

    como digna de mrito, pois, imbudo do forte preconceito da poca, tambm

    considerava o teatro musicado um gnero inferior.

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    2.3 O objeto da pesquisa

    Quanto ao nosso objeto de estudo os minidramas de A. Azevedo intitulados

    Teatro a Vapor (1906-1908), so parcos os comentrios e mesmo pesquisas que os

    abordem.

    Encontramos uma introduo crtica, feita pelo brasilianista Gerald Moser, que

    foi responsvel, em 1977, por organiz-lo, fazer-lhe uma apresentao crtica e levar

    publicao esses ltimos escritos dramticos de A. Azevedo. graas ao seu

    empenho de coletar material to precioso, procurar dividi-lo por temas, discorrer

    sobre os mesmos e resgatar o sentido de certas expresses e contextualizar alguns

    fatos, que temos acesso aos minidramas.

    Mais recentemente, Antonio Martins (1988, p. 48-52), grande estudioso da

    obra do autor dO Tribofe (1891), reserva algumas pginas para discorrer sobre os

    aspectos que diferenciam/aproximam tais minidramas das demais produes do

    comedigrafo maranhense. Em tais pginas, o pesquisador associa as revistas de

    ano, os entreatos e os sainetes (minidramas) ao vaudeville graas ao carter ldico,

    curta extenso, ao fato de o papel dos acontecimentos preterir a explorao de

    caracteres e o aprofundamento das paixes, observveis nesses gneros. Em suas

    palavras (MARTINS, 1988, p. 48): Os curtos episdios que enformam essas trs

    espcies dramticas [revista de ano, entreato e minidrama] so curtos spots da Belle

    poque nesta Cidade Maravilhosa que se vai transformando e crescendo.

    A anlise que se pretende de tais minidramas, dadas as restries de tempo

    para a pesquisa e a natureza do trabalho acadmico (dissertao), est, com

    certeza, longe de esgotar todas as possibilidades de estudo e abordagem desses.

    Na prxima seo deste texto acadmico, contextualizaremos a vida do autor,

    bem como o panorama da capital federal, o Rio de Janeiro, a fim de entendermos

    melhor a significao e o valor dos minidramas abordados.

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    3 ARTHUR AZEVEDO E A CAPITAL FEDERAL

    Aroma do Tempo o ttulo de uma comdia musical encenada

    recentemente (09 maro at 11 de junho de 2006), em So Paulo, no Teatro dos

    Arcos Bela Vista, cujo argumento central a vida de Arthur Azevedo. Tal comdia

    aborda desde a chegada do dramaturgo ao Rio de Janeiro, em 1873, seu

    devotamento literatura, sobretudo ao teatro, as lutas pela Abolio e pela

    Repblica, as amizades com Olavo Bilac (1865-1918), Jos do Patrocnio (1853-

    1905), Raul Pompia (1863-1895) e com o irmo Alusio Azevedo (1857-1913), o

    esforo contnuo para que o povo fosse ao teatro, at sua morte precoce em 1908.

    O pblico pode apreciar ainda nessa pea a insero de trechos de obras criadas

    pelo dramaturgo, como Amor por Anexins 3 (1870), A filha de Maria Angu (1876), O

    Escravocrata4 (1884) e A Capital Federal (1897).

    Por esse exemplo, notamos que, apesar de transcorrido mais de um sculo

    da publicao de grande parte da sua obra, A. Azevedo permanece vivo e atuante.

    Quanto aos minidramas, temos conhecimento 5 de encenaes recentes desses

    textos teatrais, seja por meio de montagens escolares, seja por representaes de

    grupos amadores e profissionais. Com a finalidade de conhecermos um pouco mais

    sobre o antigo ocupante da cadeira nmero 29 (patrocinada por Martins Pena) da

    Academia Brasileira de Letras, passemos adiante.

    3.1 A vida do autor

    A 7 de julho de 1855, em So Lus do Maranho, nasce Arthur Nabantino

    Gonalves de Azevedo, filho do cnsul portugus no Maranho, Davi Gonalves de

    Azevedo, e de Emlia Branco. Consta em algumas biografias que, at os treze anos

    de idade, faz os seus estudos primrios e alguns secundrios em escolas pblicas e

    liceus oficiais de sua cidade natal. Abandona-os, porm, para se dedicar ao

    3 Segundo J. G. de Sousa (1960), esta a primeira pea de A. A. exibida em teatro pblico.4 Drama escrito originalmente, em 1882, sob o nome de A Famlia Salazar, mas proibido de ser levado cena pelo Conservatrio Dramtico (SOUSA, 1960).5 Seguem anexos os informes sobre tais encenaes.

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    comrcio, exercendo a funo de caixeiro de uma casa comercial. Desde cedo

    demonstra inclinao para as letras com seu primeiro livro de poesias Carapuas.

    Tambm por essa poca dirige a revista O Domingo. Exerce, de 1870 a 1873, uma

    funo burocrtica na Secretaria do Governo de So Lus.

    Decide viver e fazer carreira na cidade do Rio de Janeiro, para a qual parte

    com dezoito anos de idade, em 1873. Suas primeiras ocupaes so como mestre-

    escola, no Colgio Pinheiro, e como revisor do jornal A Reforma. Em 1875

    nomeado adido no Ministrio da Viao, local em que tambm trabalha Machado de

    Assis. Ambos travam conhecimento, e essa amizade inspira de modo profundo o

    maranhense. Casa-se, mas logo depois se separa. Torna a se casar com uma

    senhora viva com a qual tem quatro filhos. Em 1882, viaja para a Europa e, em

    1908, fica encarregado de dirigir a companhia dramtica que representar peas de

    destaque no panorama brasileiro, na Exposio Nacional. Ainda nesse ano assume,

    aps a morte de Machado de Assis, a Diretoria Geral de Contabilidade, no Ministrio

    da Viao. Contudo desfruta pouco tempo o cargo, pois falece em outubro de 1908.

    Colabora, desde a chegada ao Rio, em numerosos peridicos, e chega

    inclusive a fundar alguns. Tambm profcua sua produo literria, mormente a

    teatral. Um de seus sonhos a construo do Teatro Municipal e, embora muito se

    tenha batido por ele, no chega a ver pronto tal teatro.

    A respeito de seu precoce interesse pelo teatro, lemos, nas notas

    autobiogrficas publicadas no Almanaque do Teatro, que sua leitura predileta, j aos

    oito anos, eram dramas e comdias retirados da biblioteca paterna, a qual, segundo

    A. Azevedo, possua bons livros. O fato de haver a muitas obras em francs

    instigou-o a aprender tal idioma, no qual veio a tornar-se tanto leitor como tradutor

    proficiente (AZEVEDO, 1973, p. 9).

    Mais tarde, em vrias ocasies (cf. seus artigos de crtica de arte de Quarenta

    Anos de Teatro), demonstrou de maneira explcita a admirao pelas teorias do

    crtico francs Francisque Sarcey sobre as convenes teatrais este adotava a lei

    das trs unidades: ao, personagens e espao, apesar de o Romantismo francs

    t-la ultrapassado. A. Azevedo no se nega a declarar como seu modelo a comdia

    francesa e, segundo A. Martins (1988, p. 43), mais de trinta obras teatrais nesse

    idioma foram traduzidas, acomodadas, imitadas e parodiadas pelo escritor

    maranhense. Em jornal da poca pode-se facilmente comprovar a admirao do

    nosso dramaturgo pelo crtico francs:

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    Os dramaturgos modernos, que tm a pouco e pouco tomadoposio no teatro francs Brieux, Lematre, Porto-Riche, Hervieu, Lavedan, Curel, Ancey, e outros so fiis tradio da dramaturgia do seu pas, e tm todos embora com ares desdenhosos, seguido a orientao de Sarcey, sem a qual, repito, no h teatro possvel. [...] Para mim, Sarcey ser sempre o mais profundo, o mais sensato, o mais sincero dos crticos teatrais de todos os tempos e oevangelizador do teatro no sculo XX. (AZEVEDO, 1899, p. 2 apud FARIA, 2001, p. 644).

    O excerto acima faz parte de uma srie de artigos de A. Azevedo sobre a

    dramaturgia preconizada por Sarcey e aquela observada em Ibsen, autor noruegus,

    cujas peas, como Casa de Bonecas, recebiam, na poca, grande elogio do pblico

    e da crtica (nesse caso particular, de Lus de Castro) pelo carter inovador.

    bastante ilustrativo do que, para Arthur Azevedo, era fazer teatro e de como faz-lo.

    Esses artigos, coletados por J. R. Faria (2001, p. 643-656), permitem-nos

    acompanhar o debate entre as idias do escritor maranhense e as de Lus Castro,

    que se estendeu de maio at meados de junho de 1899.

    Sobre as convenes pregadas pelo crtico Sarcey, em Os sentimentos de

    Conveno (famoso artigo publicado em 1865), A. Martins (1988, p. 43) destaca a

    verdade dramtica, como a quarta parede e os apartes; certos caracteres sados da

    tragdia como o confidente e da comdia antiga o criado -; e ainda certos

    sentimentos: a voz do sangue e o do herosmo trgico.

    Seguidor da conveno clssica teatral, inspirado sobretudo pelos

    dramaturgos franceses, entre eles Molire6, A. Azevedo no se eximir, no entanto,

    de transform-la e adapt-la aos gostos e costumes cariocas da poca, pois o nosso

    dramaturgo, homem do seu tempo que era, viveu, acompanhou pelos jornais todas

    as transformaes ocorridas na capital e, orientado pela observao, pela

    sensibilidade e pela intuio, [...] retratou, com mais riqueza de pormenores e mais

    variaes que seus antecessores, as linguagens [e costumes] que se ouviram [e se

    praticaram] por trinta e oito anos nesta cidade-capital (MARTINS,1988, p.146, grifo

    nosso).

    Por acreditarmos que essa observao da sociedade feita pelo comedigrafo,

    mediante sua sensibilidade e intuio, busca voltar o olhar do leitor/espectador para

    fatos que lhe so desconhecidos, ou que esto encobertos pelo manto da mentira e

    da hipocrisia, de acordo com Wlfel (apud SOETHE, 1986, p. 13), entendemos a

    6 Influncia declarada pelo prprio autor numerosas vezes, em seus artigos de jornal.

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    importncia primeira do olhar do dramaturgo, cujo papel no o de mero cronista,

    mas principalmente o de observador satrico, crtico, dos costumes de seu tempo.

    So numerosos os trabalhos que abordam a vida, o pensamento, as obras e a

    importncia de A. Azevedo enquanto autor de variada gama de literatura. Porm no

    nosso objetivo neste trabalho estendermo-nos mais nesse ponto e, por isso,

    seguimos com um amplo painel da capital federal do incio do sculo XX.

    3.2 A vida da cidade

    Em 1895, A. Azevedo publica num jornal um conto cuja histria sobre uma

    personagem - o velho Lima (funcionrio pblico de uma repartio do Ministrio do

    Interior, no Rio de Janeiro) que, devido a uma sria enfermidade, permanece

    acamado por oito dias. Situao bastante comum, no fosse a doena ter-lhe

    afastado justamente no dia 14 de novembro de 1889, e ele, como a maioria da

    populao, no ter o costume de ler jornal. Ao se restabelecer, parte para o trabalho

    ignorando completamente que o Brasil j era uma Repblica. Surpreende-se logo na

    viagem de trem, ao ser cumprimentado por um comendador como cidado e

    presenciar blasfmias e indignao contra o Imprio. Resolve ser sensato e calar-se

    diante do que lhe parecia insanidade total. Na repartio impressiona -se ainda mais

    fortemente quando, ao dar pela falta do retrato oficial de D. Pedro II e perguntar a

    um funcionrio sobre o paradeiro da litografia, ouve como resposta: Ora, cidado,

    que fazia ali a figura do Pedro Banana?. Depois de tudo que ouvira e vira, o velho

    Lima chega concluso: No dou trs anos para que isto seja Repblica!

    Adotamos, inspirados no exemplo de E. T. Saliba (2002, p. 75), que a utiliza a

    modo de ilustrao, a histria engenhada por A. Azevedo, porque elucida o modo

    como boa parte da populao citadina carioca via o novo regime poltico: de forma

    distante, fragmentada e confusa, embora estivesse no centro dos acontecimentos.

    Nas palavras do historiador B. Fausto (2003, p. 245): a passagem do Imprio para

    a Repblica foi quase um passeio. Isso se deve principalmente ao fato de no terem

    ocorrido grandes manifestaes, nem conflitos de interesse marcantes, pois, desde

    1887, a paulatina transformao econmica, a nova lei eleitoral (que deixa de ser

    baseada na renda), o fortalecimento da camada mdia, o desenvolvimento industrial

    e tecnolgico (entre outros), somados ao gradual afastamento do imperador do

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    governo, ao descontentamento do Exrcito, Abolio, preveno contra a

    princesa Isabel e seu marido, febre da bolsa, ao positivismo, so fatores que

    encaminharam o pas para o novo regime, de modo quase imperceptvel.

    A fase seguinte (1889-1892), do primeiro governo provisrio, marcada pelo

    aumento cambial, derivado da mudana no sistema de trabalho, chamado

    Encilhamento. No entanto, segundo N. W. Sodr (1979, p. 300), as acomodaes do

    sistema interno, com a finalidade de adaptar-se s estruturas capitalistas externas,

    levaram considervel reduo no padro de vida sobretudo das camadas mdia e

    baixa, pois praticamente tudo o que consumiam, de vesturio a alimentos, era

    importado. Tal importao implicava alteraes de taxas cambiais, as quais, por

    operarem o mecanismo da concentrao de renda, beneficiavam apenas os

    exportadores. Essa condio fomentou a primeira crise desse novo regime e, em

    conjunto com uma srie de fatores, levou Deodoro a abdicar.

    Com o novo lder republicano (Floriano Peixoto), embora brevemente, a

    camada mdia passou a ser representada. A seguir, a elite mobilizou-se, pois,

    derrocada a monarquia, reformado o aparelho de Estado obsoleto, introduzidas as

    alteraes que interessavam classe dominante, no havia mais que aceitar a

    aliana, que comeava a tornar-se incmoda (SODR, 1979, p. 302). Interessava

    camada alta, ento, livrar-se de Floriano (e da dominao militar) para reassumir o

    poder.

    A Revoluo Federalista (da qual tomaram parte positivistas do Rio Grande

    do Sul e, mais tarde, os do Paran e Santa Catarina) e a Revolta da Armada

    (ocorrida na mesma poca) exemplificam os confrontos entre os dois poderes.

    Prudente de Morais (1895-1898), Campos Sales (1898-1902) e Rodrigues

    Alves (1902-1906) foram presidentes que atendiam aos interesses da elite vigente

    na poca, sinalizando a famosa poltica do caf com leite. Coube ao primeiro, com

    o incio do declnio do caf (1896), estabelecer a poltica de associao ao capital

    estrangeiro (ingls, principalmente). A fim de sanear problemas estaduais, Campos

    Sales delega totais poderes aos governadores de estado, pois, dessa forma,

    garantiria a confiana dos estrangeiros e seus emprstimos.

    Percebemos que, por tal endividamento, tiveram incio as grandes obras

    porturias, ferrovias, empresas eltricas, servios pblicos etc (SODR, 1979,

    p.306).

    Com relao capital federal, de acordo com Nicolau Sevcenko (1999, p. 27),

    esta iniciou o sculo XX de maneira promissora, pois, como centro poltico,

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    intermediava o dinheiro da economia cafeeira, e, portanto a sociedade carioca se

    abastava com recursos derivados do comrcio, das finanas e das indstrias.

    Contribuiu para isso o fato de a cidade, no perodo, ser ncleo da maior rede

    ferroviria nacional (a qual a ligava aos estados de So Paulo, os do Sul, Esprito

    Santo, Minas e Mato Grosso e com o Vale do Paraba) e, por meio do comrcio de

    cabotagem para o Nordeste e o Norte (at Manaus), ampliar seu alcance.

    O pesquisador (SEVCENKO, 1999, p. 27) cientifica-nos ainda de que, no Rio

    de Janeiro, concentravam-se a sede do Banco do Brasil, a da maior Bolsa de

    Valores e a da maior parte das casas bancrias nacionais e estrangeiras. Nesse

    incio de sculo, a capital federal tornou-se o maior centro populacional do pas,

    oferecendo s industrias que ali se instalaram em maior nmero nesse momento o

    mais amplo mercado nacional de consumo e de mo-de-obra. 7

    Jos M. de Carvalho (1987), por sua vez, mostra-nos a cidade do Rio de

    Janeiro do incio da Repblica como um lugar onde o peso das tradies tanto

    escravistas quanto coloniais dificultava sobremaneira o desenvolvimento de uma

    democracia moderna, isto , no havia como se desenvolverem as liberdades civis.

    Ao mesmo tempo, essas tradies contaminavam as relaes entre os habitantes da

    cidade e o governo.

    J tratamos da cidade do Rio de Janeiro, principalmente daquela do comeo

    da Repblica, mas quem eram seus habitantes? O que faziam? Assim nos so

    apresentados por J. M. de Carvalho (1987, p.76, grifo nosso), sob o ponto de vista

    ocupacional:

    No alto [da pirmide] havia um pequeno grupo de banqueiros, capitalistas e proprietrios. Seguia-se um precrio setor mdio, composto basicamente de funcionrios pblicos, comercirios e profissionais liberais. De tamanho semelhante ao anterior era o setor do operariado, que incluaprincipalmente artistas, operrios do Estado, e trabalhadores das novas indstrias txteis, alm de empregados em transportes. Finalmente, vinha o que dava ao Rio marca especial em relao a outras cidades da poca: o enorme contingente de trabalhadores domsticos, de jornaleiros, depessoas sem profisso conhecida ou de profisses mal definidas. Este lumpen representava em torno de 50% da populao economicamente ativa, com pouca variao entre 1890 e 1906.

    Mais adiante, o autor (CARVALHO, 1987, p. 77) complementa o painel do

    proletariado assinalando os portugueses, cuja imigrao, no perodo referido,

    7 Os nmeros da populao do Rio, no perodo de 1890 a 1900, passaram de 522 651 para 691 565 habitantes; j de 1900 a 1920, esse total chegou a 1 157 873. (SEVCENKO, 1999, p.52).

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    grande, e os interioranos, vindos de todas as partes do pas, como indivduos que,

    ou se encaixavam na parte mais baixa daquela pirmide, ou viravam desocupados

    ou marginais.

    A rapidez com que se processam as transformaes e o anseio da elite de se

    alinhar com os padres europeus evidenciam a urgncia em deixar para trs a

    imagem de cidade insalubre e insegura, cuja boa parte da populao era constituda

    de gente pobre e mestia.

    O total remodelamento, ou regenerao, da cidade vem ao encontro das

    necessidades do novo grupo social hegemnico, cujos olhos estavam voltados para

    a Europa, principalmente para a Frana. A inaugurao da Avenida Central e a

    promulgao da lei sobre a vacina obrigatria, ambas ocorridas em 1904, constituem

    o marco inicial da transfigurao da cidade carioca.

    Foto 1 - Um dos ancoradouros da cidade do Rio de Janeiro final do sculo XIX. Fonte: ALMA carioca

    Segundo Nicolau Sevcenko (1999, p. 30), quatro princpios fundamentais

    regeram as transformaes na capital federal da poca: a condenao dos hbitos e

    costumes ligados pela memria sociedade tradicional; a negao de todo e

    qualquer elemento de cultura popular que pudesse comprometer a imagem civilizada

    da sociedade dominante; uma poltica rigorosa de expulso dos grupos populares da

    rea central da cidade e um cosmopolitismo agressivo.

    Resumidamente, J. M. de Carvalho (1987, p.162) assim avalia a capital

    federal:

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    Era uma cidade de comerciantes, de burocratas, e de vastoproletariado, socialmente hierarquizada, pouco tocada seja pelos aspectos libertrios do liberalismo, seja pela disciplina do trabalho industrial. Uma cidade em que desmoronava a ordem antiga sem que se implantasse a nova ordem burguesa, o que equivale a outra maneira de afirmar a inexistncia das condies para a cidadania poltica.

    O contraste social e o descaso da elite com os menos favorecidos promovem,

    nessa sociedade, revoltas, apatia e o acirramento das desigualdades em todos os

    nveis.

    Para exemplificar a postura da populao diante dessas constantes

    transformaes, que a afetavam diretamente, vejamos a manifestao conhecida

    como a Revolta da Vacina (1904). O pesquisador Marco Pamplona (2002, p. 65-87),

    investigando-lhe as causas, chegou concluso de que o decreto de sua

    obrigatoriedade foi o estopim revelador de uma populao extremamente

    descontente, proibida, pelo reviver do Cdigo de Posturas, de se expressar

    livremente. Para ele, as violentas manifestaes pblicas, ocorridas na poca, foram

    em certo grau tambm manipuladas por polticos que se opunham ao governo e

    pretendiam um golpe de Estado. Mesmo assim, segundo o citado autor, essas

    manifestaes populares teriam conseguido falar em causa prpria, uma vez que,

    ao reagirem represso governamental, buscaram dar um basta interveno em

    sua vida e invaso autoritria de seus lares e corpos, organizadas por um governo

    com o qual em nada se identificavam.

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    Foto 2 - Central do Brasil final do sculo XIX. Fonte: Almacarioca.com.br

    Percebemos que o desejo das nossas elites de branquear e europeizar essa

    populao negra e mestia em sua maioria, no Rio, no perodo estudado, provocou

    grandes revoltas, injustias, e isso se refletiu nos jornais da poca (PAMPLONA,

    2002, p. 85-87), nos quais, ora a populao era descrita como vadia, desordeira,

    incivilizada, ora como trabalhadora, ordeira e sem interesses polticos.

    Nos meio literrios, a profuso dos jornais e, em seguida, a criao de vrias

    revistas ilustradas permitem aos escritores e cartunistas expressarem-se naquela

    forma que mais se adaptava aos contrastes, s agruras, incertezas,

    descontentamentos vivenciados ento, ou seja, a forma humorstica.

    O pesquisador E. T. Saliba (2002, p. 76), em determinada parte de seu estudo

    sobre as razes do riso, seleciona dezesseis humoristas (A. Azevedo inclusive), entre

    os mais expressivos da ento capital federal, e nota-lhes caractersticas comuns

    como a atividade precoce no jornalismo, o emprego no servio pblico modesto, a

    produo de outras formas de expresso que no a literatura etc. Em seguida

    (SALIBA, 2002, p. 77, grifo nosso), define, desse modo, o humorista tpico do

    perodo assinalado

    [...] como se pode notar pela trajetria de muitos deles, [o humorista] condensou em si mesmo as figuras do caricaturista e do cronista da imprensa ligeira, do publicitrio, do revistgrafo e, em alguns casos, do msico e do ator. O humorista foi, assim, uma figura mltipla, com alta capacidade de trnsito entre diferentes prticas culturais, e a trajetria de alguns exemplo desta multiplicidade.

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    Essa figura mltipla, com alta capacidade de trnsito descrita pelo ensasta,

    -nos muito importante, pois ela ser responsvel, com sua produo literria

    vinculada ao humor, stira, ao cmico, pelo delineamento das particularidades no

    apenas da populao carioca de ento, mas tambm do povo brasileiro de modo

    geral.

    Dentre a produo cmica, sobretudo a do teatro, as mais populares foram as

    revistas de ano e as comdias de costumes, segundo C. Braga (2003, p. 55). A

    pesquisadora (BRAGA, 2003, p. 55) aponta os escritores que se destacaram nas

    primeiras e nas ltimas, respectivamente: A. Azevedo, em ambas; Martins Pena,

    Alencar, Macedo, Frana Jnior (anteriores ao perodo enfocado), Coelho Neto,

    Gasto Tojeiro, Cludio de Souza, Abadie Faria Rosa, Oduvaldo Viana, Viriato

    Corra e Armando Gonzaga. Todos foram autores vistos e muito aplaudidos por

    seus contemporneos, os quais, em suas peas, viam retratadas as mazelas de seu

    tempo.

    O que de fato definiria a produo teatral, ou, mais especificamente, o texto

    teatral? Com esta dvida seguimos, na seo 3, e buscaremos algumas teorias para

    solucion-la.

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    4 TEATRO A VAPOR (1906-1908) TEXTOS DRAMTICOS?

    Mais que qualquer outra arte da sua situao perigosa e privilegiada ,o teatro, pela articulao texto-representao, e mais ainda pelaimportncia do investimento material e financeiro, expe-se como prticasocial, cuja relao com a produo nunca abolida, nem quando, por momentos, aparece esmaecido, e quando um trabalho mistificador o transforma, por convenincia da classe dominante, em simplesinstrumento de diverso. A. Ubersfeld

    Nem sempre so claros os caminhos que levam escolha de determinado

    tema ou objeto de pesquisa. Mas feita essa, em algum momento do trabalho,

    deparamos com a necessidade de justificar tal seleo. Caberia, ento, esclarecer

    que foi, quando cursvamos uma disciplina oferecida pelo curso de ps-graduao

    desta faculdade (Fclar-Unesp), na rea de concentrao em Estudos Literrios, em

    2003, como aluna em carter especial, a ocasio de nosso primeiro contato com os

    textos do escritor maranhense. A professora doutora Maria Celeste C. Dezotti,

    responsvel pela disciplina citada Tpicos especiais: formas do teatro na

    Antigidade clssica, possibilitou-nos travar conhecimento, dentre numerosos textos

    dramticos, com os minidramas de Teatro a Vapor e alertou-nos sobre a falta de

    estudos acadmicos que os contemplassem.

    Uma vez que o teatro, principalmente na sua manifestao cmica, sempre

    nos despertou interesse e, vislumbrada a possibilidade de unir a investigao sobre

    esse tema ao crescimento intelectual (pessoal, profissional etc), essa conjuno de

    fatores orientou-nos na direo da escolha desses ltimos escritos dramticos de

    Arthur Azevedo como objeto de pesquisa.

    4.1 A obra estudada

    Segundo Antonio Candido e J. Aderaldo Castelo (1988, p.284), as revistas e

    alguns jornais do fim do sculo XIX e incio do XX foram muito importantes como

    veculo da literatura. Elias T. Saliba (2002, p. 38) esclarece-nos que

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    A partir da ltima dcada do sculo XIX houve um significativoincremento da imprensa, trazido pelo aperfeioamento tecnolgico das oficinas grficas, que praticamente acompanha a intensificao do crescimento urbano do pas. Surge, afinal, o jornal mais moderno; segundo Olavo Bilac, aquele jornal leve e barato, verdadeiro espelho da alma popular, sntese e anlise das suas opinies, das suasaspiraes, das suas conquistas, do seu progresso.

    Conforme j dissemos antes, os minidramas de Teatro a Vapor foram

    primeiramente publicados no jornal O Sculo (recm-fundado por Brcio Filho), entre

    1906 e 1908. Coerente com sua produo teatral, o autor de O Mandarim (1884)

    mantm, ao longo de 104 minidramas, o dilogo fluente, calcado na linguagem

    familiar e popular, e a rpida movimentao. O ttulo tanto pode ser tomado como

    explicao para as cenas rpidas, episdicas, situadas na cidade do Rio de Janeiro

    do incio do sculo XX e s quais o leitor/espectador tem acesso, quanto para cenas

    que tomam carona num meio de transporte (o jornal), bem como os seus

    leitores/espectadores o fazem num vapor (embarcao ou trem, e ainda o bonde

    eltrico inovao presenciada pelo autor).

    Na definio de Reis e Lopes (1988, p.99), a importncia semionarrativa 8 do

    ttulo apreende-se sobretudo quando nele se esboam determinaes de gnero

    que [...] constituem orientaes de leitura. Teatro a Vapor, portanto, segundo tal

    definio, convocaria o leitor a adotar uma atitude psicolgica e esttica adequada

    ao gnero dramtico e s estratgias que normalmente o caracterizam. Isso

    demonstra que, mesmo sem o aparato do local prprio para a encenao concreta e

    desprovido de atores, diretor, msica e demais elementos componentes da

    teatralidade, cada texto veiculado pela seo Teatro a Vapor apelaria para a

    memria cultural e para o conhecimento das estruturas teatrais do leitor, a fim de

    realizar-se como texto dramtico.

    Encontramos ainda, nas didasclias externas de alguns minidramas,

    referncia explcita ao aparato teatral, neste caso, representado pela cortina. Essa

    informao corrobora a idia de que A. Azevedo escreve esses textos para serem

    representados. Vamos a dois exemplos. O primeiro deles, retirado de Um moo

    bonito (64, p.122-123, grifo nosso), indica-nos: Sala. Ao erguer o pano, a sala est

    vazia. Ouve-se cair l fora a chuva.

    8 Vemos aqui semionarrativa com o sentido de signo da narrativa, tendo em vista que o gnero dramtico, assim como o narrativo, dotado de ttulo, embora ambos sejam expresses estticas com caractersticas particulares.

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    Ou ainda, de F em Deus ou os estranguladores do Rio (22, p. 64-65): O

    teatro representa a mesma taverna em que termina a pea. Esta didasclia inicia a

    cena de um eplogo, criado pelo dramaturgo maranhense, a partir de um dramalho,

    segundo Moser (1977, p. 189), de Alberto F. Pimentel e Rafael Pinheiro, cujo nome

    Os estranguladores do Rio, baseado num crime famoso, ocorrido no Rio de Janeiro,

    na rua Carioca. Aqui a referncia ao local o teatro incontornvel.

    Acreditamos, dessa forma, que, porque nossos teatros estavam lotados ou

    pelas muitas companhias estrangeiras, que tinham permanncia assegurada por um

    pblico vido de influncias europias, ou pelas nacionais que, a essa altura,

    representavam principalmente peas de teor apelativo ou aparatoso, cujo objetivo

    maior era a bilheteria, escritores de talento reconhecido, tais qual Arthur Azevedo,

    deixaram de encontrar empresrios e, conseqentemente, salas teatrais disponveis.

    No faltavam ao nosso teatrlogo, contudo, meios para se comunicar com o seu

    pblico, por isso, a publicao de cenas dramticas num jornal.

    4.2 Definio da nomenclatura

    Ao investigarmos a natureza das peas de Teatro a Vapor, observamos que

    muitas poderiam ser as denominaes a elas pertinentes: mimo, sainete, esquete e

    minidrama.

    Comecemos, por ordem cronolgica, com mimo. Pavis (1999, p. 243-245)

    define o mimo (do grego mimos, imitao) pelas oposies, primeiro entre esse e o

    rapsodo, segundo entre mimo e pantomima. O mimo conta uma histria por gestos,

    estando a fala completamente ausente ou s servindo para a apresentao e os

    encadeamentos dos nmeros (PAVIS, 1999, p. 243). Esse o sentido moderno de

    mimo. Mas podemos trazer baila um sentido anterior de mimo, como rtulo de um

    gnero dramtico grego, de curta extenso e de natureza popular. Segundo M. C. C.

    Dezotti (1993, p.37), o mimo uma das formas dramticas de origem drica, sculo

    V a.C., que influenciaram a estruturao da comdia antiga, e, apesar de no ser

    patrocinado pelo governo, obteve grande prestgio entre os antigos, inclusive entre

    as classes mais cultas. As representaes de tal forma dramtica eram bastante

    marcadas pela improvisao, mesmo quando baseadas em textos escritos.

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    A pesquisadora (DEZOTTI, 1993, p. 38, grifo do autor) nos informa tambm

    que

    O siracusano Sofro e seu filho Xenarco so os mais antigosescritores de mimos. Viveram no sculo V A.C. e foram osresponsveis pelo estatuto literrio que o mimo alcanou, deprtica improvisada que era. O mimo ganha novo flego no perodo helenstico (sc. III I A.C.), cuja esttica literria passa a valorizar a literatura regional e popular, as temticas do cotidiano e osgneros literrios estruturados em textos de pequena extensopara maior burilamento da forma. Assim, esses minidramas, como se pode definir o mimo, continuam sua trajetria nas mos deescritores como Tecrito, cujos idlios podem ser vistos comomimos buclicos, e Herondas, que se dedicou aos mimos detemtica urbana, explorando aspectos grotescos docomportamento humano.

    Confrontando as definies, percebemos que a primeira se detm no sentido

    mais recente do fenmeno, enquanto a segunda, mais abrangente e profunda,

    aborda a essncia dramtica desse fenmeno. Convm-nos destacar, dessa

    definio da pesquisadora, o carter de crnica desse gnero dramtico - o mimo -

    com a explorao de temas cotidianos (campestres ou citadinos); a composio de

    textos breves, que deixam espaos para a improvisao e a stira ao

    comportamento humano, ou seja, aos costumes.

    No perodo da Idade Mdia, tal forma se mantm graas s trupes

    ambulantes. J no sculo XV, na Itlia, conhece um renascimento sob a forma da

    Commdia dell Arte (PAVIS, p. 243-244).

    Desse perodo em diante, certo que essa forma literria sobreviveu, mas,

    devido ao seu carter marginal comdia - e efmero stira aos costumes de

    determinados grupos, em suas respectivas pocas, existem lacunas investigativas

    que dificultam estabelecer a continuidade do mimo at recentemente.

    Contudo, embora nos faltem evidncias para lig-los ao mimo grego, os

    textos de Teatro a Vapor so, segundo D. Lobo (2000, p. 507), feitos para o palco,

    passveis de serem enriquecidos pela improvisao do ator e recheados de stira

    aos costumes da poca, focalizados na representao de cenas do dia-a-dia e,

    portanto, guardam muitas semelhanas com aquele.

    Sainete: segundo Pavis (1999, p. 349), na origem, uma pea curta cmica ou

    burlesca em um ato no teatro espanhol clssico; serve de intermdio (entremez) ao

    curso dos entreatos das grandes peas. Tem-se a que o sainete, a partir do final do

    sculo XVII, torna-se uma pea autnoma, com o objetivo de divertir e relaxar a

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    platia. Permanece em voga at o final do sculo XIX, e seus expoentes so:

    Quiones DE BENAVENTE (1589-1651) e Ramn DE LA CRUZ (1731-1795). No

    mesmo verbete, lemos que

    Apresentando com poucos recursos e grossos traos burlescos ecrticos um quadro animado e pego da realidade da sociedadepopular, o sainete obriga o dramaturgo a opor-se a seus efeitos, a acentuar os caracteres cmicos e a propor uma stira muitas vezes virulenta do seu crculo. (PAVIS, 1999, p. 349).

    Como j mencionamos, tal denominao aparece neste estudo, pois foi

    utilizada pelos pesquisadores G. Moser (1977) e A. Martins (1988) para designar os

    textos dramticos da obra estudada. Ainda de acordo com P. Pavis (1999, p. 349),

    apesar de arcaizante, o termo sainete usado para toda pea curta sem pretenso,

    interpretada por amadores ou artistas de teatro ligeiro (gag ou esquete).

    Esquete: na definio de Pavis (1999, p. 143), uma

    [...] cena curta que apresenta uma situao geralmente cmica,interpretada por um pequeno nmero de atores sem caracterizao aprofundada, ou de intriga aos saltos e insistindo nos momentosengraados ou subversivos. O esquete , sobretudo, o nmero de atores de teatro ligeiro que interpretam uma personagem ou uma cena com base em um texto humorstico e satrico no music hall, no cabar, na televiso ou no caf-concerto. Seu princpio motor a stira, s vezes literria (pardia de um texto conhecido ou de uma pessoa [sic] famosa); s vezes grotesca e burlesca (no cinema e na t.v.), da vida contempornea.

    O critrio usado aqui para essa definio o do espao em que ocorre a

    representao, ou seja, fora do teatro: cabar, caf-concerto, music hall, televiso.

    Minidrama (MOSER,1977, p. 13; DEZOTTI, 1993, p.38) por sua vez,

    constituir-se-ia numa tentativa de denominao, devido ao fato de serem de

    curtssima durao as cenas (dois quadros, no mximo). Essa seria, ao que nos

    parece, a forma mais escorreita de nomear os textos da obra analisada.

    Percebemos, assim, que as denominaes mimo (o antigo), sainete, esquete

    e minidrama denominam basicamente o mesmo objeto cujas caractersticas bsicas

    so: texto breve, destinado representao, passvel de ser enriquecida pela

    improvisao, marcado pela stira, que encontra em fatos e acontecimentos

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    cotidianos urbanos sua matria. As variadas definies se explicariam por serem

    diferentes os aspectos do objeto tomados como critrio definidor. Neste trabalho,

    utilizaremos minidrama, por acreditarmos que a forma menos carregada de

    significaes, e, por isso, nos permite uma abordagem dos textos de A. Azevedo

    sem o peso de tradies, sem tantas interferncias.

    4.3 Descrio da obra

    Tomemos agora, por emprstimo, a diviso cronolgica desses minidramas,

    feita pelo pesquisador A. Martins 9:

    Sainetes da srie Teatro a Vapor10

    1906 - Pan-americano, A verdade, O homem e o leo, A lista, "A casa de Suzana" (perdido), Um pequeno prodgio, Coabitar, Como h tantos!, Um desesperado, Um dos Carlettos,Depois do espetculo, Tu pra l - tu pra c, Um cancro, As opinies (cena de revista),Projetos, O mealheiro, Um grevista, Festas

    1907 - 1906 a 1907, Senhorita "F em Deus ou os Estranguladores do Rio" (eplogo), O caso do Dr. Urbino, Quero ser freira, A domiclio, Sonho de moa, A escolha de um espetculo, Assemblia dos bichos (cena fantstica), Sem dote (em seguimento comdia Dote), Confraternizao, O "raid" , Depois das eleies, Sulfitos, Poltica baiana, A cerveja, Higiene, A vinda de Dom Carlos, Um Lus, O caso das xifpagas, As "Plulas de Hrcules", Entre proprietrios, Um apaixonado, O meu embarao (monlogo), Dois espertos,Liquidao, "Monna Vanna", As reticncias, Modos de ver, Reforma Ortogrfica, Foi melhor assim!, O Vellasquez do Romualdo, O cometa, Economia de genro, Os credores, Osfsforos, Um ensaio, Opinio prudente, Objetos do Japo, De volta da conferncia,Cinematgrafos, Pobres animais, Cinco horas, Um bravo, Um moo bonito, Insubstituvel!, O jurado, Cadeiras ao mar!, Os quinhentos.

    1908 - Como se escreve a histria, Cena ntima, Que perseguio, Um homem que fala ingls, Quem pergunta quer saber, Modos de ver, Silncio!..., O novo mercado, A discusso, Uma mscara de esprito, Um ensejo, A Mi-carme, Padre-Mestre, Um susto, O poeta e a lua, Entre sombras, O conde, Pobres artistas!, Cena ntima, Sugesto, Por causa da Tina, Confuso, A ladroeira, Viva So Joo!, Uma explicao, Foi por engano, A famlia Neves, Socialismo de Venda, A vacina, O fogueteiro, Quebradeira (eplogo ao Quebranto, deCoelho Neto), Bahia e Sergipe, A mala, Lendo A Notcia, Trs pedidos (cena histrica), Bons tempos, A despedida.

    Mediante essa diviso, podemos visualizar os textos e o ano em que foram

    publicados. Os ttulos j nos fornecem a idia da variedade de assuntos abordados

    9 Tal diviso pode ser encontrada em meio eletrnico a ser discriminado nas referncias.10 Na edio organizada e publicada por G. Moser (1977), falta um minidrama, temos, portanto, cento e quatro cenas.

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    por Arthur Azevedo nessas cenas dramticas. Sempre ligados atualidade, tratam,

    por exemplo, de poltica, notcias de crimes, fraquezas humanas, cor local,

    relacionamentos familiares, teatro (at metateatro) e mais.

    Nesses minidramas, percebe-se que, apesar de mudarem esses assuntos

    conforme os interesses que prevalecem nas semanas sucessivas, as situaes

    tendem a refletir uniformemente os costumes da classe mdia, remediada ou

    modesta. Quase todos os cenrios ilustram a intimidade de uma famlia comum e,

    todos fazem parte, de forma explcita ou no, do Rio de Janeiro.

    Suas personagens (personagens-tipo como no poderiam deixar de ser na

    comdia de costumes) so lojistas, funcionrios pblicos, demais empregados com

    horas fixas de trabalho (representantes da classe mdia inferior); senhor doutor,

    comendador ou proprietrios (classe superior) e mucamas, cabras, garons

    donas de casa (pobre). Encontramos tambm caricaturas e alegorias.

    Leiamos esta definio:

    [...] consistia num resumo crtico dos acontecimentos [...]. s vistas do pblico, desfilavam os principais fatos [...] relativos ao dia-a-dia, moda, poltica, economia, ao transporte, aos grandes eventos, aos pequenos crimes, s desgraas, imprensa, ao teatro, cidade, ao pas. Era uma histria miniaturizada sob o painel anual, em linguagem popular, teatralizada. Equilibrava-se entre o registrofactual e a ficcionalizao cmica. (VENEZIANO, 1991, p. 88).

    No fossem os trechos, que propositalmente suprimimos, essa poderia

    perfeitamente ser a definio dos minidramas, tanta a semelhana que mantm

    com a outra produo do escritor a revista de ano. medida do possvel,

    tentaremos confirmar ou no essa suposio, mais adiante.

    4.4 As didasclias

    No se tem notcia da representao de tais textos poca de sua

    publicao. Uma vez que no foram levados ao palco, caberia cham-los de

    dramticos? Ou ainda, o que vem a ser um texto de teatro?

    Nas palavras de Anne Ubersfeld (2005, p.6), o texto

    [...] composto de duas partes distintas mas indissociveis: o dilogo eas didasclias (ou indicaes cnicas ou direo de cena). A relao textual dilogo-didasclias varivel de acordo com as pocas da histria do teatro. s vezes inexistentes ou quase (mas plenas de

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    significao quando existem), as didasclias podem ocupar umespao enorme no teatro contemporneo.

    Embora as indicaes cnicas em Teatro a Vapor no sejam abundantes, so

    vitais para a resposta s perguntas: quem fala, a quem fala, onde, por que, ou seja,

    O que as didasclias designam pertence ao contexto dacomunicao; determinam, pois, uma pragmtica, isto , ascondies concretas de uso da fala: constata-se como o texto das didasclias prepara o emprego de suas indicaes na representao (onde no figuram como falas). (UBERSFELD, 2005, p. 6).

    Temos, em A verdade (2, p.34-35), por exemplo:

    Gabinete de trabalho. O Juquinha chegou do colgio, entra para tomar a beno ao pai, o Dr. Furtado, que est sentado numapoltrona, a ler jornais (AZEVEDO, 1977, p. 34).

    A conversao se d entre pai e filho, isto , quem fala? O pai, doutor

    Furtado; a quem fala? Ao filho, Juquinha; onde? No gabinete de trabalho do pai; por

    qu? Porque Furtado, ao saber que seu filho anda mentindo na escola, procura

    repreend-lo. As didasclias indicam ainda quando: assim que o filho retorna do

    colgio. A camada social a que pertencem as personagens vem explcita no ttulo de

    doutor do pai, no gabinete de trabalho desse e em sua ocupao ler jornais,

    sentado numa poltrona, no momento da chegada do filho.

    Por mais breves, rpidas, que sejam, todas as cento e quatro cenas

    respondem s perguntas acima descritas, quer nas didasclias externas (marcadas

    pelos parnteses), quer nas internas (contidas nos prprios dilogos), ou seja,

    ambas as rubricas se complementam garantindo ao leitor/espectador a apreenso

    da cena, que certamente ser maior com a sua representao.

    Seria a personagem teatral, (como a encontrada nos textos de Teatro a

    Vapor), diferente daquela que se encontra nos textos em prosa? Com essa

    indagao prosseguiremos na outra seo deste trabalho.

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    5 PERSONAGEM, ESPAO E TEMPO NA OBRA ESTUDADA

    Antes de enfocarmos a personagem teatral propriamente, caberia enumerar

    os elementos que compem a teatralidade. De acordo com a diviso estabelecida

    por T. Kowzan (2003, p. 117), o espetculo divide-se em dois componentes

    principais: ator e aspectos exteriores a este. Decorrem, ento, as subdivises, nas

    quais a palavra, o tom, a mmica, o gesto, o movimento, a maquilagem, o penteado e

    o vesturio so elementos diretamente ligados ao ator; enquanto acessrio, cenrio,

    iluminao, msica e rudo pertencem ao universo exterior quele do ator.

    O espetculo, segundo T. Kowzan (2003, p. 98), serve-se tanto da palavra

    quanto de outros sistemas no-lingsticos de significao, ou seja, praticamente

    no existe sistema de significao que no possa ser a usado. Em nosso caso,

    embora os minidramas sejam destinados representao e, portanto, ao

    espetculo, nos limitaremos a alguns componentes essenciais, passveis de serem a

    analisados a partir do texto dramtico: a personagem, o espao e o tempo no teatro.

    Prticas modernas e teorias mais recentes discutem a atuao e a validade

    da personagem de teatro. Entre muitos exemplos, fiquemos com Seis personagens

    procura de um autor (1921) de L. Pirandello cuja representao est centrada

    basicamente na revelao da estrutura totalmente ficcional do teatro para o pblico,

    tocando num dos pontos principais da teoria clssica: a iluso dramtica e, ao

    mesmo tempo, confirmando a importncia vital da representao para a personagem

    teatral.

    Vejamos algumas definies para esse elemento bsico do texto teatral.

    5.1 Definio de personagem teatral

    De acordo com Dcio de Almeida Prado (1968, p.83), as semelhanas entre o

    romance e a pea de teatro so bvias: ambos, em suas formas habituais, narram

    uma histria, contam alguma coisa que supostamente aconteceu em algum lugar,

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    em algum tempo, a um certo nmero de pessoas. Vemos, contudo, que no romance,

    na crnica ou no conto, embora a personagem seja o elemento principal, um entre

    vrios outros; no teatro nada existe a no ser por meio dela.

    5.2 Os tipos

    A personagem-tipo recebe tal denominao uma vez que expe normalmente

    traos abrangentes, por meio dos quais o indivduo (espectador/leitor) se reconhea,

    ou seja, o universal que visa ao particular. , ento, o elemento primordial da

    comdia, pois, ao contrrio da tragdia cuja matria o individual, o particular,

    aquela opera com o coletivo, o geral. Portanto, com o nascimento da comdia, d-se

    tambm o dos tipos, que sofrero mudanas no tempo e no espao, a fim de

    servirem ao propsito de agradar e ao de retratar a sociedade na qual se inscrevem.

    Em se tratando do teatro brasileiro, Neyde Veneziano (1988, p 120-135)

    mostra-nos como e por que alguns tipos - o malandro, a mulata, o caipira e o

    portugus - se fixaram em nossas comdias, principalmente nas revistas de ano, de

    tal forma que chegaram a tornar-se convenes do gnero. Durante a descrio dos

    procedimentos cmicos encontrados nos minidramas, na sexta parte deste trabalho,

    teremos a oportunidade de verificar, de modo mais detalhado, o emprego ou no

    desses caracteres.

    Segundo Sylvia H. T. de A. Leite (1996, p. 34),

    O tipo tem feio mais genrica e amena, diluindo com isso as restries que eventualmente expresse; toma como matriacomportamentos, hbitos e valores que so gerais (uma profisso, um segmento social), [...]; o tipo tende ao coletivo [...].

    Nos textos estudados a personagem-tipo apresenta-se, freqentemente,

    pelos papis sociais na vida privada pai, filho, me, filha, marido, esposa, amante,

    amigo, vizinho, sogra, genro etc; ou na vida pblica vendeiro, funcionrio pblico,

    escritor, carregador da alfndega, mdico, chacareiro, comendador, poltico,

    delegado etc.

    Eis um exemplo:

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    No primeiro desses minidramas (111, p. 33-34) Pan-americano, temos o

    vendeiro (Manoel) e Chico Facada. Este ltimo, depois de beber duas doses de

    parati, afirma que, apesar de ser viajado (j fora at o Acre), era ignorante e gostaria

    de saber do interlocutor (visto que este se dava ares de sabedoria) o que vinha a

    ser pan-americano. Manoel responde que, como bom conhecedor do que era nosso,

    saberia dizer at o que era americano, mas pan no. Chico ento lhe pergunta sobre

    um livro que ensina tudo e que o vendeiro havia adquirido para papel de embrulho.

    O dono da venda o vai buscar e exalta as qualidades daquele livro. Como o volume

    que ele possua era o que continha a letra p, faz-se a consulta e se descobre que

    Pan era uma divindade grega, filho de Jpiter e Calisto. Chico interrompe, primeiro

    porque quer saber se grega ou americana a divindade, depois, se Pan teria dois

    pais. Manoel supe ser Jpiter nome de mulher e segue a leitura dizendo que tal

    deus presidia os rebanhos e era tido como inventor da charamela. Mais uma vez o

    fregus interrompe inquirindo o significado dessa palavra, ao que o vendeiro diz

    tratar-se de uma espcie de flauta. Chico conclui que pan-americano deveria ser

    sinnimo de flauteao. O dono da venda concorda e acrescenta que deveria ser

    algo relacionado com coisas inventadas para se gastar o dinheiro pblico. Para

    encerrar, Chico pede mais uma dose de bebida.

    Logo nesse primeiro minidrama, observamos a tipificao das personagens, a

    comear pelos nomes bastante comuns Manoel (provavelmente de origem

    portuguesa) e Chico Facada (apelido mais habilidade ou marca, estigma).

    Outro trao da personagem Manoel sua ocupao: vendeiro, o que refora o

    perfil de estrangeiro comerciante em terras brasileiras. Alm do mais, tido por sua

    freguesia como metido a sebo, gria de ento para metido a esperto, em

    consonncia com o pensamento da poca, segundo Paulo Srgio do Carmo (1988,

    p.72; 109-110), de que o estrangeiro era em tudo superior ao nativo. Entretanto, o

    fato de Manoel ser de origem portuguesa e tido como metido a sebo indiciam uma

    ambigidade, na medida em que, segundo N. Veneziano (1988, p. 133-135), esses

    traos compem a personagem-tipo do portugus: comerciante e pouco inteligente .

    Para o perodo, a informao dada por Chico Facada, logo no incio da cena

    ter ido at o Acre abre a possibilidade de consider-lo um desocupado e sem

    moradia, pois era poltica de ento, segundo N. Sevcenko (1999, p. 66), encher

    embarcaes com pessoas consideradas vadias e desordeiras e mand-las para o

    11 Os nmeros indicados entre parnteses seguem a ordem da edio utilizada (1977).

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    Acre. O caracterizador Facada (o que desfere ou o que marcado por)

    reforaria seu delineamento como tipo: malandro e, muito provavelmente, mulato.

    Diante do estrangeiro, Chico se declara ignorante, e o sabemos brasileiro, no

    necessariamente carioca, j que ele se diz um cabra.

    A rubrica externa informa-nos estarem os dois j instalados na venda, local

    em que toda a ao transcorre e que, por sua vez, indica a camada social abordada.

    Manoel est ao balco, e Chico Facada termina a ao de beber o segundo copo de

    uma bebida (parati).

    O tema desse texto o desconhecimento do significado de palavras (ou

    ignorncia da populao, numa referncia mais abrangente), aqui pan-americano

    (referncia ao Congresso Pan-americano realizado no Rio de Janeiro, naquela

    ocasio). H a brincadeira com os nomes Jpiter e Calisto, sendo que este seria

    mais adequado ao de homem, no entender das personagens, porque terminava em

    o, e, portanto, masculino. Constatamos tambm o paradoxo: um povo to

    necessitado de cultura e saber e um dicionrio vendido para ser papel de embrulho

    (Manoel o comprara do copeiro de um doutor). Por outro lado, assim se refere a

    personagem Manoel ao livro: obra rara. Seria lcito deduzir que, ao atribuir esse

    julgamento a uma figura tida como pouco inteligente, o autor satiriza diretamente o

    dicionarista, pois o nomeia de modo explcito.

    No obstante sua falta de conhecimento, ambas as personagens chegam

    concluso de que so enganadas pelo poder pblico por meio de palavras e

    discursos empolados. Nesse caso, a aparente ignorncia se revela como sabedoria.

    Propp (1992, p.151) declara haver duas grandes subdivises de riso, ou dois

    gneros. Um deles seria o da derriso, o outro, o chamado por ele de riso bom. A

    diferena estaria no fato de que suscitariam este riso bom os defeitos considerados

    leves, pequenos, que no provocariam condenao, e sim reforariam um

    sentimento de afeto, simpatia, por parte do espectador. Consideramos que, ao

    ler/ver a cena de Pan-americano, o leitor/espectador riria um riso bom, dado que o

    dilogo das personagens Manoel e Chico Facada revela defeitos pequenos

    desconhecimento do significado de uma palavra, inabilidade para consultar um

    dicionrio, desconhecimento de contedos histricos. Tanto as personagens quanto

    seus equvocos e sua sabedoria advinda da experincia provocariam no pblico

    (leitor/espectador) simpatia e afeto.

    Ao iniciar a srie de Teatro a Vapor justamente com esse texto dramtico, A.

    Azevedo d provas, mais uma vez, da sua condio de escritor para o povo nem

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    por isso menor! Mostra-nos toda a simpatia pelos mais simples, seu engajamento

    com a verdade, j que a nfase no est propriamente no congresso ocorrido, mas

    sim na reao, especialmente das pessoas mais comuns (um vendeiro e um

    malandro), diante da notcia dele e no conseqente esforo feito por ambas para

    alcanar o verdadeiro sentido dessa notcia... O leitor daquela poca, diante desse

    minidrama, provavelmente aderiria ao significado de pan-americano proposto pelas

    personagens, mesmo conhecendo o real.

    Acreditamos que A. Azevedo, herdeiro de longa tradio de teatro de revistas,

    estende aos seus minidramas o uso j consagrado de personagens-tipo, tais como a

    do portugus, do malandro, da mulata, pois, ao comporem uma realidade

    extremamente heterognea vrias etnias, com seus modos de falar, andar, agir,

    garantem forte expresso cmica. O que confirmaremos ou no mais adiante neste

    trabalho, conforme j mencionado.

    5.3 A caricatura

    A caricatura, por sua vez, tambm se utiliza da simplificao de traos para

    compor a personagem; no entanto, estiliza, por meio do exagero, da exacerbao,

    determinados traos fsicos, intelectuais ou morais. Em oposio personagem-tipo,

    a caricatura tende a ser mais particularizada e escolhe como matria um indivduo,

    comportamentos ou idias mais definidos (LEITE, 1996, p. 34).

    Seguindo ainda a argumentao de Sylvia H. T. de A. Leite (p. 34),

    A caricatura implica a ampliao intencional do trao bsico que a sustenta, exigindo necessariamente o exagero, a deformao, adistoro, e uma configurao grotesca; [...]. Na construo dacaricatura, um atributo considerado fundamental enfatizado eampliado, assumindo as outras marcas um papel acessrio; h um efeito de contaminao da parte ampliada para o conjunto dapersonagem, espraiando-se o efeito de desgaste daquilo que propositadamente distorcido para toda a figura do caricaturado.

    Com efeito, algumas personagens so compostas de tal modo pela

    deformao, que, muitas vezes, torna-se difcil saber qual trao deu origem ao

    exagero.

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    Exemplo de caricatura:

    Por causa da Tina (89, p.159-161) nos apresenta um casal o qual recm-

    chegado de um espetculo e ceando na sala de jantar rubrica externa. O marido

    (Clarimundo) pergunta mulher (Tudica) qual lhe parecera a atriz da pea Tina di

    Lorenzo. Ela responde dizendo que no tinha visto nada de especial naquela atriz.

    Clarimundo retruca, observando que a famosa atriz tinha representado muito bem o

    papel. Dona Tudica corrige-lhe afirmando que a avaliara quanto beleza e no

    quanto interpretao; mais tarde confessa-lhe ter assistido ao espetculo com o

    nico intuito de averiguar a to propalada beleza da atriz italiana. Em seu af de

    desmerecer a beleza da atriz estrangeira, chega a ponto de declarar que no

    trocaria a si, pois seria at mais bela que ela se tivesse em mos aquelas pinturas e

    toilettes.

    Inicia-se a, no texto dramtico, a caricaturao da esposa, que se d

    juntamente com a revelao, por parte do marido, dos seus defeitos fsicos:

    C. No bastavam pinturas e toilettes, seria preciso arranjares uma dentadura e uma cabeleira postias! (AZEVEDO, 1977, p.160).

    Retruca a mulher indagando se seriam verdadeiros os dentes e os cabelos

    ostentados no palco pela atriz. O marido lembra a esposa de seu estrabismo e diz

    no ser vesga a italiana. D. Tudica afirma dar-lhe graa essa diferena e postula que

    Clarimundo, por ser seu marido, tem a obrigao de ach-la a mais bela das

    mulheres. Em resumo, no admite ser afrontada com a beleza da atriz.

    C. Mas eu no te afronto, Tudica! Apenas no admito que tu, com esse corpo que pesa cem quilos... e esses dentes... e essesfarripas... e esse estrabismo, que no te d nenhuma graa, tejulgues mais bonita que uma mulher cuja formosura clebre!...(AZEVEDO, 1977, p.160).

    Sentindo-se ofendida, a esposa se enfurece, atira a xcara ao cho e declara

    no querer mais saber do marido. Mas ainda sobra-lhe flego para ridicularizar o

    nome da comediante Tina associado tina. Nesse momento o marido desfere o

    golpe fatal: se a atriz uma tina, Tudica barrela (palavra que pode ser

    associada a barril). D-se, ento, por satisfeito o marido, j que finalmente a

    esposa concordara ser a di Lorenzo bonita, a partir da, poderia dizer o que lhe

    aprouvesse. Enquanto ele entra tranqilamente em seu quarto, a mulher tem um

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    ataque de histeria, esperneando, batendo o p e atirando o bule no cho

    indicaes da rubrica externa.

    A divergncia de opinio entre os cnjuges quanto ao espetculo ou quanto

    beleza da atriz poderia criar um efeito cmico, nessa pea, mas a construo da

    figura da mulher como caricata - obesa (mais de cem quilos), sem dentes, sem

    cabelos e, ainda por cima, estrbica - evidencia a finalidade satrica da cena

    pretendida pelo autor.

    A comicidade das figuras obesas, segundo Propp (1992, p. 46), no est nem

    na sua natureza fsica, nem na espiritual, mas sim na correlao das duas, onde a

    natureza fsica pe a nu os defeitos da natureza espiritual. Lembremos tambm que

    o marido se reconhece feio como a necessidade. (uso de dito popular, to ao gosto

    do dramaturgo, que, aqui, refora a caricatura do casal, o qual beira o grotesco). A

    desavena ocorre principalmente porque, enquanto ao marido interessa analisar a

    atuao da atriz, pois, para ele a beleza desta era indiscutvel, esposa interessa

    avaliar a beleza da famosa mulher. Chega a comparar-se a ela e a concluir, no

    obstante seus defeitinhos, ser-lhe superior. O tom satrico tem por objeto a vaidade

    feminina, to antiga e atual, assim como a inveja e o cime.

    Uma vez que tanto a vida fsica quanto a vida moral e intelectual do homem

    podem tornar-se objeto de riso, nos dizeres de Propp (1992, p. 28), o aspecto fsico

    deformado (caricatura da personagem feminina), na construo do cmico, denuncia

    por si alguma falta moral, que se revela no discurso marcado pela futilidade do

    motivo de discusso entre os dois. Temos, portanto, defeitos considerados graves

    pela sociedade: feira em excesso, assim como so excessivos a vaidade da

    esposa, seu cime e sua inveja; ocorre da o riso de zombaria.

    Cabe ressaltar que muitas vezes a caricatura se constri a partir de um

    modelo real, da a denominao caricatura viva. Esta, segundo N. Veneziano (1988,

    p. 135), to antiga quanto as primeiras comdias gregas e est estreitamente

    ligada stira. Vale-se de retratar pessoas conhecidas da poltica, das artes, das

    letras ou da sociedade e, embora tenha sido utilizada, no Brasil, pela primeira vez,

    por Jos de Alencar, na comdia Rio de Janeiro Verso e Reverso (1857), foi

    introduzida de maneira definitiva nos palcos brasileiros, segundo N. Veneziano

    (1991, p. 136), em O Mandarim (1884), de A. Azevedo em parceria com Moreira

    Sampaio. Nessa revista, a personagem Baro de Caiap uma caricatura viva de

    Joo Jos Fagundes de Rezende e Silva, um baro do caf da poca. Houve, sem

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    dvida, polmica e manifestao de total desagrado da parte do caricaturado, mas

    houve tambm bastante aplauso pblico, o que garantiu continuidade no uso desse

    elemento (caricatura viva) no s pelo dramaturgo maranhense, mas tambm por

    seus contemporneos. Tal recurso mostrou-se e mostra-se to eficaz que hoje, no

    panorama brasileiro, as caricaturas vivas, juntamente com as pardias, ocupam

    considervel lugar na literatura satrica, no cinema, nos programas de rdio e na tv.

    A galeria de personagens de Teatro a Vapor muito rica e variada, mas no

    saberamos dizer se h nela caricaturas vivas, pois tal recurso, com o passar do

    tempo, deixa de significar, uma vez que o que lhe deu origem a figura real

    perdeu-se.

    5.4 A alegoria

    Uma vez que a pesquisadora aborda particularmente a comdia brasileira de

    costumes, na sua feio de revista com a qual A. Azevedo obteve boa parte de

    sua reputao - retomemos a conceituao de N. Veneziano (1988, p. 138),

    segundo a qual a alegoria consiste na representao, por meio de uma personagem,

    de abstraes ou ento de coisas inanimadas. Ainda, segundo a pesquisadora, o

    pensamento cristo, durante a Idade Mdia, fez com que se desenvolvesse todo um

    sistema de representaes alegricas, que personificavam abstraes e entidades

    morais ou espirituais. Nesse perodo, a servio da catequese, as moralidades (cujo

    objetivo era a transmisso de lies morais) personificadas tornam-se

    procedimentos comuns no palco, principalmente naquele teatro popular.

    Ao estudarmos as revistas de ano, fcil perceber que o uso da alegoria

    passou a a ser recurso comum, pois, por seu intermdio, poderiam ser colocados

    em cena os gneros teatrais, as classes, sociais, as instituies, as mazelas, as

    doenas, ou seja, as alegorias enriqueciam sobremaneira a representao e

    permitiam aos comedigrafos uma stira mais viva e eloqente.

    De sua pena de revistgrafo, A. Azevedo tirou com certeza, na composio

    dos minidramas de Teatro a Vapor, mais de uma cena com o uso do citado recurso.

    A seguir, temos um exemplo:

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    As opinies (15, p.54) um minidrama ambientado na Avenida Beira-Mar,

    espao pblico, um dos marcos da gesto de Pereira Passos e do cosmopolitismo

    da cidade do Rio de Janeiro. Suas personagens so alegricas, pois, ao colocar em

    dilogo A Comadre, O Compadre, mais dez Opinies, o autor, sem dvida, utiliza os

    elementos condutores das intrigas nas revistas de ano (compre e comre) e

    alegoriza (personifica) a populao representada pelas diversas opinies. A primeira

    rubrica j esclarece tratar-se de uma cena de revista. Esto a comadre e o

    compadre a questionar a idia que o povo faz da figura do ento prefeito Pereira

    Passos (1904-1906). Surgem, cantando uma valsa, dez opinies, que

    imediatamente so interrogadas a respeito de tal. Todas, por sua vez, desfilam seus

    pareceres, uns favorveis s mudanas implementadas pelo poltico, outros contra

    as mesmas.

    (O tom sarcstico no poderia deixar de aparecer)

    9a. opinio De mitrios foi ele prdigo. o prefeito mais diurtico que temos tido! (AZEVEDO, 1977, p.55)

    Ao final, as Opinies retiram-se, cantando tambm. O Compadre chega

    concluso de que Pereira Passos (1836-1913) no perfeito, assim como nenhum

    homem o , mas excepcional e benemrito.

    Embora nessa pea haja espao para opinies, idias diferentes e

    divergentes at, a figura poltica de Pereira Passos salvaguardada pela fala fi nal

    do Compadre. No entanto, ao escolher uma cena de revista para tratar de feitos

    polticos, nada impede que a leitura/entendimento seja dupla(o), uma vez que

    conveno do gnero da revista o final ser bom/feliz, mas a escolha de seus temas,

    segundo N. Veneziano (1988, p.165), permitir crtica ferina e irreverente.

    5.5 Espao

    Ao analisar o espao, A. Ubersfeld (2005, p 91) denomina tridimensional a

    relao estabelecida entre as personagens (representadas por seres humanos), um

    dado lugar e os espectadores. O espao, segundo a autora, indissocivel, no texto

    teatral, da utilizao de personagens. E mais como o teatro representa atividades

    humanas, o espao teatral ser o lugar dessas atividades, lugar que ter,

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    obrigatoriamente, uma relao (de fidelidade ou distncia) com o referencial dos

    seres humanos. No texto teatral, as informaes essenciais do espao, tais como

    indicaes de lugares, de gestos, ocupao de espao, so dadas pelas indicaes

    cnicas (didasclias), quando existem, e pelo discurso das personagens.

    Para M. Pruner (2001, p. 45-56), o espao dramtico se define por uma

    dualidade: espao cnico e espao dramtico. O primeiro o