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    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 147-169.

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    FUNDAMENTOS E VIRTUALIDADESDA EPISTEMOLOGIA DA HISTRIA:

    algumas questes

    Arno Wehling

    INTRODUO

    As virtualidades da epistemologia histrica somente adquirem sua correta dimenso sereferidas ao significado maior da prpria epistemologia contempornea. Foi a crescentepreocupao com problemas de ordem epistemolgica nos diversos campos da atividadecientfica e na reflexo filosfica que determinou a introduo deste tipo de anlise nasdiscusses sobre a natureza do conhecimento histrico.

    Por que ocorreu, ao longo do sculo, esta crescente preocupao? Parece-nos claro queela existe na razo direta da conscientizao, cada vez mais alargada, de que ocorreu umaprofunda crise no conhecimento cientfico e filosfico que conduziu o saber no Ocidente apartir do sculo XVII. Se P. Hazard pode falar de uma "crise da conscincia europia" para sereferir ao alvorecer destas ento novas concepes naquele sculo, podemos tambmencontrar uma "crise do paradigma clssico" iniciada nas primeiras dcadas do sculo XX.

    Tal crise, que consistiu fundamentalmente no questionamento mais ou menos extensodas categorias e extrapolaes elaboradas a partir da fsica newtoniana e da arquiteturafilosfica do idealismo, produziu um efeito devastador sobre a fundamentao terica dascincias. No mundo ordenado do modelo newtoniano1 ou na sntese kantiana,2o lugar de umareflexo crtica sobre a cincia estava logicamente limitado busca de leis sucessivamentemais genricas - o que fez Comte afirmar que, aps a procura filosfica das causas, chegara a

    ocasio da pesquisa cientfica das leis.3

    Assim compreendidas a cincia e sua reflexo crtica, cabia portanto espao restritoaos problemas epistemolgicos e um espao muito maior para as questes metodolgicas, isto, os caminhos atravs dos quais a investigao elaboraria, "descobrindo-o" no real, oconhecimento.

    Inversamente, quando se deu, como adiante observaremos, a crise do paradigmaclssico em seus dois alicerces, a principal conseqncia para o conhecimento cientfico foi a

    1 Alexander Koyr, Do mundo fechado ao universo infinito, Rio de Janeiro, Forense, 1979, p.195 e segs., etudes d'histoire de la pense philosophique, Paris, Gallimard, p.253 e segs. O que compreende, inclusive, suaextrapolao desde o sculo XVIII, enquanto mtodo, para outros campos do conhecimento, implicando, poca

    do Iluminismo, a derrota da fsica cartesiana, devido, sobretudo, a Voltaire e d'Alembert, conforme demonstrouCassirer (E. Cassirer, The philosophy of the Enlightenment, Boston, Beacon, 1966, p.54 e 55). Observe-se queeste "modelo newtoniano" teve uma verso mecanicista e materialista mais simplificada (e refutada naEnciclopdia) com Holbach e Lamettrie, irrelevante no sculo XVII e retomada no sculo XIX por vriascorrentes do pensamento filosfico e sociolgico; conforme E. Cassirer, op.cit., p.55-566. O estudo destassucessivas extrapolaes, chegando ao conhecimento histrico, fizemos em Arno Wehling, "Um problemaepistemolgico iluminista: a sucesso histrica nos quadros de ferro do paradigma newtoniano". Revista daSociedade Brasileira de Pesquisa Histrica, Curitiba, n 6, p.23-32, 1991.2 Arno Wehling, "Kant e o conhecimento histrico (a idia de histria e a sociedade no sculo XVIII". CinciasHumanas, Rio de Janeiro, 7, 20/24, p.30 e segs., 1984.3 Augusto Comte, Systme de politique positive, Paris, Sociedade Positivista, 1929, vol.II, p.80.

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    perda de um referencial que parecera absoluto: o questionamento de verdades que haviam sidotidas como inquestionveis por dois sculos - leis, induo, objetividade, recorte doobjeto-deslocou a reflexo cientfica para as questes epistemolgicas. Boa parte do que seproduziu a partir da dcada de 1920 na filosofia da cincia, a crtica de pressupostos tericos eda induo em Popper, a anlise do pensamento cientfico em Bachelard, Koyr, Canguillem eKuhn, o "niilismo" de Foucault ou o estudo das operaes cognitivas de Piaget, refletiu esta

    conscincia cada vez mais ntida da necessidade da crtica ao saber cientfico e doconhecimento mais aprofundado de seus procedimentos lgicos, epistemolgicos, ideolgicose at metafsicos (como lembrou E.Simard)4 de constituio.

    s diferentes metodologias continua reservado um respeitvel e amplo territriointelectual; mas problemas do conhecimento cientfico no se reduzem majoritariamente aelas.

    Exemplo eloqente do novo papel dos problemas epistemolgicos no conhecimentocientfico a necessidade de classificar as diferentes abordagens da epistemologia. Naconhecida classificao de Blanch, que enfrenta bem as antigas aporias das diversas reascognitivas, ter-se-ia uma abordagem direta ou intemporal, caracterstica da cincia fisico-matemtica, uma abordagem genrica e uma abordagem histrica, a partir das quais se

    construiriam as respectivas estruturas de conhecimento.5 As duas ltimas, na verdade, como jsustentamos em outro trabalho, constituem apenas um territrio, o da "epistemologia dassucesses", cujo processo faz-se, a nosso ver, pelos caminhos gentico ou histrico. 6

    A "crise do paradigma clssico" refletiu-se de diferentes modos no campo da cinciahistrica no sculo XX, quer de forma direta, quer de forma indireta, quando mediatizada, porsua vez, pela influncia de outras cincias sociais, como a economia, a sociologia, aantropologia, a psicologia ou a cincia poltica. O resultado tem sido discusses intensas erelaes ambguas em que se entrelaam, justapem ou imiscuem problemas de epistemologiageral, de epistemologia histrica, de metodologia e de histria da historiografia, sem queabordagens, procedimentos e objeto estejam claramente delineados. Tambm no territrio dohistoriador as preocupaes de ordem epistemolgica - com bastante atraso em relao aoutros campos, o que j acontecera, alis, com a metodologia, como criticou Ritter noCongresso Internacional de 19557 - passaram a ganhar maior ateno.8

    4 mile Simard, Naturaleza y alcance del metodo cientifico, Madri, Gredos, 1962, p.455; Arno Wehling, Osnveis da objetividade histrica, Rio de Janeiro, APHA, 1974, p.20 e segs.5 Robert Blanch,L'epistemologie, Paris, PUF, 1972, p.35.6 A distino de Piaget aproxima-se mais do trabalho do historiador do que a de Blanch quanto ao quechamamos adiante "histria material", isto , a sucesso nos processos histricos, uma vez que a considera"parcialmente fortuita devido ao entrecruzamento das sries causais" (Jean Piaget,Introduction l'pistemologiegntique II, la pense physique, Paris, PUF, 1950, p.188). Quanto ao processo de conhecimento, Piaget associaa investigao psicogentica histrico-crtica, considerando-as sinnimo de "modos de acrscimo dosconhecimentos na medida em que se baseiam em um sistema de referncia constitudo pelo estado do saber

    admitido no momento considerado" (Jean Piaget, op.cit., parte I, La pense mathmatique, Paris, PUF,1949,p.45). Por esta razo, consideramos, quanto a este aspecto, mais til a distino mencionada, de R. Blanch(op.cit., p.38).7 Gehard Ritter, "Leistungen, Probleme und Aufgaben der internationale Geschichtsscherei bung zur neuerenGeschichte", inRelazione del X Congresso Internazionale di Scienze, Florena, 1955, vo1.VI.8 Entendemos como referenciais dest preocupao, em diferentes contextos, obras como as da "filosofia crtica"norte-americana (por exemplo, William Dray, "The historian's problem of selection", in E. Nagel, P Suppes e A.Tarski, Logic, methodology and philosophy of science, Stanford University Press,1962, ou Rodolph H.Weingartner, "The quarrel about historical explanation", The Journal of Philosophy, 58 (1961), p.29 segs.); PaulVeyne, Comment on crit lhistoire, Paris, Seuil, 1971, e "A histria conceitual in J. Le Goff e P Nora", inHistria: novos objetos, novos mtodos, novas abordagens; R. Koselleck, W. J. Mommsen e J. Rsen,

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    Finalmente, e sem desejar fazer um exerccio de sociologia do conhecimento, masapenas registrar a questo, deve ser lembrado que as transformaes tecnolgicas, econmicaspolticas e de comunicao das sociedades ao longo do sculo XX, tm ritmo, implicaesmacias na vida de bilhes de seres humanos e teor de violncia efetiva ou simblicaradicalmente diversos das condies em que se gerou o "conhecimento cientfico da histria"no sculo anterior. Exigem, portanto, do historiador, novos instrumentos de percepo - como

    os metodolgicos - e de a percepo - como os epistemolgicos.Desta forma, na anlise dos fundamentos e das virtualidades da epistemologia

    histrica consideramos trs ordens de temas para o desenvolvimento do assunto: a crise doparadigma clssico e suas implicaes para a problemtica do conhecimento histrico; ocampo histrico e suas redefinies tericas e empricas no sculo XX, no que respeita simplicaes epistemolgicas; e as possibilidades e desafios para uma epistemologia dahistria no final do sculo XX. Nos dois primeiros temas procuraremos apontar as respectivasrelaes com as questes epistemolgicas; no terceiro, selecionamos um problema cujosencaminhamentos pretendemos analisar: o da cientificidade/objetividade do conhecimentohistrico em seu desdobramento epistemolgico, compreendendo a questo da objetividadepropriamente dita e as questes da explanao/discurso, da natureza do processo e da

    conceptualizao.

    I - A crise do paradigma clssico e suas implicaes epistemolgicas

    Far-se-ia, a nosso ver, um progresso na interpretao das transformaesepistemolgicas do sculo XX se fossem estreitamente consideradas, o que quase sempre noocorre, as trs grandes crises do conhecimento contemporneo: a da cincia "clssica", a doidealismo filosfico e a do historicismo.

    A crise da "cincia newtoniana" ou do "paradigma clssico" consistiu nas descobertas,ocorridas a partir da fsica, desestabilizadoras de um conhecimento que parecia adquirido subspecie aeternitatis.9 A partir dela constituiu-se todo um novo ramo de saber - a filosofia dacincia - e procedeu-se a uma profunda reavaliao epistemolgica do saber cientfico,abalado em seus fundamentos tericos e metodolgicos.

    A teoria da relatividade einsteiniana introduziu uma importante modificao naquesto da objetividade e subjetividade do conhecimento, ao estabelecer, na feliz sntese deOrtega,10 que o observador cientfico possui o conhecimento absoluto de uma realidaderelativa, o que invertia a relao newtoniana, fundamentada no conhecimento relativo de umarealidade absoluta. Esta ltima teria, assim, embutido um resqucio metafsico, ao admitiraexistncia de um real exterior "absoluto", cognoscvel pelo crescente aperfeioamento doinstrumental cientfico.11

    Objektivitt und Parteilichkeit in der Geschichtwissen schaft, Munique, DTU,1978; J. Kocka e T. Nipperdey,Theorie und Erzhlung in der Geschichte, Munique, DTV, 1983; K.Acham, e W.Schulze, Teil und Ganzes,Munique, DTV, 1990; Jos Antonio Maraval, Teoria del saber historico, Madri, Rev. de Occidente, 1967.9 C. D. Broad,El pensamiento cientifico, Madri, Tecnos, 1963, p.126 e segs.; Henri Poncar, Science et mthode,Paris, Flamarion, 1947, p.215-230. Tratamos o tema mais extensamente em Os nveis da objetividade histrica,Rio de Janeiro, APHA, 1974, p.20 e segs.10 Jose Ortega y Gasset, "El sentido historico de la teoria de Einstein", in El tema de nuestro tiempo - ObrasCompletas, Madri, Alianza, 1983, voI.III, p.222 e segs.11 Estes aspectos foram tratados em especial por Robert G. Collingwood, Cincia e filosofia, Lisboa, Presena,s/d, p.212 e segs.; E. Simard, op.cit., p.340 e segs.; R. B. Braithwaite, La explicacin cientifica, Madri, Tecnos,

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    J o "conhecimento absoluto" einsteiniano supunha, como observou Popper, que aperspectiva do observador cientfico era absoluta, na medida que tivesse esgotado todas asvirtualidades tericas e metodolgicas e empricas de uma abordagem.12 Tal perspectivismoera necessariamente objetivo, uma vez que, trocado o sujeito da observao mas mantidas as"regras do jogo cientfico", isto , as mesmas premissas epistemolgicas e metodolgicas e aconstruo da problemtica, as concluses deveriam ser idnticas.

    O questionamento da sntese newtoniana sob o ngulo da teoria da relatividadecomplementou-se com a fsica quntica de Planck e o princpio do indeterminismo deHeisenberg. Estes dois ltimos campos do conhecimento fsico afetaram dois fundamentos doparadigma clssico. O primeiro, que j vinha da fsica aristotlica, e que fora incorporado,como lembraram Arthur March e Isaiah Berlin, em enfoques muito diversos entre si,13 porGalileu e Newton atravs do neoplatonismo renascentista: o de que o microcosmo reproduziao macrocosmo. Ao contrrio, as investigaes sobre os quantas e sobre molculas demovimento indeterminado de certos gases revelaram a impossibilidade de "reduzir-se umnvel do real a outro".14 As leis e categorias newtonianas rido se aplicavam, assim, ao mundomicrocsmico desvelado por essas pesquisas, o que conduziu observao muito repetida deque "a lei varia com o nmero" ou simplesmente no existe, o que era absolutamente

    revolucionrio em relao ao paradigma clssico.15No se eliminava a fsica newtoniana, como havia acontecido com ela prpria em

    relao Aristteles. Era, porm, confirmada a um determinado nvel de observao o dossentidos humanos - e considerada insuficiente como extrapolao para outros nveis. Ascertezas e leis cientficas indutivamente construdas limitavam-se, desse modo, a um certoterritrio epistemolgico da fsica, cabendo a anlise simultnea, com outros instrumentos, denveis diversos do real. Qualquer generalizao implicaria os riscos do reducionismo e do"absolutismo metodolgico", o que provocou o comentrio jocoso de Ortega, para quem, comos extravasamentos que fizera, "a fsica de Galileu, a gloriosa fsica do Ocidente, padecia deum agudo provincianismo".16

    Tais descobertas no campo da fsica e, posteriormente, em outras reas da cincianatural, revelaram rapidamente a necessidade de uma reviso das atitudes epistemolgicasdominantes. O desenvolvimento da filosofia da cincia, na primeira metade do sculo XX, foia mais imediata e significativa conseqncia destas transformaes: o empirismo lgico, comseus grupos, crculos e escolas, o pensamento de Bachelard17 e as investigaes de Popper,entre outros, assinalaram grandes avanos, na tentativa de extrair conseqncias

    1965, p.377; Karl R. Popper, A lgica da investigao cientfica, So Paulo-Belo Horizonte, EDUSP-Itatiaia,1975, p.30 e segs.12 O que no implica, evidentemente, ao contrrio das posies cientificistas, a sua perenidade, mas o fato de quese torna objetivo e, por isso mesmo, criticvel e refutvel. Karl Popper, Conhecimento objetivo, So Paulo-BeloHorizonte, EDUSP-Itatiaia, 1975, p.34-35.13

    Arthur March, La physique moderne et ses thories, Paris, Gallimard,1965, p.31; Isaiah Berlin, Limites dautopia, So Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.32.14 mile Simard, op.cit., p.344.15 O que introduziu a questo da diversidade de padres explicativos, acrescentando-se ao padro da leinewtoniana outras possibilidades explanatrias (como o probabilismo e problemas da incerteza e do acaso). A.March, op.cit. p.167 e segs.; Jacques Monod,Le hasard et la necessit, Paris, Seuil, 1973, p.114; A. Wehling, Osnveis..., op.cit.16 J. Ortega y Gasset, op. cit., vol. III, p. 234.17 O primeiro a sublinhar, na Frana, a inverso do "vetor epistemolgico" (expresso do autor) do racional parao real e no deste para aquele, como afirmado desde o realismo grego at o indutivismo de Bacon; GastonBachelard, O novo esprito cientfico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968, p.13.

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    epistemolgicas e metodolgicas dos novos conhecimentos cientficos. Havia, a, convicogeneralizada de que categorias caras ao pensamento newtoniano e a seus desdobramentos emoutros campos do saber nos sculos XVIII e XIX, como o princpio da induo, as leiscientficas e o determinismo tinham uma validade restrita e no universal e que, ademais,haviam sido responsveis por extrapolaes indevidas, que os crticos em geral consideraramsob os sufixos pejorativos de historicismo e cientificismo.18

    As cincias sociais sofreram, em geral indiretamente, os efeitos da crise do modelonewtoniano. Quase sempre inspiradas, no sculo XIX, nas grandes frmulas da engenhariasocial do positivismo, do evolucionismo sociolgico e antropolgico e do marxismo,fundamentadas, por sua vez, nas premissas newtonianas, as cincias sociais sentiram em grausdiferentes de conscientizao,19 solapadas suas bases tericas. A reao, genericamente, foi nosentido de admitir os excessos deterministas de suas fontes doutrinrias - exceo, durantemuito tempo, do marxismo sovitico, quando associou filosofia da cincia e neopositivismo erefutou o relativismo fsico, considerando-os sem base cientfica, "arma ideolgica da reaoimperialista na sua luta contra o comunismo e sua teoria".20

    Reabriu-se, com isso, a questo da subjetividade e da objetividade do conhecimentocientfico, inclusive quanto aos fenmenos sociais. Demolido ou seriamente abalado o

    objetivismo de raiz newtoniana do sculo XIX, ocorreram reaes que iam do subjetivismopuro ao estilo de Croce e Collingwood at a afirmao de uma objetividade perspectivada emnveis e relativa aos instrumentais de observao, como as teorias, os procedimentosmetodolgicos e os problemas admitidos como vlidos pelas comunidades cientficas.

    No plano filosfico, a crise do idealismo esteve intimamente ligada ao fenmenoprecedente, a limitaes tericas de seu prprio pensamento (sobretudo a identificao, desdemeados do sculo XVIII, do racionalismo com a fsica newtoniana, evidenciada na atitude deKant em relao ao pensamento fsico-matemtico)21 ao anti-racionalismo de Nietzsche e, noplano histrico, nova "crise da conscincia europia" representada pelos efeitos da PrimeiraGuerra Mundial e das novas condies polticas, sociais e culturais que ela ensejou.

    Surgiu, assim, o que Manuel Garcia Morente denominou de "terceira inflexo dopensamento ocidental", representada pelo existencialismo heideggeriano e sartreano (este, adespeito de sua dependncia em relao ao racionalismo e ao marxismo), alm de, no mundo

    18 Uma discusso moderna das questes epistemolgicas da derivadas encontra-se em Hans Lenk, ZwischenWissenschafttheorie und Sozialwissenschaft, Frankfurt, Suhrkamp, 1986, especialmente p. 7 e segs. (aepistemologia entre o pensamento de justificao e o de corroborao) e p. 89 e segs. (o problema docientificismo).19 A historiografia francesa e, de modo geral, as cincias sociais, foram pouco sensveis relao direta entre a

    crise do pensamento fsico e os padres explicativos por ele utilizada. Roger Chartier, recentemente, foi dospoucos a chamar a ateno para este alheamento; Roger Chartier, A histria cultural entre prticas erepresentaes. Lisboa, 1990, p. 73 e segs.20 Kh. Fataliev,Le matrialisme dialectique et les sciences de la nature, Moscou, Progrs, p.5 e segs. e p.117 esegs.21 Vorrede, inKritik der reinen Vernunft, ed. Academia das Cincias de Berlim, 1963. Muito antes, j afirmarasua fundamentao newtoniana nas obras Allgeneine Naturgeschichte und Theorie des Himmels oder Versuchvon der Verfassung und dem mechanischen Ursprunge der ganze Weltgebu der nach NewtonschenGrundstzen abgehandelt. (1755) e, particularmente, em Untersuchungen ber die Deutlichkeit der Grundstzender natrlichen Theologie und der Moral (1763); comentrios em Ernst Cassirer, The Philosophy, op.cit., p.12.Retomamos a referncia em A. Wehling,Kant e o conhecimento histrico..., op.cit., p.32.

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    ibrico, Ortega y Gasset.22 Esgotadas as possibilidades filosficas do realismo e do idealismo,as duas primeiras inflexes, restaria ao homem buscar a identidade de seu ser no mais naessncia das coisas ou na construo da idia, mas na existncia histrica. No existia,entretanto, destaque-se, em Heidegger, nenhuma condescendncia em relao ao modelohistoricista em sua poca ainda dominante nas cincias sociais, uma vez que o consideravaeivado de idealismo.23

    A crise, entretanto, que mais de perto afetou as cincias sociais em geral eparticularmente a histria, foi a do historicismo. Sem desejar entrar na ampla polmica dotema, de Meinecke a Popper e Adam Schaff e procurando considerar os vrios historicismos"setoriais" do saber -histrico, jurdico, antropolgico, econmico e as suas bem distintasetapas - o historicismo filosfico do sculo XVIII, identificado com a filosofia racionalista daHistria como demonstraram Cassirer e Croce,24 o historicismo alemo estudado porMeinecke e o historicismo cientificista criticado por Popper - encontramos o apogeu daexplicao dos fenmenos sociais pela sua evoluo, no sculo XIX.25 Se isto contraps oconceito de processo ao de sistema, como analisaremos adiante, o fez quase sempre - exceo da maior parte do historismo alemo, particularmente Herder e Ranke26 - dentro dosquadros mais amplos dos pressupostos da fsica newtoniana e do princpio da induo.

    O "triunfalismo cientificista" das cincias sociais no sculo XIX, com freqnciainjustamente imputado apenas ao positivismo, tomou, assim, uma feio historicista. A crisedo paradigma newtoniano, no incio do sculo XX, abalaria, desta forma, fortemente, os seusalicerces.

    Por outro lado, nos planos metodolgico e emprico das diferentes cincias sociais, odesenvolvimento da pesquisa monogrfica foi evidenciando a inadequao das explicaespor leis "newtonianas" e, como corolrio, a incapacidade do historicismo para a previsosocial. Quando Popper, em 1944, publicou a Misria do historicismo, consolidavabrilhantemente algumas dcadas de crticas parciais s pretenses imperialistas de uma cinciasocial determinista e, como ele acusou,27 freqentemente manipulada pelos interessespolticos daqueles que pretendiam fazer do seu acesso ao poder uma "inevitabilidadehistrica".28

    Antes disso, alis, e por outros caminhos, j existiam restries ao historicismo.Nietzsche j havia criticado a pretenso filosfica de impor padres de racionalidade vidahistrica, tratando causticamente a crena evolucionista da sucesso linear,29 este filo terico

    22 No associamos Heidegger ao existencialismo puro e simples, acatando sua prpria distino entre a filosofiadoDasein (comum aos existencialistas) e a anlise do Sein, objeto de sua reflexo. neste ltimo sentido que se

    baseia a classificao de Morente.23 Pela razo indicada na nota precedente. Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tbingen, Max Niemeyer, 1986, 2Seo, Cap. V; Martin Werner Marx,Heidegger und die Tradition, Eine problemgeschichthiche Einfhrung in

    die Grundbestinsmungen des Seins, 1961, passim.24 Arno Wehling, Um problema epistemolgico iluminista: a sucesso histrica nos quadros de ferro doparadigma newtoniano.Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica, Curitiba, n 6, p. 23-32.25 Arno Wehling, "Historicismo e concepo da histria na fundao do Instituto Histrico", in Origens doIHGB, Rio de Janeiro, 1988, p.42.26 Friedrich Meinecke,Die Enstehung des historismus, Werke, Munique, Oldenburg, 1959, vo1.III.27 Karl Popper,A misria do historicismo. So Paulo, Cultrix, 1975, p. 5 e segs.28 Isaiah Berlin,Historical inevitability. Londres, OUP, 1959, p. 52-53.29 Estudamos o tema, neste aspecto, em "Histria e valorao - a propsito de Nietzsche", Revista Convivncia,PEN Club do Brasil, 1981, vol.5, p.75 e segs., a propsito do texto de Nietzsche sobre a histria (Von Nutzenund Nachteil der Historia fr das Leben, in UnzeitgemsseBetrachtungen, in Werke, ed. K. Schlechta, 1956, vol.

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    seria mais tarde desenvolvido por Foucault, ao relativizar os saberes uns em relao aos outrose ao recusar a viso historicista na histria das cincias.

    Nem sempre a crtica ao historicismo representou uma ruptura pela raiz, como emNietzsche ou Popper, mas mesmo crticas parciais como as de Freud e Weber contriburampara minar a construo historicista. Freud, porque a busca do inconsciente e da "psicologiadas profundezas", conquanto alicerada em supostos comportamentalistas de inspirao

    cientificista, pelo seu prprio objeto e fins tendia a refutar o behaviorismo ento dominante eresponsvel por uma interpretao fisicalista do comportamento humano. Weber, porque comsua metodologia conceptualista, inspirada nos procedimentos dos neokantianos Dilthey eRickert - alis defensores de um objetivismo "idealista" que identificava sujeito e objeto - eseu uso da causalidade referida a valores sociais30 dava uma opo terica e prtica buscadas leis deterministas, ao marxismo (ao qual ele visava) e ao positivismo.

    Diferentes respostas foram dadas s diferentes crises: da crise do paradigmanewtoniano surgiram a cincia natural moderna e a filosofia da cincia; da crise do idealismo,o existencialismo e diversas outras posies gnoseolgicas, inclusive a de Foucault; da crisedo historicismo, a historiografia moderna, cujo exemplo no exclusivo costuma ser omovimento dosAnnales.

    As trs crises, freqentemente articuladas entre si, pois se trata da oposio comum Weltanschauung cientificista que bate em retirada, tiveram como efeito, no plano doconhecimento, uma reformulao (que ainda se encontra em marcha) dos problemas de ordemterica, redimensionando-os, no plano epistemolgico, em vrias objetividades referidas aosdiferentes nveis de observao; no plano reais geral de outros saberes, por umareconsiderao da subjetividade e uma revalorizao de percepes "estticas", "intuitivas","mgicas" que haviam sido soberbamente refutadas pelo cientificismo oitocentista.

    II - O campo histrico e suas redefinies tericas e empricas no sculo XX

    Os excessos do historicismo cientificista, no plano geral das cincias sociais e dafilosofia, e o rigor factualista da "histria historicizante", nos domnios da historiografia,fizeram convergir contra a histria, desde as primeiras dcadas do sculo XX, as metodologiasde vrias cincias sociais, alm de provocar uma reao dos prprios historiadores,inconformados com o diktat reducionista do cientificismo. Parece claro, entretanto, que odeclnio do historicismo e da "histria historizante" no se deu, apenas, devido ao seuesgotamento terico no incio do sculo XX, mas ao fracasso da "predio histrica" doprimeiro e insuficincia da segunda, restrita histria poltica do Estado e da diplomaciaentre os Estados, em sociedades que viviam uma profunda crise econmica, social e deidentidade nos anos 1920, tornada aguda com a depresso iniciada em 1929.31

    I). A mesma crtica fizera, pela mesma poca (dcada de 1870) Charles Renouvier, Ucronia, B. Aires, s/d, p.374.30 "Por ao (social) deve entender-se uma conduta humana ... sempre que no sujeito ou nos sujeitos da aoliguem a ela umsentido"(grifo do autor); Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehendenSoziologie, Tbingen, Mohr, 1956, vol. I, p. 6.31 A relao entre as duas sries de fenmenos, embora bvia, no tem sido sublinhada pelos especialistas dosrespectivos temas. Aventamos a hiptese de que isto ocorra por ser considerada a problemtica do historicismo(e do cientificismo em geral) como uma questo filosfica ou epistemolgica,enquanto a crise da "histriahistorizante" vista sob o ngulo mais restrito dos problemas metodolgicos da histria. Tal situao

    particularmente clara na historiografia francesa que apenas aponta, no caso dosAnnales, os vnculos entre Marc

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    No primeiro caso, encontramos reaes como as do estruturalismo keynesiano, emeconomia, refutando os princpios da escola histrica e considerando os fenmenoseconmicos do capitalismo em si prprios, abstradas as condies de tempo e lugar. Nomesmo sentido marchou o estruturalismo antropolgico, particularmente com Lvi-Strauss, aorefutar o historicismo e buscar, nas sociedades primitivas, "aquilo que no se alterava", o queera "permanente" e, por conseguinte, a-histrico.32

    No segundo caso, o da "histria historizante", encontramos um leque de crticas: a newhistory norte-americana, afirmando a subjetividade radical do conhecimento histrico e odecidido engajamento do historiador em sua poca, contra o objetivismo "positivista";33 oneo-idealismo de Croce e Collingwood, afirmando o carter presentista e "contemporneo" detodo o conhecimento, inclusive histrico;34 a historiografia dos Annales, invectivando omanual do "perfeito historiador positivista" de Langlois e Seignobos;35 e mesmo algumascorrentes marxistas procuraram desvencilhar-se do fardo cientificista e economicista,abrandando a crena nas "leis objetivas da histria", no determinismo da vida material ou nacoisificao essencialista das categorias sociolgicas.36

    Colocava-se, assim, um problema para o conhecimento histrico com o declnio dohistoricismo: a viso anti-histrica do keynesianismo, do estruturalismo e do positivismo

    jurdico obrigou aos historiadores a uma tomada de posio para afirmar que a histriaconsiderava no apenas fenmenos diacrnicos, como sincrnicos; no apenas de curta, mas

    Bloch e a sociologia de Mauss, de Lucien Febvre e a psicologia de Wallom, de Labrousse e Braudel com a teoriaeconmica. Guy Bourd e Herv Martin, Les coles historiques, Paris, Seuil, 1983, p.171 e segs.; FranoisDosse,L'histoire en miette, Paris, La Dcouverte, 1987, p. 54 e segs. Sobre o alheamento do grupo dos Annalesem relao a uma abordagem epistemologicamente moderna, ver as crticas de Roger Chartier, A histriacultural entre prticas e representaes, Lisboa, Difel, 1990, p.54 e segs. Na historiografia alem, a tradiohistorista e hermenutica, junto com a influncia weberiana em alguns casos, determinou direcionamentodiferente historiografia, evitando divrcio to patente entre procedimentos metodolgicos e questes de ordem

    epistemolgica. Entretanto, a tambm os problemas decorrentes da ruptura do paradigma clssico tiveram poucainfluncia sobre a reflexo historiogrfica, talvez porque a prpria tradio historicista j impunha uma reao aocientificismo. Para as mltiplas nuances da questo que no cabem neste texto, ver R. Koselleck, W. J.Mommsen e J. Rsen, Objektivitt...; J. Kocke e T Nipperdey, Theorie...; R. Koselleck, H. Lutz e J. Rsen,Formen der Geschchtschrteibung, Munique, DTV, 1985; J. Rsen, "Theorie der Geschchte", in R. van Dlmen(ed.), Fischer Lexikon-Geschichte, Franckfurt, Fischer, 1991, p.32-51; e H. Wunder, "Kulturgeschichte,Mentalittgeschichte, Historische Anthropologie", in R. Dlmen (ed.), p.65-85.32 Ou, dito em outro plano: "A histria organizando seus dados referindo-os s expresses conscientes, aetnologia relacionando-os s condies inconscientes da vida social". Claude Lvi-Strauss, Antropologiaestrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1974, p.30; ou ainda: histria (cabe) "o que pertence de direito contingncia irredutvel", idem,Du miel aux cendres, Paris, Plon, 1966, p.408.33 Charles A. Beard, "The case for historical relativism", in Ronald Walsh, Ideas of history, Nova York, Dutton,1969, voI.II, p.162. Discusso do "noble dream" (ttulo original do trabalho de Beard) em Arno Wehling, "Em

    torno de Ranke: a questo da objetividade histrica",Revista de Histria, So Paulo, USP, 1973, n 93, p.192 esegs.34 Benedetto Croce, A histria como pensamento e ao, Rio de Janeiro, Zahar, 1962, p. 42; Robert G.Collingwood, Cincia e filosofia, Lisboa, Presena, s/d, passim.35 Lucien Febvre, Combates pela histria, Lisboa, Presena, 1985, p.117 e segs.36 Entre muitos exemplos no terreno da historiografia marxista, poderiam ser lembrados dois bastanteconhecidos, que seguem caminhos diversos: a admisso de uma multiplicidade de modos de produo numa dadasincronia (Pierre Vilar, "Histria marxista, histria em construo", in J.Le Goff e P Nora (ed.), Histria: novosproblemas, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p.146 e segs.) e a afirmao de que a classe social umarelao, no uma coisa (Edward Thompson, The making of the English working classes, Londres, Penguin,1968, p.11).

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    de longa durao; no apenas visveis nos documentos, mas velados atrs de sries macias deregistros e das manifestaes do inconsciente.

    Essa questo aclara-se quando estudada em dois planos, o das relaes entre a histriae outras cincias sociais e o dos diferentes territrios metodolgicos do historiador, sobretudoa histria social, a histria econmica e a histria das mentalidades.

    A necessidade da relao entre a histria e as demais cincias sociais tornou-se uma

    tautologia, reconhecida pelos especialistas nas diversas historiografias nacionais, embora sediscuta o grau destas aproximaes, que vo desde contatos espordicos e emprstimosmetodolgicos discretos at o trabalho interdisciplinar dos area studies, desenvolvido nosEUA dos anos 1950, ou a interpenetrao da pesquisa antropolgica e histrica no Mxicoatual.

    Na Frana, com as duas primeiras geraes dos Annales deu-se efetiva abertura para apsicologia, a geografia, a estatstica, a sociologia e a economia, medida que se foi afirmandoo alargamento temtico dos estudos histricos. Nomes como os de Febvre, Bloch, Simiand eLabrousse tornaram-se, por este motivo, familiares a geraes de estudiosos.37

    A obra de E Braudel certamente a mais associada a este empreendimento, comoestudaram Bourd e Martin e Dosse38 Seus pontos de convergncia com as cincias sociais

    so pelo menos trs: o conceito de durao, semelhante aos "tempos mltiplos" da sociologiade Gurvitch; o conceito de estrutura, que refuta o exclusivismo atribudo por Lvi-Strauss aoetnlogo para o seu estudo; e o conceito de modelo, emprestado por Braudel particularmenteira acepo do demgrafo Sauvy.

    Agindo desta forma, Braudel e os historiadores dos Annales nos anos 1950 e 1960alargaram o conhecimento histrico quanto ao objeto, quanto ao mtodo e quanto aosproblemas a colocar. Diluam-se, com isto, os efeitos mais perniciosos do historicismo (oabandono das "leis histricas", por exemplo) e esvaziava-se a crtica neo-racionalista queprocurava valorizar os fenmenos sociais e psicolgicos estudados em dimenso a temporal.

    O estruturalismo de Levi-Strauss, que parecia delimitarem definitivo o territrio dohistoriador e do antroplogo, dando a este o domnio exclusivo daqueles fenmenos quetivessem "correlao funcional de elementos culturais numa sincronia", acabou caldeado nestanova histria. A possibilidade terica disto j fora anunciada por Braudel em seu texto Ahistria e as cincias sociais; a longa durao.39 A pesquisa dos anos 60 e 70 confirmou asua fecundidade. Entre vrios exemplos, est a da pesquisa de Nathan Wachtel (1971) sobre Aviso dos vencidos, na qual estuda a conquista da Amrica fazendo os procedimentoshistoriogrficos e etnolgicos moverem-se nos dois eixos, o diacrnico e o sincrnico: no dohistoriador, a noo de tempo uniforme cedeu do tempo mltiplo dos conquistadores e dosndios, obrigando-o a estudar suas relaes sincrricas, no do etnlogo, passou-se a considerarem suas origens os dois sistemas antagnicos.

    A convergncia, portanto, fecunda, no se justificando excludncias, por fronteiras

    metodolgicas. Afinal, como observou Herv Martin, "um pouco de estruturalismo afasta ahistria; muito, a reencontra.40

    Fazia-se, assim, quanto ao homem em sua dimenso social e histrica, uma descobertato revolucionria como a de Einstein e dos fsicos que contestaram o paradigma newtonrano,descoberta que ainda no desencadeou todos os seus efeitos: a existncia de diferentes nveis

    37 F. Dosse, op. cit., p.54 e segs.; T. Stoianowich, French historical method, Ithaca, CUP, 1976, p. 50 e segs.38 G. Bourd e H. Martin, op.cit., p.185; F. Dosse, op.cit., p.95.39 Fernand Braudel,La historia y las ciencias sociales, Madri, Alianza, 1970, passim.40 G. Bourd e H. Martin, op.cit., p.282.

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    do real, de mltiplos processos e, portanto, de mltiplas explicaes cientficas e "verdadescontingentes" aos problemas41 epistemologicamente e metodologicamente colocados.Revolucionava-se todo o conhecimento histrico e com ele antigos problemas de naturezaepistemolgica da investigao social, redimensionando-se, por exemplo, a questo daobjetividade e reduzindo-se a da subjetividade a variveis individuais que, emboraimportantes, no so capazes de condicionar todas as concluses cientficas de uma

    "comunidade acadmica".42

    A prtica da pesquisa histrica, por outro lado, a partir dos anos 1930, mostrou comofoi possvel dar sustentao emprica s novas indagaes tericas, mesmo quando essas nofossem, pelos motivos expostos, claramente conscientizadas.

    Na histria econmica, o estudo da relao entre preos, rendas e ciclos econmicos(Simiand), da conjuntura econmica com a crise do Antigo Regime e de 1848 (Labrousse), dahistria da conjuntura com a geo-histria (Chaunu, Mauro, Crouzet), dos modeloseconomtricos (New Economic History) e da histria quantitativa (contabilidade pblica),apontou para fenmenos at ento insuspeitos ou no compreendidos pela velha "histriaeconmica e social" Pirenne ou pela interpretao dos modelos socioeconmicos, Sombart.

    Na histria social, o estudo de grupos sociais, sua estratificao, suas relaes e suaatuao, produziu-se como os Annales, o colquio de Saint Cloud e os trabalhos de Le RoyLadurie, P. Aris e P Goubert (ou, fora da Frana, com a pesquisa norte-americana sobreestruturas familiares, a Sozialgeschichte alem ou a histria dos movimentos sociais inglesa).Conduziu-se, assim, esta especialidade a um aprofundamento terico e emprico que anulouquaisquer simplificaes historicistas, ou qualquer utilizao ingnua de leis e determinismossociais, recuperando relaes de sociedades to diversas da contempornea como a estamentaldo sculo XVIII (Rickert, Furet e Elias) ou as sociedades clssicas (Veyne).

    Na histria das mentalidades, intimamente ligada histria social, com temasinimaginveis h poucas geraes, tornam-se necessrios novos tipos de fontes e novosprocedimentos heursticos que aproximam, como diz Le Goff, o historiador do etnlogo, a fimde surpreender o estgio mais imvel das sociedades, recuperando "prticas e representaes"(Chartier), "utensilagens mentais" (Febvre), "habitus" (Panofsky), para compreender a eficciahistrica, na massa social, de valores e crenas. Qualquer explicao de carter cientificista,como por exemplo as derivadas do behaviorismo ou do determinismo sociolgico, revela-se ainevitavelmente empobrecedora e provinciana.

    Mesmo a histria poltica, abandonando ou redimensionando a batalha, o tratado e ogrande acontecimento e abrindo-se ao estudo dos mecanismos de poder para muito alm doEstado, para a psicanlise do homem pblico ou as relaes internacionais, acompanha estemovimento copernicano.

    Desta forma, as tendncias bsicas da historiografia apontam para um aprofundamento

    que exige, no plano epistemolgico,uma crescente abastrao, um distanciamento do sensocomum e uma revoluo conceituai, enquanto no plano metodolgico ocorre a "ida ao micro"atravs da seriao e da combinao de procedimentos diacrnicos e sincrnicos.

    Inegavelmente, a primeira encontra-se mais hesitante e difusa do que a segunda.

    41 No sentido de elaborao e refutao de teorias, de Popper.42 No sentido que lhe atribui Thomas Kuhn,A estrutura das revolues cientficas, So Paulo, Perspectiva, 1975,

    p.10 e segs.

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    III - Possibilidades e desafios para uma epistemologia da histria no final do sculo XX

    Preliminar: A objetividade e as opes explanatrias

    O desafio de uma epistemologia histrica no final do sculo XX ultrapassa de muito as

    fronteiras de um campo especfico do trabalho intelectual, o da histria. Da mesma formacomo o historicismo, no sculo XIX, assumiu propores extraordinariamente maiores,espraiando-se para as demais cincias sociais e a filosofia, a "abordagem histrica" dasquestes, na classificao de Blanch, delimita, em relao s duas outras abordagensapontadas pelo autor, um campo de interrogaes e um universo explanatrio que inclui oconhecimento histrico, mas est longe de nele se esgotar.

    As vrias vertentes da "escola de Frankfurt", particularmente os trabalhos deHabermas a propsito da "razo comunicativa" e da modernidade ou a obra mais antiga deHockheimer sobre a filosofia da histria; as criticas de Popper ao mecanicismo, aoindutivismo e s teses sobre a previsibilidade social; a tese de Kuhn sobre a ruptura dosparadigmas na histria da cincia; a posio de Canguillem sobre a histria da cincia como

    laboratrio da epistemologia; o recorte arqueolgico de Foucault; todas estas posies, se porum lado revelam o desconforto, em diferentes reas e pontos de vista tericos, com osmodelos evolutivos derivados do historicismo, com os modelos sistmicos que noconseguiram se desligar de seu lastro mecanicista e com as premissas nacionalistas de fundohegeliano ("todo real racional e todo racional real"), por outro lado apontam para anecessidade de equacionar as questes referentes temporalidade e historicidade nasdiferentes culturas em novas bases.

    A magnitude das dificuldades pode ser representada com a colocao preliminar deduas perguntas: qual o substrato ontolgico da histria -a "histria material" - e qual osubstrato analtico da histria - a "histria formal" - luz dos novos desafios epistemolgicos?

    Na concepo cientificista, as respostas seriam indubitveis: o fato era a prprianatureza essencial da histria, enquanto a lei (ou o dado) traduziria seu significado analtico.Ou, no caso de recusa a to rgido determinismo, admitir-se-ia a concepo corrente emalguns manuais de metodologia histrica do incio do sculo, para os quais sociologiacaberia a descrio do tpico pela lei, enquanto a histria deveria circunscrever-se ao "nico" e"singular".43

    As concepes modernas em face da histria, quaisquer que sejam seus quadrantesepistemolgicos, simplesmente metodolgicos ou mesmo ideolgicos, respondem de modointeiramente diverso. questo do substrato ontolgico da histria, respondem com as trsduraes de Braudel, os trs nveis de Chaunu, a "rede relacional" de Maraval, o "relatoverdadeiro" de Veyne ou as "prticas e representaes" de Chartier. A questo do substrato

    analtico da histria responde-se -embora atribuindo-se expresso significadosdiferentes-que o objetivo da formalizao terica do historiador a colocao doproblema.Trata-se, assim, realmente de uma revoluo copernicana: o conhecimento histrico

    enfrenta, no final do sculo XX, o desafio de se definir um territrio epistemolgico prprio,

    43 Falava-se, por exemplo, de um "homem geral", biolgico e moral, um "homem temporal" e um "homemindividual": "descobre-se finalmente que entre historiadores e socilogos trata-se no de objetos especificamentediferentes mas de objetos iguais vistos de aspectos distintos". Pierre Lacombe, La historia considerada comocincia, Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1948, p.19.

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    no por mesquinhas razes corporativas, como as apontadas recentemente por Chartier,44 maspor uma imperativa necessidade gnoseolgica.

    A definio de um territrio epistemolgico passa, necessariamente, pela relaocognitiva entre o sujeito cognoscente (armado, neste caso, de uma bagagem terico-metodolgica e uma pr-figurao do recorte da realidade) e o prprio objeto, delimitado

    heuristicamente a partir daquela; ou, como diz Rsen, no "comeo da investigao coloca-se apergunta histrica".45

    As opes tericas - no consideramos aqui as estritamente metodolgicas - com asquais se defronta o historiador contemporneo nesta questo, que basicamente a daobjetividade (ou da objetivao, se se preferir evitar as implicaes "essencialistas" daquelaexpresso) do conhecimento histrico, podem ser resumidas, sem o intuito de esgotar o tema,mas para os efeitos desta argumentao, s seguintes:

    a) a via determinista, representada por defensores do determinismo historicista, cujapreocupao fundamental a definio dos "graus" ou "instncias" de determinalidade dosvrios planos infra e superestruturais (Althusser, Vilar, Thompson, Poulantzas) e as suas

    relaes com o reducionismo s cincias naturais (Schaff).46

    b) a via relativista-objetivista, fundamentada na crtica induo e ao reducionismometodolgico das cincias sociais s fsico-matemticas, embora reconhecendo a semelhanaepistemolgica bsica de todo o enfoque cientfico (princpios da refutao das teorias, dacontrastabilidade e da autonomia do Mundo Trs) (Popper, Maraval).47

    c) a via hermenutica, buscando, na tradio de Herder e Dilthey, refinada pelo instrumentalfilosfico e psicolgico deste sculo, reconstituir a teleologia dos agentes sociais a partir desuas expresses discursivas e/ou simblicas (Ricoeur, Gadamer, Mommsen).48

    d) a via arqueolgica, no sentido foucaultiano, j intuda em Nietzsche, eliminadora decategorias supostamente intemporais cuja co-naturalidade ao homem enquanto ser social refutada em nome de uma historicidade dissolvente e cujo produto somente um "relatoverdico" (Foucault, Veyne).49

    44 R. Chartier, op. cit., p.14-15.45 Passo inicial de uma unidade do mtodo histrico que compreende os elementos sucessivos daheurstica-crtica-interpretao; Jrn Rsen, "Historische Methode", in C. Meier e J. Rsen, HistorischeMethode, Munique, DTV, 1988, p.76-77.46 Louis Althusser, Lire le Capital, Paris, Maspero, 1965, 2 v; P. Vilar, op.cit.; E.P.Thompson, The making...,op.cit. eMisria da teoria, Rio de Janeiro, Zahar, 1981; Nikos Poulantzas,Poder poltico y classes sociales en el

    estado capitalista, Mexico, Siglo XXI, 1970; Adam Schaff, Histria e verdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1982.47 K. R. Popper, Conhecimento..., op.cit.;A lgica..., op.cit.; Conjeturas e refutaes, Braslia, UNB, 1980; J. A.Maraval, op.cit.48 Paul Ricoeur, Histria e verdade, Rio de Janeiro, Forense; De linterpretation, Paris, Seuil; Hans GeorgGadamer, Wahrheit undMethode, Grundzge einer philosophischen Hermeneutik, Tbingen, 1975; Wolfgang J.Mommsen, "Wandlungen im Bedentungsgehalt der Kategorie des Versteheus, in C. Meier e J. Rsen,Historische..., op.cit., p. 200 e segs.49 Michel Foucault,Arqueologia do saber, Petrpolis, Vozes, 1972; Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975;Les mots et les choses, Paris, 1966; Microfsica do poder, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981; Paul Veyne,"Foucault rvolutionne 1'histoire", in Comment on crit lhistoire, Paris, Seuil, 1978.

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    e) a via meta-histrica, no sentido dado por Hayden White, na qual se associa a "histriapropriamente dita" e a "filosofia da histria" e onde se busca no os conceitos operacionais doconhecimento histrico, mas as "intuies poticas" (no sentido aristotlico) subjacentes,expressas nos "modos" formais da metfora, sindoque, metonmia e ironia; neste ponto devista, a verso cientfica do conhecimento histrico apenas uma das opes e, mesmo nela,

    os supostos epistemolgicos remetem-se a um nmero moral e esttico ainda mais profundo.50

    Muito pouco resta, portanto, da velha querela, que hoje soa como pr-cientfica esuperficial, em torno da subjetividade, objetividade, intersubjetividade ou neutralidade doconhecimento histrico, dado o grau de sofisticao terica a que, nas ltimas dcadas,chegou-se neste campo.

    O problema da objetividade, assim colocado, desdobra-se nas questes decorrentes danatureza do processo histrico e da explanao ou discurso histrico.

    1. A "natureza" do processo histrico

    A noo de processo enraiza-se no sculo XVIII, aparentando-se, etimologicamente, de progresso. Foi a denominao encontrada na biologia e na histria da Ilustrao paracaracterizar os fenmenos que escapavam ao modelo mecanicista, identificando-seerroneamente, como demonstrou Garcia Morente, com o tambm setecentista conceito deprogresso, isto , quando lhe foi agregado um sentido valorativo.

    No o caso de entrar na discusso filosfica provocada pelos estudos de Bergson ede Whitehead sobre a idia de substituir a "metafsica da substncia pela metafsica dafluncia", mas deve ser assinalado o fato de que, em muitas discusses epistemolgicas emetodolgicas sobre o conhecimento histrico - como a que mencionamos em Veyne -surgiram acusaes s diversas correntes marxistas, positivistas e evolucionistas justamentepela preocupao de encontrar, por trs dos fenmenos "aparentes" percepo, processosocultos que encaminhariam o devir histrico. Um confronto, alis, entre a Nouvelle Histoire eo marxismo acadmico francs das ltimas dcadas mostrar-se-ia fecundo, especialmente aodistinguir as "foras profundas" em Braudel ou Chaunu, na histria social e na histria dasmentalidades no marxista com as onipresentes "formaes sociais" e seus respectivos"modos de produo" dos historiadores marxistas.51

    A noo de processo histrico foi exaustivamente utilizada de modo implcito ouexplcito pela "histria-historizante", sublinhando, assim, o carter linear, sucessivo e porfases dos acontecimentos histricos, o que certamente contribuiu para o desgaste do conceito medida que se consolidou a oposio ao historicismo e ao objetivismo positivista, na primeirametade deste sculo.

    Tais crticas, representadas entre outras correntes, como j foi observado, pela NewHistory norte-americana, pelo movimento dos Annales e pelo estruturalismo antropolgico,num primeiro momento, fizeram substituir noo de um processo unilear e hegeliano uma

    50 Hayden White,Metahistria, So Paulo, EDUSP, 1992.51 Entre o marxismo sovitico e osAnnales, os contatos assumiram tom polmico com a publicao dos livros deJ.N.Afanasev, L'historisme contre lcltisme, Moscou, 1980, e M.N.Sokolova, L'historiographie franaisecontemporaine, Moscou, 1979, refutados por C. S. Ingerflom, "Le procs des Annales", in Annales, jun-fev1982, p.64 e segs. Braudel e a gerao seguinte, como Furet e Ferro, so em ambas as obras considerados"profissionais do antimarxismo" (C.S.Ingerflom, op.cit., p.66).

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    multiplicidade de "evolues" ou "processos", simultneos, s vezes reticulados e atantagnicos no mesmo quadro geogrfico e social: a proposta braudeliana de trs patamares,correspondendo a trs ritmos temporais diversos, ou a hiptese enunciada por Labrousse deque o nvel econmico retardado pelo social e este pelas mentalidades,52 supesimultaneidade e entrecruzamentos de processos ou "sries" de acontecimentos. Embora a serecuse, a despeito de algumas confluncias com o marxismo, a idia de uma

    estruturaarqutipo velada, ela um risco sempre presente em construes intelectuais eprocedimentos operacionais deste tipo.

    Mais profunda a interpretao que sublinha a descontinuidade radical dos processose sua constituio em ncleos que se agregam e desagregam em circunstncias conjunturaisespecficas, como em Foucault. A inovao da Histria da loucura (1961) e do Nascimentoda clnica (1964) est justamente na ruptura com uma concepo linear, "historicista", e noestudo de uma multiplicidade de saberes sobre aqueles objetos, perspectivas que seaproximaram das cincias humanas em As palavras e as coisas (1966) eArqueologia do saber(1969).

    A "revoluo" de Foucault, na expresso de Veyne, arrombou algumas portas53 eadentrou por outras j abertas, mas teve o mrito de trazer para a frente da cena terica

    questes como a do saber, da conceptualizao, da ruptura, do poder (que desenvolveria maistarde) e da crtica idia de progresso.

    Mais que tudo, mais importante mesmo que a defesa da descontinuidade, foi a negaoda essncia de categorias, conceitos e "realidades". Em nossa opinio, a questo dadescontinuidade reduz-se a mero problema formal se comparado concepo, to fecundapara a renovao da idia de processo histrico, de que no existem categorias e realidadesco-naturais ao homem ou cultura, mas definidos pela sua prpria historicidade e, portanto,assumindo papis diferentes - ou sequer existindo - em outras historicidades.54 Tal concepono nos remete, como j se sups, a qualquer historicismo, sobretudo hegeliano ou marxista,mas concepo existencial, Heidegger, de historicidade. irrelevante discutira existnciaou no de uma genealogia entre eles: mais significativo perceber que a historicidadefoucaultiana implica afirmar a radicalidade da existncia histrica do homem, isto , a rejeiodos resqucios de idealismo ou de realismo: nega, portanto, as concepes e as prticashistoriogrficas delas conseqentes, o que inclui as grandes metodologias sociais do sculoXIX.

    Mais especfica, mas no menos sintomtica, a reviso da histria cientficaconforme feita por Kuhn (1962)55 tambm a rompe-se com a idia de continuidade doconhecimento cientfico, ta mbm a o "progresso" do conhecimento em determinados camposfaz-se nos limites de uma comunidade acadmica pela refutao (Popper) de paradigmas,tambm a os conhecimentos so referidos a determinado contexto e no a uma evoluomacrolinear.

    52 P. Chaunu, "Conjoncture, strutures, systmes de civilisations", in Conjoncture conomique, strutures sociales;hommage E.Labrousse, Paris, Mouton, 1974.53 Com a afirmao da ausncia de nacionalidade no discurso e na prtica histrica. Paul Veyne, Como se escrevea histria; Foucault revoluciona a histria, Braslia, UNB, 1978, p.180-181. Diramos, da racionalidadecientificista, que o objeto visado por Foucault.54 H. L. Dreyfus e P. Rabinow,Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics, Chicago, CUP, 1982,

    passim; J. Revel, "Histoire des mentalits", in Andr Burguire, Dictionnaire des sciences historiques, Paris,PUF, 1986, p.456.55 Thomas S. Kuhn, A estrutura das revolues cientficas, So Paulo, Perspectiva, 1974, p.5 e segs. e psescrito.

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    Assim concebido o processo, reelabora-se toda a questo cognitiva da histria. Damesma forma como as vrias abordagens fsicas "descobriram" os diferentes nveis do real,tambm o encontro de "segmentos profundos", "rupturas e descontinuidades", "camadasinconscientes" e "tempos mltiplos" provoca o surgimento de diferentesobjetividade/objetivaes, com resultados cientficos diversos e relativos a cada nvel deobservao do mesmo quadro histrico considerado.

    2. A explanao histrica: da abstrao teoria

    Na sua verso inglesa e norte-americana, a questo da explanao histrica assumiu,freqentemente, o carter de anlise lgica e conceitual da exposio historiogrfica,entendida como produto final de uma investigao ou de questes tericas; o sentido que lhedo por exemplo, Gardiner,56 Mandelbaum57 e Drays58. Na verso alem mais recente (Rsen,Koselleck, Jaeger), tem o carter de fundamento e controle epistemolgico e metodolgico daobjetividade e da subjetividade do produto historiogrfico, atravs, entre outras possibilidades,da crtica dos conceitos e categorias utilizados pelos historiadores, de seus procedimentos

    metodolgicos ou da sntese entre teorias parciais, explicaes, descries e narrativaspunctuais.59

    Na verso francesa do movimento dos Annales, ela buscou ser, originalmente, adescrio historiogrfica dos resultados da investigao conduzida sob a forma de problemas(no sentido da "histria-problema" de L. Febvre). Embora fiel a este suposto, alis anlogo scorrentes cientficas dominantes em outras reas, autores como Veyne, Furet e Certeauintroduziram nos anos 60 e 70 variantes como a reduo da explanao histrica a umenredo;60 a explanao construda a partir da interpretao de grandes massas documentais,atravs da histria serial61 ou a explanao reveladora de discursos marcados pela alteridadeentre o sujeito cognoscente (e seu referencial cultural) e o objeto conhecido, isto outrosujeito humano.62

    A explanao ou o discurso historiogrfico assumem, desta forma, seu carterreferidoe datado, no mais - ou no mais apenas - atravs de quaisquer formas subjetivas (percepesindividuais, condicionamentos ideolgicos, por exemplo), mas por instrumentoscognitivamente controlveis (mecanismos lgicos, procedimentos metodolgicos, opesepistemolgicas). A explicao que da flui torna-se caleidoscpica (como um jogo de xadrezsem papis pr-determinados para as diferentes peas, na feliz imagem de Veyne)63 ou56 Patrick Gardiner, The nature of historical explanation, Londres, CUP, 1968, p.45 e segs.57 Maurice Mandelbaum, "Historical explanation: the problem of covering laws, in R. Nash, op. cit., v. II,

    p.124 e segs. Este estudo trata das seqelas do artigo de Carl Hempel sobre leis histricas, considerando asprincipais teses pr e contra aquela verso, at o incio dos anos 1960.58

    William Dray,Filosofia da histria, Rio de Janeiro, Zahar, 1969, p.36 e segs.59 Dos trabalhos j citados, destacaramos K. Adam e W. Schulze, Teil und Ganzes, reunindo contribuies sobreo problema do todo e da parte na biologia, economia e sociologia; na histria (relaes entre macro emicro-histria, o problema todo-parte no pensamento do final do sculo XVIII, singularidade e histriacomparada e o caminho da historiografia alem para a histria social aps 1945); e os aspectos metodolgicos nahistria. Tambm o Dicionrio Fischer de conceitos histricos, op.cit., orienta-se nesta direo.60 Paul Veyne, Comment on crit l'histoire, Paris, Seuil, 1970, p. 11 e segs.61 Pierre Chaunu, "L'histoire srielle: bilan et perspectives", Rvue Historique, abr-jun 1970; Franois Furet, Aoficina da histria, Lisboa, Gradiva, s/d, p.59 e segs.62 Michel de Certeau,A escrita da histria, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p.180 e segs.63 Paul Veyne, Comment... (1978), p.236.

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    lacunar (no sentido de que, embora baseado em provas, o conhecimento do historiador cheio de incertezas ou lacunas, que ele pode tentar neutralizar por procedimentos como o daretrodio - em Veyne - ou das opes de verossimilhanas, conforme sugeridas em NatalieDavis e Carlo Ginzburg).64 Em ambos os procedimentos, porm, trata-se de narrativafundamentada em alguns tipos de prova, indcio ou deduo, objetiva, portanto, e no umexerccio subjetivo ou ficcional.

    Tal concluso, ainda no plenamente conscientizada, no produziu ainda todos os seusefeitos no campo das diferentes especialidades em que se exerce atualmente o ofcio dohistoriador e, muito menos, no seu territrio terico.

    Ela permanecer, entretanto, circunscrita e pouco relevante, para no dizer incua, seno for relacionada s transformaes globais da epistemologia contempornea: como asdemais cincias de ponta, a histria se encaminha cada vez mais para a abstrao, para aconstruo de uma problemtica referida comunidade cientfica e para o refinamento de suaconceptualizao.

    Sobre a abstrao, alis, a entendemos enquanto aspecto "formal" ou categoriaanaltica de pensamento, e no enquanto "explicao material", teoria ou filosofia "materiais"da histria. A ressalva importante, uma vez que um autor que temos citado com freqncia -

    Paul Veyne referindo-se ao historicismo afirma que "as teorias so o que menos se necessita;em histria, o ncleo de um problema no jamais terico (enquanto pode s-lo nas cincias);tampouco est na crtica dos documentos. Seja para explicar a queda do Imprio Romano ouas origens da Guerra de Secesso, as causas esto ali, dispersas".65

    Mais adiante, mas no mesmo argumento, afirma que "a histria est condenada a tentarcaptar a realidade de uma rede de abstraes", procedimento cujo risco o de buscar as"substncias que constituem a histria".66

    Trs questes surgem a e demandam esclarecimentos.Em primeiro lugar, as teorias explanatrias da "histria material", s quais se refere o

    autor, certamente so plenamente dispensveis, e admiti-Ias seria recair numa prticahistoricista que no mais cabe na epistemologia contempornea. Seja sob a forma esvaziadadas "filosofias da histria" do sculo XX, seja sob a forma das grandes metodologias daanlise social do positivismo, evolucionismo ou marxismo, pr-definir uma "teoria" admitir-lhe uma materialidade que se choca com a linha epistemolgica que vimosdesenvolvendo. Tais "teorias" so absolutamente... anti-histricas ou antiepistemolgicas (nosentido de uma epistemologia relativista).

    Uma das virtualidades da epistemologia em relao histria exatamente orefinamento de sua autolocalizao terica e de seu aparelho conceitual; certamente no asugesto de modelos interpretativos ou a descoberta de "nmeros" "tipicamente histricos". Oprimeiro problema metodolgico, no epistemolgico; o segundo no passa de resquciometafsico.

    Em segundo lugar, o uso da noo de causa gera equvocos desnecessrios. Se Veyne ofaz, devido sua herana para com Aron e deste com Weber, embora no trecho citado ele autilize no no sentido metodolgico weberiano, mas no de senso comum. Ora, substituir uma"teoria material" por uma explicao derivada do senso comum no parece ser nenhum avanocognitivo (mesmo para quem, como Veyne, no considera a histria uma cincia).

    64 Carlo Ginzburg,A micro-histria e outros ensaios, Lisboa, Difel, 1991, p.65.65 Paul Veyne, Comment... (1970), p.146.66 Idem, p.148.

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    O melhor encaminhamento questo seria, a nosso ver, a elaborao de umaproblemtica em torno do eixo teoria (= pergunta) x praxis (documental) e a construo deconceitos ad hoc, que a encaminhasse ou solucionasse.67 O prprio Veyne, alis, em textosseguintes, parece encaminhar-se para, pelo menos, a segunda fase desta soluo.

    Finalmente, afirmar que a "histria est condenada a tentar captar a realidade de umarede de abstraes" vale, igualmente, para qualquer cincia, desde que no se tenha dela uma

    concepo positivista: basta lembrar, por exemplo, a relao que existe, na fsica, entretomos e istopos. Mais uma razo, portanto, para o refinamento terico (no sentido de"histria formal") do conhecimento histrico, o que certamente ter conseqncias em nvelde "histria material", pois esta "rede de abstraes" ser, na "realidade", uma "rede derelaes", na expresso de Maraval -o que de pronto elimina qualquer concepo essencialistaou substancialista de buscar nmeros trans-histricos.

    Por outro lado, a propsito desta teorizao em Histria, tornou-se relativamentefreqente a queixa de que os historiadores escrevem cada vez mais para sua prpriacomunidade e cada vez menos para o pblico. Isto verdade, hoje mais do que h dcadas.Mas no h o que lamentar: o conhecimento cientfico tende cada vez mais ruptura com osenso comum e, mesmo quando no o faa, muitas vezes no se adapta linguagem comum;

    cada vez mais so necessrios categorias e conceitos que no usamos no quotidiano, mas quenos aproximam da problemtica estudada, mediatizando o conhecimento.

    Como em outras cincias, a da histria j no pode, atualmente, em determinadoscampos, dispensar o uso de duas linguagens: a cientfica, que faz avanar o conhecimentoatravs da refutao de teorias e reelaborao de problemticas, e a da divulgao cientfica oucultural, que se destina ao pblico no-especializado.

    Por via de conseqncia, mudam a concepo de processo histrico e o papel daconceptualizao.

    3. A explanao: da conceptualizao ao problema

    O problema da conceptualizao dos mais antigos da tradio filosfica ocidental. Anecessidade de apreender logicamente os dados brutos da observao foi problema enfrentadopor todas as correntes de pensamento, ligando-se intimamente questo da subjetividade ouda objetividade admitida para o conhecimento. Croce, a este respeito, dizia que o historiador-como qualquer outro observador - seria incapaz de apreender quaisquer dados empricos semconceitu-los de algum modo (A lgica como cincia do conceito puro).68

    Elo de ligao entre o real e o investigador, a relao entre o conceito e a realidade queprocura descrever ou apreender varia de acordo com a subjetividade ou a objetividade supostanos diversos campos do conhecimento e abordagens epistemolgicas e metodolgicas. O

    conceito assim concebido variou da sua plena identificao com o puro fato material, como noresmo, ao seu total descomprometimento com o real, como no solipsismo.Dentre as vrias definies, tipologias e aplicaes dos conceitos, so relevantes, para

    o conhecimento histrico, alm da de Aristteles, as de Marrou, Croce, Weber e Veyne.A tipologia clssica, aristotlica, que fundamentou as demais ou serviu-lhes de

    referencial, considera os fenmenos como pertencentes a categorias universais, particulares ou

    67 Arno Wehling, Os nveis..., p.30 e segs.68 Benedetto Croce,Logica come scienza dei concetto puro, Bari, Latetza, 1958, p.182 e segs.

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    singulares, utilizando um critrio de generalidade. Marrou, por sua vez, os agrupa em quatrograndes categorias, os j muito conhecidos conceitos de "ambio universal", de usoanalgico ou metafrico, os tipos ideais Weber e os historicamente condicionados.69 Taisclassificaes, naturalmente, no passariam parcialmente pelo crivo de um L. Febvre, porexemplo, para quem no existiria um homem "eternamente igual a si mesmo".

    Tambm sem preocupao com a relatividade histrica o critrio lgico de Croce, ao

    considerar o conceito um conjunto de juzos afirmando de um sujeito singular um predicadouniversal (S P).70

    Para Weber, no seu esforo para apresentar uma alternativa metodolgica aomarxismo, os conceitos de tipo ideal, como a noo de causalidade, constituem importantesinstrumentos contra a idia de "leis objetivas" da histria, incorporando anlise sociolgicatocquevilliana elementos da tradio hermenutica.71

    A concepo de Paul Veyne a de que a funo do conhecimento histrico conceituar o "todo confuso" do devir, o que se caracterizaria como um trabalho maisfilosfico do que cientfico.72

    Alis, para Veyne, somente pequena parte da histria pode ser objeto da cincia,aquela em que os acontecimentos humanos so explicados semelhana dos naturais, com

    caractersticas necessrias e gerais. No processo histrico existiriam, assim, elementosnecessrios, suscetveis de explicao fsica, as coisas que acontecem ordinariamente("cabelos embranquecem aos 40 anos", "cidades modernas possuem bairros comerciais") eelementospuramente acidentais ("Joo sem Terra passou por aqui"). A histria teria, assim,muito de acidental e alguns ncleos de "coisas necessrias" e de "coisas que acontecemordinariamente".73

    Tal fundamentao epistemolgica, claramente semelhante concepo de Kant sobrea compatibilidade entre o determinismo ao qual o homem estaria submetido como serbiolgico e sua liberdade moral (Idias para a histria de um ponto de vista cosmopolita)explica a ligao de Veyne com as teses de Aron, por sua vez ligado, via Weber, aosneokantianos.74

    Como no existem "chaves" da dinmica histrica, diz Veyne, porque no h motor dodevir,75 a explicao histrica no pode ser buscada em leis de inspirao newtoniana, masest baseada em silogismos implcitos na retrodio da narrativa, na preocupao de"preencher os claros" atravs de inferncias, retiradas por sua vez da vida quotidiana eamparadas numa suposta compreenso da "natureza humana": a isto se resumem as deduese indues que constituem a explanao histrica.76

    Isso no significa, segundo o autor, no haver progresso no conhecimento histrico,evidente nos textos de Bloch e Duby sobre um mesmo assunto. Mas este progresso no

    69 Henri I. Marrou,Do conhecimento histrico, Lisboa, Aster, s/d, p.136 e segs.70 Benedetto Croce, loc. cit.71 Max Weber,Die "Objektivitt Sozialwissenschaftlicher Erkenntnis, in Max Weber, SociologieWeltgeschichtliche Analysen Pilitik, Krner, 1964, p. 214 e segs., Arno Wehling, "Tocqueville e a razohistrica", inAnais da IV Reunio da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica,p.140 e segs.72 Paul Veyne,A histria conceitual, op.cit., p.64.73 Idem, p.65-66.74 Arno Wehling,"Kant e conhecimento ...", p.32 e segs.75 Paul Veyne,A histria conceitua!, op.cit., p.64.76 Idem, Comment... (1970), p.184 e segs.

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    consiste na "descoberta de mecanismos e motores", mas na conceituao no factual, numcrescendo de abstrao.77

    Este , justamente, o centro da crtica histrica de Paul Veyne. A conceituaohistrica fruto no de uma pesquisa experimental ou da descoberta, mas de uma apercepointelectual. Comparando o papel do fsico e o papel do historiador, Veyne afirma que,enquanto o primeiro deve descobrir a equao de um fenmeno ao segundo cabe "inventar

    conceitos"78

    Assim, o conceito assume caractersticas semelhantes ao tipo ideal weberiano, com oobjetivo de dar maior preciso ao conhecimento histrico. Ao contrrio do romancista, querecria o real, o historiador limitar-se-ia a dar-lhe seu equivalente conceituar.

    Os conceitos no nascem, entretanto, da pura anlise epistemolgica, mas do prpriouso social, inclusive ideolgico. Um dos trabalhos do historiador consiste, portanto, emcriticar sua polissemia.

    medida que o conhecimento histrico se refina conceitualmente, passa de uma"relao de valores" superficial para uma weberiana "razo de conhecer" ou "sociologia". Ou,na expresso de Veyne: "a conceituao faz passar do conhecimento da histria aoconhecimento da energia da histria e da natureza humana".79

    O refinamento conceitual da histria corresponderia, alis, no plano das cinciassociais, a idntico refinamento da fsica, ambas impulsionadas pelas sociedades modernas emmarcha para uma crescente racionalizao.80 A compreenso conceituar de uma scoletividade, com a condio de ser totalmente apreendida, diz perigosamente Veyne,repetindo Aron, talvez revelasse a essncia de todas as coletividades.81

    A diferena entre a conceituao fsica e a histrica, finalmente, estaria em que osconceitos fsicos definir-se-iam more geometrico, enquanto os conceitos histricosconstituir-se-iam numa tpica, isto , numa formulao em que se admite no s desconhecero ponto de partida como omitir uma possibilidade que poderia resolver o problema.82

    No possvel, entretanto, como fez Veyne, separar a tpica da abstrao controlada.A conceptualizao s se realiza plenamente se possuir um slido fundamento

    terico... mesmo que no seja epistemolgico. Isto explica por que os conceitos einterpretaes de T1icdides ou de um historiador providencialista so mais slidos e maisclaramente conscientizados do que os dos cronistas "meramente narrativos" ou mesmo do queos da maioria dos historiadores entre Ranke e a Segunda Guerra Mundial. Estes ltimosfreqentemente pressupunham conceituaes, atribuindo-lhes uma validade universal (ocapitalismo grego em Glotz, por exemplo), que no resistem anlise lgica mais superficial.

    Onde ir buscar o historiador contemporneo seus pressupostos? Fora da histria: nateologia, na tica, no direito natural? Em algo to vago (embora com freqncia ocorra, comolembra Veyne aprovadoramente) como a "experincia da via quotidiana"?

    77

    Idem,A histria conceitual, op.cit., p.68.78 Idem, p.69-70.79 Idem, p. 81.80 Idem.81 Idem, p.82. Dizemos "perigosamente" porque tal expectativa pode significar uma recada idealista na medidaem que, de simples procedimento heurstico, esta atitude alcance um carter essencialista, retornando-se ao"motor da histria". A decidida opo foucaultiana posterior parece ter eliminado este tipo de dvida em Veyne.Reflete, entretanto, srio problema do conhecimento histrico: a freqente impreciso entre o terreno

    propriamente histrico e o da historiografia ou das formalizaes conceituais. Por isto mesmo adotamos,operacionalmente, a dicotomia de Mandelbaum entre uma "histria material" e uma "histria formal".82 Paul Veyne,A histria conceitual, op. cit., p. 82.

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    No. Parece-nos razovel que v busclos numa fundamentao terica comum sdemais abordagens epistemolgicas (pensamos na tipologia de Blanch) e ao mesmo tempoparticular da "epistemologia das sucesses". A operacionalizao desta epistemologiahistrica far-se-ia j se faz freqentemente, muitas vezes de forma emprica, na investigaohistrica contempornea, em especial na histria econmica, na histria social e na histriadas mentalidades - compatibilizando conceptualizao,por um lado, com narrao (afinal, o

    substrato, historicamente concreto, do conceito), por outro.A ligao entre ambos o problema histrico. A capacidade de criar problemticas

    inerente constituio da cincia ps-paradigma clssico e somente pela capacidade jdemonstrada em vrios caminhos diferentes (social, econmico, mental) de produzir, resolvere encaminhar problemas, o conhecimento histrico provou-se cientfico, ou com "ncleos" decientificidade.

    No , e aqui nos separamos de Veyne, por no ser capaz de encontrar um "motor" dodevir que a histria deixa de ser um campo cientfico. Este raciocnio combina aristotelismo efsica newtoniana, desemboca no cientificismo do sculo XIX e no vai alm, pois ignora arevoluo epistemolgica posterior. Poder-se-ia tambm indagar: qual o "motor" da fsica, sea lei varia com o nmero e h vrias fsicas?

    Um campo do saber torna-se cientfico pelas suas possibilidades de problematizao,isto , por possuir objetos considerados relevantes pela lgica interna do campo e/ou pelasociedade, teorias concorrentes disponveis, mtodos, um certo nmero de questes a resolvere um "estado da arte" que lhe permita identificar aporias, avanos e retrocessos nainvestigao.

    A problemtica histrica assim elaborada - e o sabe atualmente qualquer pesquisadorde histria com preparo adequado permite-lhe um conhecimento mais elaborado (nonecessariamente mais "aprofundado") do que o das geraes precedentes, orientando oemprego dos instrumentos conceituais e a tcnica narrativa.

    Combinando as categorias at aqui revistas, poder-se-ia admitir:

    a. necessrio traar-se um territrio de objetividade (ou objetivao) do conhecimentohistrico, capaz de faz-lo lgico (internamente articulado) e coerente (compatibilizandopremissas, meios e produtos), para ampliar o grau de preciso e intersubjetividade, nacomunidade cientfica, deste conhecimento;

    b. a explanao histrica exerce-se sobre um objeto, que o processo histrico entendidocomo uma rede relacional, ou sries de acontecimentos/fenmenos entrecruzados e queadmitem uma variedade de significados, dados pela perspectiva epistemolgica-metodolgicado historiador, conforme este se refira a tempos curtos, mdios e longos, a relaes de poder,

    de produo, de trocas sociais e de valores ou, ainda, a estados/manifestaes conscientes ouinconscientes, individuais ou coletivos, efetivos ou simblicos;

    c. a explanao histrica comporta dois planos complementares de exteriorizao, articuladospelaproblemtica: o da conceptualizao, que consiste na aplicao de conceitos j existentess situaes consideradas, ou inveno de novos, e o da narrao, que encadeia conceitos edados numa estrutura explanatria objetiva, isto , lgica e coerente, cuja preciso permiteatingir aquele territrio de objetividade, ainda que se refira a objetos cuja percepo, por estar

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    fora da zona de conscincia de nossa psiqu, no argumento de Veyne, parea imprecisa eimpressionista.

    Por outras palavras, sustentamos que no s possvel como desejvel que oconhecimento histrico atinja um territrio de objetividade, mesmo que no exista, aocontrrio de Paul Veyne,83 alguma "essncia", no sentido plenamente filosfico, das

    coletividades.Embora relativamente pouco explorado e s vezes at hostilizado por lhe faltar o

    carter de "histria positiva", "documental", o campo da histria da historiografia, nesteaspecto, crucial para o aperfeioamento terico da cincia histrica, ou mesmo de modomais lato, do conhecimento histrico. Por que no avaliar criticamente a produohistoriogrfica com o fim de refinar procedimentos intelectuais de nossa prpria "operaohistoriogrfica"? No h, evidentemente, nenhuma razo epistemolgica, lgica oumetodolgica para no faz-lo, exceto o argumento que afirma no ser este tipo deinvestigao ... histria. De fato no o : trata-se de, conforme o objeto, epistemologia oumetodologia da histria. Mas no se conhece, na histria do pensamento cientfico (vale dizerdo sculo XVI em diante) nenhuma cincia que tenha se desenvolvido sem uma reflexo

    tericometodolgica sobre sua prpria natureza, objeto, procedimentos e fins.No desenvolvimento de uma histria da historiografia, alis, j existem, seno

    modelos, pelo menos alguns procedimentos encaminhados que ultrapassam a antigaconcepo cronista ou catalogrfica. Pensamos no tipo de trabalho elaborado por Carbonell,84

    apoiado na sociologia do conhecimento, e no de Koselleck,85 buscando identificar a lgicainterna da construo do discurso.

    A identificao das estratgias narrativas e o uso consciente ou inconsciente deconceitos histricos ou categorias mais abrangentes pelos historiadores e (por que no?) peloscronistas, pode enriquecer a compreenso do papel desempenhado pelo conhecimentohistrico em diferentes culturas e ajudar no aprofundamento da questo do significado dahistoricidade e da temporalidade nas sociedades, particularmente quando tais concepes sechocam nos "encontros de culturas" - como ocorreu na dominao romana, no inicio da IdadeMdia ou na colonizao da Amrica.

    Finalmente, cabe observar que, assim como a metodologia da histria aperfeioa seuinstrumental para passar do individual ao coletivo, do explcito ao no-dito, epistemologiahistrica cabe aperfeioar teoricamente o conhecimento histrico, sedimentando o caminho daabstrao, a partir no reais das categorias filosficas a priori (filosofia do sculo XVIII) oucomo desveladora de uma arquitetura velada pelas "aparncias" ou pela "falsa conscincia"(metodologia do sculo XIX), mas da permanente interao entre a teoria e a prtica dapesquisa. Esta interao baseia-se cada vez mais no suposto epistemolgico que define o

    objeto histrico como o fenmeno (e no mais o fato), o mtodo histrico como a equao doproblema (e no mais a formulao da lei) e o produto como sendo o conceito (e no mais adescrio).

    83 Pelo menos em sua fase weberiana-aroniana anterior forte influncia de Foucault.84 Charles O. Carbonnel, Histoire et historiens - une mutation idologique des historiens franais, 1865-1885,Toulouse, Privat, p.45 esegs.85 R. Koselleck, H. Lutz e J. Rsen,Formen der Geschichtscrebung, Munique, DTV, 1982, passim.

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    CONCLUSO

    A epistemologia histrica relaciona-se, como procuramos demonstrar, com aepistemologia geral, na medida em que esta procura equacionar problemas oriundos da quebrado paradigma clssico, em suas verses cientfica, filosfica e histrica, fornecendo subsdiospara o aperfeioamento do processo cognitivo da cincia enquanto uma das formas gerais do

    conhecimento.O papel de uma epistemologia histrica desdobra-se, assim, em dois aspectos

    simultneos: ela uma das abordagens epistemolgicas possveis da epistemologia geral,devido natureza especfica de certos fenmenos que se desenvolvem no territrio da"epistemologia das sucesses"; e fundamenta o "campo histrico", na medida que contribuipara seu aperfeioamento terico atravs do controle crtico de seus processos explanatrios,como a preciso conceitual e a lgica do argumento. Sob este aspecto cabe-lhe uma posio"nacionalista crtica" em face dos resultados tericos e no empricos - da investigaohistrica.

    Este ponto de vista poderia ser subscrito inclusive por aquelas posies nas quais apreocupao epistemolgica no , necessariamente, central, como as de Foucault e White,

    uma vez que a epistemologia teria papel geralmente corroborador mesmo em enfoques queremetessem para outros aspectos, como os estticos e os ticos.

    Por via de conseqncia, torna-se necessrio aclarar as relaes da epistemologiahistrica com a metodologia e a histria da historiografia. Com a primeira, ela cumpre o papelde eliminadora, neutralizadora ou resolutora das aporias cognitivas do conhecimentohistrico, que tm seqelas metodolgicas mas no so, especificamente, questesmetodolgicas: os problemas da objetividade/objetivaes na explanao, da natureza doprocesso, da elaborao conceptual, ou do significado das categorias apriorsticas nadelimitao da investigao. Em qualquer das duas grandes vertentes metodolgicas dahistria, a anlise de sistemas sociais ou a hermenutica, tais procedimentos epistemolgicosrevelam-se fecundos e promissores. Tal constatao no deve, obviamente, considerada toda aargumentao at aqui desenvolvida, implicar reduzir as virtualidades da epistemologiahistrica a mera propedutica metodolgica. Epistemologia e metodologia so setorescognitivos cujas relaes podem ser sumarizadas no sentido estritamente jurdico do conceitode autonomia: no so independentes entre si, nem vinculados so autnomos, porquerelacionam-se guardando sua prpria especificidade.

    Quanto histria da historiografia, ela , parece-nos, o campo por excelncia doexerccio daquele controle crtico dos processos explanatrios, no sentido que vimosempregando, de Canguillem, quando afirma ser a histria de uma cincia (e especialmente desuas concepes) o "laboratrio da epistemologia" daquela cincia.86

    Arno Wehling professor titular de teoria e metodologia da UFRJ e diretor do Departamentode Histria da UGF.

    86 Georges Canguillem,tudes d'histoire et de philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1979, p.12. Concepo queo autor francs retoma de Dijksterhuis,Die Mechanisierung des Weltbildes