Texto 1 por um ensino que deforme

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Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade Durval Muniz de Albuquerque Júnior Universidade Federal do Rio Grande do Norte Se aceitamos que a pós-modernidade é nossa condição histórica, como enunciam autores de tradição filosóficas tão distintas como Jean-François Lyotard, David Harvey e Frederic Jameson 1 , que estamos deixando de ser modernos, ou que jamais fomos modernos, como defende Bruno Latour 2 , podemos nos interrogar qual o lugar que ainda ocupam as instituições sociais que surgiram com o mundo moderno e que continuam ainda entre nós? Se aceitamos que, como enuncia Gilles Deleuze 3 , estamos deixando a sociedade das disciplinas, tão bem analisada por Michel Foucault 4 , e vivemos agora uma sociedade do controle, que papel ainda podem exercer as instituições que aquela sociedade disciplinar deu origem, a que mutações estão sujeitas para continuarem a funcionar em nossa sociedade? Se estamos em uma nova configuração histórica, a que mutações estão submetidos os lugares de sujeito, as identidades, as subjetividades, neste novo tempo e a que modalidades de processos de subjetivação estamos submetidos? Entre todas as instituições que a modernidade fez emergir, entre todas aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a constituição, a escola é uma das mais exemplares, entre outros motivos por ser destinada à produção de subjetividades, à produção de sujeitos, à construção e veiculação de identidades, à definição de lugares de sujeito. A escola é uma das instituições sociais da modernidade que continua existindo entre nós, nestes tempos pós-modernos. Instituição que ainda goza de prestígio social, se comparada com outras instituições modernas, como o manicômio e a prisão, cada vez mais contestados e defrontados com propostas imediatas de extinção ou reforma radical. Ainda não se imagina a possibilidade de uma sociedade sem escola, da mesma forma que achamos possível vivermos sem manicômios. Como é característica das instituições sociais, a escola, quase sempre, nos aparece naturalizada, como se sempre tivesse 1 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002; HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992; JAMESON, Fredric. Pós- Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987. 2 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 3 DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, pp. 219-226. 4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 33 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

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Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Se aceitamos que a pós-modernidade é nossa condição histórica, como enunciam

autores de tradição filosóficas tão distintas como Jean-François Lyotard, David Harvey e

Frederic Jameson1, que estamos deixando de ser modernos, ou que jamais fomos

modernos, como defende Bruno Latour2, podemos nos interrogar qual o lugar que ainda

ocupam as instituições sociais que surgiram com o mundo moderno e que continuam

ainda entre nós? Se aceitamos que, como enuncia Gilles Deleuze3, estamos deixando a

sociedade das disciplinas, tão bem analisada por Michel Foucault4, e vivemos agora uma

sociedade do controle, que papel ainda podem exercer as instituições que aquela

sociedade disciplinar deu origem, a que mutações estão sujeitas para continuarem a

funcionar em nossa sociedade? Se estamos em uma nova configuração histórica, a que

mutações estão submetidos os lugares de sujeito, as identidades, as subjetividades, neste

novo tempo e a que modalidades de processos de subjetivação estamos submetidos?

Entre todas as instituições que a modernidade fez emergir, entre todas aquelas que

a sociedade disciplinar proporcionou a constituição, a escola é uma das mais exemplares,

entre outros motivos por ser destinada à produção de subjetividades, à produção de

sujeitos, à construção e veiculação de identidades, à definição de lugares de sujeito. A

escola é uma das instituições sociais da modernidade que continua existindo entre nós,

nestes tempos pós-modernos. Instituição que ainda goza de prestígio social, se comparada

com outras instituições modernas, como o manicômio e a prisão, cada vez mais

contestados e defrontados com propostas imediatas de extinção ou reforma radical. Ainda

não se imagina a possibilidade de uma sociedade sem escola, da mesma forma que

achamos possível vivermos sem manicômios. Como é característica das instituições

sociais, a escola, quase sempre, nos aparece naturalizada, como se sempre tivesse

1 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002; HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992; JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987. 2 LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 3 DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, pp. 219-226. 4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 33 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

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existido, como se não fosse uma criação social e histórica recente, como se não fosse

pensável o seu desaparecimento. Ao mesmo tempo, vozes de todos os lugares da

sociedade enunciam a crise da escola e, como também é comum na história das

instituições modernas, propõem a sua urgente e necessária reforma.

Nesta anunciada crise da instituição escolar, um tema que se debate, cada vez com

mais vigor, é o lugar do professor. Como fica o professor nesta realidade escolar que

parece se tornar cada vez mais hostil às suas pretensões de ensinar, de ser o sujeito da

formação dos alunos? Atravessada e sitiada por mudanças econômicas, políticas, sociais

e culturais diversas, a escola e com ela a profissão docente, tal como foi definida na

modernidade, parece estar em processo de se inviabilizar, ou, no mínimo, de perder a

importância e a centralidade social que já teve. O desprestígio social do professor, da

profissão docente, talvez tenha antecedido o próprio desprestígio social da escola, do

ensino escolar, talvez tenha sido um dos primeiros indícios de que a instituição escolar já

não gozava da irrestrita legitimidade social que ainda se acreditava possuir. Este

desprestígio social do professor não se materializa, apenas, na redução progressiva de sua

remuneração, em todos os níveis de ensino, mas no próprio desprestígio da profissão, na

perda de status, de valor simbólico da profissão na vida social.

Caberia, portanto, perguntar-se: o que provoca esta crise da instituição escolar e

por extensão da profissão docente? Se a transição para uma sociedade pós-moderna

implicou numa crise da escola, por que isto ocorre? E diante deste quadro, caberia ainda

se indagar, se ainda é possível ser professor ou o que poderia ser ensinar nesta sociedade

pós-moderna. Tentarei neste texto esboçar algumas análises e levantar algumas possíveis

respostas para estas questões. Questões difíceis, notadamente para nós historiadores, que

por muito tempo fomos treinados para ignorarmos o tempo presente, nos refugiando no

passado, que seria pretensamente uma temporalidade concluída, fechada, da qual

poderíamos apanhar uma verdade de conjunto. Fomos aconselhados sempre a não nos

aventurarmos na análise do presente, porque este ainda está em fluxo, este ainda está em

movimento, estamos misturados e implicados nele e isto dificultaria a pretensa

abordagem objetiva e distanciada desta realidade. Princípio da alienação dos

historiadores, regra que facilitava a estes profissionais se tornarem agentes da legitimação

justamente dos poderes do presente, esta deve ser abandonada para que possamos ter uma

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função social que não seja a da conservação e da manutenção do status quo. A

desnaturalização do presente, a sua colocação numa perspectiva temporal, a sua conexão

aos devires, é a nossa tarefa. Enunciar os pontos de fuga, os pontos de sutura, as

virtualidades que habitam nosso tempo, pode ser uma das tarefas que ainda temos a

cumprir.

A escola moderna foi ideada como uma instituição que deveria formar o cidadão

burguês, que deveria educar sob os princípios da razão, que deveria explorar as

potencialidades das faculdades humanas para tornar o homem um ser superior, sendo

capaz de torná-lo um ser livre, dono de si mesmo, consciente de si, da natureza e da

sociedade que o cercava. A escola tinha, seja na versão iluminista, seja na versão

romântica, a tarefa humanista de fazer do homem o senhor do mundo e de si mesmo. Aí

se devia transmitir o saber que iria fazer a criança sair de seu estado de menoridade e

atingir o estado de maioridade, pelo domínio racional do mundo, superando os mitos, as

mistificações, as superstições, o estágio pré-científico de domínio do mundo e da

sociedade. A escola prometia preparar cidadãos, pessoas que amassem a pátria, que

amassem a espécie, que estivessem dispostas a se sacrificar em nome do bem público, em

nome de sua pátria, em nome da humanidade. A escola surge, pois, como uma

maquinaria destinada a produzir sujeitos, a produzir subjetividades, a produzir corpos

treinados e hábeis, a produzir formas de pensamento e de sensibilidade adequados à

ordem social burguesa. A escola surge como uma das instituições destinadas a disciplinar

corpos e mentes, a disciplinar o próprio saber, sua produção e transmissão. A escola

surge como local de produção de subjetividades serializadas e massificadas, ao mesmo

tempo em que prometia formar indivíduos.

Nascida do processo de solapamento da centralidade da família no processo de

educação da criança, nascida do processo de governamentalização que leva o Estado a

interferir, cada vez mais, na vida doméstica, a substituir muitas das atribuições antes

reservadas a pais, preceptores, tutores, governantas, amas, etc., a escola assume tarefas

que, à medida que a sociedade se complexifica cada vez mais, que se massifica, com a

entrada de indivíduos pertencentes a todas as camadas sociais, não pode mais atender.

Embora seja mantida, em nível dos discursos, a responsabilidade das famílias em relação

á educação das crianças, à medida que se torna uma tarefa de Estado, leva a um

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afastamento progressivo dos pais da escola e à crescente entrega da educação dos filhos

ao aparato escolar, que tende a se expandir para atendê-las cada vez mais precocemente,

desresponsabilizando os pais de tal tarefa, processo que atinge todas as camadas sociais.

A chamada crise da escola pública se dá, justamente, no momento em que os filhos das

camadas populares adquirem o direito e as condições mínimas de nela ingressar. Elitista

em sua formulação, pensada para a formação das elites dirigentes, embora desde o

começo o discurso a destine ao povo, a escola se vê inviabilizada quando grupos sociais

com valores, comportamentos, hábitos, costumes os mais diversos vêm aí se encontrar. A

cultura escolar, uma cultura marcada por valores burgueses, por valores de classe média,

se vê confrontada com alunos que têm comportamentos, valores, costumes, formas de ser,

cada vez mais difíceis de conviver pacificamente. Os conflitos entre pessoas com

concepções sobre o mundo bastante diversas, com experiências de vida bastante

diversificadas, se tornam inevitáveis. Mesmo nas escolas privadas, nas escolas onde o

púbico é mais homogêneo quando se refere à origem social, o choque vai se dar,

principalmente, com os professores, originários, quase sempre, de outra realidade social,

à medida que o desprestígio da profissão atrai para ela pessoas das camadas populares. O

desnível social entre alunos e professores dará origem a uma inversão da hierarquia de

poder tradicional na sala de aula. Numa sociedade da mercadoria, do espetáculo, do status

sinalizado por símbolos externos de riqueza, o professor proletarizado vai, cada vez mais,

destoar de sua clientela. Pensada como instituição disciplinadora, a escola passa a viver

uma crise da disciplina. As atitudes de delinqüência, tal como entende Michel de

Certeau5, vêm cada vez mais habitar o espaço ordenado, disciplinado da sala de aula. O

aluno rebelde, mal comportado, o aluno problema, torna-se uma norma, e não uma

anormalidade, uma anomalia a ser cercada, reprimida, extirpada. Os sistemas

classificatórios que imperavam na escola, apanágio de toda instituição moderna, seus

códigos internos de funcionamento, seus códigos que marcavam fronteiras, que instituíam

hierarquias, que definiam inclusões e exclusões, que decidiam o prêmio e a punição, que

definiam excomunhões e comunhões, parecem entrar em ruína. A escola, uma instituição

voltada a reproduzir e ensinar a ordem, se vê tomada pela desordem. E no meio destas

mutações, atônito, o agente principal de toda esta maquinaria, o responsável pela

5 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 2000.

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aplicação, quase sempre irrefletida e mecânica destes códigos, o professor, que vê sua

autoridade tradicional contestada, que vê sua centralidade no processo ensino-

aprendizagem questionada.

Nascida do discurso humanista, do pensamento político liberal, a escola é

inicialmente pensada como uma atividade inerente às atribuições do Estado, que deve

preparar a elite dirigente que vai ocupar os postos da administração pública, que deve ser

racionalizada e gerida profissionalmente. A burocratização do Estado moderno, como

definiu Weber6, depende da formação de técnicos pelo ensino escolar. Este também deve,

já no começo do século XX, prover de mão-de-obra especializada as empresas

capitalistas em expansão cada vez mais acelerada. Inicialmente pensada como uma

instituição distanciada dos interesses imediatos do capital, ao longo do século XX, as

escolas se tornaram lucrativo ramo de negócios, em que poderosas empresas vieram

atuar. As boas intenções definidas no projeto que deu origem à escola moderna se vêem

assim atravessadas por interesses mercantis, que a tornam um simples investimento, tanto

da parte do empresário, como em muitos casos por parte dos próprios alunos, que ali vão

buscar apenas um título que lhes dê acesso ao mercado de cargos e funções no Estado,

nas empresas ou nas profissões liberais, sem que a preocupação seja primordialmente

com a aquisição de saberes e habilidades.

No Brasil, uma sociedade profundamente hierárquica e excludente, a escola foi,

durante muito tempo, um privilégio de classe, de etnia e de gênero. A escola estava

destinada à formação de uma dada elite que se dizia branca, notadamente dos homens

filhos destas elites. Pensar que só a partir dos anos cinqüenta do século XX, o ensino

começa a se massificar no Brasil, a chegar à zona rural, outra realidade comumente

excluída, a ser acessível às mulheres, a dar acesso às camadas médias e alguns elementos

da raça negra, que ainda lutam hoje em dia por pleno acesso a ela, dá a medida do caráter

excludente desta escola. Normalmente se lamenta a perda de qualidade do ensino público

no Brasil, mas poucas vezes se diz que isto ocorreu, justamente, quando este deixou de

ser voltado para a formação das elites sociais. Este processo nós estamos assistindo nas

Universidades, em nossos dias. Da mesma forma não podemos deixar de associar o

declínio do prestígio social da profissão de professor, com o processo de feminilização da

6 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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profissão, notadamente, no ensino básico, ou ao fato desta profissão ter passado a ser

demandada, preferencialmente, por pessoas advindas dos setores de classe média baixa

ou mesmo dos setores populares. Isto gera uma espécie de círculo vicioso: por ser uma

profissão desqualificada no mercado de trabalho, ela atrai, no momento do acesso através

dos exames vestibulares, pessoas advindas das camadas populares, que tiveram uma

formação escolar deficiente, e estas podem demandá-la, justamente, por seu menor

prestígio.

Numa sociedade onde a informação circula em abundância através de várias

centrais de distribuição de sentido, em que a produção de subjetividades e de sujeitos, em

que a produção de identidades se vêem cada vez mais descentradas da escola, em que as

mídias, as tecnologias de informação, a circulação eletrônica do saber, a própria

diversidade das possibilidades de experimentação e de aprendizado trazidas pela vida

urbana, cada vez mais complexa e diversificada, o espaço escolar tradicional foi, cada vez

mais, um espaço desinvestido de significação, de desejo, de sedução para os alunos e,

mesmo, para professores, muito desmotivados e quase sempre encarando o ensino como

uma mera obrigação, um trabalho assalariado como outro qualquer: alienado, tedioso,

repetitivo, massificado, pouco criativo, uma tarefa que dela se tenta livrar o mais rápido

possível. O desencantamento da escola, o desinvestimento social na vida escolar trazem

para seu interior alunos e professores desmotivados, perdidos, sem objetivos claros,

preocupados apenas com a chancela que esta oferece para investimentos futuros na vida,

seus títulos e prebendas que passam ser o fim em si mesmo da vida escolar. A escola é

cada vez mais um espaço desinteressante, um espaço que revela toda a engrenagem

disciplinar que a fundamenta, sem oferecer em contrapartida nenhuma compensação

simbólica, imaginária, para o seu existir. A escola, como vários projetos modernos, diante

de seu aparente fracasso, poucas alternativas tem a oferecer.

Mas será que a escola é mesmo um fracasso, será mesmo que ela está em crise?

Michel Foucault7 ao estudar a prisão, outra instituição moderna, vai chamar atenção para

o fato de que desde que surgiu a prisão é contestada quanto à sua eficácia, quanto à sua

capacidade de atender a seus objetivos. Desde que a prisão emergiu como forma

privilegiada de punir no Ocidente, que já se enuncia o seu fracasso e se propõe a sua

7FOUCAULT, Michel. Op. Cit.

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reforma. Mas, nos alerta Foucault, que reside, justamente, no seu alegado fracasso a

funcionalidade da prisão, a sua razão de existir, o seu sucesso em reproduzir as relações

de poder, a ordem social da qual surgiu. A prisão, ao contrário do que trombeteia os

discursos que a legitimam, desde o princípio, não está destinada àqueles que caem em

suas grades. A prisão, embora prometa recuperar e ressocializar aqueles que vêm para seu

interior, nunca foi capaz de fazê-lo e, no entanto, sua existência é pouco contestada,

justamente porque sua funcionalidade se destina propriamente a quem está no seu

exterior: ela serve para amedrontar, para fazer a ordem e o poder funcionar junto àqueles

que ainda estão fora dela. A ameaça de ir para prisão paira sobre todos nós e nos faz

adotar atitudes conforme a ordem social requer.

Talvez possamos pensar que o fracasso da escola também seja funcional à

sociedade em que vivemos, embora todos os discursos políticos, pedagógicos, midiáticos,

tratem a escola e seu bom funcionamento como uma verdadeira panacéia que vai resolver

os mais diversos problemas sociais. Realmente, parecemos acreditar que a educação

escolar resolveria os problemas sociais, os problemas políticos, os problemas de cunho

moral e ético pelos quais passamos. Da mesma forma que receitamos o trabalho como um

poderoso antídoto contra, o que consideramos ser, os problemas de nossa sociedade,

sempre fazemos o mesmo com a educação. Embora saibamos que a escola que temos não

agrada a ninguém que está dentro dela, continuamos contraditoriamente achando que ela

é a solução para os problemas de quem dela está excluído. Nunca nos perguntamos se

esta forma de funcionamento da escola não é adequada a esta ordem social, produtora de

hierarquias, de desigualdades, de exclusões, de segmentações que temos. Talvez o estado

social em que nós vivemos tivesse dificuldade de se reproduzir se a escola fosse diferente

do que é.

Talvez, por mais contraditório que possa parecer, a primeira atitude que nós

professores possamos tomar para modificar as formas e maneiras de ensinar, seja

questionarmos a própria escola, o ensino escolar, a escolarização, seja a problematização

da própria idéia de formação escolar, que naturalizamos. A própria idéia de formação

deve ser problematizada, como faz Michel Serres8. Idéia de matriz naturalista, surgida

8 SERRES, Michel. Diálogo sobre a Ciência, a Cultura e o Tempo. Lisboa. Instituto Piaget, 1997.

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com Rousseau9 no século XVIII, ainda no século XIX, a idéia de formação transporta

para o campo do humano, para o campo do saber, um raciocínio evolucionista que

começava a surgir no campo da historia natural e que seria apropriado por campos de

saber tão distintos como a biologia, a economia, a sociologia e a história. Esta idéia, que

aparece ainda em Lineau, no seu estágio inicial, como aquilo que dá uma ordem às

espécies animais e vegetais, que as organizam como árvores, como ramificações nascidas

de raízes e troncos comuns, que está presente na própria semente, promessa de

desenvolvimento posterior, de germinação de um ser que vai se formar, ganhar forma

progressivamente, com o tempo, vai aparecer com força privilegiada no discurso

pedagógico e psicológico. A idéia que somos seres que se formam, que ganham forma

com o tempo, a idéia de que cabe ao processo educacional, que cabe à escola, e nela ao

professor, dar forma a esta matéria disforme, esta matéria plástica, esta matéria infante,

que é a criança. A escola seria assim lugar de modelagem de corpos e espíritos, de

construção de perfis, de personalidades, de caracteres, de almas e mentes10.

A formação sendo comumente pensada como o processo pelo qual a criança seria

socializada, integrada á ordem social, assimilaria os códigos sociais e culturais

hegemônicos. A formação escolar mostra assim, de saída, sua dimensão conservadora.

Formar-se seria incorporar os valores da ordem burguesa que se tornava vitoriosa. A

educação é pensada como formação, desde pelo menos o final do século XIX,

substituindo a educação pensada como instrução, como mero acúmulo de saberes, como a

memorização e aquisição de uma grande quantidade de informações, como erudição, que

será criticada por não atender imediatamente o interesse social e se concentrar na

dimensão intelectual da educação negligenciando aspectos como a educação física ou a

educação técnica, voltada para o trabalho. A educação pensada como formação vai se

propor a ser uma educação integral, que dá conta de todos os aspectos da vida, que

prepara física, mentalmente, moralmente o futuro cidadão. Apanágio da vitória final da

ordem burguesa, a educação como formação pretende moldar os sujeitos para que se

incorporem perfeitamente à ordem social. Quando isto não ocorre, aparecerá o que se

chama de fracasso escolar, e o aluno marcado com esta identidade será cercado por uma

9 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Lisboa: Edipro, 2007. 10 Ver: LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

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maquinaria de práticas e discursos da pedagogia, da psicologia, que visam corrigi-lo,

recuperá-lo, discipliná-lo, puni-lo, visando seu sucesso e seu retorno à ordem escolar.

A idéia evolucionista de formação tem como característica central pensar a

educação como um processo contínuo no tempo, como um processo contínuo no espaço

social. A escola que forma, forma para a sociedade da qual provém, a escola se coloca

como um espaço de continuação, de reprodução da ordem social, do tempo social em que

está situada. Embora muitas pedagogias que se nomeiam de críticas tenham pensado a

instituição escolar como um lugar onde se poderiam formar agentes críticos da realidade

social, sujeitos descomprometidos com a ordem vigente, sujeitos capazes de transformar

a realidade social, esbarravam na própria aporia de se pensar uma pedagogia crítica: uma

pedagogia crítica é possível? Como uma maquinaria de práticas e discursos que visam

enformar ou formar alguém, como um conjunto de prescrições pode levar alguém a ser

crítico, se a crítica nasce da possibilidade de ser deseducado, mal educado, da capacidade

de se deformar, de propor e adquirir novas formas de subjetividade em descompasso com

as modelizações subjetivas, as subjetividades pret-à-porté, como diz Rolnik11, que a

escola, que os modelos pedagógicos nos tentam ensinar?

Por isso venho aqui propor que precisamos de um professor que deforme e não

que forme, um professor que ponha em questão, primeiro em sua própria vida, em sua

práticas e discursos os códigos sociais em que foi formado. Professor que pense o ensinar

como uma atividade de auto-transformação, como uma atividade diária de mutação do

que considera ser sua subjetividade, sua identidade, seu Eu. O ensinar como a abertura

para se deixar afetar pelas forças e matérias sociais que o convocam a se elaborar

permanentemente, a escreverem a si mesmo, a cuidarem de si mesmo, numa atividade

ética que pressupõe abrir-se para o outro, para o diferente, para o estranho, para o

estrangeiro, para o não-sabido, o não-pensado, o não-valorado. Ensinar não como uma

atividade centrada na transmissão de verdades, do que é a certeza, o aceito, o já pensado,

o consensual, o que se dá como inquestionável. Ensinar como o ato de se abrir para

questionar as certezas, as verdades, o aceito, o consenso, o que não se questiona. Ensinar

pensado não como uma atividade que supõe uma hierarquia, uma desigualdade de saber

11 ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Porto Alegre: Sulina, 2006.

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entre professor e aluno, mas como uma atividade relacional, em que alunos e professor

têm o que aprender um com o outro.

O ensino que deforma seria aquele que investe na desconstrução do próprio ensino

escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono, o ensino

profissional, o ensino obrigatório, o ensino como máquina de salvação ou de

moralização. O ensino que deforma é aquele que aposta em formas novas, maneiras

novas de praticar as relações de aprendizagem. Ensino em que não teria lugar a rotina, a

mesmice, a homogeneidade dos saberes e procedimentos, em que a disciplina ou as

disciplinas não seriam o fundamental, mas a criatividade, a capacidade de pensar coisas

novas, de formular novos conceitos, de praticar atividades desrotinizadas, lúdicas,

atividades capazes de estimular a sensibilidade, práticas e formas de pensamento capazes

de oferecer às crianças matérias e formas de expressão para elaborarem subjetividades,

subjetivarem distintas formas de se dizer Eu. Talvez este ensino para existir tenha que

começar por acabar com a instituição escolar. Como toda instituição moderna, a escola

vive sua crise terminal. As reformas não conseguirão, como nunca conseguiram,

modificar sua estrutura, que tende a se tornar cada vez mais desinteressante, insuportável,

desinvestida de valor, de sedução, de desejo. Ela se torna, cada vez mais, o que é em

essência: um aparelho burocrático, um lugar de rotina, uma repartição pública e nós

sabemos o quanto existe de criatividade e de investimento subjetivo numa repartição

pública. A escola está se tornando, como previra Kafka12, afrontado com a burocratização

da sociedade, um lugar de zumbis, de professores e alunos autômatos, que não sabem

direito por que estão ali, mas que apenas executam rotinas, como peças de uma grande

máquina, que assim como na fábrica moderna, não sabem sequer qual o produto final que

estão produzindo. A desmotivação, a falta de adesão às atividades escolares, a falta de se

colocar à disposição para o que aí ocorre, demonstram claramente esta robotização da

atividade escolar.

O ensino que deforma é aquele que investe na desmontagem dos sujeitos, dos

modelos de subjetividades, das identidades dos que chegam à escola, tanto de

professores, como de alunos. É aquele que questiona, descontinua os valores que formam

12 A crítica de Kafka a burocratização moderna encontra-se, por exemplo, em: KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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a sociedade circundante. Um ensino que problematiza as verdades que constituem nossa

realidade, que põe em questão as verdades que articulam as imagens de sujeito que cada

um tem de si mesmo. É um ensino que desorienta, que desmonta, que torna problemática

a relação de si para consigo mesmo e para com os outros, com a sociedade de que

participam seus agentes. Um ensino que não fornece certezas, verdades, mas que cria

dúvidas, instaura o impasse, põe em questão o dogma e o que é tido como natural, justo,

certo, belo, bom. O ensino que desvaloriza os valores, que tenta pensá-los como produtos

de dados interesses, que estes têm uma história. Um ensino que desarruma o arrumado,

que gera a indisciplina no pensar e no agir. Para isso a escola deveria não ter medo de

rebeldia e de contestação; mas é tudo que seus agentes temem. Os agentes da vida escolar

adoram o aluno quieto, disciplinado, certinho, autista, catatônico, deserotizado. O aluno

padrão, que não se singulariza, aquele que não se importa de ser apenas mais um, uma

cifra, um número de matrícula, um nome a mais na lista de chamada. Os agentes

escolares adoram alunos que não querem aparecer, que não querem se destacar, ou que se

destacam por serem obedientes, por seguirem todas as ordens, por não reclamarem, por

serem bem adaptados à cultura escolar.

Considero que o papel do professor na sociedade pós-moderna, se ainda terá

algum, está sendo irremediavelmente modificado. O professor vai perdendo a

centralidade no processo ensino-aprendizagem, que pelo menos pensava ter na

modernidade, para assumir uma função auxiliar ou coadjuvante. O aluno assume agora a

centralidade do seu próprio processo de aprendizagem. Tendo a sua disposição uns cem

número de centrais de distribuição de saberes, o aluno não depende mais tanto da escola

para se socializar, ter acesso a informações e conhecimentos, que pode adquirir com a

ajuda crescente de máquinas e mídias. O professor que não se atualiza, que não está a par

com o que ocorre nestes contextos midiáticos, rapidamente se torna um professor

obsoleto, um professor tão amarelado como sua ficha de aula, que costuma repetir todos

os anos para seus alunos, que tenderão a considerá-lo uma relíquia da natureza, como o

celacanto. Neste aspecto nossos cursos universitários de Licenciatura podem ser

chamados de fábricas de celacantos, porque formam professores já completamente

obsoletos, professores para uma sociedade que não existe mais, para uma escola que só os

admite porque é mais atrasada do que eles próprios. Este círculo vicioso está pondo fim à

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escola e à profissão docente. Licenciandos que já são educados de forma obsoleta, ao

chegarem às escolas constatam desiludidos e desestimulados que são muito inovadores e

criativos para a escola que encontram. A tendência é que rapidamente incorporem a

cultura escolar, esqueçam os modelos moderninhos que aprenderam nas aulas de Prática

de Ensino e se conformem às demandas e regras desta cultura escolar rotineira e que tem

pouco lugar para o professor contestador ou inovador. A maneira como os professores de

história utilizam os livros didáticos é um exemplo significativo disto. Após ouvirem

durante sua graduação inúmeras críticas ao uso do livro didático como material único e

exclusivo para o ensino da história, ao chegarem às escolas, pressionados pela cultura

escolar que consagra o livro didático como a único e principal recurso didático a ser

usado, passam a reproduzir esta atitude, até porque ela é mais fácil, ela evita maior

trabalho, para um profissional já normalmente sobrecarregado por diversos turnos de

trabalho.

Vive-se no país a ilusão de que a escola será salva pela inversão de maior volume

de recursos no pagamento de salários para os professores e no aparelhamento e

modernização dos espaços físicos das escolas. Da mesma forma que se considera que os

presídios de segurança máxima, com câmeras de vídeo para vigiar os presos e com

bloqueadores de celulares vão resolver o problema das prisões. Não resolverão porque o

problema está nas próprias instituições, nas concepções modernas que as forjaram e as

sustentam. A escola não é só constituída de paredes, máquinas, funcionários, professores

e alunos. A escola é uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas,

pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma

rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem. Aumentar

salários não é garantia de professores mais engajados na vida escolar, mais motivados,

mais criativos, menos dóceis em relação à cultura escolar. Talvez mais bem pagos se

tornem, na verdade, mais dóceis, mais conformados, mais adaptados à ordem, mais

rotineiros, mais satisfeitos com o status quo. Os melhores equipamentos nada

modificarão o ensino se sua concepção não se modificar, pois depende do uso que deles

será feito. Uma boa biblioteca numa escola não é garantia de melhor ensino, se os

professores e os alunos não se dispuserem a fazer um uso criativo e singular dela.

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Nunca pensamos porque o Estado, as elites, aqueles que dominam apresentam a

escola como sendo a salvação para todos, embora a abandonem muitas vezes a um estado

de penúria financeira. Isso demonstra que a escola não os incomoda, que a escola tem se

comportado bem em seu papel de reproduzir a ordem, de reproduzir a exclusão social, de

reproduzir os preconceitos e conceitos que sustentam esta ordem social. Talvez, por isso

mesmo, não tenha atraído a atenção, tenha sido relegada ao segundo plano. Não porque

se comporte mal, seja um perigo para o poder e para a dominação como certos discursos

advogam. As esquerdas sempre adoraram a escola e a educação, considerando-as formas

de libertação e da produção da consciência crítica. Nos países em que conquistaram o

poder de Estado, investiram maciçamente em educação, escolarizaram toda a população,

fazendo de toda rede de ensino uma fabulosa maquinaria de reprodução ideológica dos

regimes. Nestes países, como nos nossos, as escolas também têm se comportado muito

bem, têm desempenhado seu papel de reprodutoras da ordem, de fabricadoras de

subjetividades massificadas e em série, corpos e mentes dóceis e a serviço dos regimes,

seja de que extração política seja. Talvez por isso sejam esquecidas, abandonadas,

deixadas entregues ao seu cotidiano rotineiro e empobrecido em todos os aspectos. Já que

não incomodam, para que se preocupar com elas? Os professores mal pagos não

continuam desempenhando o seu papel de não questionar a sociedade? Sua negligência

justificada pela remuneração insuficiente, sua falta de empenho, sua pouca criatividade,

seu baixo investimento subjetivo em suas atividades, não fazem tudo continuar como

está? Então, para que se preocupar com eles? As atitudes dos professores legitimam até o

pouco que ganham, então para que dar a eles remuneração digna, se eles não

desempenham dignamente as atividades que lhes são conferidas? Os professores esperam

ter melhores salários para melhorarem como professores e sendo ruins legitimam que os

salários sejam baixos. Os alunos são ruins porque os professores e a escola são ruins e

assim se justifica que assim continuem, já que tanto os professores quanto a

administração da escola terá um álibi para continuarem ruins, já que os alunos seriam

também, a culpa seria, portanto, deles. Este jogo de empurra demonstra a falência da

instituição escolar e a necessidade de que pensemos outras formas de educar, outras

formas de ensinar, outras formas de sermos professores e alunos, talvez livres da

escolarização, desta instituição moderna em vias de desaparecimento.

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