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HERMENÊUTICA E A CIÊNCIA DO DIREITO 1 JOÃO VICTOR RODRIGUES SANTOS 2 [email protected] INTRODUÇÃO Antes de iniciarmos a abordagem da teoria da interpretação em relação à ciência do Direito, é necessário frisarmos a importância deste assunto para um conhecimento mais preciso do Direito e sua aplicação na situação concreta, pois todo indivíduo se vale da interpretação para conhecer e compreender os objetos ao seu redor. Ao ler um livro qualquer, por exemplo, deparamo-nos com uma série de conceitos, significados e até mesmo compreensões diferentes sobre os ensinamentos deste. Para o operador do Direito não poderia ser diferente. Para ele, a interpretação é de fundamental importância, pois é com ela que a norma do Direito deixa seu aspecto rígido e fechado, ganhando vida e sentido 3 . Porém, vale ressaltar que existe uma ampla quantidade de interpretações possíveis e o grande problema que entra em discussão é, justamente, o modo correto de fazê-las. Portanto, 1 Ensaio apresentado à matéria Introdução à ciência do direito, ministrada pelo Professor Luiz Otavio Pereira, no qual abordaremos a obra “A Ciência do Direito”, de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. 2 Discente regularmente matricula no curso de Bacharel em Direito na Universidade Federal do Pará/Instituto de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito com o número de matrícula: 12641003901. 3 Em sua obra “Duas Palavras”, Goffredo da Silva Telles Junior menciona, com louvor, que “Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução” (TELLES JUNIOR, 2004, p. 28).

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HERMENÊUTICA E A CIÊNCIA DO DIREITO1

JOÃO VICTOR RODRIGUES SANTOS2

[email protected]

INTRODUÇÃO

Antes de iniciarmos a abordagem da teoria da interpretação em relação à ciência do

Direito, é necessário frisarmos a importância deste assunto para um conhecimento mais

preciso do Direito e sua aplicação na situação concreta, pois todo indivíduo se vale da

interpretação para conhecer e compreender os objetos ao seu redor. Ao ler um livro qualquer,

por exemplo, deparamo-nos com uma série de conceitos, significados e até mesmo

compreensões diferentes sobre os ensinamentos deste. Para o operador do Direito não poderia

ser diferente. Para ele, a interpretação é de fundamental importância, pois é com ela que a

norma do Direito deixa seu aspecto rígido e fechado, ganhando vida e sentido3.

Porém, vale ressaltar que existe uma ampla quantidade de interpretações possíveis e o

grande problema que entra em discussão é, justamente, o modo correto de fazê-las. Portanto,

feitas as devidas ênfases que demonstram o quanto esse assunto é essencial para a ciência do

Direito, podemos iniciar o nosso foco principal.

Este consiste em três pontos expostos por Ferraz Júnior (1980), no capítulo “A Ciência

do Direito como teoria da interpretação”, do livro “A Ciência do Direito”, onde ele explora os

variados pontos de vista e polêmica acerca da interpretação na prática jurídica. Eles são: (1) O

problema da Interpretação; (2) As técnicas interpretativas e (3) A integração do Direito.

1. O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO

Inicialmente devemos ressaltar que “toda norma é, pelo simples fato de ser posta,

passível de interpretação” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 68). Porém, analisando o processo

histórico de elaboração de técnicas para se interpretar, observamos que, em alguns casos,

1 Ensaio apresentado à matéria Introdução à ciência do direito, ministrada pelo Professor Luiz Otavio Pereira, no qual abordaremos a obra “A Ciência do Direito”, de Tercio Sampaio Ferraz Júnior.2 Discente regularmente matricula no curso de Bacharel em Direito na Universidade Federal do Pará/Instituto de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito com o número de matrícula: 12641003901.3 Em sua obra “Duas Palavras”, Goffredo da Silva Telles Junior menciona, com louvor, que “Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução” (TELLES JUNIOR, 2004, p. 28).

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houve uma proibição da interpretação das normas, na qual apenas o legislador poderia

interpretá-la4.

No caso citado, podemos observar que deixar a interpretação do legislador ser a única

válida implica na soberania desse legislador, pois deixará com que ele tome as rédeas do

poder, podendo, inclusive, utilizar-se deste para os seus interesses particulares.

Apesar de as técnicas interpretativas já estarem presentes desde a “jurisprudência

romana e até na retórica grega” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 68), passando por uma série de

sociedades, “a consciência de que a teoria jurídica é uma teoria hermenêutica, ou seja, a

tematização da Ciência do Direito como ciência hermenêutica é relativamente recente”

(FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 68).

No final do século XIII, começa-se, sutilmente, uma construção da teoria da

interpretação que nos fornece dois modelos: o mecânico e o orgânico. O mecânico se baseia

na soma de partes que se complementam e o orgânico se baseia em um sentido próprio e não

formado por fragmentos, isto é, um todo5.

“No plano jurídico, a questão da unidade se torna um problema de sentido da ordem

normativa” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 69), isto é, procura-se descobrir, primeiramente, o

que a lei diz em seu texto e, para isso, elaborou-se quatro importantes técnicas interpretativas:

“a interpretação gramatical, que procurava o sentido vocabular da lei; a interpretação lógica,

que visava ao seu sentido proposicional; a sistemática, que buscava o sentido global; e a

histórica, que tentava atingir o seu sentido genético” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 69).

Porém, após 1814 as técnicas interpretativas entraram em decadência para dar lugar a

um modelo hermenêutico na Ciência do Direito, pois se começa uma reflexão acerca de um

grande problema da interpretação, que é o fator da autenticidade da teoria da interpretação.

E é acerca deste problema que Ferraz Júnior (1980) aborda a diferença entre duas

doutrinas: A doutrina dos objetivistas e a dos subjetivistas. Os objetivistas defendem que na

maioria das vezes o legislador não é uma pessoa única, fisicamente identificável, na maioria

das vezes é um grupo de pessoas. Estes também afirmam que “só as manifestações normativas

trazidas na forma jurídica têm força para obrigar” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 71) e que a

função do legislador é apenas ser uma competência legal para escrever a norma6. Por fim, eles

4 Um exemplo desta situação “Já estava lá, no Código de Justiniano, que, se é dado ao imperador fazer as leis, apenas ele poderá interpretá-las” (GRAU, 2004, p. 47).5 Esta distinção é semelhante à análise e à síntese, onde a análise se baseia em observar e estudar os fragmentos separadamente e a síntese consiste no todo, isto é, compreender o objeto numa concepção geral em que esses fragmentos estão unidos em um só objeto de estudo.6 Gustav Radbruch (1999) já afirmava em sua obra “Introdução à Ciência do Direito” que a interpretação vai muito além da “vontade do legislador”, “Pois é próprio da força misteriosa da criação humana emprestar a suas criações um significado mais profundo do que o imaginado pelo próprio criador” (RADBRUCH, 1999, p. 217).

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afirmam que é preciso confiar na palavra da norma e que somente uma interpretação objetiva

pode considerar a jurisprudência no Direito, devido ao seu caráter altamente mutável.

Porém, os subjetivistas defendem que, para uma interpretação autêntica das leis, é

preciso compreender o pensamento do legislador, pois, para eles, a norma foi criada com uma

intenção7 e esta só pode ser analisada reconhecendo “a vontade do legislador”.

Eles afirmam, também, que não se pode ignorar o legislador originário, pois os

documentos e todo o recurso à técnica histórica que elaboraram a discussão e criação da

norma são fundamentais e, portanto, deve-se analisar o objetivo do legislador ao construir as

leis. Afinal, os subjetivistas abordam que ignorar a “vontade do legislador” implicaria no

favorecimento da “vontade do intérprete”, como se o intérprete fosse mais apto do que o

próprio legislador, gerando assim, uma insegurança do Direito.

Ferraz Júnior (1980) afirma que destas duas correntes de pensamento surgem os

pressupostos básicos da hermenêutica. O primeiro consiste em um ponto de partida dogmático

da interpretação, onde uma autoridade competente deu sentido à norma. O segundo defende

uma arbitrariedade do intérprete e o terceiro é “o caráter deontológico e normativo da

interpretação” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 73). Porém, apesar das múltiplas possibilidades

interpretativas, é preciso que haja uma interpretação preponderante, para que, assim, seja

atribuído ao Direito o seu caráter decisório.

2. AS TÉCNICAS INTERPRETATIVAS

Segundo Ferraz Júnior (1980), inicialmente, o intérprete deve buscar a definição do

texto e relacioná-lo com o caso a que ele se designa e fazer uma interpretação gramatical do

texto da lei. Depois dessa primeira tarefa, é preciso uma interpretação lógica e sistemática

cujo objetivo é evitar a incompatibilidade das normas e, para isso, valemo-nos de “três

procedimentos básicos: a atitude formal, a atitude prática e a atitude diplomática” (FERRAZ

JUNIOR, 1980, p. 77).

Para definirmos esses três procedimentos, basta notarmos que “enquanto a atitude

formal procura soluções, olhando as situações a partir das normas, a atitude prática visa ao

mesmo objetivo, olhando as normas a partir das situações” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 78).

Com estas definições basta ressaltar um exemplo nas atitudes práticas que é a Jurisprudência,

7 Nesse ponto, podemos observar o pensamento de Goffredo da Silva Telles Junior de que “O Filósofo do Direito sente que a lei tem letra e tem espírito. Quase poderíamos dizer que a letra tem corpo e alma. A verdade é que a lei, para o jurista, não se esgota em sua letra. A lei se acha, também, no seu pensamento e na sua intenção” (TELLES JUNIOR, 2004, p. 27).

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que se baseia nas decisões de tribunais e da prática jurídica para formular argumentos válidos.

No caso da atitude diplomática, trata-se de uma decisão provisória e imediata, isto é, que não

está baseada na observação das normas ou na prática, mas numa solução repentina que pôde

resolver os problemas da circunstância em questão.

Como terceira tarefa, necessitamos de uma interpretação sistemática que envolve o

estudo da origem da norma do Direito e a concepção de um ordenamento de princípios como

um todo, que regem as atividades interpretativas e, conforme Ferraz Júnior (1980) explica,

estas características nos levam a falar de uma interpretação histórico-evolutiva que “conforme

as necessidades sociais do mundo em transformação passam a exigir passam a exigir uma

revaloração dos fins propostos para determinada legislação” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.

80). Vale notar que os princípios não são regras já criadas, mas sim um pressuposto dessas

regras, isto é, eles supõem as ideias de justiça, liberdade, igualdade e outras concepções8.

3. A INTEGRAÇÃO DO DIREITO

O problema de integração do Direito consiste nas lacunas do ordenamento legal, que

tomou conta do cenário jurídico com o rompimento da concepção de que no direito positivo

vigente estaria o Direito em sua totalidade, pois afinal, as lacunas provam a insuficiência da

positividade jurídica. “Discute-se aqui a legitimidade de o intérprete ir além da compreensão

da norma, configurando novas hipóteses normativas, quando o direito vigente não as prevê ou

mesmo quando as prevê, mas de modo insatisfatório” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 80).

O problema gira em torno da totalidade do sistema de normas, isto é, saber se esse

sistema é completo e envolve todos os casos. O problema é a definição de lacuna e da

legitimidade ou ilegitimidade desta. Por vezes, a própria interpretação das leis podem

preencher essas “lacunas” e, portanto, não haveria necessidade de criar uma norma para

preenchê-la. A integração do Direito em seu aspecto dinâmico é extremamente mutável, pois

a própria história do Direito revela “ ‘lacunas’ que antes não existiam e preenchendo outras

antes conhecidas” (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p. 83).

Afinal, Ferraz Júnior (1980) exprime que a integração do Direito pode possuir ou não

lacunas, mas o que não podemos deixar de perceber é que estas servem de apoio ao modelo

hermenêutico, pois abrem possibilidades para uma teoria da interpretação que, mesmo

possuindo caráter dogmático em sua origem, permite-nos um “caráter de procedimento

8 Podemos relacionar a ideia de princípios do Direito com a ideia de Direito pressuposto, que Eros Roberto Grau aborda em sua obra, “Porque o Direito, no seu momento de pressuposição, é um produto histórico-cultural que condiciona a formulação do direito posto” (GRAU, 2004, p. 37).

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persuasivo, que busca uma decisão possível, mais favorável (decidibilidade)” (FERRAZ

JÚNIOR, 1980, p. 84), um instrumento, portanto, de defesa contra as normas positivistas

fechadas e rígidas, como o direito natural, por exemplo.

CONCLUSÃO

Inicialmente abordamos as variadas técnicas de interpretação, a gramatical que analisa

o significado do texto da lei, a lógica (sentido proposicional), a sistemática (sentido global) e

a histórica (sentido genético). Depois passamos pela polêmica entre os objetivistas e os

subjetivistas, que nos levaram aos pressupostos básicos da hermenêutica jurídica que são a

origem dogmática, a arbitrariedade do intérprete e o caráter deontológico normativo. Por fim,

após as observações e análises que acabamos de expor nesse ensaio sobre a teoria da

interpretação e a Ciência do Direito, passando pela Ciência do Direito como ciência

hermenêutica e relacionando seus inúmeros problemas na elaboração de uma interpretação

legítima, pode-se constatar que o Direito é um processo em desenvolvimento e que suas

lacunas fazem parte da sua elaboração, pois permite-nos refletir sobre como preenchê-las e as

vezes o simples preenchimento dessa lacuna para um caso pode não servir para outro, gerando

outra lacuna e, portanto, a interpretação é um processo de formação contínuo de construção da

Ciência do Direito que se baseia na problemática, aparentemente insolúvel, da integração do

Direito.

REFERÊNCIAS

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito como teoria da interpretação. In. A ciência do direito. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 68-86.

TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. Duas Palavras. In. O que é a Filosofia do Direito? Barueri-SP: Manole, 2004, p. 11-32.

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GRAU, Eros Roberto. O direito posto, o Direito Pressuposto e a Doutrina Efetiva do Direito. In. O que é a Filosofia do Direito? Barueri-SP: Manole, 2004, p. 33-50.

RADBRUCH, Gustav. Ciência do Direito. In. Introdução à ciência do direito. Trad. Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 215-232.