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A cidade e as memrias revisitadas: ou de como as memrias (re)inventam cidades

A cidade e as memrias revisitadas: ou de como as memrias (re)inventam cidades

Antonio Clarindo Barbosa de Souza

I DE COMO AS MEMRIAS (RE)INVENTAM LUGARES

Ao se aproximar o aniversrio da cidade de Campina Grande, em 11 de outubro de 2009, fui convidado para dar uma entrevista sobre a Histria da cidade onde resido e trabalho h 17 anos. Preocupei-me em preparar uma fala condizente com o pouco tempo que o meio miditico TV me ofereceria, pois mesmo gravando uma fala de 20 ou 30 minutos, sabemos que o que vai ao ar, so apenas alguns segundos ou no mximo cinco minutos. Mas o importante deste processo de preparar-me para o depoimento, foi a preocupao que tive em procurar nas minhas memrias algo que pudesse dizer sobre a cidade e suas histrias que fosse condizente com os discursos estabelecidos sobre ela em textos dos memorialistas, dos historiadores locais, dos rgos de imprensa escritos e mesmo no falar do homem comum. Mun-me de alguns livros j clssicos sobre as datas marcantes da cidade e de outros, ainda no to clssicos, que apontam para outras leituras possveis sobre a histria da Rainha da Borborema.

Todavia, me peguei lembrando o que j havia lido sobre a cidade e mesmo sobre o que eu, a partir de minhas pesquisas sobre aquele espao urbano, j havia escrito e sedimentado enquanto uma memria, no necessria ou exclusivamente verdadeira do mesmo. No dia da entrevista, dialoguei com o reprter, gravamos a matria e a mesma foi apresentada quatro dias depois. Confesso que no assisti, em virtude da incompatibilidade de horrios. Mesmo assim, vrios alunos, alunas, amigos e amigas vieram me falar que a matria tinha ficado muito boa, que eu havia explorado muito bem a questo da decadncia dos cinemas campinenses a partir dos anos 80 e a inovao, tanto tcnica quanto artstica, que fora a construo do teatro Severino Cabral nos anos 60, como um mais um marco da modernizao e da cultura campinenses.

Fiquei feliz com os comentrios. Mas fiquei sempre com uma preocupao (ou com uma pulga atrs da orelha como se diz). Por que as pessoas estavam concordando to perfeitamente comigo, com minhas observaes, palavras baseadas em leituras, pesquisas e observaes? Por que elas no problematizaram coisas do tipo: por que voc, professor, escolheu estes dois equipamentos de lazer uma sala de cinema e uma sala de espetculos teatrais para construir seus dizeres sobre a cidade? Por que entrar por esta via e no por outras, como a economia ou a poltica da cidade nestas vsperas de aniversrio? Fiquei a pensar sobre tudo isto, entre uma ida e outra Universidade. E ento, no dia seguinte vi na TV, em outra emissora, uma colega historiadora dando o seu depoimento sobre a cidade. E o contraste com minha fala foi to gritante que no pude deixar de refletir sobre a pertinncia de colocar neste texto que estava sendo pensado havia mais de quatro meses, como as memrias (re)inventam as cidades.

O depoimento, devidamente editado, da colega historiadora, descendente de nobre famlia campinense e que j formou vrios alunos, inclusive historiadores, em colgios e universidades da cidade, apontava no s para outros aspectos como para outros lugares de memrias que passaram ao largo da minha apresentao. Ao fazer referncia produo algodoeira dos anos 30, 40 e 50 do sculo passado, a colega apontava para a o fato da cidade de Campina Grande, vir paulatinamente apagando a sua memria e clamava pela necessidade desta, manter, por exemplo, nomes de ruas tais quais eles eram antigamente. Defendia que a rua onde houvera a maior concentrao de comercializao de algodo tivesse mantido este nome, rua do Algodo, e no ter seu nome mudado para Marqus do Herval pois, segundo ela, era imprescindvel que esta marca da economia da cidade ficasse indelevelmente registrada na memria dos jovens campinenses para que eles soubessem, atravs de to expressiva nomenclatura das ruas, da pujana econmica que a cidade havia desfrutado, principalmente naquelas dcadas.

Os lugares de memria que ela acionou eram/foram bem diversos dos meus. Ao invs de apontar para lugares que foram construdos nas dcadas que ela mesmo julgou como de importante crescimento econmico, remeteu-se trs prdios que ela julgava serem os nicos dignos de figurar como patrimnio histrico de Campina Grande, a saber: A antiga cadeia pblica (atual e, sintomaticamente, transformado em Museu da cidade); o antigo Grupo Escolar Solon de Lucena (atual Museu Assis Chateubriand da UEPB) e a Catedral Metropolitana da cidade.

Alm de serem os prdios mais antigos da cidade, no sentido que esto formatados em um estilo neo-colonial, tais prdios remetem a uma poca em que dois grupos das elites se digladiavam na cidade pela manuteno do poder poltico e pouco havia de democracia participativa dos demais campinenses. Tambm interessante notar que os edifcios ressaltados por ela so prdios que poderiam ser identificados com discursos da ordem: seja estatal (cadeia pblica), seja religiosa (catedral), seja educacional (primeiro grupo escolar e hoje Museu da Universidade Estadual). Ligadas ordem ou a discursos que pretendiam diagnosticar e disciplinar os homens, pela f, pela educao/instruo ou pela coero, tais construes agora serviriam para indicar que Campina teve histria.

Aqui seria o caso de fazer uma pausa e perguntar se todas as pessoas que passaram por estes espaos, lembrariam ou os manteriam como lugares de memria, pois os religiosos e os letrados poderiam at recordar de suas boas e sagradas horas passadas nos bancos escolares ou do templo, mas certamente quem sofreu a priso ou as agruras de uma deteno talvez preferisse esquecer tais lugares.

Mas voltando ao assunto que nos trouxe at aqui, fiquei novamente a meditar sobre o fato de que os espaos escolhidos por ela para ancorar suas memrias fossem de uma poca representada como de fausto e glria para Campina Grande, e que ela no viveu, mas que foram sendo construdos por um conjunto de discursos imagticos discursivos, que hoje se tornaram quase que indiscutveis na (e sobre a) cidade. O ponto de partida de seu discurso memorialstico e historiogrfico, no so apenas as suas prprias memrias de vida, como criana, jovem e adulta que viveu na cidade entre os anos de 1940 e a atualidade, mas sim um aglomerado do que poderamos chamar de clichs que apontam para a necessidade de, a cada ano, quando das comemoraes do aniversrio da cidade, reforarmos este vnculo com um passado supostamente grandioso, desenvolvido e progressista da urbe planaltina.

Por outro lado, temos que pensar o local de fala da colega historiadora. Como membro de uma famlia tradicional de Campina Grande e, consequentemente, da Paraba, ela busca firmar suas reminiscncias e apoiar outras em marcos que dizem que seus antepassados ajudaram a construir esta pujana. J eu, forasteiro, como eles chamam aqui, e corajoso por ter a ousadia de escrever sobre Campina Grande como disse-me ela h alguns anos atrs quando participamos de uma mesa redonda sobre a histria da cidade busquei identificar em minha fala, lugares ainda no ditos para os campinenses, de uma memria que constru a partir de minhas pesquisas em outras fontes. Como no sou da cidade, no me senti obrigado a pensar nos mesmos lugares de memria e nem no fortalecimento de um discurso includente, em que todos os campinenses, de forma indiferenciada e pluriclassista, se apresentassem como portadores destas memrias.

Tentei exatamente o contrrio, apontar para lugares especficos. Para o bairro do So Jos, subrbio muito prximo do centro, mas com uma vida cultural prpria entre os anos de 1945 e 1965 (enfoque de minha pesquisa). Indiquei tambm a construo do teatro Severino Cabral como local pensado para ser um espao includente - at por no haver at 1963 uma casa de espetculos exclusiva para as atividades de teatro, dana e msica na cidade, - mas que, ao mesmo tempo, era ou se formou de maneira extremamente excludente, uma vez que a inteno de seus primeiros diretores era exatamente oferecer aos espectadores bal clssico, msica e encenaes eruditas, atividades que no figuravam entre as atraes preferidas de inmeros segmentos sociais da cidade.

Ao indicar estes lugares como dissonantes ou como portadores de diferenciaes sociais (cinema de bairro/teatro para todos) pretendi indicar que aquilo que se constitui como memrias a serem guardadas por uns podem no significar espaos afetivos para outros. Aqui se processa aquilo que poderamos chamar de transformao do espao em lugar, comportando este ltimo necessariamente uma relao de afeio, um gosto, um desejo de estar com. Onde as memrias se apegam porque ficam indelevelmente impregnadas no apenas na mente, mas na pele e nos sentidos de quem os frequentou.

A j clssica diferenciao entre Memria e Histria proposta por Pierre Nora, nos aponta para a questo da afetividade como determinante desta separao. Afirma ele:

Porque afetiva e mgica, a memria no se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranas vagas, telescpicas, globais, flutuantes, particulares ou simblicas, sensvel a todas as transferncias, cenas, censuras ou projees. A histria, porque operao intelectual e laicizante, demanda anlise e discurso crtico. A memria instala a lembrana no sagrado, a histria a liberta, e a torna sempre prosaica (NORA, 1981, p. 9).A colega, muito provavelmente, frequentou os lugares que recupera. Eu frequentei os lugares de papel que as fontes me ofereceram. So, portanto, dois tipos de memrias construdas em torno da cidade e que tem outros desdobramentos quando somos chamados a nos pronunciar sobre ela.

Como ainda nos lembra Pierre Nora, mestre de todos ns que nos preocupamos com a memria e com os seus usos:Memria, histria: longe de serem sinnimos, tomamos conscincia que tudo ope uma outra. A memria a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela est em permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, inconsciente de suas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os usos e manipulaes, susceptvel de longas latncias e de repentinas revitalizaes. A histria sempre reconstituio problemtica e incompleta do que no existe mais. A memria um fenmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a histria, uma representao do passado. (NORA, 1981, p. 9).

Desta maneira, as memrias ou as memrias informacionais dos historiadores no podem ser as nicas possveis ou autorizadas a se pronunciar sobre assuntos da lembrana. Temos que nos perguntar como as pessoas que no realizam esta operao intelectual, delimitada por um mtodo, encaram esta construo memorialstica sobre a vida na cidade.

II - DE COMO AS PESSOAS QUE NO SO HISTORIADORAS CONSTROEM SUAS MEMRIAS

lugar comum afirmar que as memrias so construdas e reconstrudas incessantemente pelos diversos atores sociais que vivenciaram as transformaes urbanas nas cidades, neste caso especfico Campina Grande. Todavia, esta vivncia pode ancorar-se tambm na memria de outros, como uma espcie de memria coletiva legada. Neste sentido, a saudosa professora Sandra Jatahy Pesavento conceitualizava a cidade como um lugar em que estas memrias e outras representaes culturais poderiam sempre atribuir sentidos que ns historiadores do sensvel s poderemos perceber por um processo que ela chamou de traduo, ou seja, nunca mais poderemos sentir o que as pessoas que viveram outro tempo e lugar sentiram ao frequent-los. Podemos apenas tentar entender que sentidos eles atribuam aos mesmos. Assim sendo, a cidade pode ser percebida como: Uma materialidade de espaos construdos e vazios, assim como um tecido de relaes, mas o que mais importa, na produo do seu imaginrio social, a atribuio de sentido, que lhe dado de forma individual e coletiva pelos indivduos que nela habitam. (PESAVENTO, 2000, p. 32).

Esta materialidade pode comportar-se como um quebra cabea em que as diferentes partes do traado urbano vo sendo compostas pelas lembranas, memrias e recordaes dos diferentes sujeitos-personagens de outros tantos quebra-cabeas que so as histrias vividas nestas cidades. Todavia, memrias consolidadas podem at servir para montar um puzzle de pequenas dimenses, ou parte dele, mas o grande mosaico que formado por diferentes representaes dos mais variados tipos de pessoas, quase sempre impossvel de terminarmos, como um daqueles rompe-testa de 1000 peas, nos quais temos que trabalhar em vrias ocasies.

Em sua brilhante anlise sobre a histria, a memria e o esquecimento, Paul Ricouer, nos traz lembrana a obra de Aristteles intitulada De Memoria et reminiscentia, na qual o estagirita tenta distinguir a persistncia da lembrana em relao sua recordao. A simples presena no esprito, que seria a evocao, distingue-se da recordao que seria uma busca pelas imagens ou lembranas. Aristteles nos faz perceber que lembramos do que queremos e marcamos como nicas as lembranas que compartilhamos, por afeto, com outros seres. A memria, nesse sentido particular, caracterizada inicialmente como afeco (pathos), o que a distingue precisamente da recordao. (RICOEUR, 2007, p. 35).

Desta forma, e assim fugindo do debate e do embate entre as duas concepes de histria e de memria que geraram as perguntas iniciais deste texto, busco pensar como as pessoas, ditas comuns, relatariam suas memrias sobre a cidade e como atravs destes relatos orais de memria, elas acionam certos valores, crenas, mitos e representaes que se constituem no eixo principal de discusso de uma histria cultural do urbano.

Se perguntssemos a uma pessoa comum sobre o que ela ressaltaria da histria de Campina Grande, talvez suas lembranas se projetassem para certos momentos diversionais da vida da cidade, sem necessariamente se prender existncia de classes sociais, grupos polticos ou nveis scio-econmicos. Assim, quando perguntado sobre como ocorriam os Carnavais em Campina Grande, os lugares redesenhados e os territrios percorridos por um ex-brincante dos festejos mominos so outros, diferenciados daqueles ligados ordem.

Ns tivemos tambm o GRESSE (Grmio dos Sub-tenentes e Sargentos do Exrcito) onde hoje o bairro...depois do CPUC...onde funcionou at bem pouco tempo o colgio Objetivo. Ali funcionava o GRESSE. Ali ocorreram os grandes carnavais, as grandes soires e matines danantes. Os carnavais da poca aconteciam ali de uma forma muito intensa, como tambm aconteciam no Ypiranga, no Campinense...

Na praa da Bandeira. ...eu participava de um bloco de carnaval que quando ns saamos no ltimo dia de carnaval, ns nos dirigamos para a Praa da Bandeira, ali em frente ao correio e havia uma fonte com uma samaritana ao lado e ali ns amos tomar banho, ali naquela fonte. Dava um problema porque a policia chegava.... (Grifos nossos).

Este depoimento saudoso, como vrios outros elencados a partir de outras entrevistas que subsidiaram a nossa tese, nos do mais ou menos um panorama de alguns momentos do carnaval de rua em Campina Grande (dcadas de 60 e 70). Mas as lembranas deste depoente navegam entre os espaos fechados e que oportunizavam certas prticas permitidas e os espaos da rua e das praas, nos quais algumas aes desviantes poderiam ocorrer, naqueles dias de inverso carnavalesca. Apesar das memrias ditas oficiais sempre se pautarem por apresentar lugares e prticas da ordem, alguns memoriosos nos deixam entrever que apesar dos espaos, as pessoas e as prticas serem alvo de seguidas tentativas de disciplinamento e normatizao, as pessoas mais simples resistiam a isto e sempre encontravam uma forma de reinventar tais lugares.

Numa anlise sobre como as memrias e os relatos orais de memria tentam reconstruir a histria, as formas como os vrios setores da sociedade se apropriavam do presente e do passado da cidade nos interessa, para tentar compreender tambm como uma comunidade inteira no sucumbe ao poder microfsico que pode ser detectado em todas as instituies e relaes sociais. O que nos interessa saber ...que procedimentos populares (tambm minsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos das disciplinas e no se conformam com elas a no ser para alter-las.

Se nos detivssemos a perguntar sobre as zonas proibidas e soturnas da noite campinense, veramos que o que alguns consideravam como o nico mundo possvel o mundo do trabalho era recomposto, recolocado, redefinido pelos bomios. Assim, os lugares de memria de um bomio no seriam, com certeza, os prdios pblicos, nem a Igreja, nem a Cadeia, nem os clubes carnavalescos privados, mas sim, espaos onde ele teve outras experincias sensveis que tornaram-se, inclusive, memrias da pele.

A veio o auge mesmo: 59, 60, foi antes Baiana, no foi antes...A Moreninha foi em 1958 o auge...Em 58 em tinha 18 para 19 anos...Ento tinha a Moreninha que era na rua Demstenes Barbosa que a denominao antiga era rua das Boninas, porque ali antes das Boninas era o Cemitrio de Campina, deu lugar quela fabrica de Marcos de Almeida. .. Ento, com o surgimento de Moreninha...mas antes de Moreninha j existia o de Zefa Tiburtino(sic), ...mas era modesto. Vizinho ao de Zefa era o de Juju e em frente o de Juju era o tradicional Moreninha que era de Geni. Ento Geni mais um pouquinho a frente, esquerda, montou um cabar, logicamente que ela no tinha as mesmas condies da irm, era um cabar mais modesto...mais modesto que o anterior. Ah! O de Iraci era de luxo. O de Iraci era onde hoje aquela movelaria. No tem a agncia do Paraiban na entrada das Boninas? O cabar era em cima e os quartos para relaes sexuais eram no trreo. E na mesma Bonina ainda tinha o de Lurdes, a parava. Ia para aquela rua Bartolomeu de Gusmo que sai para a Joo Pessoa.

(J) O Cabar de Z Garon ficava no terceiro andar do edifcio Sibral, de propriedade de Severino Cabral, o p de chumbo. Para alcanar a diverso, nossa frente, ngreme, quarenta e quatro degraus, sem problemas, no havia de nossa parte cansao algum, era a juventude. Que beleza era v Zito Napy; Z Rel, Moacir Ti e Mago, danar tangos. Ns, entretanto, preferamos os tangos e boleros. Saudades. Juventude que me faz falta.

Quantos amores ao longe, hoje relembrados pelos CDs da vida: o bomio que voltou; a mulher que ficou na taa; Mimi, Carinhoso, Cho de Estrelas. Hoje, mesmo cansado e alquebrado, reservo um tempo para lembrar o passado, relembrando as meigas primas. Algumas delas sem meios financeiros, procuram e recebem, por merecimento, auxlio. Nunca neguei e nem as releguei. Felizmente. Amei, intensamente as noites e as infortunadas da vida. As prostitutas da vida difcil. A bomia. Por fim, e para no nos alongarmos mais com exemplos de memrias to dispares, vejamos em que se pautariam as memrias de uma dona de casa e seu esposo, que me concederam entrevista em conjunto enquanto um corrigia as memrias do outro. Sobre os espaos de diverso que um jovem casal dos anos 60 podia frequentar, eles informam:

Os rapazes ficavam encostados nas paredes e as moas passeando. Iam at a Maciel Pinheiro e rodeavam. Era o passeio. Ali era o passeio. A rua toda desfilando e os rapazes de lado.

Na Maciel Pinheiro tinha uma sorveteria? Que hoje em dias a farmcia Petrpolis.

(o Sr. Severino, o esposo, a interrompe e corrige suas lembranas) No na Maciel Pinheiro no. na Venncio Neiva. Que a sorveteria...A rdio Borborema era em cima e em baixo a sorveteria Flrida. Isso. Na esquina (Venncio Neiva com a Cardoso Vieira) onde hoje a farmcia. (D.Janira volta a falar) - Aquilo ali era bem animado. Por ali.

Na Maciel Pinheiro havia lojas, sapatarias, mas era como hoje. Hoje est tudo se remodelando, mas era tudo do mesmo jeito. Mas ali mesmo...aquele Clube da Maciel Pinheiro...Aquele primeiro andar?

Sr. Severino O 31?

D. Janira - Era bem animado tambm.

As lembranas do casal, nos levam agora para as ruas do comrcio, das compras, do passeio de moas e rapazes, para uma certa rea do flerte bem comportado. Interessante notar que em nenhum momento eles fazem referncias aos grande vultos da cidade ou ao desenvolvimento econmico. Suas memrias se referem aos lugares onde se conheceram, se admiraram e se amaram. Onde compraram seus pertences para o casamento, os remdios para os filhos, o edifcio da rdio na qual podiam apreciar programas de auditrio, a sorveteria, onde, possivelmente passaram horas agradveis como enamorados, como jovens casados e como pas carinhosos de crianas buliosas. Estas lembranas conjuntas, nos permitem indagar se eles sabem que h um conjunto de especialistas, denominados historiadores, que se renem de vez em quando para tratar de suas palavras como fontes. Se eles percebem que a memria do que viveram pode transformar-se, por uma operao historiogrfica, em matria de estudo e discusso. Se sabem, ou no, parece no lhes importar, pois o importante que viveram.

O casal Janira e Severino, casou-se no dia 23 de outubro de 1964, portanto, doze dias depois da festa do 100 aniversrio da emancipao poltica da cidade. Sobre o fausto e a glria comemorados naqueles dias, que deveriam, portanto, ser lembrados por todos para sempre, ela no tem muito a dizer. No se lembram, dizem apenas:

Em Jos Pinheiro tambm teve festa. Foi o ano em que ns casamos. Em 23 de outubro de 1964.

dia 11, ns casamos depois da festa. Na festa ainda passamos (estvamos) solteiros. noite a festa era no Aude Velho. Deve ter tido (festa). Mas ns s fomos aqui no Aude Velho. Ficamos ali assistindo. Tinha muito movimento. Msica. Cantores.

III - MEMRIAS FINGIDAS OU MEMRIAS FUGDIAS?

Acredito que o passado reconstitudo pelo historiador a partir de suas fontes, sejam elas depoimentos orais, sejam matrias jornalsticas, sejam processos crimes, ser sempre reconstitudo na tentativa de dar/oferecer um sentido. Em certos casos, como nos ensina a historiadora ngela de Castro Gomes, sobre a cultura poltica estadonovista este sentido seria dar sequncia a uma tradio historiogrfica sobre o povo e a nao, que o discurso do historiador e suas obras deveriam sempre tentar recuperar. Embora o exemplo citado pela autora seja vinculado questo da cultura poltica dos anos de 1930, creio que nos serve como parmetro, para pensar o quanto o nosso discurso de historiador oficial ou oficializador de uma memria, acaba ou termina por reafirmar certos lugares e momentos de memrias. Como lembra tambm Gomes, estas recuperaes do passado pela lembrana no excluem tenses e choques advindos de uma bricolage difcil. (GOMES, 2007, p. 51).

A mesma autora afirma ainda com bastante propriedade que:

...Se os historiadores esto envolvidos, em graus muito variados, com tais construes memorialsticas, podendo, inclusive, no deter as principais posies do momento em que o processo se desenvolve...so eles que, como profissionais da histria se dedicam, a posteriori, a analis-lo. Um trabalho que exige compreenso de quem nele se envolveu mais diretamente, de quais foram os eventos selecionados por essa memria (com as hierarquias e as omisses); de como e porque o foram e, finalmente, em que circunstncias e com que objetivos tal projeto se desenvolveu. (GOMES, 2007, p. 50-51).

Estas tenses no ocorrem apenas por uma tomada de posicionamento de classe social ou identificao de gnero, elas ocorrem pela quantidade e qualidade de informaes que podemos dispor. Enquanto ns historiadores exaltamos prdios, espaos ou figuras mitificadas as pessoas comuns exaltam seus momentos de festa, de diverso, de prazeres, de carinho, de desentendimentos, mas tambm de solidariedade. Esta maldio dos historiadores: saber o que aconteceu, mas no poder recuper-lo na sua integralidade. Por mais documentos, informaes e generalizaes que faamos teremos apenas indcios vagos, imprecisos, cambiantes sobre o que aconteceu ou sobre o que ficou na memria dos nossos colaboradores e nos documentos escritos.

No caso do 145 aniversrio da cidade de Campina Grande, eu e a colega historiadora usamos estes indcios para formatar um discurso, com mais ou menos certezas, com mais ou menos desejos de verdade, baseados em nossos interesses acadmicos, pessoais ou familiares, mas o pior de tudo que os nossos dois depoimentos ajudaram a sedimentar memrias, a fixar informaes nas mentes dos jovens ouvintes, a gerar polmicas com aqueles que acreditam que s pode haver uma nica verso da histria e sero usados, no futuro, como fontes orais para jovens historiadores e historiadoras dizerem como ocorreu a histria e formou-se a historiografia de Campina Grande e da Paraba. E eu, os possveis leitores deste texto e a nobre colega historiadora, teremos virado poeira na memria de todos.

REFERNCIASGOMES, ngela de Castro Cultura poltica e cultura histrica no Estado Novo in: Cultura Poltica e leituras do passado: historiografia e ensino de Histria / Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Gontijo (orgs.). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.

GURJO, Eliete de Queiroz Para onde o poder vai, a feira vai atrs: estratgias de poder da elite campinense, da monarquia Repblica Nova in: Imagens multifacetadas da Histria de Campina Grande. Campina Grande; PMCG; 2000.NORA, Pierre. Entre Memria e Histria: A problemtica dos lugares in: Projeto Histria; So Paulo, SP, 1981.PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginrio da cidade: vises literrias sobre o urbano Paris; Rio de Janeiro; Porto Alegre. Porto Alegre; Ed. da UFRGS, 2002.RICOUER, Paul. A memria, a histria e o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.SANTOS, Milton. Espao e Mtodo. So Paulo, Nobel, 1985.

Prof. dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao (mestrado) em Histria da UFCG

Com referncia aos mais clssicos, consultei ALMEIDA, Elpdio de. Histria de Campina Grande. 2 edio; Joo Pessoa; Editora Universitria/UFPB, 1978; CMARA, Epaminondas Datas Campinenses Campina Grande; Edies Caravela; 1998 e para os autores que traaram outras diretrizes baseados em novos aportes tericos consultei AGRA DO , Alarcon Da cidade de pedra cidade de papel; Campina Grande; EDUFCG; 2006 e AGRA, Giscard Farias A Urbs doente e medicada: a higiene na construo de Campina Grande, 1877 a 1935; Campina Grande; Grfica Marcone, 2006 e SOUSA, Fabio Gutemberg Ramos Bezerra de Territrios de Confronto Campina Grande (1920-1945); Campina Grande; EDUFCG; 2007.

SOUSA, Antonio Clarindo B. - Lazeres permitidos, prazeres proibidos: Sociedade, Cultura e Lazer em Campina Grande (1945-1965); Recife; UFPE Tese de doutorado; 2002.

Sobre os lugares de memria ver: NORA, Pierre. Entre Memria e Histria: A problemtica dos lugares in: Projeto Histria; So Paulo, SP, 1981.

Sobre este aspecto consultar GURJO, Eliete de Queiroz. In: Imagens Multifacetadas da Histria de Campina Grande; Campina Grande; PMCG; 2000.

Sobre o processo de transformao de ESPAO em LUGAR ver SANTOS, Milton. Espao e Mtodo. So Paulo, Nobel, 1985, p. 6. Na qual ele afirma que: ...por fora de variveis localizadas, determinado espao se concretiza e adquire a especificidade de lugar, ou seja, um espao se transforma em lugar sob o impacto funcional do meio ecolgico (complexos ecolgicos), das firmas (que produzem bens, servios e idias), das instituies (que criam norma, ordens e legislaes), das infra-estruturas (que constituem a expresso material e local do trabalho humano) e dos homens que correspondem fora de trabalho capaz de modificar um espao em lugar.

O termo afeto aqui est proposto com os dois sentidos que a palavra comporta. Como afetividade, um modo de gostar e como afeco, pathos, doena, que nos toca e gera sintomas.

Depoimento do Sr. Joo Dantas, concedido ao autor no dia 04.02.2000.

Sobre a reinveno dos lugares e dos espaos ver: CERTEAU, Michel de. A inveno do Cotidiano: Artes de fazer Tomo I; Petrpolis/RJ: Vozes, 1994, p. 38.

FOUCAULT, Michel. A microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. e OBRIEN Patrcia. A histria cultural de Michel Foucault in: HUNT Lynn. A Nova Histria Cultural. So Paulo: Martins Fontes, 1992 (Coleo o Homem e a Histria); p. 34-35.

Michel de Certeau. Op. Cit., p. 41.

Este texto final lido pelo professor, advogado e bomio Larcio Agra foi escrito em 1995, continuava indito at esta entrevista, na qual ele me fez a gentileza de compartilhar suas memrias sobre os cabars, bares e mulheres da cidade de Campina Grande dos idos de 50 e 60. Entrevista concedida ao autor em 02.02.2001

Entrevista concedida ao autor pelo Sr. Severino Ramos Barreto e D. Janira Santiago Barreto no dia 07.02.1999

Ibdem.