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Construindo o saber agroecológico e da educação do campo frente à hegemonia do capital: elementos para um projeto contra-hegemônico 1 José Gomes de Melo Júnior 2 Introdução Este trabalho faz uma revisão bibliográfica de quatro textos que contém elementos teóricos que contribuem para a assimilação dos conceitos de hegemonia, contra-hegemonia e emancipação, assim como: da Questão Agrária e das agroestratégias, da Agroecologia e da Educação do Campo/Educação Popular, trabalhados pelos textos. Neste texto de revisão bibliográfica, que é um produto dos fichamentos dos textos: Contra-hegemonias e Emancipações: apontamento para um início de debate (de Raúl Ornelas), Agroestratégias e Desterritorialização: os direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios (de Alfredo Wagner), Desafios para o agroecologista como portador de uma nova matriz tecnológica para o campesinato (de Horacio Martins) e Educação do 1 Trabalho apresentado como parte da avaliação do Curso de Especialização em Educação do Campo, Agroecologia e Questão Agrária na Amazônia da Universidade Federal do Pará – Campus Universitário de Marabá em parceria com a Via Campesina Brasil. 2 Engenheiro Florestal, educando do Curso de Especialização em Educação do Campo, Agroecologia e Questão Agrária na Amazônia e membro da Via Campesina Brasil pela Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal.

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Construindo o saber agroecológico e da educação do campo frente à hegemonia do

capital: elementos para um projeto contra-hegemônico1

José Gomes de Melo Júnior2

Introdução

Este trabalho faz uma revisão bibliográfica de quatro textos que contém elementos

teóricos que contribuem para a assimilação dos conceitos de hegemonia, contra-

hegemonia e emancipação, assim como: da Questão Agrária e das agroestratégias, da

Agroecologia e da Educação do Campo/Educação Popular, trabalhados pelos textos.

Neste texto de revisão bibliográfica, que é um produto dos fichamentos dos textos:

Contra-hegemonias e Emancipações: apontamento para um início de debate (de Raúl

Ornelas), Agroestratégias e Desterritorialização: os direitos territoriais e étnicos na mira

dos estrategistas dos agronegócios (de Alfredo Wagner), Desafios para o agroecologista

como portador de uma nova matriz tecnológica para o campesinato (de Horacio

Martins) e Educação do Campo: notas para uma análise de percurso (de Roseli Salete),

mobilizei a idéia de cada autor, para apontar elementos para a perspectiva de construção

de um projeto contra-hegemônico para a sociedade, do ponto de vista do campo,

calcados em uma nova matriz tecnológica e de produção antagônica a atual matriz

dominante e em uma educação emancipadora, que enalteça os sujeitos do campo e que

seja crítica à educação formal determinada pelo Estado.

Hegemonia enquanto projeto de dominação burguesa

As agroestratégias como mecanismo de apropriação da terra pela burguesia agrária

Orientando-se pela noção de que a questão agrária traz o entendimento das várias

relações determinadas no campo – como a sociedade organiza(ou) a posse, o uso e a

1 Trabalho apresentado como parte da avaliação do Curso de Especialização em Educação do Campo, Agroecologia e Questão Agrária na Amazônia da Universidade Federal do Pará – Campus Universitário de Marabá em parceria com a Via Campesina Brasil.

2 Engenheiro Florestal, educando do Curso de Especialização em Educação do Campo, Agroecologia e Questão Agrária na Amazônia e membro da Via Campesina Brasil pela Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal.

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propriedade da terra e a produção dos bens oriundos do meio rural – e dialogando com a

definição de Almeida (2009), que as agroestratégias compreendem um conjunto de

iniciativas para remover os obstáculos jurídico-formais à expansão do cultivo de grãos e

para incorporar novas extensões de terras aos interesses industriais, percebemos

nitidamente que o projeto (hoje) hegemônico no campo (leia-se agronegócio) almeja

cada vez mais expandir seu domínio territorial no Brasil, sendo que este está vinculado

ao mercado mundial pelo fornecimento de fontes de bens primários e que possui um

modelo agroexportador, baseado na grande propriedade, onde o seu desenvolvimento

leva a concentração fundiária, atenuando assim os problemas agrários no país.

Este é o ponto de partida para fazemos uma leitura da atual situação agrária no Brasil,

uma vez que isso tudo se dá à custa da desterritorialização de povos e comunidades que

tradicionalmente ocupam as terras que os interesses dos agronegócios e de mineradoras

pretendem incorporar a seus grandes empreendimentos (ALMEIDA, 2009). Onde nem

mesmo os dispositivos legais são respeitados, já que estes estão na ordem do dia para

serem mudados (onde o caso mais recente e emblemático é o da proposta de alteração

da Lei 4771/65 - Código Florestal), muito menos as questões culturais:

“Fatores étnicos, laços de parentesco e práticas costumeiras de terras de herdeiros sem formalização de partilha, livre acesso aos campos naturais (no golfão maranhense, no cerrado, nas campinaranas de regiões amazônicas e nos campos da ilha de Marajó) e inúmeras outras situações de uso comum dos recursos naturais, que se encontram formalmente abrigadas sob a designação de terras tradicionalmente ocupadas, são vistas como representando obstáculos às transações de compra e venda de terras. Terras indígenas, terras de quilombos, faxinais, fundos de pasto, áreas de extrativismo das quebradeiras de coco babaçu e de castanheiros, segundo os interesses ruralistas, vêm dificultando a reestruturação formal do mercado de terras, deixando imensas extensões fora dos circuitos mercantis de troca. As agroestratégias visam a remover tais obstáculos e incentivar as possibilidades de compra e venda, ampliando as terras disponíveis aos empreendimentos vinculados aos agronegócios” (ALMEIDA, 2009).

Além da concentração fundiária, que coloca o país como o segundo com maior

concentração de terras no mundo, a expropriação de comunidades de suas terras e o

acirramento dos conflitos no campo estão dentre as outras “problemáticas agrárias”

provenientes do modelo de desenvolvimento agrário, mineral e exportador que a

burguesia brasileira abraçou para ser para ser o carro-chefe da economia de seu projeto

de dominação hegemônica no campo.

Há também a utilização de discursos com a estratégia de manobrar a sociedade

brasileira a cerca de um apogeu do progresso impulsionado pelo agronegócio e a

necessidade de acumulação de mais terras, como levantado por Almeida (2009):

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“No caso brasileiro, faz parte das agroestratégias a disseminação de uma visão triunfalista dos agronegócios articulada com uma imagem hiperbolizada do Brasil e de seu potencial agrícola. A narrativa mítica de terras ilimitadas, como se fossem recursos abertos e/ou “espaços vazios”, abre em decorrência um novo capítulo de conflitos sociais no campo, porquanto toda e qualquer extensão de terra é apresentada como disponível à expansão dos agronegócios.”

Que na verdade conflitua com a produção de alimentos e uma soberania alimentar

brasileira:

“A chamada ‘crise alimentar’ aparece, assim, formulada sobre duas contradições principais: (a) oposição entre mercado de Commodities e mercado segmentado, expressa pelos conflitos que envolvem grandes empreendimentos monocultores, que buscam usurpar os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais, apossando-se de suas terras; (b) oposição entre a produção de biocombustível e a produção de alimentos.” (ALMEIDA, 2009).

Por fim, almejando concluir este primeiro momento de caracterização da atual realidade

agrária brasileira de disputa por terra, tendo o agronegócio articulado estratégias para

sua territorialização, destaco a posição do Estado enquanto instrumentalizador deste

modelo, que serve aos interesses da classe dominante e que permite às grandes

corporações a concentração de capital, tendo empreendimentos em todo o processo

produtivo - desde a venda das sementes (em grande parte transgênicas), dos

maquinários utilizados e dos insumos agroquímicos, até os medicamentos diretamente

ligados a cura de doenças causadas nos seres humanos por seus usos - para assim

consolidar uma hegemonia capitalista no campo.

Romper a dominação: construir um projeto a partir da organização, dos

horizontes das lutas sociais e via uma utopia transformadora!

Tendo feito uma breve caracterização do projeto de hegemonia da burguesia agrária

brasileira e dos seus mecanismos de consolidação deste projeto dominante e o que isso

reflete na atual realidade agrária do país, o desafio é enxergar como os povos do campo

e da floresta (camponeses, quilombolas, ribeirinhos, indígenas) podem estabelecer um

“contra-projeto” no campo.

Os horizontes das lutas sociais apontam para uma superação/transformação da realidade

social, onde de certa maneira estes horizontes devem estar fundamentados em um

projeto que reúna as reais demandas do povo, sem depender do Poder Público, do

Estado e da burguesia.

Este projeto quando assume uma disputa da estrutura da sociedade incorpora um

patamar contra-hegemônico, entretanto quando ele toma pra si uma busca pela

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autonomia coloca-se como emancipatório. Tendências estas de “contra-projeto” que se

diferenciam entre si enquanto o objeto em disputa, mas que se orientam pelo histórico

das lutas dos trabalhadores e suas organizações, expresso por Ornelas (2008):

“A experiência histórica da luta social, e muito especialmente, a história dos processos revolucionários, nos mostra que os pontos de referência que proporcionam idéias-força para orientar a luta e a transformação social têm uma importância capital. Mesmo sendo verdade que são os trabalhadores e suas organizações os que se constituem em sujeitos da transformação social através de suas lutas, aquilo que chamamos de pontos de referência (que foram organizações, mas também jornais, clubes e mais recentemente, grupos de intelectuais) fizeram contribuições qualitativas, no sentido de oferecer uma formulação das análises e das estratégias adequadas ao momento histórico, levando em conta as realidades do sujeito transformador.”

Onde na verdade em quase todas as lutas sociais que se desenvolvem atualmente

podemos reconhecer ambas buscas, com os movimentos sociais atuais como

movimentos sociais e políticos, apesar de suas formas de fazer política serem diferentes

das formas predominantes (ORNELAS, 2008).

São ai que se inserem (com experiências sociais de caráter híbrido ou não) os

movimentos sociais hoje: com uma forma em fazer política diferenciada da política

institucional e com suas bandeiras de luta para as várias esferas da sociedade (desde a

saúde, passando pela educação até o modelo energético), fazendo assim uma disputa de

projeto, com outra visão de mundo, através de suas bandeiras.

E é a partir da organização dos povos do campo, com suas bandeiras de luta e

cotidianamente nas lutas rumando a um projeto de cunho contra-hegemônico a este

atual de dominação capitalista no campo, que podemos contemplar as demandas do

povo.

Onde podemos colocar na ordem do dia como uma demanda concreta para o povo do

campo é a educação. Uma vez que a realidade dos trabalhadores do campo não é

considerada na educação dentro deste projeto dominante, por isso em meio às

perspectivas vislumbradas em uma educação crítica e libertadora e que superasse a

universalidade da educação formal que se constituiu a Educação do Campo, com a sua

criticidade à própria educação formal e gestada nos movimentos sociais a partir de sua

pedagogia. Como ressalta Caldart (2008):

“A Educação do campo nasceu como crítica à realidade da educação brasileira, particularmente à situação educacional do povo brasileiro que trabalha e vive no/do campo.Esta crítica nunca foi à educação em si mesma porque seu objeto é a realidade dos trabalhadores do campo, o que necessariamente a remete ao trabalho e ao embate entre projetos de campo que têm consequências sobre a realidade educacional e o projeto de país. Ou seja, precisamos

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considerar na análise que há uma perspectiva de totalidade na constituição originária da Educação do campo.”

É nesse sentido que a educação assume uma ferramenta de classe, a partir de um

projeto, onde a Educação do Campo ganha uma opção pelos povos do campo, uma vez

que ela é uma prática pedagógica e educativa contra-hegemônica, que não tem fim em si

mesma, que enaltece a cultura popular e politicamente traz uma perspectiva de

transformação.

Da mesma maneira que há uma necessidade em se construir uma educação aos moldes

da realidade do campo, é necessário que os povos do campo tenham uma matriz

tecnológica e de produção que leve em consideração os aspectos cultural, ambiental,

social, ético, econômico e político, ou seja, apoiada nos princípios gerais da

agroecologia, a partir da sua realidade local e negando assim a matriz tecnológica e de

produção dominantes.

É assim que emerge um saber agroecológico, a partir da adoção dos povos do campo por esta matriz tecnológica diferenciada e que possa proporcionar também melhoria de renda aliada a qualidade de vida.

“relacionados com a produção agropecuária e florestal, os camponeses deverão dar conta de resolver dois grandes desafios diretamente relacionados com o objeto da produção camponesa: aumentar e diversificar a escala de produção para a obtenção de recursos monetários para darem conta da melhoria continuada da reprodução social das condições de vida (qualidade de vida e de trabalho camponeses) da família camponesa; aumentar e diversificar a produção em escalas necessárias para darem conta da demanda nacional de alimentos, fibras, agrocombustíveis e outras matérias-primas de origem agropecuária e florestal diversas para as agroindústrias, assim como para a exportação.” (CARVALHO, 2007)

Além do que a soberania alimentar, um projeto contra-hegemônico, necessita não apenas da matriz de produção agroecológica, mas para além da demanda nacional, a diversidade de sua produção agropecuária e florestal cumprir com uma parcela para exportação, como levanta Carvalho (2007):

“relacionados com a produção agropecuária e florestal, os camponeses deverão dar conta de resolver dois grandes desafios diretamente relacionados com o objeto da produção camponesa: aumentar e diversificar a escala de produção para a obtenção de recursos monetários para darem conta da melhoria continuada da reprodução social das condições de vida (qualidade de vida e de trabalho camponeses) da família camponesa; aumentar e diversificar a produção em escalas necessárias para darem conta da demanda nacional de alimentos, fibras, agrocombustíveis e outras matérias-primas de origem agropecuária e florestal diversas para as agroindústrias, assim como para a exportação.”

Considerações finais

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Tendo considerado uma nova matriz tecnológica e de produção e uma educação

diferenciada para o campo, orientada na organização e em um horizonte de luta fiz aqui

um exercício em trabalhar duas esferas estruturantes na sociedade que minimamente

constituiria um projeto contra-hegemônico, considerando que a contra-hegemonia, faz

uma disputa estruturante da sociedade, com outra visão de mundo calcada em um

projeto para se construir um poder que não seja o atual e dominante. Sendo assim a

Agroecologia e a Educação do Campo, constituem como instrumentos dos povos do

campo para serem elementos que possam se somar para construir outro projeto de

campo brasileiro.

Referências

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Agroestratégias e Desterritorialização: os

direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In: O

Plano IIRSA na visão da Sociedade Civil Pan-Amazônica, p. 57-105.

CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo: notas para uma análise de

percurso. Porto Alegre, novembro/2008. 20 p.

CARVALHO, Horacio Martins. Desafios para o agroecologista como portador de

uma nova matriz tecnológica para o campesinato. Curitiba, 2007. 11p.

ORNELAS, Raúl. Contra-hegemonias e Emancipações: Apontamento para um

início de debate. In: Os desafios das emancipações em um contexto militarizado, p. 89-

113.