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; METODOLOGIA DO NÚCLEO JURÍDICO DO CRAVI Construir uma metodologia' de atendimento jurídico para o CRAVI é um tremendo desafio teórico e prático. De início, trata-se de um tema extremamente complexo, implicando questões técnicas, jurídicas, políticas e sociais que se condensam em grandes ideologias. Por outro lado, o CRA VI já conta com uma série de escolhas institucionais que fazem parte de seu desenvolvimento histórico: 1. O CRA VI é um programa da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo que inclui parcerias entre instituições públicas estatais e não-estatais; 2. O foco do trabalho é o atendimento à vítima e o rompimento dos ciclos de vitimização; 3. Desde a sua fundação o CRA VI procura implantar uma metodologia de trabalho interdisciplinar; 4. O objetivo de trabalho do CRAVI não é de viés assistencialista, senão de promoção dos direitos humanos e fortalecimento da cidadania; 5. Investimento e valorização da equipe de profissionais com a criação de espaços participativos de discussão de casos e rumos institucionais. A partir destas referências, era necessário encontrar uma metodologia de trabalho que contemplasse as características da pluralidade, interdisciplinaridade, dinamismo e efetividade. Logo, nosso desenho metodológico pode ser assim definido: 1. Iremos mapear o sistema discursivo por onde transitam as vítimas de violência, desenhando o sistema observado ou sistema discursivo "Vítima"; 2. Identificaremos cada elemento deste sistema discursivo, situando-os socialmente, descrevendo hierarquias, relações de poder e funções; 3. Nos situaremos neste sistema discursivo constituindo a nós mesmos como sistema observador; 4. Devolver ao sistema discursivo e seus elementos a demanda do usuário ressignificada em linguagem jurídica ou em ação política. Além disso, devemos pontuar algumas regras para esta opção metodológica (Davila): 1. Para dar sentido a esta investigação, é importante ressaltar que o sistema observador é o lugar onde as informações se convertem em significado; 2. O planejamento inicial é suscetível de questionamento, revisão e transformação; 3. O desenho qualitativo é aberto, tanto no que conceme à seleção de participantes atuantes na produção do contexto, como no que conceme à interpretação e análise; 4. O desenho qualitativo se caracteriza pela invenção, isto é, sempre dá margem ao inesperado, posto que as técnicas de investigação social se aplicam em uma realidade sempre dinâmica; 1 As metodologias e técnicas de investigação de um fenômeno social podem ser comparadas a uma situação militar (Davi Ia). A metodologia se compara às estratégias, ou seja, a tarefa de delimitar o campo de batalha, posicionar os pelotões e a artilharia, calcular as guarnições. As técnicas são as táticas de guerra, ou seja, tudo o que é utilizado no calor do campo de batalha, no corpo a corpo, enfim, é o próprio combate. As táticas devem ser adequadas à estratégia, e a estratégia deve ser adequada ao campo de batalha e ao inimigo que se irá enfrentar. As referências metodológicas foram apreendidas durante o curso "Metodologia Cualitativa para Ia Investigacción de Derechos de Gênero", do programa de doutorado "Pasado Y Presente de los Derechos Humanos", da Universidade de Salamanca / Espanha. (J. Ibariez, Gutierrez y Delgado, Andrés Davila, Alfonso Ortl), Sobre a teoria dos sistemas a referência essencial é Niklas Luhmann. Para a relação entre teoria dos sistemas e direito a referência é Gunther Teubner. A teoria da ação comunicativa é obra de Jurgen Habermas.

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METODOLOGIA DO NÚCLEO JURÍDICO DO CRA VI

Construir uma metodologia' de atendimento jurídico para o CRAVI é umtremendo desafio teórico e prático. De início, trata-se de um tema extremamente complexo,implicando questões técnicas, jurídicas, políticas e sociais que se condensam em grandesideologias. Por outro lado, o CRAVI já conta com uma série de escolhas institucionais que fazemparte de seu desenvolvimento histórico:

1. O CRAVI é um programa da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado deSão Paulo que inclui parcerias entre instituições públicas estatais e não-estatais;

2. O foco do trabalho é o atendimento à vítima e o rompimento dos ciclos de vitimização;3. Desde a sua fundação o CRAVI procura implantar uma metodologia de trabalho

interdisciplinar;4. O objetivo de trabalho do CRAVI não é de viés assistencialista, senão de promoção dos

direitos humanos e fortalecimento da cidadania;5. Investimento e valorização da equipe de profissionais com a criação de espaços

participativos de discussão de casos e rumos institucionais.

A partir destas referências, era necessário encontrar uma metodologia de trabalhoque contemplasse as características da pluralidade, interdisciplinaridade, dinamismo eefetividade. Logo, nosso desenho metodológico pode ser assim definido:

1. Iremos mapear o sistema discursivo por onde transitam as vítimas de violência,desenhando o sistema observado ou sistema discursivo "Vítima";

2. Identificaremos cada elemento deste sistema discursivo, situando-os socialmente,descrevendo hierarquias, relações de poder e funções;

3. Nos situaremos neste sistema discursivo constituindo a nós mesmos como sistemaobservador;

4. Devolver ao sistema discursivo e seus elementos a demanda do usuário ressignificada emlinguagem jurídica ou em ação política.

Além disso, devemos pontuar algumas regras para esta opção metodológica(Davila):

1. Para dar sentido a esta investigação, é importante ressaltar que o sistema observador é olugar onde as informações se convertem em significado;

2. O planejamento inicial é suscetível de questionamento, revisão e transformação;3. O desenho qualitativo é aberto, tanto no que conceme à seleção de participantes atuantes

na produção do contexto, como no que conceme à interpretação e análise;4. O desenho qualitativo se caracteriza pela invenção, isto é, sempre dá margem ao

inesperado, posto que as técnicas de investigação social se aplicam em uma realidadesempre dinâmica;

1 As metodologias e técnicas de investigação de um fenômeno social podem ser comparadas a umasituação militar (Davi Ia). A metodologia se compara às estratégias, ou seja, a tarefa de delimitar o campode batalha, posicionar os pelotões e a artilharia, calcular as guarnições. As técnicas são as táticas deguerra, ou seja, tudo o que é utilizado no calor do campo de batalha, no corpo a corpo, enfim, é o própriocombate. As táticas devem ser adequadas à estratégia, e a estratégia deve ser adequada ao campo debatalha e ao inimigo que se irá enfrentar. As referências metodológicas foram apreendidas durante ocurso "Metodologia Cualitativa para Ia Investigacción de Derechos de Gênero", do programa dedoutorado "Pasado Y Presente de los Derechos Humanos", da Universidade de Salamanca / Espanha.(J. Ibariez, Gutierrez y Delgado, Andrés Davila, Alfonso Ortl), Sobre a teoria dos sistemas a referênciaessencial é Niklas Luhmann. Para a relação entre teoria dos sistemas e direito a referência é GuntherTeubner. A teoria da ação comunicativa é obra de Jurgen Habermas.

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5. A atenção é dada aos lugares onde ocorre o rompimento com a regularidade (o diferente)e nos vazios de comunicação (silêncios), o que nos indica a existência dedescontinuidades no sistema.

o Sistema Discursivo Vítima

Como é o desenho do sistema discursivo "Vítima"? A melhor resposta talvez sejauma outra pergunta: O que acontece com a vítima de um crime? Ora, a vítima passa a transitarem um Sistema Discursivo "Vítima" dos quais, no quadro 1 e 2, citamos e definimos alguns deseus elementos.

Como podemos observar, o sistema discursivo "Vítima" é bastante amplo, e setorna ainda mais complexo quando percebemos que cada um de seus elementos é em si um outrosubsistema em relação com outros subsistemas. Mas, seguindo a estratégia metodológica, aodesenharmos o espaço discursivo "Vítima", passamos a delimitar nosso campo de observação aomesmo tempo em que podemos transformar este sistema observado através de intervençõestáticas catalisadas pelo sistema observador.

A metodologia consiste em inserir a vítima ao sistema observador e fazê-Ia passara uma situação ativa junto ao sistema observado:

1. A vítima, que transita passiva ou caoticamente ao sabor do sistema discursivo "vítima",chega ao CRAVI para atendimento;

2. O CRAVI, através de sua situação como sistema observador, inclui a vítima em seusistema utilizando todo o potencial de seus dispositivos institucionais;

3. O CRAVI e o usuário, agora integrantes de um mesmo sistema observador, operamintervenções junto ao sistema observado, utilizando todo o potencial de seus dispositivosinstitucionais.

Ao inserir a vítima ao sistema observador e fazê-Ia passar a uma situação ativajunto ao sistema observado operamos, em tese, a principal finalidade do programa, ou seja,"transformar a vítima em cidadã". Esta é a principal virtude desta metodologia e que consideroser o ponto de transição para uma atuação mais efetiva no contexto do atendimento a vítimas deviolência.

Mas não é assim tão simples. Como dissemos anteriormente, o principal problemadas metodologias qualitativas é o contínuo aprimoramento e desenvolvimento das técnicasutilizadas para intervir nos "lugares de enunciação dos discursos". Tanto no atendimento aousuário do serviço quanto nas reuniões com os representantes das instituições componentes dosistema "Vítima", o trabalho é intenso no sentido de promover alterações qualitativassignificativas, ou seja, criar inovações positivas em todo o sistema (promover direitos). Assim,podemos ver no quadro 3, os discursos mais comuns que encontramos nas interações no sistemaobservador e entre o sistema observador e o sistema observado.

Além disso, um dos principais problemas em nosso sistema discursivo vítimaocorre quando percebemos alguma interrupção no fluxo discursivo, isto é, quando existem"vazios" discursivos no sistema. Quando isto ocorre, devemos criar dispositivos que criemespaços de fala que incluam o discurso da vítima no sistema e reestabeleça a comunicação. Istopode ocorrer em locais onde a presença da vítima (física ou simbolicamente) gera uma incômodaimplicação entre os falantes. Por exemplo, pela dificuldade dos temas tratados (os laudos, aliberação dos corpos, a visão próxima e real da violência e da morte) poderíamos detectar aexistência de dificuldades de comunicação entre funcionários do Instituto Médico Legal de São

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Paulo e vítimas e, a partir disso, criar juntamente com os envolvidos, formas de facilitar eretomar a comunicação '. Em outra situação, poderíamos detectar a falta de comunicação entre avítima e o Ministério Público do Estado de São Paulo ou outros órgãos públicos de Justiça.Favorecer os contatos e interações reais entre vítima e operador do direito pode trazer umapercepção mais exata dos papéis sociais e da função do direito.

Os principais indicadores de resultado na aplicação desta metodologia são:produção de conhecimento interdisciplinar (observável através da produção de textos, cursos eseminários, do desenvolvimento e descrição das técnicas de intervenção, dos relatórios,discussões e estudos de casos) e a inclusão do usuário no sistema observador (o que podesignificar a adesão do usuário ao serviço e seu empenho nas atividades institucionais). Osindicadores quantitativos se referem à aplicação das técnicas de intervenção, tanto no sistemaobservador (quantidade e modalidades de acolhimentos e atendimentos, quantidade emodalidades de reuniões e supervisões, etc.) quanto no sistema observado (quantidade emodalidade de reuniões, quantidade e variedade de locais visitados, etc.).

Verificamos que quando trabalhamos diretamente nos espaços de enunciação dediscursos, revelamos de fato a problemática envolvida na tarefa de inclusão da vítima no sistemadiscursivo desde o lugar de observador. A questão principal para resolver estes dilemas consisteno constante aperfeiçoamento das técnicas de intervenção, ou seja, no investimento nosdispositivos institucionais.

Os dispositivos do sistema observador são aqueles aplicados e processados desdeo lugar de observação e no lugar de observação:

• Reunião Geral: composto por toda a equipe de técnicos e coordenação, com pautas queabrangem os limites institucionais em sentido amplo.

• Discussões de casos: composto pelo grupo de técnicos que atendem a determinado casoconcreto.

• Supervisão lnstitucional: composto por toda a equipe da instituição, que é submetida àanálise desde um olhar de fora.

• Acolhimento: primeiras interações entre a instituição e o usuário do serviço com o fim dese estabelecer um contrato.

• Atendimento individual: composto por um usuário do serviço em interação com ainstituição, que pode estar representada por um ou mais profissionais.

• Atendimento coletivo: composto por dois ou mais usuários do serviço em interação coma instituição, que pode estar representada por um ou mais profissionais. A partir destecritério, pode se desdobrar em atendimento familiar ou em grupo.

Os dispositivos no sistema observado dizem respeito a interações heterogêneasentre o sistema observador e o sistema observado com vistas a uma implicação nas intervençõese provocações do sistema observador e que dizem respeito à entrada no fluxo do sistemadiscursi vo "Vítima".

Os dispositivos do sistema observado fazem emergir toda a problemática dosistema discursivo "Vítima" através de suas relações interinstitucionais e são as atividades maissujeitas aos conflitos, trazendo todo um rol de questões hierárquicas e de relações de poder queincidem nestas instituições. Logo, cabe elaborar uma estratégia adicional à nossa metodologiaproposta e que leva o nome de "Estratégia de Diferenciação".

2 Não se trata de onerar os funcionários, mas de facilitar o seu trabalho através do enfrentamento dedesafios comuns no atendimento a vítimas e a perspectiva da vítima.

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A "Estratégia de Diferenciação" é uma operação lógica, de caráter autopoiético,que procura através da interação com o outro, estabelecer diferenças entre as funções sistêmicasinerentes a cada subsistema dentro do sistema discursivo "Vítima". Tem o objetivo de consolidaro sistema observador como uma entidade própria, com consistência interna apta a funcionar deacordo com parâmetros autopoiéticos de tomada de decisão. Isto quer dizer que ao se inserir nosistema discursivo "Vítima", o eRA VI apenas passa a existir em razão uma "Estratégia deDiferenciação" que o impeça de ser colonizado e absorvido por instituições poderosas como oMinistério Público, a Polícia, a Defensoria Pública, a OAB, o Poder Judiciário, etc.

A chave principal da questão é definir a insígnia que sustenta a coerência internado sistema observador. Se tal chave não for encontrada, o eRA VI corre o risco de umadesestruturação iminente, já que a autopoiésis não pode ser realizada. E entendo que,inicialmente, a operação de "input" poderia assim ser definida:

"Acolher a vítima".

A seguir, a operação que dá a função normativa primordial do eRA VI no sistemadiscursivo Vítima poderia ser:

"Reorientar a ação dos demais subsistemas com a inclusão do discursoconstruído desde a perspectiva da Vítima".

Logo, acolher a vítima de violência e reorientar a ação das instituiçõescomponentes do sistema discursivo Vítima a partir de uma perspectiva trabalhada com o usuáriodo serviço numa ótica de construção e promoção de direitos é o sinal distintivo do eRA VIperante as demais instituições, e sua missão.

A intervenção do sistema observador no sistema observado e seus elementos, nosentido de reorientá-los a partir da perspectiva da vítima não se opera no sistema jurídico comopoderíamos concluir à primeira vista. A operação ocorre nas suas aberturas sistêmicas do sistemadiscursivo "Vítima", ou seja, em frações permeáveis de suas estruturas que possibilitam a açãopolítica do sistema observador. Estas "frações permeáveis" no sistema observado são os espaçosde diálogo possíveis construídos em cada um dos elementos do sistema discursivo "Vítima", e seconstituem nos dispositivos do sistema observado:

• Reuniões interinstitucionais: composta por representantes de vanas instituições quepodem definir urna atuação em rede no atendimento a vítimas de violência.

• Reuniões com operadores do direito: composta por representante do eRA VI em interaçãodireta com operador do direito (magistrado, promotor de justiça, delegado de polícia,defensor e auxiliares, etc.).

• Reuniões com operadores do direito e usuários: composta por representante do eRA VI eusuários em interação direta com operador do direito com o objetivo de criar espaços dediálogo e articulação reais para a vítima e para o operador.

• Ações de reforço: ofícios, petições, telefonemas e tudo o que conecte os discursos dasinstituições.

Logo, o que tem de jurídico na atuação do Núcleo Jurídico do eRA VI? o NúcleoJurídico do eRA VI transforma a demanda do usuário em linguagem jurídica e a apresenta aosistema discursivo "Vítima", o que não é nada banal. O profissional do Núcleo Jurídico deve terconhecimento jurídico sólido para debater e discursar a linguagem jurídica em seus espaçosjurídicos. Mas a formação deste profissional deve abranger conhecimentos de outras disciplinas,visão e habilidades políticas, além de fibra ética pautada na defesa dos direitos humanos. O

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Jurídico do CRAVI não é o contencioso e nem o Judiciário. O foco do trabalho é o usuário doserviço assim como os meios de levar o discurso da vítima ao sistema observado e lograrintervenções.

Assim, em sentido estrito, o profissional do jurídico do CRA VI não é "lawyer"(advogado) nem "prosecutor" (promotor). A melhor definição é "advocacy" já que se trata deuma atividade de cunho tanto ou mais político do que jurídico. Apesar disso, a habilitaçãoprofissional para o foro em geral é uma necessidade da função, já que acompanham-lhe umasérie de direitos e prerrogativas do qual fazemos uso com bastante freqüência.

O sentido de um serviço jurídico de atendimento a vítimas de violência decorre danecessidade de restabelecer o equilíbrio após um evento traumático causado por um ato violadorde direitos. Este desequilíbrio se inicia no ato violento e prossegue, nas mais diversas formas,repercutindo na sociedade e nas instituições. Logo, a função primordial do saber jurídico numserviço de atendimento a vítimas é o de reconstruir as noções correntes de direito e justiça,orientando-as e reconstruindo-as desde a perspectiva da vítima. Neste sentido, procura-secriar o direito e facilitar o acesso à justiça através da busca de um tratamento eqüitativo, pelanoção de igualdade complexa, nos sistemas discursivos por onde transitam as pessoas vitimadaspela violência.

Mas para ser efetiva, esta reconstrução deve, acima de tudo, considerar osfundamentos constitucionais da democracia e da cidadania. Isso significa construir eaprimorar serviços de atendimento à vítima que dêem voz e participação aos anseios das vítimase seus familiares na construção de suas próprias políticas de atendimento. Mas isso não deveimplicar na massificação dos atendimentos, em sua impessoalização, como normalmente se fazcom as políticas públicas a larga escala. O atendimento à vítima de violência deve primar por umcritério de personalização da assistência que tenha em conta as específicas circunstâncias do casoconcreto, escapando da estandardização própria dos serviços públicos. A título de comparação,deveria passar por um processo de individualização da reparação semelhante ao que se faz com aindividualização da pena (sem as distorções cometidas pelo sistema penal). Isso significa amanutenção de um espaço seguro, individual, privado, ainda que o objetivo final seja incentivaros esforços coletivos e a participação pública nos debates políticos correlatos.

Assim, uma metodologia de atendimento a vítimas de violência deve serconstruída levando em conta duas dimensões: 1) a dimensão do atendimento à vítima: comacolhimento, sessões de atendimento psicológico individual, familiar e grupal, assistênciajurídica e social, tanto nas dependências da entidade de atendimento como em outrasinstituições; 2) a dimensão sócio-política da vítima: com a constituição e manutenção deespaços públicos de efetiva participação de vítimas na elaboração de políticas públicas, estudos,manifestações e ações coletivas das vítimas. Uma dimensão não pode excluir a outra sob pena degerar mais violência, quer pela repetição da negligência, quer pela do silenciamento.

Em especial, devemos reconhecer o papel dos técnicos que atuam na linha defrente nos serviços de atendimento a vítimas de violência. São eles quem podem fazer apassagem da primeira para a segunda dimensão nesta metodologia de atendimento sem recair nosvícios das instituições. Entre a onipotência e a impotência ficam as relações humanas reais. É apercepção de que há um ser humano diante de ti que fala. Escuta-o.

São Paulo, 9 de agosto de 2007.

Shigueo Kuwahara.