Texto Integra a Sociologia e o Mundo Moderno 1

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Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) ARTIGO Octavio lanni** A Sociologia nasce e desenvolve-se com o Mundo Moderno. Reflete as suas principais épocas e transformações. Em certos casos, parece apenas a sua crônica, mas em outros desvenda alguns dos seus dilemas fundamentais. Volta-se principalmente sobre o presente, hprocurando reminiscências do passado, anunciando ilusões do futuro. Os impasses e as perspectivas desse Mundo tanto percorrem a Sociologia como ela percorre o mundo. Se nos debruçamos sobre os temas clássicos da Sociologia, bem como sobre as suas contribuições teóricas, logo nos deparamos com as mais diversas expressões desse Mundo. Sob diversos aspectos, ela nasce e desenvolve-se com ele. Mais do que isso, o Mundo Moderno depende da Sociologia para ser explicado, para compreender-se. Talvez se possa dizer que sem ela esse Mundo seria mais confuso, incógnito. A Sociologia não nasce no-nada. Surge em um dado momento da história do Mundo Moderno. Mais precisamente, em meados do século XIX, quando ele está em franco desenvolvimento, realizando-se. Essa é uma época em que já se revelam mais abertamente as forças sociais, as configurações de vida, as originalidades e os impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista. Os personagens mais característicos estão ganhando seus perfis e movimentos: grupos, classes, movimentos sociais e partidos políticos; burgueses, operários, camponeses, intelectuais, artistas e políticos; mercado, mercadoria, capital, tecnologia, força de trabalho, lucro, acumulação de capital e mais-valia; sociedade, estado e nação; divisão internacional do trabalho e colonialismo; revolução e contra-revolução. Um dos seus principais símbolos, o capital, parece estabelecer os limites e as sombras que demarcam as relações e as distâncias entre o presente e o passado, a superstição e a ilustração, o trabalho e a preguiça, a nação e a província, a tradição e a modernidade. Em suas conotações sociais, políticas e culturais, além das econômicas, o capital parece exercer uma espécie de missão civilizatória, em cada país e continente, no mundo. É claro que se podem reconhecer antecedentes ou prenúncios da Sociologia em idéias, filosofias e correntes de pensamento de outras épocas. São comuns as referências a Montesquieu, Vico e Rousseau, entre outros. Mas cabe lembrar IANNI, Octavio. A Sociologia e o mundo moderno. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 7-27, 1.sem. 1989. * Aula inaugural, proferida no dia 19 de março de 1988, para os alunos do Curso de Ciências Sociais, promovida pelo Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Escrita depois da fala. ** Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia FFLCH-USP. 1 Macaulay, Ensaio sobre Bacon, citado por STEINER, George. Dans le château de Barbe-Bleue: Notes pour une redéfinition de la culture. Trad. Lucienne Lotringer. Paris, Gallimard 1973, p. 18. 2 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus Livraria Editora Ltda, 1976, p. 134 (citação do aforisma nº 125). 3 HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa Guimarães Editores, 1959, p. 13 (citação do prefácio). 4 BAUDELAIRE, C. A Modernidade de Baudelaire. Org. Teixeira Coelho, trad. Suely Cassal. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra 1988. p. 173-4. 5 MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Alvaro Pina, notas Vasco Magalhães-Vilhena. São Paulo, Editora Novos Rumos, 1986, p. 84-5. 6 MARX, K. Discurso pronunciado na festa de aniversário do “People’s Paper”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Textos. São Paulo, Edições Sociais, 1977, vol. III, p. 298-9. 7 ADORNO, T.W. Minima Moralia. Trad. Norberto Silvetti Paz. Caracas, Monte Avila Editores, 1975, p. 153-4. Consultar também HABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1975, p. 142-155, item intitulado “El final del individuo?”. 8 HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Trad. José Gaos. 4.ed., Madrid, Revista de Occidente, 1974, p. 499. RESUMO: Este ensaio procura esclarecer o “compromisso” da sociologia com o mundo moderno formado com o desenvolvimento do capitalismo. Primeiro, examina as principais teorias clássicas. Mostra como elas nascem com os desafios com os quais se defronta a sociedade a partir de meados do século XIX. E lembra que essas teorias continuam a propiciar paradigmas para as correntes sociológicas que se propõem no século XX. Segundo, registra os temas fundamentais da sociologia, também criados no âmbito dessa sociedade; temas que continuam básicos nas correntes que se ensaiam no século XX. Terceiro, analisa as relações entre a sociologia e a modernidade, sugerindo que essa disciplina expressa dilemas e perspectivas do pensamento em fase da modernidade. E quarto, por fim, sugere que a sociologia pode ser lida como uma forma literária, na qual se destacam as criações épicas. Por seus temas e explicações, a sociologia muitas vezes parece uma épica do mundo moderno. UNITERMOS: Sociologia: teorias clássicas, temas fundamentais, modernidade, épica do mundo moderno. A SOCIOLOGIA E O MUNDO MODERNO*

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Tempo Social; Rev. Social. USP, S. Paulo, VOLUME 1(1) A R T I G O

Octavio lanni**A Sociologia nasce e desenvolve-se com o Mundo Moderno. Reflete as suas principais épocas e transformações. Em

certos casos, parece apenas a sua crônica, mas em outros desvenda alguns dos seus dilemas fundamentais. Volta-seprincipalmente sobre o presente, hprocurando reminiscências do passado, anunciando ilusões do futuro. Os impasses e asperspectivas desse Mundo tanto percorrem a Sociologia como ela percorre o mundo. Se nos debruçamos sobre os temasclássicos da Sociologia, bem como sobre as suas contribuições teóricas, logo nos deparamos com as mais diversas expressõesdesse Mundo. Sob diversos aspectos, ela nasce e desenvolve-se com ele. Mais do que isso, o Mundo Moderno depende daSociologia para ser explicado, para compreender-se. Talvez se possa dizer que sem ela esse Mundo seria mais confuso,incógnito.

A Sociologia não nasce no-nada. Surge em um dado momento da história do Mundo Moderno. Mais precisamente,em meados do século XIX, quando ele está em franco desenvolvimento, realizando-se. Essa é uma época em que já serevelam mais abertamente as forças sociais, as configurações de vida, as originalidades e os impasses da sociedade civil,urbano-industrial, burguesa ou capitalista. Os personagens mais característicos estão ganhando seus perfis e movimentos:grupos, classes, movimentos sociais e partidos políticos; burgueses, operários, camponeses, intelectuais, artistas e políticos;mercado, mercadoria, capital, tecnologia, força de trabalho, lucro, acumulação de capital e mais-valia; sociedade, estado enação; divisão internacional do trabalho e colonialismo; revolução e contra-revolução.

Um dos seus principais símbolos, o capital, parece estabelecer os limites e as sombras que demarcam as relações e asdistâncias entre o presente e o passado, a superstição e a ilustração, o trabalho e a preguiça, a nação e a província, atradição e a modernidade. Em suas conotações sociais, políticas e culturais, além das econômicas, o capital parece exerceruma espécie de missão civilizatória, em cada país e continente, no mundo.

É claro que se podem reconhecer antecedentes ou prenúncios da Sociologia em idéias, filosofias e correntes depensamento de outras épocas. São comuns as referências a Montesquieu, Vico e Rousseau, entre outros. Mas cabe lembrar

IANNI, Octavio. A Sociologia e o mundo moderno. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 7-27, 1.sem. 1989.* Aula inaugural, proferida no dia 19 de março de 1988, para os alunos do Curso de Ciências Sociais, promovida pelo Departamentode Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Escrita depois da fala.** Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia FFLCH-USP.1 Macaulay, Ensaio sobre Bacon, citado por STEINER, George. Dans le château de Barbe-Bleue: Notes pour une redéfinition de laculture. Trad. Lucienne Lotringer. Paris, Gallimard 1973, p. 18.2 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus Livraria EditoraLtda, 1976, p. 134 (citação do aforisma nº 125).3 HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa Guimarães Editores, 1959, p. 13 (citação doprefácio).4 BAUDELAIRE, C. A Modernidade de Baudelaire. Org. Teixeira Coelho, trad. Suely Cassal. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra 1988.p. 173-4.5 MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Alvaro Pina, notas Vasco Magalhães-Vilhena. São Paulo, EditoraNovos Rumos, 1986, p. 84-5.6 MARX, K. Discurso pronunciado na festa de aniversário do “People’s Paper”. In: MARX, K. & ENGELS, F. Textos. São Paulo,Edições Sociais, 1977, vol. III, p. 298-9.7 ADORNO, T.W. Minima Moralia. Trad. Norberto Silvetti Paz. Caracas, Monte Avila Editores, 1975, p. 153-4. Consultar tambémHABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires, AmorrortuEditores, 1975, p. 142-155, item intitulado “El final del individuo?”.8 HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Trad. José Gaos. 4.ed., Madrid, Revista de Occidente, 1974, p.499.

RESUMO: Este ensaio procura esclarecer o “compromisso” da sociologia com o mundo moderno formado com odesenvolvimento do capitalismo. Primeiro, examina as principais teorias clássicas. Mostra como elas nascem com os desafios comos quais se defronta a sociedade a partir de meados do século XIX. E lembra que essas teorias continuam a propiciar paradigmaspara as correntes sociológicas que se propõem no século XX. Segundo, registra os temas fundamentais da sociologia, tambémcriados no âmbito dessa sociedade; temas que continuam básicos nas correntes que se ensaiam no século XX. Terceiro, analisa asrelações entre a sociologia e a modernidade, sugerindo que essa disciplina expressa dilemas e perspectivas do pensamento em faseda modernidade. E quarto, por fim, sugere que a sociologia pode ser lida como uma forma literária, na qual se destacam as criaçõesépicas. Por seus temas e explicações, a sociologia muitas vezes parece uma épica do mundo moderno.

UNITERMOS: Sociologia: teorias clássicas, temas fundamentais, modernidade, épica do mundo moderno.

A SOCIOLOGIA E OMUNDO MODERNO*

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que esses e outros precursores foram “inventados” pelos fundadores da Sociologia. Os quadros intelectuais e a problemáticasocial desta, quando estabelecidos, tornam possível descobrir, localizar, criar ou recriar precursores. E isto é tanto maisfácil quando se constata que os antecessores realmente estavam buscando compreender as manifestações iniciais, menosdesenvolvidas mas já assinaladas, do Mundo Moderno.

É possível dizer que a Sociologia é uma espécie de fruto muito peculiar desse Mundo. No que ela tem de original ecriativa, bem como de insólita e estranha, em todas as suas principais características, como forma de pensamento, é umsingular produto e ingrediente desse mundo.

se lembra o passado e ressoa o futuro. Um tempo que contém os muitos andamentos dos indivíduos, grupos eclasses, movimentos sociais e partidos políticos, diversidades e desigualdades, contradições e rupturas, revoluções e contra-revoluções. Assim se revela a historicidade da sociedade modema, do Mundo Modemo. Apenas um momento da história,e não o apogeu e coroamento de todas as outras idades. Em seu interior germinam as forças e as relações que abalam opresente, resgatam fragmentos do passado, podem construir o futuro. A história da sociedade burguesa é uma história delutas sociais. Mas o segredo mais recôndito dessas lutas está em que elas produzirão a sociedade futura, livre dasdesigualdades escondidas nas diversidades entre indivíduos, grupos, classes, regiões. Nesse então, o homem estará livreda propriedade privada capitalista, entendida como fato jurídico-político, como realidade social e como princípioorganizatório universal da vida material e espiritual. Nesse então, os sentidos físicos e espirituais do homem estarão livrespara expressar-se, revelar-se. Assim começa a apagar-se o componente de barbárie que acompanha a Modernidade. Livresda tirania desse princípio, que os organiza, ordena e subordina, os sentidos físicos e espirituais poderão descobrir e inventarformas, cores, sons, movimentos, imagens, figuras, idéias e outras dimensões escondidas na máquina do Mundo. Assim,desse modo, plantado no vasto mural do Mundo Moderno, Marx pode ser visto como um profeta iluminado.

Princípios ExplicativosO pensamento filosófico do século XVIII e começo do XIX compreende um conjunto de contribuições da maior

importância para as ciências sociais em geral e a Sociologia em particular. O liberalismo, iluminismo, jacobinismo,conservantismo, romantismo e evolucionismo são algumas das principais manifestações do pensamento europeu dessetempo. São expressões da revolução cultural simbolizada nas obras de filósofos, cientistas e artistas como Rousseau, Kante Hegel, Goethe, Beethoven e Schiller, Adam Smith, Ricardo, Herder e Condorcet, entre outros.

A despeito da multiplicidade dessas correntes de pensamento, bem como das suas divergências, é inegável que noconjunto elas instituem algumas das condições epistemológicas do desenvolvimento das ciências sociais em geral e daSociologia em particular.

Por um lado, tratava-se de transferir ou traduzir para o campo da sociedade, cultura e história os procedimentosque já se haviam elaborado e continuavam a elaborar-se nas ciências físicas e naturais. Por isso é que em trabalhos deSociologia, passados e presentes, ressoam perspectivas organicistas, evolucionistas, funcionalistas e outras, oriundas daquelasciências. Os paradigmas das ciências físicas e naturais influenciaram e continuam a influenciar a reflexão de sociólogos.Nesse sentido é que as sugestões epistemológicas que se buscaram em Bacon, Galileu, Descartes e Kant, entre outros,ressoam nos procedimentos de pesquisa e explicação de uma parte da Sociologia passada e presente.

Por outro lado, tratava-se de criar novos procedimentos de reflexão, de modo a fazer face às originalidades dosfatos, acontecimentos e dilemas que caracterizam a vida social no Mundo Moderno. A emergência da sociedade civil,urbano-industrial, burguesa ou capitalista, passava a desafiar o pensamento em uma forma nova, pouco comum. Nessesentido é que as sugestões epistemológicas apresentadas por Vico, os enciclopedistas, Herder, Rousseau, Hegel e outrosrepresentam contribuições fundamentais para a criação de novos procedimentos de reflexão. O pensamento se tornacapaz de dar conta da originalidade dos fatos, acontecimentos e dilemas mais característicos das sociedades que se formamcom o Mundo Moderno.

Nos dois casos, no entanto, encontram-se influências da maior importância para a formação e o desenvolvimento daSociologia. No conjunto, as sugestões epistemológicas de uns e outros permitem que a Sociologia se preocupe tanto com arealidade social como com o processo de conhecimento. Estes são alguns momentos lógicos bastante freqüentes na reflexãosociológica: dado e significado, quantidade e qualidade, parte e todo, aparência e essência, singular e universal, causa esentido, negatividade e con

tradição, sincrônico e diacrônico. Devido ao seu contínuo diálogo com a Filosofia, a Sociologia guarda a peculiaridadede pensar-se continuamente, de par-em-par com a reflexão sobre a realidade social.

É claro que a Sociologia se divide em tendências, escolas, teorias, interpretações. Compreende produções que sepoderiam classificar em termos tais como os seguintes: evolucionismo, organicismo, positivismo, formalismo, funcionalismo,estruturalismo, estrutural-funcionalismo, fenomenologia, historicismo e outros. Há grandes teorias e teorias de alcancemédio. Umas privilegiam o pequeno grupo social, o cotidiano, as situações micro. Outras a sociedade como um todo, emseus movimentos gerais e particulares, em suas diversidades, disparidades e contradições. Compreendem relações, processose estruturas de dominação política e apropriação econômica.

Umas mantêm compromissos mais abertos com as sugestões epistemológicas das ciências físicas e naturais. Privilegiama indução quantitativa, a construção de variáveis, índices, indicadores, modelos, sistemas. Outras fundamentam-se nassugestões epistemológicas das ciências históricas, ou do espírito. Privilegiam o enfoque qualitativo, a descoberta de relações,processos e estruturas responsáveis pelos movimentos da sociedade. E há aquelas que privilegiam a intuição, a circunstância,o cotidiano, o efêmero, o singular, como revelam algumas produções inspiradas na fenomenologia existencialista.

Mas é possível que as várias tendências, escolas, teorias e interpretações se reduzam, em essência, a três polarizaçõesfundamentais. Umas e outras têm como base, em última instância, um dos três princípios explicativos: causação funcional,

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conexão de sentido e contradição. Esses são os princípios explicativos principais, nos quais se sintetizam os fundamentosdas mais diversas tendências, teorias, escolas ou interpretações. O princípio da causação funcional está presente em Spencer,Comte, Durkheim, Parsons, Merton, Touraine e outros. O da conexão de sentido inspira Dilthey, Rickert, Weber, Toennies,Nisbet e outros. E o da contradição fundamenta as contribuições de Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Rosa Luxemburgo,Lukacs, Gramsci, Goldmann e outros.

É claro que as produções sociológicas desses e outros autores não se inspiram nesses princípios de uma formaexclusiva, fechada. Há variações e combinações nos seus modos de pensar, compreender, explicar. Inclusive se podeimaginar que mesmo autores clássicos como Marx, Weber e Durkheim, reconhecidos como fundadores, não se preocuparammaiormente com esse problema. Aliás, em suas obras substantivas encontram-se reflexões que “fogem” às suas anotaçõesmetodológicas.

É claro que há intentos de inovar que poderiam e podem ser registrados. E há inovações reais. São notáveis algumascontribuições teóricas de sociólogos trabalhando depois dos clássicos, na mesma senda ou em outros caminhos. Inclusivehá propostas que não vingaram, mas que nem por isso deixaram de ajudar na retomada e no aperfeiçoamento da reflexãocientífica na Sociologia. Entre uns e outros encontram-se nomes

como os seguintes: Gurvitch, Sorokin, Parsons, Lazarsfeld, Merton, Touraine, Bourdieu e muitos outros. Uma análisecuidadosa, no entanto, pode indicar que todos tendem a ser, em alguma medida, caudatários daqueles princípios explicativosclássicos.

Estes são os princípios explicativos para os quais tendem as contribuições da maioria dos sociólogos nos séculos XIXe XX: causação funcional, conexão de sentido e contradição. Através deles a Sociologia tem dado conta dos movimentos eimpasses, das épocas e transformações característicos das sociedades formadas com o Mundo Moderno. Pode-se dizerque esses princípios compreendem diferentes estilos de pensamento, distintas visões da sociedade, do mundo. Cada um aseu modo, segundo as suas possibilidades descritivas e interpretativas, segundo a sua sensibilidade quanto a uns e outrosmomentos lógicos da reflexão, apanha os movimentos e as modulações da sociedade moderna. São formas de explicaçãoe fabulação sobre essa sociedade. Entendendo-se que a fabulação também pode ser um modo de apanhar o espírito dotempo.

Desafios da Revolução SocialAs transformações e crises provocadas pela emergência e o desenvolvimento da sociedade civil, urbano-industrial,

burguesa ou capitalista, constituem outra matriz da Sociologia. O modo de vida e trabalho na comunidade feudal vemabaixo com a formação da sociedade civil, a organização do estado nacional. Há uma vasta, complexa e contraditóriarevolução social na Europa, transbordando para outros continentes. O mercantilismo, ou a acumulação originária, iniciavaum amplo processo de europeização do mundo. Simultaneamente, a Europa sentia que se transformava, em sua fisionomiasocial, econômica, política e cultural. Estava em marcha a revolução burguesa, atravessando países e continentes, sempreacompanhada de surtos de contra-revolução. No meio da revolução e contra-revolução, combinando e opondo diferentessetores sociais, grupos e classes, províncias e regiões, interesses emergentes e estabelecidos, emergiam burgueses,trabalhadores assalariados diversos, camponeses, setores médios urbanos, intelectuais, burocracia pública e privada. Àmedida que se desenvolve e consolida a ordem social burguesa, impondo-se ao antigo regime, multiplicam-se as lutassociais urbanas e rurais. Depois da revolução burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVII e da Revolução Francesainiciada em 1789, o século XIX assiste às revoltas populares no campo e nos centros urbano-industriais. O Cartismo naInglaterra, desde 1835, e a Revolução de 1848-49, na França e em outros países europeus, assinalam a emergência dooperariado como figura histórica. Em outros termos, e sob diferentes condições, algu

mas linhas dessa história manifestam-se na Alemanha, Itália, países que compõem o Império Austro-Húngaro,Rússia, Espanha e outros. O século XIX nasce também sob o signo dos movimentos de protesto, greve, revolta e revolução.Aí estão alguns traços da sociedade burguesa, com tintas de modernidade.

É evidente que o tema da revolução social está no horizonte de alguns dos principais fundadores e continuadores daSociologia. Estão preocupados em compreender, explicar ou exorcizar as revoluções que ocorrem na Europa e em paísesde outros continentes. E verdade que algumas revoluções preocuparam mais diretamente os fundadores. Dentre essasdestacam-se as francesas e européias de 1789, 1848-49 e 1871. Mas logo eles e outros passaram a interessar-se pelas revoluçõesque haviam ocorrido e iam ocorrendo nas Américas e na Ásia. Alguns livros fundamentais denotam essa preocupação:Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução; Marx, As Lutas de Classes na França; Engels, Revolução e Contra-Revolução naAlemanha; Lenin, Estado e Revolução; Hannah Arendt, Sobre a Revolução; Barrington Moore Jr., As Origens Sociais da Ditadurae Democracia; Karl Polanyi, A Grande Transformação; Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia; ThedaSkoopol, Estados e Revoluções Sociais.

Naturalmente estão em causa várias formas da revolução social. Em um primeiro momento, o que sobressai é oempenho em explicar a revolução burguesa, que pode ser democrática, autoritária, prussiana, passiva. Em outro, a ênfaserecai na revolução popular, operária, camponesa, operário-camponesa ou socialista. Mas também há interesse em analisaro contraponto revolução e contra-revolução. Em vários casos, de permeio a essas preocupações, coloca-se o desafio darevolução permanente. Isto é, as condições das continuidades e descontinuidades entre a revolução burguesa e socialista,em escala nacional e internacional.

A rigor, a análise da revolução social é um modo de conhecer a sociedade, as forças sociais que governam osmovimentos da sociedade nacional tomada como um todo. Essa manifestação “extrema” da vida social parece revelarmais abertamente as relações, os processos e as estruturas, compreendendo dominação política e apropriação econômica,que organizam e movimentam a sociedade moderna. Como um todo, em seus grupos e classes, movimentos sociais e

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partidos políticos, as relações entre a sociedade civil e o estado revelam-se mais nítidas nas rupturas revolucionárias. Arevolução social pode ser vista como uma situação extrema, um experimento crucial, um evento heurístico, quando serevelam mais desenvolvidas as diversidades e disparidades, os desencontros e antagonismos, que governam os movimentosfundamentais da sociedade.

Estava em curso o desenvolvimento da sociedade nacional, urbano-industrial, burguesa, de classes. Com a dissolução,lenta ou rápida, da comunidade feudal, emergia a sociedade civil. Essa ampla transformação concretiza-se em processossociais de âmbito estrutural, tais como: “ — industrialização, urbanização, divisão do trabalho social, secula

rização da cultura e do comportamento, individuação, pauperismo, lumpenização e outros. Esse é o palco dotrabalhador livre, formado com a sociedade moderna.

Esse é o vasto cenário histórico que se constitui na matéria prima da Sociologia. Ela surge como uma forma deautoconsciência científica da realidade social. Essa é a realidade que alimenta boa parte dos escritos de Saint-Simon,Bonald, Maistre, Tocqueville, Comte, Burke, Spencer, Feuerbach, Marx e outros. É claro que esses pensadores alimentam-se dos ensinamentos filosóficos de Hobbes, Locke, Montesquieu, Vico, Herder, Rousseau, Kant e Hegel, além dosenciclopedistas e outros. Mas é inegável que todos estão tratando de compreender, explicar e responder às transformaçõese crises manifestas em processos sociais estruturais, em movimentos de protesto, greve, revolta e revolução.

A Sociologia posterior dá continuidade a esse empenho de compreender, explicar, responder às transformações ecrises sociais. Os escritos de Durkheim, Mauss, Halbwachs, Weber, Simmel, Toennies, Goldmann, Znaniecki, Mannheim,Gurvitch, Sorokin, Myrdal, Park, C.W. Mills, Merton, Parsons, Lazarsfeld, Bourdieu, Nisbet, Gouldner, Barrington MooreJr., Schutz, Adorno e outros dão continuidade a esse empenho. É claro que são diversas e desiguais as contribuições de unse outros, tanto do ponto de vista teórico como no que se refere as suas implicações políticas. No plano teórico, além dassugestões relativas ao hiper-empirismo e à fenomenologia, como nos casos de Gurvitch e Schutz, outros revelam-se ecléticose alguns ortodoxos. No plano político também revelam todo um leque de posicionamentos, dentre os quais destacam-seliberais, conservadores e radicais. Mas talvez se possa dizer que todos buscam compreender, explicar, controlar, dinamizarou exorcizar as condições das transformações e crises.

Em outros termos, em outros países e continentes, a Sociologia continua a desenvolver-se desafiada pelos dilemasda sociedade moderna mais ou menos desenvolvida. Na América Latina, África e Ásia tanto ressoam as idéias e teoriascomo os temas e explicações. Há contribuições que parecem anacrônicas, exóticas ou ecléticas, pelo que ressoam dassociologias européias e norte-americanas. Mas também há criações originais, inovações. Colocam-se novos temas e outrasexplicações. Surpreendem e desafiam, pela originalidade, força e invenção.

A rigor, esses continentes e países são, em certa medida, criações do Mundo Moderno, desdobramentos das forçassociais que movimentam a sociedade moderna. Desenvolvem-se e transformam-se com os desenvolvimentos e astransformações que ocorrem na Europa e nos Estados Unidos. O colonialismo, imperialismo, nacionalismo, cosmopolitismoe internacionalismo podem ser vistos como produtos e condições de um amplo processo de europeização do mundo. Emdistintas formas e ocasiões, os países e continentes atrelam-se desigual e contraditoriamente ao que parece ser a forçacivilizatória do capital.

Revolucionam-se os modos de vida e as culturas nativos nas mais longínquas regiões. Os bárbaros são obrigados acivilizar-se, assumindo a barbárie do capital. Os povos fetichistas, panteistas, sem história, que vivam mergulhados noestado de natureza, são obrigados a assimilar o monoteismo bíblico, a diligência do trabalho que produz mercadoria elucro, a disciplina exigida pela criação da mais-valia, a religião do capital. Está em marcha a revolução burguesa em escalamundial. Ao mesmo tempo, por dentro e por fora dessa revolução, desenvolvem-se revoluções nativistas, nacionalistas,sociais, populares, socialistas. Uma espécie de revolta desesperada contra a missão civilizatória do capital.

Esse é o amplo cenário no qual o pensamento sociológico originário da Europa e dos Estados Unidos tanto sedifunde como entra em relação e confronto com outras idéias, teorias, temas, explicações. As obras de Frantz Fanon, JoséCarlos Mariátegui e Florestan Fernandes, para citar apenas esses exemplos, expressam e simbolizam uma parte importantedessa história. Mostram em que e como se modernizam os países e continentes que estão além da Europa e EstadosUnidos. Ressoam contribuições européias recriadas em face de outros temas, dilemas. Mostram como se dá a revoluçãoburguesa em outras partes do mundo. E como nascem as condições do socialismo, no contraponto com a barbárie. Nocomeço e na travessia, a revolução social parece sempre presente no horizonte da Sociologia.

Metamorfoses da MultidãoVista em perspectiva ampla, observa-se que a Sociologia formula e desenvolve alguns temas da maior importância

para a compreensão do Mundo Moderno. Eles dizem respeito às transformações e crises, às épocas e dilemas desse Mundo.São recorrentes em diversas abordagens teóricas, distintos países, diferentes períodos da história. Podem ser consideradostemas clássicos, inclusive porque polarizam contribuições e controvérsias fundamentais da Sociologia.

Estes certamente são alguns dos temas clássicos que essa história nos revela: sociedade civil e estado nacional,multidão, massa e povo, classe social e revolução, ordem e progresso, normal e patológico, racional e irracional, anomia ealienação, sagrado e profano, ideologia e utopia, comunidade e sociedade, passado e presente, tradição e modernidade. Éclaro que esses e outros temas são tratados diferentemente por umas e outras abordagens teóricas. Não há dúvida de quesão trabalhados em distintas perspectivas, conforme o princípio explicativo adotado. Mas é inegável que todos dizemrespeito ao empenho da Sociologia em compreender e explicar o Mundo Moderno. A des

peito das suas condições muito particulares de organização, funcionamento e transformação, é inegável que também

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as sociedades latino-americanas, asiáticas e africanas além das européias e da norte-americana — ressoam uns e outrosdaqueles temas, dilemas.

Algumas observações breves sobre um ou outro desses temas podem ajudar a clarear o que está sendo sugerido.Sugerir como o pensamento sociológico e a sociedade moderna são contemporâneos, nos seus contrapontos e desencontros.

Comunidade e Sociedade é talvez o tema mais recorrente no pensamento sociológico. Está em praticamente todas asobras fundamentais. Desafia as diversas abordagens teóricas. Os filósofos do século XVIII estavam interessados nele. Maisque isso, os autores das utopias a que assinalam os tempos da Renascença e os primórdios da sociedade civil, burguesa, járevelaram o fascínio da comunidade; ou esboçaram a cerimônia do adeus; ao mesmo tempo que se maravilharam eespantaram diante da sociedade. Mesmo os que se debruçam apenas sobre a sociedade, em países e tempos do século XX,mesmo esses podem estar fascinados ou espantados com essa maravilhosa e diabólica fábrica

Estes são alguns livros nos quais o contraponto comunidade e sociedade está presente, a despeito da ênfase em umou outro polo, em aspectos gerais ou muito particulares: O Contrato Social de Rousseau, O Segundo Tratado sobre o Governode Locke, O Antigo Regime e a Revolução de Tocqueville, A Ideologia Alemã de Marx e Engels, A Divisão do Trabalho Social deDurkheim, Economia e Sociedade de Weber, Comunidade e Sociedade de Toennies, Comunidade de MacIver, A Busca da Comunidadede Nisbet. A comunidade diz respeito à preeminência de grupos primários, relações sociais face-a-face, prestação pessoal,contacto entre personalidades plenas, predomínio de produção de valor de uso e assim por diante. E a sociedade dizrespeito à preeminência de grupos secundários, dissociação entre o público e o privado, relações sociais entre personalidades-status, organização contratual na maioria dos círculos de relações sociais, predomínio da produção de valor de troca eassim por diante.

É possível encontrar freqüentes ressonâncias dessa problemática no pensamento sociológico, bem como em reflexõesde filósofos e produções de artistas. Uma parte importante do debate sobre passado e presente, reforma e revolução,anomia e alienação, ideologia e utopia, passa por ela. As idéias de liberdade e solidão, de medo da liberdade e multidãosolitária passam por aí. A despeito das mais diversas revelações sobre a sociedade moderna, de massas, aldeia global,modernidade, subsiste e recria-se continuamente a ilusão da comunidade presente, pretérita ou futura.

Ordem e Progresso é o lema que sintetiza a Sociologia de Augusto Comte. Mas influencia uma ampla produçãosociológica no século XIX e entrando pelo XX, além da Europa e Estados Unidos. No Brasil e México, entre outros paíseslatino-americanos, a

Sociologia positivista fez muito adeptos. Tornou-se uma corrente de pensamento, influenciou a organização doestado nacional. Assinala uma época importante da história das idéias.

Acontece que as expressões ordem e progresso sintetizam uma perspectiva de interpretação da sociedade urbano-industrial, de classes, em sua formação e transformação. A idéia de progresso identifica-se com a da sociedade urbano-industrial, burguesa, capitalista. Sociedade essa vista como uma forma superior, aperfeiçoada, da história social. Aí, oestado deve ser forte, dirigente, para que as diversidades e desigualdades entre grupos, classes, regiões, nacionalidadesetc. não afetem a harmonia e o funcionamento do todo. O progresso econômico, industrial, capitalista, depende da ordem,harmonia, entre uns e outros. A ordem social é urna exigência dos interesses representados ou simbolizados no governo,regime, estado. Segundo essa orientação, nada melhor do que o estado forte para por a sociedade em ordem, conforme areligião da paz social.

É possível dizer que a idéia de ordem e progresso nunca foi abandonada pela Sociologia, da mesma forma que pelassociedades formadas com o Mundo Moderno. Tanto assim que ela está presente tanto em Comte, Spencer e Durkheimcomo em Parsons, Bourdieu e Touraine. No passado e no presente a reflexão sociológica busca compreender, explicar einfluenciar as transformações e crises sociais. Apresenta-se como urna forma de conhecer e ordenar a vida social, de modoa aperfeiçoar o status quo.

Não é fácil dizer, e demonstrar, qual é o núcleo da Sociologia, o seu tema principal, sua essência. Se aceitamos queo pensamento sociológico se forma e transforma com o Mundo Moderno, cabe-nos reconhecer que temas como comunidadee sociedade, ordem e progresso, ideologia e utopia, tradição e modernização, anomia e alienação, revolução e contra-revolução expressam dimensões sociais e teóricas básicas da Sociologia. Talvez seja possível afirmar que esses e algunsoutros temas expressam o núcleo dessa forma de pensamento.

Mas é possível sugerir que um aspecto essencial da Sociologia aparece no seu empenho em compreender, explicar econtrolar a multidão. A multidão surge na sociedade civil, urbano-industrial, burguesa, capitalista. Aparece nas manifestaçõesde camponeses, operários, populares, desempregados, miseráveis, famélicos. Desde os começos da sociedade nacional,quando se rompem as relações, os processos e as estruturas que organizam o feudo, o grêmio, o convento, a aldeia, ovilarejo, desde esse então ela irrompe na sociedade, com a sociedade. Nos campos e cidades, nas casas de negócios efábricas, nas ruas e praças, ela se torna uma realidade viva, forte, surpreendente, assustadora, deslumbrante.

Desde o século XVI multiplicam-se os protestos, as revoltas e as revoluções populares. As guerras camponesas naAlemanha são uma amostra e um símbolo dessa

história. Os camponeses estão em luta contra as obrigações feudais (dízimos e prestações para os senhores e aigreja), querem melhorar as suas condições de vida, aumentar a sua participação no produto do próprio trabalho, ampliaro seu horizonte social e cultural, conquistar alguma liberdade. Mas essa luta assusta os senhores, príncipes e bispos dopassado, bem como os burgueses do presente. São muitos os laços que se rompem; e incertos os horizontes que se abrem.Os grupos dominantes, pretéritos e presentes, juntam-se para evitar transformações mais drásticas, rápidas. No empenhode evitar o rompimento das estruturas sociais prevalecentes, Lutero adota posições semelhantes às do Vaticano. Reforma

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sim, mas nem tanto.Em vários países, em diferentes épocas, desde o século XVI ao XX, a multidão se manifesta, protesta ou revolta, ao

mesmo tempo que atemoriza ou entusiasma Na Revolução Francesa iniciada em 1789, nas revoluções européias de 184849, na Comuna de Paris, em 1871, em várias épocas e situações, a multidão se transforma em um tema freqüente, reiterado,obsessivo do pensamento sociológico. São muitos os estudos que registram, descrevem ou interpretam os acontecimentos:protestos, greves, revoltas e revoluções; banditismo social e messianismo; movimentos sociais e partidos políticos;jacobinismo, blanquismo, anarquismo, socialismo e comunismo. Todos estão atravessados pela presença da multidão,plebe, turba, malta, patuléia, ralé, massas trabalhadoras, classes populares, coletividades em busca de cidadania, povo emluta pela conquista de direitos políticos e sociais. Alguns escritos antigos e recentes entram nessa corrente: Manifesto doPartido Comunista de Marx e Engels, As Guerras Camponesas na Alemanha de Engels, A Guerra Civil na França de Marx, OPovo de Michelet, Psicologia das Massas de Le Bon, A Multidão Criminosa de Sighele, Psicologia das Massas de Freud, ARebelião das Massas de Ortega y Gasset, Massa e Poder de Canetti, O Grande Medo de 1789 de Georges Lefebvre, ClassesTrabalhadoras e Classes Perigosas de Louis Chevelier, A Multidão Solitária de Riesman, A Política da Sociedade de Massas deKornhauser, Rebeldes Primitivos de Hobsbawn, A Multidão na História de George Rudé, Guerras Camponesas do Século XX deWolf, O Poderio das Multidões de Jacques Beauchard.

O que está em causa, fundamentalmente, é a questão social que irrompe no horizonte da sociedade moderna, seusgovernantes, os que detêm os meios materiais e espirituais de controle das instituições sociais. As mais diversas manifestaçõespopulares, na cidade e no campo, revelam aspectos sociais, econômicos, políticos, religiosos, culturais e outros da questãonacional.

Uma parte significativa da reflexão sociológica, desde os seus primeiros tempos, relaciona-se a essa problemática,influenciando as reflexões sobre sociedade civil e estado nacional, ordem e progresso, racional e irracional, anomia ealienação, ideologia e

utopia, revolução e contra-revolução, comunidade e sociedade. Trata-se de compreender, explicar, orientar, controlarou expressar a força e o significado da multidão. Nesse sentido é que se pode dizer que a Sociologia realiza uma complexametamorfose da multidão. Cada corrente de pensamento sociológico parece oferecer uma solução própria para o surgimento,as transformações e as tendências da multidão. Procuram dar uma solução teórica e prática para um fenômeno queimpressiona, desafia, assusta ou entusiasma.

Uma primeira corrente da Sociologia lida com a idéia de massa. Para muitos, o conceito de massa é suficiente, claro,explicativo. A massa é naturalmente composta de trabaIhadores assalariados, empregados e desempregados, na cidade eno campo. É uma coletividade forte, impressionante, mas que depende de instituições, regras, objetivos e meios paraorganizar-se, manifestar-se. Caso contrário transborda dos limites do razoável, da conveniência, da ordem. Por isso, dependeda elite. Esta é que pode Ihe oferecer referências, norte, sentido. O contraponto necessário da massa é a elite que dirige,comanda, organiza, governa, manda. Pareto é um autor clássico desse ponto de vista. Mas outros houve; e há.

A segunda corrente da Sociologia lida com a idéia de povo. O povo é visto como uma coletividade de cidadãos. Supõea possibilidade de que a multidão pode ser organizada em movimentos sociais e partidos políticos que a expressam,organizam, educam. A multidão adquire os traços jurídico-políticos convenientes, adequados, quando se organiza comopovo, no sentido de coletividade de cidadãos. Cidadãos que se caracterizam pela faculdade de votar e ser votados. Nolimite, todo e qualquer cidadão pode exercer cargos no legislativo, executivo ou judiciário, desde que preencha os requisitosjurídico-políticos estabelecidos na constituição liberal democrática Tocqueville é um autor que pode situar-se nesse pontode vista. Outro é Stuart Mill. Mas cabe lembrar que ambos eram moderados, no que se refere à participação do povo noprocesso político. Cada um a seu modo, julgavam que o exercício do poder político da maioria poderia provocar a tirania.Isto é, o exercício do poder pelo povo carrega consigo a tirania da maioria. Tocqueville e Stuart Mill podem ter sido osprimeiros, mas outros houve; e há.

E uma terceira corrente da Sociologia lida com a idéia de classe social. A classe é vista como uma categoria queexpressa as diversidades e desigualdades que se acham na base das manifestações da multidão, massa, povo. Em últimainstância, o que funda o movimento social, protesto, greve, revolta, revolução, é o modo pelo qual se produz e reparte ariqueza social. A expropriação do trabalhador, produtor de mercadoria, valor, lucro, mais-valia, está na base do pauperismo,desemprego, carência. Tanto as revoltas camponesas na Alemanha do século XVI como a revolução popular na França,Alema

nha e outros países da Europa em 1848-49 são manifestações de trabalhadores “livres” em busca de melhores condiçõesde vida, de outra forma de organização social da vida e trabalho. Assim, em lugar de ser anômalos, excepcionais, perigosos,os movimentos sociais, protestos, greves, revoltas e revoluções exprimem as desigualdades contra as quais lutam ostrabalhadores do campo e da cidade, desde os começos da sociedade moderna. Marx é o autor clássico dessa análise.Mostra como a classe social se acha na base, no centro, dos movimentos, lutas e impasses que aparecem como se fossem damultidão, massa, povo. Além de Marx e Engels, outros houve; e há.

Em várias épocas, assim como em diferentes perspectivas, está em curso o empenho do pensamento sociológico emexplicar, controlar, dinamizar ou exorcizar a presença da multidão, massa, povo ou classe social nos movimentos dasociedade moderna. Talvez seja possível dizer que essa problemática está influenciando também as reflexões sobre sociedadecivil e estado nacional, comunidade e sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia e alienação, ideologia eutopia, revolução e contra-revolução, entre outros temas clássicos da Sociologia; entre outros dilemas clássicos das sociedadesformadas com o Mundo Moderno.

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ModernidadeA idéia de Sociologia é contemporânea da idéia de Modernidade. Ambas nascem na cidade. Formam-se principalmente

em Paris, capital do século XIX, em meados desse século. Aí decantavam-se as mais novas e típicas realizações materiais eespirituais da sociedade moderna

Desde que a Sociologia se debruçou sobre as relações, os processos e as estruturas que constituem a sociabilidadehumana na sociedade moderna, logo se colocaram aspectos fundamentais da emergência da pessoa, indivíduo, cidadão,como um ser social singular, autônomo, surpreendente, que se sintetiza na liberdade; ou na solidão. Ele aparece como amais recente e original realização social do Mundo Moderno, lado a lado com a mercadoria. É a célula da sociedade, umátomo. Pode pensar-se singular, independente, solitário, anônimo, livre, niilista.

A crescente intelectualização dos indivíduos e a continua racionalização das organizações pareciam “despojar demagia o mundo”, desencantá-lo. O homem e a sociedade pareciam conquistar o controle de seus atos, do seu presente,emancipados do passado. O mundo iluminava-se de outras cores. As ciências conferiam a muitos a ilusão do

progresso, da resolução dos problemas materiais e espirituais. Em 1837 Macaulay dizia que a ciência “abrandou osofrimento, venceu as doenças, aumentou a fertilidade do solo”, deu “novas armas ao guerreiro”, “iluminou a noite como esplendor do dia, ampliou o alcance do olho humano”, “acelerou o movimento, reduziu as distâncias”, “facilitou ascomunicações”, “a condução dos negócios” e assim por diante. A ciência é incansável. “A sua lei é o progresso” 1.

Está em curso o desencantamento do mundo, de que fala Weber, retomando as sugestões de Schiller. Desde o séculoXVIII, e em forma acentuada e generalizada no XIX, os progressos da ciência pareciam reduzir os espaços da tradição,superstição, religião. Iniciava-se um amplo processo de afirmação do presente, rompimento com o passado. A razãoparecia vencer e apagar a fé. Os homens ficam órfãos de Deus. São obrigados a assumir o próprio destino.

Um dos segredos da Modernidade está em que o homem se defronta com um destino trágico. Tanto pensa, reflete,compreende explica, que pode prescindir de Deus. Basta-se a si próprio, por sua inteligência e ciência, razão e invenção.Dá-se ao requinte de assassinar Deus. “Não seremos forçados a tornarmo-nos deuses para parecermos, pelo menos, dignosde deuses? Jamais houve ação tão grandiosa e aqueles que poderão nascer depois de nós, pertencerão por esta ação a umahistória mais alta que o foi até aqui qualquer história” 2.

Na sociedade moderna, o homem abandonou a tradição e a religião, Deus e o Diabo. Intelectualiza-se de tal maneiraque desencanta o mundo de visões e fantasmas. Afugente, confina ou domina a incerteza, o desconhecido, o incógnito.Considera-se senhor do próprio destino. Substitui a tradição e a religião pela razão. A razão pode captar, compreender,explicar e ordenar o mundo. Mais que isso, confere forma e sentido ao mundo, retirando-o do limbo; limpo. “O que éracional é real e o que é real é racional” diz Hegel, inaugurando uma face do Mundo Moderno, da Modernidade 3.

É a razão que descobre, nomeia, explica e exorciza visões e fantasmas. Descobre que eles não estão no além, masaqui, agora, à luz do dia, transparentes, razoáveis. São fetiches, criados pelo próprio homem, aos quais ele se submete,imaginando-os autônomos, dissociados do homem, independentes, naturalizados. O fetichismo é uma fabulação do dia-a-dia da vida de todos e cada um. Ele se cria e recria na trama das relações.

sociais, descolado, naturalizado, reificado. Parece uma inesperada fabulação das atividades humanas, que fascina eassusta O halo místico abandona os deuses e os sonhos, as visões e os fantasmas. Põe-se coroando os produtos maisprosáicos do dia-a-dia presente, conferindo-lhes solenidade. Tanto governo, bandeira, hino, heróis, santos, vitórias, tradições,monumentos e ruínas, como mercadoria, dinheiro, juro, renda, salário e lucro, tudo se deixa impregnar daquela inesperadafantasia, criando a ilusão do halo que fascina e assusta.

As coisas criadas pelos homens projetam-se diante deles como seres sociais, dotados de vida própria, relacionando-se entre si e com os homens, autônomas, naturalizadas, reificadas, ideologizadas. O criador submete-se à criatura, emdeleite e espanto. Agora as visões e os fantasmas não se encontram mais lá fora, forçando para entrar, vigiadas por Deus,estimuladas pelo Diabo. Os fetiches são criados e recriados cotidianamente, à luz do dia, à sombra da razão.

É aí que se instaura o sentido trágico também presente na Modernidade. Agora o homem tudo sabe, sobre este e ooutro mundo. Tem tanta razão que desvenda os fetiches que ele próprio recria e recria, no cotidiano do dia-a-dia. Mas sereconhece aquém e além dessa razão. Descobre que o seu entendimento não o emancipa de si, do que é como fabulação.Com o fetichismo das suas relações sociais, entroniza visões e fantasmas, nos quais se conhece e desconhece, que alegrame o assustam.

Um aspecto essencial desse clima é registrado por Baudelaire, quando descobre que o indivíduo da cidade está soltoe perdido no meio da multidão, “do grande deserto de homens”. É aí que se revela o que há de breve, fugaz, aleatório, nomodo de vida presente. “A Modernidade é o transitório, efêmero, contingente” 4.

Estão em curso a secularização da cultura e do comportamento, e industrialização e urbanização, a divisão dotrabalho social e a mercantilização. A marcha da revolução burguesa, lenta e rápida, parcial e drástica, quebra, subordinaou destrói tradições, regionalismos e provincionismos materiais e espirituais. O trabalho produtivo se impõe à preguiça, oproprietário à terra, o capital ao trabalho, a fábrica ao grêmio, o mercado à economia doméstica, a mais-valia à mercadoria.“A burguesia despiu todas as atividades até aqui veneráveis e estimadas com piedosa reverência da sua aparência sagrada.Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela ...Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu

cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes depoderem ossificar-se . Tudo o que era dos estados (ou ordens sociais) e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado éprofanado, e os homens são por fim obrigados a encarar com os olhos bem abertos a sua posição na vida e as suas relaçõesrecíprocas” 5.

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A Sociologia e a Modernidade surgem na mesma época, na mesma idade. Talvez se possa dizer que a revoluçãopopular de 1848 despertou o Mundo para algo novo, que não havia sido ainda plenamente percebido. A multidão apareciano primeiro plano, no horizonte da história. E aparecia como multidão, massa, povo e classe. A revolução de 48 em Parisrepercutiu em toda a França, na Europa e em muitas partes do mundo. Via-se que a multidão tornava-se classe revolucionáriaem conjunturas críticas. A metamorfose pode ser brusca, inesperada, assustadora, fascinante. Em Paris de 48 viviam,trabalhavam, produziam e lutavam Tocqueville, Proudhon, Comte, Marx, Blanqui e Baudelaire. Na capital do século XIX,quando se revelam os primeiros sinais de que a sociedade burguesa também é histórica, transitória, nesse momento nascema Sociologia e a Modernidade.

Já é evidente que a ciência não se traduz necessariamente em progresso, que o desenvolvimento material não setraduz em desenvolvimento social e espiritual. Pode inclusive ocorrer que os usos da ciência agravam a questão social,desumanizem as relações entre os homens, transformados em objetos das suas criaturas. “Vemos que as máquinas, dotadasda propriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome e o esgotamento dotrabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes deprivações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de qualidades morais; mas, ao mesmo tempo, o homem setransforma em escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece só poder brilharsobre o fundo tenebroso da ignorância” 6.

Acontece que o indivíduo autônomo, anônimo, independente, livre, senhor do próprio destino, foi uma ilusão. Nemno século XIX nem no XX o cidadão chegou a conformar-se com uma realidade social, política, espiritual.

dania, liberdade, muito mais como quimera Por sob a aparência da autonomia da liberdade, escondia-se a solidãoniilista. Como relembra Adorno, a idéia de que “o indivíduo tenha sido liquidado por completo, eis aí um pensamentodemasiado otimista” 7. No século XX, redescobrem-se os antigos e os novos limites da cidadania. Mas subsiste a ilusão daliberdade.

É daí que nasce o herói solitário e triste de Chaplin. Numa das mais avançadas expressões da Modernidade que é ocinema, surge o lumpen olhando espantado para os outros, as coisas, o mundo. Carlitos é um herói trágico. Solitário etriste, vaga perdido no meio da cidade, um deserto povoado pela multidão. Farrapo coberto de farrapos. Fragmento deum todo no qual não se encontra; desencontra-se. Caminha perdido e só, no meio da estrada sem-fim. Parece ele e outro,outros e muitos, todos os que formam e conformam a multidão gerada pela sociedade moderna Um momento excepcionalda épica da Modernidade.

Essa é uma das mais extremas e cruéis sátiras sobre o Mundo Moderno. Carlitos revela a poética da vida e domundo, a partir da visão paródica do lumpen que olha a vida e o mundo a partir dos farrapos, da extrema carência, debaixo-para-cima, de ponta-cabeça.

São diversas as faces da Modernidade que se revelam nas obras de cientistas, Filósofos e artistas. Cada um a seumodo, muitos estão percebendo o que há de novo e singular no Mundo Moderno. O presente parece romper-se do passado,o homem se pensa senhor do seu destino, o futuro talvez esteja ao alcance da mão. Esse é o mundo produzido por umaampla e intensa transformação material e espiritual, quando as ilusões do progresso naufragam nas lutas sociais, ao mesmotempo que a utopia do futuro germina das mesmas lutas sociais. A sociedade e o indivíduo são atravessados por realidadesdesconhecidas, assustadoras, fascinantes. Realidades que se expressam em novas idéias, categorias, teorias, ilusões, visõesdo mundo. Muitos defrontam-se com o singular contraponto por meio do qual se desenha o labirinto da Modernidade:anomia e alienação, racional e irracional, ideologia e utopia, liberdade e solidão.

Nesse ambiente, a Sociologia encontra elementos essenciais da sua formação, do seu estilo de pensamento. A despeitodas diversidades de perspectivas, das peculiarida

des dos princípios explicativos, é inegável que a Sociologia nasce e desenvolve-se com as realizações e os dilemas daModernidade. Tanto assim que ela não abandona essa problemática primordial. Ao contrário, torna e retorna freqüentementea ela. No presente, como no passado, a Sociologia está empenhada em desvendar o modo pelo qual o homem, Deus e oDiabo estão metidos no meio do redemoinho.

Épica do Mundo ModernoA Sociologia revela e constitui dimensões essenciais do Mundo Moderno. As expressões sociedade civil e estado

nacional, comunidade e sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia e alienação, ideologia e utopia, revoluçãoe contra-revolução, entre outras, explicam e constituem muito desse Mundo. Essa problemática denota o empenho dopensamento sociológico em compreender, interpretar, taquigrafar, ordenar, controlar, dinamizar ou exorcizar esse Mundo.Algumas das suas dimensões essenciais mostram-se mais claras, acentuadas ou surpreendentes nas explicações e fabulaçõesque constituem grande parte do pensamento sociológico. Nesse sentido é que se pode imaginar que sem a Sociologia oMundo Moderno seria mais obscuro, incógnito. Ficaria um pouco mais no limbo.

O vulto do desafio, da empresa e da realização lança a Sociologia também no plano artístico. É claro que o compromissocom a reconstrução da realidade, compreendendo relações, processos e estruturas sociais, organiza-se basicamente emmoldes descritivos e interpretativos. O significado científico do escrito predomina no modo pelo qual se reconstrói eexplica a realidade social. O escrito impõe-se à escritura. Mas a escritura pode adquirir também conotações artísticas.Além dos compromissos científicos e das implicações filosóficas, ela pode revelar entonações dramáticas e épicas.

É possível constatar que algumas das principais obras da Sociologia possuem também conotação artística, sejadramática seja épica, ou mesmo mesclando ambas. O modo pelo qual recriam, compreendem, explicam e fabulam arealidade sociais, em seus movimentos e impasses, encontros e desencontros, sugerem algo nesse sentido. Sim, uma parteda Sociologia apanha o Mundo Moderno como espetáculo. E o homem desse Mundo como personagem singular e coletivo,figura e figuração.

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Há livros nos quais a narrativa está atravessada por algo que parece uma força maior , que arrasta as pessoas e ascoisas , uma espécie de pathos assustador e fascinante. Não é mais o destino da épica grega que atravessa a vida doindivíduo e sociedade,

comandando os homens um-a-um e todos, em suas relações entre si, com a natureza e os deuses. No Mundo Moderno,o que comanda a vida da coletividade e do indivíduo, no campo e na cidade, pode ser o poder, a ordem, o progresso, oracional, o irracional, a anomia, a alienação, a ideologia, a utopia, a revolução, a contra-revolução. Todos e cada um sãolevados por algo que parece ser a força das coisas.

É claro que não se podem esquecer relações, processos e estruturas presentes no âmbito da economia, política,religião, ciência, cultura, etc. Não há dúvidas de que a tecnologia, o capital, a força de trabalho, a divisão do trabalho sociale outros componentes da vida social são poderosas forças que se impõem sobre uns e outros. Também é óbvio que a lutapelo poder, político, econômico ou outro, galvaniza uns e outros, muitos, todos. As relações entre dominantes e dominados,governantes e governados, dirigentes e subalternos, estão atravessadas por forças que carregam os indivíduos, grupos eclasses sociais além dos seus desígnios, ideais, ilusões. Às vezes atingem as pessoas, grupos, classes, movimentos sociais,partidos políticos, amplos setores sociais ou mesmo a sociedade como um todo, como se fosse um tufão, um terremoto.Talvez isto estivesse no espírito de Hegel quando se preocupou em lembrar o seguinte: “Napoleão disse uma vez, diantede Goethe, que nas tragédias do nosso tempo a política substituiu o destino das tragédias antigas” 8. Na comunidadegrega, os deuses comandam o destino dos homens, incutindo-lhe o mistério do pathos. Na sociedade burguesa, a luta pelopoder comanda o destino dos homens, incutindo-lhe o mistério do pathos. É o que está em causa, quando a Sociologiaprocura apanhar as transformações e crises, épocas e impasses do Mundo Moderno, da Modernidade. Uma força queatravessa a coletividade, indivíduo, grupo, classe, movimento, partido, protesto, revolta, revolução, cidade. É o que confereaos escritos sobre a sociedade moderna uma inflexão artística.

Nessa perspectiva é que se situam algumas das obras fundamentais da Sociologia, dentre as quais lembramos agoraas seguintes: O Antigo Regime e a Revolução de Tocqueville, Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, A Divisão doTrabalho Social de Durkheim, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Weber, Comunidade e Sociedade de Toennis,Ideologia e Utopia de Mannheim, A Personalidade Autoritária de Adorno e outros, O Homem Unidimensional de Marcuse,Guerras Camponesas do Século XX de Eric Wolf, As Origens Sociais da Ditadura e Democracia de Barrington Moore Jr., 7 Ensaiosde Interpretação da Realidade Peruana de José Carlos

Mariátegui, A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes, Os Condenados da Terra de Frantz Fasnon. Ahistória contada nesses escritos não terminou. Continua viva, presente, decisiva. A inteligência da sociedade não garantea sua emancipação. O mesmo homem que explica, não se emancipa. Debate-se como indivíduo e coletividade, pessoa epersonagem, figura e figuração. Pode principalmente refazer a esperança, a utopia. Canta e desencanta a inflexão dramáticaou épica impregnando os movimentos da sociedade.

Alguns sociólogos traduzem de forma particularmente nítida a dimensão épica do Mundo Moderno. Mostramcomo a razão luta para compreender, explicar, taquigrafar, glorificar ou exorcizar a realidade social. Procuram os limitese as sombras que distinguem e confundem comunidade e sociedade, ordem e progresso, racional e irracional, anomia ealienação, ideologia e utopia, revolução e contra-revolução. Procuram o lugar da razão no jogo das relações, processos eestruturas que se expressam em transformações e impasse, épocas e crises. Parecem demiurgos, lidando com as imensasforças sociais, econômicas, políticas, religiosas e outras; tratando de explicar o Mundo, compreendê-lo, conhecer os seusmovimentos e as suas possibilidades; procurando conferir-lhe outro destino; querendo reinventar a vida.

Weber e Marx são dois sociólogos em cujas obras encontramos alguns elementos essenciais da épica. Não queremapenas conhecer a sociedade moderna, burguesa, capitalista. Querem explicar como ela se forma e transforma, de ondevem e para aonde vai. Procuram explicar o que pode ser a humanidade criada com o capitalismo. E como se transforma,preserva, transtorna. São dois estilos de pensamento, duas interpretações da sociedade moderna, duas visões do mundo.

Max Weber é uma das figuras notáveis dessa épica. Grande parte da sua Sociologia revela um debate desesperadosobre o racional e o irracional. Mostra como o indivíduo, grupo, classe, instituição, sociedade, estado, formam se e conformamse, todo o tempo, à beira da razão, sem-razão. A tradição e o carisma, o despotismo e a demagogia parecem rondarcontinuamente as pessoas, as coisas e as idéias, o real e o imaginário. A graça da vocação se revela no castigo da profissão,ganho, lucro, acumulação. A recompensa pelo ascetismo se mostra na obediência do indivíduo e sociedade aos desígniosdas coisas, de forças que escapam ao controle tanto do indivíduo como da sociedade. Todos parecem vagar extraviados,perdidos, solitários, no labirinto do Mundo Moderno. Mundo esse no qual Weber pode ser visto como um Prometeuacorrentado.

Karl Marx é uma das figuras mais fortes dessa épica A sua obra é toda ela um vasto mural do Mundo Moderno.Todas as principais linhas, figuras e cores, todos os principais movimentos e sons desse Mundo estão assinalados nos seusescritos, vibrando na sua escritura. A narrativa de Marx ressoa sempre esse tempo presente, no qual se lembra o passadoe ressoa o futuro. Um tempo que contém os muitos andamentos dos indivíduos, grupos e classes, movimentos sociais epartidos políticos, diversidades e desigualdades, contradições e rupturas, revoluções e contra-revoluções. Assim se revelaa historicidade da sociedade modema, do Mundo Modemo. Apenas um momento da história, e não o apogeu e coroamentode todas as outras idades. Em seu interior germinam as forças e as relações que abalam o presente, resgatam fragmentosdo passado, podem construir o futuro. A história da sociedade burguesa é uma história de lutas sociais. Mas o segredomais recôndito dessas lutas está em que elas produzirão a sociedade futura, livre das desigualdades escondidas nasdiversidades entre indivíduos, grupos, classes, regiões. Nesse então, o homem estará livre da propriedade privada capitalista,

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entendida como fato jurídico-político, como realidade social e como princípio organizatório universal da vida material eespiritual. Nesse então, os sentidos físicos e espirituais do homem estarão livres para expressar-se, revelar-se. Assimcomeça a apagar-se o componente de barbárie que acompanha a Modernidade. Livres da tirania desse princípio, que osorganiza, ordena e subordina, os sentidos físicos e espirituais poderão descobrir e inventar formas, cores, sons, movimentos,imagens, figuras, idéias e outras dimensões escondidas na máquina do Mundo. Assim, desse modo, plantado no vastomural do Mundo Moderno, Marx pode ser visto como um profeta iluminado.