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MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 2 | PORTO DE LISBOA 1 Porto de Lisboa Paulo Oliveira Ramos MOOC - LISBOA E O MAR TEMA 2

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MOOC - LISBOA E O MARTEMA 2

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“O que cousa tam maravilhosa que he vosso muy nobre porto de Lyxboa he já feyto porto da Índia, ho qual nom soo sobrepoja todollos portos da nossa Europa, mas ajnda os de Africa e Asya.”

Valentim Fernandes, 1502

-¡Albricias, señores, albricias pido y albricias merezco! ¡Tierra! ¡Tierra! Aunque mejor diría

¡cielo!, ¡cielo!, porque sin duda estamos en el paraje de la famosa Lisboa.

[…]

Aquí el amor y la honestidad se dan las manos, y se pasean juntos, la cortesia no deja que

se le llegue la arrogancia, y la braveza no consiente que se le acerque la cobardía. Todos sus

moradores son agradables, son corteses, son liberales y son enamorados, porque son discretos. La

ciudad es la mayor de Europa y la de mayores tratos; en ella se descargan las riquezas del Oriente,

y desde ella se reparten por el universo; su puerto es capaz, no sólo de naves que se puedan

reducir a número, sino de selvas movibles de árboles que los de las naves forman; la hermosura

de las mujeres admira y enamora; la bizarría de los hombres pasma, como ellos dicen; finalmente,

ésta es la tierra que da al cielo santo y copiosísimo tributo.

Miguel Cervantes, 1617

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Francisco de Holanda, “FIGVRA DE LYSBOA”, desenho inserto naobra Da fabrica que faleçe ha Çidade De Lisboa, 1571.

Graças a uma excelente situação geográfica e às extraordinárias condições naturais

do estuário do Tejo o Porto de Lisboa foi um centro privilegiado do conjunto dos

portos do reino que viveram as gestas dos Descobrimentos e da Expansão. Porto de

cruzamento de diversas rotas, primeiro entre o mar mediterrâneo e o oceano

atlântico e, depois, entre a Europa e o resto do mundo, o Porto de Lisboa é ainda

hoje o mais importante complexo portuário do País

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Lisboa, Entreposto Comercial

Desde bem cedo que embarcações arribavam a Lisboa de vários pontos do reino e

do estrangeiro além de outras que, num vaivém constante, ligavam as duas

margens do estuário e os portos fluviais que se distribuíam ao longo do curso do

rio Tejo até Abrantes. Este cenário movimentado do porto de Lisboa foi já referido

no tempo de D. Fernandoi, nono rei de Portugal, pelo cronista Fernão Lopesii:

Havia outrossi mais em Lisboa estantes de muitas terras, nom em uma soo casa, mas muitas casas de uma naçom, assi como genoeses e prazntiis e lombardos, e catalães d’Aragom e de Maiorgua, e de Millam, que chamavom millaneses, e corciins e bixcainhos e assi d’outras nações, a que os reis davom privilegios e liberdades, sentindo-o por seu serviço e proveito; e estes faziam vir e enviavom do reino grandes e grossas mercadarias, em guisa que afora as outras cousas de que em essa cidade abastadamente carregar podiam, somente de vinhos foi um ano achado que se carregarom doze mil toneis, afora os que levaram depois os navios na segunda carregaçom de março.E portanto vinham de desvairadas partes muitos navios a ela [Lisboa], em guisa que com aqueles que vinham de fora e com os que no reino havia, jaziam muitas vezes ante a cidade quatrocentos e quinhentos navios de carregaçom; e estavam à carrega no rio de Sacavem, e à ponta do Montijo, da parte de Ribatejo, sessenta e setenta navios em cada lugar, carregando de sal e de vinhos; e pela grande espessura de muitos navios que assim jaziam ante a Lisboa, como dizemos, iam antes as barcas de Almada aportar a Santos, que é a um grande espaço da cidade, não podendo marear por entre eles.iii

O olhar de dois embaixadores venezianos, os Cavalieri Vincenzo Tron e Girolamo

Lippomano, contido no relato da viagem que realizaram em Portugal no ano de 1581,

acrescenta o olhar do estrangeiro sobre Lisboa, as gentes de diversíssima

proveniência que aí comerciavam e os negócios que nela tinham quotidianamente

lugar:

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O comércio da praça de Lisboa é muito considerável pela correspondencia que tem ordinariamente com todas as outras da Europa e do Novo-Mundo, de modo que as permutações são importantíssimas, e os negociantes possuem grossos cabedais; porque só nas especiarias e drogas, que vêm a Lisboa, depois que expirou pelos anos de 1504, o comercio da Syria e d’Alexandria, ganham rios de dinheiro, que perdem os nossos venezianos, pois eram eles quem fazendo trazer estas preciosas mercadorias pelo Mar-Rôxo a Beyruth e a Alexandria, d’alli as transportavam a Veneza nas galés d´alto bordo. […]

A carga de Lisboa consistia principalmente em pimenta a granel, que devia subir, por contracto, pelo menos a trinta mil quintaes, e que se dividia, metade para el-rei, que não entrava neste negócio com somma alguma, e a outra metade para os contactadores que tinham o exclusivo da pimenta […]

Do reino de Sofala vinham todos os anos a Lisboa, 170 barras d’ouro, e uma barra vale para cima de 300 ducados; tambem de Sofala e de toda a Guiné vinha grande quantidade de marfim […] Traziam-se igualmente a Lisboa sedas da China, panos finissimos e ordinarios de algodão do Brasil, belos tapetes da Persia, ébano, aguila, pau brasil, dixes e louça transparente de porcelana, borax, camphora, laca, aloes-hepatico, tamarindos, cera, almiscar, ambar, algalia, beijoim, pérolas, rubins, diamantes e mais pedras preciosas em abundância, e outras varias mercadorias, que iam do Egypto para Alexandria, as quaes, todavia, não eram a milesima parte das que vinham a Lisboa nas sobreditas frotas […] iv

O Porto Quinhentista

Em meados do século XVI João Brandão (de Buarcos), fidalgo da Casa Real e rendeiro da

dízima do carvão, escreveu que “em nenhuma cidade se achará tanta maneira de gente e

navegantes”v. Lisboa tinha-se tornado o grande entreposto comercial da Europa Ocidental,

e o seu maior mercado distribuidor.

Para facilitar o comércio, por um lado, e para enobrecer a cidade, por outro, D. Manuel

iniciou então um conjunto de obras que transformaria a beira-rio da capital de Portugal.

Damião de Góis (1502-1574), o notável humanista português, haveria de escrever em dois

dos seus trabalhos sobre as obras realizadas em Lisboa no reinado do monarca que se

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intitulou “Rei de Portugal e dos Algarves d’Aquém e d’além Mar em África, Senhor da

Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia”:

Mandou fazer de novo o caes da pedra de Lisboa, e tabuleiros de longo da prais […] Mandou fazer o Terreiro [do Paço] que está diante dos paços da ribeira de Lisboa que era tudo praia, o que se fez com grão trabalho, e despesa até se ganhar ao mar como agora está vi

Começou a casa da alfândega de Lisboa a qual acabou E-Rei dom João seu filho vii [que descreveu em Urbis Olisiponis Descriptio como] uma mole imensa de pedra, escorada com grandes estacas muito juntas; espetadas a maço no mar.viii

Depois que começou a conquistar a Índia mandou de novo fazer os magníficos e sumptuosos Paços da ribeira de Lisboa […] fez de novo as casas dos Almazéns de Lisboa […] Começou as Tercenas da porta da Cruz, as quais mandou fazer para nelas guardar, e fundir artilharia, e assim as [Tercenas] de Cataquefarás, e a casa da pólvora em Lisboa.ix

De todos os trabalhos portuários então realizados destacou-se o cais da pedra, na

verdade um molhe, o Moles lapidum, a referência nº 130 da conhecida gravura de

Olissipo integrada na publicação de Braun e Hogenberg Civitates orbis terrarum.

A Ribeira das Naus

Depois da construção junto do Tejo do Paço Real, iniciada em 1500, o talvez mais

significativo exemplo de ocupação da margem foi a ampliação das pré-existentes

tercenas navais dionisíacas que se tornariam, durante o reinado do Venturoso, na

grande Ribeira das Naus, estaleiro principal da aventura marítima portuguesa.

Em 1584, o padre Duarte de Sande descreveu o Arsenal da Ribeira das Naus da

seguinte maneira:

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Occupa este um espaço vastissimo fechado em parte pelos muros da Cidade, e em parte pelas obras do mesmo paço, e estende-se até ao mar. Construe-se ali todo o genero de navios, e especialmente essas grandes naus e galeões que abriram a navegação da India, e a conservam ainda com as suas continuas derrotas. Diz-se que a construção de cada huma d’estas naus custa vinte mil cruzados. É admiravel aqui, na verdade, a abundancia de tudo o que é necessario para abastecer a armada, pois não falta grande quantidade de mastros, vergas e calabres muito ensebados e compridos; toda a sorte de pez e alcatrão; nem a arte de amolecer o ferro e o aço; nem finalmente as machinas e engenhos para levantar pesos, abundando Lisboa em subido grau de tudo isto, quer de invenção portugueza, quer de importação estrangeirax.

Em 1522, na Ribeira das Naus, segundo a obra Majestade e Grandezas de Lisboa, de

João Brandão, trabalhavam quotidianamente 120 carpinteiros e 150 calafates.

De acordo com Cristóvão Rodrigues de Oliveira, cerca de 1551, nele ocupavam-se

um provedor mor, um tesoureiro, quatro escrivães, seis homens de serviço, um

mestre de velas com quatro obreiros e oito mulheres que faziam velas latinas, um

patrão mor pequeno com seis trabalhadores permanentes, um almoxarife dos

alimentos e um seu escrivão, a que se deverão juntar aqueloutros que pertenciam

ao Almoxarifado da Ribeira, a saber: um almoxarife “que tem cuidado da madeira

das naos E velas E cordoalha E ãncoras, E toda a mais munição” xi, um escrivão, dois

alcaides do mar, um apontador, dois homens da casa, um apontador das obras, seis

guardas, um guarda das caravelas de Cabo Verde, duzentos e vinte sete

carpinteiros, cem calafates com vinte cinco outros trabalhadores e oito serradores

das obras.

No século seguinte, Frei Nicolau de Oliveira registaria 600 carpinteiros e 600

calafates.

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Neste bosquejo sobre Lisboa e o seu porto no tempo dos Descobrimentos lembre-

se, ainda, os principais mantimentos para a tripulação que, habitualmente, uma

nau da Índia levava. Segundo o Livro em que se contem toda a Fazenda xii, de Luís

Figueiredo Falcão, essas provisões eram as seguintes: biscoito – 1.074 quintais;

vinho – 115 pipas; carne – 1.086 arrobas; água – 244 pipas; sardinhas – 130

arrobas.

Para dar resposta às necessidades de abastecimento das caravelas e naus

ergueram-se, na área do porto de Lisboa, outras estruturas de produção, tais como

os Fornos de Val do Zebro, onde se fazia o biscoito para as Armadas, Naus da Índia,

Conquistas, e Fortalezas do Reino. Esta indústria alimentar e o grande consumo de

pão no período dos Descobrimentos contribuiu de modo extraordinário para a

expansão da indústria moageira em todo o estuário do Tejo, que aproveitou a

energia das marés. Na área ribeirinha, desde Alcântara, em Lisboa, Mutela, em

Almada, até aos esteiros dos concelhos do Seixal, Barreiro, Moita e Montijo,

instalaram-se 37 moinhos de maré que, em parte, farinaram até ao século XX. Para

o transporte dos produtos alimentares – sólidos e líquidos – desenvolveu-se a

indústria da cerâmica (as olarias) e a tanoaria.

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(*) Este texto sobre o porto de Lisboa é tributário de anteriores trabalhos do autor: “A Zona Ribeirinha de Lisboa (História de uma relação)”, in Área Metropolitana de Lisboa e o Estuário do Tejo, Lisboa, Urbe/Cadernos 1, 1990, pp. 5-11, “Portos: uma (velha) História, um (novo) Património, in Pavilhão do Conhecimento do Mar. Catálogo Oficial, Lisboa, Expo´98, 1998, pp. 225-237, “Porto de Lisboa”, in Dicionário de História de Lisboa, Lisboa, Carlos Quintas & Associados, 1994, pp. 724-727 e de dois outros feitos em co-autoria: 100 Anos do Porto de Lisboa, Lisboa, Administração do Porto de Lisboa, 1987 e Porto de Lisboa. Subsídios para o Estudo das Obras, Equipamentos e Embarcações na Perspectiva da Arqueologia Industrial, Lisboa, Administração Geral do Porto de Lisboa, 1985.

D. Fernando (1345-1383) rei entre 1367 e 1383.ii Fernão Lopes (1380?-ca.1460) foi guarda-mor da Torre do Tombo e cronista.iii Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, Ed. crítica, introdução e índices de Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 6.iv “Relazione del Viaggio Sig.ri cav.ri Tron e Lippomani […] L’anno MDLXXXI”, in Panorama, vol. 2º, 2ª série, nº 64, 1843, p. 83.v João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, p. 112.vi Damião de Góis, Crónica de D. Manuel, in Descrição de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 75.vii Idem, ibidem.viii Damião de Góis, Descrição de Lisboa, p. 55ix Damião de Góis, Crónica de D. Manuel, in Descrição de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 75.x P. Duarte de Sande, “Lisboa em 1584”, in Archivo Pittoresco, vol. VI, 1863, p. 78.xi Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa (1551), Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 90.xii Luiz de Figueiredo Falcão, Livro em que se contem toda a fazenda e real patrimonio dos reinos de Portugal, India, e ilhas adjacentes e outras particularidades, ordenado por Luiz de Figueiredo Falcão, secretario de el rei Filippe II, (1607), Lisboa, Imprensa Nacional, 1859.