Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade

25
 Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais Olga Magano – Universidade Aberta 1 Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais Docente: Olga Magano 1. A ruptura com o senso comum Para Myrdal (1976), a essência das ciências sociais é a procura da verdade objectiva.  O cientista procura atingir o "realismo" que significa uma visão objectiva da realidade. Uns dos problemas com que o cientista se depara é como determinar o que é a objectividade e quais as formas para atingir essa objectividade quando se analisam os factos e as relações causais entre esses factos. Como se libertar de noções normativas herdadas e das influências do meio social e cultural, económico e político da sociedade em que vive, onde trabalha e ganha o rendimento necessário para que tenha uma determinada posição social e da influência que deriva da sua própria personalidade, cujas particularidades não decorrem apenas das tradições e do meio em que vive, mas também da sua história pessoal?  (Myrdal, 1976). Os meios lógicos para nos protegermos destas distorções e influências é definir claramente as valorações que efectivamente determinam as nossas concepções teóricas e as nossas investigações práticas, analisá-las do ponto de vista da sua relevância, significado e efeito na sociedade que se estuda, transformá-las em premissas de valor específicas e determinar a perspectiva de análise e os conceitos utilizados em termo do conjunto formado pelas premissas de valor que foram explicitamente definidas. Na medida em que a ciência não é mais do que o senso comum altamente sofisticado, o autor entende que se pode começar a análise por tentar caracterizar a maneira como as pessoas vulgares na nossa sociedade concebe m o mundo em que vivem (Myrdal, 1976). No nosso tipo de sociedade a generalidade das pessoas procuram ter comportamentos racionais e encontrar razões que os levam a conceber de determinada forma e a reagir de um determinado modo à realidade que os rodeia. Há dois tipos de concepções que os indivíduos elaboram sobre a realidade, na sua forma pura são crenças ou valorações. Nas opiniões, as crenças e as valorações estão

Transcript of Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 1/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

1

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Docente: Olga Magano

1. A ruptura com o senso comum

Para Myrdal (1976), a essência das ciências sociais é a procura da verdade objectiva. Ocientista procura atingir o "realismo" que significa uma visão objectiva da realidade.Uns dos problemas com que o cientista se depara é como determinar o que é a

objectividade e quais as formas para atingir essa objectividade quando se analisam os

factos e as relações causais entre esses factos. Como se libertar de noções normativas

herdadas e das influências do meio social e cultural, económico e político da sociedade

em que vive, onde trabalha e ganha o rendimento necessário para que tenha uma

determinada posição social e da influência que deriva da sua própria personalidade,

cujas particularidades não decorrem apenas das tradições e do meio em que vive, mastambém da sua história pessoal? (Myrdal, 1976). Os meios lógicos para nos protegermos destas distorções e influências é definir

claramente as valorações que efectivamente determinam as nossas concepções teóricas e

as nossas investigações práticas, analisá-las do ponto de vista da sua relevância,

significado e efeito na sociedade que se estuda, transformá-las em premissas de valor

específicas e determinar a perspectiva de análise e os conceitos utilizados em termo do

conjunto formado pelas premissas de valor que foram explicitamente definidas.

Na medida em que a ciência não é mais do que o senso comum altamente sofisticado, o

autor entende que se pode começar a análise por tentar caracterizar a maneira como as

pessoas vulgares na nossa sociedade concebem o mundo em que vivem (Myrdal, 1976).

No nosso tipo de sociedade a generalidade das pessoas procuram ter comportamentos

racionais e encontrar razões que os levam a conceber de determinada forma e a reagir de

um determinado modo à realidade que os rodeia.

Há dois tipos de concepções que os indivíduos elaboram sobre a realidade, na sua forma

pura são crenças ou valorações. Nas opiniões, as crenças e as valorações estão

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 2/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

2

combinadas embora não exista uma linha rígida e clara nos processos mentais entre

estes dois tipos de concepções, no entanto, é importante distingui-los: um tem

características intelectuais e cognitivas e o outro é emocional e volitivo. As crenças

exprimem as nossas ideias sobre como a realidade é ou foi enquanto que as valorações

exprimem as nossas ideias sobre como a realidade deveria ser ou deveria ter sido. As

crenças de cada indivíduo procuram atingir o estatuto de conhecimento. Assumem

também uma característica de totalidade por ser possível estabelecer uma análise

comparativa, objectiva, das crenças em relação a conhecimentos elaborados,

determinando-se as insuficiências ou distorções em relação a esses conhecimentos mais

rigorosos. Contudo, na medida em que as valorações são definidas por indivíduos ou

grupos, são, tal como as crenças, uma parte da realidade e, portanto, também

susceptíveis de constituírem objectos de investigação. Dificuldades básicas são as

valorações de cada indivíduo variarem de situação para situação, chegando mesmo a ser

contraditório entre si. Na base do comportamento de cada indivíduo não está um

conjunto homogéneo de valorações mas sim uma combinação complexa de inclinações,

de interesses e de ideias em conflito. Alguns elementos desta combinação complexa são

conscientes enquanto que outros são mantidos numa zona não consciente durante longos

períodos, mas todos eles contribuem para definir as formas específicas do

comportamento de cada indivíduo.

As distorções conduzem a percepções falsas da realidade e a conclusões erradas e

limitam decisivamente a capacidade das ciências sociais para eliminar crenças populares

falsas e enviesadas (Myrdal, 1976: 48). A única forma de conseguirmos atingir a

"objectividade" na actividade teórica consiste em expor claramente as valorações, torná-

las consistentes, bem definidas e explícitas, permitindo que os seus efeitos condicionem

a nossa investigação mas de uma forma clara. É necessária uma explicitação clara das

premissas de valor para que a análise possa atingir o estatuto de "objectivo" (Myrdal,1976: 55).

Para fazer a ruptura com o senso comum é necessário relativizar, relacionar e fazer

análise científica das concepções de senso comum. Sendo as ideologias e os saberes

práticos formas de racionalização do mundo e de o classificar, isto é, instrumentos de

coesão e tensão social, todas as disciplinas científicas estão sujeitas à influência de

elementos simbólico-ideológicos.

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 3/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

3

Pode-se dizer que a atitude problematizadora da ciência e os princípios da pesquisa

social constituem os elementos da superação do senso comum: a

relativização dos fenómenos humanos; os contextos sócio-históricos e as coordenadas

de tempo e lugar são determinantes; a relacionação dos factos; integrá-los em sistemas

de relações recíprocas, empiricamente verificáveis e questionar e problematizar todos os

conhecimentos adquiridos, inclusivamente o senso comum, as ideologias e a própria

ciência.

A ruptura nunca será completa nem unitária mas a separação dos domínios da ciência e

do senso comum são talvez condições da própria investigação científica.

De acordo com Silva e Pinto (1986), após a epistemologia de Gaston Bachelard1, com a

insistência no carácter construído do conhecimento, na descontinuidade racional entre

ciências e saber corrente, e na imprescindibilidade da ruptura com os “obstáculos

epistemológicos” – veio dar um novo apoio às prevenções durkheimianas. Tornou-se, a

partir de então, frequente sublinhá-las, actualizando-as. As disciplinas sociais são

especialmente permeáveis às interpretações de senso comum. Ao passo que a física ou a

astronomia romperam já há alguns séculos, por vezes em circunstâncias dramáticas com

o senso comum, construindo uma linguagem conceptual e processos de demonstração

específicos que as imunizam, em grande parte, à influência daquele, as ciências sociais,

mais recentes, não possuem ainda, em geral, códigos e instrumentos exclusivos. Depois,

como já vimos, a realidade social surge, aos olhos da maior parte das pessoas, como

mais facilmente explicável pelo seu carácter mais familiar do que o universo físico ou

outro conhecimento mais distante da vida quotidiana de cada um.

De facto, para este autores, há uma espécie de ilusão de transparência proporcionada

pela familiaridade do social que autoriza a produção, a baixo preço, de sociologias ou

economias “espontâneas” – e aos sistemas de atitudes e acções ligados às condiçõessociais objectivas – que obrigam à produção, a qualquer preço, de sociologias ou

economias “espontâneas” – representam os mais poderosos obstáculos à análise

científica.

1 Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo e ensaísta francês. Destaca-se pelo seu contributo para a

formação de um novo espírito científico em ruptura com o senso comum com a superação dos obstáculosepistemológicos.

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 4/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

4

“Eles estão por detrás dessa “resistência profunda” que provém, nas palavras de

Alain Tourraine2, “da nossa ligação à crença de que os factos sociais são

comandados por uma ordem superior, metassocial” – seja esta a vontade divina, o

espírito humano, a motivação individual, acção dos “grandes homens”, a nossa

natureza biológica, o sentido da história. A regra metodológica de Durkheim –

explicar o social pelo social - constituiu ainda um princípio-chave para a

superação de tais obstáculos, se a entendermos precisamente como afirmação de

que não há elementos metassociais que possam dar cientificamente conta dos

factos sociais” (Silva e Pinto, 1986: 30).

Silva e Pinto sugerem que se aborde como ilustração, um problema em relação ao qual

são claras a eficácia e a necessidade – em termos de racionalização dos comportamentos

e da conversão das probabilidades objectivas de sucesso em esperança subjectivas – das

interpretações de senso comum: o problema da génese e desenvolvimento diferencial da

inteligência e, nomeadamente, a sua relação com o sucesso escolar.

“As correcções correntes combinam, decerto, argumentos de tipo naturalista e

individualista: a carreira escolar teria a ver com inteligência e as “capacidades” de

cada aluno, e a inteligência seria um “dote “, um “dom natural” (muitas vezes

imputado apenas à hereditariedade). Ora, a força de tais interpretações – que

tendem, portanto, a considerar que a inteligência está para lá do objecto possível

da análise social – deve-se às suas funções simbólico-ideológicas, visto que

carecem de qualquer fundamentação científica. Desde logo, em psicologia, o

principal estudioso do desenvolvimento intelectual, Jean Piaget, considerava que

este se devia a quatro ordens de factores: a maturação do sistema nervoso; a

experiência adquirida pela acção sobre os objectos; os factores sociais – alinguagem, a interacção e a cooperação grupal, a educação familiar e escolar; os

mecanismos de “equilibração”, a “auto-regulação”, postos em prática pelas

crianças (Piaget fala, como se sabe, em termos de psicologia genética). No quadro

de uma tal concepção construtivista e interaccionista, psicólogos sociais têm

desenvolvido pesquisa sobre o papel causal desempenhado pela interacção social,

2 Alain Touraine, Pour la Sociologie, Paris, Seuil, 1974, pp 13-14 (referência no texto de Silva e Pinto,1986: 30)

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 5/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

5

sustentado, evidentemente, que se trata de uma causalidade não unidireccional,

mas “curricular e progredindo em espiral3. (…)

A isto se acrescenta a investigação em sociologia da educação que mostra à

evidência as regularidades que pautam o insucesso escolar (fenómeno massivo

constante, precoce, cumulativo (…) e as fortes correlações entre insucesso e

origem social; partindo para uma análise que o considera como resultante de uma

relação negativa entre alunos, portadores de diversas condições sócio-culturais, e

a instituição escolar. Neste quadro, o estudo aprofundado e relacional dos

estudantes, das suas personalidades e histórias pessoais, das família e meios

respectivos, da escola e do sistema de ensino em geral, das práticas educativas,

constitui uma abordagem central – incomensuravelmente distante porque

qualitativamente distinta das interpretações correntes de senso comum, e que

psicólogos, psicólogos sociais e sociólogos (e também historiadores ou

economistas) enriquecem, a partir das perspectivas, diferentes, que caracterizam

as suas disciplinas” (Silva e Pinto, 1986: 43).

Na maior parte das vezes o que acontece é que a actividade etnocentrista é uma

actividade legitimadora, ainda que muitas vezes inconsciente, do domínio – afirmação

no plano do conhecimento e da representação simbólica. O seu núcleo não está, aliás,

em rigor, na ostentação imediata da superioridade social ou rácica – mas, mais

subtilmente, na operação de fechamento do que é cognoscível, no pressuposto de que o

que vale a pena conhecer e, portanto, o que serve de padrão único para o conhecimento

dos outros, são os factos e as ideias interiores à nossa própria área cultural, ao “nós”

que é nosso. Ou seja, acaba por funcionar como uma espécie de inibidor ou de obstáculo

para uma maior abertura a novos conhecimentos. Há muitas vezes a tendência para o

fechamento de oportunidades de conhecimento quando se considera que o nossoconhecimento é o “bom” e absoluto conhecimento.

De facto, e ainda seguindo Silva e Pinto (1986: 47), a propensão para o etnocentrismo

constitui, ao nível do senso comum, um factor de identificação do grupo, do “nós” um

vector de legitimação da dominação, um instrumento decisivo da luta simbólica entre

3 “A interacção permite ao indivíduo dominar certas coordenações que lhe permitem então participar eminteracções mais elaboradas que por seu turno se tornam fonte de desenvolvimento cognitivo para o

indivíduo” – Willem Doise, L’Explication en Psycologie, Paris, P.U.F., 1982, pp. 63-64 (nota do texto deSilva e Pinto, 1986:43).

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 6/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

6

grupos. Ora, a forma tipicamente etnocentrista de pensar por  preconceitos – por ideias-

feitas, que se toma por absolutas, indiscutíveis, invalidáveis pela análise científica –

preconceitos de toda a espécie, de raça, de sexo, de classe, de profissão, de religião, de

civilização, representa um obstáculo no qual constantemente tropeçam os cientistas

sociais: até porque tem por si a ilusão da transparência do que nos é familiar, do que é

“nosso”, constitutivo da nossa identidade de grupo. Finalmente, poderá sugerir-se que o

etnocentrismo – essa resistência a assumir que a relação entre “nós” e os “outros”

contêm dois pólos igualmente dinâmicos, esse fechamento do “nós” sobre si próprio –

para lá de estar intimamente articulado com os postulados de índole naturalista e

individualista (o que é claro), estará na sua base.

No entanto, o processo de ruptura com as evidências do senso comum não significa que

se trate de uma superação “absoluta”. Para Silva e Pinto (1986:51) isso não é possível

pelo facto de que as ciências contêm sempre elementos ideológicos mais ou menos

explícitos, repousam sobre certas pressuposições de valor. Ideologias e saberes práticos

não são teorias pré-científicas, que o progresso científico se encarregaria de eliminar e

em relação às quais os especialistas pudessem estabelecer fronteiras intransponíveis –

são, antes, formas de racionalização do mundo, formas de classificar os factos, as

pessoas e os objectos, instrumentos de coesão e de tensão social, e aí radica

precisamente a sua eficácia. É assim que na perspectiva de Silva e Pinto (1986: 52)

chegamos ao nó principal da questão:

“Na linha de Gaston Bachelard, distinguimos no processo de produção de

conhecimentos científicos três “actos epistemológicos” - a ruptura, com as

“evidências” de senso comum que possam constituir obstáculos àquele processo; a

construção, do objecto de análise, das teorias explicativas; a “verificação”, davalidade dessas teorias pelo seu teste, quer dizer, pelo confronto com informação

empírica. Os três são indissociáveis e a construção teórica, desempenha nesta

relação um papel central. Do mesmo modo que os processos de verificação

dependem das teorias que verificam, a ruptura vale o que vale a construção – quer

dizer, a problematização e a teorização – que a suporta. Ou então, se quisermos

falar em paradigmas – articulando os três termos numa só unidade de princípios,

perspectivas, conceitos, modelos teóricos e resultados empíricos cruciais –

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 7/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

7

diremos que cada paradigma teórico rompe (ou não rompe) a seu modo com pré-

noções de senso comum e os operadores ideológicos que obstem, do ponto de

vista desse paradigma, à produção de conhecimentos científicos sobre o social.

(…)

Em primeiro lugar, uma produção axial consiste na relativização dos fenómenos

humanos. Ao mostrar que estes não podem ser imputados a qualquer absoluto, não

podem ser explicados por propriedades universais, e só podem ser analisados nas

coordenadas de tempo e de lugar e nos contextos sócio-históricos em que se

integram – a relativização inerente à abordagem científica invalida, desde logo, os

pressupostos naturalistas e etnocentristas, e permite situar o nosso trabalho bem

para lá deles. Perceber que as regras de parentesco melanésias são radicalmente

diversas das dos portugueses contemporâneos, e que estas, por sua vez, diferem

das dominantes na Alta Idade Média, representa um ponto de partida

indispensável para, por exemplo, a história e a sociologia da família.

Em segundo lugar, a relacionalização dos factos constitui uma outra operação

decisiva, que também ela contribui para a superação dos argumentos de senso

comum invocados, nomeadamente dos de tipo individualista. Os factos sociais só

podem ser explicados por sistemas de relação entre eles – a análise produtiva é,

portanto, a que estabelece correlações (ou seja, relações empiricamente testáveis)

entre fenómenos que estuda. Perceber, por exemplo, que há correlações estreitas

entre o nível de instrução dos pais e a frequência dos museus pelos filhos constitui

um ponto de partida indispensável para a história e a sociologia da arte (aliás, foi

este o principal alcance da revolução conduzida por Durkheim, quando mostrou

que as taxas de suicídio eram diferentes segundo a situação familiar e a confissão

religiosa).

Em terceiro lugar, uma das condições cruciais para a superação das concepções dosenso comum e ideológicas deriva precisamente do facto de que a pesquisa social

pode torná-las objecto da sua própria análise – quer dizer, pode submetê-las aos

seus próprios mecanismos de controlo. Tal constitui, é bom não esquecê-lo, um

passo indispensável para a ruptura: é porque é capaz de pôr sistematicamente em

causa os conhecimentos adquiridos, quer por saber prático, quer por vinculação

doutrinária, quer mesmo por investigação científica – é porque o questionar,  o

 problematizar, representa a própria essência do seu trabalho, que a ciência é capaz

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 8/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

8

de continuamente romper, no seu domínio, com as noções que não se adeqúem às

suas regras” (Silva e Pinto, 1986: 52).

A procura da verdade objectiva é a essência da ciência social. O cientista social acredita

que a verdade existe, e parte desse pressuposto para tentar atingir o "realismo", ou seja,

uma visão objectiva da realidade.

As questões metodológicas colocam-se na definição do que é a objectividade e das

formas de atingir essa objectividade na análise dos factos e das suas relações causais. O

cientista debate-se com as seguintes questões: como libertar-se da influência de

trabalhos anteriores, fundamentados em noções normativas e teológicas, baseadas em

opções metafísicas – filosofia da lei natural e utilitarismo; como libertar-se das

influências do meio cultural, económico, político e social da sociedade em que vive;

como anular a influência da sua subjectividade própria, formada em contacto com as

tradições de um meio social específico e que condicionam a sua história pessoal e

inclinações particulares?

Tudo isto tem como pano de fundo a interrogação de como pode o cientista ser

objectivo e eficaz na compreensão da realidade e não na sua transformação, ou seja, de

como pode atingir a “verdade” colocando de parte as suas inclinações morais e políticas.

O cientista é influenciado, na procura da verdade, pelo meio social e pela sua

personalidade. A sua única defesa consiste em definir as valorizações que poderão

condicionar as suas concepções teóricas e investigações práticas, analisando a sua

relevância, significado e efeito no objecto de estudo, adaptando a perspectiva de análise

segundo essas premissas.

2. A construção do conhecimento científico

Todas as ciências se orientam por um conjunto de regras e procedimentos estabelecidos

sobre a forma de um método científico. Pelo método científico aplicado no processo de

investigação procura-se garantir o rigor dos resultados observados. Esta perspectiva de

rigor metodológico deve existir desde a colocação das hipóteses de trabalho ao decorrer

de todo o processo de investigação.

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 9/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

9

No caso das ciências sociais, o objecto de estudo é a realidade social. A natureza fluida

e inconsistente da realidade social dificulta a aplicação directa e uniformizada do

método científico à análise do social. Uma das questões essenciais neste processo é a

necessidade de diferenciar o processo de estudo científico sobre a realidade social e a

própria realidade social, tendo em conta que o investigador é também parte integrante

dessa realidade social. Daí que no campo das ciências sociais, e no sentido de assegurar

a objectividade, uma das tarefas essenciais é a identificação dos obstáculos

epistemológicos e progredir no sentido de fazer a ruptura com o senso comum.

De acordo com Gaston Bachelard  a “ciência não se opõe absolutamente à opinião”

(citado por Santos, 1990: 33), ou seja, é possível a coexistência dos dois tipos de

conhecimento, desde que seja devidamente justificado e relativizado. A premissa de

Santos é a de que:

“(…) em ciência nada é dado, tudo se constrói. O «senso comum», o

«conhecimento vulgar», a «sociologia espontânea», a «experiência imediata», tudo

isto são opiniões, formas de conhecimento falso com que é preciso romper para

que se torne possível o conhecimento científico, racional e válido. A ciência

constrói-se, pois, contra o senso comum e, por isso, dispõe de três actos

epistemológicos fundamentais: a ruptura, a construção e a constatação e

verificação. Porque essenciais a qualquer prática científica, esses actos aplicam-se

por igual nas ciências naturais e nas ciências sociais. São, contudo, de aplicação

mais difícil nestas últimas. Por um lado, porque as ciências sociais têm por objecto

real um objecto que fala, que usa a mesma linguagem de base de que se socorre a

ciência e que tem uma opinião e julga conhecer o que a ciência se propõe

conhecer. Como diz Piaget, a sociologia, tal como a psicologia, tem «o tristeprivilégio de tratar de matérias de que todos se julgam competentes» (1976:24).

(…)

O senso comum é um «conhecimento» evidente que pensa o que existe tal

como existe e cuja função é reconciliar a todo o custo a consciência comum

consigo própria. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista. A

ciência, para se construir, tem de romper com estas evidências e com o «código de

leitura» do real que elas constituem, tem, nas palavras de Sedas Nunes, «de

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 10/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

10

inventar um novo ‘código’ – o que significa que, recusando e contestando o

mundo dos ‘objectos’ do senso comum (ou da ideologia), tem de constituir um

novo ‘universo conceptual’, ou seja: todo um corpo de novos ‘objectos’, todo um

sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos» (1972.30)” (Santos,

1990:33-34)

Este universo de conceitos e das relações que se estabelecem entre eles é o que se

designa por paradigmas. No entanto, Kuhn chama a atenção para o facto de que o

conhecimento não cresce de modo cumulativo e contínuo. Na sua teoria central, exposta

em especial na obra intitulada The Structure of Scientific Revolutions publicada pela

primeira vez em 19624 -  é que o conhecimento não cresce de modo cumulativo e

contínuo. Ao contrário, esse crescimento é descontínuo e opera por saltos qualitativos,

que, por sua vez, não se podem justificar em função de critérios internos de validação de

conhecimento científico. A sua justificação reside em factores psicológicos e

sociológicos e sobretudo na comunidade científica enquanto sistema de organização do

trabalho científico. Os saltos qualitativos têm lugar nos períodos de desenvolvimento da

ciência em que são postos em causa e substituídos os princípios básicos em que se funda

a ciência até então produzida e que constituem o que Khun chama de «paradigma»”

(Santos, 1990: 150).

Mas, segundo Santos (1990), o decurso da ciência normal não é feito só de êxitos, pois,

se tal fosse o caso, não eram possíveis as inovações profundas que têm tido lugar ao

longo do desenvolvimento científico. Ao cientista «normal» pode suceder que o

problema de que se ocupa não só não tenha solução no âmbito das regras em vigor

como tal facto não possa ser amputado à interpretação ou inépcia do investigador. Esta

experiência pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas e pode suceder,

além disso, que por cada problema resolvido ou que por cada incongruência eliminadaoutros surjam em maior número e de maior complexidade ou de impossível solução. O

efeito cumulativo deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de

crise. Incapaz de lhe dar solução, o paradigma existente começa a revelar-se como a

fonte última dos problemas e das incongruências, e o universo científico que lhe

4 A importância de Khun, assenta menos na sua originalidade do que no seu esforço de síntese e na suacapacidade para dar fôlego polémico a ideais já presentes nas obras de outros autores. No seguimento dadiscussão com os seus críticos, Khun alterou sucessivamente a sua teoria em aspectos mais ou menos

marginais e, em meu entender, nem sempre no melhor sentido (por exemplo as sucessivas reformulaçõesdo conceito de paradigma) (Santos, 1990: 150).

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 11/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

11

corresponde converte-se a pouco e pouco num complexo sistema de erros onde nada

pode ser pensado correctamente. Neste momento já outro paradigma se desenha muito

provavelmente no horizonte científico e o processo em que ele surge e se impõe

constitui a revolução científica que se faz ao serviço deste objectivo é a cedência

revolucionária (Santos, 1990: 152).

O novo paradigma, entretanto delineado, redefine os problemas e as incongruências até

então insolúveis e dá-lhes uma solução convincente; é nesta base que se vai impondo à

comunidade científica. Mas a substituição do paradigma não é rápida. O período de

crise revolucionário em que o “velho” e o “novo” paradigma se defrontam e entram em

concorrência pode ser bastante longo. Uma vez que cada um dos paradigmas estabelece

as relações de cientificidade do conhecimento produzido no seu âmbito, as provas

cruciais aduzidas em favor do novo paradigma podem facilmente ser consideradas

ridículas, triviais ou insuficientes pelos defensores do velho paradigma. O diálogo entre

os cientistas pende para o monólogo na proporção da incomensurabilidade dos

paradigmas em confronto. Mais ou menos tempo será necessário para o novo paradigma

se impor, mas, uma vez imposto, ele passa a ser aceite (quase) sem discussão e as

gerações futuras de cientistas são treinadas para acreditar que o novo paradigma

resolveu definitivamente os problemas fundamentais. Da fase da ciência revolucionária

passa-se de novo à fase da ciência normal e, portanto, ao trabalho científico sub-

paradigmático. De início existem vastas áreas em que a aplicabilidade do novo

paradigma é apenas assumida sem ainda ter feito qualquer prova nesse sentido. É para

essas áreas que se orienta a ciência normal. Posteriormente, os objectos de estudo, e por

conseguinte os problemas a resolver, vão-se tornando cada vez mais específicos e

complexos (Santos, 1990: 152). Este processo vai-se reproduzindo de forma continuada

dando lugar ao aparecimento de novos conceitos e de novos paradigmas, ou seja, a

teoria científica não constitui um conjunto de conceitos rígidos e imutáveis. Embora deforma lenta, acompanham o desenvolvimento da ciência.

Ainda segundo Boaventura de Sousa Santos, é importante a realização de uma dupla

ruptura. Uma vez feita a ruptura epistemológica (o autor entende que o acto

epistemologicamente mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica), deixou

de ter sentido criar um conhecimento novo e autónomo em confronto com o senso

comum (primeira ruptura) se esse conhecimento não se destinar a transformar o senso

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 12/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

12

comum e a transformar-se nele (segundo ruptura) (Santos, 1990: 168). Ou seja, para o

autor, o conhecimento resultante da ruptura epistemológica deve ser incorporado no

conhecimento de senso comum.

Para Santos (1990) todo o conhecimento é contextual. O contexto em que é produzido e

aplicado o conhecimento nas sociedades capitalistas distingue-se em quatro contextos

estruturais do conhecimento: o contexto doméstico, o contexto da produção, o contexto

da cidadania e o contexto da mundialidade. Cada contexto é um espaço e uma rede de

relações dotadas de uma marca específica de intersubjectividade que lhes é conferida

pelas características dos vários elementos que o constituem. Esses elementos são: a

unidade da prática social, a forma institucional, o mecanismo do poder, a forma de

direito e o modo de racionalidade. Os quatro contextos não são os únicos existentes na

sociedade; são, no entanto, os únicos contextos estruturais, porque as relações sociais

que eles constituem determinam todos os demais que se estabelecem na sociedade. O

contexto doméstico constituiu as relações sociais (os direitos e os deveres mútuos) entre

os membros da família, nomeadamente entre o homem e a mulher e entre ambos (ou

qualquer deles) e os filhos. Neste contexto, a unidade de prática social é a família, a

forma institucional é o casamento e o parentesco, o mecanismo de poder é o patriarcado,

a forma de juridicidade é o direito doméstico e o modo de racionalidade é a

maximização do afecto. O contexto da produção constitui as relações do processo de

trabalho, tanto as relações de produção ao nível da empresa (entre produtores directos e

os que se apropriam da mais-valia por estes produzida), como as relações na produção

entre trabalhadores e entre estes e todos os que controlam o processo de trabalho. Neste

contexto, a unidade da prática social é a classe, a forma institucional é a fábrica ou a

empresa, o mecanismo de poder é a exploração, a forma de juridicidade é o direito da

produção e o modo da racionalidade é a maximização do lucro. O contexto de cidadania constituiu as relações sociais da esfera pública entre cidadãos e o Estado. Neste

contexto, a unidade da prática social é o indivíduo, a forma institucional é o Estado, o

mecanismo de poder é a dominação, a forma de juridicidade é o direito territorial e o

modo de racionalidade é a maximização da lealdade. Por último o contexto de

mundialidade constitui as relações sociais entre estados nacionais na medida em que

eles integram o sistema mundial. Neste contexto, a unidade da prática social é a nação, a

forma institucional são as agências e os acordos internacionais, o mecanismo de poder é

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 13/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

13

a troca desigual, a forma de juridicidade é o direito sistémico e o modo da racionalidade

é a maximização da eficácia (Santos, 1990:173). 

“Vivemos, pois, em quatro quotidianidades: a doméstica, a da produção, a

da cidadania e a da mundialidade. Todos nós somos configurações humanas em

que se articulam e se interpenetram os nossos quatro seres práticos: o ser da

família, o ser de classe, o ser se indivíduo, o ser de nação. E como cada um destes

seres, ancorado em cada um das práticas básicas, é produto-produtor de sentido, o

sentido da nossa presença no mundo e, portanto, da nossa acção em sociedade é,

de facto, uma configuração de sentidos.

Ainda que se possa falar , a nível muito abstracto, de um senso comum,

como de resto tenho vindo a fazer, em realidade a nossa prática está embebida em

quatro sensos comuns, produtos-produtores de quatro comunidades de saber, as

comunidades familiar, da produção, pública e nacional. A cada uma destas

comunidades pertence uma forma específica de interacção comunicativa. (…)

O senso comum inclui a aceitação não problemática das condições que são

responsáveis pelo fechamento do sentido e a restrição da comunidade. A tensão

latente ou manifesta que constitui a nossa quotidianidade ocorre de modo diferente

em cada um dos contextos estruturais em função do mecanismo de poder

específico que subjaz a cada um deles: o patriarcado, a exploração, a dominação e

a troca desigual. Actuam assim na sociedade várias formas de poder, e não, como

quer Habermas, apenas uma, o poder estatal. O desequilíbrio do poder em cada

contexto não produz necessariamente violência ou silenciamento, tudo

dependendo da forma e grau como é aceite e partilhado esse desequilíbrio. Em

geral, a prática quotidiana tende a ampliar o âmbito e a medida do que é

consentido e partilhado, do que é de todos e a todos envolve como dever oudireito, como ónus ou recompensa, como dor ou prazer. Por isso o conflito é

normalmente vivido como consentimento relutante, reservado ou fatalista; a

violência, como repressão tão-só dos excessos; o silenciamento, como

comunicação desinteressante, irrelevante ou vazia; o estranhamento, como

proximidade indiferente ou intimidade rotineira. As várias comunidades de saber

têm, assim, uma aptidão notável para negociar sentidos, encenar presenças,

dramatizar enredos, amortizar diferenças, deslocar limites, esquecer princípios e

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 14/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

14

lembrar contingências; é nisso que reside a sua dimensão utópica e emancipadora

num mundo moderno saturado de demonstrações científicas, de necessidades

técnicas e de princípios sem fim.

O conhecimento científico é produzido num contexto específico, a

comunidade científica, em que se cruzam determinações de alguns dos contextos

estruturais: do contexto da produção, na medida em que a investigação está hoje

organizada como um lugar de trabalho e cada vez mais de trabalho empresarial; do

contexto da cidadania, na medida em que a ciência é pertença mais ou menos

exclusiva do Estado e é produzida em muitos países por um corpo de funcionários

do estado; do contexto da mundialidade, na medida em que a produção e a

aplicação do conhecimento científico é um dos ingredientes principais das

relações entre nações e de troca desigual que os caracteriza, A comunidade

científica é, assim, um corpo social relativamente autónomo, a forma social

organizada da primeira ruptura epistemológica. Sem comunidade científica

separada não há conhecimento científico autónomo, ainda que as determinações de

uma e de outro sejam diferentes e estejam sujeitas a lógicas distintas.

Mas a comunidade científica, porque sujeita a várias determinações

estruturais, é heterogénea e complexa, diverge de país para país e, em cada país,

segundo as áreas científicas, os vínculos institucionais, os sistemas organizativos

da investigação, etc., etc. Para dar um exemplo dessa complexidade, o mecanismo

de poder específico da comunidade científica é a própria qualidade do

conhecimento que nela se produz, é um poder saber por excelência, mas esse

poder não existe no estado puro, uma vez que nele convergem outros mecanismos

de poder: o patriarcado (por exemplo, nas relações científicas e de trabalho entre

homens cientistas e mulheres cientistas), a exploração (por exemplo, nas relações

dentro do laboratório, enquanto processo de trabalho), a dominação (por exemplo,no modo como o Estado define a política científica e distribui os recursos de

investigação) e, inclusivamente, a troca desigual (por exemplo, nos intercâmbios

científicos internacionais entre cientistas do «primeiro mundo» e cientistas do

«terceiro mundo»).

A comunidade científica, como qualquer outro contexto profissionalizado e

separado, é um sistema aberto às determinações dos quatro contextos estruturais.

Mas a comunidade científica, enquanto comunidade de saber, tem uma outra

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 15/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

15

característica específica. Dado o desenvolvimento social dos discursos de que fala

Foucault5, o conhecimento científico produzido pela comunidade científica só em

escassa medida é para consumo interno. É um conhecimento que é produzido a

partir de objectos empíricos que se situam fora da comunidade científica e que,

depois de produzido, se destina a ser contextualizado e, depois, recontextualizado.

Destina-se a ser aplicado fora da comunidade científica no interior de vários

contextos sociais, e, nomeadamente, no interior dos quatro contextos estruturais

onde se situam também os objectos empíricos que estiveram na «origem» desse

conhecimento. A família é, assim, objecto e objectivo de psicólogos, sociólogos e

técnicos de marketing; a fábrica é objecto e objectivo de todos eles e também de

físicos, químicos, biólogos, programadores, etc. O Estado é objecto e objectivo de

todos eles e também de cientistas, políticos e técnicos de opinião pública; e a

nação é objecto e objectivo de todos eles quando se trata de produzir ou

transformar, ao nível dos contextos anteriores (sobretudo da produção e da

cidadania, mas também do contexto doméstico, por exemplo, no caso da

esterilização forçada das mulheres do terceiro mundo) a posição de um dão país no

sistema mundial” (Santos, 1990: 176-179).

2.1 A função de comando da teoria

Gaston Bachelard (2006 [1938]) assume o propósito de mostrar o destino do

pensamento científico abstracto, tendo em consideração que o processo de abstracção

não consiste num processo uniforme pelo facto de ser confrontado com obstáculos. Este

autor descreve o trajecto que vai da percepção considerada exacta até à abstracção da

razão no âmbito da evolução científica. As soluções científicas não se encontram todasno mesmo estágio de maturação - Bachelard distingue três períodos de maturação: 1)

Estado pré-científico que compreenderia tanto a antiguidade clássica como os séculos

do Renascimento e de novas base com os séculos XVI, XVII e XVIII. 2) Estado

científico seria o período entre o fim do século XVIII até início do século XX. 3) Desde

1905 com o início do novo espírito científico potenciado com a teoria da relatividade de

5 Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês que se propôs elaborar uma história do pensamento

desenvolvido em 3 eixos fundamentais: saber, poder e si, centrando a sua análise sobretudo eminstituições repressivas.

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 16/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

16

Einstein a partir da qual se colocam em causa em causa conceitos que eram

considerados fixos até então.

A partir desta época começam a ser feitas propostas de abstracção mais audaciosas,

nomeadamente o objectivo de retraçar a luta contra alguns preconceitos. A experiência

científica é uma experiência que contradiz a experiência comum. A experiência

imediata e usual guarda sempre uma espécie de carácter tautológico, desenvolve-se no

reino das palavras e das definições. Falta-lhe precisamente esta perspectiva de erros

rectificados que caracteriza, a partir do ponto de vista do autor, o pensamento científico

(Bachelard, 2006 [1938]: 17). A experiência comum não é construída, quando muito é

feita de observações justapostas, e é surpreendente que a antiga epistemologia tenha

estabelecido um vínculo contínuo entre a observação e a experimentação ao passo que a

experimentação se deve afastar das condições usuais de observação como a experiência

comum não é construída, não poderá ser, efectivamente verificada. Permanece um facto,

não cria leis. Para confirmar cientificamente a verdade, é preciso confrontá-la com

vários e diferentes pontos de vista. Pensar a experiência é, assim, mostrar a coerência de

um pluralismo inicial.

A noção de obstáculo epistemológico assenta numa perspectiva em que o conhecimento

do real é uma luz que projecta sempre algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As

revelações do real são recorrentes. O real nunca é «o que se poderia achar» mas é

sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois,

quando o conjunto de argumentos fica estabelecido o acto de conhecer dá-se contra um

conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que,

no próprio espírito, é um obstáculo à espiritualização (Bachelard, 2006 [1938]: 19).

A ciência, tanto pela sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se

absolutamente como opinião. Se, sobre uma determinada perspectiva, ela legitima aopção, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião. O autor defende que

“a opinião pensa mal; não pensa; traduz necessidades em conhecimentos”. Ao

designarmos os objectos pela utilidade, ela impede-os de conhecer. Não se pode basear

nada na opinião: antes de tudo é preciso, é preciso destrui-la. Ela é o primeiro obstáculo

a ser superado. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre uma

questão que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 17/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

17

clareza. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas que não se formulam de

forma espontânea, em ciência.

É este sentido de problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o

espírito científico, todo o conhecimento é uma resposta a uma pergunta. Se não há

pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente, nada é gratuito.

Tudo é construído. O obstáculo é também uma experiencia vivida. O esquema que de

seguida apresentamos representa este processo de construção.

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 18/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

18

Esquema extraído de José Madureira Pinto (1994: 102) (Pinto, 1994)

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 19/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

19

O desenvolvimento de procedimentos padronizados de recolha de informação sobre o

real, como por exemplo as técnicas do inquérito por questionário, da entrevista, da

análise de conteúdo, contribuiu para que o processo de observação sociológica em

sentido amplo, se tornasse uma fase do trabalho científico cada vez mais sistemática e

racionalmente controlada. Mas o avanço nesta direcção só é possível com o contributo

de outro elemento da prática: a teoria (ou seja, a matriz teórica), entendida como

conjunto organizado de conceitos e relações entre conceitos substantivos, isto é,

referidos, directa ou indirectamente ao real (Almeida e Pinto, 1986: 55)

Num esforço de sensibilizar para o papel da teoria no processo de pesquisa empírica e

na demonstração científica em geral, imagine a seguinte situação, proposta por Almeida

e Pinto: munido de uma formação básica de ciências sociais suponha que tinha de

estudar fenómenos de mudança social numa colectividade pertencente ao espaço peri-

urbano de uma área fortemente industrializada (Almeida e Pinto, 1986: 56).

Numa fase de contacto exploratório com a colectividade, a atenção dirigir-se-á

necessariamente ao conjunto de manifestação das actividades aí desenvolvidas.

Supondo que, no caso, a elevada preparação de terreno agro-florestal sugere que a

agricultura ainda é uma actividade económica preponderante, como explicar que a

grande extensão de campos trabalhados não tenha correspondência visível (de

trabalhadores e equipamentos?). Produção sem produtores?

O recurso a alguns depoimentos da colectividade pode fornecer alguns elementos para a

solução do enigma ao revelar, nomeadamente que o crescimento de um pólo industrial

vizinho em termos de oportunidade de emprego para a população local foi fazer da

agricultura cada vez mais uma actividade económica complementar de fim-de-semana,

em boa medida “invisível”. No entanto, este inquérito exploratório brevemente denotará

os seus limites – os depoimentos dos autóctones frequentemente apoiam-se emoperadores simbólico-ideológicos, identificados como obstáculo epistemológico a uma

“explicação do social pelo social”.

O “mistério” em causa só se poderá solucionar se tivermos podido construir, a partir de

coordenadas intelectuais tão explicitadas quanto possível, um conjunto estruturado de

interrogações e de hipóteses devidamente especificadas sobre o lugar, função e

transferência da agricultura e do espaço social rural nas sociedades industrializadas - a

teoria é o ponto de partida adequado. É o comando de um “código de leitura” da

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 20/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

20

realidade que em anteriores processos de investigação se tenha revelado capaz de

transcender os limites de percepções correntes, indicado aos núcleos problemáticos

cruciais a investigar e um modo plausível de os equacionar.

Regressando ao exemplo anterior, o recurso a conhecimento obtido sobre situações

similares às observadas, envolvendo uma interpretação sobre a especificidade dos

processos migratórios observados em regiões peri-urbanas e respectivas funções no

quadro das sociedades industrializadas, ou seja, a sua relação com a estrutura de classes

camponesas. O recurso a esse conhecimento pré-existente é insubstituível se quisermos

perceber as dinâmicas de mudança social na colectividade em causa. Se ao longo da

pesquisa pudermos dispor de um conjunto de hipóteses teóricas sobre o modo como o

“exército industrial de reserva” se articula no espaço nacional, com um “exército

agrícola de recurso”, ficaremos em condições de integrar produtivamente na análise

certos indícios.

Em termos de pesquisa empírica, a teoria é um ponto de partida insubstituível e o

elemento que comanda os seus momentos e opções fundamentais. Não pode querer

significar que a análise de situação concretas se circunscreva necessariamente no

interior de um círculo traçado de antemão, em forma definitiva, pelo conjunto de

hipóteses pertinentes incluídas na matriz teórica da disciplina.

A recolha de informação sobre a situação concreta é sempre única e condensa uma

infinidade de determinações, sendo embora orientada pelo quadro teórico prévio de

referência revela a necessidade de ajustar, especificar ou mesmo reformular este último

de modo a torná-lo um guia de observação mais preciso e eficaz.

Assim, a observação em grande escala dos fluxos migratórios numa colectividade pode

impor uma revisão de tipologias de mobilidade geográfica (por exemplo, conceitos de

êxodo rural, migrações sazonais, migrações de substituição, etc.).

O papel de comando da teoria na pesquisa empírica pode não controlar racionalmentetodas as componentes do ciclo de observação/demonstração empírica. Os processos de

recolha de informação são eles próprios processos sociais que colocam com acuidade as

questões epistemológicas do observador/observado (Almeida e Pinto, 1986: 58). A

questão assume aqui uma particular complexidade pelo facto de a maior parte das

técnicas de observação recorrerem a parte de depoimentos dos agentes sociais acerca

das suas próprias condições de existência. Mas é indispensável integrar outros

conhecimentos / complementares (teorias auxiliares) à teoria principal – acerca de

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 21/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

21

processos sociais tão distantes da agricultura local como os que dizem respeito ao

mundo socialmente determinado de aceder aos instrumentos de racionalização da

prática social, às técnicas sociais de camuflagem e de apresentação de si, à construção

mítico-ideológica de valores e interditos sociais, às sanções e censuras impostas, em

sociedades de interconhecimento, pela interacção linguística em situações como a

pesquisa, etc. Desse modo, para os autores, só à luz das teorias auxiliares podemos

esboçar respostas adequadas (Almeida e Pinto, 1986: 58).

2.2 Construção e verificação de teorias: problemas e controvérsias

Os diversos grupos sociais, alheios ao campo científico, não deixam de pensar sobre as

sociedades de que fazem parte, em sobreposição com o trabalho de investigação que aos

mesmos objectos se dirige. Proximidades instrumentais, proximidade de objectos,

efeitos de familiaridade, contribuem para tornar necessário esse constante esforço de

marcação do corpo das ciências sociais em relação ao senso comum, às atribuições de

sentido especializado

Nem sempre são positivos os efeitos de um trabalho de demarcação já que ele tem

conduzido a uma fragmentação artificial das ciências sociais o que tem vindo a ser

compensado pela procura de complementaridade e interdisciplinaridade. Imposição

devida à especificidade dos objectos das ciências sociais e determinações sociais

complexas (Almeida e Pinto, 1986: 60).

2.2.1 Teorias e paradigmas nas ciências

A actividade científica constitui um processo social específico, definidor de um campo

gerador de múltiplos e crescentes efeitos. Afirmar-lhe a identidade passa pelo constanteaperfeiçoamento das teorias e dos métodos disponíveis e, em certos casos, implica a sua

superação por novos elementos conceptuais e novos procedimentos de pesquisa.

A importância da história, da epistemologia e da sociologia da prática científica, tendo

por objecto as condições sociais e teóricas como um sistema mutável de limites e

potencialidades em que se inscrevem forçosamente as decisões individuais dos

investigadores, deixa-se ver, por exemplo, através da regularidade com que surgem

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 22/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

22

simultaneamente certas descobertas em campos científicos de alta comunicabilidade

internacional.

As reconstruções objectivadas da actividade científica são assim muito mais do que a

descrição factual estrita de acontecimentos relevantes. Elas avaliam oportunidades

empíricas e o seu grau de aproveitamento real, obstáculos e limites defrontados, factores

exteriores interferentes e sentido em que se exercem. Ao analisarem retrospectivamente

mutações nas racionalidades teóricas e processuais, elas podem produzir efeitos

heurísticos próprios que não se traduzem em regras coercivas para a prática científica,

mas nem por isso deixam de fornecer referências e orientações.

Se o conhecimento se opera em constante superação de outros conhecimentos, então os

exorcismos da ruptura devem deixar de ser exercícios de uma lógica abstracta, para se

efectivarem na crítica de todos os níveis e de todos os momentos da pesquisa que tome

os processos sociais como horizonte analítico. A ruptura é condição lógica inicial do

trabalho científico, mas renova-se e prolonga-se às outras duas fases que a

epistemologia de Bachelard propõe: a construção e a verificação (Almeida e Pinto,

1986: 61).

A construção da teoria é fomentada pela colocação de perguntas, pela interrogação

sobre determinados aspectos da realidade social. Admitindo que observar supõe

necessariamente a categorização do que é observado, as posições racionalistas vêm

afirmar, de um modo mais geral, a unidade e a integração do processo de pesquisa,

orientando-se o vector epistemológico, como dizia Bachelard, do racional para o real. À

teoria é conferido o papel de comando do conjunto de trabalho científico, que se traduz

em articular-lhe os diversos momentos: ela define o objecto de análise, confere à

investigação, por referência a esse objecto, orientação e significado, constrói-lhe as

potencialidades explicativas e define-lhe os limites. Nos percursos de diversos níveis dasua especificação ela produz e integra os chamados enunciados observacionais, dá

consistência à rede de relações que se estabelece em todo o processo.

As ciências são em cada momento um conjunto de resultados. Mas o caminho que a tais

produtos vai conduzindo tem de ser concebido como uma prática social. O primeiro

momento é o da interrogação, do questionamento a certas dimensões da realidade. A

forma e os protocolos da pergunta hão-de condicionar as respostas que se obtém, ou

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 23/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

23

seja, evidências empíricas a que a investigação conduz são por ela antecipadas ou, pelo

menos, susceptíveis de acolhimento no âmbito do questionamento formulado.

Cada formação científica propõe um conjunto articulado de questões – a sua

problemática teórica – que delimita zonas de visibilidade. Essa problemática, ponto de

partida, em cada momento das pesquisas das pesquisas que se efectivam, define e

acolhe problemas de investigação, para os quais buscam respostas. Os meios de as obter

residem em todo o conjunto de disponibilidades conceptuais substantivas – as teorias

em sentido estrito – que a disciplina foi forjando, bem como em instrumentos técnicos

de recolha e tratamento de informações organizadas pelos métodos, enquanto

codificação provisória dos caminhos críticos de pesquisa (Almeida e Pinto, 1986: 63).

As matrizes disciplinares, “paradigmas” ou “programas de investigação” não constituem

sistemas fechados. Mesmo sendo certo que cada matriz contém um núcleo duro de

hipóteses e modelos de pesquisa que a define e que resiste com tenacidade às tentativas

de refutação e às “anomalias” encontradas no percurso das suas aplicações, nem por isso

ela deixa de conter zonas de disponibilidade, “heurísticas” que se aperfeiçoam, que

sugerem novas perguntas, iluminam novos problemas, desembocam em novas soluções.

A categoria verdade, no campo científico, apenas pode funcionar como limite e

orientação operatória. O que os processos de pesquisa produzem são aproximações

cognitivas aos horizontes empíricos de que se ocupam.

A visibilidade permitida pela problemática e pelas hipóteses pode fazer com que surjam

imprevistos que pode levar a especificar, corrigir ou ampliar as formulações originais.

Podem surgir outras pistas metodológicas e outros desenvolvimentos, criações ou

combinações técnicas, levando ao aperfeiçoamento do processo de operacionalização e

produção de efeitos acumulativos de conhecimentos integráveis na disponibilidade

teórica da matriz.

2.2.3 O problema da verificação

O justificacionismo afirmava só ser científico o que pudesse ser provado, o que fosse

positivamente demonstrado pela articulação de factos repetidamente observados com os

enunciados abstractos da teoria. A explicação objectiva resultaria da aplicação dedutiva

das leis e das teorias a novas situações observacionais singulares. No entanto, já Popper

mostrara ser impossível provar positivamente qualquer teoria, uma vez que a

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 24/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

24

generalização se faz forçosamente a partir de observações em número limitado

(Almeida e Pinto, 1986).

O real social é pluridimensional, por isso, susceptível de ser abordado de diferentes

maneiras pelas diversas ciências sociais. As diferentes ciências sociais analisam as

mesmas realidades, os mesmos fenómenos sociais totais, embora privilegiando cada

uma, uma perspectiva própria de análise. A interdisciplinaridade nas ciências sociais

significa o intercâmbio de saberes com vista à complementaridade do conhecimento,

para melhor explicar os fenómenos sociais na sua totalidade.

Este intercâmbio entre disciplinas leva a que as investigações realizadas numa disciplina

possam ser fundamentais para outra. É precisamente a mesma realidade social que vai

interessar às diversas ciências sociais. Temos, portanto, que o social é único, as

maneiras do abordar, as dimensões a privilegiar é que variam consoante os interesses

que orientam e a partir dos quais se situa o investigador em ciências sociais, com a

específica abordagem da realidade social.

O conceito de fenómeno social total significa que ao pretendermos estudar um

determinado fenómeno social, o devemos considerar na sua multiplicidade de aspectos e

procurar várias perspectivas de análise que possam contribuir para uma melhor

compreensão do fenómeno. Este não se restringe à sua instância social, poderá ter

implicações de vária ordem aos níveis: económico, político, ideológico, demográfico,

etc.

As várias facetas dos fenómenos sociais remetem para um intercâmbio entre as várias

disciplinas que mantêm entre si múltiplas relações de interdependência. O

conhecimento dos fenómenos sociais só se constrói mediante a complementaridade de

perspectivas, pois só deste modo o objecto de estudo em questão poderá ser

compreendido e explicado na sua globalidade e complexidade intrínsecas (Maia, 2002).

ALMEIDA, J. F. e PINTO, J. M. (1986), 'Da teoria à investigação empírica. Problemasmetodológicos gerais', in Silva, A.S.ePinto, J.M. (eds.), Metologia das ciências

sociais, Porto, Edições Afrontamento, 55-78BACHELARD, G. (2006 [1938]), A formação do espírito científico, Lisboa Dinalivro.MAIA, R. L. (2002), 'Dicionário de Sociologia', in Maia, R.L. (ed.), Dicionário de

Sociologia, Porto, Porto Editora.MYRDAL, G. (1976), A objectividade nas ciências sociais, Lisboa, Assírio & Alvim.

5/10/2018 Texto_de_apoio_2_-_a_construcao_social_da_realidade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/textodeapoio2-aconstrucaosocialdarealidade 25/25

 

Texto de apoio 2 – Unidade curricular (41036) - Introdução às ciências sociais

Olga Magano – Universidade Aberta

25

PINTO, J. M. (1994), Propostas para o ensino das ciências sociais, Porto, EdiçõesAfrontamento.

SANTOS, B. S. (1990), Introdução a uma ciência pós-moderna, Porto, EdiçõesAfrontamento. Biblioteca Ciências do Homem.

SILVA, A. S. e PINTO, J. M. (1986), 'Uma visão global sobre as ciências sociais', in 

Silva, A.S.ePinto, J.M. (eds.), Metodologia das ciências sociais, Porto, EdiçõesAfrontamento, 9-27