Textos crônicas variadas

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Samba de Breque Vinicius de Moraes Esta história é verdade.Um tio meu vinha subindo a Rua Lopes Quintas, na Gávea -- era noite -- quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, um rapaz operário com mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro. Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um "anjinho". Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta -- tantos filhos! -- de modo que ao fim de poucos minutos resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo.Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão. -- Pois é, velhinho. Veja só... O meu caçula... Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão: -- Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro... Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que- bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse: -- Tenho um negocinho para te mostrar...E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem. -- Manda lá. Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro

Transcript of Textos crônicas variadas

Samba de Breque Vinicius de Moraes

Esta história é verdade.Um tio meu vinha subindo a Rua Lopes Quintas, na Gávea  --  era noite -- quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, um rapaz operário com  mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro. Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um "anjinho". Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta -- tantos filhos! -- de modo que ao fim de poucos minutos resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo.Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão. --   Pois é, velhinho. Veja só... O meu caçula... Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão: --   Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro... Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que-bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse: --   Tenho um negocinho para te mostrar...E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem.  --   Manda lá. Conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantado em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte:

Tava felizTinha vindo do trabalhoE ainda tinha tomadoUma privação de sentidos no boteco ao ladoQue bom que estava o carteado...O dia ganhoE mais um extra pra famíliaResolvi ir para casaE gozarA paz do lar-- Não há maior maravilha!

Mal abro a portaDou com uma mesa na salaA minha mulher sem falaE no ambiente flores milE sobre a mesaTodo vestido de anjinhoO Manduca meu filhinhoTinha esticado o pernil.

Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras:

— O meu filhinho— Já durinho— Geladinho!

Vinicius de Moraes (1913/1980) consegue juntar humor e tristeza no conto acima, extraído do livro "Para viver um grande amor", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1980, pág. 165.

Depois do jantar

Carlos Drummond de Andrade

Também, que ideia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.

O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.

— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?— Não fumo, respondeu o outro.Então ele queria é saber as

horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o

relógio.— Como?— Já disse. Vai passando o relógio.— Mas ...— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa

fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.

— Agora posso continuar?— Continuar o quê?— O passeio. Eu estava passeando, não viu?— Vi, sim. Espera um pouco.— Esperar o quê?— Passa a carteira.— Mas...— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada

sozinho, nessa idade?— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é

um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...

— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.— Diga.— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com

o assaltado o produto do assalto?— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu

podia saber?— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o

metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o

dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu

mostro.— Não precisa, não precisa.— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você

está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.

— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.

— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?

— Claro.— Você, o assaltado. Certo?— Confere.— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são

só dois mil.— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos.

Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.

— Tá bom, não se discute.— Vamos, procure nos... nos escaninhos.— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos

guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.

— Deixe ao menos tirar os documentos?— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas

rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.— Nem uma de quinhentos? Uma só.— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus.

Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita

gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.

Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.

Pescaria

Stanislaw Ponte Preta(Sérgio Porto)— Fomos uns cinco pescar — conta-nos o amigo que há muito não encontrávamos. Tinha comprado um molinete e, segundo nos confessou, desde menino sonhava em ter o seu próprio molinete.

Por isso aceitou o convite.Quando o encontramos, às 11 horas da noite de sábado, estava cansadíssimo e queria ir dormir. Mesmo assim contou como foi a pescaria.— Eles me convidaram dizendo que estava dando muito pampo na Barra da Tijuca. Passaram lá em casa às 7, me pegaram e saímos para comprar isca.Ficaram comprando isca e lá pelas 9 horas entraram num bar para tomar um negócio porque estava ameaçando chuva e era preciso precaução. Às 11 horas, saíram do bar e tinha um camarada na porta vendendo siris.— Vivos? — perguntamos:Nosso amigo diz que sim e que, por isso mesmo, era preciso preparar. Ninguém levava comida para a pescaria e, portanto, até que seria bom cozinharem uns siris para fazer o farnel.Na casa de um dele, a cozinheira foi avisada de que chegariam dentro em pouco com uma centena de siris para preparar. E de fato chegaram, lá pelas duas da tarde.Foi tudo muito rápido. Às 5 horas os siris estavam prontinhos e todos sentados em volta da mesa, para experimentar. Trouxeram umas cervejas e foram comendo, foram comendo, até que chegou uma hora em que havia mais siris do que fome. Resolveram tomar providências e telefonaram para uns amigos.— Venham comer siris.Os amigos chegaram com um violão e uma garrafa de uísque. Uísque vai, uísque vem, deu fome outra vez. Eram oito horas quando a cozinheira salvou a situação com uma panelada de carne-seca com abóbora. Uns sirizinhos antes, como aperitivo, e todos caíram na carne-seca.Então deu vontade de cantar. Um lá pegou o violão, os outros suas caixas de fósforo e começaram a lembrar sambas antigos.E nosso amigo, ainda com o caniço e o molinete na mão, confessa:— Saí de lá agora.— E a pescaria?— Pescaria? Que pescaria?Homenageamos o autor, que hoje, 11/01/2002, estaria completando 79 anos de idade.Texto extraído do livro "10 em Humor", Editora Expressão e Cultura — Rio de Janeiro, 1968, pág. 54.

Brotinho IndócilVinicius de Moraes

A insistência daqueles chamados já estava me enchendo a paciência (isto foi há alguns anos). Toda a vez era a mesma voz infantil e a mesma teimosia: — Mas eu nunca vou à cidade, minha filha. Porque é que você não toma juízo e não esquece essa bobagem... A resposta vinha clara, prática, persuasiva:— Olha que

eu sou um broto muito bonitinho... E depois, não é nada do que você pensa não, seu bobo. Eu quero só que você autografe para mim a sua "Antologia Poética", morou?Morar eu morava. É danadamente difícil ser indelicado com uma mulher, sobretudo quando já se facilitou um bocadinho. Aventei a hipótese:— Mas. . . e se você for um bagulho horrível? Não é chato para nós ambos?A risada veio límpida como a própria verdade enunciada:— Sou uma gracinha.Mnhum - mnhum. Comecei a sentir-me nojento, uma espécie de Nabokov "avant-la-lettre", com aquela Lolita de araque a querer arrastar-me para o seu mundo de ninfete. Não, resistiria.— Adeus. Vê se não telefona mais, por favor. . .— Adeus. Espero você às 4, diante da ABI. Quando você vir um brotinho lindo você sabe que sou eu. Você, eu conheço. Tenho até retratos seus. . .Não fui, é claro. Mas o telefone no dia seguinte tocou.— Ingrato . . .— Onde é que você mora, hein?— Na Tijuca. Por quê?— Por nada. Você não desiste, não é?— Nem morta.— Está bem. São 3 da tarde; às 4 estarei na porta da ABI. Se quiser dar o bolo, pode dar. Tenho de toda maneira que ir à cidade.— Malcriado. . . Você vai cair duro quando me vir.Desta vez fui. E qual não é minha surpresa quando, às 4 em ponto, vejo aproximar-se de mim a coisinha mais linda do mundo: um pouco mais de um metro e meio de mulherzinha em uniforme colegial, saltos baixos e rabinho de cavalo, rosto lavado, olhos enormes: uma graça completa. Teria, no máximo, 13 anos. Apresentou-me sorridente o livro : — Põe uma coisa bem bonitinha para mim, por favor?...E como eu lhe respondesse ao sorriso:— Então, está desapontado?Escrevi a dedicatória sem dar-lhe trela. Ela leu atentamente, teve um muxoxo:— Ih, que sério . . .Embora morto de vontade de rir, contive-me para retorquir-lhe:— É, sou um homem sério. E daí?O "e daí" é que foi a minha perdição. Seus olhos brilharam e ela disse rápido:— Daí que os homens sérios podem muito bem levar brotinhos ao cinema...Olhei-a com um falso ar severo:— Você está vendo aquele Café ali? Se você não desaparecer daqui imediatamente eu vou àquele Café, ligo para sua mãe ou seu pai e digo para virem buscar você aqui de chinelo, você está ouvindo? De chinelo!Ela me ouviu, parada, um arzinho meio triste como o de uma menina a quem não se fez a vontade. Depois disse, devagar, olhando-me bem nos olhos:— Você não sabe o que está perdendo. . .E saiu em frente, desenvolvendo, para o lado da Avenida.(1966 )O texto acima foi extraído do livro "Para uma Menina com uma Flor", Ed. do Autor – Rio de Janeiro, 1966, pág. 167.