Textos Mill
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TEXTOS DE Stuart Mill - Utilitarismo Texto 1: O bem supremo ou o fim último, segundo o utilitarismo de J. Stuart Mill:
A doutrina que admite, como critério fundador da moralidade, o princípio da utilidade ou da maior felicidade, afirma que as acções são boas (right) ou más (wrong), na medida em que tendem a aumentar a felicidade ou a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade, entendemos, o prazer e a ausência da dor; por infelicidade, a dor e a privação do prazer. Para apresentar uma ideia clara da regra moral pressuposta pela doutrina utilitarista, são necessários esclarecimentos muito mais amplos: trata-se sobretudo de saber qual o conteúdo das ideias de dor e de prazer, e em que medida o debate acerca desta questão continua em aberto. Mas estas explicações suplementares não afectam em nada a concepção de vida em que se fundamenta esta teoria da moralidade, nomeadamente, a teoria de que o prazer e a ausência de dor são os únicos bens desejáveis como fins, e que todas as outras coisas desejáveis (que são tão variadas no sistema utilitarista, como nos outros), são desejáveis, quer pelo prazer que proporcionam em si próprias, quer porque são meios de procurar o prazer e evitar a dor. […]
Insisti neste ponto[1], porque, sem tal compreensão, não se poderia fazer uma ideia perfeitamente justa da utilidade ou da felicidade, enquanto regra directora da conduta humana. Mas não é de maneira nenhuma uma condição indispensável de que devesse depender a adesão ao ideal utilitarista, pois este ideal não é a máxima felicidade do próprio agente, mas a máxima quantidade de felicidade totalizada; se podemos duvidar que um carácter nobre seja mais feliz do que os outros, por causa da sua nobreza, não podemos duvidar que torna os outros mais felizes, e que a sociedade em geral disso tira imenso benefício. Que o utilitarismo só poderia, portanto, atingir o seu fim, pelo cultivo universal da nobreza de carácter, mesmo que cada indivíduo beneficiasse apenas da nobreza de carácter dos outros e que a sua nobreza pessoal, respeitante unicamente à sua felicidade, não lhe trouxesse qualquer benefício, a simples enunciação de um absurdo como este último, torna supérflua toda e qualquer refutação.
Segundo o princípio da máxima felicidade, anteriormente exposto, o fim último, ao serviço do qual e através do qual, todas as outras coisas se tornam desejáveis (quer consideremos o nosso próprio bem, quer o bem dos outros) é uma existência, tanto quanto possível, liberta de dores e cheia de prazeres, no duplo ponto de vista da quantidade e da qualidade; a pedra de toque da qualidade que permite apreciá-la, contrapondo-a à quantidade, (for measuring it against quantity) é, pois, a preferência afirmada pelos homens que, em virtude das oportunidades fornecidas pela experiência e dos hábitos desenvolvidos pela prática da auto-reflexão e auto-observação, estão melhor equipados com meios de comparação. Assim sendo, o fim último da actividade humana é também, na opinião utilitarista, o critério da moralidade. A moral utilitarista pode assim ser definida pelo conjunto das regras e dos preceitos aplicáveis à conduta humana por cuja observância
poderia ser assegurada a todos os homens, e não apenas a eles, mas também a todos os seres sencientes da criação, na mais vasta escala possível e dentro dos limites que o curso da natureza autoriza, uma existência do género da que temos vindo a descrever até aqui. […]
Permito-me ainda repetir que os adversários do utilitarismo, raramente, fizeram a justiça de reconhecer que a felicidade adoptada pelos utilitaristas, como critério da moralidade da conduta, não é a felicidade pessoal do agente de acção, mas a felicidade de todos os envolvidos. Assim, entre a sua própria felicidade e a felicidade dos outros, o utilitarismo exige do indivíduo, que seja rigorosamente imparcial como é um espectador desinteressado e benevolente. Na regra de ouro (golden rule) de Jesus de Nazaré reencontramos todo o espírito da ética da utilidade. Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem, amar o próximo como a nós mesmos, é pois a regra que constitui a perfeição ideal da moralidade utilitarista. Para nos aproximar deste ideal, o mais possível, o utilitarismo prescreveria, em primeiro, que as leis e as organizações sociais deveriam implementar a felicidade, ou (como se diz na linguagem da vida corrente) o interesse de cada indivíduo em harmonia com o interesse da sociedade; em segundo, a educação e a opinião, cuja influência é tão poderosa no carácter dos homens, deveriam ser sempre utilizadas, para consolidar em cada um, uma associação indissolúvel entre a sua própria felicidade pessoal e o interesse público geral, e especialmente entre a sua felicidade pessoal e a prática de modos de conduta, negativos e positivos, prescritos em favor da felicidade universal. Assim sendo, o indivíduo, não só se sentiria incapaz de adoptar condutas de felicidade individual, contrárias ao interesse público, como tenderia a promover o bem-estar geral, passando a considerar a sua realização como um motivo habitual de acção própria; e também os sentimentos vinculados a esta tendência passariam a ocupar um lugar relevante, na vida consciente de todos os humanos.
J. Stuart Mill, Utilitarismo, Lx. Ed., Lx., 2004, pp.73-74, 80-81, e 89 Texto 2: O problema da justificação do fim último:
Já se observou que as questões de fins últimos não admitem uma prova na acepção comum do termo. Ser insusceptível de prova por raciocínio é comum a todos os primeiros princípios: às primeiras premissas do nosso conhecimento, bem como às da nossa conduta. Mas as primeiras, sendo questões de facto, podem ser objecto de um recurso directo às faculdades que julgam os factos, nomeadamente os nossos sentidos e a nossa consciência interna. Poder-se-á recorrer às mesmas faculdades em questões de fins práticos? Ou por meio de que outra faculdade os conheceremos?
As questões sobre fins são, por outras palavras, questões sobre que coisas são desejáveis. A doutrina utilitarista é a de que a felicidade é desejável, e é a única coisa desejável, como um fim; todas as outras coisas são desejáveis apenas enquanto meios para esse fim. O que se deverá exigir à doutrina - que condições será preciso que a doutrina satisfaça para que a sua pretensão de ser aceite seja bem sucedida?
A única prova que se pode apresentar para mostrar que um objecto é visível é o facto de as pessoas efectivamente o verem. A única prova de que um som é audível é o facto de as pessoas o ouvirem, e as coisas passam-se do mesmo modo com as outras fontes da nossa experiência. Similarmente, entendo que a única evidênciat que se pode produzir para mostrar que uma coisa é desejável é o facto de as pessoas efectivamente a desejarem. Se o fim que a doutrina utilitarista propõe a si própria não fosse, na teoria e na prática, reconhecido como um fim, nada poderia alguma vez convencer qualquer pessoa de que o era. Não se pode apresentar qualquer razão para mostrar que a felicidade geral é desejável, excepto a de que cada pessoa, na medida em que acredita que esta é alcançável, deseja a sua própria felicidade.
Isto, no entanto, sendo um facto, dá-nos não só toda a prova que o caso admite, mas toda a prova que é possível exigir, para mostrar que a felicidade é um bem: que a felicidade de cada pessoa é um bem para essa pessoa e, logo, a felicidade geral um bem para o agregado de todas as pessoas.
A felicidade estabeleceu o seu título como um dos fins da conduta e, consequentemente, como um dos critérios da moralidade. Contudo, apenas com isto não se provou que ela é o único critério. Para o fazer, parece necessário mostrar, segundo a mesma regra, não só que as pessoas desejam a felicidade, mas também que nunca desejam qualquer outra coisa. Ora, é notório que as pessoas desejam coisas que, na linguagem comum, são decididamente distintas da felicidade. Por exemplo, não desejam realmente menos a virtude e a ausência de vício do que o prazer e a ausência de dor. O desejo da virtude não é tão universal, mas é um facto tão autêntico como o desejo da felicidade. Por isso, os oponentes do padrão utilitarista julgam que têm o direito de inferir que há outros fins da acção humana além da felicidade e que a felicidade não é o padrão da aprovação e reprovação.
Mas será que a doutrina utilitarista nega que as pessoas desejem a virtude ou defende que a virtude não é algo a desejar? Muito pelo contrário. Defende não só que a virtude deve ser desejada, mas também que deve ser desejada desinteressadamente, por si mesma. Seja qual for a opinião dos moralistas utilitaristas a respeito das condições originais pelas quais a virtude se torna virtude, e por muito que eles acreditem (como de facto acreditam) que as acções e disposições são virtuosas apenas porque promovem outro fim que não a virtude, ainda assim, tendo admitido isto e determinado, a partir de considerações desta natureza, o que é virtuoso, não só colocam a virtude entre os melhores meios para o fim último, como reconhecem o facto psicológico da possibilidade de esta ser, para o indivíduo, um bem em si que se possui sem procurar qualquer fim que o ultrapasse. Defendem ainda que a mente não está numa boa condição, não está numa condição conformável à utilidade, não está na condição mais favorável à felicidade geral, a não ser 15 que ame a virtude desta maneira - como uma coisa desejável em si mesma, mesmo que, no caso individual, não produza as outras consequências desejáveis que tende a produzir e pelas quais é considerada virtude. Esta opinião não representa o menor afastamento do plincípio da felicidade. Os ingredientes da felicidade são muito diversificados, e cada um
deles é desejável não apenas como algo que contribui para um agregado, mas considerado em si mesmo. O princípio da utilidade não significa que qualquer prazer (como a música, por exemplo) ou qualquer ausência de dor (como a saúde, por exemplo) devam ser vistos como um meio para uma coisa colectiva chamada felicidade e desejados nessa perspectiva - são desejados e desejáveis em si e por si mesmos. Além de serem meios, são parte do fim. A virtude, segundo a doutrina utilitarista, não é natural e originariamente parte do fim, mas pode tornar-se parte do fim e, naqueles que a amam desinteressadamente, tornou-se tal coisa e é desejada e estimada não como um meio para a felicidade, mas como parte da sua felicidade.
Para ilustrar melhor esta ideia, podemos recordar que a virtude não é a única coisa que originalmente é um meio, e que, se não fosse um meio para outra coisa, seria e permaneceria indiferente, mas que, através da associação com aquilo para o qual é um meio, acaba por ser desejada por si mesma, e isso, por sua vez, com a maior intensidade. Que diremos, por exemplo, do amor ao dinheiro? Originalmente, nada há de mais desejável no dinheiro do que num monte de seixos brilhantes. O seu valor consiste apenas nas coisas que pode comprar, no desejo de ter outras coisas que não o dinheiro, para as quais este é um meio de gratificação. Ainda assim, além de o amor ao dinheiro ser uma das forças mais intensas que movem a vida humana, o dinheiro é, em muitos casos, desejado em si e por si mesmo. O desejo de possuí-lo é frequentemente mais forte do que o desejo de usá-lo, e continua a aumentar quando desaparecem todos os desejos que apontam para fins que o ultrapassam e são atingidos por seu intermédio. Deste modo, pode-se dizer que, na verdade, o dinheiro não é desejado em função de um fim, mas enquanto parte do fim. Tendo começado por ser um meio para a felicidade, ele próprio tornou-se um ingrediente principal da concepção de felicidade do indivíduo. Pode dizer-se o mesmo sobre a maioria dos grandes objectivos da vida humana - o poder, por exemplo, ou a fama -, ainda que cada um destes esteja ligado a uma certa quantidade de prazer imediato, o qual, pelo menos, parece ser algo que lhes é naturalmente inerente, o que não se pode dizer do dinheiro. Mesmo assim, no entanto, a fortíssima atracção natural exercida tanto pelo poder como pela fama reside na ajuda imensa que estes proporcionam para satisfazer os nossos outros desejos. E é a forte associação assim gerada entre eles e todos os nossos objectos de desejo que confere ao desejo directo de fama ou de poder a intensidade que este assume frequentemente, de tal modo que em algumas pessoas ultrapassa na sua força todos os outros desejos. Nestes casos os meios não se tornaram apenas parte do fim: tornaram-se uma parte mais importante do que qualquer uma das coisas para as quais são meios. Aquilo que chegou a ser desejado como instrumento para atingir a felicidade acabou por se tornar desejado por si mesmo. Ao ser desejado por si mesmo é, no entanto, desejado enquanto parte da felicidade. A pessoa torna-se feliz, ou pensa que se tornaria feliz, com a sua simples posse, e torna-se infeliz por não conseguir obtê-lo. O desejo da sua posse não é diferente do desejo de felicidade, verificando-se o mesmo com o amor à música ou com o desejo de saúde. Estes estão incluídos na felicidade. São alguns dos elementos que constituem o desejo de felicidade. A felicidade não é uma ideia abstracta, mas um todo concreto, e estas são
algumas das suas partes. E o padrão utilitarista sanciona e aprova esta situação. A vida seria uma coisa pobre, muito mal fornecida de fontes de felicidade, se não houvesse esta provisão da natureza pela qual objectos inicialmente indiferentes, mas que conduzem ou estão associados de outro modo à satisfação dos nossos desejos primitivos, tornam-se em si mesmos fontes de prazer mais valiosas do que os prazeres primitivos devido à sua permanência, ao espaço da existência humana que são capazes de abranger e até à sua intensidade.
Segundo a concepção utilitarista, a virtude é um bem deste género.J. Stuart Mill, Utilitarismo(trad Pedro Galvão), Porto Editora, Lx., 2005, pp. 76-78
Texto 3: A justificação do princípio da felicidade geral: o sentimento social.
[…] se o sentimento (feeling) de dever ligado ao ideal utilitarista aparecesse também com um carácter arbitrário e não predominasse, na nossa natureza, na forma de um comando director (leading department), composto por uma onda complexa de poderosos sentimentos (sentiments), que pudesse, às ordens desse comando, encontrar uma coerência unitária capaz de nos fazer sentir que está no centro da nossa natureza (congenial) e de nos incentivar a encorajá-los, não apenas nos outros, mas também a interiorizá-lo em nós próprios, já que existem em cada um de nós abundantes motivos de interesse; se, em conclusão, não existisse já previamente uma pequena base natural de sentimento (sentiment) favorável à moral utilitarista, poderia acontecer que tal associação ainda que implantada pela educação, não seria também capaz de resistir à dissolução da análise.
Mas este sentimento (sentiment) natural poderoso que deve funcionar como uma unidade, existe e constitui a força da moral utilitarista, desde que a felicidade geral é reconhecida como o seu ideal moral. Este seu fundamento sólido, determinado pelos sentimentos sociais da humanidade, expressa-se no desejo de viver em boa harmonia com os outros. Este desejo constitui já, na natureza do homem, um princípio de acção poderoso e é, felizmente, um dos que tendem a reforçar-se, mesmo sem inculcação expressa, pelas influências múltiplas de uma civilização em crescente progresso. O estado de sociedade é tão natural, habitual e indispensável ao homem que, salvo em circunstâncias excepcionais ou por força da abstracção voluntária, este já não é capaz de se representar de outra forma que não seja a de ser membro de um corpo social; e esta associação de ideias vai-se consolidando cada vez mais, à medida que a humanidade se afasta do estado de natureza e de independência selvagem. Ora, sendo assim, todas as condições essenciais a um estado de sociedade, se tornam, cada vez mais, partes integrantes da noção que cada um faz do mundo das coisas em que nasceu e em que cada ser humano está, pois, destinado a viver. Ora, uma sociedade de seres humanos, exceptuando a relação entre senhor e escravo, é manifestamente impossível, se não assentar no princípio de que os interesses de todos deverão ser consultados. Uma sociedade entre iguais não pode funcionar, se os interesses de todos não forem tidos na devida consideração. E, como em todos os estados de
civilização, cada um, à excepção do monarca absoluto, vive no meio dos seus iguais, todos são pois, obrigados a viver em pé de igualdade uns com os outros; e cada época marca um progresso na direcção para um estado de coisas, no qual será impossível viver de outro modo, de maneira permanente. De tal modo que os homens chegam a conceber como uma impossibilidade um estado de coisas onde os interesses de cada um fossem inteiramente ignorados pelos outros. Precisam de se disciplinar a si próprios e devem abster-se, pelo menos, de praticar os actos mais nocivos (mais não seja, para protecção pessoal deles próprios), como precisam de exercer uma vigilância recíproca permanente entre eles. Torna-se experiência familiar cooperar uns com os outros e aspirar ao fim das suas acções (pelo menos, na situação presente) como um interesse colectivo e não individual. Em virtude da coligação, o reforço dos laços sociais e o desenvolvimento normal da sociedade podem proporcionar a todos os indivíduos, não apenas um interesse pessoal maior em levar em consideração o bem-estar dos outros, como também em agregá-lo ao objecto dos seus sentimentos ou, pelo menos, em incluí-lo cada vez mais em consideração, na prática. Chega assim, como que instintivamente, a considerar-se a si próprio, como a um ser que se preocupa naturalmente com os outros. O bem do outro torna-se, para ele, um bem com que é natural e necessário preocupar-se, do mesmo modo que nos preocupamos com as condições físicas da nossa existência. Desde então, seja qual for o grau em que cada um possui este sentimento, acaba por se sentir impelido, pelos motivos mais imperiosos nascidos do interesse e da simpatia, a manifestá-lo e encorajá-lo nos outros, à medida das suas possibilidades, e, mesmo quando não o experimenta em si próprio, tem todo o interesse em que os outros lho assegurem. Por conseguinte, os pequenos germes deste sentimento vão sendo recolhidos, e na mesma linha, o seu desenvolvimento vai sendo acumulado por acção do contágio da simpatia e da influência da educação; vai ainda sendo fortalecido graças à malha apertada de associações que se vai tecendo à sua volta, pelo efeito poderoso das sanções exteriores. Esta maneira de nos concebermos a nós próprios e à vida humana surge cada vez mais à nossa consciência a par dos progressos da civilização, como uma coisa natural. Cada passo, na linha do progresso político, reforça esse carácter, procurando suprimir as causas de oposição entre interesses diferentes, e combater as desigualdades entre indivíduos ou classes, fundadas no privilégio da lei que continua a ser ainda a causa da existência de massas consideráveis de homens, cuja felicidade continua a ser possível ignorar. Sempre que o espírito humano progride, as influências que tendem a fazer germinar em cada homem o sentimento dos laços que o unem aos outros, tornam-se cada vez mais poderás, e este sentimento, se chegasse um dia a ser perfeito, impediria cada indivíduo de pensar ou desejar situações vantajosas para ele, sem que os seus semelhantes partilhassem também desse benefício.
J. Stuart Mill, Utilitarismo, Lx. Ed., Lx., 2004, pp.111-114 Texto 4: O desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento moral das gerações:
Ora um nível apropriado de cultura, estimulante da abertura ao interesse inteligente por estes objectos de meditação, poderia fazer parte da herança de se ter nascido num país civilizado, sem haver na natureza das coisas nada que a tal se oponha. Não existe um fatalismo absoluto da natureza que inevitavelmente obrigue o homem a permanecer egoísta e fechado sobre si próprio, desprovido de outras preocupações e sentimentos, a não ser dos que estão virados para a sua miserável individualidade. Mesmo nos nossos dias, a humanidade já se eleva, muitas vezes, acima destes níveis, num ponto tal, que podemos fazer uma estimativa acertada do que pode vir a conseguir no futuro. Todo o ser humano educado convenientemente é capaz, embora em graus diferenciados, de afeições privadas sinceras e de um comprometimento real nos interesses do bem público. Num mundo em que deparamos com tantas coisas interessantes e agradáveis e com tantas para corrigir e melhorar, todo o homem que possua estas condições intelectuais e morais, em termos médios, pode viver uma existência invejável; e a menos que, ou por influência de más leis, ou por submissão escrava ao prazer de outros homens, se veja privado da liberdade de desfrutar dessas fontes da felicidade que estariam ao seu dispor, esta forma de existência invejável não pode deixar de lhe estar reservada, quando ele escapa às infelicidades esmagadoras da vida e às principais fontes de sofrimento físico e moral: a indigência, por exemplo, ou a doença, e também a dureza, a indignidade, ou o desaparecimento prematuro daqueles que ama. O nó do problema está na luta contra estes flagelos, aos quais só raramente temos a boa sorte de escapar ilesos e que não podemos prevenir nem somos capazes de atenuar grande coisa, no estado actual das coisas. Mas, entre as pessoas cuja opinião merece um momento de consideração, não há nenhuma que duvide que a maioria das infelicidades esmagadoras da vida humana possam ser evitáveis e que, se o progresso se mantiver nos interesses da humanidade, acabarão por ser reduzidas finalmente a estreitos limites. A pobreza, seja qual for o sentido em que a entendamos e que acarreta muito sofrimento, poderia ser completamente suprimida pela vontade da sociedade unida ao bom senso e à prudência dos indivíduos. E até a doença, o mais intratável dos nossos inimigos, poderia ser infinitamente reduzida à sua própria dimensão, por obra de uma boa educação física e moral e do próprio controlo das influências mais perniciosas; enquanto o progresso das ciências nos ajuda e nos promete, para o futuro, vitórias ainda mais directas sobre este detestável mal.
J. Stuart Mill, Utilitarismo, Lx. Ed., Lx., 2004, pp. 84-85 Texto 5: Refutações da objecção aristotélica e da impossibilidade do cálculo:
Ora, uma concepção de vida deste género, provoca em muitas pessoas, e entre elas, em muitas que são dignas de apreço pelos sentimentos e coerência de conduta, uma profunda relutância. Admitir que a vida, para empregar as suas expressões, não contém objectivo mais elevado que o prazer, que não se pode desejar e procurar um objecto mais nobre e melhor, é, a acreditar neles, absolutamente degradante e vil, uma doutrina que convém mais aos suínos, os quais, numa época muito antiga, eram desprezivelmente
equiparados aos discípulos de Epicuro; e há partidários modernos desta doutrina que também voltam a ser visados ocasionalmente com comparações igualmente irónicas, por parte dos seus detractores alemães, franceses e ingleses.
Ao verem-se assim acusados, os epicuristas sempre replicaram que não eram eles mas os seus acusadores que representavam a natureza humana numa forma degradada; a acusação supõe que os seres humanos não são capazes de experimentar outros prazeres para além dos que são próprios dos porcos. Se esta suposição tivesse fundamento, a imputação não poderia ser refutada, mas deixaria de imediato de implicar uma censura; pois, se as fontes de prazer, para seres humanos e os suínos, fossem exactamente as mesmas, a regra de vida que fosse boa para uns, seria igualmente boa para os outros. Se a reaproximação entre a vida epicurista e a das bestas acarreta um sentimento de degradação é, precisamente, porque os prazeres do animal não correspondem às concepções mais exigentes que os humanos fazem da sua própria felicidade. Os seres humanos têm faculdades bem mais altas do que os apetites animais e, desde que ganharam consciência delas, jamais foram capazes de se contentar com qualquer género de felicidade que não envolva o seu gratificante exercício. Por fidelidade à verdade, não considero que os epicuristas tenham sido inteiramente bem sucedidos nas consequências sistemáticas que derivaram do princípio utilitarista. Para tal, teria sido indispensável incorporarem no sistema muitos elementos estóicos e cristãos. Mas não conhecemos teoria epicurista da vida que não atribuísse à inteligência, à sensibilidade (feelings), à imaginação e aos sentimentos morais, uma valor bem mais alto do que aos prazeres que provêm da mera e simples sensação. No entanto, é preciso reconhecer que, se os prazeres do espírito se sobrepõem aos do corpo, é sobretudo porque, para os autores utilitaristas em geral, são prazeres mais estáveis, mais seguros, menos dispendiosos, etc., isto é, mais pelas suas vantagens circunstanciais, do que pela sua natureza intrínseca. E, em todos estes pontos, os utilitaristas provaram plenamente o seu caso. Mas teriam podido igualmente assumir posição acerca do segundo terreno (que é também, temos o direito de o chamar assim, o mais elevado) com inteira consistência. Podemos, sem beliscar minimamente o princípio da utilidade, reconhecer que algumas espécies de prazeres são mais desejáveis e valiosas do que outras. Se, na apreciação de todas as outras coisas, são levadas em consideração tanto a quantidade, como a qualidade, não faria sentido que, na esfera dos prazeres, só entrássemos em linha de conta com a quantidade.
Se me perguntarem o que quero eu dizer, com diferenças de qualidade nos prazeres, ou o que faz com que um prazer seja mais precioso do que outro, enquanto puro e simples prazer, sem ter em conta a sua quantidade, só há uma resposta possível. Se, de dois tipos de prazer, há um, ao qual todos ou quase todos os que conhecem a experiência de ambos, atribuem uma preferência inequívoca, sem serem impelidos por qualquer obrigação moral, esse prazer é, pois, o mais desejável. Se quem está em condições de julgar com competência sobre ambos, coloca um deles, de tal modo acima do outro, que o prefere, mesmo acompanhado de uma maior dose de insatisfação, e está decidido a não renunciar a ele mesmo por troca de uma quantidade de prazer muito maior, temos, então, fundamento
para atribuir ao tipo de prazer preferido, uma superioridade qualitativa sobre a quantidade, que nesta comparação, aliás, pouco conta. Ora, é um facto indiscutível que aqueles que têm um conhecimento igual dos dois, que são capazes de os apreciar e fruir em pé de igualdade, manifestam resolutamente uma preferência inequívoca pelo género de vida que implica a actividade das faculdades superiores. Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas em animais inferiores, com a promessa de uma dose mais elevada dos prazeres das bestas. Nenhum humano inteligente consentiria em ser convertido em imbecil, nenhum homem culto, em ignorante, nenhum homem de coração e consciência, em egoísta e vil, ainda que soubessem que o imbecil, o ignorante, ou o egoísta, estão mais satisfeitos com os seus lotes respectivos de prazer do que eles próprios com os seus. Não quereriam trocar o específico que possuem a mais do que eles, contra a satisfação completa dos desejos que lhes são comuns. Se imaginam que o desejariam, é unicamente em situações de extremo infortúnio, em que para lhes escapar, trocariam a sua sorte por uma outra qualquer, por mais indesejável que fosse aos seus próprios olhos. Um ser provido de faculdades superiores exige mais, para ser feliz, está provavelmente exposto a sofrimentos mais intensos, e está, em face de si próprio, bem mais vulnerável do que um ser de tipo inferior, mas apesar destes riscos, não é capaz de desejar cair realmente num nível de existência que apreende como inferior. Podemos interpretar esta relutância como nos aprouver; e imputá-la ao orgulho que atribuímos indistintamente aos melhores e aos piores sentimentos da humanidade; ou ao amor da liberdade e de independência individual a que os estóicos apelavam, porque viam nele um dos meios mais eficazes de inculcar essa relutância; ou ao desejo do poder ou de uma vida exaltante, sentimentos que o constituem e lhe servem de expressão. Mas, se quisermos atribuir-lhe o verdadeiro nome, designamo-lo por sentido da dignidade (sense of dignity), que todos os seres humanos possuem, de uma ou doutra forma, e que equivale, de maneira não muito exacta, ao desenvolvimento das faculdades superiores. Naqueles que o possuem em elevado grau, constitui uma parte tão essencial da sua felicidade que tudo o que violentar, jamais poderá voltar a ser objecto de desejo. Crer que expressar tal preferência é sacrificar algo da sua felicidade, crer que o ser superior, em circunstâncias equivalentes em todos os aspectos, tanto para um como para outro, não é mais feliz do que o ser inferior, é confundir duas experiências muito diferentes, a da felicidade (happiness) e a do satisfação (cantent). É inquestionável que os seres com faculdades de fruição inferiores têm mais chances de as sentir totalmente satisfeitas; em contrapartida, um ser de aspirações elevadas sentirá sempre a felicidade que pode visar, seja ela qual for, e, sendo o mundo como é, como uma felicidade imperfeita. E, por menos suportáveis que se revelem, pode aprender a lidar com as imperfeições desta felicidade; e não o tornarão invejoso de outros seres que desconhecem, é verdade, estas imperfeições., mas que as desconhecem, porque nem sequer são capazes de imaginar o bem a que estão associadas tais imperfeições. Vale mais ser um homem insatisfeito (dissatisfied) do que um porco satisfeito; vale mais ser Sócrates insatisfeito do que um imbecil satisfeito. E se o imbecil ou o porco têm uma opinião
diferente é porque só conhecem um lado da questão: o seu. A outra parte, para fazer a comparação, conhece os dois lados. […]
De novo, os defensores do utilitarismo são chamados a responder a objecções deste género: não temos tempo suficiente, antes de agir, para calcular e ponderar os efeitos da nossa linha de actuação sobre a felicidade geral. É, exactamente, como se tivéssemos de confessar que nos é impossível conduzir a nossa conduta, de acordo com os princípios cristãos, porque não temos tempo suficiente, sempre que é necessário agir, de ler o Antigo e o Novo Testamento de uma ponta à outra. A resposta a esta objecção é que já decorreu um tempo enorme, igual ao passado da espécie humana.
J. Stuart Mill, Utilitarismo, Lx. Ed., Lx., 2004, pp. 74-78 e 98 Texto 6: Observações sobre o prazer em Aristóteles.
[…] Mas em geral o prazer não é o bem porque o prazer é um processo de geração perceptível que se dirige para a formação de uma natureza [permanente]. Ora nenhuma geração é congénere dos fins (alcançados), tal como nenhum processo de construção de uma casa é congénere de uma casa acabada. Demais, o temperado foge dos [15] prazeres. Além do mais, o sensato persegue o que é anódino e não o que é agradável. Os prazeres constituem impedimento ao exercício da sensatez, e quanto maior for o gozo que dão, maior é a natureza do impedimento, como acontece com o prazer sexual. Ninguém é capaz de ver o que quer que seja quando está tomado por ele. Além disso, não há nenhuma perícia produtora de prazer, ainda que todo o bem seja o produto de uma perícia. Mais: tanto as crianças como [20] os animais perseguem os prazeres. A razão por que nem todos os prazeres são sérios é que alguns são vergonhosos e repreensíveis, e porque outros há que são nocivos. Na verdade, até porque algumas formas de obter gozo são doentias. Mas a razão pela qual o supremo bem não é uma forma de prazer é que não [pode ser] um fim, mas é um processo de geração. São estas quase todas as teses enunciadas acerca disto.
Aristóteles, EN, (trad. A. Caeiro), Quetzal, VII, 11, 1152b12-24
Ora que nenhum prazer pode ser produto de qualquer perícia é uma consequência natural. Porquanto não há nenhuma perícia de [25] nenhuma actividade, mas apenas da sua condição de possibilidade. Ainda que a destilação de perfumes e a culinária se pareçam com técnicas de prazer. Que o temperado foge do prazer e o sensato persegue uma vida anódina, que crianças e animais procuram prazer, são problemas que têm a mesma solução. Porquanto foi dito, por um lado, de que modo há prazeres absolutamente bons e, por outro, de [30] que modo nem todos os prazeres são bons. É este género [de prazeres que não são absolutamente bons], que tanto as crianças como os animais perseguem. Por outro lado, o sensato procura evitar o sofrimento que nasce da perseguição daquele género de prazeres que envolvem desejo e dor, ou seja, procura evitar o género de prazeres do corpo bem como todos aqueles que admitem excesso - pois é relativamente a estes que o devasso é
definido como tal. É por esse mesmo motivo que também o temperado procura evitá-los, embora [35] se deva dizer que também há prazeres para o temperado.
Aristóteles, EN, (trad. A. Caeiro), Quetzal, VII, 12, 1153a24-35 [10] Mas se, pelo contrário, houver actividades livres de impedimento para cada
estado disposicional e a felicidade for a actividade de todas as disposições (ou pelo menos de uma delas), uma tal actividade livre de impedimento será necessariamente a coisa mais querida que há. Ora uma actividade livre de impedimento é o prazer. Portanto, o supremo bem será uma certa forma de prazer, ainda que haja muitas formas de prazer más, podendo até acontecer que haja uma forma de prazer absolutamente má. É por este motivo que todos pensam [15] que a vida feliz é uma vida doce e envolvem o prazer na felicidade, o que de resto faz todo o sentido, porquanto nenhuma actividade está completada se experimentar algum impedimento, e a felicidade é uma das actividades completas. É por esta razão que para um homem ser feliz precisa ainda de bens para o corpo, bens exteriores, e ainda de sorte, para que a falta deles não se converta em nenhuma forma de impedimento.
Aristóteles, EN, (trad. A. Caeiro), Quetzal., VII, 13, 1153b10-19