The Tiger – A true story of vengeance and survival …...9 Na taiga não há testemunhas. V. K....

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FICHA TÉCNICA Título original: The Tiger – A true story of vengeance and survival Autor: John Vaillant Copyright © 2010 John Vaillant Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2014 Tradução: Ana Saldanha Imagem da capa: Shutterstock Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 380 906/14 1.ª edição, Lisboa, outubro, 2014 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: The Tiger – A true story of vengeance and survivalAutor: John VaillantCopyright © 2010 John VaillantTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2014 Tradução: Ana SaldanhaImagem da capa: ShutterstockCapa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.º 380 906/141.ª edição, Lisboa, outubro, 2014

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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À memória de Joanna e Ellis Settle

viriditas

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Na taiga não há testemunhas.V. K. ARSENIEV,

Dersu the Trapper1

Nenhum acordo fácilSeria feito naquele lugar por qualquer homem.

Beowulf 2

1 Arseniev, p. 70

2 Heaney, trad., Beowulf, linhas 2415 ‑16

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ÍNDICE

Prólogo ........................................................................................ 17

Parte Um | Markov ...................................................................... 19

Parte Dois | Pochepnya ................................................................ 233

Parte Três | Trush ......................................................................... 271

Epílogo ........................................................................................ 347

Agradecimentos ........................................................................... 359

Uma Nota Sobre a Tradução (do russo) ........................................ 364

Bibliografia Selecionada ................................................................ 365

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Área atual do tigre Amur

O Extremo Oriente Russo

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O Vale do Rio Bikin

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O TIGRE

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PRóLOGO

Pendurada nas árvores, como se enredada nelas, está a foice da lua. A sua luz pálida espalha sombras na neve por baixo, tor‑nando ainda mais escura a floresta que este homem atravessa agora guiando ‑se tanto pelo tato como pela vista. Vai a pé e sozinho, só na companhia de um cão, que corre à frente, encantado por estarem por fim a dirigir ‑se para casa. A toda a volta, os troncos negros de carvalhos, pinheiros e choupos erguem ‑se para a escuridão acima do mato e da caruma, e as suas folhas formam um dossel esfar‑rapado por cima. Bétulas delgadas, mais brancas do que a neve, parecem emitir uma luz própria, mas ela é como o pelo de um animal no inverno: fria ao toque e só para si. Tudo está em silêncio neste mundo dormente e gelado. Faz tanto frio que a saliva congela antes de cair na terra; tanto frio que uma árvore, seca como palha e incapaz de conter a sua seiva em expansão, pode explodir esponta‑neamente. Enquanto avançam, tanto o homem como o cão deixam atrás de si um rasto de calor e o bafo da sua respiração paira em nuvens pálidas acima do seu trilho. O cheiro deles não se espalha nas trevas sem vento, mas os seus passos ouvem ‑se bem, e assim, com cada passada, anunciam ‑se à noite.

Apesar do frio intenso, o homem usa botas de borracha mais apropriadas para a chuva; também as suas roupas são surpreenden‑temente ligeiras, se considerarmos que ele tem estado todo o dia cá fora, à procura. A arma tornou ‑se ‑lhe pesada no ombro, assim como a mochila e o cinto das munições. Mas ele conhece esta rota

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como a palma das suas mãos e tem quase à vista a sua cabana. Agora, por fim, pode permitir ‑se a possibilidade da sensação de alívio. Talvez imagine a candeia que acenderá e o lume que ateará; talvez imagine os fardos que não tardará a alijar. A água na cha‑leira está com certeza gelada, mas as paredes do fogão são finas e em breve brilharão com força contra o frio e o escuro, como o seu próprio corpo agora. Dentro de pouco tempo, haverá chá quente e um cigarro, seguido por arroz e carne e mais cigarros. Talvez um gole ou dois de vodca, se ainda houver alguma. Mas então, quando os ângulos familiares tomam forma na clareira, o cão colide com um cheiro como se ele fosse um muro e estaca, a rosnar. Eles são companheiros de caça e o homem compreende: está lá alguém junto à cabana. O pelo das costas do cão e os pelos do pescoço do homem eriçam ‑se ao mesmo tempo.

Juntos, ouvem um estrondo no escuro, que parece vir de todos os lados ao mesmo tempo.

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PARTE UM

MARKOV

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Há muitas pessoas que não acreditam que isto tenha de facto acontecido. Pensam que é algum fantasma da minha imaginação. Mas foi real. Há os factos.

Yuri Anatolievich Trush

Pouco depois do fim da tarde de 5 de dezembro de 1997, foi transmitida uma mensagem urgente a um homem chamado Yuri Trush na sua casa em Luchegorsk, uma cidade mineira de dimen‑sões médias no Território Primorye no Extremo Oriente da Rússia, não longe da fronteira com a China. Primorye (Pri ‑mor ‑ia) é, entre outras coisas, o último reduto do tigre siberiano, e o funcionário ao telefone tinha uma notícia perturbante: tinha sido atacado um homem perto de Sobolonye, uma pequena comunidade de madei‑reiros localizada em plena floresta, a 96 quilómetros a nordeste de Luchegorsk. Yuri Trush era o chefe de brigada da unidade de Inspeção de Tigres, uma de seis no território, cuja missão consistia em investigar crimes na floresta, especificamente os que envolves‑sem tigres. Como frequentemente estavam também envolvidos caçadores furtivos, entre esses problemas contavam ‑se os ataques de tigres. Por consequência, esta situação — e o que ela pudesse implicar — era agora um problema de Trush, e ele começou de imediato a preparar ‑se para a viagem a Sobolonye.

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* * *

Cedo na manhã seguinte — um sábado —, Yuri Trush, jun‑tamente com os seus colegas de equipa Alexander Gorborukov e Sasha Lazurenko, meteram ‑se num camião excedentário do exército e dirigiram ‑se ronceiramente para norte. Envergando uniformes com isolamento térmico e camuflados e armados com facas, pisto‑las e espingardas semiautomáticas, os Tigres, como são chamados por vezes estes inspetores, pareciam menos guardas de caça do que uma espécie de tropas de intervenção na Natureza. Tinham dado ao seu camião com vinte anos a alcunha Kung e ele era o equivalente russo, com quatro toneladas, dos Unimogs e dos Humvees. Com o seu motor a gasolina, gancho, tração às quatro rodas e pneus largos que dão pela cintura a um homem, é um veículo popular nas zonas interiores de Primorye. Para além de uma grade para as armas e de ganchos para latas de combustível extra, este camião tinha sido modificado, contando com beliches improvisados e um fornecimento de mantimentos que duraria uma semana a quatro homens. Estava também equipado com um forno a lenha para que, mesmo em face de uma avaria mecânica total, a sua tripulação pudesse sobreviver fosse onde fosse nos lugares remotos em que se encontrasse.

Depois de passarem pelo posto de controlo policial à saída da cidade, os Tigres continuaram a subir por uma estrada de terra batida que conduzia para leste ao longo do rio Bikin (Bi ‑quine), um curso de água grande e sinuoso que atravessa algumas das zonas mais isoladas no norte de Primorye. A temperatura estava muito abaixo dos zero graus e a neve era muita, o que atrasava o avanço do pesado camião. A lentidão ambém proporcionou a estes homens, que eram todos caçadores experientes e antigos soldados, muitas horas para ponderar e debater o que poderia aguardá ‑los. Pode afirmar ‑se sem margem para dúvidas que nada na sua experiência poderia tê ‑los preparado para o que encontraram lá.

Primorye, que é também conhecido pelo nome de Território Marítimo, é mais ou menos do tamanho do estado de Washington. Encravada no canto sudeste da Rússia, junto ao Mar do Japão, é

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uma região montanhosa de densas florestas que combina a claustro‑fobia de lugares remotos como os Appalachia com a rudeza de um território de fronteira como o Yukkon. A indústria aqui existente é do tipo mais rudimentar: madeira, minas, pesca e caça, todas elas complicadas por salários baixos, funcionários corruptos, mercados negros florescentes — e alguns dos maiores felinos do mundo.

Um dos muitos efeitos negativos da perestroika e da reabertura da fronteira entre a Rússia e a China foi um recrudescimento da caça ao tigre. Com a economia a desmoronar ‑se e o desemprego a alastrar durante os anos 1990, caçadores furtivos profissionais, homens de negócios e cidadãos comuns começaram a tirar partido da riqueza da floresta em todas as suas formas. Os tigres, por serem tão raros e tão valiosos, foram particularmente atingidos: os seus órgãos, o seu sangue e os seus ossos são muito procurados para serem utilizados na medicina chinesa tradicional. Algumas pessoas acreditam que os bigodes de tigre as tornarão à prova de balas e que os ossos em pó lhes acalmarão as dores. Outros acreditam que o pénis deste animal lhes dará virilidade e há muito quem — de Tóquio a Moscovo — esteja na disposição de pagar milhares de dólares por uma pele de tigre.

Entre 1992 e 1994, aproximadamente cem tigres — cerca de um quarto da população selvagem do país — foram mortos. A maior parte acabou na China. Com a assistência financeira (e a pressão) de agências internacionais de preservação das espécies, o governo do território criou a Inspeção de Tigres na esperança de restabelecer algum tipo de lei e de ordem às florestas de Primorye. Munidas de máquinas fotográficas e com poderes policiais alar‑gados, estas equipas foram encarregadas de intercetar caçadores furtivos e de resolver um número crescente de conflitos entre tigres e seres humanos.

De muitas formas, o mandato da Inspeção de Tigres assemelha‑‑se ao dos detetives numa brigada de narcóticos, assim como os riscos que corre: as somas em jogo são elevadas e os envolvidos são frequentemente indivíduos desesperados e perigosos. Os tigres são também semelhantes às drogas por serem vendidos ao grama e ao quilo e por o seu valor aumentar de acordo com o refinamento,

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tanto do produto como do vendedor. Mas há algumas diferenças‑‑chave: cada tigre pode chegar a pesar 270 quilos; os tigres já caçam presas de grande porte, incluindo seres humanos, há dois milhões de anos; e têm capacidade de memória. Por estas razões, os tigres podem ser tão perigosos para as pessoas que estão a tentar protegê ‑los como seriam para aqueles que lucrariam com matá ‑los.

O território abrangido pela unidade de Yuri Trush da Inspeção de Tigres em meados dos anos 1990 centrava ‑se no rio Bikin. Pode passar ‑se com um camião sobre o Bikin no inverno, mas no verão dá a sensação lânguida de um curso de água tranquilo. Para muitos dos habitantes desempregados do vale, as leis impostas pelo rio e pela floresta são mais relevantes do que as do governo local. Embora a maior parte da população residente se dedique à caça furtiva sim‑plesmente para sobreviver, há quem o faça pelo dinheiro.

Em 1997, a Inspeção de Tigres só existia ainda há três anos; dado o estado da economia russa nos anos 1990, os seus funcionários tinham sorte em ter emprego, particularmente porque eram pagos em dólares por associações estrangeiras de defesa dos animais. Qua‑trocentos dólares por mês era um salário invejável naquela altura, mas esperava ‑se muito em troca. Quer estivessem a fazer a verifica‑ção de rotina dos documentos dos caçadores na floresta, a revistar veículos suspeitos a caminho da fronteira com a China ou a montar operações de emboscada, a maior parte das pessoas com quem a Inspeção de Tigres lidava estava armada. Com frequência, estes encontros decorriam em zonas remotas onde simplesmente não era possível fazer chegar reforços e nunca sabiam o que iriam encontrar.

Na sequência da perestroika, praticamente tudo na Rússia foi posto à venda e vastas quantidades de material bélico militar desa‑pareceram de arsenais locais. No decurso dos seus raides às muitas cabanas anónimas de caça espalhadas pela floresta, Trush e os seus homens confiscaram explosivos plásticos, TNT e metralhadoras de 12 milímetros (calibre .50) roubadas a veículos blindados. Trush não conseguia imaginar o que se faria com armas daquele tama‑nho na floresta, mas os explosivos eram mais fáceis de explicar: usavam ‑nos em ribeiros para matar peixes em massa ou para fazer

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ir pelos ares os ursos nos seus covis. O mercado asiático interessa ‑se menos pelas peles ou pelas carcaças intactas de urso do que pelas patas e pela vesícula; as patas entram na confeção de uma sopa e a vesícula é usada para fins medicinais. Em Primorye, em meados da década de 1990, a vida valia pouco, tanto para os homens como para os animais, e a corrupção tinha alastrado a todos os níveis do governo. Durante esses anos, Trush fez detenções que envolviam agentes policiais de altas patentes e membros do parlamento, ini‑mizades perigosas de se cultivarem. Trush, no entanto, estava bem adequado a este trabalho, porque também ele pode ser perigoso.

Trush mede cerca de 1,88m, tem braços e pernas compridos e é entroncado. Por coincidência, tem os olhos da cor da pedra semi‑preciosa a que se dá o nome de olho de tigre, com anéis pretos à volta da íris. Olham ‑nos de um rosto franco e simples, encimados por grandes sobrancelhas farfalhudas. Embora Trush fosse fraco e adoentado em pequeno, cresceu e tornou ‑se um atleta talentoso, com uma presença que se impõe, uma voz grave e sonante e a capacidade de manter a calma em circunstâncias de enorme tensão. É também imensamente forte. Quando era um jovem soldado no Cazaquistão, na década de 1970, Trush ganhou uma dúzia de cam‑peonatos regionais de caiaque, o que lhe valeu a patente soviética de Mestre de Desportos, uma distinção que implicava que poderia concorrer a nível nacional. Era uma missão séria: não estava apenas a competir contra búlgaros e alemães do Leste. — Eu estava — disse ele — a defender a honra das Forças Militares da URSS. — Aos quarenta e poucos anos, quando entrou para a Inspeção de Tigres, Trush venceu uma competição de levantamento de pesos a nível do território três anos seguidos. Não era o tipo de levantamento de pesos que é provável que se veja nos Jogos Olímpicos; o que Trush fazia parece mais uma competição inventada por soldados de arti‑lharia sem mais que fazer durante as guerras napoleónicas. Consiste em levantar uma kettlebell* — essencialmente uma grande bola de canhão com uma alça — do chão até acima da cabeça tantas vezes quantas se consiga, primeiro com uma mão e depois com a outra.

* A palavra surge em inglês na Associação Portugal Kettlebell Club. (NT)

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As kettlebells são uma invenção russa; já existem há séculos e o seu uso claramente favorece os atletas mais baixos e mais entroncados. Por isso, é surpreendente ver alguém tão magro como Trush, que tem a Lei da Alavanca a pesar tão fortemente contra si, a levantar estas esferas de trinta e dois quilos com tal aparente facilidade.

Trush aprendeu a manejar armas de fogo primeiro com o pai e mais tarde no exército. Também estudou karaté, aikido e o manuseio de facas; nestas modalidades, a sua constituição física joga a seu favor, porque os seus membros compridos tornam quase impossível chegar até perto dele. É tão talentoso na luta corpo a corpo que foi contratado para treinar a polícia militar. A presença física de Trush é intensa e muitas vezes quase incontida. Agarra, abraça, sacode na brincadeira, mas as mãos que iniciam — e controlam — estes jogos são armas mal disfarçadas. Os seus punhos são maços com nós dos dedos, e con‑segue partir tijolos com eles. Enquanto demonstra os passos de uma imobilização ou alinha as etapas de um ataque imaginário, tem ‑se a sensação de que o seu corpo anseia por oportunidades para fazer estas coisas a valer. Referindo ‑se a um antigo colega que enveredou por maus caminhos e a quem ele tentou durante anos apanhar com a boca na botija, Trush disse: — Ele sabe muito bem que eu sou capaz de o decapitar com as mãos. — Esta tensão — entre o vizinho, amigo e marido bondoso e brincalhão e o macho alfa que é polícia da vida selvagem e está pronto a entrar em ação a qualquer momento — condiciona praticamente todas as suas interações. É naquelas últimas circunstâncias que Trush parece ganhar mais vida.

Quanto mais Trush e os seus homens penetravam na floresta, tanto mais acidentada se tornava a estrada. Depois de passarem por Verkhny Pereval, o seu percurso levou ‑os pela vila de Yasenovie, isolada pela neve, uma comunidade de lenhadores das mesmas dimensões e da mesma época que Sobolonye. Aqui, juntou ‑se ‑lhes um jovem vice ‑chefe da polícia chamado Bush, mas a sua presença nesta missão era mais formal do que prática. Bush era polícia e os ataques de tigres ultrapassavam as suas competências; no entanto, se encontrassem um cadáver, era seu dever testemunhar a ocorrên‑cia. Com Bush a bordo, prosseguiram rio acima.

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Já era tarde quando chegaram a Sobolonye, uma vila empobre‑cida de casas de madeira por pintar, que, à primeira vista, mal pare‑cia habitada. Gorborukov ia ao volante e ali desviou o camião para fora da estrada, se é que se lhe podia chamar estrada, enfiando ‑se na floresta por um caminho de largura suficiente para um só veículo. Tinham caído vários centímetros de neve no início da semana e, enquanto avançavam, Trush ia observando a berma do caminho à procura de trilhos novos. Estavam a cerca de oitenta quilómetros da estrada alcatroada mais próxima e tinham percorrido penosamente cerca de um quilómetro e meio para leste de Sobolonye quando atravessaram uma estrada de cascalho larga e improvavelmente localizada. Esta estrada tinha sido concebida durante a época sovié‑tica como alternativa à única estrada norte ‑sul de Primorye, que segue o rio Ussuri para norte até Khabarovsk (a rota usada pelo comboio transiberiano). Apesar de servir todo o tipo de tráfego, incluindo camiões transcontinentais de mercadorias, a estrada de Ussuri tem uma manutenção deficiente e não é mais larga do que uma rua residencial; foi também considerada vulnerável a um ata‑que chinês. Esta nova estrada, embora mais segura, mais larga e direita como uma régua, não chegou a ser terminada, pelo que é essencialmente uma estrada para lado nenhum — no meio de lado nenhum. As únicas pessoas que beneficiam dela são os madeireiros, os caçadores furtivos e os contrabandistas — praticamente as únicas pessoas na zona com posses para ter um veículo automóvel. Mas, por vezes, os tigres também usam esta estrada.

Há uma cortesia involuntária na floresta no inverno que ocorre à volta de caminhos de qualquer tipo. Como é necessária muita energia para abrir um caminho na neve, especialmente quando ela está dura ou é funda, quem for primeiro, quer seja um animal, um ser humano ou uma máquina, está a fazer um grande favor a quem venha a seguir. Como a energia — ou seja, a comida — é escassa no inverno, presentes deste tipo que poupam trabalho raramente são recusados. Desde que o caminho, estrada de madeireiros, rio gelado — ou autoestrada — vá mais ou menos na direção pre‑tendida, outros seres da floresta usá ‑los ‑ão também, independen‑temente de quem os tenha desbravado. Desta forma, os caminhos

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têm um efeito de funil, como o de um rio, nos seres tributários à sua volta, e podem contribuir para alguns estranhos encontros.

Os últimos cinco quilómetros da viagem foram feitos por um caminho para transportar madeira tão tortuoso e complicado que até mesmo um condutor russo veterano de um lugar remoto é levado a berrar, num chorrilho de fricativas e de erres carregados, «Paris ‑Dacar! Camel Trophy!» A estrada contornava para leste os bosques sucessivos, atravessando ribeiros em pontes improvisadas com pilhas de troncos de árvore empilhados em ângulo reto em relação à estrada. A dois quilómetros e meio de uma exploração de abate de árvores de um proprietário particular, Gorborukov virou para uma estrada não sinalizada e dirigiu ‑se para norte. Ao fim de alguns minutos, estacionou numa clareira em cujo extremo se encontrava uma cabana.

A cabana pertencia a Vladimir Markov, um habitante de Sobo‑lonye principalmente conhecido como apicultor. A estrutura básica erguia ‑se sozinha no lado mais alto de uma encosta suave virada a sul, rodeada por uma densa floresta de bétulas, pinheiros e amiei‑ros. Era um local isolado mas encantador e, em circunstâncias dife‑rentes, talvez Trush tivesse reconhecido os seus atrativos. Mas agora não havia tempo a perder; eram três da tarde e o sol já estava no sudoeste, a rasar o topo das árvores. Qualquer calor gerado durante este dia breve e límpido estava a dissipar ‑se rapidamente.

O primeiro sinal de problema foram as gralhas pretas. Elas seguem um tigre da mesma maneira que as gaivotas seguem um barco de pesca: acompanhando um vencedor com provas dadas, conservam energias e transferem as hipóteses de arranjar comida de «Se» para «Quando». Quando Trush e os seus homens desceram do Kung, ouviram o crocitar ruidoso das gralhas pretas concentrado a oeste do caminho de acesso. Trush reparou na forma como os seus corpos escuros voltejavam e apareciam e desapareciam por cima das árvores e, mesmo que não tivesse sido já avisado, esse sinal ter ‑lhe‑‑ia transmitido tudo o que precisava de saber: algo grande estava morto ou a morrer e estava a ser guardado.

Estacionado em frente da cabana de Markov encontrava ‑se um camião pesado que pertencia ao seu bom amigo e colega apicultor

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Danila Zaitsev, um homem reservado e trabalhador com quarenta e poucos anos. Zaitsev era um mecânico competente e o seu camião, mais um veículo excedentário do exército, era um dos poucos veí‑culos que ainda funcionavam em Sobolonye. Com Zaitsev estavam Sasha Dvornik e Andrei Onofreychuk, ambos homens de família, de trinta e poucos anos, que frequentemente caçavam e pescavam com Markov. Era evidente pela sua expressão arrasada que mal tinham dormido na noite anterior.

A avaliar pela multiplicidade de marcas no chão, tinha clara‑mente havido muita atividade à volta da cabana. Várias espécies diferentes estavam representadas e os seus trilhos sobrepunham ‑se de tal maneira que, ao princípio, era difícil distingui ‑los. Trush aproximou ‑se deste emaranhado de informação como um detetive: algures aqui havia um princípio e um fim, e algures havia também um motivo — talvez vários. Mais abaixo na encosta, mais perto do caminho de acesso, dois trilhos em particular lhe chamaram a atenção. Um deles dirigia ‑se para norte, subindo o caminho de acesso a passos de caminhada; o outro dirigia ‑se para sul partindo da cabana. Aproximaram ‑se um do outro diretamente, como se o encontro fosse intencional — como se o tivessem marcado. O trilho que seguia para sul era digno de nota, não só por ter sido feito por um tigre, mas porque havia grandes intervalos — de três metros ou mais — entre cada pegada. No ponto em que se encontravam, o trilho para norte desaparecia, como se a pessoa que o fizera tivesse simplesmente deixado de existir. Aqui, as grandes pegadas de patas viravam para o oeste, cruzando o caminho de acesso perpendicular‑mente. O seu espaçamento regular indicava passos de caminhada; encaminhava ‑se para dentro da floresta, diretamente para a zona onde se encontravam as gralhas pretas.

Trush trazia uma câmara de vídeo e o seu olho fixo registou a cena com todos os seus horrendos pormenores. Só retrospeti‑vamente se nota como a mão e a voz de Trush se mantêm firmes enquanto ele filma o local, narrando à medida que avança: a cabana rústica e a clareira no mato na qual está implantada; o caminho do ataque e o ponto do impacto, e depois o longo trilho de provas horríficas. A câmara não oscila enquanto filma a neve cor ‑de ‑rosa

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e as pegadas, registando a pata traseira de um cão, uma luva e depois o punho de um casaco manchado de sangue antes de parar num pedaço de solo despido a cerca de cem metros, já dentro da floresta. Neste momento, a gravação áudio regista um súbito soluço de alguém prestes a vomitar. É como se ele tivesse entrado na caverna de Grendel.*

A temperatura é de trinta graus negativos e, no entanto, aqui a neve derreteu completamente. No meio deste círculo escuro, apresentadas como uma espécie de oferenda de sacrifício, estão uma mão sem braço e uma cabeça sem rosto. Perto encontra ‑se um osso comprido, provavelmente um fémur, que foi roído até ficar de um branco exangue. Para lá, o trilho continua a embrenhar ‑se na flo‑resta. Trush segue ‑o, espreitando pela câmara de vídeo, enquanto a sua equipa e os amigos de Markov o seguem de perto. Os únicos sons são o estalido do gelo sob as botas de Trush e os latidos dis‑tantes do seu cão. Sete homens estão em silêncio, atordoados. Nem um soluço; nem uma praga.

O cão de caça de Trush, uma pequena Laika, está mais à frente a seguir o trilho, cada vez mais estridente e agitada. Tem o nariz palpitante com o cheiro a sangue e ao almíscar do tigre e só ela se sente à vontade para exprimir o seu receio mais profundo: o tigre está ali, algures mais acima. Os homens de Trush têm as armas em posição e cobrem ‑no enquanto ele filma. Chegam a outro local onde a neve derreteu; desta vez, um grande espaço oval. Aqui, por entre os galhos e as folhas, está tudo o que resta de Vladimir Ilyich Markov. Ao princípio, parece um monte de roupa suja, até se verem as botas, com tocos luminosos de osso partido a despontar da parte de cima, a camisa esfarrapada com um dos braços ainda metido na manga.

Trush nunca tinha visto um ser humano tão completamente e horrificamente aniquilado e, mesmo enquanto filmava, a sua mente escapou ‑se para as margens da cena, refugiando ‑se em pormeno‑res periféricos. Chamou ‑lhe a atenção a pobreza deste homem — que ele estivesse de botas de borracha fina num tempo assim

* Personagem mitológica do poema épico medieval anglo ‑saxão Beowulf. (NT)

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tão agreste. Reparou no cinto de munições — a que só faltavam três cartuchos — e perguntou ‑se para onde teria ido a arma. Entre‑tanto, a cadela de Trush, Gitta, anda a correr para trás e para a frente, com o pelo eriçado, e a ladrar alarmada. O tigre está algures por perto — invisível para os homens, mas para o cão está palpa‑velmente, quase insuportavelmente presente. Também os homens conseguem pressentir uma força à sua volta — algo maior do que o seu próprio medo, e lançam olhares ao seu redor, sem a certeza de para onde olhar. Estão tão avassalados pela carnificina à sua frente que é difícil distinguir o perigo iminente do horror presente.

Para além dos movimentos do cão e dos homens, a floresta está absolutamente parada; até mesmo as gralhas pretas se retiraram, à espera de que passe esta última perturbação. E também, ao que parece, o tigre. Em seguida, ouve ‑se um som: uma exalação breve e súbita — do tipo que se usaria para apagar uma vela. Mas há algo de diferente no volume de ar que se desloca e na força por detrás dele — algo maior e mais profundo: isto não é um som humano. No mesmo momento, talvez a uns dez metros à frente, a ponta de um ramo baixo de um abeto descarrega espontaneamente a sua carga de neve. Os flocos de neve caem em pó para o solo da floresta; os homens ficam paralisados e sustêm a respiração e, mais uma vez, tudo fica parado.

Desde bastante antes de o ruído do motor do Kung penetrar pela primeira vez na floresta, uma espécie de conversa tem estado a desenrolar ‑se nesta clareira solitária. Não é uma língua como o russo ou o chinês, mas é mesmo assim uma linguagem, e é mais antiga do que a floresta. As gralhas pretas falam ‑na; os cães falam‑‑na; o tigre fala ‑a, e os homens também — alguns com mais fluên‑cia do que outros. Aquele único sopro de respiração continha uma mensagem letal na sua eloquência. Mas o que é que se pode fazer com essa informação, tão longe do seu próprio território? Gitta aperta a trela psicológica que a prende ao seu dono. Os amigos de Markov, já profundamente abalados, aproximam ‑se também. A comunicação mais recente do tigre não só serve para perturbar ainda mais estes homens, mas também para aprofundar o abismo invisível entre eles — todos caçadores furtivos — e os funcionários

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armados de quem a sua liberdade e a sua segurança agora depen‑dem. Os amigos de Markov são conhecidos de Trush, porque ele já os apanhou em flagrante antes — por posse ilegal de armas de fogo e por caçarem sem licença. Dos três, só a arma de Zaitsev é legal, mas é demasiado ligeira para deter um tigre. Quanto aos outros, as suas armas estão agora escondidas na floresta, deixando ‑os mais vulneráveis do que a cadela de Trush.

Trush também está desarmado. Tinha havido alguma troca de palavras no caminho de acesso sobre quem iria seguir aquele trilho horrendo e tinham ‑se feito comentários dando a entender que Trush e os seus homens não estavam devidamente preparados. O medo não é pecado na taiga, mas a cobardia é, e Trush retri‑buiu o desafio com um convite seco: — Poshli — «Vamos lá». Um dos amigos de Markov — Sasha Dvornik, como recordou Trush — sugeriu então que poderia ser a equipa de Trush a lidar com o assunto. Além disso, disse ele, não tinham armas. Trush confrontou ‑o, instando ‑o a ir buscar a sua arma não registada ao seu esconderijo. — Este não é o momento de confiscar armas — disse. — O que é importante agora é protegermo ‑nos. — Mesmo assim, Dvornik hesitou e foi então que Trush se ofereceu para lhe emprestar a sua espingarda. Era um gesto audaz a vários níveis: não só implicava uma expec tativa de confiança e de cooperação, mas também a semiautomá tica de Trush era uma arma muito melhor do que a velha espingarda de cano liso de Dvornik. Punha também fim à discussão: agora não havia desculpa e nenhuma forma de Dvornik — com seis homens a assistirem — poder recusar honro‑samente. Foi esta mesma mistura de vergonha, medo e lealdade que impeliram Zaitsev e Onofreychuk a acompanhá ‑los. Além disso, quantos mais fossem mais seguros estariam.

Mas já há muito tempo que Dvornik tinha saído da tropa e a arma de Trush parecia ‑lhe estranhamente pesada nas mãos; Trush, entretanto, estava a sentir a falta do seu peso reconfortante, e tam‑bém isso era estranho. Ainda tinha a sua pistola, mas ela estava no coldre e, de qualquer maneira, seria virtualmente inútil contra um tigre. Depositava a sua fé nos seus colegas da brigada, porque ele tinha ‑se colocado numa posição extremamente vulnerável: embora

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encabeçasse o grupo, fazia ‑o a uma distância eletrónica — dentro deste drama mas não dele, explorando este surrealismo terrível através da lente estreita e ciclópica da câmara. Como não se podia contar com Zaitsev e Dvornik e o agente Bush só tinha uma pis‑tola, os Tigres eram os únicos substitutos fiáveis de Trush. Os que traziam armas tinham ‑nas prontas, mas a floresta era densa e a visibilidade fraca. Se o tigre atacasse, podiam acabar por disparar uns contra os outros. Por isso, continham ‑se, com olhares lançados para um lado e para o outro, para aquele singelo ramo despido, perguntando ‑se de onde viria o sinal seguinte.

Por trás da câmara, Trush mantinha ‑se estranhamente calmo. — Vemos claramente as pegadas do tigre a afastar ‑se dos restos — prosseguiu ele, no seu tom oficial, monótono e calmo, enquanto Gitta ladrava incessantemente, de pernas retesas e olhar fixo. — ... a cadela indica claramente que o tigre foi nesta direção.

Mais acima, os trilhos do tigre viam ‑se claramente na neve, vivamente destacados pelas sombras que agora se acumulavam dentro deles. O animal estava a avançar para norte para um terreno mais elevado, o lugar onde todos os felinos preferem estar. — Dá a impressão de que o tigre não está muito longe — dizia Trush a futuros espectadores —, a cerca de quarenta metros. — A neve não estava muito funda, e nessas condições um tigre conseguiria cobrir uma distância de quarenta metros em cerca de quatro segundos. Tal‑vez tenha sido por essa razão que Trush escolheu aquele momento para desligar a câmara, reclamar a sua arma e voltar a entrar no tempo real. Mas uma vez lá, teria de tomar uma decisão difícil.

Na sua capacidade profissional, como inspetor sénior da Inspe‑ção de Tigres, Trush agia como intermediário entre a Lei da Selva e a Lei do Estado; uma é instintiva e frequentemente espontânea, enquanto a outra é calculada e sempre onerosa. As duas são, pelas suas próprias naturezas, incompatíveis. Quando Trush estava no terreno, usualmente não tinha maneira de contactar os seus supe‑riores ou fosse quem fosse; os seus walkie ‑talkies tinham um alcance limitado (quando funcionavam), pelo que ele e os seus colegas de brigada estavam completamente por sua conta. Por essa razão, o trabalho de Trush requeria um grande número de decisões sope‑

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sadas e ele ia ter de tomar uma agora: o tigre é uma espécie do «Livro Vermelho» — uma espécie protegida na Rússia — pelo que a autorização para o matar teria de vir de Moscovo. Trush não tinha essa autorização, mas era sábado, Moscovo era tão distante como se ficasse na lua e eles tinham agora uma oportunidade de pôr termo à situação.

Trush decidiu seguir a pista. Isso não fazia parte do seu plano; ele tinha sido enviado para investigar um ataque, não para caçar um tigre. Além disso, faltava um homem à sua equipa, aproximava ‑se o escuro e os amigos de Markov eram um empecilho; ainda estavam em choque e, para dizer a verdade, Trush também. Mas naquele momento estava pronto — equidistante entre o tigre e as provas arrepiantes do que ele tinha feito. Os dois nunca mais estariam assim tão perto um do outro. Fazendo sinal a Lazurenko para o seguir, Trush enveredou pelo trilho acima, sabendo que cada passo que desse o levaria a penetrar mais na zona de segurança do tigre.

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