Thomas S. Kuhn e as Ciências Sociais

106
1 As ciências sociais e a epistemologia das ciências naturais de Thomas Kuhn: empréstimos e adaptações Vittorio Pastelli 1992

description

Uso do vocabulário kuhniano nas ciências sociais.

Transcript of Thomas S. Kuhn e as Ciências Sociais

  • 1

    As cincias sociais e a epistemologia das cincias naturais

    de Thomas Kuhn: emprstimos e adaptaes

    Vittorio Pastelli

    1992

  • 2

    PLANO:

    0. Introduo

    0.1. Antecedentes e impacto da obra de Thomas S. Kuhn

    0.2. Kuhn e as cincias sociais

    1. O modelo de desenvolvimento cientfico de Thomas S. Kuhn

    1.1. Kuhn e o senso comum

    1.2. O modelo

    1.3. Explicitaes

    2. O novo papel do cientista social

    3. Kuhn aplicado pelos cientistas sociais

    3.1. O porqu da aplicao

    3.1.1. M avaliao de Popper

    3.1.2. O "desejo de se mostrar cientfico"

    3.2. O uso do vocabulrio de Kuhn nas cincias sociais

    4. Concluso

    5. Bibliografia

  • 3

    We shall not cease from exploration And the end of all our exploring

    Will be to arrive where we started And know the place for the first time.

    T. S. Eliot "Little Gidding", 1942.

    0. Introduo

    0.1 Antecedentes e o impacto inicial da obra de Thomas S. Kuhn

    Em 1962, aparece, na "Foundations of the Unity of Science", que servia de introduo

    ao ambicioso projeto positivista da constituio de uma "Enciclopdia de Cincia Unificada",

    um longo artigo intitulado "A Estrutura das Revolues Cientficas" (daqui para diante, ERC).

    Seu autor um fsico que, progressivamente, passou da fsica para a histria da fsica, para a

    filosofia da fsica e, desta, para a filosofia das cincias naturais.

    O impacto do trabalho de Thomas S. Kuhn foi imediato. Os motivos disso so variados.

    Em primeiro lugar, Kuhn cristaliza idias que ocupavam o espao da teoria do conhecimento e,

    mais especificamente, da filosofia da cincia na dcada de 50. A reao ao positivismo lgico

    aparecia como corolrio do segundo Wittgenstein. Grosso modo, a lio a tomar que uma

    anlise proveitosa de qualquer atividade com pretenses ao conhecimento deveria basear-se no

    estudo do como e menos no estudo do porqu. Noutras palavras, para melhor entender a

    atividade que denominamos "cincia", mais valia entender sua prtica do que buscar uma

    fugidia estrutura lgica subjacente a toda teoria que se intitulasse "cientfica", coisa que j

    tinha, de maneira infrutfera, ocupado o trabalho de positivistas por mais de 30 anos.

    Trabalhos como o de Michael Polanyi (Polanyi, 1958), ou mesmo de Ernest Gombrich

    (Gombrich, 1956), sugeriam que a atividade cientfica (artstica para Gombrich, embora suas

    consideraes no percam o valor quando se substitui "arte" por "cincia") baseava-se em uma

    srie de "princpios" que jamais chegavam a ser enunciados durante o aprendizado do futuro

    cientista. Gombrich comea seu "Art and Illusion", de 1956, perguntando: "afinal, o artista

    pinta o que v ou v o que pinta?" Sua opo recai sobre a segunda alternativa. A atividade do

    pintor baseia-se em pressupostos que ele mesmo jamais chega a expressar, que podem jamais

    chegar a aflorar em sua conscincia durante o trabalho normal. Somente esforo adicional, e

  • 4

    totalmente estranho a suas prticas profissionais, poderia chamar sua ateno para esses

    princpios escondidos (mais adiante, veremos que essa intuio que liga arte e cincia ser

    firmemente descartada por Kuhn, que afirmar _em artigo posterior ERC_ que "se a anlise

    cuidadosa faz com que arte e cincia paream to implausivelmente prximas, isso deve ser

    devido menos sua similaridade que a uma falha das ferramentas que usamos para escrutiniz-

    las").

    Falando especificamente de cincia natural, Polanyi expressa o mesmo tipo de intuio.

    Para ele, toda atividade cientfica est impregnada do que chama "procedural knowledge", ou

    conhecimento que se baseia na ao, em contraste com o conhecimento que se baseia em

    princpios expressos durante a formao cientfica, o que denomina "declarative knowledge".

    Esse "procedural knowledge", bem como as regras de representao pictrica discutidas

    por Gombrich no so outra coisa que os jogos de linguagem de Wittgenstein. Tais jogos,

    Wittgenstein afirma, no so, em sua maioria, ensinados explicitamente, "por ostenso". E'

    dentro de uma dada "forma de vida" (a definio _necessariamente precria_ de "forma de

    vida" encontra-se em Wittgenstein, 1953, 1-23) que tais jogos cobram seu sentido. So

    exemplos de jogos de linguagem:

    "(...) Dar ordens e obedec-las

    Descrever a aparncia de um objeto, ou dar suas medidas

    Construir um objeto a partir de uma descrio (um desenho)

    Reportar um evento

    Especular acerca de um evento

    Formar e testar uma hiptese

    Apresentar os resultados de um experimento em tabelas ou diagramas

    Criar uma histria; e l-la

    Cantar estribilhos

    Propor enigmas

    Fazer uma piada; cont-la

    Resolver um problema em aritmtica prtica

    Traduzir de uma linguagem para outra

  • 5

    Perguntar, agradecer, maldizer, cumprimentar, orar." (Wittgenstein, 1953, 1-23)

    Viver dentro de determinada comunidade significa, para Wittgenstein, jogar diferentes

    jogos de linguagem, cuja escolha e adequao final dependero da situao em que um sujeito

    se encontre. Dentro de uma forma de vida no cabe perguntar, portanto, qual o sentido exato de

    determinado termo, mas sim qual seu papel _dentro dos jogos de linguagem relevantes para

    aquela forma de vida_ como promotor de aes aceites por todos como corretas aps a

    enunciao do termo em questo. Wittgenstein, assim, epitomiza a idia de que a compreenso

    de uma dada atividade _atividade cientfica necessariamente includa (alguns dos exemplos do

    que ele chama "jogos de linguagem" so tpicos da atividade cientfica, como "formar e testar

    uma hiptese")_ deve ser procurada na descrio dos jogos relevantes, nas aes que tais jogos

    propiciam e na construo de metforas que permitam entender melhor esses jogos.

    "Nossos claros e simples jogos de linguagem no so estudos preparatrios para uma

    futura regularizao da linguagem _como se fossem uma primeira aproximao, que ignorasse

    frico e resistncia do ar. Os jogos de linguagem so construdos como objetos de comparao

    que pretendem lanar luz sobre os fatos de nossa linguagem atravs no apenas de

    similaridades, mas tambm de dissimilaridades." (Wittgenstein, 1953, 1-130, sublinhado nosso)

    A construo de "objetos de comparao" deixa claro que, para Wittgenstein, a filosofia

    no tem qualquer carter normativo (Richard Rorty prefere classificar esse trabalho da filosofia

    como "teraputico"). Sua tarefa principal a de esclarecimento de um dado contexto, seja ele

    cincia ou tica ou lingstica etc.

    O mesmo vale para Kuhn, o que nem sempre fica claro para seus comentadores e

    "usurios", que ou atacam seu normativismo (ausente) ou usam seu modelo normativamente,

    seja dentro da metodologia da cincia (retomando justamente o procedimento neopositivista

    que Kuhn quer superar), seja dentro da prpria atividade cientfica (e no outra coisa que se

    faz quando se prope, por exemplo, que as cincias sociais deveriam cessar suas discusses

    sobre fundamentos a fim de progredir, cf. Martins, 1972, para uma crtica desse uso do modelo

    de Kuhn). Perder a perspectiva desses "objetos de comparao" o que tambm leva Barnes

    (Barnes, 1982, p. 60) ao absurdo de afirmar que Kuhn "normativo e descritivo ao mesmo

    tempo".

    Ainda, o projeto de Wittgenstein, alm de retirar da filosofia qualquer carter normativo,

    tambm sugere que tal atividade no tem carter sequer descritivo. A construo de objetos de

    comparao deve _se se pretende que tais objetos esclaream algo sobre o mundo_ levar em

  • 6

    conta o que o mundo , ou, pelo menos, o que se acha que ele seja. Mas nada pode garantir que

    tais observaes sejam corretas (garanti-lo seria retroceder ao positivismo). Assim, os modelos

    que os filsofos fazem de determinada atividade ajudam a esclarec-la, a diminuir nossa

    ingenuidade com relao a ela, mas no podem pretender retrat-la fielmente e, muito menos,

    justific-la. Nesse sentido, tem pouco cabimento usar o modelo de Kuhn como modelo para a

    histria da cincia ou como modelo fundado ou baseado na prtica cientfica, embora muito da

    assimilao de Kuhn em meios externos ao debate epistemolgico mais especializado se deva

    exatamente a essa suposta base histrica do modelo proposto na ERC. Mas o ponto de difcil

    assimilao, mesmo para pesquisadores diretamente ligados filosofia da cincia.

    "A filosofia da cincia, tal como iniciada e desenvolvida neste sculo, principalmente

    pelos empiristas, era em sua orientao puramente sistemtica. Maior ateno para a histria da

    cincia e para os aspectos sociolgicos e psicolgicos de sua prtica deveriam ter, poder-se-ia

    esperar, significado uma adio bem-vinda lgica da cincia." (Stegmller, 1977, p. 75)

    Dar boas-vindas a Kuhn como fornecedor de um apoio sociolgico a uma pretensa

    lgica da cincia justamente perder de vista a idia da "construo de objetos de comparao"

    de Wittgenstein. No h como assimilar Kuhn a uma escola que fale em "lgica da cincia".

    "Lgica" pressupe uma atemporalidade metodolgica sobre a qual Kuhn ctico (mais

    adiante, deveremos definir mais claramente o relativismo e o ceticismo de Kuhn; por ora,

    digamos apenas que ele seria um "relativista civilizado"). Alm disso, estudos sociolgicos no

    precisam necessariamente apresentar qualquer relao com questes metodolgicas. O mais

    ortodoxo positivista lgico concederia de sada que a cincia se d num mundo sujeito a

    injunes locais que podem ser descritas pelo socilogo da cincia melhor do que por qualquer

    outro profissional. A cinciacomo realmente se d no questo para o epistemlogo de

    orientao positivista. E tambm no o para Kuhn, como esperamos demonstrar no correr

    deste texto.

    Retornando questo do contexto onde aparece a ERC, alm de Gombrich e Polanyi,

    deve-se citar os trabalhos de N. R. Hanson. Seu "Patterns of Discovery", publicado em 1958,

    antecipa muitas das idias que formariam uma base para Kuhn. Ainda assim, Kuhn mostrar,

    especialmente no captulo 9 da ERC, que Hanson no conseguiu passar das consideraes de

    carter psicolgico para um modelo coerente que reunisse, de um lado, gestalt individual e, de

    outro, a orientao geral de uma comunidade de cientistas. Noutras palavras, o fato de que

    observao sempre carregada de teoria j era bem aceito muito antes de Kuhn. O problema

    como reunir isso com o fato, igualmente claro para qualquer pessoa que examine a atividade

  • 7

    cientfica, de que, apesar dessa "theory-ladenness" da observao, os cientistas no so

    inteiramente livres para interpretar os fatos. Consistente com seu projeto, Kuhn no pode

    pretender fundar essa uniformidade da comunidade de cientistas em alguma razo atemporal ou

    afirmar que tal uniformidade se deva existncia de regras subjacentes atividade cientfica.

    Assim, constatar essa uniformidade e, ao mesmo tempo, negar a possibilidade de

    fundamentao racional para ela deve lev-lo a novas concepes de o que se deva entender

    pelo termo "razo".

    ***

    Pode-se tambm considerar Kuhn a contrapartida epistemolgica de trabalhos

    historicamente orientados como os de Alexandre Koyr. Esse autor russo radicado na Frana,

    ao estudar a obra de Galileu (cf. especialmente Koyr, 1939), j antecipava muitos insights de

    Kuhn, especialmente no que diz respeito ao papel da retrica na aceitao de uma teoria

    cientfica, na dificuldade de dilogo racional entre partidrios de teorias rivais e sobre as

    alteraes (no-aditivas) de significado para um mesmo termo quando usado no contexto de

    teorias diferentes. Por exemplo, "Terra" quer dizer coisas diferentes para Galileu e para

    Aristteles, mas o fato de galileanos e aristotlicos usarem o mesmo termo com significados

    diferentes tem duas conseqncias paradoxais: confundir ou mesmo impossibilitar uma

    confrontao e, por outro lado, dar uma impresso de continuidade entre teorias sucessivas j

    que a utilizao de termos iguais parece sugerir progresso atravs de acrscimos pontuais, o que

    Koyr cuida de mostrar que, absolutamente, nunca o caso.

    "O que os fundadores da cincia moderna, entre eles Galileu, tinham de fazer no era

    criticar e combater certas teorias erradas para corrigi-las ou substitu-las por outras melhores.

    Tinham de fazer algo inteiramente diverso. Tinham de destruir um mundo e substitu-lo por

    outro. Tinham de reformar a estrutura de nossa prpria inteligncia, reformular novamente e

    rever seus conceitos, encarar o Ser de uma nova maneira, elaborar um novo conceito do

    conhecimento, um novo conceito da cincia, e at substituir um ponto de vista bastante natural

    _o do senso comum_ por um outro que, absolutamente, no o ". (Koyr, 1943)

    Essa mudana de teoria cientfica como mudana mais ampla de viso de mundo

    aparecer como tema central na ERC. Nesse sentido, pode-se dizer que a ERC um livro sobre

    essas transies e sobre como dar conta delas mantendo, ao mesmo tempo, a noo de

    progresso cientfico. Este ponto absolutamente central. No h como negar que a cincia

    progrida. Uma teoria da cincia que no levasse esse fato em conta ou que o colocasse em

  • 8

    segundo plano no poderia servir como objeto de comparao til para se entender a atividade

    cientfica.

    ***

    Existe tambm um componente retrico ao qual se deve dar ateno quando se pretende

    entender a disseminao da ERC. Menos preocupado com a lgica do discurso cientfico ou

    com a procura exaustiva de fundamentos racionais para a atividade cientfica, Kuhn deixa de

    lado o vocabulrio altamente tcnico e o estilo mais formal que domina os textos especializados

    em filosofia da cincia. Esse fator, to somente ligado retrica, teve importncia capital na

    disseminao da obra de Kuhn entre no-especialistas. Como nota Hollinger (Hollinger, 1973),

    a ERC foi, sua poca, o livro de filosofia mais lido por historiadores:

    "Desde a publicao de 'A Idia de Histria' de Collingwood, nenhum outro trabalho de

    'teoria' ganhou da parte de historiadores o interesse recentemente devotado ERC de Thomas S.

    Kuhn." (Hollinger, p. 195)

    Alm da linguagem menos formal, deve-se tambm levar em conta que a ERC se

    apresenta como um livro "confessional" (para usar um termo reiteradas vezes empregado por

    Jonathan Re em seu "Philosophical Tales", sobre a funo da retrica em filosofia,

    especialmente a respeito dos elementos autobiogrficos que aparecem nas obras filosficas de

    Descartes e Hegel). Dados autobiogrficos e compartilhamento de experincias que tanto Kuhn

    quanto seus potenciais leitores enfrentaram durante a educao cientfica bsica so habilmente

    usados no sentido de aproximar autor e leitor e de fazer com que as idias expostas no texto

    paream "bvias" em vista dessa _suposta_ experincia comum.

    Kuhn usa extratos da histria da cincia, comenta prticas quotidianas de qualquer

    cientista, fala sobre a educao cientfica _um estgio pelo qual todos seus leitores passaram_ e

    usa o poder persuasivo da autobiografia. Esse componente autobiogrfico est presente no

    prefcio da ERC, como estava tambm no prefcio da "Revoluo Copernicana".

    Posteriormente, no artigo "What Are Scientific Revolutions?", de 1982, dados autobiogrficos

    viriam a ocupar uma posio ainda mais destacada como veculo de suas idias. Enfim, a ERC

    aparece como um osis de acessibilidade quando comparada, por exemplo, "Lgica da

    Descoberta Cientfica", traduzida para o ingls em 1959 e considerada poca o livro mais

    importante sobre filosofia da cincia.

    0.2. Kuhn e as cincias sociais

  • 9

    Kuhn tem formao bsica em fsica e, ainda que no explicitamente, no pretendeu dar

    em seu livro mais que um modelo geral de desenvolvimento das cincias naturais, tomadas _de

    novo no explicitamente_ como modelo mais acabado da racionalidade humana. Seus exemplos

    restringem-se quase inteiramente qumica e fsica. Poucas vezes fala em biologia e evita as

    cincias sociais e as humanidades. Quando fala, usa o termo "paradigma" em seu sentido

    coloquial, o que, naturalmente, confunde seus leitores (um exemplo desse uso acontece quando

    Kuhn fala em "paradigma filosfico iniciado por Descartes", Kuhn, 1970, p. 121). Mesmo

    dentro do panorama das cincias naturais, o modelo de Kuhn encontra dificuldades quando

    empregado fora do domnio da fsica e da qumica. Sua aplicao histria da biologia _em

    especial aceitao da teoria darwinista da evoluo das espcies_ apresenta muitas

    dificuldades (Greene, 1971). Entretanto, como discutiremos mais adiante, o fato de o modelo de

    Kuhn no se aplicar a exemplos histricos fora dos escolhidos no corpo da ERC no invalida a

    crtica que Kuhn faz ao positivismo, como pretendem alguns de seus crticos (cf. Shapere, 1964

    e 1971).

    O motivo para essa ttica de Kuhn, evitando as cincias sociais e as humanidades,

    deriva do propsito da obra e da estrutura que ela prope para o desenvolvimento cientfico: s

    passa a haver acordo e, conseqentemente, progresso em determinado campo de pesquisa

    quando seus componentes atingem o que Kuhn denomina fase paradigmtica. Antes disso, as

    discusses giram sempre em torno de princpios e nunca se avana para um estgio de pesquisa

    mais esotrica, isto , de pesquisa mais especializada. Somente quando os princpios de uma

    disciplina esto assentados pode ela progredir, no sentido de articular-se e de resolver um

    conjunto predeterminado de problemas. Claramente, as cincias sociais no apresentam grau de

    acordo comparvel com o que tm, por exemplo, os qumicos (e, talvez, isso nem sequer seja

    interessante). Assim, Kuhn no se enderea aos cientistas sociais. Ele teme ser interpretado

    como o fornecedor de uma frmula de "paradigmatizao" para atividades ainda no-

    paradigmticas. A ERC pretende ser, bem no esprito de Wittgenstein, um livro que extrai

    lies da histria da cincia para melhor entender como funciona a prpria cincia. Nada mais.

    Dentro da linha de "ao no lugar de estrutura lgica", Kuhn centra seus esforos para

    compreender a cincia no na anlise da possvel estrutura lgica de teorias ou disciplinas

    cientficas, mas no modo como ocorrem transies de estrutura no decorrer da histria de uma

    dada disciplina arrolada entre as cincias naturais. So nesses momentos que muda a forma dos

    cientistas verem o mundo, que o que constitua, antes, evidncia, passa a ser artefato, que as

  • 10

    regularidades passam a ser apenas coincidncias (por exemplo, dentro da fsica de vrtices de

    Descartes havia uma explicao para a regularidade observada de que todos os planetas ento

    conhecidos pertencentes ao Sistema Solar giravam no mesmo sentido; dentro da fsica

    newtoniana, tal regularidade apenas casual. Laudan, 1990, pp.15-16, discute esta questo _em

    que fica patente que no apenas existe descontinuidade, mas tambm perda de poder explicativo

    entre teorias sucessivas_ e tenta encontrar uma alternativa pragmtica para que este exemplo

    histrico no sirva de pretexto para se falar em no-cumulatividade da cincia). Se existem,

    portanto, pontos em que a atividade dos cientistas pode ser melhor compreendida, eles ocorrem

    nas transies entre teorias, entre crenas, entre o que Kuhn tentar definir como paradigmas.

    Nessas ocasies que os cientistas _o grupo reconhecidamente mais "racional" dentro da

    cultura ocidental_ devero exercitar sua racionalidade. Se pretendemos compreender a

    racionalidade humana, devemos observar o que acontece no momento em que deve haver

    escolha entre teorias rivais dentro das cincias naturais. Essas observaes ajudaro na

    construo de um modelo (de um objeto de comparao) mais esclarecedor. Todavia, nunca tais

    observaes podero pretender mais que fornecer alguns elementos constitutivos desse modelo.

    No h como pretender _sem que se recaia ou numa espcie de positivismo ou nalguma verso

    do "programa forte"_ que a observao histrica funde o mudelo.

    ***

    Mas a escassez de referncias s cincias sociais e s humanidades no impediu que

    cientistas sociais entrassem na discusso levantada pela ERC.

    Em primeiro lugar, Kuhn afirma que o mtodo cientfico reflete muito da estrutura

    social da cincia. Por exemplo, autoridade, senioridade, nmero de "convertidos", pesam mais

    na escolha entre alternativas rivais que sua confrontaco simultnea via uma linguagem neutra

    (confrontao que, de resto, Kuhn julga ser impossvel). Isso redefine o papel do socilogo da

    cincia. Ele no mais estudaria apenas as regras em que se baseia a sociedade dos cientistas,

    com o fim de explorar como funciona uma sociedade que, em seu trabalho, usa determinado

    mtodo _o mtodo cientfico. Seu trabalho deveria, a partir de agora, passar a ter reflexos

    diretos sobre os estudos acerca do mtodo cientfico.

    Note-se que "redefinir o papel" nada tem a ver com a prtica de pesquisa do socilogo.

    Ele continua a usar seus prprios mtodos e teorias (um ponto que Kuhn j ressaltava na

    "Revoluo Copernicana") para ajudar a filosofia a formar "objetos de comparao" cada vez

    mais esclarecedores.

  • 11

    Kuhn utiliza constantemente uma linguagem extrada da psicologia da gestalt. Fala em

    "viso particular de mundo", em "converso a uma nova viso" etc. Para escapar da acusao

    feita por Lakatos, por exemplo, de ele que reduziria o mtodo cientfico psicologia de massas,

    apela para a educao e para outros vnculos sociais ligados ao aprendizado como foras

    capazes de moldar a psicologia do grosso da comunidade de cientistas.

    Assim, ao escapar do discurso psicolgico, Kuhn abre a porta para que os socilogos

    estudem o comrcio entre os valores que norteiam a convivncia e a formao dos cientistas e

    aqueles que determinam como deve ser exercido o mtodo cientfico.

    Mas no foi esse o nico caminho aberto pela ERC para que historiadores e socilogos

    ganhassem destaque na elucidao da atividade cientfica. Afinal, onde buscar evidncia de que

    uma cincia j atingiu sua maturidade paradigmtica? No mais na estrutura da disciplina.

    Afinal, a estrutura sempre ser lgica, partindo de princpios tomados como primitivos e

    evoluindo para a explicao de problemas (e isso vale mesmo nas disciplinas no-

    paradigmticas, como, por exemplo, a antropologia ou a sociologia). Mesmo que essa estrutura

    lgica jamais seja explicitada (nem no caso da matemtica ela o , cf. Davis e Hersh, 1980, p.

    388-90), os cientistas tendem a dizer que essa lacuna se deve a questes de ordem prtica e no

    terica. No que uma cincia no tenha estrutura lgica: ela a tem, dir a maior parte dos

    componentes da comundade cientfica, s que no vale o trabalho explicit-la.

    A fase de transio maturidade deve ser procurada nos manuais de ensino. Em algum

    ponto do desenvolvimento de uma cincia, os manuais deixam de se reportar aos princpios de

    uma disciplina. Comeam a medias res e do os princpios como assentados noutro lugar.

    Levantar quando acontece isso (o que no precisa, nem pode, acontecer pontualmente na

    histria) trabalho para historiadores profissionais e, mais amplamente, de cientistas sociais.

    No fim de contas, a teoria de Kuhn exige essa interveno dos historiadores e dos

    socilogos. Tome-se como exemplo a prpria definio que Kuhn fornece de comunidade de

    cientistas. Ao longo da ERC, ele a define como aquela que trabalha em torno de um paradigma

    e, paradigma, como aquilo que articulado por uma comunidade de cientistas (desenvolvida).

    A menos que exista uma maneira independente de definir paradigma e comunidade de

    praticantes de uma determinada disciplina cientfica, no h como escapar do problema da

    circularidade. Sob esse aspecto, portanto, a interveno do cientista social no trabalho do

    epistemlogo absolutamente essencial.

  • 12

    Um trabalho sociolgico cuja finalidade foi a de resolver essa "circularidade" , por

    exemplo, o de Diana Crane (Crane, 1969) que procurou delimitar comunidades de praticantes

    de uma determinada disciplina no a partir do contedo dos papers publicados _o que seria o

    mesmo que reuni-los pelo "paradigma" usado pelos pesquisadores_ mas a partir das redes de

    citaes bibliogrficas. Embora sujeito a crticas (afinal, nem sempre so as citaes

    reconhecimentos puramente cientficos, podendo dever-se ascendncia de determinado

    cientista ou grupo de pesquisa, a trocas de favores dentro de um grupo de pesquisa _pois

    quantidade de citaes constitui parmetro de avaliao de impacto de um trabalho cientfico,

    especialmente nos ltimos 30 anos, e pode determinar se o grupo que o publicou continuar ou

    no a receber verbas para pesquisa), o trabalho de Crane mostra exemplarmente que os

    socilogos tm um papel importante a desempenhar dentro da filosofia das cincias naturais.

    Esse tipo de trabalho sancionado por Kuhn (Kuhn, 1970, p.178) no tocante cincia recente.

    Para perodos mais distantes, outras tticas tm de ser divisadas.

    ***

    O exposto acima sintetiza o que nos parece ser a relao correta entre Kuhn e as cincias

    sociais, relao que desenvolveremos melhor no captulo 2 deste trabalho. No entanto, o grosso

    da aceitao de Kuhn se deu noutro sentido. No na relao "cincia social Kuhn", mas na

    relao "Kuhn cincia social". E' nesse sentido que o modelo de Kuhn aparece "aplicado" s

    cincias sociais e s humanidades. E' nesse sentido que aparece o Kuhn normativo, relativista

    (no-civilizado, que negaria qualquer base razovel para a cincia) etc.

    Os cuidados de Kuhn no sentido de descaracterizar sua obra como uma "cartilha" para

    as atividades que pretendem chegar ao grau de avano da fsica no impediram que o livro fosse

    utilizado dessa forma. Isso pode ser, em parte, devido a um despreparo geral por parte de no-

    especialistas em epistemologia para tratar com assuntos epistemolgicos. Mas, pelo menos em

    parte, isso deriva da linguagem pouco formal que o prprio Kuhn imprime a seu texto e que

    responsvel por muito de sua aceitao. A acessibilidade da ERC paga o preo de ser o texto

    passvel de infinitas ms interpretaes. M. Masterman (Masterman, 1970) encontrou, no

    decurso da ERC, pelo menos 21 diferentes noes definidas pelo termo "paradigma". E, embora

    Kuhn marque sua acepo preferida (de paradigma entendido como exemplar), o uso reiterado

    do termo em situaes distintas gera confuso.

    Alm disso, no parece a princpio ficar claro qual o papel dos exemplos histricos na

    ERC. Embora o autor os utilize, o fato que o ponto principal de Kuhn a crtica idia

    positivista de que a atividade cientfica pode ser justificada racionalmente para alm de

  • 13

    qualquer dvida e independentemente das convices que a comunidade de cientistas mantm

    acerca dos componentes do mundo numa dada poca. Assim, embora alguns exemplos

    histricos o apoiem, Kuhn no pretende sacar deles o apoio definitivo para sua teoria. Nem isso

    seria admissvel. Se, para a posio de Kuhn, a prpria experincia est em dvida, que dir a

    histria? Essa dificuldade pode levar a uma leitura "naturalizada" do autor, isto , a uma leitura

    em que os exemplos histricos assumiriam papel central na "prova" do ponto de Kuhn. Laudan

    (Laudan, 1990), por exemplo, incorre nesse erro quando ridiculariza a posio de Kuhn ao

    apresent-lo, num dilogo fictcio, como o autor de "Ceticismo Acerca de Tudo, Menos das

    Cincias Sociais, Um Guia Ps-Moderno".

    Uma preocupao mais ampla move Kuhn: se seu ponto estiver correto, ou se abandona

    a crena em que a atividade cientfica racional _o que Kuhn jamais fez_ ou se abandona o

    modelo de racionalidade no qual razo seja algo assentado em regras formulveis

    independentemente de contexto.

    Os eventuais desvios cometidos durante o texto da ERC recebem explicitao maior no

    "Posfcio", publicado sete anos depois. O "Posfcio", publicado na segunda edio, de 1970,

    reforma muito do discurso que poderia dar margem a uma leitura mais "revolucionria" da

    ERC, embora no o reforme no sentido de desmenti-lo, mas de explicit-lo. Kuhn no

    abandona, no "Posfcio", nenhuma das teses centrais expostas na ERC. Ainda assim, a primeira

    formulao da ERC podia facilmente dar apoio ao mais violento relativismo, quando parecia

    no admitir a existncia de qualquer foro imparcial onde duas teorias rivais pudessem medir-se

    (os positivistas identificariam esse foro com uma possvel linguagem experimental _ou de

    observao_ isenta de teoria). No entanto, e como Kuhn explicar em parte no "Posfcio" e

    tambm em artigo posterior, "incomensurabilidade" entre termos de duas teorias no deve ser

    entendida como "incomunicabilidade" entre cientistas partidrios dessas mesmas teorias. Ou

    seja, duas escolas, partidrias de paradigmas incomensurveis, comunicam-se e debatem (e

    debatem proveitosamente) baseando-se nos pontos que permaneceram fixos na transio entre

    os dois paradigmas (Kuhn, 1982, 1983). A inexistncia de tal foro tambm no deve levar

    concluso de que no existam razes para escolha entre teorias rivais. Como dissemos antes,

    seria absurdo advogar a posio de que no existiriam critrios de escolha. Deve-se revisar, isto

    sim, o que deva ser entendido por "razo".

    Assim, existe um s modelo, mas vrios graus de explicitao deste. Muitos dos

    cientistas sociais articuladores ou simplesmente usurios dos conceitos emprestados de Kuhn

    limitaram-se a trabalhar com a primeira edio da ERC ou com a edio seguida do "Posfcio".

  • 14

    A esse respeito, um levantamento de citaes de Kuhn nos ltimos 10 anos no "Social Sciences

    Citation Index" mostra que 60% das citaes referem-se ERC (no foi possvel analisar

    perodos anteriores devido a mudanas nos critrios adotados pelo ISI; os dados no so

    comparveis com os da ltima dcada). Desta forma, ao fazermos adiante uma espcie de

    "sociologia da leitura de Kuhn por cientistas sociais", estaremos autorizados a nos concentrar

    nas teses tal como so expostas na ERC. Algumas distines importantes dentro do modelo

    seriam explicitadas pelo autor em artigos cuja circulao ficou mais restrita, atingindo

    preferencialmente o pblico profissional em epistemologia. Em termos de assimilao pela

    classe mais ampla dos cientistas sociais e dos historiadores (e isso o que entendemos por

    "sociologia da leitura"), a ERC que domina a cena. Referncias a tais artigos mais

    especializados de Kuhn, bem como sua "Revoluo Copernicana", aparecero neste trabalho,

    especialmente no captulo 1, quando dermos um quadro geral do modelo. Porm, em termos

    dessa sociologia da leitura, tais artigos so praticamente irrelevantes.

    Mesmo levando em conta somente as indicaes presentes na ERC, possvel distinguir

    o que Kuhn quer dizer com "paradigma". Ainda assim, os socilogos que aplicaram Kuhn s

    suas respectivas disciplinas fizeram-no custa de adaptaes grosseiras do termo. Usando uma

    acepo relativamente vaga de "paradigma", no difcil dar a praticamente qualquer atividade

    humana o status de "cincia". Por exemplo, se "paradigma" significar apenas "uma srie de

    compromissos acerca de mtodos, objetos de estudo e avaliao de resultados sobre os quais

    est de acordo parcela razovel da comunidade de praticantes", ento, claramente, as cincias

    sociais possuiro diversos paradigmas. Logo, abrigaro uma srie de subdisciplinas, cada uma

    rigorosamente cientfica (dentro de uma acepo que supostamente faz justia a Kuhn).

    Nesse sentido, epistemlogos das cincias sociais procuraram encontrar na histria, na

    sociologia, na poltica ou na antropologia, sinais que indicassem a presena de paradigmas

    (para um levantamento extenso da presena desses paradigmas, cf. Eckberg & Hill, 1979, pp.

    132-33). Ao encontr-los, garantiriam o status de cincia para cada uma dessas disciplinas que

    coletivamente denominamos, de forma um pouco vaga, "cincias sociais".

    Mas, para que a aplicao valha, as distores tm quase de beirar a contradio.

    Herman (Herman, 1988), por exemplo, identifica seis paradigmas dominantes nas cincias

    sociais. Um deles, a praxeologia, teria como caracterstica principal, segundo o autor, o fato de

    ser um paradigma cuja atitude anti-monoparadigmtica (p. 126)!

    ***

  • 15

    Para concluir tudo o exposto acima, o trabalho que se segue uma "sociologia da leitura

    da ERC", leitura esta cujos resultados podem gerar duas correntes. De um lado, haver os

    socilogos que, mantendo seus mtodos e a especificidade de suas disciplinas, passaro a

    participar do esforo distintamente filosfico de entender a atividade cientfica, de construir

    "objetos de comparao", no sentido wittgensteiniano.

    De outro, e essa a direo na qual se desenvolve boa parte da literatura ligada ao tema,

    estaro os socilogos cujo propsito o de aplicar o sistema de Kuhn atividade exercida pelos

    cientistas sociais. Eventualmente, tais aplicaes podero mesmo ser muito frteis, no sentido

    de relacionar fatos distantes, no sentido de produzir ferramentas para explorao e

    sistematizao de vastas reas da sociologia. Nosso ponto ser apenas que, pelo menos nos

    exemplos estudados, tais aplicaes se baseiam em uso pouco rigoroso do vocabulrio

    emprestado da ERC.

    PARTE 1. O Modelo de Desenvolvimento Cientfico de T. S. Kuhn

    1.1 Kuhn e o senso comum

    Kuhn divide o desenvolvimento cientfico de uma disciplina particular em dois grandes

    componentes: cincia normal e revoluo cientfica. Durante os perodos de cincia normal,

    podem valer as regras de explicao cientfica e de descarte de hipteses tal como descritas nos

    manuais escritos por autores como os positivistas lgicos (que so as descries mais aceitas

    pela comunidade de cientistas, ainda que a maior parte deseus membros nunca chegue a usar

    regras inteiramente justificveis do ponto de vista lgico, para a aceitao ou rejeio de

    hipteses). J nos perodos de revoluo cientfica, o debate entre alternativas rivais,

    envolvendo fundamentos (que no estavam em jogo quando o debate se dava apenas no mbito

    da cincia normal, presidida por um paradigma indisputado), para explicar um conjunto de

    fenmenos, a norma.

    No entanto, esse debate no racional, no sentido de que sempre esbarra em questes

    que no podem ser resolvidas de comum acordo entre as partes, recorrendo ambas a um foro

    neutro e reduzindo seus diferentes discursos a um discurso comum via mecanismos

    inteiramente lgicos.

  • 16

    Do ponto de vista epistemolgico, o modelo revolucionrio, j que tem como

    conseqncia a necessidade de que se reaprecie toda a histria da cincia. Uma vez aceito o

    modelo de Kuhn, no h lugar para se falar em desenvolvimento linear da cincia, nem em

    desenvolvimento cumulativo do conhecimento norteado pela razo, que justamente a imagem

    da histria da cincia que os cientistas cultivam e que est em todos os manuais que os nefitos

    devem percorrer antes de poderem considerar-se formados. Se existe linearidade, esta

    sustentada por mecanismos que pouco teriam a ver com regras racionais. Sua base deve se

    apoiar num novo modelo de racionalidade.

    Do ponto de vista da prtica cientfica, a alternativa oferecida por Kuhn parece fornecer

    uma imagem bem pouco lisonjeira da atividade do cientista. Longe de trabalhar no sentido do

    questionamento constante de suas premissas, no sentido de buscar a verdade mesmo a preo de

    ser obrigado a abandonar suas teorias mais caras, o cientista aparece como herdeiro

    (involuntrio) de uma tradio e tem como papel articul-la, isto , salv-la de ataques a todo

    preo.

    Convencer seu pblico (principalmente filsofos da cincia e cientistas naturais) da

    plausibilidade do modelo proposto e de que ele seria o mais adequado para se entender a

    atividade cientfica parece tarefa duplamente inglria. De um lado, o dos filsofos da cincia, o

    modelo certamente derruba um dos mais slidos preceitos do positivismo (e, mesmo, do senso

    comum) acerca da cincia: a crena de que o conhecimento cientfico se distancia de outras

    formas de conhecimento humano pelo fato de se desenvolver cumulativamente, apoiado em

    princpios universais de razo, que pairam acima de eventuais diferenas de enfoque.

    "Nas sociedades estudadas pelos antropologos, o conhecimento quotidiano do mundo ou

    tomado como garantido ou embasado num sistema fracamente articulado de lendas, mitos e

    doutrinas religiosas. Na sociedade moderna, no entanto, a religio perdeu muito de sua

    autoridade em relao ao conhecimento prtico e a eficcia da mgica posta em dvida. Nas

    pequenas decises da vida, as pessoas esto sempre prontas para seguir o costume ou uma regra

    simples conveniente mas, em questes realmente graves, elas sentem que precisam depositar

    sua confiana na cincia." (Ziman, 1984, p. 186)

    Abalar a confiana na superioridade da cincia sobre outras formas de conhecimento

    (prtico) , assim, abalar o que h de mais slido e confivel para a sociedade contempornea

    _no s leigos, mas tambm profissionais em reas nas cincias naturais ou nas humanidades.

  • 17

    Noutras palavras, o modelo parece a princpio instaurar um certo caos na histria da

    cincia. Afinal, se seu desenvolvimento no cumulativo, nem a escolha entre alternativas

    rivais racionalmente justificvel (tomado o modelo clssico, que insiste numa racionalidade

    apoiada em regras abstratas e atemporais _daqui para diante, ser sempre neste sentido que

    tomaremos o termo "clssico" quando este se referir racionalidade), sinal de que a cincia

    no pode oferecer uma argumentao inequvoca que a coloque acima de outras atividades

    humanas (aparentemente _e s aparentemente, como veremos mais tarde_ incluindo, para

    Feyerabend (Feyerabend, 1975), o vodusmo). Assim, deixaria, nesse novo modelo, de ser

    "fato" que a cincia atual o melhor do esforo humano, como tambm ficaria enterrada

    qualquer esperana de se encontrar um mtodo capaz de definir com segurana qual entre dois

    enfoques rivais para explicar um conjunto de fenmenos o melhor. Essa foi a primeira reao

    ao que est na ERC e , mesmo hoje, quase 30 anos depois de sua publicao, a reao de boa

    parte de cientistas s idias de Kuhn. Mais frente, mostraremos que essa reao no tem

    justificativa.

    Por outro lado, o modelo de Kuhn choca o cientista praticante. Afinal, quais so as bases

    sobre as quais est apoiada sua atividade? O cientista ensinado desde cedo que os modelos

    que estuda e trata de aperfeioar agora no so fruto de escolhas fortuitas. Muitos homens j se

    debruaram sobre os mesmos problemas e seus insucessos foram norteando o caminho para a

    busca de solues cuja melhor expresso se encontra hoje. Assim, Aristteles j se interessava

    pelos movimentos dos corpos celestes, mas partia da premissa errada de que a Terra ficava no

    centro do universo e desconhecia o que fossem as estrelas e os planetas. Isso se devia ao pouco

    instrumental disponvel poca, que no permitia medidas precisas e avaliaes rigorosas

    quanto a posies relativas etc. Mas, com o advento desses instrumentos e com uma mecnica

    mais requintada, o homem pde passar, progressivamente, ao modelo que colocava a Terra em

    torno do Sol, ao modelo que afirmava serem as rbitas elipses e no crculos, a uma mecnica

    que subsumisse essa astronomia a princpios mais gerais (com Isaac Newton), e assim por

    diante. A imagem atual _de uma Terra perdida em um universo praticamente vazio, ligada a

    uma pequena estrela que orbita na periferia de uma entre muitos milhes de galxias_

    resultado de esforo cumulativo de homens que se debruaram sempre sobre o mesmo

    problema: o de explicar quais os movimentos dos cus e como funciona toda a mquina

    csmica.

    Algum lembrar ao cientista de que houve dificuldades na aceitao de alguns

    modelos, que Coprnico preferiu esperar at quase o momento de sua morte para no sofrer as

  • 18

    conseqncias da divulgao de suas teorias. Historiadores podero lembrar ainda o destino de

    Galileu, duas vezes processado e uma vez condenado por professar o heliocentrismo ou ainda

    Descartes, que preferiu evitar problemas e escondeu "O Mundo" dos olhos de seus crticos mais

    perigosos.

    O cientista de hoje conhece esses fatos, mas argumentar que casos como o de

    Coprnico, Galileu ou Descartes, mostram o quo difcil a trilha da cincia, o quanto esforo

    foi necessrio para fazer com que a razo se impusesse. Os trs casos so exemplos da cincia

    versus a Igreja, do novo e correto versus a tradio, que custa a ser desalojada. Podem mesmo

    ser feitas analogias entre esses casos e exemplos familiares de teimosia conservadora frente ao

    novo.

    O que Kuhn tem a dizer contra toda essa carga recebida pelo cientista, contra toda essa

    viso _de resto bem articulada_ da histria do desenvolvimento de sua prpria atividade?

    Ele responder, simplesmente, que essa viso da histria foi inculcada em um longo

    processo de aprendizado e que ela no pode se pretender mais fiel aos fatos do que o seu

    modelo de desenvolvimento cientfico. Dir que o mximo que pode ser extrado da convico

    do cientista praticante um entusiasmo para seguir pesquisando e uma crena em que se est

    fazendo o melhor, mas que essa crena no pode ser fundamentada "racionalmente", ou seja,

    que no existem princpios neutros sobre os quais pessoas racionais sejam obrigadas a aceitar

    que a cincia a mais perfeita atividade com pretenses ao conhecimento (se essa aceitao

    existe na prtica, sua fundamentao no deve ser procurada em princpios transcendentais).

    Dir que os casos histricos no se resolveram pelo "novo e mais correto vencendo a tradio",

    mas sim pelo novo vencendo o velho. Cada etapa do desenvolvimento da cincia envolve

    recursos retrica e outros recursos que bem pouco se encaixam na viso que se tm de razo e

    que a utilizao desses recursos, a longo prazo, o que forja o desenvolvimento cientfico.

    Mesmo que se deixe a retrica e outros fatores "menos dignos" de lado, foroso notar

    que palavras como "simplicidade", "acurcia", "harmonia", "testabilidade" ou "fertilidade" no

    so passveis de regulamentao definitiva e, mesmo assim, comparecem constantemente nos

    julgamentos cientficos acerca de que alternativa escolher em situao de crise. Laudan

    (Laudan, 1990) chama esses termos, simplesmente, de "slogans" (p. 98). Mas que cientista

    admitiria que sua atividade se baseia na aplicao mais ou menos subjetiva de "slogans"?

    O ponto central de toda essa argumentao a demonstrao de que escolas, em

    diferentes pocas, no estudavam os mesmos problemas nem se valiam dos mesmos mtodos

  • 19

    de aferio de adequao natureza. A unidade metodolgica da cincia uma quimera

    inventada h tempo pela filosofia e articulada ao mximo de sofisticao pelos neopositivistas.

    Aristteles se interessava pelo movimento dos corpos celestes em relao Terra, mas

    isso no pode ser equacionado com o temrio que interessava a, digamos, Kepler. Pois, apesar

    de ambos parecerem discutir mais ou menos a mesma coisa, o fato que "Terra", para

    Aristteles, no era simplesmente mais um corpo celeste, onde, por acaso, nos encontramos.

    "Terra" tinha tambm o significado de "posio", de lugar privilegiado no universo. Dizer que a

    Terra estava em repouso no era apenas fazer uma assero sobre o estado da Terra mas, antes,

    sobre sua essncia. Equivalia, praticamente, a afirmar uma tautologia. O movimento no era

    relativo como diria Galileu, algo dependente do estado de movimento do referencial onde est o

    observador em relao ao objeto observado. Os corpos que no se moviam, segundo a fsica

    aristotlica, diferiam essencialmente dos corpos em movimento. Dessa forma, embora

    aparentemente Aristteles e Kepler parecessem estar estudando o mesmo conjunto de questes,

    o fato que estudavam temas bem diferentes. Nesse caso em particular, o uso da mesma

    palavra (Terra) em dois sentidos completamente distintos, que leva os cientistas a pensar em

    continuidade na tradio de resoluo de um conjunto de problemas.

    Para o cientista sem inclinaes filosficas, isso pode parecer um jogo de palavras.

    Alm do mais, o cientista poder sempre argumentar que, a exceo desses casos exemplares,

    onde at pode ter havido algo semelhante, no se pode aplicar a mesma linha de argumentao

    para toda a historia da cincia.

    Em resumo, para ter aceitao entre os epistemlogos profissionais, Kuhn teria de

    mostrar argumentos que destrussem os principais dogmas do positivismo sem cair nas garras

    do relativismo, posio que seria impossvel de defender. Pois, mesmo no caso de ter bons

    argumentos quanto inadequao dos dogmas do positivismo, restaria sempre aos positivistas o

    argumento de que a alternativa dada por Kuhn levaria a um "laissez faire" em cincia

    incompatvel com a realidade que se observa e, mesmo, com qualquer conceito plausvel de

    razo. O que responder pergunta: o que impediu os cientistas do passado de, em situao de

    crise, frente a vrias alternativas rivais, escolhrerem alternativas diferentes das registradas pela

    histria? E' preciso que se postule uma certa estabilidade de vises de mundo, um certo acordo

    ontolgico que fornea um foro para escolha entre teorias. Para responder satisfatoriamente a

    essas crticas, Kuhn deveria ser capaz de elaborar um modelo onde se articulassem elementos

    derivados de uma complexa trama entre retrica, mtodo cientfico, sociologia da comunidade

  • 20

    de praticantes de uma disciplina reconhecida na prtica como cientfica, e os meios que se usam

    para educar o futuro cientista.

    Para ter aceitao entre os cientistas, Kuhn teria de provar que a atividade cientfica,

    embora fosse menos aventureira que no quadro pintado pelo positivismo, ainda assim mantinha

    um lugar garantido para a criatividade individual e deixava o cientista com alguma esperana de

    entender melhor a natureza, isto , evitando o relativismo.

    Pode parecer paradoxal que um livro que, primeira vista, subtrai da atividade cientfica

    uma de suas caractersticas mais fascinantes _a criatividade do cientista no momento de propor

    hipteses_ possa ter tido tanta penetrao nos meios cientficos profissionais. Um fator, sem

    dvida, o carter aparentemente acessvel do texto da ERC. Outro fator, mais sutil, que

    Kuhn se vale da prpria retrica do cientista ao expor casos histricos que corroboram seu

    modelo e ao expor contra-exemplos viso positivista do processo de desenvolvimento

    cientfico. O quanto esses casos histricos foram bem escolhidos e o quanto so representativos

    da cincia em geral, foi assunto muito debatido nas ltimas duas dcadas (cf. Shapere, 1964).

    ***

    Para concluir, deve-se lembrar dos mritos da perspectiva positivista, cumulativa, do

    desenvolvimento cientfico. A seu favor conta, em primeiro lugar, a autoridade de um sistema

    estabelecido h dcadas por epistemlogos, com os quais a maioria dos cientistas est de

    acordo. O modelo tem o mrito de instalar em um s quadro o carter revolucionrio da

    atividade cientfica, sua busca apaixonada da verdade, em que, a cada momento, todo o edifcio

    do conhecimento est por um fio, com um mtodo que, na ltima hora, sempre garante a

    estabilidade do empreendimento e faz com que o edifcio fique, a um momento, maior, mais

    epaoso, mais completo e mais harmonioso.

    O modelo ainda guarda com o senso comum o sentimento de que a experincia _ou

    uma linguagem neutra baseada na observao isenta de teoria_ sempre decide qual a melhor

    alternativa, e que as crises sempre podem ser superadas pela razo, desde que se seja sempre,

    em qualquer caso, fiel ao mesmo mtodo. E' o preceito de no se mudar as regras durante o

    jogo. A cincia o produto mais acabado do conhecimento humano porque tem se mantido fiel

    a um mtodo de argumentao, de um lado, e a uma misso de sempre confrontar suas

    conjecturas com a experincia, por outro.

    Em lugar desse modelo firmemente ancorado tanto na tradio filosfica como na

    tradio cientfica quanto no senso comum, aparece um modelo que pretende, em ltima

  • 21

    anlise, dizer que o desenvolvimento cientfico no se apia no que comumente se chama razo,

    que os cientistas constantemente forjam novas regras para teste e eventual validao de suas

    atividades, que a razo cede lugar ao que, no limite, pode ser entendido como trapaa (a

    expresso de Feyerabend) e que, uma vez ganha uma disputa e instaurada uma nova teoria, o

    cientista luta para mant-la a salvo do ataque por novidades. Sua criatividade est voltada para a

    conservao do velho e conhecido e no no sentido de explicar o novo e trilhar o inexplorado, o

    que s feito em ltimo caso. Enfim, o modelo de Kuhn parece apresentar a cincia como uma

    atividade orientada para o conservadorismo e afastada da razo, colocando-a ao lado de

    atividades humanas, em princpio, bem menos nobres.

    A tarefa de Kuhn , ento, dupla. Primeiro, fornecer argumentos para provar que seu

    modelo historicamente adequado, no sentido de que entram em sua confeco todos os

    elementos da racionalidade cientfica tal como se manifesta. Segundo, mostrar que esse modelo

    no leva ao relativismo e ao tudo vale de Feyerabend (que, como veremos adiante, renegar a

    autoria desse "slogan").

    No corpo principal da ERC est a defesa da tese de que a cincia, em perodos de

    transio, lana mo de pseudo-argumentaes que no tm como ser reduzidas a um discurso

    racional de regras que possa ser aceito por partidrios de ontologias ou de tradies de

    avaliao diferentes. Junto a essa argumentao de princpio, Kuhn mostrar que sua teoria gera

    um modelo que adequado para a compreenso de algumas transies histricas. O modelo no

    pretende explicar tais transies, uma vez que explicar significa recorrer a algum estrato mais

    fundamental e bem justificado de asseres e a partir dele provar via mecanismos

    exclusivamente lgicos o ponto em questo. Kuhn descarta a existncia de tal estrato

    privilegiado.

    Os ltimos traos de uma possivel trilha para o relativismo sero apagados no

    "Posfcio". Muito do trabalho posterior de Kuhn ser no sentido desfazer malentendidos

    gerados por questes levantadas na ERC, como, por exemplo, a questo da

    incomensurabilidade entre teorias. Nesse caso, ele tratar de mostrar que no pelo motivo de

    duas teorias serem incomensurveis que seus defensores estaro impedidos de confront-las.

    Outro ponto de atrito o da escolha entre teorias: Kuhn argumentar no sentido de que os

    cientistas sempre fazem escolhas (o que parece bvio, dada a histria da cincia), mesmo na

    ausncia de regras para eleio de teorias. Noutras palavras, regras _ou razo apoiada em

    regras_ no so essenciais para que se faa escolhas entre teorias rivais.

  • 22

    Passamos agora apresentao dos principais pontos de argumentao sobre os quais

    Kuhn fundamenta seu modelo.

    1.2 O Modelo

    Kuhn, no decorrer da ERC, s estudar a transio entre paradigmas. As consideraes

    do autor sobre essa transio valem, com pequenas modificaes, para a transio entre as fases

    pr-paradigmtica e paradigmtica de uma disciplina dentre as que costumamos chamar

    "cincias naturais".

    Uma determinada atividade com pretenses ao conhecimento, dita cientfica, atingiu a

    fase paradigmtica quando pra de haver debate em torno de princpios. As diversas escolas que

    estudam determinado conjunto de fenmenos concordam com que a viso de uma delas a

    melhor. A partir da, o paradigma da escola vencedora ganha aceitao geral e passa a ser base

    de toda a tradio de estudo naquele campo. Pode haver especializao nas diferentes escolas,

    isto , cada grupo de cientistas pode se dedicar a determinado conjunto de fenmenos, com

    diferentes grupos podendo estudar diferentes fenmenos. O que importa que todos os grupos

    admitam uma ontologia comum e, mesmo estudando fenmenos diferentes, concordem com

    que estes sejam manifestaes das entidades catalogadas naquela ontologia aceita por todos.

    Esse acordo que se segue transio de paradigmas no se d de maneira explcita.

    Existe debate entre as escolas, mas esse debate no visa exatamente a descobrir,

    desapaixonadamente, qual o "melhor" paradigma. As escolas lutam para fazer valer seu ponto

    de vista, em detrimento dos demais. A vitria de uma delas se baseia em fatores diversos como

    o peso (autoridade) dos defensores de cada escola ou a "demonstrao" pblica de que uma

    delas (a que defendemos, claro) verdadeiramente representa a continuidade da tradio.

    Feyerabend sublinha que este ltimo exatamente esse o caso de Galileu. Ao apelar

    para o fato de que muito de suas teorias j estava contido no platonismo, Galileu valia-se do

    recurso retrico que visa a abrandar o choque do novo, vestindo-o de uma roupagem que o

    aproxima da tradio conhecida. Contam tambm fatores econmicos, sociais, polticos,

    religiosos etc. A anlise "objetiva" dos fatos para se tentar decidir racionalmente sobre que

    teoria melhor os explica tentada tambm. Mas cada escola fala sua prpria lngua e essa

    discusso acaba sendo infrutfera do ponto de vista puramente lgico, forando a entrada em

    cena de outros mecanismos, para que haja escolha entre teorias.

  • 23

    A certa altura desse debate, uma das escolas comea a ganhar adeptos, o que sufoca as

    tradies rivais. A contrapartida sociolgica desse fenmeno o que Robert Merton (Merton,

    1968) chama "efeito Mateus". Quanto mais se desenvolve uma escola, quanto mais adeptos

    ganha, maior seu potencial para desenvolver-se ainda mais atravs de um sistema de citaes e

    premiaes mtuas. Esse efeito acaba por reforar a escolha feita. Os projetos de pesquisa

    ligados ao paradigma vencedor sero os que atrairo as melhores inteligncias, os que recebero

    maiores verbas para pesquisa, os que tero maior apoio das universidades etc. Os paradigmas

    rivais, sem esses estmulos, tendero a desaparecer. Assim, a primeira escolha refora o

    paradigma vencedor atravs de uma srie de mecanismos que pouco teriam a ver com sucesso

    do ponto de vista estritamente cientfico. Isto se "estritamente cientfico" for entendido em

    termos positivistas, como sinnimo de fidelidade a um mtodo lgico, atemporal, imutvel.

    Esse momento de transio pode ser determinado, a posteriori, pelo exame dos manuais

    com os quais so iniciados os cientistas jovens. Todos mencionam os mesmos princpios

    bsicos, com matizes apenas de carter didtico. Comeam a aparecer livros mais adiantados,

    visando a um pblico j inteirado dos princpios da teoria. Os artigos de pesquisa publicados

    em revistas tendem a se tornar mais especializados e, no dizer de Kuhn, "esotricos". Uma vez

    que o trabalho inicial de convencimento est feito, o cientista j no se preocupa em ser

    acessvel para um pblico maior que o estritamente ligado sua rea de interesse.

    Vale lembrar que nenhuma teoria nova est de acordo com todos os fatos j conhecidos

    do campo que pretende explicar. Essa caracterstica das teorias cientficas reconhecida seja

    por um positivista lgico ortodoxo seja por um filo-anarquista em epistemologia. Assim,

    quando a comunidade aceita um paradigma, o que ela est aceitando , na verdade, uma

    promessa de resoluo de problemas futuros, promessa que se impe sobre as outras com base

    no sucesso obtido na resoluo dos problemas j atacados. Nesse sentido, pode-se tambm dizer

    que a aceitao de determinado paradigma um fenmeno irracional: ele aceito menos pelo

    que fez no passado e mais pelo que se sente ele poder fazer no futuro. Uma vez que no existe

    como avaliar o rendimento de determinada teoria no futuro, a escolha de uma entre diversas

    alternativas deve se basear em um "pressentimento de que as coisas podero dar certo". As

    teorias perdedoras no conseguiriam despertar o mesmo sentimento na comunidade. Tal

    "pressentimento", desnecessrio lembrar, no pode se encaixar no quadro da racionalidade

    cientfica desenhado pelo neopositivismo.

    Dada a diversidade de fatores que levam escolha de determinado paradigma para

    orientar a pesquisa em uma cincia natural, Kuhn no se arrisca a tentar definir qual a via para

  • 24

    que uma disciplina se torne paradigmtica. Seu livro, de resto, no tem pretenses preceptivas.

    Pretende apenas negar a tese positivista da possibilidade de escolha puramente lgica ou

    racional entre teorias rivais. Os casos apresentados mostram instncias histricas em que

    melhor pode ser vista a falncia da tese positivista.

    ***

    Uma vez que todos os participantes de uma tradio de pesquisa aceitam um paradigma

    que os oriente, comea a fase chamada por Kuhn de "cincia normal". Nesse ponto, a analogia

    que melhor caracteriza a atividade dos cientistas a da resoluo de quebra-cabeas.

    Nessa altura a tarefa dos cientistas melhorar os padres de medida j conhecidos,

    aprimorar o clculo das constantes da teoria, tentar ampliar o campo de aplicao da teoria etc.

    Aqui, "teoria" e "paradigma" esto sendo usadas indiferentemente. Grosso modo, o paradigma

    contm o que a epistemologia clssica chama teoria, mais seus prprios mtodos de validao

    (sejam os mtodos de validao que poderamos chamar propriamente cientficos _margens de

    erro admissveis, preferncia por certos tipos de instrumentos de medida etc._ sejam os valores

    mais abstratos que o cientista usa para avaliar hipteses, como simplicidade, harmonia etc.).

    Classicamente, tais mtodos deveriam ficar de fora das modas cientficas, deveriam ser o foro

    neutro para debate entre teorias rivais. Mas isso no acontece no modelo de Kuhn. Cada

    paradigma carrega consigo seus prprios mtodos de validao e isso o que torna impossvel a

    deciso racional entre paradigmas rivais. No h razo externa, neutra, atemporal e comum a

    teorias rivais. Retomando um termo de Laudan, citado mais acima, diferentes paradigmas

    colocam diferentes pesos sobre os mesmos "slogans". A permanncia dos slogans cria a

    sensao de continuidade (que todo cientista natural estar pronto a admitir). A diferena de

    peso que cada escola atribui aos slogans a raiz da descontinuidade _em termos racionais_

    entre dois paradigmas (o que j no parecer to familiar para os cientistas).

    Esse trabalho eminentemente conservador do cientista leva ao que Kuhn denomina

    anomalias, fenmenos que "se recusam" a entrar na cama de Procusto traada pelo paradigma

    (en passant, Kuhn usa a analogia da cama de Procusto com relao viso positivista da

    cincia. Kuhn, 1970, p. 108). Em um primeiro momento, o cientista deixa essas anomalias de

    lado, para estudo posterior. Ele confia em seu paradigma e acredita em que a anomalia fruto

    de pesquisa precipitada, que queimou etapas. Comea ento a atacar partes do problema que

    levou anomalia com a finalidade de, ao longo do tempo, resolv-la.

  • 25

    Essas anomalias _que, na verdade, esto presentes desde que a teoria proposta_ podem

    no se resolver com essa pesquisa mais aprofundada. As conseqncias que essa permanncia

    pode ter para uma teoria estabelecida dependero, novamente, de fatores pouco ligados ao

    debate racional.

    Dentro do quadro clssico, a presena da anomalia deveria despertar a idia de substituir

    os princpios da tradio de pesquisa por outros mais adequados ao campo de fenmenos, ou

    seja, dever-se-ia substituir o paradigma por outro competidor em melhores condies de

    resolver a anomalia. Mas isso s feito em ltimo caso. Antes, muito tem de ser avaliado.

    Por exemplo, conta muito a autoridade do cientista que enfrenta a anomalia. Se for um

    cientista relativamente desconhecido dentro da comunidade, a resistncia da anomalia a

    tentativas de explicao poder ser atribuda incompetncia do cientista que a estuda. Se esse

    cientista afirmar que vale a pena alterar os princpios do paradigma, cai sobre ele a reprovao

    expressa no dito de que mau ferreiro aquele que se lamenta de suas ferramentas. Outros

    fatores que pesam nessa deciso so o prestgio do laboratrio que estuda o problema, o grau de

    desenvolvimento do pas em que o problema est sendo estudado (pois isso d uma medida

    indireta da maturidade das instituies de pesquisa ali instaladas) etc.

    No caso de um cientista de prestgio, em instituio de prestgio, estar estudando o

    problema h muito tempo (esse "muito" tambm decidido em bases bem pouco racionais),

    ento passa a ser possvel pensar que o paradigma j exauriu suas possibilidades e que hora de

    procurar por uma nova alternativa.

    Pesa tambm nessa deciso o fato de os envolvidos nas tentativas de resolver o

    problema conseguirem convencer seus pares da "centralidade" da questo. Se a questo

    considerada perifrica, sua soluo sempre poder esperar. Por outro lado, se a anomalia estiver

    na encruzilhada dos caminhos de resoluo de diversos problemas dentro da atividade norteada

    pelo paradigma, ento hora de se pensar ou em concentrar esforos de toda a comunidade na

    direo de resolver esse problema especfico ou, ento, em substituir o paradigma vigente.

    Como se pode ver, todos esses fatores no so exatamente racionais. Os ligados a

    prestgio dispensam comentrio. Mas tambm no possvel decidir quanto "muito tempo"

    para que um problema resista a soluo, ou o quanto um problema central dentro de uma

    teoria. Do ponto exclusivamente lgico, no h como definir univocamente essas questes.

    O fato de esses fatores serem pouco afeitos ao debate racional no quer dizer que a

    transio de um paradigma a outro, ou a determinao do momento em que se deve comear a

  • 26

    procurar por alternativas ao paradigma vigente sejam questes decididas de forma inteiramente

    irracional. De alguma forma pouco determinada explicitamente, os lderes da comunidade

    "sabem" quando o momento de considerar seriamente outras alternativas que estejam

    disponveis. Resgatar essa sabedoria a tarefa de uma teoria mais esclarecedora da

    racionalidade. E' a tarefa de Kuhn.

    O cientista preparado para a cincia normal, para a articulao do paradigma em face

    de problemas mais ou menos previstos. A anomalia, por definio, algo alheio ao quotidiano

    do cientista (salvo as anomalias "clssicas", as que esperam resoluo desde a poca em que o

    paradigma foi instaurado). Mas, mesmo essas, no so do trato direto do cientista. Aparecem

    como problemas cuja soluo de longo prazo, que ilustram a atividade da prpria disciplina,

    isto , uma determinada disciplina cientfica pode ser definida como aquela que "tenta resolver

    os problemas x, y, z etc". O trato do cientista com anomalias deve se basear em princpios

    pouco familiares a sua atividade quotidiana.

    Kuhn traz, como ilustrao para esse ponto, que nas fases de crise que os cientistas

    mais procuram o apoio da filosofia. Nessas pocas de crise, o cientista comea a duvidar no

    apenas das teorias que articula, mas mesmo da teoria do conhecimento que est por trs delas.

    Em um ltimo esforo para salvar o paradigma vigente, o cientista tentar uma manobra

    metodolgica via filosofia. Se tiver sucesso, muda as regras de avaliao do jogo sem mudar

    seus princpios ontolgicos. O debate, nos primrdios da mecnica quntica, sobre se o acaso

    deveria ser considerado parte da natureza ou medida da ignorncia do cientista, um exemplo

    de debate puramente filosfico cujo objetivo esclarecer uma questo nascida no mbito da

    cincia natural.

    Essa maneira de tratar as anomalias, assim como de tratar de quaisquer outros

    problemas dentro da cincia normal, so aprendidos pelo cientista novato em contato com seus

    mestres. O que pode ser obtido de manuais leva o iniciante apenas borda da verdadeira

    atividade cientfica. O ingresso nessa atividade depende de contato direto. E por qu? Porque os

    padres que regem a comunidade e o fazer cientficos no podem ser inteiramente codificados

    em palavras. Muito conhecimento tcito (para usar um termo de Polanyi), conhecimento do

    como se faz e menos do por que se faz de determinada forma. Ou seja, conhecimento do qual

    se participa, mais que conhecimento do qual se d ou se pede justificao.

    ***

  • 27

    Vale aqui um parntese acerca da possibilidade de codificar em regras a atividade

    cientfica. Nenhum positivista lgico defender que possvel substituir, na formao do jovem

    cientista, o aprendizado direto, em contato com o pesquisador mais experiente. Nem nenhum

    positivista defender as vantagens de se tentar codificar todas as regras que regem a atividade

    quotidiana do cientista. O ponto apenas que os positivistas acreditam em que o impedimento

    para a explicitao dessas regras , apenas, de carter prtico. Em teoria, nada h que impea

    essa codificao. Ela, simplesmente, "no valeria o trabalho" (o mesmo valeria, para os

    formalistas do incio do sculo 20, com relao matemtica: a matemtica pode ser reduzida

    lgica, mas o trabalho necessrio para isso extrairia energia preciosa da pesquisa matemtica

    para ser canalizada numa vertente cujo resultado conhecido de antemo). O que Kuhn defende

    a impossibilidade de se isolar tais regras. A nica alternativa seria defini-las uma a uma.

    Kuhn afirma que no seriam possveis esquemas (como existem esquemas de axiomas em

    lgica) para essas regras. A descrio caso a caso seria inevitvel. Outro ponto se tais regras

    seriam exclusivamente "cientficas". Kuhn duvida que existam regras de natureza

    essencialmente cientfica, isto , regras as quais bastaria aderir ou usar para ser definido como

    cientista.

    Essa questo do aprendizado um ponto em que Kuhn atrai irresistivelmente o leitor

    que cientista praticante. Ele sabe que sua atividade jamais poderia ser aprendida atravs

    apenas de manuais. Mais que isso, ele tambm sabe que muitos de seus procedimentos de

    laboratrio jamais chegam a ser explicitados entre seus colegas e que alguns, quando o tentam,

    no conseguem encontrar base "cientfica" para muitos entre eles. Alm disso, todo cientista

    experimental sabe o quanto difcil repetir experimentos, isso quando ele realmente tenta

    repeti-los (sobre o quanto , na verdade, incomum a repetio de experimentos, cf. Broad &

    Wade, 1982, cap. 4).

    Uma vez resolvido o aprendizado bsico, o futuro cientista passa a receber formao

    individualizada dentro de um laboratrio. Sua linha de pesquisa, para ser desenvolvida,

    necessita tanto de habilidade terica _para formulao de hipteses dignas de teste, por

    exemplo_ como prtica. Os aparelhos que manuseia tm seus fundamentos assentados em

    outras disciplinas cientficas, das quais ele tem pouca notcia (um citologista usa com

    desenvoltura um microscpio eletrnico mesmo sem entender nada dos fundamentos do

    funcionamento desse aparelho). Assim, durante uma pesquisa, o cientista ser, s vezes,

    cientista e, s vezes, apenas tcnico. Esse trabalho laboratorial mostra ao estudante o que deve

    ser testado e o que, em cada momento, deve ser deixado entre parnteses, o que deve ser

  • 28

    deixado inquestionado. Mais, para o desenvolvimento da pesquisa, o cientista deve se basear

    nos trabalhos de outros, usar protocolos de experimentao desenvolvidos por outros cientistas.

    Esses protocolos raramente so aplicveis in toto. Reagentes podem diferir em qualidade de um

    pas para outro, podem diferir em termos de impurezas, a calibrao dos aparelhos pode variar

    muito, um aparelho construdo em um pas de clima frio pode necessitar de ajustes para ser

    usado em clima tropical, ajustes esses nem sempre inteiramente calibrveis e assim por diante.

    Enfim, o cientista acredita em que usa um mesmo protocolo de experimentao, embora no

    possa justificar inteiramente essa crena. No laboratrio, portanto, esto em jogo vrias

    atividades diferentes:

    1. o cientista deve fazer hipteses sobre sua rea especfica;

    2. deve deixar de lado certas incertezas e "fazer de conta" que elas so estveis e que

    no prejudicam sua atividade;

    3. deve fazer ajustes em procedimentos inventados por outros;

    4. deve dividir tarefas para si mesmo e para seus assistentes e achar meios de garantir

    que tais tarefas obedeam aos mesmos padres de qualidade.

    Essas so apenas algumas das atividades desenvolvidas num laboratrio. Conforme a

    formao do cientista se completa, outras questes, como por exemplo a manuteno do

    funcionamento geral do laboratrio, entram na agenda do pesquisador.

    Chega ento a hora da publicao do paper. A, problemas comezinhos de laboratrio

    no tm lugar. Desaparecem o acaso, os ajustes injustificveis em poucas palavras e mesmo os

    resultados que prejudiquem a hiptese a ser defendida e provada. O cientista no subtrai dados

    ruins, na maioria das vezes, com o fim de enganar seus colegas. A inteno exatamente a

    oposta: os dados ruins so, ele acredita, fruto de defeitos experimentais impossveis de

    localizar. Deixar esses defeitos constar das tabelas e entrar nas anlises estatsticas serviria

    apenas para mascarar resultados bons. Assim, tais dados so eliminados em prol da boa cincia

    e da clareza de exposio. Quanto aos ajustes, o cientista pressupe que seus colegas enfrentam

    os mesmos problemas e, dado o pouco espao que as revistas reservam aos pesquisadores, no

    vale a pena perder pginas com isso. Alm disso, ele no acredita em que qualquer exposio

    em palavras resolva inteiramente o problema. Esse paper pretende no apenas expor o que

    ocorreu no laboratrio, mas tambm deve servir para convencer agncias de financiamento de

    pesquisa. Dessa forma, a retrica fundamental para o sucesso do trabalho. Ele no apenas

    deve expor resultados bons, mas prometer resultados ainda melhores.

  • 29

    Assim, ao falar em quo central o aprendizado direto de uma especialidade, o quo

    pouco pode ser aprendido em livros e, por conseguinte, o quo pouco pode ser codificado em

    palavras, Kuhn reflete aquilo em que os cientistas acreditam e, mais, observam em seu dia-a-

    dia.

    ***

    At a, a mecnica do desenvolvimento da cincia proposta por Kuhn na ERC parece

    perfeitamente plausvel do ponto de vista histrico. O cientista adquire conhecimento de livros

    e, mais, do aprendizado direto no laboratrio com os mestres. Sua confiana nas opinies de

    quem tem mais prestgio dentro da comunidade total. Sua tendncia ao analisar os insucessos

    de outros passa primeiro pelo pensamento de que o cientista analisado no soube usar bem as

    ferramentas da teoria para s muito depois chegar a duvidar da teoria na qual acredita. Mesmo a

    conversa acerca de alternativas diferentes do paradigma vigente vista apenas como

    estimulante intelectual no trabalho de articulao do prprio paradigma.

    O problemas para quem seguiu Kuhn at esse ponto comeam quando se quer definir o

    que seja mudana de paradigma. A questo que se coloca : qual o grau em que se pode

    "articular" uma teoria cientfica e, ainda assim, dizer que se est em um mesmo paradigma? A

    partir de que ponto se deve falar que um paradigma foi abandonado em prol de outro?

    Respostas a essas questes exigem um exame mais rigoroso de o que seja para Kuhn um

    paradigma e do que ele entende por incomensurabilidade entre teorias, um conceito que tem

    papel central no tpico da escolha entre teorias rivais.

    1.3 Explicitaes

    Kuhn, em textos parte da ERC e do "Posfcio", reforma suas teses ou as explicita? A

    resposta questo importante pois, dependendo dela, o trabalho de examinar as aplicaes

    que se faz do modelo de Kuhn nas cincias sociais muda inteiramente de carter.

    Crticos de Kuhn diro que o autor se "retratou" no "Posfcio" e em outros textos (ver,

    especialmente, Shapere, 1971 e Musgrave, 1971). No entanto, nenhuma das teses que aparecem

    na ERC posteriormente refutada por seu autor. Kuhn deixa claro que, embora use o termo

    "paradigma" em diferentes acepes, d preferncia clara a somente uma delas (discutiremos

    isso a seguir). Se a acepo preferida a de "exemplar" (um conjunto problema-soluo que

  • 30

    serve de modelo fornecedor de analogias para uma comunidade de praticantes de determinada

    disciplina), ento um paradigma algo cuja definio bastante objetiva. Dessa maneira,

    "compartilhar um paradigma" torna-se uma expresso que deve ser restrita a casos bastante

    particulares, localizados. Como lembra Martins (Martins, 1972, p. 19), "no existem, nem

    podem existir, paradigmas da fsica ou da qumica". Assim, nada impede que, por exemplo, a

    fsica se ancore em valores mais duradouros e, mesmo assim, haja mudanas de paradigma na

    fsica. Kuhn deixa isso claro j em 1966, no artigo "Comentrio sobre as Relaes entre Cincia

    e Arte", editado posteriormente como parte de "A Tenso Essencial":

    "Nunca pretendi limitar as noes de paradigma e revoluo s 'teorias principais'. Pelo

    contrrio, acho especialmente importante que esses conceitos sejam tais que permitam um

    entendimento mais completo do carter estranhamente no-cumulativo de eventos como a

    descoberta do oxignio, dos raios-X ou do planeta Urano." (Kuhn, 1977, p. 350)

    Logo, quando Kuhn escreve, no "Posfcio", que a cincia est ancorada em "paramount

    values" que subsistem s mudanas de paradigma, isso em nada afeta seu modelo central. No

    est reconhecendo ipso facto que no existam paradigmas ou rupturas, mas apenas que existem

    pontos que permanecem mais ou menos constantes numa transio entre paradigmas

    sucessivos.

    Ainda mais, uma vez que Kuhn reconhece que sempre existe debate entre escolas rivais

    e que esse debate termina pela vitria de uma das escolas e s uma delas,

    "incomensurabilidade", para ele, jamais significou incomunicabilidade ou relativismo radical.

    "A despeito daqueles que afirmam que todas as vezes que Kuhn pretendeu esclarecer

    seu sentido original ele, na verdade, reescreveu sua prpria histria ou mudou de idia, uma

    leitura simpatizante da ERC mostra que Kuhn sempre pretendeu distinguir as formas de

    persuaso e de argumentao racional que acontecem nas comunidades cientficas daquelas

    formas irracionais de persuaso que ele acusado de endossar." (Bernstein, 1983, p. 53)

    Essas observaes _que sero melhor desenvolvidas adiante_ so importantes aqui para

    assinalar claramente uma atitude: Kuhn no muda seu modelo. Tudo o que relevante no

    modelo de Kuhn j est na ERC. Textos posteriores ou contemporneos ERC ou ao

    "Posfcio" apenas explicitam o modelo. Logo, m leitura de Kuhn problema de quem l e no

    de quem escreve. Nossa exposio cobre o modelo de Kuhn e desvios de leitura desse modelo

    consumados por tericos vindos de outras reas (ou mesmo da filosofia, como acontece como

    Shapere _interpretar Kuhn erradamente no atributo exclusivo de cientistas sociais,

  • 31

    felizmente). O fato de determinado autor no ter lido mais que a ERC no desculpa, dessa

    forma, sua leitura, pelo menos no que tange s questes de irracionalismo e ataque cincia

    tradicional normalmente imputados a Kuhn.

    ***

    O termo paradigma, em sua acepo primeira (como assinalado no "Oxford English

    Dictionary", primeira edio), quer dizer "exemplar".

    "A pattern, exemplar, example. An example or pattern of the inflexion of a noun, verb

    or other inflected part of speech." (volume 7, p. 449)

    Embora seja essa a noo adotada por Kuhn, ele mesmo no foi muito fiel a ela no

    decorrer da ERC.

    O primeiro trabalho importante a separar em grupos as diferentes acepes em que

    Kuhn usa a palavra "paradigma" foi feito por Margaret Masterman (Masterman, 1970). Depois

    de levantar 21 usos diferentes do termo dentro da ERC, Masterman dividiu esses usos em trs

    categorias:

    1. Metaparadigmas ou paradigmas metafsicos. Uma passagem tpica em que Kuhn

    utiliza a noo nesse sentido seria:

    "Direi desde logo que essa concepo muito corrente de o que ocorre quando os

    cientistas mudam sua maneira de pensar a respeito de assuntos fundamentais no pode ser

    totalmente errnea, nem ser um simples engano. antes uma parte essencial de um paradigma

    filosfico iniciado por Descartes e desenvolvido na mesma poca da dinmica newtoniana."

    (Kuhn, 1970, p. 121)

    Nesta citao, Kuhn se refere ao costume de se separar observao de interpretao. O

    paradigma filosfico iniciado por Descartes seria a concepo de que, quando mudam teorias,

    muda a interpretao dos mesmos fatos. Nesse sentido, "paradigma" assume as propores de

    teoria que orienta todo o pensamento, independentemente da disciplina cientfica que esteja em

    voga numa poca em particular.

    2. Paradigmas sociolgicos. Dizem respeito mais natureza da aceitao que s

    caractersticas estruturais de um corpo de doutrina. Por exemplo:

    "Tal como uma deciso judicial aceita no direito costumeiro, o paradigma um objeto a

    ser melhor articulado e precisado em condies novas ou mais rigorosas." (Kuhn, 1970, p. 23)

  • 32

    Kuhn ressalta que um paradigma deve ser algo aceito por toda uma comunidade. Sua

    aceitao define (ainda que de uma forma circular que resta ser esclarecida) essa mesma

    comunidade. O paralelismo com o direito ressalta ainda que o paradigma aceito como

    solucionador de um problema inicial e, ao mesmo tempo, como padro para futuras solues. A

    "deciso" inicial deve ser uma provedora de analogias para problemas futuros. Em seu "Second

    Thoughts on Paradigms", de 1977, Kuhn mostra como no se pode trabalhar em cincia com

    regras que substituam o pensamento analgico. A articulao do paradigma, sua aplicao a

    casos semelhantes, a adaptao de fenmenos a um padro subsumvel ao paradigma, so

    operaes que o cientista deve perfazer usando o que Wittgenstein chama "semelhanas de

    famlia". Tal procedimento no redutvel a regras.

    Em conexo com esse sentido de paradigma, vale lembrar que um dos fatores que pesam

    na aceitao inicial de um paradigma a capacidade que ele parece apresentar como ferramenta

    til para o futuro. Assim, mais uma vez, a definio exclui a possibilidade de se assimilar a

    aceitao de um novo paradigma a uma reflexo puramente racional. Um componente

    fortemente subjetivo (a crena na fertilidade do paradigma recm-aceito) parte essencial do

    processo de escolha entre paradigmas rivais.

    Essa maneira de definir a aceitao de um paradigma faz voltar ao mbito da cincia um

    aspecto que parecia enterrado desde a revoluo cientfica dos sculos 16 e 17: a teleologia. Um

    dos pontos fundamentais dessa revoluo (ver, especialmente, Burtt, 1932, pp. 89-95), foi

    passar a admitir, como explicaes vlidas para fenmenos naturais, somente aquelas que

    levassem em conta apenas causas e, jamais, fins (como era o caso na mecnica aristotlica). Se

    a teleologia _isto , o apelo a eventos situados no futuro para se explicar fenmenos presentes_

    devia ser banida das explicaes cientficas, parece natural supor que o mtodo cientfico no

    devesse padecer de traos teleolgicos. E isso verdade. O mtodo cientfico, como codificado

    por pensadores como Descartes ou Bacon, fundava-se numa razo dada (no passado) e na

    experincia passada a apoiar conjecturas no presente. Tanto induo quanto a luz natural da

    razo faziam apelo a caractersticas dadas para, com sua ajuda, descobrir fatos no futuro. A

    idia de que um componente essencial aceitao de uma teoria deva ser uma referncia ao

    futuro est em choque direto com tais cnones metodolgicos.

    3. Artefato ou construto. Esse o termo preferido por Kuhn, e que ele chama de

    "exemplar".

    "Cincia normal (isto , cincia baseada num paradigma) significa a pesquisa

    firmemente baseada em uma ou mais realizaes cientficas passadas (o que a prpria

  • 33

    definio de paradigma). Essas realizaes so reconhecidas durante algum tempo por alguma

    comunidade cientfica especfica como proporcionando o fundamento para sua prtica

    posterior." (Kuhn, 1970, p. 10)

    Em termos hierrquicos, podemos dizer que "metaparadigma" significa crena profunda,

    por exemplo, de que toda hiptese deve se permitir julgar pela experincia ou de que

    explicaes devem exibir estrutura lgica (ainda que no rigorosa e explicitada). a maneira

    mais abrangente como se pode entender o termo.

    No nvel seguinte, situa-se o paradigma sociolgico. So os fatores que mantm coesa

    determinada comunidade de praticantes de uma disciplina. Esses fatores, Kuhn os chama

    coletivamente de "matriz disciplinar" (embora no no corpo principal da ERC; "matriz

    disciplinar" um termo usado pela primeira vez no "Posfcio" ERC), incluem generalizaes

    simblicas, crenas e valores.

    Mais na superfcie _e mais prximo da atividade quotidiana do cientista_, est o

    "exemplar". So as realizaes cientficas concretas de uma comunidade. So essas realizaes

    que serviro de modelo para que os praticantes tentem estender o paradigma a casos novos. O

    exemplar um fornecedor de analogias. Esse o sentido pretendido realmente por Kuhn em

    seus trabalhos.

    Normalmente, leitores de Kuhn vindos de outras reas falham em ver esse sentido mais

    estrito de paradigma. Pelos padres de Kuhn, dificilmente algum poder encontrar paradigmas

    em sociologia ou em cincia poltica. Poder encontrar algo no nvel de metaparadigma, mas

    no no nvel de exemplar. Para Kuhn, no existem mesmo paradigmas que abranjam reas

    como a fsica ou a qumica. Paradigmas, por serem realizaes prticas que se tornam

    modelares devem, obrigatoriamente, dizer respeito a subdisciplinas. Mas, examinadas as

    subdisciplinas da sociologia, por exemplo, dificilmente se encontrar algo como pesquisa

    continuada e sistemtica orientada por uma soluo de sucesso e que no faa apelo reiterado a

    fundamentos, o que seria requisito bsico para se dizer que determinado campo regido por um

    paradigma, respeitado estritamente o sentido que Kuhn d ao termo.

    Outro ponto que Kuhn ir refinar em artigos posteriores diz respeito questo da

    incomensurabilidade. Duas teorias T1 e T2 so ditas incomensurveis se no h foro comum

    para que se decida em favor de T1 em detrimento de T2 ou vice-versa. `A primeira vista, a

    questo parece trivial, dado o modelo de Kuhn. Se dois paradigmas diferentes representam no

    apenas teorias diferentes, mas mtodos de experimentao diferentes, valoraes diferentes dos

  • 34

    resultados, enfim, formas de vida diferentes, segue-se diretamente que dois paradigmas

    determinam dois mundos diferentes. O mundo definido pelo paradigma P1 apresenta uma

    ontologia O1, diferente da ontologia O2 determinada pelo paradigma P2.

    De sada, no tem sentido medir graus de distanciamento entre P1 e P2 em termos de

    suas respectivas ontologias. Dentro do modelo de Kuhn no mais sustentvel uma afirmao

    como:

    "As teorias de Kepler e Galileu foram unificadas e superadas pela teoria logicamente

    mais forte e melhor testvel de Newton; da mesma forma, as teorias de Fresnel e de Faraday

    pela de Maxwell. Por seu turno, as teorias de Newton e de Maxwell foram unificadas e

    superadas pela de Einstein." (Popper,1974, p.220)

    Um termo no "vale" apenas em si, mas na relao que tem com outros termos correntes

    na teoria. Assim, no h como avaliar as "diferenas" entre duas ontologias. Elas podem diferir

    _sintaticamente, grosso modo_ em termos apenas de um conceito. Mas a tese holista _que

    Kuhn, com alguma reserva (cf. Kuhn, 1983) esposa_ afirma que os conceitos se interligam e a

    presena de um novo conceito altera substancialmente _mas no totalmente, como veremos

    mais frente_ uma teoria (ou um paradigma). Dessa forma, no h "superao" de Kepler por

    Galileu. O que h so ontologias diferentes que podem ser comparadas grosseiramente e apenas

    na prtica. Em suma, a opo por uma teoria se d apenas com base nessas apreciaes prticas.

    No existe lugar para uma redutibilidade lgica rigorosa como a implicada pela afirmao de

    Popper.

    Dessa forma, a tese da incomensurabilidade de dois paradigmas afirma apenas que no

    existe foro final para a deciso entre paradigmas diferentes. A observao no neutra, depende

    da ontologia a que se esteja ligado e, assim, partidrios de dois paradigmas distintos travam um

    "dilogo de surdos" (Kuhn, 1970, pp. 131-33, em conexo com o debate entre qumicos

    partidrios da lei das propores fixas e seus adversrios, em fins do sculo 18).

    Dessa afirmao, no se segue impossibilidade de comunicao. Se assim fosse, o

    modelo de Kuhn seria trivialmente falso: cientistas pertencentes a escolas distintas realmente

    debatem, discutem conceitos e mtodos e, normalmente, no chegam a acordo. Kuhn (Kuhn,

    1982) define a questo:

    "Aplicado ao vocabulrio conceitual que se desenvolve no interior e em torno de uma

    teoria cientfica, o termo 'incomensurabilidade' funciona metaforicamente. A frase 'sem medida

    comum' torna-se 'sem linguagem comum'. Afirmar que duas teorias so incomensurveis

  • 35

    ento afirmar que no existe nenhuma linguagem, neutra ou de qualquer outro tipo, qual

    ambas as teorias, concebidas como conjuntos de enunciados, possam se traduzir sem resto ou

    perda." (p. 670, sublinhado nosso)

    No existe uma terceira linguagem para a qual ambas as teorias possam ser traduzidas e

    a pendncia entre elas comparada e resolvida. Mesmo que, supostamente, tal linguagem

    existisse, a prtica impediria que se fizesse uma traduo. Antes que as escolas debatedoras

    atingissem esse fugidio denominador comum, a questo j estaria resolvida por outros meios.

    Esses outros meios incluem tanto