Thomas Szasz-Ideologia e doença mental

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5/10/2018 ThomasSzasz-Ideologiaedoenamental-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/thomas-szasz-ideologia-e-doenca-mental 1/24 PSYCHE THOMAS S. SZASZ professor de psiquiatr ia d a Universidade d e Nov a Yor k, em Syracuse . ideologia e doenca mental E N S A IO S SO BR E A D ESU MA NIZA CÃ O PS I QUIÁTRI C A DO HOME M Tradução de Jo s É SANZ Segunda edição Z.A HAR EDITORES RIO DE JA NEIRO

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Introdução e dois capítulos do livro de Thomas S. Szazs, Ideologia e Doença Mental.

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PSYCHE

THOMAS S. SZASZprofessor de psiquiatria da Universidade

de Nova York, em Syracuse

. ideologia edoenca mentalE N S A IO S S O B R E A D ES U M A N I Z A C Ã O P S IQ U I Á T R IC A D O H O M E M

Tradução de

Jo sÉ SANZ

Segunda edição

Z.AHAR EDITORES

RIO DE JANEIRO

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1 . INTRODUÇÃO

Dentre os vanos absurdos ditos por Rousseau, um dos mais in-sensatos. e também o mais famoso. diz: "O homem nasce livree, no entanto, está sempre aprisionado". Essa frase presunçosaobscurece a natureza da liberdade. Porque, se a liberdade é acapacidade de escolha livre de coerções, então o homem nasce

aprisionado. E o desafio da vida é a libertação.A capacidade do indivíduo de fazer escolhas livre de coer-ções depende de suas condições internas e externas. Suas con-dições internas, isto é, seu caráter, personalidade ou mentalidade- compreendendo suas aspirações e desejos, bem como suasaversões e autodisciplina - o impulsionam a agir de várias ma-neiras. ou o impedem. Suas condi ões externas, isto é, sua cons-~tituição biológica e seu ambiente físico e social - comprendendoàS potencialidades de seu corRo, e õ clima, cultura, leis e tecno-logta e sua sociedade - o estimulam a agir de determinadasm eiras e ümrbem-a agtr e outras. Essas condições configu-ram e definem a extensão e qualidade das opções de um indivi-.diÍo- Em geral, quanto mais controle o homem adquire sobre

suas condições internas e externas, tanto mais livre se torna, en-quanto que o fracasso na aquisição de tal controle, ou a perdado mesmo, o escraviza.

Há, contudo, uma limitação importante à liberdade do ho-mem: a liberdade dos outros homens. As condições externas queo homem procura controlar incluem outras pessoas e 'instituiçõessociais, formando uma rede complexa de interações e interdepen-dências. Com freqüência, a única maneira de uma pessoa aumen-tar suas possibilidades de livre opção é pela redução das de seussemelhantes. Isso é verdadeiro, mesmo que o indivíduo aspi-re somente ao autocontrole e deixe os outros em paz: sua auto-disciplina tornará mais difícil aos outros, se não impossível, con-trolá-Ia e dominá-lo. Pior ainda, se o indivíduo aspira contro-

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se refere a ocorrências físico-químicas que não são afetadas ao tor-n.ar-se.pÚ,bl~cas,o te:mo "doença mental" refere-se a eventos Só-

',~ ClO-P~ICO,logICOS,rucialmente afetados quando tornados públicos.• '§ t O psiquíatra desse modo não pode, e não consegue, ficar alheio à~. pe~soa que, observa, con;o pode fazer e o faz o patologista. O psi-

. ~ qUlatr~ esta comprometido com um quadro daquilo que considera\) ~ a realidade e com o que pensa que a sociedade considera real'~ observa e julga o comportamento do paciente à luz dessas cren~

ça~~ A simples n~ção. de "sintoma mental" ou de "doença men-ta .!: , desse modo, .ImplIca uma comparação dissimulada e freqíien-tem.ente em conflito, en~re observador e observado, psiquiatra epaciente, Apesar de ÓbVlO,esse fato precisa ser reenfatizado comono caso de alguém que, como eu, deseja contra-atacar a tendênciaprevalente de negar os aspectos morais da Psiquiatria e substituí-los por conceitos. e intervenções médicas pretensamente isentas.. A Psicoterapia é, pois , praticada como se não acarretasse nada

além de restaurar o paciente de um estado de enfermidade men-tal .para um estado de sanidade mental. Enquanto for geralmente

aceI~o que a d?ença mental tem algo a ver com as relações sociais ..-ou interpessoais do homem, paradoxalmente se sustentará que osproblemas de v~lor;s - isto é! da Ética - não aparecem nesseprocesso. O propno Freud fOI longe o suficiente para afirmar'"Considero. a. ~tic:'l ~Jo:n0já si~tematizada. Na realidade não fi;nada de .ngn~f~catwo . 6 Essa e uma afirmação assombrosa emparticular, para alguém que estudou o homem como um se; so-cial tão profundamente quanto Freud. Menciono-a aqui para mos-trar como a noção 'de "doença" - no caso da Psicanálise "Psico-pat?lo.gia", ou "doen~a mental" - foi usada por Freud, e pelamaioria de seus seguidores, como meio de classificar certos tiposd; comportamento humano, como que dentro do âmbito da Medi-cma e, desse modo, por decreto, fora do domínio da Ética, No en-ta~to, de ~ato.permanece que, em certo sentido, grande parte daPsicoterapia gIra. em torno d.a elucidação e avaliação de objetivose valores - muitos dos quais podem ser mutuamente contraditó-rios -, e os meios pelos quais podem ser melhor harmonizadosconcretizados ou abandonados. ', . Devido à longa ~éri.e de valores humanos e de métodos pelosquais podem ser atingidos - e porque muitos dos fins e meiossão persistentemente desconhecidos -, os confitos de valores sãoa principal fonte de conflitos nas reia ões humanas. De fato dizerque as re ações l1ümanas a to os os níveis - da mãe à criança,

16 I consider ethics to be taken for granted. Actually I have never dane

a mean thing. (N. do T.)

o MITO DA DOENÇA MENTAL 27

do marido à es )osa, de nação a na ão - são carre adas de de-pressão, tensão e desarmonia e, maIS uma vez, tornar o o VIOex~E no-entanto, o que po e ser o VIOpo e também ser parca-mente compreendido. . E isso é, creio, o que ocorre nesse caso,pois a mim parece que, em nossas teorias científicas de com orta-

l}1ento,falhamos em aceitar o simples fato de que as relaçõesh U - /

manas são inerentemente carregadas de dificuldades e que tor-ná-Ias, mesmo relativamente, harmoniosas re uer muita aciênciae' traba ho ár uo. uglro que a I era e oença mental esteja ago'-ra sendo trabalhada para obscurecer certas dificuldades que no pre-sente possam ser inerentes - não que sejam irremovíveis - àsrelações sociais das pessoas. Se isso é verdade, o conceito funcio-na como um disfarce: em vez de chamar atenção para necessida-des, aspirações e valores humanos conflitantes, o conceito de doen-ça mental produz uma "coisa" moral e impessoal --: uma "doen-ça" - como uma explicação para problemas existenciais, Comrelação a isto podemos nos lembrar que, não faz muito tempo, osdiabos e as feiticeiras eram responsáveis' pelos problemas na vida

elo homem. A crença na doença mental, como algo diferente doproblema do homem em conviver com seus semelhantes, é a pró-pria herdeira da crença em demônios e feitiçaria. Assim, a doen-ça mental existe ou é "real" exatamente no mesmo sentido noqual as feiticeiras existiam ou eram "reais",

VI

Enquanto sustento que as doenças mentais não existem, obvia-mente não sugiro ou quero dizer que as ocorrências sociais e psi-cológicas às quais este rótulo é fixado também não existam. Tan~to quanto os problemas pessoais e sociais que se tinha na Idade. Média, os problemas humanos contemporâneos são suficientemente

reais. O que me preocupa são os rótulos que lhes damos e, ten-do-lhes rotulado, o que fazer a respeito. O conceito demonológi-co dos problemas existenciais deram lugar à terapia baseada emlinhas teológicas. Hoje, a crença em doença mental implica_ ou melhor, requer - uma terapia baseada em linhas mé-dicas ou psicoterápicas.

Não me proponho aqui a oferecer uma nova concepção de"doença psiquiátrica" ou uma nova forma de "terapia". Meu obje-tivo é mais modesto e, no entanto, ao mesmo tempo mais arnbi-cioso; ~ ~erir gue o fenômeno atualmente chamado ~e doençasmentai e revisto e mais sim lesmente ue fosse removidoda cate or" de doen as, e que fosse considerado como expres-sões do esfor m com o ro e'ln a e como e 'ãeVe ri a

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~~. Esse problema é, sem dúvida vasto, sua enormidade refle-tindo não somente a inabilidade do homem em fazer frente ao seuambiente, como também, e até mais, seu crescente grau de auto-re-flexão.

Por problemas existenciais, pois, refiro-me àquela explosivareação em cadeia que começou com a perda pelo homem da graçadivina ao tomar do fruto da árvore do conhecimento. A cons-cientizacão do homem de si mesmo e do mundo que o cerca pa-rece estar numa constante expansão, trazendo em seu despertaruma sempre maior ca rg a de conhecimentoF' Esta carga é espera-da e não deve ser mal interpretada. Nosso único meio racionalpara amenizá-Ia é adquirir mais conhecimento e agir de formaapropriada, baseando a ação neste conhecimento. A principal al-ternativa consiste em agir como se a carga não fosse o que perce-bemos que é. e refugiarmo-nos na antiga visão teológica do ho-mem. Nessa perspectiva o homem não modela sua vida nem muito "-do mundo que o cerca, mas meramente vive seu destino num

mundo criado por seres superiores. Isso pode, logicamente, le-vá-Io a pleitear a não-responsabilidade em lugar de dificuldadesintransponíveis e problemas insondáveis. No entanto, se o ho-mem não se fizer cada vez mais responsável por suas ações, tantoindividual quanto coletivamente, parece improvável que algum po-der ou ser superior assuma esta tarefa e lhe carregue o fardo.Além disso. este parece ser um momento propício da Históriaao obscurecimento da questão da responsabilidade do homem porsuas ações, escondendo-se por trás de um concepção forjada dedoença mental.

VII

17 hado em E. Jones: The Liie and Work 01 Sigmund Freud (NovaYork: Bnsic Books, 1957), vol. 111, p. 247. Zahar Editores , Vida e

Obr« de Slgm und Freud.

29 jalgum outro significado ou valor. Uma vez satisfdtas as necessi: lídades de eservação do corpo, e .talvez da, raçª",.Q homem se ~:;ron a com? ,PEo ema o ,Jpgm icado pessoal: o ~ue deve~la Ia- (Ifzef e i mesmo? .Por q11e deveria VIVg? a esao ao mito adoe~ça mental permife às pessoas evitar confrontar-se com esteproblema, acreditando que a saúde mental, concebida como a au-sência de doença mental, automaticamente assegura a escolha certae segura na condução da vida. Mas os fatos são contr~rios a isto.N a vida, são as escolhas sensatas que as pessoas consideram, re-t rospectivamente, como evidência de saúde ~ental.. _

Quando afirmo que a doença mental e um mito, na? querodizer que a infelicidade pessoal e o comportamento soclalm~ntedesviado não existam; o que estou dizendo é que os categonza-mos como doenças por nossa própria conta e risco.

A expressão "doença mental" é uma metáfora que errada- ( 1 /mente consideramos como fato. Chamamos as pessoas de doenteS! I Jfisicamente guando o funcionamento de seu cor o VIOla certas nl!!"-mas anatômicas e fisiológicas; de form,a~ga, c~amamos'de mentalmente msanas as pessoas cu' a conduta essoal VIOla cer-tas normas éticas, políticas e sociai " Isso explica porque mui~asfiguras históricas, de Jesus a Castro, e de Jó a Hitler,. tê!;! ~Idodiagnosticadas como sofrendo desta ou daquela doença. pSlqUlatn~a.

Finalmente b mito da doença mental nos encoraja a acreditarem seu corolário ló ico: ue a interação social seria harmoniosa,satisfatóna e a se se ra ara uma VI a sau ave, não fosse pe-las influências desa re, adoras a oen a menta ou SICOato o Ia.ontu o a felicidade humana universal, pelo menos nessa forma,

não é senão um outro exemplo de desejos utópicos. Creio na possi-bilidade da felicidade humana, ou do bem-estar - não somente parauns poucos, mas numa escala anteriormente inimaginável. Contudo,isso pode ser atingido somente se muitos homens, não só' uns pou-

cos estiverem desejosos e forem capazes de confrontar francamentee atacar com coragem seus conflitos éticos, pessoais e sociais. Issosignifica ter a coragem e integridade de renunciar a batalhas em-preendidas em frentes falsas, à procura de soluções para pro.ble-mas substitutivos - por exemplo, lutar na batalha contra a aClde.zestomacal e fadiga crônica, em vez de enfrentar' um confli-

to conjugal. A • . •

N ossos adversários não são demônios, feiticeiras, o destinoou a doença mental. Não temos inimigos contra os quais pos~a-mos lutar exorcizar, ou dissipar' pela "cura". O que temos, Sim,são problemas existenciais - que podem ser bio~ógicos! econômi-cos políticos, ou sócio-psicológicos, Neste ensaio detive-me so-mente nos problemas .pertinentes à última categoria apresentada,

o MITO DA DOENÇA MENTAL

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e dentro deste grupo, com ênf~se naqueles 'pertinente,s valores m,.?-r~is O campo abrangido pela Psiquiatria moderna e ,:,a~to e na?

. • 1 od M ar mento limitou-se afiz esforço para abrange- o t o. . eu .. ~ de ue a doença mental e um mito cu a unçao e 1~-

- E ro OSI ao '1 1 d co 1-, r e assim tornar mais aceitavel, a amarga pl u a os

tos morais nas relaçoes umanas.

3. A ÉTICA DA SAúDE MENTAL

; mecemos com algumas definições. De acordo com o W ebsier' s'/'hird N ew Internatlonol Dictionary, (edição integral), Ética é "a<liciplina que trata do que é bom e mau ou certo e erradoou do dever e do compromisso moral ... "; é também "umJ~rupo de princípios morais ou série de valores . .. " e "os princí-pios de conduta que governam um indivíduo ou uma profissão:pn drões de comportamento ... "

A Ética é, assim, uma questão essencialmente humana. Exis-tem "princípios de conduta" que regem indivíduos e grupos, mas11 I há princípios semelhantes governando o comportamento dosmimais, das máquinas ou das estrelas. De fato, a palavra "con-duta" implica que somente as pessoas conduzem-se; os animaiscomportam-se, as máquinas funcionam, e as estrelas movem-se.

É demais dizer, pois, que qualquer comportamento humanoqu constitua conduta - a qual é, em outras palavras, produto dac ' c lha ou escolha potencial e não simplesmente de um reflexo -

c ' , ipso facto conduta moral? Em qualquer conduta, as conside-J uções de bom e mau ou certo e errado desempenham um papel.l.ogicamente, seu estudo pertence ao domínio da Ética, cujo pes-qui ador é um cientis ta do comportamento, por excelência.

Se examinarmos a definição e prática da Psiquiatria, contu-cio, veremos que é uma red efiniç âo dissimulada da natureza(' ibjetivo da Ética. De acordo com o Webster 's, a Psiquiatria é"1 1111 ramo da Medicina que tem relação com a Ciência e práticacio tratamento de desordens mentais, emocionais, ou de compor-t '1 11 rito, especialmente as de origem endógena, ou resultantes de(c'l\ ionamentos interpessoais falhos"; mais adiante, é "uma teo-r " u tratado, ou texto, sobre a Etiologia, reconhecimento, tra-Iun nto ou prevenção de desordens mentais, emocionais ou de

c umportamento, ou a aplicação de princípios psiquiátricos a qual-

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quer área da atividade humana (Psiquiatria Social)" ~ ou ainda,é "o serviço psiquiátrico num hospital geral (este paciente é umcaso de Psiquiatria)."

O objet ivo nominal da Psiquiatria é o estudo e tratamentode desordens mentais. Mas o que são desordens mentais? Acei-

Itar a existência de uma classe de fenômenos chamados "doençasmentais", ao invés de questionar as condisões sob as quais algu-mas pessoas designam outras de "mentalmente doentes", é o passodecisivo na adoção da Ética da saúde mental." Se tomarmos se-riamente a definição do dicionário desta disciplina, o estudo deuma grande parte do comportamento humano será transferidoda Ética para a Psiquiatria. Pois, enquanto o estudioso da Éticasupostamente se preocupa apenas com o comportamento normal(moral), e o psiquiatra somente com o comportamento anõrmal(emocionalmente desordenado), a distinção essencial entre os doisreside em bases .•éticas. Em outras palavras, ~ afirmação de queuma essoa é mental ente envolve um .ul amento moral50 re a mesma. Além disso, devido às conseqüências SOCiaiSdefã l Julgamento:- tanto o "paciente" como aqueles que dele tratamcomo tal tornam-se atores duma peça de moralidade, embora sejaesta expressa num jargão médico-psiquiátrico.

Tendo removido o comportamento mentalmente desordenadodo escopo da Ética, o psiquiatra vem tendo que justificar sua re-classificação. Tem feito isso pela definição d!J,qualidade ou n,Nu-reza do comportamento que estuda: enquanto o estudloSO da Éticatrata do comportamento moral, O" psiquiatra estuda o mecanismobiológico ou mecanismo do comportamento. Nas palavras deWebster's, a preocupação do psiquiatra é com o comportamento"originado de causas endógenas ou resultantes de relacionamentosinterpessoais falhos". Deveríamos aqui concentrar nossa atenção

nas palavras "causas" e "resultantes". Com estas palavras, a ·tran-sição da Ética para a Fisiologia, e conseqüentemente para a Me-dicina e Psiquiatr ia, está seguramente completa.

A Ética tem significado somente num contexto de indivíduos

\

3utônomos ou grupos exercendo escolhas mais ou menos livres· decoação. A conduta resultante de tais escolhas é dita como tendorazões e significados, mas não causas. Esta é a bem conhecida po-laridade entre determinismo e voluntariasmo, causalida~e e livrearbítrio, Ciência natural e Ciência moral.

Definir a Psiquiatria do modo acima leva não somente àreavaliação das disciplinas ensinadas nas universidades, mas tam-

18 Ver T. S. Szasz: The Myth of Mental IlIness: Foundations of aTheory of Personal Conduct (Nova York: Hoeber-Harper, 1961). (A serpublicado por Zahar Editores sob o título O Mito da Doença Mental.)

\~

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 33

1 > é 1 1 1 proporciona um ponto de vista sobre a natureza de alguns ti-pos de comportamento humano e sobre o homem em geral.

Pela assinalação de "causas endógenas" ao comportamentohumano, o comportamento é classificado co,m.,q tato em vezde como açEfl .. O diabetes é uma doença causada por umafalta ~endóg'ena de enzimas necessárias ao metabolismo dos car-il idratos. ~Nessa estrutura de referência, a causa endógena deuma depressão deve ser, ou um defeito metabólico (isto é, umevento químico antecedente) ou um defeito nas "relações inter-pessoais" (isto é, um evento histórico antecedente). .EventQs....Q!l.xpec1.ativasfut~s são excluídos como "causas" possíveis de uma. nsação de depressão. Mas isso é razoável? Consideremos o mi-lionário que se encontra financeiramente arruinado devido a re-v ses nos negócios. Como explicarmos sua "depressão" (se assimquisermos rotular seu sentimento de tristeza)? Considerando-ac mo o resultado dos eventos mencionados, e talvez de outros.m sua infância? Ou como a ~pressão de sua visão de si mes-

mo e de seus poderes no mundo, presentes e futuros? Escolhera Primeira é redefinir a condtltãêtica como um mal psiquiátrico.As artes de curar - especialmente a Medicina, religião e

Psiquiatria - operam dentro da sociedade, não fora dela. Na rea-lidade, são uma parte importante da sociedade. Não é de sur-pr ender, conseqüentemente, que estas instituições reflitam e pro-Jl1 vam os valores morais primários da comunidade. Além disso,hoje como no passado, uma ou outra dessas instituições é usadapara moldar a sociedade pelo apego a certos valores e oposiçãol utros. Qual é o papel da Psiquiatria em promover um sistema

t ico dissimulado na sociedade americana contemporânea? Quaisos valores morais que ela abraça e impõe à sociedade? Ten~

/ar i sugerir algumas respostas pelo exame da posição de certost rnbalhos psiquiátricos representativos e pela explicitação da na-t \I r za da ética da saúde mental. E tentarei demonstrar que nodi. I go entre as duas maiores ideologias de nosso tempo - indi-vldualisrno e coletivismo - a ética da saúde mental se enquadraJlO lado do coletivismo.

II

homem deseja a liberdade e dela tem medo. Karl R.I'opper fala dos "inimigos da sociedade aberta't-" e Erich Fromm,

I \ I K. R. Popper: The open Society and lts Enemies, (Princeton, N. J.:

1'1 uceton University Press, 1950).

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daqueles que "fogem à Überdade".J2O Ansiando por liberdade e auto-determinação, os homens desejam colocar-se como indivíduos maste~endo a solidão e a responsabilidade, eles também desej~m s~umr aos seus semelhantes como membros de um grupo.

T.e~ricamente, o individualismo e o coletivismo são princípios

ar:tagomcos: para o pnmeiro, os valores supremos sã.o a aJ l1 ;QR o-mIa e a liberdade individual; para o último, a solidariedade ~o ru o e a se ran a coletiva. Na prática, o antagonismo é s~mente parcr : o ornem precisa ser ambos - sozinho como umindivíduo solitário, e, com seus semelhantes, corno membrode um g~upo. Thoreau, em Walden Pond, e o homem de terno deflanela cinza em sua organização burocrática são dois extremos.de um espectro: muitos homens procuram orientar-se numa dire-ção. entre e~tes extremos. O individualismo e o coletivismo podemassim ser f1gurado~ co~o as duas margens de um rio que correveloz, entre as, qUâ.IS nos - como homens morais - devemos na-v:gar. q cauteloso, o tímido e talvez o "sábio" tomarão a posi-çao mediana : como o político prático, tal pessoa procurará aco-

mod~r~se à "realidade social" pela afirmação e negação tanto docoletivismo como do individualismo... Apesar ~e que! em geral, um sistema ético que valoriza o co-

letivismo sera hostil àquele que valoriza o individualismo e vice-versa, uma diferen a im ortante entre os dois deve ser notada:numa SOClea' em IVI ualista, os omens nao são proibidos pelaor a e ormar assoCIa õe5Võllinfanas nem - -mlr a éis submissos_ nos ru os. Em contraste numa sociedadecoletiyista •. os. homens são for~dos a p-Jlrticipa de certas ativida-des organizacionais, e são punidos !l0r levar uma existência sõfi-tana e. m e er:den e.. . :azã~ desta diferença é simples: com:ouma ÉtIca SocIal, o m?IVlduabsmo procura minimizar a coerçãoe favorece o ?e?envolvlm~nto de uma sociedade pluralista; en-

quanto o coletivismo considera a coerção como meio necessáriopara atingir as f inalidades desejadas e favorece o desenvolvimentode uma sociedade singularista.

A Ética Coletivista é exemplificada na União Soviética comono caso d.e Iosif Brodsky. ~oeta judeu de 24 anos, Brod~ky foil~v~do a Julgamento em Leningrado por "levar uma vida parasi-ta:la". A acusação tem raiz num "conceito legal soviético, quefOI decretado em 1961 para permitir o exílio de cidadãos residen-tes que não realizam 'trabalho socialmente útil' ''.21

111t)lsky teve duas audiências, a primeira a 18 de fevereiro e,'1'IIIIdtl, a 13 de março de 1964. A transcrição do julgamento1I I l.urdcstinamente da Rússia e foi publicada a sua tradução no

I li , N I"w Le ad erP ' Na primeira audiência, Brodsky foi acusado'I" ur u-iue de ser um poeta e não "produzir" trabalho. Como re-1I"ldo, o juiz ordenou que BrodsRy fosse enviado "para um exa-

111 II Il[lIj:ílrico oficial durante o qual sefia determina dó se Brodsky.1111I d' algum tipo de doença psicológica ou não, e se tal doença11111'lll ia que fosse Brodsky mandado para uma localidade distan-, IIIII~ trabalhos forçados. Levando em consideração que, a par-I, d.\ história de sua doença, aparenta Brodsky ter-se evadidoI IUIpitalização, é ordenado à divisão n.? 18 da mil ícia encarre-11 " dt' levá -lo ao exame psiquiátrico oficial."23

(I ponto de vista é característico da Ética Coletivista. É tam-I••111udistingiiível da psiquiatria institucional americana contempo-I 1111. I',m ambos os sistemas, a pessoa que não fez mal a nin-111111,ma é considerada como um "desvio" é definida como doen·I 111I'l1ln[;ar ena-se-lhe ser submetida a um exame si uiátricor I siste, Isto e VISto como maIs um sma e sua anorma 1 ade

I '11111."li r' dsky foi julgado culpado e mandado "a uma localidade

01 I 11111'por um período de cinco anos de trabalhos forçados".z11.1 -u tença, deve ser notado, foi a um tem o tera êu ica, no que1'1111111'1 promover o "bem-estar" de rodsky, e penal, no queI'11111 u puni-lo pelo mal que ele infligiu à comunidade. Essa11111111'\11a tese coletivista clássica: o que é bom para a comu-11dlld,' , bom para o indivíduo. Já que ao indivíduo é negada'11111'111 existência que não a do grupo, esta equação de um com1/11I" os é bastante lógica.

\)111 outro homem de letras russo, Valer Tarsis, que havia1'II111kdo um livro na nglaterra, descrevendo a difícil situação.111 I ritores e intelectuais sob o regime de Kruschev, foi encar-I' 1 ul n nu~ hospital psiquiátrico em Moscou. Pode-se lembrar que111111) P eta americano Ezra Pound aconteceu o mesmo: ele foi11111Il"lrado num hospital psiquiátrico em Washington.P' Em sua1111111autobiográfica, Ward 7 (Pavilhão 7), Tarsis dá a impressão

"The trial of Iosif Brodsky: A transcript." The New Leader, 47:6-11'I I1 ,I agosto), 1964I Ilskl., p. 14.• I'lIfO uma comparação entre a legislação criminal soviética e a legls-III~11nmcricana de higiene mental, ver T. S. Szasz: Law, Liberty, and

" I'/'"illlry: An Inquiry into The Social Uses of Mental Health .Practices;1 NIIVIIYork: Macmillan, 1963) pp. 218-21.h "Th trial of Iosif Brodsxy", op, cit., p. 14.n V r zasz, Law Liber ty and Psichiatry, supra, Capo 17.

20 E. Fromm: "O Medo à Liberdade" (Nova York: Rinehart 1941).Edição brasileira Zahar Editores. '21 Citado no The New York Times, a 31 de agosto de 1964, p. 8.

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de que a hospitalização mental inv o lu ntária é uma técnica soviéti-ca largamente usada para reprimir o desvio social.ê?. Parece claro que o inimigo do estado soviético não é o capi-

talista, mas o operário solitário - não os Rockefellers, mas osThoreaus. Na religião do coletivismo, a heresia é o individualis-mo: o pária por excelência é aquele que se recusa a fazer parte

do time.Argumentarei que a maior ameaça da Psiquiatria americana

contemporânea - como a exemplifica a Psiquiatria Comunitária,é a criação de uma sociedade coletivista, com todas as suas im-plicações em matéria de política econômica, liberdade pessoal econformidade social. .

. /

.i.~ > III

~t S,e por "P~iquia~ria Comunitária:' entenden;nos os cuidados~I~ d~ saude mental providos pela comunidade através de fundos pú-~~ '\ blicos ~ em vez de pelo indivíduo, ou por grupos voluntários

através de fundos privados - então a Psiquiatria Comunitária é

tão antiga quanto a Psiquiatria americana. (Em muitos outrospaíses, a Psiquiatria também começou como urna empresa comu-nitária e nunca cessou de funcionar nesse papel.)

Novo como é o termo "Psiquiatria Comunitária", muitos psi-quiatras livremente admitem que este é somente mais um sloqanda incessante campanha da profissão para se vender ao público.N o quarto encontro anual da Associação de Médicos Superinten-dentes -de Hospitais Psiquiátricos, o tópico principal era Psiquia-tria Comunitária - "O que é e o que -não -é".28

"O que é Psiquiatria Comunitária?" - perguntou o diretor deum hospital estadual do Leste. Sua resposta: "Estive em doiscongressos na Europa, neste verão, e desconheço o que se querdizer com esse termo... Quando se fala sobre ele, raramente é

claro o que significa".29 Para um psiquiatra de um estado doMeio-Oeste, "Psiquiatria Comunitária... significa que nós cola-boramos dentro da estrutura das facilidades médicas e psiquiátri-cas existentes.t'ê? Este ponto de vista foi apoiado por U111psiquia-tra de um hospital estadual do Leste, que afirmou: "Na Pensilvâ-nia, os hospitais estaduais já estão servindo às comunidades nas

27 V, Tarsis: 'Ward 7: An Autobiographicai Novel, trad. paru () inglêspor Katya Brown (Londres e Glasgow: Collins and Harvill, 1%5).28 "Roche Report: Community psychiatry and mental hospitals". Frontiers

O] Hospital Psychiatry, 1:12 & 9 (15 de novcmbro) , 19fí4.29 Ibid., p. 2.30 Ibid.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 37

11'/11 cstâo localizados ... Estão executando Psiquiatr ia Cornuni-t I I "111 Tal é o curso do progresso na Psiquiatria.

{) que achei particularmente perturbador neste relato foi que,'1" 1II cl muitos que assistiam à reunião estarem incertos sobre

11 'IIH' ra ou poderia ser a Psiquiatria Comunitária, todos decla-I IIIII1Isua firme intenção de tomar um papel de liderança na mes-

1111 I isse um psiquiatra de um hospital estadual do Meio-Oeste:" c '111' quer que seja ou venha a ser a Psiquiatria Comunitária,1 1111,111tomarmos parte dela. É melhor tomarmos a liderança11 11 tC'r('mos uma parte a nós relegada. Deveríamos estar funcio-1IIIIdo omo hospitais psiquiátricos comunitários. Se nos omitir-"111 • dissermos que não somos centros psiquiátricos comunitá-I 11 • t remos um grande número de pessoas nos dizendo o que1I '1'1',"112 O presidente da organização de médicos superintenden-II ('015.0conclamou os membros a "assumir um papel de lideran-1 I", IIouve concordância geral sobre isso: "A não ser que par-I \ pt't11 S e tomemos uma parte dominante, seremos relegados ao111\ da fila",33 preveniu um psiquiatra de um hospital estadual,1/1 Mio-Oeste.

isto é Psiquiatria Comunitária, o que há de novo a res-I" 1)? Por que é enaltecida e recomendada como se fosse algumIIIIVOacanço médico que promete revolucionar o "tratamento' dos"rlu ent s mentais"? Para responder a essas perguntas seria neces-1110 um estudo histórico de nosso tema, o qual não procurarei

Ilfl'r aqui.34 Que seja suficiente apontar as forças específicas que111\<;1',m a Psiquiatria Comunitária como um movimento ou disci-"I un listinta. Estas forças são de dois tipos - um polít ico, outroII qu iátrico

As políticas sociais do liberalismo intervencionista moderno,1111t;llda neste país por Franklin D. Roosevelt, recebeu reforço1'IIIIc'roo durante a presidência de John F. Kennedy. A "Mensa-~11 1\ 1\0 Congresso" do . Kenned "sobre Doen en-

1,11", de 5 de fevereiro de 1963, reflete este espí rito, Apesar de'1tll' os CU! a os com o doente mental hospitalizado tenham sido,I,.nllcionalmente, uma operação de bem-estar governamental - le-IIln a cabo através das facilidades dos vários departamentos go-1111I1111tais de Higiene Mental e a Administração dos Vetera-1111 advogou ele um programa ainda mais extenso, sustentadoI" 11 fundos públicos. :Qisse o presidente: "Proponho um progra-

1 1 / tbkl,

" lbid., p. 9."" Ibld.I l'ura discussão mais aprofundada, ver T. S. Szasz: "Para onde ca-1111111111Psiquiatria?" Este volume, capítulo 13.

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IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL 398 A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL

( 'it 'i os pontos de vista de alguns dos propagandistas da Psi-I1 1 11 L Comunitária. Mas, e sobre o trabalho em si? Seu obje-I " pdncipal parece ser a disseminação de uma Ética. de saúde1 1 1 1 1 1 1 1 orno um tipo de religião secular. Sustentarei este pon-I"di' vista por citações do principal livro-texto de Psiquiatria Co-1 1 1 1 1 1 1 I 'iria, Princípios de Psiquiatria Preventiva. de Gerald Caplan.

() que Caplan descreve é um sistema de Psiquiatria burocrá-til 1 1 qual mais e mais psiquiatras realizam cada vez menosII 1 11 . 1 11 1 0 real com os assim chamados pacientes. O papel principal. 11 1 p i [uiatra comunitário é o de ser um "consultor de saúde men-t ti"; isso significa conversar com as pessoas, que conversam com1 1 1 1 1 1 1 pessoas e, finalmente, alguém conversa ou tem algum tipoIli Ioutato com alguém que é considerado, real ou potencialmente,

dllt III mental". Este esquema funciona em conformidade com aI 1 1 1 Parkinson :39 o perito, no topo da pirâmide, é tão impor-I 11 1 1 1 'tão ocupado que necessita de um enorme exército de su-t,,"dinados para ajudá-lo, e seus subordinados precisam de um vas-1 1 1 " ircito de subordinados de segunda ordem, e assim por dian-I1 Numa sociedade confrontada com uma larga escala de desern-1"/ pu devido à automatização e grandes avanços tecnológicos, o1 ' 1 1 1 p cto de uma indústria de saúde mental "preventiva", pron-t" apaz de absorver uma grande quantidade de mão-de-obra,t i , In to , deveria ser politicamente atraente. E o é. Olhemos mais""Iltamente para o trabalho real do si uiatra comunitário.

, gunâo-Cãpfan, uIi1atarefa fundamental do psiquiatra co-1 1 1 1 I uitário é prover mais e melhores "condições sócio-culturais" ~1 ' , 1 1 as pessoas. Não está claro quais sejam estas condições. PorI' "lIlplo, "o especialista em saúde mental" é descrito como alguém1:

1 1' " "oferece .con:ulta a l~gislado:es e adr;:in~stradores e cola~ora11 1 11 1 utros cidadãos em influenciar as agencias governamentais a1II I I IIifi ar as lei e regularnentos'l.s" Em português claro, um opinq-Iltlt~1 para a burocracia da saúde mental.] .

psiqUIatra comunitário tambem auxilia "os legisladores eu rlnridade s do Bem-Estar Social a melhorar o clima moral nos(

11 1 1 ' onde crianças (ilegítimas) estão sendo educadas, e a influen-I ,,. fluas mães a casar, dando-lhes, assim, pais estáveis".~ Ape-

I," <1 Caplan mencionar a preocupação do psiquiatra cornunitá-

ma nacional de saúde mental, para auxiliar no InICIOuma novaabordagem e ênfase no cuidado com o doente mental... O Go-verno em todos os níveis - federal, estadual e local - fundaçõesprivadas e os cidadãos, individualmente, devem assumir suas res-ponsabilidades nesta área."35

Gerald Caplan, cujo livro Robert Fe1ix chamou de a "BÍ-blia. '. daqueles que trabalham com saúde mental comunitária",saudou esta mensagem como "o primeiro pronunciamento oficialsobre este tópico por um chefe de governo deste ou de qualqueroutro pa~s:"36Doravante, acrescentou, "a prevenção, o tratamento,e a reabilitação do doente mental e do retardado mental deverãoser consi~eradas uma responsabilidade comunitária e não um pro-blema privado a ser tratado pelos indivíduos e suas famílias emconsulta com seus conselheiros médicos'l.ê" . .

Sem definir claramente o que é a Psiquiatr ia Comunitária ouv que pode ou.•.oderá fazer, proclamaram-na meramente boa' pors~r um esforço grupal, envolvendo a comunidade e o governo, enao u~. esforç? pessoal, envolvendo indivíduos e suas associações

~

VOluntanas, DIzem-nos que a promoção da "saúde mental comu-nitária" é um problema tão complexo que requer a intervenção dogoverno - mas que o cidadão individual é responsável por seuucesso. . .A Psiquiatria Comunitária mal sai dos conselhos de planeja-

mento; sua natureza e seus progressos não são mais que frasesbombásticas e promessas utópicas. Na realidade, talvez a única coi-sa clara a respeito é a hostilidade ao psiquiatra em prática priva-da que presta serviços ao paciente individual: ele é descrito comoengajado em uma atividade infame. Seu papel tem mais que umale,:e semelhança ao de Brodsky, o poeta-parasita de Leningrado.Michael Gorman, por exemplo, cita com aprovação as reflexõesd~ Henry Brosin so~re 0J>ape1 social do psiquiatra: "Não há dú -

VIda de que o desafio do papel da PSlqUlatna está conosco todoo tempo. O aspecto interessante é como seremos no futuro. Nãoos estereótipos e os homens de palha dos velhos empreendedoresprivados da AMA.n38

35 J, F. Kennedy: "Message frorn The President of The United StatesRelative to Mental I1Iness and Mental Retardation" (5 de fevereiro de1963), 88.0 Cong., Primeira Sess, , "House of Representatives" Documenton." 58; reimpresso no Amer. J, Psychiatry ; 120:729-37 (fev.), i964, p. 730,36 G. Caplan: "Pr incip ies of Preventive Psychiatry" (Nova York: Basic13ooks, 1964), p. 3.:37 lbid.

:38 Citado em M. Gorman: "Psychiatry and public policy", Amer. JPsychiatry, 122:55-60 (jan.)' ,1965, p. 56.

nll ',N. Parkinson: Parkinson's Law and Other Studies in Adminis-tratlo n (1957), (Boston: Houghton Miff1in Co. 1962).11 1 .aplan, op. cit., p. 56.I1 Lobbyist, no original em inglês: aquele que freqüenta os corredorest i lima câmara legislativa com o fim de influenciar os representantestio povo (N, do T.).I' lbid. , p. 59.

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40 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 41

Irio quanto aos efeitos do divórcio sobre as crianças, não há co-mentário sobre o aconselhamento de mulheres que querem ajudapara recorrer a divórcios, abortos ou anticoncepcionais.

Uma outra função do especialista em saúde mental é revisar"as condições de vida de seu grupo-problema na população e dessemodo influenciar aqueles que ajudam a determinar estas condi-

ções, a fim de que suas leis, regulamentos e políticas ... sejammodificados numa direção apropriada."43 Caplan enfatiza que nãoestá advogando o governo para os psiquiatras; ele conhece a possi-bilidade do psiquiatra tornar-se, desse modo, o agente ou porta-vozde certos grupos políticos ou sociais. Conclui o problema, decla-rando que cada psiquiatra deve tomar uma decisão por si mesmoe que seu livro não se dedica àqueles que desejam servir a cer-tos grupos de interesses especiais, mas àqueles "que dirigem seusesforços primordialmente à redução da desordem mental em nossascomunidades=j+ Mas admite que a distinção entre psiquiatras queexploram seu conhecimento profissional a serviço de uma organi-zação e "aqueles que trabalham em uma organização para atingiros objetivos de sua profissão" não é tão simples na prática. Porexemplo, comentando sobre o papel de consultores psiquiátricos noCorpo de Paz, brandamente observa que seu sucesso "não estádissociado do fato de que eles foram capazes de aceitar por com-pleto os principais objetivos daquela organização, e que este entu-siasmo foi de pronto percebido por seus líderes".45

Sobre o papel indicado para o psiquiatra na clínica médica. de sua comunidade (especificamente com relação à sua fun-ção numa clínica, atendendo a uma mãe que tem uma relação"perturbada" com seu filho), Caplan escreve: "Se o psiquiatrapreventivo pode convencer as autoridades médicas nas clínicas deque suas operações são uma extensão lógica da prática médicatradicional, seu papel será aprovado por todos envolvidos, incluin-do ele mesmo. Tudo que lhe resta é resolver os detalhes téc-nicos."~

Mas é precisamente isso o que eu considero a questão cen-traI: o chamado trabalho de saúde mental é "uma extensão ló-gica da prática médica tradicional", seja preventivo, seja terapêu-tico? Digo que não é uma extensão lógica, mas sim retórica."47

43 Ibid., pp. 62-63.41 Ibid., p. 65.45 Ibid.46 Ibid., p. 79.47 Ver Szasz: The Myth ot Mental lllness, supra; também "O mito dadoença menta l", neste volume, capítulo 2; e "A retórica da rejeição",neste volume, capítulo 4.

I 111101m palavras, a prática da educação da saúde mental e pSi-f111111111.omunitária não é prática médica, mas persuasão moral

I IIr I,a política.

IV

. mo foi apontado anteriormente, saúde mental e doença

111'i!." não são mais que palavras novas para descrever valores111111, Mas em geral a semântica do movimento de saúde men-Ili 11() passa de um novo vocabulário para promover um tipo par-I 1111i' de Ética secular.

I',st ponto de vista pode ser sustentado de várias maneiras.'1111 ntarei fazê-lo pela citação de opiniões expressas pelo Scien-

1111 C mmittee of the World Federation for Mental Health na1I\11\I1prafia intitulada Mental H ealth and Value S)'stems, editada1"11 I nneth Soddy.

N primeiro capítulo, os autores sinceramente admitem que"" iúde mental é associada a princípios dependentes da religião.111 c I \ logia prevalente da comunidade em questão."48

J) pois, então, segue um retrospecto dos vários conceitos de1111!' mental proposto por vários autores. Por exemplo, na opi-11 (I c l Soddy, "A resposta de uma pessoa sadia à vida é despro-'0111de constrangimento; suas ambições estão dentro do limite011rcnlizaçâo prática ... "49 Enquanto que, na opinião de um co-11"1 .ujo ponto de vista ele cita. a saúde mental "envolve boasI1111.) S . ilJte!pessoais consi o' ropno, com os ou ros e com11,1\ "DO - uma definição que co oca slmp esmente todos os ateu1\I (I sse dos doentes mentais.

autores consideram o desgastado problema da relação entrelt1 1)11. ão social e da saúde mental e têm um sucesso admirável1111esquivar-se dos problemas que afirmam estar atacando: "A11',,1 mental e adaptação social não são idênticas ... o que podeI I Ilustrado pelo fato de que poucas pessoas considerariam al-

"l I 111que se tornou melhor ajustada como resultado de ter deixado111 munidade e se mudado para uma sociedade diferente, como

1 1 wlo desse modo se tornado sadia menta lmente. " No passado,11111\0ainda hoje em algumas sociedades, a adaptação à sociedadeI 11(11.a ser altamente valorizada. " como um sinal de saúde men-I li , a falha em adaptar-se era ainda mais acentuadamente con-di rnda como sinal ele má saúde... Há ocasiões e situações nas'1111 , do ponto ele vista da saúde mental, a rebelião e a não COI1-

'" . Soddy, org.: Cross-Cultural Studies in Mental Health: Identit y,f li/ai Health, and Value Syslems, (Chicago: Quadrangle, 1962). p. 70.u lb/d., p. 72." lbid., p. 73.

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(

42 IDEOLOGIA E DOENÇA .MENTAL

formidade podem ser muito mais importantes que a adaptação 50-

cial."Gl Mas nenhum critério é fornecido para distinguir, " d Q .ponto de vista da saúde mental", as situações às quais dev~ríamosnos conformar daquelas contra as uais deveríamos nos rebelar.

á mui tos out ros exemp os esse tipo e o agem ipócrita,Assim, nos dizem que, "conquanto seja improvável que haja con-cordância sobre a proposição de que todas as pessoas 'más' sejammentalmente insanas, pode ser provável um acordo sobre que ne-nhuma pessoa 'má' poderia ser considerada como tendo o maisalto nível possível de saúde mental, e que muitas pessoas 'más'são mentalmente insanas."5~ Os problemas de que a quem cabedecidir quem são as pessoas "más", e sob que critérios são toma-das as decisões, são encobertos. Esta evasão da realidade dos valo-res éticos conflitantes no mundo como existem é o aspecto maisimportante deste estudo. Talvez um dos objetivos de propor-se umaética mental., confusa, mas compreensível, é o de manter esta re-cusa. De fato, o verdadeiro objetivo do psiquiatra comunitárioparece ser o de recolocar um vocabulário político claro com umasemântica psiquiátrica obscura e um sistema pluralístico de va-lores morais com uma ética de saúde mental singularista. Aquiestá um exemplo de como isto é realizado:

"N osso ponto de vista é de que o ato de um grupo socialassumir uma atitude de Superioridade em relação a outro não éproveitoso para a saúde mental de nenhum deles."1I3 Alguns co-mentários simplistas sobre o problema do negro nos Estados Uni-dos têm seqüência. Sem dúvida, o sentimento aqui expresso éadmirável. Mas os problemas reais da psiquiatria estão ligadosnão a grupos abstratos, mas a 'indivíduos concretos. No entanto,nada é dlto sobre as rela ões reais entre as pessoas - por exem-plo, entre a u tos e crianças, médicos e pacientes, peritos e clien-tes; e como nessas várias situações a consecução de um relacio-namento, que é tanto igualitário quanto funcional, requer uma ha-bilidade e esforço extremos de todos os envolvidos (e pode, emalguns casos, até ser impossível a sua realização).

O estudioso da Ética da saúde mental revela-se quando ana-lisa a saúde e a doença mental, e sua posição moral é ainda maisclara quando discute tratamento psiquiátrico. De fato, o promotorda saúde mental surge agora como um engenheiro social em gran-de escala: não se satisfará com nada menos que a permissão deexportar sua própria ideologia para um mercado mundial.

51 Ibid., pp. 75-76.52 Ibid., p. 82.113 Ibid., p. 106.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 43

Os autores começam sua discussão da promoção da saúdeIII .ntal apontando as "resistências" contra a mesma: "Os princí-) 1 1 s que sustentam o sucesso em tentativas de alterar condiçõest nlturais no interesse da saúde mental, e os riscos de tais tentati-VI lS, são considerações muito importantes para o trabalho de saú-de mental prático... A introdução de modificações numa com~-nidade pode estar ~ujeita a),cond~ções não diferente~ daquelas obti- il

lns no caso da cnança... (grifo nosso).M AqUI; reconhecemoso familiar modelo médico-psiquiátrico de relações humanas: ocli ente é como a criança ignorante que deve ~er "protegida''., se1\ .cessário autocraticamente. e sem seu- consenttmento, 2..~~nto,. flue se parece com o pai onicornpeterite. .

- O psicoterapeuta que adota este ponto de VIsta e se com-promete com esse tipo de trabalho. adota uma titude condescen-dente com seus clientes (relutantes): ele os considera, na melhordas hipóteses, como crianças estúpidas que necessitam de educação .•• na pior das hipóteses, como criminosos diabóli~os que necessi-tam ser corrigidos. Muito freqüentemente, procura Impor a muda~-ça de valores através da força e da fraude, ;m lug~r de ser atravesdo exemplo e da verdade. Em resumo, nao pratica o que prega.A atitude igualitária e de amor para com os semelhantes, a qualo psicoterapeuta está tão ansioso de exportar para as áreas "psi-quiatricamente subdesenvolvidas" do mundo, parece estar em fal-t a em toda parte. Ou deveríamos ignorar as relações entre bran-os e negros nos Estados Unidos, e entre psiquiatra e pacienteinvoluutário?

Os autores não estão inteiramente esquecidos destas dificul-dades. Mas parecem pensar que é suficiente admitir seu conheci-mento de ta-is problemas. Por exemplo, depois de comentar sobreas semelhanças entre a lavagem cerebral realizada na China e otratamento 'psiquiátrico involuntário, escrevem:

"O termo lavagem cerebral tem ... sido aplicado com conota-ções infelizes na prática psicoterapêutica por aqueles que a ela sãohostis. Consideramos que esta lição deva ser decorada por todosque são responsáveis por assegurar tratamento psiquiátrico a pa-cientes que não o desejam. O uso da compulsão ou do embustecertamente parecerá, àqueles que vêem com antipatia e que têmmedo dos objetivos da Psicoterapia, imoral" (grifos nossos).5'6

O déspota "benevolente", quer político, quer psiquiátrico, nãogosta de ver questionada a sua benevolência. Se o é, recorre àtática clássica do opressor: tenta silenciar seu crítico e, se isso .falha, tel1ta degradá-lo. O psiquiatra faz isso, rotulando aqueles

!li Ibid., p. 173.55 .lbid., p. 186.

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44 IDEOLOGIA E DOEl-1ÇA MENTAL

~6 K. Davi~: "~e .ap~licat,~on of science to personal relations: A critiqueto the farnily clinic idea, A me ro Sociological Rev., 1:236-47 (abril)1936, p. 238.57 Ibid., p. 241.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 45

isto é, que" muitos clientes são conduzidos a clínicas tami-liares à própria revelia."58 Analogamente, muitos outros mais. sãoconduzidos a hospitais mentais estaduais e a clínicas mantidaspor comunidades. A Psiquiatria Comunitária assim emerge, pelomenos em minha opinião, como uma nova tentativa de revitalizar

e expandir a velha indústria da higiene mental.Primeiro, há uma nova campanha publicitária: a educação

de saúde mental é uma tentativa de induzir pessoas insuspeitasa se tornarem clientes dos serviços de saúde mental comunitários.Depois, tendo criado uma procura - ou, neste caso, talvez mera-mente a aparência de uma -, a indústria se expande: isso tomaa forma de consumos estavelmente crescentes para os hospitaispsiquiátricos e clínicas existentes e para a criação de novas emais altamente automatizadas fábricas, chamadas "centros de saú-de mental comunitários".

Antes de concluir essa crítica à Ética do trabalho psicoterápi-co, quero brevemente comentar sobre os valores advogados pelosautores de M ental H ealth and Value Systems.

Promovem a mudança como tal; a direção da mudança,no entanto, é freqüentemente mantida inespecífica. "O suc~s-so da promoção da saúde mental depende parcialmente da cria-ção de um clima favorável à mudança e uma crença de que amudança é desejável e possível."59 Também enfatizam a necessi-dade de um exame minucioso de certas "pressuposições não com-provadas; nenhuma delas, contudo, diz respeíto à natureza do tra-balho psicoterápico. Em vez disso, alistam, entre as pressuposiçõesnã.Q...om rovadas idéias tais como ti. •. a mãe é sem re a melhorpessoa para tomar conta e seu próprio filh.o."

Acredito que devêssemos objetar a tudo isto sobre fundamen-tos morais e lógicos básicos: se os valores morais devem ser dis-cutidos e fomentados, devem ser considerados pelo que são - va-

lores morais, não valores de saúde. Por quê? Porque _os valoresmorais são, e devem ser do' eresse le ítimo de todos e não deveser a com etencia es ecial d um ru o em ar ICU ; etiqüantoque os valores de saúde (e especialmente sua implementação téc-nica ) são, e devem ser, principalmente, do interesse de peritosem saúde e, em especial, dos médicos.

v

A despeito de como a chamamos, a saúde mental atualmenteé um grande negócio. Isto é verdade em toda sociedade moderna,

ss Ibid..

59 Soddy, op. cit., p. 209.60 Ibid., p. 208.

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10 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

lar seus semelhantes, sua liberdade acarreta a escravidão dos de-mais, Um máximo ilimitado de escolhas livres para todos é da-

I

ramen~e impossível. Assim, acontece q~e a "liberdade .J..ndividual!!m sido sempre" e rovavelmente continuará sendo, qm-premlo~ifícil de se obter, por requerer um equilíbrio delicado entre auto-determinação suficiente para salvaguardar a autonomia pessoal eautocontrole suficie te Rara p1=0J~~ a autonomia dos outros,

O fiomem nasce aprisionado, vítima. inocente e desespe nça-da de paixões inter iores e controles externos que o moldam e do-minam, O desenvolvimento pessoal é, assim, um process.o de li-bertação individual no qual o autocontrole e a auto direção su-plantam a anarquia interna e a coação externa, Portanto, os pré-requisitos da liberdade individual - libertação do controle arbi-trariamentepolítico e interpessoal, o domínio das complexidadestécnicas de objetos sofisticados, autodeterminação e autoconfian-ça ....:....ão. são. suficientes para o desenvolvimento e manifestaçãodas potencialidades criativas do - indivíduo, mas também, e ainda

mais importante, a autodisciplina.A interação dialética de tendências opostas' ou temas deliberdade e escravidão, liberação e opressão, competência e incom-petência, responsabilidade e licenciosidade, ordem e caos, tão essen-ciais ao crescimento, vida e morte do indivíduo, é transformada,em Psiquiatria e campos associados, em tendências opostas ou te-mas de "maturidade" e "imaturidade", "independência" e "depen-dência", "saúde mental" e "doença mental", e "sanidade" e "lou-cura", Acredito que todos' esses termos psiquiátricos São inade-quados e insatisfatórios, porque todos negligenciam ou desviam aatenção do caráter essencialmente mora l e palíti co do desenvolvi-mento humano e da existência social, Assim, a l inguagem psiquiá-trica retira o caráter ético e político das relações humanas e da

conduta pessoal. Em grande parte do meu. trabalho, tenho pro-curado desfazer isso pela recolocação da Ética e da Política emseus devidos lugares, nas questões referentes' às habitualmente de-nominadas saúde mental e doeriça mental. Em 'resumo, tenho ten-tado restaurar a índole ética e política da linguagem psiquiátrica,

Apesar dos ensaios reunidos nesse volume terem sido escri-tos num período de aproximadamente dez anos, em cada um de-les está relacionado algum aspecto do mesmo problema, a saber:a relação entre ideologia e. insanidade, enquanto refletida na teo-ria- e prática psiquiátricas, Acredito que os resultados dessa in-vestigação tenham um duplo significado: definem os dilemas mo-rais do psiquiatra contemporâneo e, ao mesmo tempo, iluminam

problema político fundamental de nosso' tempo ou, talvez, daprópria condição humana,

INTRODUÇÃO11

II

. , • . h a ou do processo vital, pe-A conquista da eXlstenCla umana, . id if. , l' ou com a I entllca-

Ias profissões ligadas à saude menta começ, lminou em

ção e classificação das chamadas doençdas men,tdals,e cu "problema, fi ~ de que tu o na VI a e umnossos dias com a a irmaçao d "resol-, " . " .. cia do' comportamento eve

~~~~~I,a~~~ndoqu;s ;or~~~ozes mais proeminentes .da ~siqui~r~J

esse' processo agora, está com~le~o, ,Por eX,e~plo, ° e w : ~ _ re~ .Rome consultor senwr em PSlqUl~tnana, Clínica ~ayo . p,_sident~ da Associação Psiquiát:-ica. ~enca?a,; afmr:a, sem vacl_I ' "Na realidade o mundo inteiro e o umco. reCipiente apr,? .a~ , d . ra o cauda.!' da Psiquiatria contemporanea,· e esta naopna o pa , d d t ía."!deve se apavorar pela magmtu e a are a, .

-----1H, P. Rome: "Psychiatry.petence of psychiatry." ·Amer.

p. 729.

and foreign afrairs: The expanding com-J. psychiatry 125:725-30 (dezembro), 1968,

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46 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

qualquer que seja sua estrutura política. É impossível, conseqüen-tet;'le.nte, compreender o debate entre valores individualistas e co-l:. t1Vlsta? em Psi<I,uiatria sem uma clara compreensão da organiza-çao social dos cuidados de saúde mental.

S~rpreendente como possa parecer, nos Estados Unidos 98%dos cuidados para com o doente mental hospitalizado são providos

p~l.:>s gov~r~os Ít;dera1, estadual e dos condadosê- (N. do T.: di-. VIS~~ admll:~s~rattva). A situação na. Grã-Bretanha é parecida, NaUma o Soviética a taxa é. de 100%, evidentemente.

. Para ser ~claro, este não é o quadro total para os EstadosUmdos ou Gra-~retanha. A prática privada ainda é o que se infe-re do termo: p~lvada. No entanto, isso não significa que os cuida-d?s .com o paciente' psiquiátrico interno sejam pagos com fundospublt~o~, ou. que os cuidados com pacientes psiquiátricos de am-bulatono seJ.am pag~s ~om fundos particulares. Os serviços parac~m . os pacíerjtes .:lao-mternos são financiados tanto por fundosp~bhc~s como pa~lculares. Incluindo todos os tipos de cuidados,fOI estimado que .aproximada~ente 65 % de todos os serviços detratamento de. paclent~s mentais são sustentados por impostos e

35% por serviços particulares e voluntários't/'êAs in:plicações do ~asto e expansivo envolvimento do gover-

no em cU1d~dos de saude mental têm sido, penso, insuficiente-me~te apreciadas. Além disso, quaisquer que sejam os problemasad~~n~os do contr?~e governamental nos cuidados hospitalares psi-qUI~tncos, suas dificuldades estão relacionadas com um problemalo~lca~ente a?tecedente: qual o objetivo dos cuidados oferecidos?Nao ajuda .dlzer que é o de transformar os doentes mentais empessoas sadias. Vimos que os termos "sa.úde mental" e "d

1" d . r oen~

~enta . eSl~~a~ ,va.1ores éttcos e desempenhos sociais. O sistemado hospl~al ps íqu iàtríco então .serve, se bem que dissimu1adamente,para. estimular ;ertos. valores e desempenhos, e suprimir outros.

Quais val0.res sao eS~lmu1ados e quais são suprimidos depende, écla,ro, do tipo de sociedade. que está patrocinando os "cuidados desaúde". .

Mais uma vez, esses pontos não são novid~de. Pontos de vis-ta semel?a~tes ~oram articulados por outros. Davis observou queaos possrveis clientes de clínicas psicoterapêuticas "é dito de ummodo ou de. outro, através de conferências, publicidade em jornais,

6 : . D. Blain: ':Action in mental health:Opportunities andlities of the pnvate sector of society". Amer. J. Psychiatry(nov.) , 1964, p. 425.' .~ ,62 Ibid.

responsibi-121:422-27

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 47

1 1 1 1 nnúnc ios discretos, que a clínica existe com o propósito deI lidar indivíduos a resolver seus problemas; enquanto que na ver-

t ll c I . elas existem com o propósito de ajudar a ordem social esta-1 1 1 I I ida. Uma vez induzido a ir à clínica, o indivíduo pode serunvumente desiludido, sob a forma de propaganda que tenta con-'I 11 ê-lo de que seu melhor interesse reside em fazer o que ele,Ip,(I ntemente, não quer fazer, como se o "melhor interesse" de11 11I indivíduo pudesse ser julgado por qualquer coisa que não seuspl6prios desejos."M

Devido ao caráter involuntário deste tipo de clínica ou hos-pital, sucede, segundo Davis (e eu concordo com ele), que o servi-u "deve encontrar subsídios (filantrópicos ou governamentais) em

v z de lucro através de honorários. Mais adiante, já que seu pro-pô ito na maioria dos casos se identifica com a comunidade emve z de com a pessoa a quem serve, e já que requer o uso daforça ou embuste para levar a cabo seu propósito, deve funcionarcorno uma arma da lei e do governo. Não é permitido o uso daforça e da fraude com indivíduos em sua capacidade privada ...• nseqüentemente, para apaziguar conflitos familiares pelo refor-ço de normas sociais, uma clínica psicoterapêutica deve estar re-v stida do poder ou pelo menos do manto de alguma instituiçãouitorizada pelo Estado para o exercício da decepção sistemática,

t 1 como na Igreja."MA comunidade poderia sustentar uma clínica devotada a es-

timular os melhores interesses do cliente , em lugar dos da comu-nidade? Davis considerou esta possibilidade e concluiu que não.Porque, se este tipo de clínica está por existir, então, "como aque-la do outro tipo, ela deve usar de força e de logro - não so-bre o cliente, mas sobre a comunidade. Deve interferir nos corre-ti res legislativos; empregar armas políticas e, acima de tudo, ne-gar seu verdadeiro propósito.'?" (Temos visto a Psicanálise ame-ricana organizada fazer justamente isso.) 66

Davis não deixa dúvidas sobre as alternativas básicas que aPsiquiatria deveria, mas se recusa, enfrentar: "A clínica indivi-dualística aceitaria os critérios de seu cliente. O outro tipo de clí-nica aceitaria os critérios da sociedade. Na prática, somente a úl-

(1 11 Davis, op. cit., pp. 241-42.01 Ibid., pp. 242-43.o u lbid., p. 243. .' .(10 Ver T. S. Zzasz: "psychoanalysis and taxation: A contribution t.

the theoríc of the disease concept in psychiatry". Amer. J. Psychothearapy.18:635-43 (out.) , 1964; "A note on psychiatric rhetoric." Amer. J.

psychiatry, 121: 1192-93 (junho) , 1965.

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48 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

tima é aceitável. porque o Estado está revestido do poder de usarda força e da fraude."67 Na medida em que as clínicas psicote-rapêuticas ou outros tipos de facil idades de saúde mental tentamrender serviços de ambos os tipos, "estão tentando montar em dois. cavalos colocados em direções opostas."68

A comparação dos cuidados oferecidos pelos hospitais psiquiá-

tricos, na Rússia e nos Estados Unidos, sustenta o argumento deque os valores e desempenhos que a Psiquiatria estimula ou su-prime estão relacionados com a sociedade que patrocina o serviçopsiquiátrico. A proporção de médicos e leitos hospitalares para apopulação é aproximadamente a mesma em ambos os países. Con-tudo, essa semelhança é enganadora. Na União Soviética, exis-tem aproximadamente 200.000 leitos em hospitais psiquiátricos;·nos Estados Unidos, aproximadamente 750.000. Por outro lado,"11,2% de todos os leitos hospitalares na União Soviética sãoocupados por pacjentes psiquiát ricos, comparados com 46,4% nosEstados Unidos."69

Esta diferença é melhor explicada por certas políticas sociaise psiquiátricas que encorajam a internação em hospitais psiquiá-

tricos nos Estados Unidos, mas desencorajam na Rússia. Alémdisso, a principal ênfase soviética nos cuidados psiquiátricos é otrabalho forçado, enquanto a nossa é a frivolidade forçada; elescompelem os pacientes psiquiátricos a produzir, enquanto nós oscompelimos a consumir. Parece improvável que estas ênfases "te-rapêuticas" não devessem ser relacionadas com a escassez de tra-balho crônica na Rússia e o nosso crônico excesso.

Na Rússia, "Iaborterapia" difere do trabalho comum no fatode uma ser levada a cabo sob os auspicios de uma instituiçãopsiquiátrica e a última sob os auspícios de uma fábrica ou fazen-da, respectivamente. Além disso, como vimos no caso de IosiíBrodsky, o criminoso russo é sentenciado para o trabalho - não

para a frivolidade (ou abertura de novos empregos), como seucorrespondente americano. Tudo isto advém de duas fontes bá-sicas: primeiro, da teoria sócio-política soviética que sustenta que"trabalho produtivo" é bom e necessário tanto para a sociedadecomo para o indivíduo; segundo, do fato sócio-econômico sovié-tico de que num sistema de burocracias colossais (onde faltamcontrole e equilíbrio adequados) mais e mais pessoas são necessá-

67 Davis, op. cit., p. 244.68 lbid., p. 245.69 J. Wortis, and D. Freundlich: "Psychiatric work therapy in theSoviet Union. Amer J. Psychiatry, 1211:123-25 (agosto), 1964, p. 123.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 49

os soviéticos têm

7 11 Ibid.

I Ibid., p. 124.T~ lbid., p. 127.

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50 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

te inclina-se para menos de 5% da força de trabalho (sem incluirmuitas pessoas mais velhas capazes de trabalhar). Ao mesmo te~-po, nos hospitais psiquiátricos americanos o trabalho si nificativoe pro UIVO e esencoraja o e, se necessário, roibido ela for .Em vez de defInir o trabar 10 "f'õrãdo como tera ia - como _Ofazem os soviéticos - nós definimos a ociosidade forçada comoterapia. .o único trabalho permitido ou encora' ado e o tra a-lho necessário ara manter as instala ões e servi os hospitalarese, mesmo nesta categona, somente o tra a 10 ue e consl era onao competitivo com as empresas privadas.

Como sugeri naalgum tempo, li a mternação em hospitais psi-quiátricos serve como uma função sócio-econômica dupla. Primei-ro, pela defini ~o das essoas internadas como inca azes e r-duzir tra alho (e freqüentem ente proibindo-as de trabalhar mesmo-ªpós a alta), o sistema de cuidados psiquiátricos serve para di-minUIr nossa taxa nacional de desemprego; um. grande númerode pessoas são "clas'sificadas como mentalmente insanas em vez deincompetentes socialmente ou desempregadas. Segundo, pela cria-ção de uma vasta organização de hospitais psiquiátricos e institui-ções filiadas, o sistema de cuidados com a saúde mental ajuda aoferecer novos empregos; de fato, o número de empregos psiquiá-tricos e parapsiquiátricos assim criados é assustador. Como re-sultado, maiores cortes nos gastos da burocracia da saúde mentalameaçam o mesmo tipo de deslocamento econômico, da mesma for-ma que o fazem os cortes nos gastos com a Defesa, e são, talvez.igualmente "impensáveis".

Parece-me, conseqüentemente, que, ao contrário da repetidapropaganda sobre os altos custos da doença mental, nós temos umengenhoso interesse econômico para perpetuar e até mesmo aumen-tar tal "doença". Confrontados como estamos com a superprodu-ção e desemprego, podemos evidentemente sustentar o "custo" de

cuidar de centenas de milhares de "pacientes mentais" e seusdependentes. Mas podemos sustentar o "custo" de não tomar con-ta deles e assim acrescentá-Ios ao número de desempregados, nãosomente os assim chamados doentes mentais, mas também aspessoas que deles "tratam" atualmente e neles "pesquisam"?

Quaisquer que sejam os objetivos ostentados pela Psiquia-tria comunitária, suas operações reais são passíveis de serem in-f luenciadas por considerações e fatos sócio-econômicos e políticostais como os que discutimos aqui.

73 T. S. Szasz: "Review of The Economics oi Mental lIlness, por RashiFein" (Nova York: Basic Books, 1958). AMA Archives of GeneralPsychiatry, 1:116-18 (julho), 1959.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 5 1

VI

A Psiquiatria é uma empresa moral e social. O psiquiatraI1 t i L de problemas de conduta humana. E; conseqüentemen!e, .c~-1 ,1 1 u do em situações de conflito - freqüentemente entre o indiví-

t l l l l ) o grupo. Se quisermos compreender a Psiquiatria, não po-d' II lO S desviar os olhos desse dilema: devemos saber de que lado, IL O psiquiatra - do lado do indivíduo ou do grupo.

Os componentes da ideologia da saúde me?tal~ descrevem .0

I"oblema em termos diferentes. Pela não enfatização dos confli-1 1 1 entre as pessoas, evitam colocar-se explicitamente. con;o agen-II ou do indivíduo ou do grupo. Como preferem visualizar, emV I I. de promover os interesses de um ou outro partido ou valormoral, promovem a "saúde mental". . .

Considerações como essas levaram-me a concluir que o con-I I'it de doença mental é uma traição ao senso comum e a umav i fio ética do homem. Para ser claro, quando quer que falemos

di' um conceito de homem, nosso problema inicial é o de defini-I 10 e de f ilosofia: o que siFínifica homem? Seguindo na tradiçã~do individualismo e racionahsmo, sustento que um ser humano e

uuia pessoa na medida em que faz escolhas livres, não coagidas.trualquer coisa que aumente sua liberdade. aumentar~ ~ua. hu-11 mnidade ; qualquer coisa que diminua sua liberdade dIminUI suahumanidade.

Liberdade independência e responsabilidade progressivas le-vam o indivíduo a ser um homem; escravidão, dependência e irres-ponsabilidade progressivas, a ser uma c.oisa. Hoj~, ~ inevitavel-mente claro que, a despeito de suas origens e objetivos, o con-I'-ito de doença mental serve para escravizar o homem. O fa~ pelaJ H'rmissão - na realidade, ordenação - de um homem Impor

un vontade sobre outrem.Vimos que os fornecedores de cuidados com a saúde mental,I pccialmente quando tais cuidados sã~ oferecidos pel.o gov~rx:o,

I) na realidade os fornecedores dos interesses morais e SOCIO-1'(' nômicos do Estado. Isto dificilmente surpreende. Que outrosnl resses poderiam eles representar? Seguramente não .aqueles dopn iente, eu j os interesses são freqüenternente antagomcos aosdo Estado. Desse modo, a Psiquiatria - agora orgulhosamente1 hamada de "Psiquiatria Comunitária" -: torna-se la.r~amen~e ~II I·j de controlar o indivíduo. Numa SOCIedade massiíicada, ISto e11\ lhor realizado pelo reconhecimento de sua existência, do. p~-

d snte somente como membro de um grupo e nunca como um indi-vlduo.

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52 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

O perigo é claro e foi apontado por outros. Nos EstadoUnidos, quando a ideologia do totalitarismo é promovida comofascismo ou comunismo, ela é friamente rejeitada. Contudo, quan-do a mesma ideologia é promovida sob o disfarce de cuidados desaúde mental ela é calorosamente abraçada. Assim, parece possí-

vel que, onde o comunismo e o fascismo falharam em coletivizara sociedade americana, a Ética da saúde mental possa ainda tersucesso.

4. A RETóRICA DA REJEIÇÃO

Num ensaio anterior." tentei esclarecer o conceito de doençamen-t a l , oferecendo uma análise lógica da mesma. Nas ciências físicas,·nde a linguagem é usada principalmente de forma descritiva -i to é, para comunicar como as coisas são - é freqüente que talanáli se seja suficiente para dissipar as obscuridades. Contudo, nasciências sociais ou humanas, onde a linguagem não é só usada des-.ritivamente, mas também promocionalrnente - ou seja, para co-municar não somente como as coisas são, mas também como de-veriam ser - isso não basta e deve, conseqüentemente, ser com-plcmentado por uma análise dos aspectos históricos, morais e táti-c s do conceito em questão. O objetivo deste ensaio, assim, éde melhor esclarecer o .conceito de doença mental pelo exame deeus antecedentes históricos, implicações morais e funções estra-tégicas.

II

A linguagem tem três principais funções: transmitir informa-ções, induzir estado de ânimo e promover a ação.nDeve ser

nfatizado que a clareza conceitual é necessária somente para ouso da linguagem cognitiva ou de transmissão de informações. Fal-ta de clareza pode não ser um defeito quando a linguagem é usadapara influenciar as pessoas; na verdade, freqüentemente é umavantagem.

As ciências sociais - a Psiquiatria entre elas - se dedicamno estudo de como as pessoas se influenciam umas às outras. Ouso promocional da linguagem é, conseqüentemente, um aspectosignificativo das observações que as ciências sociais tentam des-

H T. S. Szasz: "O mito da doença mental". Neste volume, capítulo 4.7~ H. Reichenbach: "Elernents of Symbolic Logic, (Nova York: Mac-millan, 1947), pp. 1-20.

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1 2 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

Como todas as, invasô~s, a invasão da Psiquiatria na jorna-da do homem atraves da vida começou nas fronteiras de sua exis-têf,1cia.e daí se estendeu gradualmente rumo ao seu interior. Osprimeiros a sucumbir foram o que viemos observar como os ca-

I, 'b'" H "d"os o VIOS ou graves, e doença mental" - isto é a cha-

mada histe.ria co:r:versivá e as psicoses - as quais, apesar' de ago-ra sere?'l mques~lOnavelmente aceitas como doenças psiquiátricas,pertenciam anteriormente ao domínio da Literatura da Mitologiae da Religião. Esse domínio da Psiquiatria foi sustentado e in-c~tado pela lóg-ica:rias fan.tasias e pela retórica da Ciência. espr-cialrnente a Medicina, ASSim, quem poderia opor-se à afirmaçãode que a pessoa que age como doente, mas não o é relamente de-veria ser chamada de "bistérica" e ser declarada merecedora deatendimento por neuropsiquiatras? Isso não foi, por acaso, sim-plesmente um avanço da Ciência Médica semelhante aos pro-gress~s em Bacteriolçgia ou Cirurgia? Da mesma forma, quempoderia se opor a que outras "pessoas perturbadas" - por exem-plo, aquelas que se afastavam do desafio da vida real recolhen-

d~-se às suas ~rópr~as produções dramáticas, ou as q~e, insatis-feitas com suas Identidades reais, assumiam outras falsas - fossemreivindicadas pela Psiquiatria como "esquizofrênicas" e "para-nóicas" ?

A partir do início do século, especialmente depois de cadau~a das duas g~erras mundiais, o ritmo dessa conquista psiquiá-trica cre,~ceu.rapldamente. º :~sultado é que hoje, em particularn OCidente, todas as difIculdades e roblemas da vida sãoC ? iderados doenças pSlquatncas e to os (exceto aqueles quedia ostlcam sao consl era os doentes m n is. De fato, não éexagero izer que a propna vida é atualmente vista como umaen~e:midade que começa com a concepção e termina com a morte,

exigindo, a cada passo desse caminho, a assistência hábil dosmé-

dicos e, especialmente, dos psiquiatras..? .leitor perspicaz poderá aqui detectar uma vaga nota de

f:ml1landade. A ideologia psiquiátrica moderna é uma adapta-çao - para uma era científica - da ideologia tradicional da teo-logia cristã. Em vez de nascer para o pecado, o homem nascepara a doença. Em vez de a vida ser um vale de l~e-rimas, é umval ,ele doenças. E, como antigamente em sua jornada dI)' berço

ao. túr nu lo o homem era guiado pelo' sacerdote, da mesma formah J é guiado pelo médico. Em resumo, enquanto que na Idadeda Fé a ideologia era a cristã, a tecnologia era clerical e o peritora acerdote, na Idade da Loucura a ideologia é médica, a tec-nologia '. clínica, e o perito é o psiquiatra.

INTRODUÇÃO

Atualmente, esse processo de ~ar médicos e. psiq~i~tri-I11 . em eral écni os - os roblemas essoals SOCiaise1'1I1\tcos 'como tem sido notado freqüent,eI?ente, é uma ca~acterís-ti l lominante na era moderna e burocrática. O que tentei captar111 '1 1 .m algumas palavras - ~ais, ext.ensamente nos ensaios< I 'U ' nstituem este volume - n~o e ~IS .qu~ .um aspec:o? em-I 1 lia importante, dessa moderna ideologia clentIÍlco-tecnologlca, ad)'r: a ideologia da sanidade e insanidade, da saúde mental e da

. 1 0 '11 a mental.orno sugeri anteriormente, essa ideologia não é mais que

\11 11 velho artifício em nova roupagem. Os poderosos sempre cons-piraram contra seus súditos e procuraram mantê-Ios no cativeiro;I', para atingir seus objetivos, s.empr; se v~l:ra~ d<1:for5a e dafraude. De fato, quanto mais eficaz e a retonca J.uStlhCa~1V~oml L qual o opressor esconde e f~lseia seus ve:da~elr.os ??Jetlvos emétodos - como foi o caso antigamente da nrama justificada pelal elogia, e é agora o da tirania justific.ada pela !e.rapia - o opr~s-sor tem sucesso não somente em sub u ar a VItIma, mas tambem

m roubar-lhe um vocabu ano com o qua possa articul~r sua con-di ão de vítima, transformando-a, desse modo, num catIvo des ro-'TIdo de todos os meios e escapar.

A ideologia da insamdade atingiu exatamente esse resultadoem nossos dias. Tem tido sucesso em privar um vasto número depessoas' - às vezes parece que quase todos nós -~e se,:t pró-prio vocabulário, com o qual possam estruturar sua situaçao semvenerar uma perspectiva psiquiátrica que. desvaloriza o homemcomo pessoa e o oprime como cidadão.

III

Como todas as ideologias, a ideologia da insanidade - ex-

pressa através do jargão científico dos "diagnósticos", ."prognós-ticos" e "tratamentos" psiquiátricos, e incorporada no sistema bu-rocrático da Psiquiatria institucional e seus campos de concentra-ção chamados "sanatórios". - encontr<l; sua expressão. caracterís-tica naquilo a que se opõe: compromisso com uma Imagem oudefinição de "realidade" oficialmente proibida, As pessoa~. a quemchamamos de "loucos" tomaram, para melhor ou para pior, umaposição com relação às questões realmente significativas da vidacotidiana. Ao fazer isso, podem estar certos ou errados, podemser sensatos ou estúpidos, santos ou pecadores ... mas pelo me-nos não estão indiferentes. O louco não murmura t imidamenteque não sabe quem é, como o "neurótico" poderia fazer; em .vezdisso, declara enfaticamente que é o Redentor ou o descobndor

13

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14 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTALINTRODUÇÃO 15

",,-.~~r•.professor associado de Psiquiatria da Escola de MedicinaAlbert Einstein, de Nova York, "ele considera a questão da con-e ! 'nação moral do indivíduo como improcedente... Exatamente(' mo as funções do corpo enfermo e do corpo sadio correspondem~ leis fisiológicas, assim também as mentes enfermas e sãs fun-

ionam de acordo com as leis psicológicas... A descoberta de que!

lguém é criminalmente responsável significa para o psiquiatraque o criminoso deve mudar de comportamento antes que possa;r 'assumir seu papel na sociedade. Esta imposição não é ditadapela moral, mas, por assim dizer, pela realidade." (Grifo nosso.)"

Analogamente, experiências levadas a cabo na Prisão deClinton, em Dannemora, Nova York, por Ernest G. Poser, umprofessor associado dos departamentos de Psicologia e Psiquia- ? .

tria da Universidade McGill, de Montreal. e sustentados por uma f' f)J .i}? ?concessão do Comitê Governador Rockefeller para DelinqüentesCriminais, são descritas como promissoras de " ... ajudar-nos aatingir, algum dia, um ponto em que a decisão de colocar umapessoa atrás das grades será baseada nas possibilidades de a mes-ma vir a cometer um outro crime, e não sua culPa ou inocência!'(grifes nossosj P .

Karl Menninger, o decano dos psiquiatras americanos, tempregado este evangelho por mais de quarenta anos. Em seu últimolivro, cujo título. revelador é O Crime da Punição, escreve: "Apalavra justiça irrita os cientistas. Nenhum cirurgião espera quelhe perguntem se uma operação de câncer é justa ou não... Oscientistas comportamentistas consideram igualmente absurdo invo-car a questão de justiça na decisão do que fazer com uma rnu-.lher que não resiste à sua propensão para a cleptomania, ou comum homem que não pode reprimir um impulso de assaltar ./.alguém.'" c;

O çrime, conseqüentemente, já não ' mais um roblema de

Direitó e Moral mas, ao invés dísso, da Medicina e dos tera:,eutas.. ssa trans ormaçao oetlco em tecnico - de crime emoença, de Direito em Medicina, Criminologia em Psiquiatria, e ' ~de uni -o em tera ia - é, além disso, entusiasticamente abra- ,r?ça a por mui os médicos, cientistas sociais e leigos. Por exern- r t J l 1 . : : ?

plor, numa crítica de O Crime da Punição no New York Times, rpRoger Jellinek declara: "Como prova o Dr. M~nin e tão con-,..if ~w

2 E. J. Sachar: "Behavioral science and the criminal law", Scientiiic !ollf'Ameriçan, 209:39-45 (novembro), 1963, p. 41. V8 D. Burnham: ·"Convicts treated by drug therapy". The New York

Times, 8 de dezembro de 1968, p. 17.4 K. Menninger: "The Crime of Punishment" (Nova York: Viking,

1968), p. 17.

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IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

Iin m t mente, ~ criminosos certamente são doentes e não dia-

b'1kDs" .G

S Criminosos certamente são doentes ... ", dizem os "cien-ti tas comportamentistas" e seus seguidores. Aqueles que punem'ã crimino Q, acrescenta Menninger. S s m w s , assim, levados .aacreditar que os atos ilegais dos cri ino ós ão sintomas de doen-

as mentais e que os atos e ais dos executores da lei são crimes.e é as . a ueles ue unem são também criminosos e, ortan-to, e e s tam em são "doentes e não diabólicos". A ui a an amoso ideólogo d ã . insanidade em sua atividade predileta - a abrica-ão da loucura."

"Os criminosos certamente são doentes ... " Pense nisso! EI lembre-se que qualquer um culpado de ter infringido a lei é, por

definição, um criminoso: não somente o assassino profissional,mas também o médico que executa um aborto ilegal; não somenteo ladrão armado, mas também o negociante que sonega seu im-posto de renda; não-r somente o incendiário e o ladrão mas tam-bém o apostador e o fabricante, o vendedor e freqíienternente oconsumidor de drogas proibidas (o álcool, durante a Lei Seca,

Ie atualmente a maconha). Todos criminosos! Não diabólicosnem, certamente, maus; somente doentes mentais - todos, semexceção. Mas lembremo-nos: deverão ser sempre eles' - nun-ca nós! .

Em resumo, enquanto o assim chamado louco é aquele quecaracteristicamente se compromete} o psiquiatra é aquele que secaracteriza por se manter descomprometido. Expressando, então,uma falsa neutralidade com relação à questão, ele exclui o loucoe seus problemas tumultuosos com a sociedade. (Curiosamente, oprocedimento pelo qual essa exclusão se realiza também se chamade "recolhimento".') 7

IV

Devido ao fato de os psiquiatras evitarem tomar uma posi-ção decidida e responsável C0111relação aos problemas que mane-

1\ R. M. Jellinek: "Revenger's tragedy". The New York Times, 28 dedezembro de 1968, p, 31.6 T. S. Szasz: The Manujacture 01 Madness: A Comparative Study 01

lhe Inquisition and the Mental Health Movement, (Nova York: Harper& Row, 1970). (Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o títuloA Fabricação da Loucura; Rio, 1976).7 Em inglês, 10 commit onesel] significa comprometer-se. Commitment

quer dizer recolhimento à prisão, cometimento, além de compromisso.O autor usou o significado duplo de commitment para ironizar. (N. do T.)

INTRODUÇÃO 17

jam, a maioria dos becos-sem-saída intelectuais e morais da Psi-quiatria permanece desconhecida e sem exan~e.. Esses po~em serolocados sucintamente sob forma de uma serre de questoes queenvolvam escolhas fundamentais sobre a natureza, objetivo, méto-dos e valores da Psiquiatria: ,

1 _ O objetivo da Psiquiatria é o estudo e t.r~tamento .de,

condições médicas, ou o estudo de desempenhos S?ClaIS e das m-fluências sobre eles? Em outras palavras, os objetos de estudoda Psiquiatria são as doenças. ou os papéis, acontecimentos ou~ ?

açoesi_finalidade da Psiquiatria é o e~tudo do comporta-Jmento humano, ou o controle do (mau) comportamento humano?Em outras palavras, o objet ivo da Psiquiatria é o avanço do co-nhecimento, ou a regulamentação da (má) conduta? .

3 - O método da Psiquiatria é o intercâmbio de COl!1U~l1Ca1cão, ou o uso de testes diagnósticos e tratamentos ,t~rapeU!lco.~.Em outras palavras, no que consiste realmente .a P!at lc,: pS1qUtatrica - ouvir e falar~ ou prescrever drogas, pS1coclrur Ia, e conmamento e pessoas rotu a as oentes men~al~ ", , . .,

4 _ Finalmente, o valor diretivo da Psiquiatria e o indivi-dualismo ou o coletivismo? Em outras palavras, a Psiquiatria

aspir'a a servir ao indivíduo ou ao Estado?, . .A Psiquiatria contemporânea se caractenza slste~abcamente

por respostas evasivas a ess~s quest~es .. , º.uase todo h~ro ~u ar-tigo escrito por uma autondade psiquiátrica reconhecida ilustraessa afirmativa. Dois breves exemplos deverão bastar:

No artigo citado anteriormente, Sachar rejeita ~xplicitamen-te o ponto de vista de que o psiquiatra t0r,na. partido no co~-flito. Escreve: "Para o bem de quem o psiquiatra tenta modi-ficar o criminoso? Para o bem do criminoso ou da sociedade?Para o bem de ambos, argumentaria, exatamente como o médi-co que quando em face de um caso de varíola, pensa imediata-

, id d "8mente em salvar o paciente bem como proteger a comum a e .Num ensaio dedicado à da idéia de ue a "doen!...

mental" é uma enfermidade, Roy R. Grinker, Sr., diretor do I?s-fituto para Pesquisas pSiCossomáticas e ~siquiátricas do ~ospltale Centro Médico Michael Reese em Chicago, escreve: O ver-dadeiro modelo médico é aquele no qual a Psicoterapia é apenasuma parte. O campo total em termos de terapia .inclui. .. ~ ~s-colha do ambiente terapêutica, tal como a propna casa, clínica

8 Sachar, op. cit., pp. 41-42.

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18 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

2. O MITO DA DOENÇA MENTAL

1 1 R. R. Grinker: "Emerging concepts of mental illness .and rnodels oftreutrnent: The meclical point of view". Amer. J. Psychiatr y, 125:·865-69(janeiro). 1969, p, 866.

Na essência de praticamente todas as teorias e práticas psiquiátri-cas contemporâneas repousa o conceito de doença mental. Umexame crítico desse conceito é, conseqüentemente, indispensá-vel para compreender as idéias, instituições e procedimentos dospsiquiatras.

Meu objetivo nesse ensaio é questionar se existe /0 que sechama de doença mental e defender a idéia de que não existe.

Sem dúvida, doença mental não é uma coisa ou objeto físico;portanto, só. pode existir da mesma maneira que os outros con-ceitos teóricos. No entanto, as teorias conhecidas tendem a apare-.cer, mais cedo ou mais târde, para aqueles que nelas acreditam,como "verdades objetivas" ou "fatos". Em certos· períodos his-tóricos, conceitos explicativos tais como divindades, feiticeiras einstintos apareceram, não· somente como teorias, mas como cau-sas evidentes por si de um vasto número de eventos. Hoje emdia a doença mental é vista, largamente, de um modo semelhan-te, ou seja, como a causa de inúmeros acontecimentos diferentes.

Como antídoto ao uso complacente da noção de doença men-tal --""7 como um fenômeno, teoria .ou causa é evidente por si -perguntemos: o que se quer dizer quando se afirma que alguém

é doente mental? Nesse ensaio descreverei os principais usos doconceito de doença mental, e demonstrarei que essa noção tem.sobrevivido a .despeitada utilidade que possa ter tido parao conhecimento, e que agora funciona como um mito.

II

10 'Sífilis ou paresia cerebral. Uma das formas de neurossífilis comenvolvimentodo córtex cerebral. Sintomatologia:· decréscimo na capaci-dade de concentração, perda de memória, irritabilidade. Surpreendente

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IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

'ntoxica ões or exem 1 0 - nos uais as essoas odem mani~• estar certas desor ens do pensamento e comportamento. omprecisão, contudo, essas são doenças do cérebro, não da 'me'i1te":De acordo com certa escola de pensamento, toda assim chamadadoença mental é desse tipo. A suposição é de que algum defeiton~urológico, talvez muito tênue, será, or fim encontrado pa~

hcar todas as desorden de ensamento e com ortamento. M' , I. tos médicos, psiquiatras e outros cientistas contemporâneos man-

~

~tlveram esse ponto de vista;. o qual implica a inferência ele que. : 9 s ro emas as pessoas não poâem ser causa os por necessi(!ã:"" I

. es pessoaIs con btJvas, .opmioes, as Ira ões socIaIs va ores e. assim por dIante. EssasaiIícu, a es - as quais, pe~so, possam'ser c am~ a~ SImplesmente de pro ema,s e;>;~stenc~a~sT- são dessemodo atribuídas a processos pSICOqUll11lCOSue, em tempo devi-do, s,er.ão descobertos (e sem dúvida corrigidos) pela pesqui- Isa médica, ~. I

As doenças mentais são, assim, consideradas como basicarnen-

r

t~ similares às outras doenças. A única diferença, nessa perspec-tJ;a, entre d?ença mental e ~orporal é que a primeira, afetando o

I cer~b:o, manifesta-se por meio de sintomas mentais; enquanto quea ultima, afetando outros sistemas do organismo - por exem-plo, a pele, o fígado e assim por diante - manifesta-se por sin-tomas referentes àquelas partes do corpo. _Em minha opinião, essa perspectiva é baseada em dois erros

r - fundamentais: em rimeiro lugar, uma doença do cérebro.ana 0-ga a uma doença dapele ou dos ossos, é um defeito neurolózico.não u.m problema exis tenc ial. Por exemplo, um defeito' no siste~ma VIsual de uma pessoa pode ser explicado, correlacionando-oa certas lesões no sistema nervoso. Por outro lado, a crença deuma pessoa - seja no cristianismo, no comunismo, ou na idéiade ,que seus ór~ãos' internos est~o apodrecendo e seu corpo já

~sta :n0rto - nao pode ser explicada por um defeito ou doençano sistema nervoso. A explicação desta sorte de fenômeno -s~pondo-se . que o. pesquisador se interesse pela crença em si enao a c?ns l~er~. s ln:plesmente c~mo um sintoma ou expressão dealgo mais .significativo - devera ser procurada em várias fontes.

)' Q . se. n?o erro é, epistemológico. Consiste em interpre-tar comurncaçoes entre nos e o mundo ao nosso redor como sin-tomas de funcionamento neurológico .. Esse é um erro não deobse:vação e raciocínio, mas de organização e expressão do co-11h cimento. Nesse caso, o erro está em estabelecer um dualismontr sintomas mentais e físico!, um dualismo que é .urn hábito

mu dança de comportamento: a pessoa torna-se irresponsável confusaJl~1 ótica. ' ,

o MITO DA DOENÇA MENTAL 21

d linguagem e não o resultado de observações conhecidas. Ve-jamos se não é assim,

Na prática médica, quando falamos de distúrbios físicos, pen-samos ou em sinais (por exemplo, a febre) ou sintomas (porxernplo, a dor). Falamos de sintomas mentais, por outro lado,quando nos referimos às comunicações do paciente consigo próprio,

(' m os outros, com o mundo que o rodeia. O paciente pode afir- l'm ar que é N apoleão, ou que está sendo perseguido pelos comu- Onistas; estes seriam considerados sintomas mentais somente se o 'F ' ~

bservador não acreditar que o paciente seja Napoleão, ou que ~ ~steja sendo perseguido pelos comunistas. Isso torna evidente o'que a afirmação de que "X é um sintoma mental" implica faze ~ ~um julgamento que traz a comparação oculta entre as idéias con ~ ,eítos ou cren s do aciente e as o ooserva or e a socieda('111 (ue vivem. A noção ele sintoma mental está, desse modo, intrin- ~a amente ligada ao contexto social e particularmente ético n ~qual é elaborada,' assim como a noção de sintoma físico está liga-da a um contexto anatômico e genético.P

Concluindo: para quem considera os sintomas mentais como

inais de doença cerebral, o conceito de doença mental é desne-cessário e enganador. Se querem dizer que as pessoas assim ro-tuladas sofrem de doenças cerebrais, parece melhor, para finsde clareza, dizer somente doenças cerebrais e nada mais.

III

O termo "doença mental" é também de amplo uso para des-crever algo totalmente diferente de doença cerebral. Atualmentemuitas pessoas têm como certo que viver é uma tarefa árdua. Adificuldade ela vida para o homem moderno deriva não tan-to da luta pela sobrevivência biológica quanto das depressões etensões inerentes à interação social entre personalidades humanas

complexas. N esse contexto, !!:....ll.9-ç.ã!>e -ºQençª-.J11~tal é usadapara identificar ou descrever algum ~s ecto ~a assim ~ma-da personalidade de um 1 11 IVI uo. Doença mental - .sgmo de-formação da ersonalidade, or assim diZer - é, então, vista comoa causa a desarmonia humana. Está implícito nessa explicaçãoque a interação social. entre pessoas, é vista como algo inerente-mente harmonioso, sendo o seu distúrbio devido somente à pre-sença da "doença mental" em várias pessoas. Está claro que esse

Il Ver T. S. Szasz: Pain and Pleasure: A Study of Bodily Peelings,

(Nova York: Basic Books, 1957), especialmente pp. 70-81; "O problema.da nosologia psiquiátrica". Amer. J. Psychiatry, 114:405-13 (novembro).1957. (Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título Dor e Prazer.m Estudo das Sensações Corpôreas; Rio, 1976.)

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22 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

raciocínio é falho, porque faz da abstração "doença mental" a cau-sa de certos tipos de comportamento humano, apesar desta abstra-ção ter sido originalmente criada para servir somente como ex-pressão. taquigráfica para aqueles. Torna-se, aqui, necessário per-guntar: que tipos de comportamento são considerados como in-

dicativos de doença mental, e comportamento de quem?.O conceito de enfermidade, seja física ou mental, impli-ca desvio de alguma norma claramente definida. No caso de en-fermidade física, a norma é a integridade estrutural e funcionaldo corpo humano. Assim, apesar da conveniência da saúde físi-ca como tal ser um valor ético, a questão o que é a saúde podeser respondida em termos anatõmicos e fisiológicos. Qual éa norma da qual o desvio é considerado doença mental? Essaquestão não pode ser respondida facilmente, mas, qualquer queseja a norma, podemos estar certos de uma coisa: essa deve ser es-t.abelecida em termas de CQllceitos_psico~is, ~ticos e legais. Porexemplo, noções tais como "repressão excessiva" e "agindo deacordo com um impulso inconsciente" ilustram o uso de concei-

tos psicológicos para julgar a assim chamada "saúde" e "doençamental". A idéia de que a hostilidade crônica, vingatividade, ouo divórcio são indicativos de doença mental ilustra o uso de nor-mas éticas (isto é, anelo por amor, delicadeza, um relacionamentoconjugal estável). Finalmente, a opinião psiquiátrica difundi-da de que somente uma pessoa mentalmente perturbada cometeriaum homicídio ilustra o uso de um conceito legal como uma nor-ma de saúde mental. Em reSMmo,quando arém fala de doençamental, a norma à ual o deSVIOe com ara o. e um. adrâo Sl.-cossocial e ético. Contudo, o medicamento é rocurado emmos ·de medidas mé zcas que - se espera e se supõe - são li-vres da. vasta gama de valores éticos. Desse modo, a definição

e os termos ns quais se pesquisa a cura da perturbação diferembastante. O significado prát ico desse dissimulado conflito entre aalegada natureza da falha e a cura real só dificilmente poderia serexagerado.

Tendo identificado as normas usadas para medir os desviosnos casos de perturbação mental, voltemo-nos para a questão:quem define as normas e os conseqüentes desvios? Duas res-postas básicas podem ser oferecidas: primeiro, pode ser a pró-pria pessoa - isto é, o paciente - quem decide se se desvia deuma norma.; por exemplo, um artista pode acreditar que sofrede uma inibição para o trabalho e pode corroborar essa conclu-são procurando, ele .próprio, a . ajuda de um psicoterapeuta. Oupode ser outra pessoa, que não o "paciente", quem decide se este

é perturbado - por exemplo, os parentes, médicos,. autoridades

O MITO DA DOENÇA MENTAL 23

t ser rocura a numa esr utura medica. Isso cria uma situa-ao na qua se a Irma ue os esvlos SICO ci' ., .s ~ i

,QQill'm ser corrigidos pela ação médica. Já que as intervenções ~~médicas são designadas- para curar somente problemas médicos, ~ ~

12 Ver T. S. Szasz: The Ethics of Psychoanalysis: The Theory and ~Method of Autonomous Psychotherapy, (Nova York: Basic Books, 1965). ~(Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título A Ética da Psicaná-lise; Rio, 1975.) .18 Ver T. S. Szasz: Law, Liberty, and Psychiatry: An Inquiry into lheSocial Uses of Mental Health Practices, (Nova York: Macrnillan, 1963).

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24 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

logicamente é absurdo esperar que resolvam problemas cuja exis-tência tem sido definida e estabelecida em bases não médicas.

IV

Qualquer coisa que as pessoas fa ça m - em contraste com o

que Ihes aconteça'» - tem lugar num contexto de valores.Assi~, nenhuma atividade humana é desprovida de implicaçõesmorais. Quando os valores que sustentam certas atividades sãolargamente compartilhados, quem deles participam não raro osperde de vista. A discipina da Medicina - tanto como ciênciapura (por exemplo, a pesquisa), como enquanto ciência aolicadaou tecnológica (por exemplo, terapia) - contém muitas conside-rações e julgamentos éticos. Infelizmente, esses são freqüentemen-t~ ~egad?s.' minimizados ou obscurecidos, porque o ideal da pro-fissão médica, bem .•como das pessoas a quem serve, é ter um siste-ma de atenção médica ostensivamente isento desses valores. Essanoção sentimental é expressa por fatores tais como o desejo domédico de tratar todos os pacientes a despeito de sua religião ou

credo político. Mas tais afirmações só servem para obscurecer ofato de que as considerações éticas enzlobam uma vasta série dequestões humanas. Tornar a prática m~dica neutra com respeito aalgumas questões específicas de valor moral (tais como raça ousexo) não deve querer dizer, e sem dúvida não significa, que issopossa ocorrer quanto a outras questões morais (tais como contro-le da natalidade ou regulamentação de relações sexuais). Assim,controle da natalidade, aborto, homossexualismo, suicídio e euta-násia continuam a representar problemas importantes para aética médica.

A Psiquiatria está muito mais intimamente relacionada aosproblemas éticos que a Medicina em geral. Utilizo aqui a palavra"Psiquiatria" para me referir à disciplina contemporânea concer-

nente aos problemas existenciais, e não às doenças cerebrais, per-tencentes à ~ eurolo~a. f\s dificuldades nas rela1ões humanas 0-

dem ser. analisadas terpr.etad o das de slgmÍica o somen-te dentro de contextos sociai _ét ic o s ~ § p e d f u : n . s .. . nalogamente,as orienta ões sócio-" s do iguiatra influenciarão suas opiniõesso re o que há de errado o aciente, o ue merece comen-tário ou 11 1 er retação, em ue dire ões a mudan a serra des~já-v 1, e assim por iante. Mesmo na própria Medicina esses fato-res têm um pape, ilustrados pelas orientações divergentes que os

14 R. . Peters: The Concept 01 Motivation, (London: Routledge &K un Paul, 1958), especialmente pp. 12-15.

o MITO DA DOENÇA MENTAL 25

médicos, dependendo de sua filiação religiosa, têm com relação acoisas tais como o controle da natalidade e o aborto terapêutico.Alguém poderá realmente acreditar que as idéias do psícoterapeu-ta sobre religião, política e questões correlatas não exercem umpapel em seu trabalho prático? Se, por outro lado, têm importân-cia, que devemos inferir disto? Não parece razoável que talvez

devêssemos ter diferentes terapias psiquiátricas - cada uma delasreconhecida pelas posições éticas que incorpora - para, por exem-plo, católicos e judeus, religiosos e ateus, democratas e comunis-tas, racistas e negros, e assim por diante? De fato, se olharmospara o modo como a Psiquiatria é praticada atualmente, sobretu-do nos Estados Unidos, veremos que as intervenções psiquiátricasque as pessoas procuram e recebem dependem mais de seu statussócio-econômico e credos morais do que das "perturbações men-tais" de que ostensivamente sofrern.P Esse fato não deveria cau-sar surpresa maior do que o fato de católicos praticantes rara-mente freqüentarem clínicas de controle da natalidade, ou cien-tistas cristãos pouco consultarem psicanalistas.

vA posiçao delineada acima os psicoterapeutas contemporâ-

neos lidam com problemas existenciais, não com doenças mentais esuas curas - está em agudo contraste com a posição hoje preva-lente - os psiquiatras tratam de doenças mentais, que são tão"reais" e "obj etivas" como as doenças físicas. Suponho que os de-fensores da última hipótese não têm qualquer evidência para justi-ficar sua afirmação, que é na realidade uma espécie de ro a an-da psiquiátrica: seu objetivo é criar na mentalidade popu ar umaconvicção de que a doença m~ntal é um tipo de entidade patológi-_ca, como uma infec.Ção ou moléstia. Se fosse verdade oder-se-ia.f!:P .. a nh ar o u c on tr ai r uma doença mental, poder-se-ia te r ou ac~ .-

llU'r oder-se-ia transmiti-Ia para outros, finalmente, po er-se-talL V ra r dela. Não somente nã o FiáUrI .1 miríimo e-êViUênclas parasustentar essa idéia. como pelo contrário, todas as evidências apon-tam o ponto de vista contrário: ue o ue 110' e as essoas cha-mam de doen as mentais são em ran e arte C0111,Um ca çõe s, ex-pressando jdéias inaceitáveis fre üentemente or anizadas. entrode uma linguagem incomum.

Esse não e o lugar iTIãís adequado para considerar em deta-lhes as semelhanças e diferenças entre as doenças mentais e fisi-as. É suficiente enfatizar que. enquanto o termo "doença física"

15 A. B. Hollingshead e F. C. Redlich: Social Class and Mental Illness,(Nova York: Wiley, 1958).