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HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA MUNDO PANGEA MUNDO PANGEA MUNDO PANGEA MUNDO PANGEA MUNDO PANGEA MUNDO U DESBRAVANDO A LITERATURA DA AMAZÔNIA ANO 1 Nº 4 AGOSTO/2005 TIRAGEM: 25 000 EXEMPLARES Encontraremos ali escritores que, em diálogo direto com o Naturalismo, irão representar o homem da região subjugado pela floresta – um “personagem” recorrente na literatura amazônica. Um exemplo dessa forma de fic- ção é o paraense Inglês de Souza e sua obra mais conhe- cida, O missionário. Ainda no Pará, mas escapando radi- calmente das imposições da estética naturalista, um im- portante escritor criou um grande painel sobre a vida do homem amazônico em dez romances: Dalcídio Jurandir. Outros escritores paraenses dignos de nota são o roman- cista Benedito Monteiro, o poeta Max Martins e o escri- tor Haroldo Maranhão. Já no estado do Amazonas, também muito distantes do Naturalismo, podemos citar os escritores contempo- râneos Márcio Souza, que em seus vários romances utili- za a paródia e a sátira para recontar ficcionalmente a his- tória da Amazônia, e Milton Hatoum, um premiado ro- mancista que abordou, em Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, a comunidade de origem libanesa radicada em Manaus. A poesia também marca presença, com Thiago de Melo e Luís Bacelar, entre outros. Ao final desse nosso brevíssimo passeio pela literatu- ra nacional, vamos descobrir que precisamos redescobrir continuamente o nosso país ou, como dizem os versos da canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, que “o Brasil não é só litoral / é muito mais é muito mais do que qualquer zona sul”. José Alonso Tôrres Freire m breve panorama sobre a literatura brasileira mais conhecida mostrará que alguns cenários são recorrentes, ou seja, quase todos os clássicos – aquelas obras lidas em classe e sempre lembradas nos vestibulares – são ambien- tados próximos ao litoral ou em lugares centrais do país. Assim, estamos acostumados a passear pelo Rio de Janeiro de Machado de Assis, pelos pampas de Érico Veríssimo, pelo sertão castigado pela seca, em Graciliano Ramos, ou pleno de símbolos, em Guimarães Rosa. Cada um desses autores, à sua maneira peculiar, captou figuras e situações ligadas a esses lugares específicos, ainda que a grande mai- oria tenha conseguido representar conflitos humanos uni- versais. Até aí não há grandes novidades, já que sabemos que a ocupação mais intensa do Brasil deu-se a partir dos primeiros colonos portugueses estabelecidos no litoral, sen- do natural que as primeiras explorações literárias do país tenham se restringido às áreas mais próximas dali. No entanto, nesse rápido passeio pela literatura que, afinal, chamamos de brasileira, parece haver uma lacuna muito grande em relação a outras regiões do país. Duas perguntas nos ocorrem: será que só essas pequenas par- celas do país despertaram o interesse dos nossos escrito- res? E as outras regiões, com seus problemas, persona- gens e conflitos característicos? Ao pesquisar essas questões vamos descobrir que, aos poucos, junto com a ocupação mais sistemática do inte- rior do país, também foi se construindo um sistema lite- rário – produção, circulação e leitura regulares – distante do litoral e dos centros tradicionais de cultura; uma lite- ratura preocupada em representar facetas diferentes da- quelas com as quais estamos mais familiarizados. Assim, encontramos uma intensa vida literária fora desses âmbi- tos mais conhecidos, uma literatura que, por exemplo, vai representar ficcionalmente os conflitos específicos da ocupação da região vasta que é a Amazônia, com dois grandes limites: de um lado o rio enorme e de outro a grande floresta. A ocorrência e a repetição de alguns temas nessa fic- ção merecem destaque: a destruição das culturas indíge- nas e os grandes e desastrados projetos de modernização na Amazônia – como a Ferrovia Madeira-Mamoré; a ilu- sória riqueza proporcionada pela breve valorização da borracha, que produziu tanto a escravização de trabalha- dores quanto monumentos como o Teatro Amazonas; a implantação da Zona Franca em Manaus e a exploração desordenada da floresta. José Alonso Tôrres Freire é professor de literatura brasileira. ([email protected]) Curiosamente, um dos maiores romances da literatura portuguesa do século XX tem como tema e cenário a flo- resta amazônica. Publicado em 1930 por Ferreira de Cas- tro (1898-1974), o livro “A Selva” conta a história de um jovem advogado português, exilado, por questões políti- cas, no norte do Brasil. No início do século, em pleno auge do ciclo da borracha, ele viaja de Belém para Manaus, e depois para o seringal “Paraíso”, no interior da floresta, onde uma perigosa e intensa história de amor serve de pano de fundo para a denúncia das condições desumanas do tra- balho dos seringueiros (a grande maioria composta por nordestinos aliciados à força no sertão cearense), em con- traste com a riqueza perdulária dos grandes barões da bor- racha. O livro deu origem a um filme de mesmo nome, lançado em 2005, em co-produção luso-brasileira, com Diogo Morgado e Maitê Proença. Milton Hatoum faz parte de uma geração de autores que escreve sobre o cotidiano dos amazônidas; ao lado e abaixo: a presença marcante do rio Uma selva abala Portugal Tr ek Earth Divulgação Trek Earth

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DESBRAVANDO ALITERATURA DA AMAZÔNIA

■ ANO 1 ■ Nº 4 ■ AGOSTO/2005 ■

TIRAGEM: 25 000 EXEMPLARES

Encontraremos ali escritores que, em diálogo diretocom o Naturalismo, irão representar o homem da regiãosubjugado pela floresta – um “personagem” recorrentena literatura amazônica. Um exemplo dessa forma de fic-ção é o paraense Inglês de Souza e sua obra mais conhe-cida, O missionário. Ainda no Pará, mas escapando radi-calmente das imposições da estética naturalista, um im-portante escritor criou um grande painel sobre a vida dohomem amazônico em dez romances: Dalcídio Jurandir.Outros escritores paraenses dignos de nota são o roman-cista Benedito Monteiro, o poeta Max Martins e o escri-tor Haroldo Maranhão.

Já no estado do Amazonas, também muito distantesdo Naturalismo, podemos citar os escritores contempo-râneos Márcio Souza, que em seus vários romances utili-za a paródia e a sátira para recontar ficcionalmente a his-tória da Amazônia, e Milton Hatoum, um premiado ro-mancista que abordou, em Relato de um certo Oriente eDois irmãos, a comunidade de origem libanesa radicadaem Manaus. A poesia também marca presença, comThiago de Melo e Luís Bacelar, entre outros.

Ao final desse nosso brevíssimo passeio pela literatu-ra nacional, vamos descobrir que precisamos redescobrircontinuamente o nosso país ou, como dizem os versos dacanção de Milton Nascimento e Fernando Brant, que “oBrasil não é só litoral / é muito mais é muito mais do quequalquer zona sul”.

José Alonso Tôrres Freirem breve panorama sobre a literatura brasileira maisconhecida mostrará que alguns cenários são recorrentes,ou seja, quase todos os clássicos – aquelas obras lidas emclasse e sempre lembradas nos vestibulares – são ambien-tados próximos ao litoral ou em lugares centrais do país.Assim, estamos acostumados a passear pelo Rio de Janeirode Machado de Assis, pelos pampas de Érico Veríssimo,pelo sertão castigado pela seca, em Graciliano Ramos, oupleno de símbolos, em Guimarães Rosa. Cada um dessesautores, à sua maneira peculiar, captou figuras e situaçõesligadas a esses lugares específicos, ainda que a grande mai-oria tenha conseguido representar conflitos humanos uni-versais. Até aí não há grandes novidades, já que sabemosque a ocupação mais intensa do Brasil deu-se a partir dosprimeiros colonos portugueses estabelecidos no litoral, sen-do natural que as primeiras explorações literárias do paístenham se restringido às áreas mais próximas dali.

No entanto, nesse rápido passeio pela literatura que,afinal, chamamos de brasileira, parece haver uma lacunamuito grande em relação a outras regiões do país. Duasperguntas nos ocorrem: será que só essas pequenas par-celas do país despertaram o interesse dos nossos escrito-res? E as outras regiões, com seus problemas, persona-gens e conflitos característicos?

Ao pesquisar essas questões vamos descobrir que, aospoucos, junto com a ocupação mais sistemática do inte-rior do país, também foi se construindo um sistema lite-rário – produção, circulação e leitura regulares – distantedo litoral e dos centros tradicionais de cultura; uma lite-ratura preocupada em representar facetas diferentes da-quelas com as quais estamos mais familiarizados. Assim,encontramos uma intensa vida literária fora desses âmbi-tos mais conhecidos, uma literatura que, por exemplo,vai representar ficcionalmente os conflitos específicos daocupação da região vasta que é a Amazônia, com doisgrandes limites: de um lado o rio enorme e de outro agrande floresta.

A ocorrência e a repetição de alguns temas nessa fic-ção merecem destaque: a destruição das culturas indíge-nas e os grandes e desastrados projetos de modernizaçãona Amazônia – como a Ferrovia Madeira-Mamoré; a ilu-sória riqueza proporcionada pela breve valorização daborracha, que produziu tanto a escravização de trabalha-dores quanto monumentos como o Teatro Amazonas; aimplantação da Zona Franca em Manaus e a exploraçãodesordenada da floresta.

José Alonso Tôrres Freire é professor deliteratura brasileira. ([email protected])

Curiosamente, um dos maiores romances da literaturaportuguesa do século XX tem como tema e cenário a flo-resta amazônica. Publicado em 1930 por Ferreira de Cas-tro (1898-1974), o livro “A Selva” conta a história de umjovem advogado português, exilado, por questões políti-cas, no norte do Brasil. No início do século, em pleno augedo ciclo da borracha, ele viaja de Belém para Manaus, edepois para o seringal “Paraíso”, no interior da floresta,onde uma perigosa e intensa história de amor serve de panode fundo para a denúncia das condições desumanas do tra-balho dos seringueiros (a grande maioria composta pornordestinos aliciados à força no sertão cearense), em con-traste com a riqueza perdulária dos grandes barões da bor-racha. O livro deu origem a um filme de mesmo nome,lançado em 2005, em co-produção luso-brasileira, comDiogo Morgado e Maitê Proença.

Milton Hatoumfaz parte de umageração deautores queescreve sobre ocotidiano dosamazônidas; aolado e abaixo: apresençamarcante do rio

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ALGUMAS LINHAS BRASILEIRAS NA SEGUND

em seu próprio país, negociou com os aliados, em 1942, aentrada no conflito, depois de vários de seus ministros (in-cluindo o da justiça e o da guerra) terem demonstradosimpatia pelo lado alemão. O afundamento de vários na-vios na costa brasileira, ação dos temidos submarinos ale-mães, também pesou na opinião pública, antes mesmo dea propaganda oficial jurar vingança. O saldo do acordocom os Estados Unidos foi o financiamento da Compa-nhia Siderúrgica Nacional, além do aparelhamento dasforças brasileiras que partiriam para lutar na Itália.

“Enquanto a guerra se resumia em tiros que passavampelo alto, tudo era suportável. Mas depois que alguém que seconhece é ferido e se vê o ferimento e as suas prováveis conse-qüências, começa-se a sentir mais fundamente o sentimentode revolta. E chega-se à conclusão de que não há nada quejustifique essa chacina. Tudo o que se diz não passa de pala-vras ocas. Aqui, mais que em qualquer lugar, dou valor àvida humana. (...) Quantos, senão todos, estão aqui semsaber por quê, são feridos, sacrificados, mortos sem teremconsciência de nada. (...) Sacrifício inútil que nada resolve-rá. Mais ainda. Vai animalizando o homem. Tornam-noverdadeiro caçador, sem sentimentos, que tem prazer em caçaro seu semelhante. Foi o que vi ontem. Um desejo incontrolávelde atirar para matar. Será que haverá justificativa para tudoisso?” [Trecho do diário do Dr. Massaki Udihara, no livro“Um médico brasileiro no front”, IOSP, 2002]

O recrutamento para a FEB (Força ExpedicionáriaBrasileira) reuniu mais de 25 mil soldados, ou “praci-nhas”, como eram chamados pela população.Inexperientes e mal treinados, eles eram entretanto umretrato do Brasil: muitos mal sabiam ler, outros apresen-tavam graves deficiências alimentares. Os duros relatóri-os americanos sobre as tropas brasileiras, reproduzidosno livro de William Waack, “As duas faces da glória” (NovaFronteira, 1985), criticam a falta de organização, a arro-gância dos oficiais superiores e a falta de cuidado com oequipamento, mas também ressaltam o bom-humor e ocompanheirismo dos soldados, que enfrentavam comcriatividade as agruras da batalha e do inverno europeu.

Vivendo a guerra sem guerra

os livros tradicionais de história, as guerras geralmen-te são apresentadas com uma profusão de números, da-tas e mapas. O país tal lutou com o país tal, em tal ano,por isso e aquilo, com tal número de mortos e feridos etais conseqüências para a política e a economia mundial.Conhecimento importante e necessário, mas que podeafastar o leitor de um elemento presente em toda guerra,que deixa marcas profundas na vida de inúmeras pesso-as, mas que escapa ao resumo frio e objetivo dos manu-ais: o sofrimento humano.

O que a história cala ganha voz, rosto e cor na litera-tura, nos diários e mesmo nas reportagens enviadas docampo de batalha. Em vez das narrativas oficiais, que sem-pre exaltam o patriotismo nas vitórias e o heroísmo nasderrotas, esses textos estão repletos de dúvida e dor, colo-cando em questão o próprio sentido da guerra, muitasvezes perdido em meio à batalha, principalmente aos olhosdos batalhões de soldados que avançam pela linha de fren-te, em meio a uma paisagem de destruição, pequenasbandeirinhas coloridas nos mapas lidos pelos generais.

“Sou apenas um homem em face da montanha. Fui medespojando de outros atributos, simplificando-me ao extre-mo, até ficar reduzido a esta condição. As formalidades einjustiças da vida militar; a promiscuidade do navio-trans-porte, com suas filas, seus catres com gente vomitando, comas latrinas em que os homens se sentavam frente a frente; asimpressões de guerra e de miséria, a prostituição e a mendi-cância exercidas em profusão; os extremos de degradação tor-nando-se fato normal e cotidiano; tudo isso me reduziu amero espectador, mecânico e passivo, cuja vida se limita acalcular tiros que serão enviados contra a montanha”. [Tre-cho do romance “Guerra em Surdina” (CosacNaify,2004), de Boris Schnaiderman]

Uma dessas bandeirinhas, de cor verde e amarela, foicolocada no mapa da Segunda Guerra Mundial em julhode 1944, na frente italiana de confronto com as forças doEixo, junto aos Montes Apeninos. A entrada tardia do Brasilna guerra é ainda hoje alvo de polêmica. O governo Getú-lio Vargas, não propriamente um defensor da liberdade

Jorge de AlmeidaEditor de H&C

Embora longe do palco central dos combates, a população brasileira se mobilizou, a partir da declaração de guerra de1942, para enfrentar possíveis ataques alemães ao território nacional. Enquanto na cidade de Natal uma base militaramericana vigiava o Atlântico Sul, apoiando também a luta contra os alemães pelo domínio do norte da África, o resto dopaís se engajava no esforço de guerra, exaltado como um dever cívico pela propaganda do Estado Novo.

Em seu livro “Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial”(EDUSP, 2000), Roney Cytrinowicz relata os exercícios de blecaute, as aulas sobre organização militar, a vigilânciacompleta nas cidades costeiras e a doação de metal para a indústria de armamentos. Havia também escassez de algunsitens normalmente importados, como o trigo e a gasolina, o que levou ao racionamento e à busca de substitutos nacio-nais, como o milho, no caso do pão, e o álcool, para os veículos.

Com a orientação do professor, pesquise nos arquivos de jornais antigos de sua cidade as notícias sobre o conflito,entrevistando também pessoas que viveram, no Brasil ou na Europa, a experiência da Segunda Guerra. Em seguida,escreva uma dissertação sobre o tema, lembrando de trocá-la com os colegas, ao final da pesquisa.

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AGOSTO 2005

HC-3 HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA

NDA GUERRA

“Era preciso que a gente aí do Brasil assistisse a umadistribuição de correspondência aqui para ver quanto valeuma carta. “Chegou correio” é uma frase que mobiliza maisgente que qualquer ordem de general aliado ou inimigo. Acara do sujeito que não recebe carta nesse dia é uma cara denáufrago. O sujeito se sente abandonado numa ilha deserta– e nunca faltam outros sujeitos que, sem ligar para a suaamargura, ainda vêm lhe mostrar fotografias que receberamou ler trechos de cartas que acham muito engraçadas oucomoventes – e que não comovem nem fazem rir de modonenhum o pobre esquecido”. [Trecho de “Com a FEB naItalia” (Cia Editora Nacional, 1946), do grande cronistaRubem Braga]

As primeiras ações militares brasileiras, no final de1944, foram desastrosas. Em um conflito próximo à ci-dade de Barga, e nos dois primeiros ataques às tropas

Senta a pua! A FAB na Itália

espaço para os russos, a leste, enquanto as tropas america-nas avançavam pelo oeste. Na Itália, frente menos impor-tante, as cansadas e desestruturadas tropas alemãs recebe-ram a ordem de resistir, impedindo o avanço dos aliadospelo Vale do Pó. No final de fevereiro, uma ofensiva daDécima Divisão de Montanha dos americanos avançourapidamente pelos Apeninos, e o temido Monte Castellofinalmente foi tomado pelas tropas brasileiras. Nos mesesseguintes, a “Ofensiva da Primavera” consolidou o avançoda FEB em Montese e Piacenza, com a rendição cada vezmais freqüente das tropas alemãs, que antecipavam a capi-tulação final da Alemanha, em 7 de maio.

“O pequeno cemitério de Castelnuovo, que os brasileirosconquistaram anteontem juntamente com o morro e o povo-ado, tem agora mais um residente fixo. Trata-se de um sol-dado alemão que os pracinhas encontraram bastante feridoe que morreu enquanto recebia os primeiros socorros. Nossoshomens cavaram uma cova no cemitério, deixaram lá o cor-po enrolado numa manta, espetaram uma cruz improvisa-da em cima. Dependurados na cruz, deixaram os objetosque poderiam mais tarde identificar o alemão morto: a cor-rente e a chapa metálica com o número militar e o seu tipode sangue. (...) Indaguei de alguns pracinhas o porquê detanto cuidado com o inimigo morto – talvez ele fosse um dostantos alemães que na véspera matara ou tentara matar umdeles. A resposta veio rápida: - Vamos deixar o pobre empaz. Morreu e acabou-se”. [Trecho do livro “O inverno daguerra” (Objetiva, 2005), que reúne reportagens do jor-nalista Joel Silveira]

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alemãs entrincheiradas sobre o Monte Castello, os solda-dos brasileiros ficaram impiedosamente expostos à arti-lharia inimiga. Sem a coordenação necessária e em posi-ção tática inferior, mas estimulados pelos oficiais a avan-çar a todo custo, os pracinhas sofreram duros reveses.Nessas operações, o saldo de baixas (termo militar paracontabilizar mortos e feridos) foi de 350, contra 24 bai-xas alemãs. Números que não dizem o suficiente, masdizem bastante. A chegada do inverno trouxe uma relati-va calma a esse cenário, interrompida apenas pelos cons-tantes combates entre patrulhas.

“Mas como eu ia dizendo, entre o nosso pessoal reinavauma grande camaradagem. E é engraçado. No meio daque-la desgraça toda, essa camaradagem era um troço muitobacana. (...) E acho que se não fosse essa camaradagem agente virava animal mesmo, porque aquilo tudo que a genteestava fazendo era um troço muito feio. Demais de feio. E ocaso é que a gente ia endurecendo. Feito eu e o Miranda;pegamos carona num caminhão e viajamos mais de umahora numa daquelas andanças que a gente fazia de à-toaquando o front estava parado. E lá pelas tantas ficamos comfome, tiramos a ração K da patrona e fomos comendo, co-mendo e conversando, o chão do caminhão forrado de cadá-veres em mau estado que eles iam levando para enterrar,tudo gelatinoso chacoalhando batendo nas pernas da gen-te”. [Trecho de “Mina R” (Record, 1995), de Roberto deMello e Souza]

O ano de 1945 começou com a expectativa de um fi-nal próximo para a guerra na Europa. Os alemães perdiam

o contrário dos pracinhas, os 49 aviadores que formaram o esquadrãode caça da Força Aérea Brasileira eram todos voluntários. Pilotos jovens,mas experientes, receberam treinamento americano nos Estados Unidos eno Panamá, antes de partirem, em outubro de 1943, para o norte da Itá-lia, combatendo com habilidade e coragem ao lado dos americanos doXXII Comando Aéreo Aliado.

Sobre a participação desses pilotos na Segunda Guerra há um excelen-te documentário de Erik de Castro (1999), intitulado “Senta a pua!”, lemados aviadores brasileiros. No filme, acompanhamos o depoimento dosoficiais da FAB, hoje aposentados, que relembram as dificuldades, as vitó-rias e o desafio de cada confronto com as tropas alemãs.

O documentário traz ainda as impressionantes cenas reais dos ata-ques, filmadas por câmeras acionadas automaticamente a cada disparo.Enquanto os pilotos americanos eram liberados e substituídos após cin-qüenta missões, alguns brasileiros, que não tinham substitutos treinados,chegaram a cumprir, nos 184 dias de operação, quase cem missões cadaum, enfrentando a terrível estatística de três mortos por mês. Vários fo-ram abatidos atrás das linhas inimigas, sendo tomados como prisioneirosou retornando, com enorme dificuldade, até território aliado.

No comando de seus P-47 “Thunderbolt”, armados com bombas emetralhadoras, os pilotos brasileiros realizaram missões de ataque no Vale do Pó, então sob o domínio dos alemães.A ordem era atirar em tudo o que se movesse: trens, carros, tanques e tropas; sempre fugindo das saraivadas de fogoanti-aéreo, que até o final da guerra abateram 22 dos 48 aviões utilizados pela FAB.

Quando perguntado sobre o medo, um dos brigadeiros responde, com voz segura: “há o medo de morrer, mas hátambém o medo de matar”. Isso explica a mensagem final do filme, uma citação do livro “Missão de Guerra”, doBrigadeiro Luiz Felipe Perdigão: “Os pais e avós que somos hoje queremos repudiar àquelas missões pelo mal quecausaram, pois morte e destruição era a mensagem que se levava diariamente sob as asas. Sim, queremos quaserepudiá-las, mas o que volta sempre é a euforia daqueles momentos vibrantes e singelos, o prazer de reconquistar acada dia o direito de viver mais vinte e quatro horas; a tranqüilidade de voar, com um amigo ao alcance de cada asa,viver com um irmão ao alcance de cada braço”.

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HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA

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UMA HISTÓRIA QUE DÁ SAMBA:O TRABALHO NO BRASIL

Carlos Pires

Em Pedreiro Valde-mar, do mesmo autor,o trabalho regular e co-tidiano é tratado comouma armadilha: Vocêconhece o Pedreiro Val-demar? / não conhece,mas eu vou lhe apresen-tar / De madrugadatoma o trem na circular/ faz tanta casa e nãotem casa pra morar.

Com o EstadoNovo, em 1937, mo-

mento em que Getúlio Vargas fecha o Con-gresso Nacional e passa a governar com po-deres ditatoriais, o DIP (Departamento deImprensa e Propaganda) passa a exercer umcontrole maior sobre a cultura em geral e osamba em particular. Os sambas que apre-sentam uma visão parecida com as mencio-nadas acima são censurados e o governo co-meça a encomendar músicas que falem bemdas questões nacionais.

O próprio Wilson Batista, talvez numademonstração de prudência - muitos ar-tistas foram presos e perseguidos - com-pôs com Ataulfo Alves, em 1940, “O bon-de São Januário”:Quem trabalha é que temrazão / Eu digo e não tenho medo de errar /O bonde São Januário / leva mais um ope-rário / Sou eu que vou trabalhar / Antiga-mente eu não tinha juízo / mas resolvi ga-rantir meu futuro / sou feliz, vivo muito bem/ a boemia não dá camisa a ninguém.

O Estado Novo forçou uma transfor-mação de cima para baixo na forma de seencarar o trabalho. Diante da necessidadede uma rápida modernização visando a umalinhamento com as grandes potênciascapitalistas, sem se preocupar porém comos abismos cada vez mais fundos entre umBrasil pobre e arcaico e um Brasil que seindustrializava, o governo Vargas tentavaintegrar esses diferentes aspectos do paíspela via ideológica, usando os modernosveículos de comunicação. Nesse sentido,o rádio e os sambas que enalteciam o paísforjaram, ainda que de maneira artificial,uma certa identidade da nação, que aindahoje ecoa na música popular brasileira.

om o final da escravidão no Brasil, em1888, os ex-escravos não foram imediata-mente integrados à sociedade. Alguns con-tinuaram trabalhando nos seus anti-gos cativeiros em troca de moradia e co-mida, outros foram tentar a vida à mar-gem das cidades, nas poucas oportunida-des que sobravam.

Um dos primeiros pontos de contatoentre esses dois âmbitos da vida social sedeu nas festas de rua, principalmente nocarnaval. Entre várias manifestações demúsica popular, o samba foi se constituin-do como um elemento de identidade, pri-meiramente entre negros e mestiços, atre-lado à dança e praticado geralmente nosquintais das casas, de forma clandestina.

No início do século XX, o samba vaiassumindo lentamente um novo estatuto.A necessidade de constituição de uma cul-tura de massas por meio das emissoras derádio fez com que esse ritmo marcadamen-te nacional virasse uma de suas principaisatrações. Com a revolução de 1930, quepõe fim à hegemonia da burguesia do café,e com o processo de aceleração do desen-volvimento industrial, um novo estratosocial, a classe trabalhadora, começa a terum maior papel sócio-político. O samba,no contexto da Era Vargas (1930-1954)vira um forte elemento na criação de umaidentidade nacional.

Um tema, o trabalho, chama a atençãoem toda essa história. O trabalho foi vistodurante toda a colônia, até a abolição, comoalgo relacionado ao escravo, portanto de-gradante para o homem livre. Enquanto otrabalho era elevado ao grau máximo dadignificação humana nos países centrais docapitalismo, aqui roubava a humanidadedo trabalhador, pois um escravo era objetode posse de seu senhor, objeto de que osenhor podia dispor da maneira que bementendesse. Trabalhar, nesse contexto, erase identificar com o que não tem um esta-tuto propriamente humano.

Com o fim da escravidão, o processode adaptação da jovem nação brasileira àforma de trabalho praticada nos centroscapitalistas foi lento. Muitos dos primei-ros sambas retratam o trabalho negativa-mente, como algo que roubará a vida dequem cair nas suas malhas, como porexemplo O que será de mim, samba de1931: Se eu precisar algum dia / de ir pro

batente / não sei o que será / Pois vivo namalandragem / e vida melhor não há. Naúltima estrofe, o samba nega a ideologiaeuropéia do trabalho que dignifica ohomem:O trabalho não é bom / ninguémpode duvidar / trabalhar só obrigado / porgosto ninguém vai lá .

A figura do malandro que vive de pe-quenos golpes se opõe à do trabalhador queacorda cedo, trabalha e nunca sai do “miserê”como em “Lenço no pescoço”, de WílsonBatista: Sei que eles falam / deste meu proce-der. / Eu vejo quem trabalha / andar no miserê/ eu sou vadio / porque tive inclinação.

O Instituto Moreira Salles apresenta em seu site, www.ims.com.br, um grande acervomusical onde é possível ouvir todas as músicas citadas nesta matéria. O acervo coloca àdisposição do internauta a coleção do importante crítico e historiador musical José RamosTinhorão, que, ao longo de 50 anos de atividade ininterrupta na imprensa, colecionoujornais, revistas, gravações e discos fundamentais para a compreensão da música popularbrasileira. Com o auxílio da Internet, pesquise outras canções, antigas e mais recentes, quetêm como tema as figuras do malandro e do trabalhador, inserindo-as em seu contextohistórico e apresentando o resultado aos colegas, na forma de um programa de rádio.

Carlos Pires é professor de literaturano Ensino Médio e mestrando em

Teoria Literária na USP

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