Todos os esforços do enviado da UNESCO Era o ano de 1917 e ... · Reportando ao relatório da...

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6 opinião TERÇA 5.12.2006 opinião 7 TERÇA 5.12.2006 hojemacau este o código que identifica na cartografia internacional a posição de um auxílio à navegação denominado Guia, identificável por dois clarões consecutivos de luz branca que se repetem num período de 10 segundos, à altitude de 108m e com um alcance de 16 Milhas Náuticas. Aquilo com que o piloto de um navio conta nesta costa, na eventualidade de todos os modernos auxílios à navegação e de posi- cionamento falharem. Este farol foi desenhado por um português nascido em Macau, Carlos Vicente da Rocha, e foi completado a 24 de Setembro de 1865. É o mais antigo farol do Oriente e tem estado sempre ope- racional desde que foi construído. Ele também inspirou quem estava do lado de terra. Personificando-o, um heterónimo de Macau, Maria Monte, no caderno “parágrafo“ em 6 de Ou- tubro de 1995 do Jornal Ponto Final, disse: [...] Desde há muito que a cidade se habituou a galgar- me e a percorrer-me as encostas, até se aproxima- rem da minha torre branca. Fui durante décadas o timoneiro dos perdidos ... Orientava os navegantes nas águas do Rio em busca do porto da deusa Ama ... An’magao ... ‘...tão jovem, que jovem era. Agora, que idade tem? Hoje, estou perdido entre as construções de cimento que me escondem ... De vez em quando sou visto entre os prédios e, nessa altura, luzo desesperadamente ... hipnotizado pelos meus clarões ... Sou fiel à identidade do meu passado ... Por isso, também às vezes irrompo por entre as casas dos prédios e das torres enormes que me sufocam ... Basta ... Hoje decidi que vos quero entrar ... e saber-vos dentro de portas ... ‘Arre ... vou existir, exi ... stir!’ [...] Em 8 de Setembro de 2006, o deputado Au Kam San apresenta uma interpelação escrita na Assembleia Legislativa da RAEM no seguimento da divulgação do levantamento das restrições impostas à altura das construções no sopé da Colina da Guia, podendo a altura máxima das construções previstas passar a ser pontualmente Fl(2) W 10s, 108m 16M, Guia É CHAVEZ POR MAIS 6 ANOS Mário Duque* [email protected] 135 metros e no geral variar entre os 90 e os 99,9 metros de altura. Por ser notório [...] que a Colina da Guia é um traço essencial da “fisionomia” de Macau e no pres- suposto de que a altura máxima das construções não devem ultrapassar a sua visão, nomeadamente o seu farol que assenta numa plataforma a 91,80 metros de altitude e se desenvolve em 15 metros de altura. Foi o primeiro do género no Sul da China, o símbolo de Macau, enquanto cidade litoral, e por isso não poderia deixar de estar integrado no Centro Histórico de Macau que entretanto figura na Lista do Património Mundial. Reportando ao relatório da comissão de avalia- ção que recomendou a inclusão do Centro Histórico de Macau no acervo do património mundial, também se disse que foi [...] a estratégica localização de Macau no território chinês, e a relação especial estabelecida, o que favoreceu a importante troca de valores humanos em vários campos da cultura, ciência, tecnologia, arte e arquitectura durante vá- rios séculos. Foi isto que constou na recomendação do comité ao inscrever esta candidatura no critério ii da Convenção. Do conjunto que compõe o Centro Histórico de Macau obviamente que nada é mais expressivo da posição estratégica de Macau que o seu farol. E a interpelação na AL dirigiu-se exactamente [...] se em nome da satisfação das necessidades do desenvolvimento urbano, tudo vale a pena, mesmo em prejuízo da “fisionomia” urbana que faz a diferença desta cidade em relação a outras cidades modernas, para ser assim invadida por tal “floresta de betão”. De todos estes termos aqui reunidos é capaz de fazer sentido a seguinte retrospectiva: No final dos anos 50, o Egipto necessitava de- sesperadamente de energia eléctrica e de assegurar o abastecimento regular de água para fazer face ao surto demográfico de meados do século XX. A construção de uma segunda barragem em Assuão era eminente, assim como era iminente a submersão de dezenas de templos e lugares arqueológicos da região Numbiana nas águas do lago artificial formado pela nova barragem. Nessa altura o fenómeno mediático não tinha a mesma propagação que tem hoje, mas mesmo assim a ocorrência mereceu a atenção da imprensa do mundo inteiro e naturalmente foi exposto o conflito no binómio herança cultural e desenvolvimento. Todavia a comunidade internacional esteve em capacidade de corresponder no sentido de que a preservação da herança da humanidade diz respeito a todos os países, e isso encorajou a UNESCO a promover em 1959 o lançamento da primeira cam- panha de resgate de património cultural em risco, e possivelmente uma das mais relevantes expressões movidas pelo mesmo sentido de obrigações globais a que hoje já ninguém se pode recusar. O sucesso ultrapassou todas as expectativas. Só a doação imediata de 50 países permitiu angariar me- tade dos 80 milhões de dólares que foram necessários para a operação, fosse por via do reconhecimento solidário internacional do valor daquele acervo em risco de perecer, fosse pela determinação de quem levou pelo mundo as palavras certas convencendo os doadores a vasculharem bem os seus bolsos até que a última pedra de dezenas de templos, capelas e rochas esculpidas da região Núbia fosse transportada para ser de novo montada, em segurança, em terreno mais elevado nas margens da nova albufeira. De todo esse acervo Numbiano, Abu-Simbel é contemplado como a referência gloriosa por ser o maior e o mais representativo dos templos da Núbia, assim como o culminar do esforço que ainda hoje é considerado como o maior feito de engenharia ao serviço da arqueologia. O templo que os antigos egípcios esculpiram com precisão astronómica na rocha - permitindo que a luz do sol da alvorada penetrasse no seu interior no aniversário da sua invocação - foi arrancado à montanha e separado em 1,423 blocos para voltar a ser montado 65m acima na encosta, como também foi completada a montanha com a rocha que serve de envolvimento do templo na sua nova posição. A grande marca da campanha de Abu-Simbel está na visão e no engenho que foi dedicado à opera- ção. O visitante de Abu-Simbel, depois de percorrer o conjunto tem a oportunidade de entrar numa pequena porta na montanha e de se surpreender com a gigantesca abóbada que revela toda aquela montanha oca que foi construída para envolver o templo na nova plataforma onde foi montado, prolongando assim o relevo natural da encosta, tal como na configuração inicial do templo. Se o motivo da visita é o colossal templo de Ramsés II, a surpresa revela-se no conhecimento do que foi aquela operação de resgate que em nada ficou aquém do engenho dos antigos egípcios há 5 milénios. Quem teve a oportunidade de participar nessa campanha não esquece o entusiasmo e a imagem de milhares de trabalhadores e especialistas, homens e mulheres, a trabalharem dia e noite no deserto Nubiano, contra o relógio e as águas da albufeira que subiam diariamente. O resgate do conjunto arqueológico da Númbia, é até hoje o caso mais impressionante de sucesso, de entendimento, de cooperação e de concertação internacional em âmbito de resgate de património cultural e foi também o primeiro passo que motivou a comunidade internacional para a necessidade de aderir à Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural que foi adoptada em 16 Novembro de 1972 pela Assembleia Geral da UNESCO e que tem por objectivo a protecção do legado cultural e natural da Humanidade. Voltando à actualidade, a convenção presente- mente já foi ratificada por 180 Estados Membros, tendo a correr 24 campanhas internacionais e já classificou, até hoje, 830 lugares sob a sua protec- ção, incluindo o Centro Histórico de Macau, com a decisão que foi anunciada pelo Presidente do Comité do Património Mundial na 29.ª Sessão em Durban, na África do Sul, no dia 15 de Julho, pelas 16:10 horas de Macau. Hoje em dia a designação WHS (World Heritage Site) é o carimbo que reconhece ao lugar excepcional valor universal, que resulta da relevante interacção de valores humanos, que é resultado do génio humano nas disciplinas da arte e da tecnologia, ou mesmo é portador de um testemunho relevante para uma determinada tradição cultural ou civili- zacional, só para resumir as categorias em que pode ser depositada essa distinção. Presentemente a avalanche de candidaturas de novos lugares apresentadas à UNESCO pelos Estados Membros revela o grande interesse na obtenção desse estatuto nomeadamente pela pos- sibilidade de gerar contrapartidas económicas nos negócios a jusante. Isso não actua em oposição aos objectivos do estatuto uma vez que um sentido de viabilidade económica é também sinónimo de viabilidade na obrigação em manter adequadamente o lugar por parte do Estado Membro. O que já poderá actuar contra esse sentido é o facto de os negócios gerados poderem vir a retirar valor ao que foi anteriormente reconhecido, violando assim o compromisso do Estado Membro de preser- var o lugar classificado ou de desenvolver os estudos e as pesquisas científicas e técnicas necessárias, e aperfeiçoar os métodos de intervenção que permi- tem a um Estado enfrentar os perigos que ameaçam o seu património cultural e natural. Nesses casos a organização poderá inscreve esse lugar no estatuto de Património da Humanidade em Risco sendo as situações mais comuns o resultado de urbanização descontrolada, impacto desastroso, geralmente causado por excesso de visitantes, ou a falta de manutenção. Geralmente o Comité do Património Mundial e os Estados Membros, assistidos pelos peritos da UNESCO, procuram encontrar soluções antes que a situação se deteriore, sendo também a própria Convenção para a Protecção do Património Mun- dial, Cultural e Natural um forte instrumento para desencadear a atenção e a acção internacionais. Mas o que também é verdade é que no pre- sente quadro de grande adesão, converge também incompreensíveis insucessos nos esforços da Organização. Em 2001, no seguimento do líder Taliban ter ordenado a destruição de todas as estátuas escul- pidas na rocha no vale de Bamiyan no Afeganistão, por serem representações humanas e, por isso, contrárias aos princípios do Islão, e no seguimento também dos relatos de já terem sido destruídas pro- positadamente mais de uma dezena de estátuas do Museu Nacional Afegão em Kabul, parte do mesmo conjunto que ilustra os primórdios da progressão da arte Budista ao longo das rotas da seda, nome- adamente na província de Báctria - onde adoptou a tradição da escultura grega que aí permaneceu - durante os meses de Fevereiro e Março, foram quase diários os apelos do Director Geral da UNESCO ao governo Talibam para a preservação da herança cultural pré-Islâmica do Afeganistão. Todos os esforços do enviado da UNESCO Pierre Lafrance a Kabul ou da delegação Conferên- cia Islâmica composta por 15 especialistas na Lei Islâmica, a pedido do Director Geral da UNESCO, não chegaram para demover o líder Talibam de prosseguir com a sua ordem. Ou seja, mesmo quando estão disponíveis os melhores instrumentos e melhor capacidade de implementar consensos e de alcançar objectivos, os resultados poderão ficar muito aquém da elaboração entretanto atingida. Isso porque as motivações dos humanos nem sempre se encontram na mesma convergência de disposição. Mesmo em Abu-Simble, com os milhares de turistas que hoje em dia visitam o lugar em voos regulares que aterram na pista que foi construída propositadamente para os visitantes, toda aquela empresa também não está livre de eventualmente um dia poder ser vista como esvaziada de sentido e de utilidade, ou mesmo expressão da natureza passageira do egotismo da própria Humanidade. Ou seja, tudo o que é relevante para a Humani- dade só assim permanece por sua própria vontade e por seu próprio consenso. Conta-se na novela sobre O inglês que subiu uma colina mas desceu uma montanha, que dois cartó- grafos ingleses visitaram a pequena cidade de Ffynnon Garw no País de Gales, para medir a montanha mais antiga do País de Gales. Era o ano de 1917 e a guerra na Europa con- tinuava. Os habitantes da cidade orgulhosos da sua montanha ficaram perfeitamente abalados, senão furiosos, ao saberem que a sua montanha era tecnicamente 15 pés inferior à altura de 1000 pés que qualificava uma montanha. Para não se deixarem suplantar por uma regra (ou pelos ingleses que a fizeram) os habi- tantes determinaram-se a fazer do seu monte uma montanha e, para isso, engendraram um enredo para impedir os dois ingleses de partir, para tornar a medir a montanha e confirmar a altura necessária que não a desqualificasse. Enquanto isso, por toda a cidade via-se gente a carregar terra. Imagine-se para colocar onde .... A novela é descrita como um retracto de uma cidade que não desistiu, um homem que não conseguiu sair e uma montanha que os uniu. De volta ao nosso território, as construções no sopé da colina da Guia, que se antevêem na dimensão anunciada, são eventualmente resultado do desenvolvimento da cidade. Naturalmente o aumento do nível do betão em redor irá submergir ainda mais colina. Tomando por válidas todos os factores em presença só podemos desejar que a colina fosse mais alta. Em verdade só mais 40 metros que fossem, voltando a montar as suas construções numa pla- taforma mais elevada, já permitiria que o feixe de luz passasse a ser visível na orla da península de Macau e até a velocidade de circulação do ar, por convecção ao longo da encosta, aumentaria em 45 % para benefício da desejada qualidade do ar no sopé da colina. O troço acrescentado também resultaria num miolo com um volume de 368.00m3 possível de ser utilizado, ou seja, cerca de 92.000m2 de superfície de uso. As finalidades que poderiam existir no interior escuro de uma montanha imediatamente se afiguram poder ser as actu- ais prioridades. Estacionamento ou casinos. O primeiro porque não precisa de luz, o segundo porque é essencial que não tenha. No caso de um casino estaria desde logo assegurado que o custo da obra estaria amortizado no primeiro ano de funcionamento. Um dos casinos mais famosos da Europa fica exactamente sobre um penhasco sobranceira à cidade de Salkzburg, o Cafe Winkler. A ele se tem acesso por um elevador directamente a partir do centro da cidade. Solução que foi objecto de um concurso internacional de arquitectura em 1987, escolha que recaiu em Siza Vieira. Todavia alguma ponderação e moderação seria de recomendar. Afinal é a nossa montanha e cer- tamente com a possibilidade de usufruir de vistas fantásticas e com algum engenho, seria possível levar luz natural ao seu interior. Certamente que outras finalidades de melhor, ou outros moldes de fruição se prefeririam. Na vertente da viabilidade técnica, a mesma empresa fundada por Eugène Freyssinet, que transportou os 4 colossos do templo de Ramsés II, implementou em 1992 sistemas de elevação de grandes estruturas por via de pistões sincronizados os quais, por via de processadores lógicos, conseguem corrigir ao décimo de milímetro qualquer variação simultânea no curso de uma estrutura a transportar. Desde aí, complexas estruturas elevadas passaram a ser construídas preferencialmente no solo para depois serem elevadas com toda a segurança e precisão ao seu lugar definitivo, porque assim é mais seguro. A reconstrução da fisionomia da paisagem tam- bém não é problema. Para além do coberto vegetal que é da intervenção humana, poucas são as rochas que hoje em dia não são possíveis fabricar. Os ingredientes são os mesmos só que, em vez de ser a Natureza a fabricá-los, é uma fábrica que as produz. Aliás, é para isso mesmo que as fábricas existem, para fazer na hora o que de outra forma levaria anos. Em Pequim, a colina de Jingshan já fora cons- truída em 1420 sob um chão raso, elevando-se até à cota de 48m com o solo que resultou da escavação do fosso em torno do Palácio Imperial e dos canais adjacentes, incorporando um atributo à fisionomia da paisagem absolutamente plana da cidade, loca- lizada em frente à porta norte da Cidade Proibida, ficando o palácio a Sul da colina como é auspicioso e melhor resguardado do vento frio do Norte. É verdade que muitas das características que os humanos desenvolvem, tanto individualmente como em sociedade, são reflexo dos aspectos particulares da sua paisagem natural, mas também nunca admitiram como limite essa condição natural. Nem sempre orientados pelo sentido de perfeição, mas sempre movidos pela necessidade de transpor limitações, o que é certo é que a paisagem passou a ser, por sua vez, o reflexo dos aspectos particulares que os humanos desenvolvem. Tenham os exemplos retractados sentido de mo- delo ou sentido de metáfora, o esforço a empreender passa necessariamente pelo engenho e pela capacida- de de aderir em consensos sobre o que é importante para uma comunidade, nomeadamente no sentido que pretende dar ao seu desenvolvimento. *Arquitecto CARTOON Propriedade FÁBRICA DE NOTÍCIAS LDA Director João Costeira Varela • Redacção Carlos Picassinos; Island Ian; Raquel Silva Tavares; Sofia Jesus • Colaboradores Alberto Bernardes; José Carlos Matias; João Drago; Joaquim Magalhães de Castro; João Valle Roxo; Luís Ortet; Rui Cascais; Sérgio Fonseca • Colunistas Ana Cristina Alves; António Conceição Júnior; Carlos Morais José; Correia Marques; Fernando Eloy; Gilberto Lopes; Helder Fernando; João Assunção Ribeiro; Jorge Rodrigues Simão; José Cláudio Silva; José Ferreira Pinto; José I. Duarte; José Luís Sales Marques; Marinho de Bastos; Paul Chan Wai Chi; Pedro Correia; Pinto Fernandes; Ring Joid • Cartoonistas Stephane Peray; Cunha • Grafismo Paulo Borges; Rui Rasquinho • Fotografia Lusa; GCS • Secretária de redacção Patrícia Inhaia • Publicidade Laurentina Silva • Assistente de redacção Vong Va Sang • Impressão Tipografia Welfare Morada Av. Dr. Rodrigo Rodrigues nº600 E, Centro Comercial First National, 14º andar, Sala 1408 - Macau • Telefone 752401 • Fax 752405 • e-mail [email protected] www.hojemacau.com

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6 opinião terça 5.12.2006 opinião 7terça 5.12.2006

hojemacau

este o código que identifica na cartografia internacional a posição de um auxílio à navegação denominado Guia, identificável por dois clarões consecutivos de luz branca que se repetem num período de 10 segundos, à altitude de 108m e com um alcance de 16 Milhas Náuticas. Aquilo com que o piloto de

um navio conta nesta costa, na eventualidade de todos os modernos auxílios à navegação e de posi-cionamento falharem.

Este farol foi desenhado por um português nascido em Macau, Carlos Vicente da Rocha, e foi completado a 24 de Setembro de 1865. É o mais antigo farol do Oriente e tem estado sempre ope-racional desde que foi construído.

Ele também inspirou quem estava do lado de terra. Personificando-o, um heterónimo de Macau, Maria Monte, no caderno “parágrafo“ em 6 de Ou-tubro de 1995 do Jornal Ponto Final, disse:

[...]Desde há muito que a cidade se habituou a galgar-me e a percorrer-me as encostas, até se aproxima-rem da minha torre branca.Fui durante décadas o timoneiro dos perdidos ...Orientava os navegantes nas águas do Rio em busca do porto da deusa Ama ...An’magao ...‘...tão jovem, que jovem era. Agora, que idade tem?Hoje, estou perdido entre as construções de cimento que me escondem ...De vez em quando sou visto entre os prédios e, nessa altura, luzo desesperadamente ... hipnotizado pelos meus clarões ...Sou fiel à identidade do meu passado ...Por isso, também às vezes irrompo por entre as casas dos prédios e das torres enormes que me sufocam ...Basta ...Hoje decidi que vos quero entrar ... e saber-vos dentro de portas ...‘Arre ... vou existir, exi ... stir!’[...]

Em 8 de Setembro de 2006, o deputado Au Kam San apresenta uma interpelação escrita na Assembleia Legislativa da RAEM no seguimento da divulgação do levantamento das restrições impostas à altura das construções no sopé da Colina da Guia, podendo a altura máxima das construções previstas passar a ser pontualmente

Fl(2) W 10s, 108m 16M, Guia

é

Chavez por mais 6 anos

Mário Duque*[email protected]

135 metros e no geral variar entre os 90 e os 99,9 metros de altura.

Por ser notório [...] que a Colina da Guia é um traço essencial da “fisionomia” de Macau e no pres-suposto de que a altura máxima das construções não devem ultrapassar a sua visão, nomeadamente o seu farol que assenta numa plataforma a 91,80 metros de altitude e se desenvolve em 15 metros de altura. Foi o primeiro do género no Sul da China, o símbolo de Macau, enquanto cidade litoral, e por isso não poderia deixar de estar integrado no Centro Histórico de Macau que entretanto figura na Lista do Património Mundial.

Reportando ao relatório da comissão de avalia-ção que recomendou a inclusão do Centro Histórico de Macau no acervo do património mundial, também se disse que foi [...] a estratégica localização de Macau no território chinês, e a relação especial estabelecida, o que favoreceu a importante troca de valores humanos em vários campos da cultura, ciência, tecnologia, arte e arquitectura durante vá-rios séculos. Foi isto que constou na recomendação do comité ao inscrever esta candidatura no critério ii da Convenção.

Do conjunto que compõe o Centro Histórico de Macau obviamente que nada é mais expressivo da posição estratégica de Macau que o seu farol.

E a interpelação na AL dirigiu-se exactamente [...] se em nome da satisfação das necessidades do desenvolvimento urbano, tudo vale a pena, mesmo em prejuízo da “fisionomia” urbana que faz a diferença desta cidade em relação a outras cidades modernas, para ser assim invadida por tal “floresta de betão”.

De todos estes termos aqui reunidos é capaz de fazer sentido a seguinte retrospectiva:

No final dos anos 50, o Egipto necessitava de-sesperadamente de energia eléctrica e de assegurar o abastecimento regular de água para fazer face ao surto demográfico de meados do século XX. A construção de uma segunda barragem em Assuão era eminente, assim como era iminente a submersão de dezenas de templos e lugares arqueológicos da região Numbiana nas águas do lago artificial formado pela nova barragem.

Nessa altura o fenómeno mediático não tinha a mesma propagação que tem hoje, mas mesmo assim a ocorrência mereceu a atenção da imprensa do mundo inteiro e naturalmente foi exposto o conflito no binómio herança cultural e desenvolvimento.

Todavia a comunidade internacional esteve em capacidade de corresponder no sentido de que a preservação da herança da humanidade diz respeito a todos os países, e isso encorajou a UNESCO a promover em 1959 o lançamento da primeira cam-panha de resgate de património cultural em risco, e possivelmente uma das mais relevantes expressões movidas pelo mesmo sentido de obrigações globais a que hoje já ninguém se pode recusar.

O sucesso ultrapassou todas as expectativas. Só a doação imediata de 50 países permitiu angariar me-tade dos 80 milhões de dólares que foram necessários para a operação, fosse por via do reconhecimento solidário internacional do valor daquele acervo em risco de perecer, fosse pela determinação de quem levou pelo mundo as palavras certas convencendo os doadores a vasculharem bem os seus bolsos até que a última pedra de dezenas de templos, capelas e rochas esculpidas da região Núbia fosse transportada para ser de novo montada, em segurança, em terreno mais elevado nas margens da nova albufeira.

De todo esse acervo Numbiano, Abu-Simbel é contemplado como a referência gloriosa por ser o maior e o mais representativo dos templos da Núbia, assim como o culminar do esforço que ainda hoje é considerado como o maior feito de engenharia ao serviço da arqueologia.

O templo que os antigos egípcios esculpiram com precisão astronómica na rocha - permitindo que a luz do sol da alvorada penetrasse no seu interior no aniversário da sua invocação - foi arrancado à montanha e separado em 1,423 blocos para voltar a ser montado 65m acima na encosta, como também foi completada a montanha com a rocha que serve de envolvimento do templo na sua nova posição.

A grande marca da campanha de Abu-Simbel está na visão e no engenho que foi dedicado à opera-ção. O visitante de Abu-Simbel, depois de percorrer o conjunto tem a oportunidade de entrar numa pequena porta na montanha e de se surpreender com a gigantesca abóbada que revela toda aquela montanha oca que foi construída para envolver o templo na nova plataforma onde foi montado, prolongando assim o relevo natural da encosta, tal como na configuração inicial do templo.

Se o motivo da visita é o colossal templo de Ramsés II, a surpresa revela-se no conhecimento do que foi aquela operação de resgate que em nada ficou aquém do engenho dos antigos egípcios há 5 milénios.

Quem teve a oportunidade de participar nessa campanha não esquece o entusiasmo e a imagem de milhares de trabalhadores e especialistas, homens e mulheres, a trabalharem dia e noite no deserto Nubiano, contra o relógio e as águas da albufeira que subiam diariamente.

O resgate do conjunto arqueológico da Númbia, é até hoje o caso mais impressionante de sucesso, de entendimento, de cooperação e de concertação internacional em âmbito de resgate de património cultural e foi também o primeiro passo que motivou a comunidade internacional para a necessidade de aderir à Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural que foi adoptada em 16 Novembro de 1972 pela Assembleia Geral da UNESCO e que tem por objectivo a protecção do legado cultural e natural da Humanidade.

Voltando à actualidade, a convenção presente-mente já foi ratificada por 180 Estados Membros, tendo a correr 24 campanhas internacionais e já classificou, até hoje, 830 lugares sob a sua protec-ção, incluindo o Centro Histórico de Macau, com a decisão que foi anunciada pelo Presidente do Comité do Património Mundial na 29.ª Sessão em Durban, na África do Sul, no dia 15 de Julho, pelas 16:10 horas de Macau.

Hoje em dia a designação WHS (World Heritage Site) é o carimbo que reconhece ao lugar excepcional valor universal, que resulta da relevante interacção de valores humanos, que é resultado do génio humano nas disciplinas da arte e da tecnologia, ou mesmo é portador de um testemunho relevante para uma determinada tradição cultural ou civili-zacional, só para resumir as categorias em que pode ser depositada essa distinção.

Presentemente a avalanche de candidaturas de novos lugares apresentadas à UNESCO pelos Estados Membros revela o grande interesse na obtenção desse estatuto nomeadamente pela pos-

sibilidade de gerar contrapartidas económicas nos negócios a jusante.

Isso não actua em oposição aos objectivos do estatuto uma vez que um sentido de viabilidade económica é também sinónimo de viabilidade na obrigação em manter adequadamente o lugar por parte do Estado Membro.

O que já poderá actuar contra esse sentido é o facto de os negócios gerados poderem vir a retirar valor ao que foi anteriormente reconhecido, violando assim o compromisso do Estado Membro de preser-var o lugar classificado ou de desenvolver os estudos e as pesquisas científicas e técnicas necessárias, e aperfeiçoar os métodos de intervenção que permi-tem a um Estado enfrentar os perigos que ameaçam o seu património cultural e natural.

Nesses casos a organização poderá inscreve esse lugar no estatuto de Património da Humanidade em Risco sendo as situações mais comuns o resultado de urbanização descontrolada, impacto desastroso, geralmente causado por excesso de visitantes, ou a falta de manutenção.

Geralmente o Comité do Património Mundial e os Estados Membros, assistidos pelos peritos da UNESCO, procuram encontrar soluções antes que a situação se deteriore, sendo também a própria Convenção para a Protecção do Património Mun-dial, Cultural e Natural um forte instrumento para desencadear a atenção e a acção internacionais.

Mas o que também é verdade é que no pre-sente quadro de grande adesão, converge também incompreensíveis insucessos nos esforços da Organização.

Em 2001, no seguimento do líder Taliban ter ordenado a destruição de todas as estátuas escul-pidas na rocha no vale de Bamiyan no Afeganistão, por serem representações humanas e, por isso, contrárias aos princípios do Islão, e no seguimento também dos relatos de já terem sido destruídas pro-positadamente mais de uma dezena de estátuas do Museu Nacional Afegão em Kabul, parte do mesmo conjunto que ilustra os primórdios da progressão da arte Budista ao longo das rotas da seda, nome-adamente na província de Báctria - onde adoptou a tradição da escultura grega que aí permaneceu - durante os meses de Fevereiro e Março, foram quase diários os apelos do Director Geral da UNESCO ao governo Talibam para a preservação da herança cultural pré-Islâmica do Afeganistão.

Todos os esforços do enviado da UNESCO Pierre Lafrance a Kabul ou da delegação Conferên-cia Islâmica composta por 15 especialistas na Lei Islâmica, a pedido do Director Geral da UNESCO, não chegaram para demover o líder Talibam de prosseguir com a sua ordem.

Ou seja, mesmo quando estão disponíveis os melhores instrumentos e melhor capacidade de implementar consensos e de alcançar objectivos, os resultados poderão ficar muito aquém da elaboração entretanto atingida. Isso porque as motivações dos humanos nem sempre se encontram na mesma convergência de disposição.

Mesmo em Abu-Simble, com os milhares de turistas que hoje em dia visitam o lugar em voos regulares que aterram na pista que foi construída propositadamente para os visitantes, toda aquela empresa também não está livre de eventualmente um dia poder ser vista como esvaziada de sentido e de utilidade, ou mesmo expressão da natureza passageira do egotismo da própria Humanidade.

Ou seja, tudo o que é relevante para a Humani-dade só assim permanece por sua própria vontade e por seu próprio consenso.

Conta-se na novela sobre O inglês que subiu uma colina mas desceu uma montanha, que dois cartó-grafos ingleses visitaram a pequena cidade de Ffynnon Garw no País de Gales, para medir a montanha mais antiga do País de Gales.

Era o ano de 1917 e a guerra na Europa con-tinuava. Os habitantes da cidade orgulhosos da sua montanha ficaram perfeitamente abalados, senão furiosos, ao saberem que a sua montanha era tecnicamente 15 pés inferior à altura de 1000 pés que qualificava uma montanha.

Para não se deixarem suplantar por uma regra (ou pelos ingleses que a fizeram) os habi-tantes determinaram-se a fazer do seu monte uma montanha e, para isso, engendraram um enredo para impedir os dois ingleses de partir, para tornar a medir a montanha e confirmar a altura necessária que não a desqualificasse.

Enquanto isso, por toda a cidade via-se gente a carregar terra. Imagine-se para colocar onde ....

A novela é descrita como um retracto de uma cidade que não desistiu, um homem que não conseguiu sair e uma montanha que os uniu.

De volta ao nosso território, as construções no sopé da colina da Guia, que se antevêem na dimensão anunciada, são eventualmente resultado do desenvolvimento da cidade. Naturalmente o aumento do nível do betão em redor irá submergir ainda mais colina.

Tomando por válidas todos os factores em presença só podemos desejar que a colina fosse mais alta.

Em verdade só mais 40 metros que fossem, voltando a montar as suas construções numa pla-taforma mais elevada, já permitiria que o feixe de luz passasse a ser visível na orla da península de Macau e até a velocidade de circulação do ar, por convecção ao longo da encosta, aumentaria em 45 % para benefício da desejada qualidade do ar no sopé da colina.

O troço acrescentado também resultaria num miolo com um volume de 368.00m3 possível de ser utilizado, ou seja, cerca de 92.000m2 de superfície de uso. As finalidades que poderiam existir no interior escuro de uma montanha imediatamente se afiguram poder ser as actu-ais prioridades. Estacionamento ou casinos. O primeiro porque não precisa de luz, o segundo porque é essencial que não tenha. No caso de um casino estaria desde logo assegurado que o custo da obra estaria amortizado no primeiro ano de funcionamento.

Um dos casinos mais famosos da Europa fica exactamente sobre um penhasco sobranceira à cidade de Salkzburg, o Cafe Winkler. A ele se tem acesso por um elevador directamente a partir do centro da cidade. Solução que foi objecto de um concurso internacional de arquitectura em 1987, escolha que recaiu em Siza Vieira.

Todavia alguma ponderação e moderação seria de recomendar. Afinal é a nossa montanha e cer-tamente com a possibilidade de usufruir de vistas fantásticas e com algum engenho, seria possível levar luz natural ao seu interior. Certamente que outras finalidades de melhor, ou outros moldes de fruição se prefeririam.

Na vertente da viabilidade técnica, a mesma empresa fundada por Eugène Freyssinet, que transportou os 4 colossos do templo de Ramsés II, implementou em 1992 sistemas de elevação de grandes estruturas por via de pistões sincronizados os quais, por via de processadores lógicos, conseguem corrigir ao décimo de milímetro qualquer variação simultânea no curso de uma estrutura a transportar.

Desde aí, complexas estruturas elevadas passaram a ser construídas preferencialmente no solo para depois serem elevadas com toda a segurança e precisão ao seu lugar definitivo, porque assim é mais seguro.

A reconstrução da fisionomia da paisagem tam-bém não é problema. Para além do coberto vegetal que é da intervenção humana, poucas são as rochas que hoje em dia não são possíveis fabricar. Os ingredientes são os mesmos só que, em vez de ser a Natureza a fabricá-los, é uma fábrica que as produz. Aliás, é para isso mesmo que as fábricas existem, para fazer na hora o que de outra forma levaria anos.

Em Pequim, a colina de Jingshan já fora cons-truída em 1420 sob um chão raso, elevando-se até à cota de 48m com o solo que resultou da escavação do fosso em torno do Palácio Imperial e dos canais adjacentes, incorporando um atributo à fisionomia da paisagem absolutamente plana da cidade, loca-lizada em frente à porta norte da Cidade Proibida, ficando o palácio a Sul da colina como é auspicioso e melhor resguardado do vento frio do Norte.

É verdade que muitas das características que os humanos desenvolvem, tanto individualmente como em sociedade, são reflexo dos aspectos particulares da sua paisagem natural, mas também nunca admitiram como limite essa condição natural. Nem sempre orientados pelo sentido de perfeição, mas sempre movidos pela necessidade de transpor limitações, o que é certo é que a paisagem passou a ser, por sua vez, o reflexo dos aspectos particulares que os humanos desenvolvem.

Tenham os exemplos retractados sentido de mo-delo ou sentido de metáfora, o esforço a empreender passa necessariamente pelo engenho e pela capacida-de de aderir em consensos sobre o que é importante para uma comunidade, nomeadamente no sentido que pretende dar ao seu desenvolvimento.

*arquitecto

Cartoon

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