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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 149-159Sala aberta

    O direito ao teatro

    Walter Lima Torres Neto

    Resumo

    Este artigo procura formular uma discusso introdutria acerca do direito ao teatro como patrimnioimaterial de uma nao. O artigo apresenta a distino entre dramaturgia performativa e dramaturgiaconvencionalprocurando chamar a ateno da sociedade para o papel de instituies teatrais quedeveriam mediar a criao cnica nos diversos planos sociais.

    Palavras-chave: Dramaturgia; teatro pblico; teatro privado

    Resume

    Cet article cherche formuler une discussion dintroduction sur le droit au thtre en tant quepatrimoine immatriel de la nation. Larticle prsente la distinction entre le drame performatifet le drameconventionel. Larticle cherche attirer lattention de la socit sur le rle des institutions thtrales quidevrait faire la mdiation de la cration scnique dans divers plans sociaux.

    Mot cl: Dramaturgie; thtre public; thatre priv

    Abstract

    This article seeks to formulate an introductory discussion about the right to the theater as intangibleheritage of a nation. The article presents the distinction between performative drama and dramaconventionallooking to draw societys attention to the role of theater institutions that should mediate thescenic creation in various social plans.

    Keywords: Drama; public theater; private theater

    A distino entre cultura popular e cultura erudita no deve servir parajustificar e manter uma separao inqua, como se do ponto de vista culturala sociedade fosse dividida em esferas incomunicveis, dando lugar adois tipos incomunicveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupe orespeito dos direitos humanos, e a fruio da arte e da literatura, em todas asmodalidades e em todos os nveis, um direito inalienvel. Antonio Cndido1

    1. Talvez no seja ainda muito tarde para se repensar essa questo entre ns. Ela

    pode soar para alguns setores ligados atividade teatral como demasiadamente idealista

    ou utpica, ou simplesmente defasada diante das atuais circunstncias de criao, de

    produo, e de fruio do teatro numa sociedade neoliberal. De toda forma, parece-me

    que essa questo est permanentemente colocada, e de tempos em tempos saudvel

    1 Antonio Candido. Vrios Escritos, (3a. ed). So Paulo: Duas Cidades, 1995, pp.262-263.

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    retornar a ela. Assim, nossa contribuio se apresenta como uma breve introduo ao

    possvel debate sobre o direito ao teatro, inspirando-se, como j evidente, no emblem-

    tico texto sobre o direito literatura, escrito pelo professor Antonio Candido em 1988.

    2. Nesses ltimos doze anos, ao se apreciar a produo teatral brasileira, observa-

    -se um crescente salto em termos quantitativos e qualitativos nos espetculos oriundos

    dos principais centros urbanos do pas. Respeitando-se a diversidade regional e local,

    bem como as dificuldades em relao criao, produo, manuteno e circulao de

    grupos e coletivos, constata-se um grande nmero de iniciativas teatrais pelo pas afora.

    So inmeros os cursos de teatro, pblicos ou privados, que proliferam pelo

    Brasil. Nas atividades complementares do estudante, do ensino fundamental e mdio,

    seja na rede pblica ou na rede particular, a atividade teatral to procurada, quando

    oferecida, quanto as atividades esportivas. No se deve perder de vista, nesse sentido,

    o impulso permanente que a produo teledramatrgica inflama e mobiliza, agindo

    como um fator de seduo sobre os jovens, atraindo-os a uma condio de candidato

    a astro televisivo, pela porta do teatro. No mesmo sentido, os projetos sociais mais

    diversos, nos seus mltiplos segmentos de atuao, se valem da experincia teatral

    como atividade reabilitadora do esprito num exerccio de cidadania e sociabilidade.

    Enfim, o teatro parece estar em todos os lugares.

    No plano de uma atividade mais regular e profissional, para confirmar essa apre-

    ciao bastaria uma estatstica sobre, por exemplo, o nmero de festivais de teatro reali-

    zados dentro das mais diferentes categorias (profissional, amador, universitrio, estu-

    dantil etc) por diversas cidades, tanto capitais, quanto cidades do interior. Pode-se fazer

    numa rpida consulta aos nmeros de inscries aos editais e fundos de cultura, nas

    esferas municipal, estadual e federal, admirar tambm o volume dessa demanda pela

    realizao de projetos na rea de artes cnicas. Valeria ainda uma olhada no site, por

    exemplo, da Cooperativa Paulista de Teatro, que ao longo de trinta anos de existncia

    conta hoje com cerca de 750 ncleos e 3.800 associados, respondendo pela maior

    parte da produo artstica teatral do Estado [de So Paulo], contando com companhias

    das mais diversas linguagens e com amplo reconhecimento de sua excelncia cultural 2.

    As casas de espetculos, sobretudo os teatros privados estabelecidos no eixo

    Rio-So Paulo, desfrutam hoje de instalaes e maquinaria que permitem a encenao de

    espetculos que outrora no eram possveis de serem realizados, por conta da incompati-

    2 http://www.cooperativadeteatro.com.br/2010/ Acessado em 02 de maro de 2012.

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    bilidade entre o estado de certos edifcios teatrais e a tecnologia envolvida nesses mesmos

    espetculos, sobretudo aqueles oriundos dos teatros da Broadway. Apesar do eixo Rio-So

    Paulo manter sua hegemonia histrica, em relao concentrao da produo teatral,

    reconhece-se um esforo de descentralizao. Igualmente, em outros centros urbanos,

    observa-se uma intensificao, tanto em relao ao comportamento criativo dos diversos

    grupos e coletivos, que buscam manter uma atividade teatral de forma sistemtica, quanto

    dos modos de produo que se vo tentando criar ou aprimorar.

    A circulao de grupos, companhias, e coletivos tem sido relativamente estimu-

    lada pela mediao de instituies pblicas e privadas. No passado recente houve a

    importante ao coordenada pela FUNARTE, com seu Projeto Mambembo, imple-

    mentado no final da dcada de 1970, finalizado em 1980, que foi recentemente reabi-

    litado. Desta forma, parte significativa da produo teatral brasileira pode ser desco-

    berta, reciprocamente, de norte a sul. Hoje, h projetos similares fomentados pelo Ita

    Cultural, ou o exemplo do j consagrado Palco Giratrio, idealizado e realizado pelo

    Departamento Nacional do SESC que permite, igualmente, o deslocamento de grupos

    e coletivos teatrais, os quais se apresentam em pequenas temporadas ao termo de

    longas turns pelo interior do Brasil3.

    Alia-se a esse quadro toda uma produo crtica em escala nacional. E se por

    um lado consta-se uma retrao crescente da expresso e do lugar da crtica teatral

    nos principais jornais de circulao nacional, por outro lado, a presena de um exube-

    rante volume de crticas e comentrios se faz presente na internet. Blogs e sites mais

    ou menos especializados fazem a descrio e a crnica dos espetculos em cartaz,

    prtica crescente que se multiplica, graas s redes sociais e a abrangncia da internet.

    Tem-se nessa mdia uma espcie de interao e/ou expresso da impresso da comu-

    nidade sobre essas produes4. Advm das universidades uma colaborao inesti-

    mvel, com a publicao de diversos peridicos especializados, ao mesmo tempo

    em que a reflexo sobre a prtica e a teoria do teatro se manifesta em publicaes

    especficas e de circulao dirigida. Outras so as publicaes geradas no mbito dos

    3 Sobre o Projeto Mambembo e sobre o Palco Giratrio, consulte-se Sidnei Cruz: Palco Giratrio: uma difuso

    caleidoscpica das artes cnicas. Fortaleza, SESC/Cear, 2009.

    4 Consulte-se a esse respeito o abrangente trabalho de Helena Maria Mello: Critica teatral brasileira na era digital

    (dissertao de mestrado), no Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas da UFRGS, 2010. Na internet o numero

    de blogs e de sites que comentam com maior ou menor profundidade a atividade teatral no para de crescer. Pode-sedestacar deste grande conjunto uma publicao como a Questo de Crtica: revista eletrnica de crticas e estudos

    teatrais http://www.questaodecritica.com.br/ ou o siteAntaprofana http://www.antaprofana.com.br/home.asp

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    prprios grupos e coletivos teatrais, os quais tambm implementam uma produo

    editorial com o intuito de afirmar as suas particularidades ticas e estticas, disponibi-

    lizando sociedade seus processos criativos, os bastidores da criao teatral. Dentre

    essas publicaes se inclui com destaque os programas dos seus espetculos. Teoria

    e prtica deram-se as mos5.

    Percebemos que essas pequenas publicaes, os programas de espetculos,

    deixam de ser, unicamente, um produto de divulgao, de carter informativo ou publi-

    citrio, para se transformar em uma pea chave para os estudos sobre os propsitos

    da cena teatral: um objeto de reflexo sobre o ato criativo; o processo de elaborao da

    obra e a sugesto de pistas para o ato de fruio de uma encenao teatral. O programa

    pode ser considerado assim como uma fonte primria, que ao ser interrogada pode nos

    revelar importantes elementos para contextualizao histrica dos espetculos, bem

    como as ambies artsticas e ideolgicas dos coletivos, sem perder de vista a relao

    que se quer estabelecer entre agentes criativos e seu pblico. Como temos nos dedi-

    cado pesquisa sobre os programas de espetculos, podemos ressaltar, dentre outros

    aspectos, que ao analisar esses opsculos, um sintoma se multiplica a olhos vistos: a

    mutao que vem sofrendo o termo dramaturgia, ao menos na cena brasileira6.

    3. Como se percebe pela leitura desses programas de espetculos e na apre-

    ciao de grande parte das encenaes contemporneas, o termo dramaturgia tem

    sido empregado, na atualidade, de forma diversa do que fora no passado. Como

    5 Em relao s principais revistas universitrias oriundas dos departamentos e dos programas de ps-graduao em

    teatro ou em artes cnicas, podemos destacar: Repertrio (PPGAC/UFBA);Sala Preta (PPGT/USP); Percevejo (PPGT/

    UNIRIO); Urdimento (PPGT/UDESC); Cena (PPGAC/UFRGS); Ouvirover (PPGA/UFU); Revista da FAP (PR); Revista

    Moringa (Decen/UFPB). Quanto s publicaes oriundas dos grupos e coletivos, tem-se: Subtexto (Grupo Galpo/

    MG); Vintm (Cia do Lato/SP) Folhetim (Teatro do Pequeno Gesto/RJ); Cadernos do Lume (Lume/SP); Cadernos

    do Folias (Folias DArte/SP), entre outras publicaes. Como se percebe, existe aqui material para uma importante

    discusso, sobre a qual no nos deteremos neste instante, acerca da diminuio do espao e da recorrncia da

    presena da critica teatral nos principais jornais e veculos de comunicao de massa no pas, bem como o aumento

    de um outro tipo de produo que registra, descreve, critica e analisa a produo cnica brasileira na internet.

    6 Alguns resultados parciais sobre nosso trabalho podem ser apreciados em: TORRES NETO, Walter Lima.

    Programas de teatro: traos de uma experincia criativa. In: Comunicao apresentada no VI Congresso de

    Pesquisa e Ps-Graduao em Artes Cnicas da ABRACE. So Paulo, 2010. Disponvel em: http://portalabrace.

    org/vicongresso/historia/Walter_Lima_Torres_Neto_Programas_de_Teatro.pdf; RIBEIRO, Felipe M. Bachmann e

    TORRES NETO, Walter Lima. O programa de teatro: um novo pacto esttico cultural?. Comunicao apresentada

    no 1o. CIELLI. Colquio Internacional de Estudos Lingsticos e Literrios da Universidade Estadual de Maring

    UEM. Realizado de 9 11 de junho de 2010 em Maring, Paran. In: Anais do Colquio: ANAIS ISSN 2177-6350

    http://www.cielli.com.br/downloads/696.pdf e por fim: RIBEIRO, Felipe M. Bachmann e TORRES NETO, WalterLima. - Olha programa da pea!. In: Urdimento, n 16. Florianpolis: PPGT/CEART/UDESC, junho 2011, pp.

    139-151. http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/2011/index_16.html

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    se sabe, desde o sculo XIX, o termo dramaturgia se consolidou deixando de ser,

    unicamente, um conjunto de preceitos e regras de valores universais para significar,

    simplesmente, a arte ou tcnica da composio dramatrgica. certo que se trata

    de um termo complexo que na sua trajetria esteve associado a diferentes dogmas

    e restries, no tocante eficcia dessa mesma arte e/ou tcnica de composio.

    Atualmente, porm, o termo pode ser compreendido tambm como a instrumenta-

    lizao da passagem do texto cena, a transformao de uma obra dramtica em

    obra cnica, sem querer ser, no entanto, sinnimo de encenao, mas certamente

    de texto cnico.

    Nos dias que correm, no s no Brasil, o termo vem sendo empregado por

    diversos artistas e coletivos teatrais acompanhado de complementos tais como:

    dramaturgia do corpo; dramaturgia da luz; dramaturgia da cena; dramaturgia do

    ator; dramaturgia do figurino, dramaturgia da voz, entre tantas outras designaes,

    alm do emblemtico dramaturgia performativa. Este um sintoma significativo que

    deve ser apreciado e problematizado.

    Esse sintoma sugere uma luta, a disputa pelo poder hegemnico no processo

    criativo visando gestao, organizao e realizao material de uma cena. Da

    mesma forma, o sintoma pode escamotear uma falsa horizontalidade, que por vezes

    emana do discurso dos prprios processos criativos. Trata-se de uma contenda, que

    acontece no interior do campo da prpria linguagem teatral, na veiculao atravs de

    seus signos de contedos e formas singulares julgadas mais ou menos adequadas

    para expresso de uma substncia scia teatralizada. Trata-se de uma luta entre os

    elementos que outrora constituam o significado da cena moderna, apontado pelo

    olhar, por vezes desptico e autoritrio, do moderno diretor teatral. Hoje, a luta se d

    pelo protagonismo, em termos criativos, deste ou daquele elemento constituinte da

    encenao teatral convencional. Esses elementos, cada qual com suas caractersticas

    e dinmicas criativas internas, acabaram condicionando a criao cnica contempo-

    rnea. O teatro de linguagem ou dito de pesquisa, herdeiro do teatro de vanguarda,

    ou o chamado teatro processual, bem como os processos criativos ditos colaborativos

    so em grande parte o ambiente de onde aflora essa nova dramaturgia. Ao contrrio

    do que foi no passado, arte ou tcnica da composio dramatrgica, a dramaturgia

    passa a ser compreendida como um campo semntico de tenses criativas, aberto e

    permevel s mais distintas apropriaes em termos de significados e significantes.

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    O termo dramaturgia, sempre seguido de um complemento, faz pensar, certa-

    mente, sobre as novas lgicas criativas, as estratgias para produo de sentido parti-

    cular sobre a cena. Isto nos remete s novas atitudes e dinmicas de trabalho refe-

    rentes aos agentes criativos, que criam, independentes de uma matriz dramatrgica,

    uma pea de teatro ou um texto escrito por um autor teatral, que poderia sugerir um

    valor universal. E para legitimar-se nessa luta pelo poder de protagonizar, o processo

    criativo, a dramaturgia disto ou daquilo visa, na encenao, em sua grande maioria,

    no mais apresentao de narrativas representacionais, com atores em estado de

    interpretao, mas sim a uma cena no representacional. Paradoxalmente, nessa

    operao de ressignificao do termo dramaturgia, no tempo presente, o que dela

    substancialmente subtrado a noo de representao que sempre foi um atributo

    intrnseco atividade teatral, antes das experincias entendidas como ps-dram-

    ticas. Isto nos permite afirmar que pode, nos tempos que correm, para determinadas

    correntes criativas, haver dramaturgia sem que haja necessariamente representao.

    Aliada a essa negao da representao, se estabelece uma genealogia de

    processos e construes cnicas que expressam ideias e conceitos; promovem expe-

    rimentos sensoriais; visam exibio de experincias de vida, as mais inauditas; apro-

    priam-se de resduos biogrficos dos prprios agentes criativos; entre outros procedi-

    mentos. Os agentes criativos contemporneos buscaram o auxlio de um termo consa-

    grado, o termo dramaturgia, para que fosse possvel estabelecer uma mnima coerncia

    criativa, uma conexo processual, uma lgica atribuda a um novo discurso teatral hbrido

    expresso em cena sem a sustentao de uma dramaturgia convencional.

    O emprego do termo dramaturgia sobressai de maneira a querer nos sinalizar

    que h uma forma de anotao (ou seria uma partitura?), minimamente sistematizada,

    cujo contedo veiculado por meio da expresso destes signos da cena. No mais

    a cena que se emancipa da literatura, isto , da dramaturgia, mas so os elementos

    constituintes da cena que se emancipam da prpria cena. Como dissemos, agora sob

    nova direo, graas a um novo olhar para a funo social do teatro, esses elementos

    expressam sentidos particulares por meio de uma outra organizao dramatrgica

    especfica, e se liberam assim, eles prprios, do jugo da encenao convencional. Essa

    dinmica criativa, que gera uma dramaturgia performativa, passa a ser o fio condutor

    do processo que se d a ver numa etapa de seu permanente work in progress, quando

    da apresentao deste experimento cnico ao pblico.

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    4. Durante os anos 1940, no momento do segundo ps-guerra, a noo de Teatro

    Nacional Popular ganhou fora, aliada ao esforo de reconstruo das naes envol-

    vidas no conflito mundial. A essa situao seguiu-se a constituio de uma poltica

    intervencionista dos Estados europeus que fomentou a criao ou reconstruo dos

    Teatros Nacionais drama, pera e bal . Bertolt Brecht e Helene Weigel se insta-

    laram em Berlim Leste e criaram o Berliner Ensemble em 1949. Em Milo, Paolo Grassi

    e Giorgio Strehler construram literalmente seu prdio, o edifcio do Piccolo Teatro de

    Milano, inaugurado em 1947. Na Frana, o TNP passou a ser dirigido por Jean Vilar

    (1951-1963), aps convite feito pelo governo. J desde 1947 esse diretor vinha traba-

    lhando em prol da descentralizao da atividade teatral em funo do Festival de

    Arte Dramtica de Avignon, que ele prprio ajudara a criar. Na Inglaterra, pas onde

    o teatro sempre teve uma tendncia fortemente ligada ao entretenimento comercial,

    estabelece-se de pronto a valorizao de um repertrio que retoma os grandes cls-

    sicos elisabetanos. Tratava-se de um movimento geral tanto a leste quanto a oeste de

    Berlim que passava a ser uma espcie de frgil ponto de equilbrio entre as naes

    europeias aps o fim do conflito e o restabelecimento das fronteiras. Pode-se concluir

    desse movimento que a identidade das naes, como um projeto coletivo, se dava

    tambm graas ao fortalecimento de instituies teatrais, com aes e programas

    destinados a estabelecer uma grande durao para seus objetivos. Essas instituies

    ainda hoje existem e sobrevivem, apesar das contradies e dificuldades dos tempos

    neoliberais e das oscilaes das polticas pblicas na rea teatral.

    No caso do Brasil, sempre atento s experincias estrangeiras na tentativa de

    oportunizar uma poltica de Estado para o teatro nacional, constata-se que tal expe-

    rincia teve lugar na esfera federal, com a implementao de companhias estveis

    de repertrio coordenadas pelo antigo Servio Nacional de Teatro, criado no final da

    dcada de 1940: Comdia Brasileira (1940-1945), Companhia Dramtica Nacional

    (1953-1954), Teatro Nacional de Comdia (1956-1967). No s em termos nacionais,

    mas igualmente no mbito dos estados, do ponto de vista ideolgico, pode-se salientar

    iniciativas, tanto particulares como a de um idealista como Haroldo Serra, em Fortaleza,

    primeiro com o Teatro Experimental de Arte em 1952 e em seguida com o conjunto

    artstico Comdia Cearense; quanto a iniciativas pblicas, houve o exemplo do Teatro

    de Comdia do Paran (TCP), companhia oficial do estado, cuja fase inicial 1963-1968,

    se deu sob a direo de Cludio Correia e Castro. Pode-se notar, em relao s insti-

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    tuies estrangeiras, que elas existem at hoje, apesar do colapso que vivem, e que

    as iniciativas brasileiras no perduraram muito tempo. Um aspecto bastante plausvel

    para esse desinteresse reside no fato de que o teatro era uma voz de real expresso e

    combate ditadura. O governo militar, com o controle do Estado, que durou do golpe de

    1964 at a eleio de Tancredo Neves em 1985, pouco se interessaria em incentivar e

    promover esse teatro de elite para todos com algum sentido ideolgico, e dificilmente

    se relacionaria com os artistas de teatro, que naturalmente pensavam diferente, no s

    em relao ao plano esttico, mas sobretudo em relao ao plano poltico7.

    Todas essas iniciativas de constituio de instituies teatrais sedimentadas,

    tanto estrangeiras mais longevas, quanto as brasileiras abortadas, tinham por prin-

    cpio a frmula cunhada por Jean Vilar citada acima,um teatro de elite para todos. Isto

    , uma busca pela disponibilizao populao de uma produo teatral de alta quali-

    dade artstica e cultural nos trabalhos encenados, os quais deveriam ser acessveis

    a todos os segmentos sociais, sem discriminao cultural ou econmica. Pensava-se

    em oportunizar naquele momento a permanncia de um repertrio por meio do qual o

    cidado-espectador pudesse se formar e se reconhecer inserido num processo hist-

    rico de cunho coletivo. Neste sentido, importante tambm lembrar das contradies

    vivenciadas pelo TNP, sob o comando de Jean Vilar, na Frana.

    Desde o seu incio, o TNP teve dificuldades em superar problemas como o de

    deslocar o espetculo ou de levar ao teatro o trabalhador e o operrio para desfru-

    tarem da experincia teatral. Ao longo desse grande programa de formao de um

    novo pblico, diversos fatores tais como a jornada de trabalho extenuante e as dificul-

    dades em desmistificar a prpria cerimnia da ida ao teatro comprometeram o xito

    desta tentativa de popularizao8.

    O teatro de arte de contornos eruditos sempre foi uma atividade associada

    elite, no s no Brasil. Lembre-se do exemplo entre ns de uma empresa de capital

    privado como o Teatro Brasileiro de Comdias, criada em 1948 pelo empresrio Franco

    Zampari, em So Paulo. Mas independentemente das oposies entre teatro erudito

    e teatro popular, manifestas, por exemplo, numa oposio a princpio simplista entre

    7 Sobre essa questo consulte-se: Silvana Garcia: Teatro da Militncia. So Paulo, Editora Perspectiva, 1990 e

    Edlcio Mostao: Teatro e Poltica: Arena, Oficina e Opinio, So Paulo, Proposta Editorial & Secretaria de Estado

    e Cultura de SP, 1982.

    8 A questo de um teatro de arte desenvolvido no continente europeu pode ser apreciada no ensaio crtico de

    Jean-Franois Dusigne: Le Thtre dArt: aventure europenne du XX sicle. Paris. Editions Thatreles, 1997.

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    a programao de uma empresa como o TBC e a programao de uma empresa de

    Teatro de Revistas, o que nos chama ateno a substncia social figurada na perma-

    nncia de uma dramaturgia veiculada por essas duas tendncias.

    Apesar do fim precoce das instituies brasileiras, o que esteve e continua em

    jogo, graas permanncia ao menos das instituies estrangeiras, o trabalho teatral

    que se mantm afirmativo na oportunizao sociedade de um repertrio nacional e/

    ou estrangeiro. O pblico-cidado tem o direito de conhecer esse repertrio e viver a

    experincia imaginria de se relacionar com essa substncia histrico-social, asso-

    ciando-a a sua realidade contempornea.

    5. O sistema de produo teatral brasileiro, nestes ltimos vinte anos, ganhou

    contornos especficos e bem distintos do perfil europeu ou estadunidense. Graas s

    atuais leis de incentivo, permite-se o financiamento de arrojados empreendimentos

    econmicos na rea das artes cnicas. O Brasil acabou por implementar um sistema

    hbrido de produo. Exemplos recentes foram os espetculos do Cirque du Soleil; musi-

    cais como Um violinista no telhado ou Priscilla, a rainha do deserto. Nestes casos, o

    modo de produo brasileiro, implementado pelo Estado, financia o benefcio do lucro

    econmico de empresas de produes artsticas e entretenimento, na realizao de

    espetculos-empreedimentos, de forte apelo comercial e inegvel valor simblico do

    ponto de vista de uma lgica capitalista, que s enfatiza a mundializao de produtos da

    indstria cultural. Contrape-se ao preo dos ingressos dessa categoria de espetculos

    que, assumidamente, visam ao lucro de uma bilheteria, os ingressos do tipo a R$1,99 ou

    ingressos trocados por 1Kg de alimento no perecvel, produzidos por coletivos, grupos

    e companhias nativas que pressupem a veiculao de valores opostos ou mais locais

    e particulares em suas produes, cujo modelo de produo tambm outro.

    A desigualdade social e sobretudo econmica no consegue ser combatida

    dentro desta frmula. Porque a desigualdade socioeconmica est associada desi-

    gualdade educacional e cultural, e, sobretudo, s divergncias no tocante ao que se

    entende por cultura e produo originria da indstria cultural. Pode-se pressupor que,

    em parte, essa desigualdade poderia ser corrigida se houvesse a presena dessas

    instituies mediadoras como as lembradas acima no plano estrangeiro.

    Essas instituies permitiriam a manuteno e atualizao de um repertrio

    nacional e estrangeiro. Um repertrio que direito do cidado-espectador brasileiro

    conhecer para poder se reconhecer ou para julg-lo superado localmente e nacio-

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    Com essa nfase no direito de se assistir a um repertrio dramatrgico, que certa-

    mente precisa ser enriquecido pela leitura atualizada de encenaes vigorosas, no

    se deseja desprezar a expresso teatral contempornea. Tanto a nova dramaturgia

    performativa, como tentamos descrever acima, quanto a dramaturgia convencional

    mediada por uma encenao, devem ser o objeto de uma poltica de Estado, no s

    o esforo isolado de grupos e coletivos. S uma poltica de Estado pode assegurar a

    permanncia desse patrimnio imaterial nas esferas municipal, estadual e federal. E

    que, sobretudo, esse repertrio possa ser revisitado de tempos em tempos alternado

    com o teatro estrangeiro.

    No h dificuldades em se conciliar as duas noes de dramaturgia a que aludimos

    anteriormente. O que no se deveria incentivar a excluso de uma categoria pela outra,

    pois quem perde o espectador-cidado, a quem se omite as formas simblicas mani-

    festas pelo teatro. E, neste sentido, dada a irregularidade e a complexidade de nossas

    plateias regionais e locais, parece-nos que somente com instituies devidamente enrai-

    zadas na trama da vida teatral que alcanaramos algum tipo de sucesso em prol de

    estratgias que promovessem o direito do cidado-espectador ao teatro.

    Caso contrrio, o cidado estar fadado a se submeter, inadvertidamente, s

    incertezas das experincias performativas de teor autorreferencial, que podem custar

    1,99 o ingresso subsidiado; ou se deleitar na total alienao ao parcelar, no seu carto

    de crdito, o valor do ingresso, tambm subsidiado, para assistir um espetculo do tipo

    franchising da Broadway.

    Reerncias bibliogrfcas

    CARLSON, Marvin: Performance: uma introduo crtica, (trad. Thais Flores N. Diniz e MariaAntonieta Pereira). Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

    CARLSON, Marvin: Teorias do teatro, (trad. Gilson Csar C. de Sousa). So Paulo: UNESP,

    1995.

    GUENOUN, Denis: O teatro necessrio?, (trad. Ftima Saadi). So Paulo: EditoraPerspectiva, 2004.

    SARRAZAC, Jean-Pierre: Critique du thtre: de lutopie au dsenchantement. Belfort:Editions Circ, 2000.