Trabalho e resistência: os trabalhadores rurais na região ... · balho e o desejo de mudança...

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Trabalho e resistência: os trabalhadores rurais na região de

Ribeirão Preto (1890-1920)

Maria Angélica Momenso Garcia

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Maria Angélica Momenso GarciaPossui graduação em História — licenciatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1989); graduação em Pedagogia pela UNESP/UNIVESP (2013); mestrado em História pela Uni-versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1994) e doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005). Atualmente é Professora Titular da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, Professora Titular da Universidade Paulista e celetista do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (ETEC – Araçatuba). Tem experiência na área de His-tória, com ênfase em História do Brasil. Atuando principalmente nos seguintes temas: trabalho e sindicalismo rural.

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A análise particularizada da organização do trabalho nas fazendas de

café e a mobilização dos trabalhadores, composto em sua maioria por colonos de

origem imigrante, em situações conflituosas, no período de 1890 a 1920, em uma

parcela do nordeste paulista: Ribeirão Preto, região de maior expansão do cultivo

de café na época, foi objeto desse estudo, ao utilizarmos como fonte principal

processos criminais de homicídio e lesão corporal, envolvendo trabalhadores das

fazendas de café e fazendeiros encontrados no Arquivo Geral do Fórum de Ribeirão

Preto.

A sociedade enfocada neste estudo passava por um processo de expan-

são do capitalismo, com a adoção de inovações técnicas em nível de produção e

simultâneo controle das tarefas executadas pelos trabalhadores que se inseriam,

na sua maioria, no contrato de colonato e desempenhavam papel relevante numa

economia baseada na produção e exportação de um produto rentável como o

café. Neste sentido, torna-se importante a apreensão de seu universo e de que

forma, num nível social mais amplo, esses trabalhadores identificavam-se com a

ideologia dominante.

Existem poucos estudos sobre as formas de organização do trabalhador

rural já que, até recentemente, a historiografia privilegiou o estudo do trabalha-

dor urbano e tomou como dado aceito ou não explicado a suposta passividade

do trabalhador rural em relação ao urbano. Justifica-se assim, um estudo mais

aprofundado que nos leve ao cotidiano e às organizações informais e espontâ-

neas desses trabalhadores rurais, onde podemos perceber formas peculiares de

resistência e solidariedade em situações conflituosas como meio de preservar a

identidade do grupo de trabalhadores envolvidos e garantir melhores condições

de vida.

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O uso de processos criminais como fonte, segundo Thompson, é im-

portante para ampliar os estudos no campo da história social, pois as “minorias

com linguagem articulada surgem de uma maioria menos articulada e esta, por

definição, deixa pouco registro de seus pensamentos, sendo tentador procurá-los

nos arquivos criminais”.1

Nos processos criminais podemos perceber a intenção de controlar, de

vigiar, de impor padrões e regras preestabelecidas, mas a intenção de enquadrar,

de silenciar, acaba revelando também a resistência.2 Isso foi evidenciado a partir

do contato com os nove inquéritos policiais e 144 processos criminais pesquisa-

dos. Outras fontes de grande importância consultadas foram jornais, na maioria

de tendência socialista e anarquista, os boletins do Departamento Estadual do

Trabalho e artigos da Revista Agrícola (órgão da lavoura, indústria e comércio),

publicada pelo Governo do Estado de São Paulo na época. Através dessa documen-

tação procuramos a presença, fala e atuação dos trabalhadores, considerando os

discursos e os depoimentos próprios, como também o discurso escrito pela classe

dominante e pelo Estado a seu respeito.

Todos os aspectos da vida social nas fazendas de café estavam profun-

damente ligados ao trabalho, ao modo de organização da produção e a divisão

social que lhe correspondia. A inserção do imigrante no mundo do trabalho, reali-

zada mediante um contrato, implicava também no controle de seus movimentos,

gestos e atitudes. Assim, a vida do trabalhador era regida por uma severa disci-

plina de trabalho, que se traduzia em cumprimento de horários e regulamentos,

objeto de constante vigilância por parte de administradores, fiscais e feitores.

Procuramos, portanto, desvendar até que ponto a disciplina era im-

posta, sobretudo pelo controle do tempo útil e se as normas foram interiorizadas

e aceitas como legítimas. No período delimitado para estudo, desvendamos nas

fontes consultadas, que havia uma grande mobilidade de trabalhadores de uma

fazenda para outra. Tornavam-se frequentes as desilusões com o contrato de tra-

balho e o desejo de mudança para outras fazendas ou localidades que oferecessem

1 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Trad. de Denise Bottomann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, v. 1, p. 57. 2 CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 32-33.

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contratos de trabalho mais vantajosos. Pudemos constatar que uma das saídas

utilizadas na época era a fuga.

Alguns processos criminais revelam que agressões por parte de admi-

nistradores e fiscais a trabalhadores ocorriam em momentos de tentativa de fuga

destes por estarem descontentes com o tratamento recebido. O motivo sempre

alegado por parte de trabalhadores era o não-cumprimento, pelos administrado-

res, dos termos do contrato, sobretudo a recusa em fornecer gêneros alimentícios

para o consumo próprio ou permitir a venda de seus produtos fora da fazenda. Tal

medida visava impedir que o trabalhador, ao vender o excedente de sua produção,

conseguisse recursos para saldar suas dívidas com o proprietário e procurasse

outra fazenda para oferecer seus serviços. Muitos trabalhadores vivenciaram este

tipo de situação como em casos análogos ao da família Galiciolli, colonos da

fazenda Piraju em Ribeirão Preto, que pelos motivos alegados acima, já haviam

conseguido sair da fazenda e se encontravam na estação Mendonça de onde pre-

tendiam dirigir-se para Santa Rosa, quando foram impedidos de embarcar pelo

administrador e pelo fiscal da fazenda que agrediram o chefe da família, José

Galiciolli, e reconduziram-na à fazenda.3

O colono estava sujeito a uma organização complexa de trabalho, de-

vendo efetuar tarefas minuciosamente definidas e vigiadas. Cada família de co-

lonos encarregava-se de cuidar de uma área contínua do cafezal, denominada

“talhão”, além disso, a colheita era realizada pelas famílias de colonos que se

encarregavam cada uma de certo número de cafeeiros. A forma que o capital se

configurava no resultado do trabalho expressava-se pelo número de cafezais tra-

tados, da produtividade de cada um, da quantidade de arrobas de café colhido, do

seu transporte e da fiscalização de todas essas atividades.

A substituição do escravo pelo trabalhador livre ocorria nas fazendas

de café da região de Ribeirão Preto desde a sua formação, por volta de 1870, pois

a extinção do tráfico em 1850, restringindo-o apenas ao âmbito interprovincial,

provocou uma grande especulação nos preços dos escravos. Assim o capital foi

deixando de configurar-se no trabalhador escravo para configurar-se no resultado

do trabalho.

3 Sumário Crime, Adoni Servi e José Galiciolli (réus), C. 113, AGFRP, 1916.

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Fazendeiros da região de Ribeirão Preto passaram a alegar que uma so-

ciedade estruturada pelas relações entre senhor e escravo não tinha condições de

promover o aparecimento de um trabalhador que considerasse de forma legítima

a exploração do trabalho e se submetesse a ela, daí a necessidade de buscá-lo em

outro lugar. Essa desqualificação do trabalhador nacional tornou-se argumento

importante na defesa da opção pelo trabalho do imigrante. Nessas condições teve

lugar a vinculação entre a transformação das relações de trabalho na cafeicultura

e a imigração de trabalhadores estrangeiros, que a partir do final da década de

1880, contavam com suas passagens pagas pelo governo da Província de São

Paulo, sendo a duração desse subsídio prolongado até 1927.4

Segundo essa concepção, o imigrante trazia uma nova noção de traba-

lho ao elemento nacional, já que se considerava que este não estava preparado

para a transformação das relações de trabalho que estavam em curso, sustentan-

do-se categoricamente que o ex-escravo não se amoldava facilmente às novas

relações de trabalho e o trabalhador livre que, no período colonial, permaneceu

à margem do sistema escravista, tinha sua imagem associada ao indolente, ao

inapto para o trabalho, imagem esta que na Colônia servia para justificar a própria

permanência da escravidão e neste momento, a vinda do imigrante.

Assim, a noção de trabalho, como analisam alguns autores, entre eles

José de Souza Martins, Sidney Chalhoub, Iraci Galvão Salles5, foi modificada com

a passagem do trabalho escravo para o livre, pois o trabalho que era considerado

indigno e degradante ao homem branco, passou a ser valorizado pelos proprietá-

rios rurais devido ao fato de os mecanismos de dominação para a manutenção da

ordem escravista, como aplicação de castigos e adoção de medidas paternalistas,

tornarem-se inadequadas em face da inserção do trabalho livre na relação defini-

dora do ato produtivo.

Com o estabelecimento de novas relações de produção baseadas no

trabalho livre não havia lugar para o trabalhador que considerasse a liberdade

como negação do trabalho e, sim, para aquele que considerasse o trabalho como

uma virtude de liberdade.

4 BEIGUELMAN, P. A crise do escravismo e a grande imigração. São Paulo: Brasiliense, 1981. 5 MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990; SALLES, I. G. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada: o Partido Republicano Paulista e a política de mão de obra (1870-1889). São Paulo: Hucitec/INL, 1986; CHALLOUB, S. Op. cit.

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O imigrante, especialmente os de nacionalidade italiana, representa-

vam a maioria dos trabalhadores das fazendas de café e vinham de seu país de

origem com a intenção de adquirir uma pequena propriedade no Brasil. Sabendo,

portanto, que o projeto de vida desses imigrantes era essa busca constante pela

pequena propriedade, onde pudessem desenvolver sua própria produção e comer-

cializá-la, os fazendeiros, em um primeiro momento, não encontravam dificulda-

des para exigir uma dedicação total ao trabalho, porque os próprios imigrantes

se submetiam a uma disciplina rígida de trabalho, acreditando que somente me-

diante este trabalho árduo poderiam acumular uma poupança e, em consequência,

transformarem-se em pequenos proprietários, livrando-se da sujeição ao fazen-

deiro.

Assim, com a crescente imigração europeia, especialmente italiana,

para as fazendas de café, estabeleceu-se uma nova forma de exploração do traba-

lho — o colonato — e uma nova ideologia do trabalho, que correspondeu à inter-

nalização pelos imigrantes da noção de que o trabalho é um bem e valor supremo,

bem como implicou numa nova disciplina de trabalho e no seu enquadramento

desses trabalhadores imigrantes em padrões de conduta familiar e social.

Estabelecia-se, portanto, uma forma específica de organização social

e econômica com o regime de colonato, ao combinarem-se o suprimento de gê-

neros alimentícios e a garantia de oferta de trabalho com o seguinte sistema de

remuneração: pagamento fixo pelo cuidado do cafezal, pagamento proporcional

pela quantia de café colhido e a produção de alimentos como meio de vida e como

excedentes comercializáveis pelo próprio trabalhador, obrigando-se o fazendeiro

a permitir o plantio destes gêneros entre os pés de café em crescimento, e quando

a árvore já estava formada, impossibilitando o plantio desses gêneros, a reservar

uma área para que o colono continuasse a cultivar os gêneros de primeira neces-

sidade (feijão, milho, arroz).

No entanto, apesar de tal conduta estar formalizada no Decreto nº 213,

de 22 de fevereiro de 1890, muitas tensões e conflitos no ambiente de trabalho

eram gerados pela permanência de práticas remanescentes da sociedade escravis-

ta por parte dos fazendeiros e responsáveis pela administração das fazendas, pois

no plano das relações sociais tendiam a tratar o colono como escravo. Outro fator

de tensão social era a sujeição do colono ao fazendeiro através do controle que

este exercia sobre os débitos de cada trabalhador.

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Ao serem confrontados os discursos, por parte dos trabalhadores, à

medida que aparecem denúncias de maus-tratos, agressões, assassinatos com

os da classe dominante, apresentadas pelos grandes fazendeiros e pelo Estado

em relação às denúncias, percebemos o posicionamento de classe e seus anta-

gonismos.

A vida na fazenda retratada pelos trabalhadores era dura, algumas ve-

zes precária, sendo o controle do trabalho e das saídas e entradas de pessoas na

fazenda feita de forma rigorosa. No discurso de fazendeiros e do Estado havia um

enaltecimento das ótimas condições de vida e trabalho nas fazendas como forma

de propaganda destinada a justificar a relação contratual e atrair cada vez mais

imigrantes.

Estas duas versões contraditórias aparecem explicitamente nos proces-

sos de homicídio e lesão corporal envolvendo os colonos e fazendeiros através

dos depoimentos prestados à Justiça, apresentando o desencontro das versões e,

na postura da própria Justiça Pública, principalmente no discurso do promotor de

justiça ao apresentar a denúncia. Este tipo de documentação indica a situação

extrema a que chegaram os antagonismos e animosidade entre fazendeiros e seus

auxiliares na administração das fazendas de um lado, e trabalhadores de outro,

concretizadas em crime de agressão e morte, levando dessa forma a soluções

passíveis de processo criminal.

Um exemplo do teor dos discursos oficiais verifica-se numa declaração

de Rodrigues Alves, então presidente da Província de São Paulo em 1888, em

ofício dirigido ao ministro da agricultura, respondendo ao pedido de apuração de

denúncias apresentadas a ele sobre maus-tratos que colonos italianos estariam

recebendo na fazenda de Henrique Dumont, em Ribeirão Preto. Esta denúncia es-

tendia-se a outros fazendeiros locais como Martinho Prado Jr., João Franco, Luís

da Silva Rosa e José Melo que estariam surrando colonos e mantendo-os em pés-

simas condições. Rodrigues Alves refutou as denúncias defendendo os fazendeiros

acusados, qualificando-os como figuras respeitáveis na sociedade — “dignos e

progressistas”.6

6 BANDECCHI, B. Documento sobre imigração italiana em Ribeirão Preto. Revista de História, São Paulo, V. 35, N. 42, 1967.

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O discurso da classe dominante apresentava-se até por meio de um

nobre italiano, o conde Antonelli. Suas impressões, referente ao tratamento dos

imigrantes italianos no Brasil, foram retratadas em um número da Revista Agríco-

la, mantida pelo Estado, publicada em 1898, em que afirmava “quão felizes eram

os colonos italianos e, portanto, quão ingratos e injustos os detratores do Esta-

do”. Neste discurso abertamente legitimador dos interesses da classe dominante,

o conde Antonelli chegava a declarar que “ao contrário do que ouvira antes,

verifiquei que as autoridades brasileiras se põem ao lado dos pobres e despro-

tegidos estrangeiros, assegurando-lhes justiça contra a gente rica e poderosa. É

com esse critério que devemos julgar a sociedade brasileira e não pela apreciação

de desvios pessoais, que só atestam o caráter e educação de cada indivíduo,

muito variável em todos os países do mundo”.7 Ele passava então, a descrever as

boas impressões que teve da fazenda de Francisco Schmidt, da fazenda Dumont,

da Companhia Agrícola Ribeirão Preto e da fazenda de Veridiana Prado. Porém,

mesmo sendo um discurso legitimador da classe dominante não fugiu a certas

evidências de mau tratamento dado aos trabalhadores.

O discurso de contraponto ao discurso dominante aparece em nossa

pesquisa nas declarações dos trabalhadores em processos criminais referentes

aos conflitos que resultaram em agressão e até assassinatos envolvendo traba-

lhadores e responsáveis pela administração das fazendas. Foram levantados, no

período delimitado para estudo (1890-1920), 23 crimes envolvendo fazendeiros,

administradores, fiscais e feitores contra trabalhadores e 27 crimes atribuídos a

trabalhadores. Nestes discursos aparecem como responsáveis imediatos das in-

frações referentes ao contrato de trabalho, os administradores, fiscais e feitores

que atuavam como intermediários entre os trabalhadores e o fazendeiro, sendo

para eles canalizadas todas as formas de violência em ocasiões de revoltas. Nestas

falas evidencia-se que a interiorização da disciplina de trabalho não ocorreu de

maneira pacífica quando as condições de trabalho não respeitavam o estipulado

no contrato. A disciplina da força de trabalho levava a situações de tensão,

tanto em momentos de realização de tarefas, quanto na intromissão no âmbito

das questões consideradas particulares, ou seja, de interesse exclusivo da família

trabalhadora.

7 CARMO, G. A lavoura brasileira e os colonos italianos. Revista Agrícola, n. 13, 1898, p. 106-107.

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Em alguns processos criminais foram encontradas, nos depoimentos

de agredidos, agressores e testemunhas, informações relevantes que explicitam

a natureza das tensões no ambiente de trabalho, no espaço reservado à moradia

e a forma como essas tensões eram canalizadas para manifestações de violência

individual contra administradores, fiscais e feitores, funcionando assim, como

mecanismos de defesa aos excessos e a violência dos responsáveis pelo controle

e disciplina do trabalho.

Reclamações sobre os procedimentos duvidosos ou injustificados dos

administradores, fiscais e feitores das fazendas de café aparecem repetidamente

nos processos criminais envolvendo-os, tanto quando estavam na posição de réu

como de vítima, pois, pela maioria dos trabalhadores envolvidos, era alegado que

cometeram o crime em defesa própria.

Ao analisar a fala dos envolvidos nos processos concordamos, por ques-

tão de método, com Sidney Chalhoub8, no que se refere aos cuidados que se deve

ter ao analisar as versões que se apresentam nos depoimentos à Justiça. É preciso

verificar as versões que se repetem sistematicamente, os aspectos que ficam mal

escondidos e mentiras ou contradições que aparecem com frequência, pois nessas

declarações se reproduzem os conflitos.

Mesmo por mínimas questões, apresentadas no dia a dia, o tratamento

violento de empregados da administração das fazendas em relação aos colonos

prevalecia, revelando hábitos arraigados vinculados à escravidão, como o proces-

so em que foram vítimas os colonos italianos Raphael Ferrari de 54 anos e sua

esposa, Catharina Peppe, de 52 anos, empregados na Fazenda Santa Cruz, de Ga-

briel Junqueira, em Vila Bonfim. Segundo os depoimentos, no dia 23 de setembro

de 1912, por volta das 12 horas, no cafezal, o fiscal da fazenda para provar sua

autoridade agrediu barbaramente os dois colonos. Este é um dos únicos casos

analisados na pesquisa em que o administrador tomou a defesa dos colonos e

chamou a polícia para prender o fiscal, que foi a julgamento, sendo absolvido em

13 de março de 1913.

A versão de Catharina Peppe sobre o ocorrido torna-se relevante para

apreendermos o comportamento habitual naquele contexto:

8 CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 23-24.

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(...) a declarante e seu marido varriam café no cafezal, quando por ali passando o fiscal Francisco Alexandre, começou a caçoar do marido pelo fato dele mancar devido a uma ferida que há muito tinha na per-na, ralhando com ele porque queria que levasse para a carroça sacos de café que estavam em pontos diferentes rapidamente; momentos depois voltando e vendo o marido abaixado juntando café, o fiscal sem nenhum motivo começou a esbordoar com um grosso cacete de peroba o marido da declarante, contra o qual também deu três pon-tapés, que vendo o marido ao chão e tão barbaramente espancado, em defesa dele, a declarante com o rodo de juntar café que tinha na mão, avançou contra o fiscal, desfechando-lhe uma pancada que não sabe se acertou, momento em que o fiscal voltando o cacete contra ela vibrou-lhe diversas pancadas, deixando a declarante ferida na ca-beça e com os dois braços quebrados caída por terra.9

Acontecimento análogo ao citado acima aparece em um processo cri-

minal em que a vítima, Ferdinando Marincli, 38 anos, casado, colono, natural da

Itália, residente na fazenda Buenópolis em Ribeirão Preto declarou que:

(...) no dia 25 de julho de 1912, às três horas da tarde no cafezal, o fiscal zangou-se e espancou o declarante na presença de muita gente que ali trabalhavam (sic), por reclamar uma rua de café que lhe cabia para colher e que havia sido dada a outro no dia anterior.10

As testemunhas arroladas neste processo, todas elas colonos italianos

e descendentes narraram o acontecimento em conformidade com a declaração da

vítima. Uma delas, Angelis Giovanni, alegou no seu depoimento que após o ocor-

rido, a colônia toda retirou-se do cafezal para a sede da fazenda a fim de pedir

providências ao administrador.11

A história recuperada através dos processos criminais, segundo Sidney

Chalhoub, é “uma encruzilhada de muitas lutas, das lutas de classe na sociedade,

9 Sumário Crime, Francisco Alexandre (réu), C. 96, AGFRP, 1912 , p. 4.10 Sumário Crime, José Augusto da Costa (réu), C. 96, AGFRP, 1912, p. 7.11 Ibid., p. 10-11.

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e é na análise de cada versão, no contexto de cada processo e na repetição das

relações entre as versões em diversos processos que podemos desvendar signifi-

cados e penetrar nas lutas e contradições sociais que se expressam e que, na ver-

dade, se reproduzem nessas versões e leituras.”12 O processo acima relata uma das

situações comuns da época, de antagonismos entre trabalhadores e responsáveis

pela administração das fazendas que, na grande maioria, eram brasileiros, fato

que além do cargo ocupado, os diferenciava da massa de trabalhadores das fazen-

das de café de origem europeia. Afloravam assim, manifestações de rivalidade e

discriminações por classe e etnia. Além disso, persistia ainda formas de controle

vigentes no período da escravidão.

Tomando um caminho inverso ao de Marisa Corrêa, que procura ex-

plicitar os principais passos de um processo e analisar as estratégias utilizadas

pelos chamados “manipuladores técnicos”, advogados, promotores e juízes no

julgamento de crimes passionais e, a partir daí, analisar as normas vigentes para

a conduta moral de homens e mulheres consideradas legítimas13, procuramos ana-

lisar apenas os crimes e as diversas fala dos trabalhadores, tanto na condição de

réu como de vítima ou testemunha, seja de acusação ou defesa, no sentido de

compreender o universo construído pelos próprios trabalhadores e analisar até

que ponto foram assimiladas ou contestadas as normas dominantes e os mecanis-

mos utilizados para tal.

A título de exemplo, apresentamos uma denúncia de insubordinação de

trabalhadores imigrantes datada de 1896:

Carlos Belarmino de Almeida, por seu advogado, vem perante V. Sra. queixar-se de Luiz Torsani, Salvador Torsani, João Torsano, Alberi-co Torsani, Cesar Torsani, Luiz Negri, João Negri, Frederico Polozzi, Raymundo Perracini, José Sempucci, Domenico Zacanatto, Alexan-dre Zaccanatto, Octtávio Zacanatto, Ferdinandi Marradi, pelos fatos que passa a expor: viviam os querelados na fazenda Boa Vista, em Ribeirão Preto, a vida afanosa, mas remuneradora de todo trabalha-

12 CHALHOUB, S. Op. cit., p. 23-24. 13 CORRÊA, M. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

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dor agrícola do Brasil. Camponeses da baixa Itália, há pouco menos de um ano tinham abandonado a pátria. Alojados convenientemen-te, recebendo paga pontual de seus serviços, nenhum motivo de queixa tinham os querelados de seus patrões e confrontando o pas-sado (quando lhes escasseava o pão na pátria) e o presente, de certo haviam de bem dizer muitas vezes a Providência que os levara aquela fazenda. Na Itália, a fome, a miséria e a penúria, ali a abundância, o conforto e senão a esperança, de riqueza, pelo menos a certeza desta abastança se de um momento para o outro, sem motivo e sem ra-zão não tivessem se desviado do que deviam seguir, constituindo-se em greve, insubordinando-se a mão armada e tentando assassinar o queixoso, administrador da fazenda.14

O promotor ao acolher o discurso da classe dominante com esta de-

núncia veicula a ideologia de que o trabalho é o único meio de os trabalhadores,

inclusive os de nacionalidade estrangeira, ascenderem socialmente. O caminho

percorrido para isso era o “trabalho árduo”, acrescentado muitas vezes de “sofri-

mentos”, a serem compensados posteriormente com a possibilidade destes traba-

lhadores, pouparem um pecúlio. Na denúncia o estereótipo do imigrante insatis-

feito e ingrato é construído e o proprietário, apresentado como alguém que está

cumprindo a sua parte acolhendo os trabalhadores e dando-lhes trabalho.

O conflito, que acabou em agressão mútua entre trabalhadores e admi-

nistrador, teria sido iniciado, segundo os acusados, quando os colonos retornaram

da roça, poucos momentos após terem para lá se dirigido por ordem do fiscal da

fazenda Laurindo Jau Maria, que determinara a um grupo que fossem carpir os ca-

fezais e outro que realizasse o replante do café. Alegavam os colonos que devido

à forte chuva que caíra durante a noite anterior e que continuava pela manhã, o

terreno encontrava-se alagado, impedindo, assim, o trabalho.

No interrogatório do réu Luigi Torsani de 57 anos, casado, consta a

declaração de que

soube que foram os empregados da fazenda que feriram os colonos

14 Sumário Crime de Luiz Torsane e outros (réus), C. 106-A, AGFRP, 1896, p. 2.

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com porretes e armas, sendo isso feito injustiçadamente porque o fiscal queria que trabalhassem debaixo de muita chuva e em terreno alagado e que eles trabalhavam por ano e não por dia.15

A reconstituição de parte desses depoimentos torna-se muito impor-

tante, pois resgata a posição de cada trabalhador no microcosmo social de uma

fazenda naquele momento e indica a reação dos colonos ao não-cumprimento do

contrato de trabalho que estabelecia as tarefas com duração anual.

Além do uso de ameaças e violência física no controle e organização

do trabalho nas fazendas de café, outro meio muito utilizado era a aplicação

de multas contra os trabalhadores por faltas ao trabalho, serviços malfeitos e

insubordinações, inclusive sendo punidas reações de trabalhadores contra res-

ponsáveis pela direção dos trabalhos que fossem consideradas insultuosas ou

questionadoras de sua autoridade ou de seu prestígio. Essas multas variavam

entre 20 e 50 mil réis por infração, de acordo com o regulamento específico de

cada fazenda, caracterizando-se também como mais uma forma de controlar a

permanência do colono na fazenda, ou seja, endividando-o, pois no momento de

receber, o pagamento acabava, muitas vezes, com saldo negativo, ficando ainda

em débito com a fazenda devido às multas e o “acerto” da distribuição de gêneros

alimentícios efetuados pelo proprietário aos colonos. Toda a estrutura capitalista

montada com a expansão da agricultura cafeeira, portanto, aparece permeada por

estas relações não-capitalistas de produção, ou seja, distintas do salariado, pois

a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre foi recriando condições de

sujeição do trabalho ao capital, engendrando, ao mesmo tempo, um sucedâneo

ideológico para a coerção física do trabalhador.16

Os grupos de trabalhadores, entretanto, tomavam consciência de uma

identidade de interesses contra interesses diversos ou contrários aos seus. Muitas

vezes atos de rebeldia de um ou outro trabalhador transformavam-se em manifes-

tações de oposição ou reação coletiva às formas de controle, regulamentos im-

postos e injustiças. Os instrumentos de trabalho como foices, machados, enxadas

e rastelos passavam nessas condições a serem armas em suas mãos, demonstran-

15 Sumário Crime de Luiz Torsane e outros (réus), p. 83.16 MARTINS, J. de S. O cativeiro da terra. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 34.

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do assim a indignação e revolta, através do ajuste violento, revelando-nos uma

mínima organização, em momentos extremos, de solidariedade e resistência.

Noutro caso, o administrador da fazenda da Conceição em Sertãozinho,

Horácio de Castro, enfureceu-se com os colonos italianos por eles estarem traba-

lhando todos em um talhão, desrespeitando as instruções de trabalho individual.

Um dos colonos o enfrentou e na contenda foi atingido por um tiro. Esses colo-

nos, segundo depoimento de um deles, já haviam anteriormente feito queixas do

administrador ao agente consular que os aconselhou a trabalharem como fosse

ordenado, bem como recorrerem à autoridade policial caso fossem maltratados.17

O Consulado localizado na capital do Estado e os vice-consulados no interior

apresentavam-se aos trabalhadores estrangeiros como única instância a recorrer

nestes casos, sendo assim, agentes consulares eram procurados muitas vezes para

interceder junto aos fazendeiros para resolver problemas de maus-tratos a imi-

grantes, salários atrasados e conflitos ocorridos no trabalho.

Tentamos compreender o universo dos trabalhadores das fazendas de

café e constatamos que as situações de confronto entre trabalhadores e patrões

surgiram, por conseguinte, como forma de resistência às injustiças e condições

opressivas de vida e trabalho. Em muitas delas, o controle em excesso do tem-

po útil, as multas, a vigilância e a disciplina constante acabavam por provocar

manifestações momentâneas, apresentando-se apenas como atitude de defesa às

situações vivenciadas, demonstrando que não foram somente de movimentos or-

ganizados que se efetivou a luta dos trabalhadores no final do século XIX e início

do XX. Um dado a se notar quando apreendemos as experiências de resistência

dos trabalhadores, nos processos criminais consultados, foi o fato de assumirem

formas diferenciadas e desarticuladas em cada uma das fazendas em que houve

conflitos, porém com a mesma identidade de interesses, ou seja, reivindicavam

a garantia de condições mínimas de sobrevivência e trabalho em função de um

sentimento de moralidade contra uma injustiça percebida.

As greves nas fazendas de café não foram raras, contudo, pela própria

condição de isolamento vivida pelos trabalhadores em seu interior, restringiram

aos trabalhadores de apenas uma fazenda. Embora acontecessem nestas circuns-

17 Sumário Crime. Horácio de Castro (réu). C. 138, AGFRP, 1898.

200

tâncias, podiam tornar-se importantes pelo fato de muitas fazendas na região de

Ribeirão Preto reunir um número considerável de trabalhadores, mais até do que

muitas cidades na época, como a fazenda Monte Alegre que empregava 8.613

trabalhadores; a fazenda Dumont com 5.000 trabalhadores; a fazenda Guatapará

com 2.074; a Companhia Agrícola de Ribeirão Preto com 3.000 trabalhadores,

entre outras, segundo dados levantados pelo pesquisador inglês Reginald Lloyd,

em livro publicado em 1913.18

Greves coletivas reivindicando melhores salários, condições de tra-

balho e terras para o cultivo de cereais, envolvendo trabalhadores de algumas

das fazendas de café da região de Ribeirão Preto, em 1912 e 1913, marcaram

um novo momento nos movimentos de trabalhadores rurais que, até então, não

apresentavam muita articulação. Essas greves ocorridas em dois anos seguidos

aconteceram no início do mês de maio dos respectivos anos, coincidindo com o

início da colheita. Além disso, as comemorações do Primeiro de Maio, organi-

zadas pelas militâncias — tanto socialista, quanto anarquista — mobilizavam

os trabalhadores.

Na greve de 1912, iniciada pelos colonos da fazenda Iracema, de pro-

priedade de Francisco Schmidt, as reivindicações de melhores salários foram aten-

didas. A partir de um relato escrito por um participante anônimo, publicado no

jornal anarquista La Battaglia, apresenta-se o desenrolar do movimento grevista

que adquiriu grande organização dos colonos e uma maior mobilização. Este par-

ticipante anônimo curiosamente assinava o relato como “Um Socialista”. Nuances

de discurso anarquista ponteiam sua descrição, além de sugerir ter havido uma

vanguarda bem articulada a fazer a liderança do movimento — o “Diretório Se-

creto”:

(...) foi no dia quatro de maio de 1912 que se pôde efetuar a primeira reunião, seriam três horas da madrugada, ficando resolvido empre-gar todos os expedientes consoantes à razão do livre pensamento, resistindo até morrer no caso da justiça falhar.

18 LLOYD, R. Impressões do Brazil no Século Vinte. Londres: Lloyd’s, 1913, p. 350-366.

201RIBEIRÃO PRETO • A cidade como fonte de pesquisa | USP-Ribeirão Preto

A greve durou oito dias e nesta

não se adotou o sistema de cabeças ou chefes porque isso seria re-duzir à miséria ou à perseguição alguns dos membros mais caros dessa união. Procedeu-se por grupos de quatro ou cinco famílias, de acordo com a amizade desses grupos, havendo não um chefe para esse grupo, mas sim apenas uma família encarregada para transmitir o pensamento do Diretório Secreto que era quem resolvia todas as pendências (...) ao pessoal das fazendas próximas, que por ordem dos respectivos patrões foram tomar os serviços dos colonos de Ira-cema, foi advertido o mal que lhes fazia, sendo estas advertências por maneira a implorar compaixão. Quando voltaram pela Segunda vez foi-lhes pedido por favor que ficassem em suas casas para evitar sangue entre irmãos. Pela terceira vez, dos poucos que apareceram mostrou-se-lhes o caminho da traição, sendo por fim não só atendi-do como também apoiado.19

Com esse tipo de estratégia e os canais de comunicação estabelecidos

pelo Diretório Secreto, que exercia a liderança do movimento, tiveram suas rei-

vindicações atendidas e setenta famílias passaram a receber 600 réis por 50 litros

de café colhido.20

Por essa época já era considerável a propaganda socialista e anarquista

em São Paulo. No interior das fazendas de café na região de Ribeirão Preto e ou-

tras regiões, alguma penetração socialista e anarquista já acontecia, pois

(...) os militantes eram orientados a participar das rodas de prosa dos colonos à saída dos ergástulos, para vir Domingo à missa, ou fazer compras na cidade; nessas oportunidades, conduziam a tro-ca de ideias para o tema da questão social e das penosas condições de existência dos interlocutores, presenteando-os na despedida com um jornal de propaganda e se possível um convite para reuniões.21

19 Greve de Iracema. La Battaglia. São Paulo, 18/05/1912.20 Ibid.21 BEIGHELMAN, P. O movimento operário ante a grande lavoura no período imigrantista. In PRADO, A. A. (org.). Libertários do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

202

Devido ao considerável número de analfabetos supõe-se que só era

possível saber o seu conteúdo quando algum trabalhador letrado fazia a leitura

em voz alta.

A greve do ano seguinte, em 1913, deflagrada em algumas fazendas

de Ribeirão Preto (de propriedade de Francisco Schmidt, Quinzinho da Cunha,

Companhia Agrícola Dumont e fazenda Macaúbas), mobilizou cerca de 10.000 a

15.000 trabalhadores, porém não obteve o relativo sucesso da greve do ano an-

terior, pois os trabalhadores encontraram os fazendeiros mais unidos para abafá-

la. Esta greve, entretanto, adquiriu importância singular pelo número expressivo

de trabalhadores que aderiram a ela e pelo grau de organização e mobilização

empregado.

A greve de 1913, em Ribeirão Preto, por constituir-se em um marco no

movimento operário no Estado de São Paulo, foi relatada em diversas publicações.

As fontes são os jornais da época, especialmente os jornais anarquistas e socia-

listas que relataram os fatos com maiores detalhes, denunciando más condições

de vida e trabalho dos colonos. Há registro em Germinal, La Barricata, Fanfulla,

Avanti!; no artigo publicado por Antônio Piccarolo na Revista Coloniale intitulado

La fisiologia d’uno sciopero22, bem como na publicação em forma de diário de Eu-

gênio Bonardelli, integrante de uma federação de várias organizações religiosas

italianas dedicadas à proteção dos imigrantes.23

Pelas fontes consultadas, o discurso da classe dominada transcrito e

reelaborado nas alusões de uma liderança apresenta-se, no caso da greve de 1913,

através tanto do discurso conservador de Piccarolo, defensor de um socialismo

reformista, bem como do discurso ponderado de Eugênio Bonardelli em favor dos

colonos em greve. O discurso mais radical está presente nos jornais anarquistas

e socialistas, a defender uma mudança mais ampla da sociedade e denunciar as

tradições profundamente elitistas e a arraigada mentalidade escravista da oli-

garquia cafeeira como meio de mobilizar operários e trabalhadores rurais a lutar

22 PICCAROLO, A. La fisiologia d’uno sciopero. La Rivista Coloniale apud HECKER, A. Um socialismo possível: a atuação de Antônio Piccarolo em São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988.23 BONARDELLI, E. Lo stato di Sao Paolo del Brasile e l’emigrazione italiana, p. 67-83 apud PINHEI-RO, P. S. e HALL, M. A classe operária no Brasil (1890-1930): documentos. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.

203RIBEIRÃO PRETO • A cidade como fonte de pesquisa | USP-Ribeirão Preto

pela causa socialista ou anarquista, de acordo com as diversas tendências do

movimento operário.

Já os depoimentos, tanto na condição de réu, como de vítima ou tes-

temunha, de trabalhadores encontrados nos processos criminais de lesão corporal

ou homicídio, para esclarecimento dos crimes ocorridos nas fazendas de café,

embora dirigidos e normatizados por uma autoridade judicial, sejam delegados,

advogados, promotores ou juízes, apresentava-se como um discurso direto e al-

ternativo à sociedade construída pela classe dominante, evidenciando formas

constantes de resistência empreendidas pelos trabalhadores rurais através de

ações informais em resposta ao controle social e à vigilância exercida sobre o seu

trabalho, seu tempo e espaços de lazer e circulação, sua privacidade e relações

interpessoais de solidariedade e convívio.

A atuação das vanguardas do movimento operário nas lutas e resis-

tências dos trabalhadores das fazendas de café teve pequena extensão, dadas as

condições específicas apresentadas no meio rural, pois pouco ou nenhum contato

havia entre os trabalhadores de cada uma das fazendas, sendo ainda mais difícil

o contato com os militantes. As entradas e saídas de pessoas de cada uma dessas

fazendas eram controladas de forma rigorosa, já que a intenção dos proprietários

era impossibilitar qualquer organização coletiva ou tomada de consciência da

exploração que sofriam. Na fazenda Boa Vista, por exemplo, segundo depoimento

de réus e testemunhas de um processo crime24, os trabalhadores só podiam re-

ceber visitas e deixar a propriedade aos sábados e domingos para fazer compras

e buscar correspondência mediante a autorização do administrador, sendo esta

permissão dada a apenas um membro de cada família.

Alguns indícios de mobilização socialista na região apareceram entre

1896 e 1902 aproximadamente, testemunhados pelo aparecimento de um jornal

local a divulgar as ideias socialistas25 e por representações locais no Segundo

Congresso Socialista.26 Porém o propósito de integrar os trabalhadores na vida

24 Sumário Crime. Luiz Torsane e outros (réus). C. 106-A, AGFRP, 1896.25 O Operário: órgão das classes laboriosas. Ribeirão Preto, nº 17, 17/06/1896.26 Das 37 corporações que se fizeram representar neste congresso ocorrido em São Paulo, entre 28/05 e 01/06 de 1902, 25 eram do Estado de São Paulo. Entre as do interior do Estado, na região de Ribeirão Preto, compareceram o Grupo Socialista Feminino de Ribeirão Preto, representado por Rina Ranzenigo (única representante feminina); o Círculo Socialista Internacional de Ribeirão Preto, repre-

204

política com a constituição de um partido não teve ressonância, pela própria

falta de proximidade das lideranças com os trabalhadores. Por outro lado, a ins-

tabilidade da atuação das lideranças e a dificuldade de comunicação com os

trabalhadores rurais, dificultaram qualquer tipo de organização sindical, apenas

influenciando o desenrolar das greves de 1912 e 1913 nas fazendas de café de

Ribeirão Preto.

A comunicação entre lideranças e o conjunto dos trabalhadores ru-

rais era muito frágil e inexistente, razão pela qual centramos nossos estudos

nas resistências cotidianas, isoladas e muitas vezes individuais desses agentes

marginalizados contra a opressão e atos injustificáveis de violência por parte de

responsáveis pela administração das fazendas.

Tentamos reconstituir a identidade dos trabalhadores a partir de um es-

tudo de como trabalharam, viveram, pensaram, sentiram, comportaram-se através

de seus próprios depoimentos. Um dos elementos dessa identidade está ligado à

valorização pelos colonos, sobretudo os de origem europeia, do trabalho familiar

que favoreceu a consolidação do sistema de colonato.

Outro aspecto importante dessa identidade era o fato de no país de ori-

gem os trabalhadores terem morado também no meio rural. A imigração, portanto,

ocorreu de uma “sociedade agrária para outra sociedade agrária”. Assim, homens e

mulheres vinham de um mundo com regras e valores muito precisos, que guiariam

seu comportamento na sociedade de adoção27, sendo um dos componentes da

identidade étnica. Era comum nas fazendas de café existir mais de uma colônia e

cada uma delas ter trabalhadores de uma determinada nacionalidade. No entanto,

sentado por Andrea Ippolito; o Círculo Socialista de Jardinópolis, representado por Alceste De Ambrys; o Círculo Socialista de Cravinhos, representado por Lamberto Ramenzoni. A finalidade do Congresso foi a criação do Partido Socialista Brasileiro. Neste congresso foi aprovado um programa mínimo de 36 reivindicações, entre elas a jornada de oito horas de trabalho; reconhecimento do direito de cidadãos brasileiros a todos os estrangeiros que tivessem um ano de residência no país; direito à instrução às crianças até 14 anos, encarregando-se o governo de providenciar escolas rurais e profissionais; adoção de uma lei de divórcio; justiça gratuita a todos; igualdade jurídica e política para os dois sexos; voto político para todos os cidadãos como também para as mulheres desde os 18 anos; liberdade efetiva de reunião e de greve; abolição dos artigos 204 e 207 do Código Penal que limitavam a liberdade de greve, ação e organização das agremiações de resistência entre os trabalhadores. O partido durou um ano e teve suas metas divulgadas pelo jornal socialista Avanti!27 ALVIM, Zuleika M. F. Brava gente! Os italianos em São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 76.

205RIBEIRÃO PRETO • A cidade como fonte de pesquisa | USP-Ribeirão Preto

o trabalho conjunto nas lavouras de café, realizados por trabalhadores das mais

variadas nacionalidades, aliado aos espaços restritos de sociabilidade que muitas

vezes não ultrapassavam os limites da fazenda, tornaram-se fatores de união e

solidariedade de pessoas de várias etnias, com diferentes hábitos e comporta-

mentos, vivendo na mesma situação, muitas vezes opressiva, o que levou-nos

a concluir que revoltas e conflitos manifestaram-se em situações de confronto

contra condições específicas de vida e trabalho, apresentadas no dia a dia.

Tentamos neste estudo, apreender regularidades no tocante aos valo-

res, representações e comportamentos sociais das diversas categorias de traba-

lhadores existentes nas fazendas de café, apresentados através da transgressão

da norma penal: os crimes de homicídio e lesão corporal, tomados como corpus

documental principal do trabalho.

206

Referências

ALVIM, Z. M. F. Brava gente! Os italianos em São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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Periódicos

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O OPERÁRIO: órgão das classes laboriosas. Ribeirão Preto, n. 17, 17/06/1896.

Arquivo Geral do Fórum de Ribeirão Preto

Sumário Crime, Adoni Servi e José Galiciolli (réus). C. 113, AGFRP, 1916.

Sumário Crime, Francisco Alexandre (réu). C. 96, AGFRP, 1912.

Sumário Crime, José Augusto da Costa (réu). C. 96, 1912.

Sumário Crime, Luiz Torsane e outros (réus). C. 106-A, AGFRP, 1896.

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