Tradução Ângelo Lessa 1ª edição - record.com.br · ser minha mãe adotiva, Harriet August, e...

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Tradução Ângelo Lessa 1ª edição Rio de Janeiro | 2017

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Tradução Ângelo Lessa

1ª edição

Rio de Janeiro | 2017

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Capítulo 1

O segundo cataclismo começou na minha décima primeira vida, em 1996. Eu estava morrendo a minha morte de sempre, indo embora aos poucos, entorpecido numa acolhedora névoa de morfina, que ela inter-rompeu como um cubo de gelo se arrastando pela minha espinha dorsal.

Ela estava com 7 anos, eu, com 78. Seu cabelo era loiro e liso, e estava preso num longo rabo de cavalo que descia pelas costas; meu cabelo, ou o que restava dele, era tão branco que brilhava. Eu usava uma bata do hospital feita para uma humilhação esterilizada; ela, uniforme escolar azul de um tom vivo e chapéu de feltro. Ela se empoleirou na lateral da minha cama, com os pés suspensos balançando, espreitan-do meus olhos. Então, olhou para o monitor cardíaco conectado ao meu peito, comprovou que o alarme estava desconectado, sentiu meu pulso e disse:

— Quase perdi você, doutor August.Seu alemão tinha um forte sotaque de Berlim, mas ela poderia ter

conversado comigo em qualquer idioma do mundo, que ainda seria apresentável. Coçou a parte de trás da perna esquerda, onde as meias três-quartos pinicavam por causa da chuva que ela havia apanhado lá fora. Enquanto coçava, disse:

— Eu preciso enviar uma mensagem de volta no tempo. Se é que se pode dizer que o tempo importa neste caso. Já que convenientemente

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você está morrendo, peço que transmita essa mensagem aos Clubes de sua época, assim como ela foi passada para mim.

Tentei falar, mas as palavras se amontoaram na minha língua e nada disse.

— O mundo está acabando — disse ela. — A mensagem tem sido transmitida de crianças para adultos, crianças para adultos através das gerações, vinda de mil anos no futuro. O mundo está acabando, e não podemos impedir. Então, agora é com você.

Descobri que naquele momento o tailandês era o único idioma que saía da minha boca de forma coerente, e as únicas palavras que consegui formular naquele momento foram:

— Por quê?Devo deixar claro que não perguntei por que o mundo estava acabando. Por que isso teria importância?Ela sorriu e entendeu o que eu queria dizer sem que eu precisasse

explicar. Inclinou-se e murmurou ao pé do meu ouvido:— O mundo está acabando, como sempre. Mas o fim está chegando

cada vez mais rápido.Aquele foi o começo do fim.

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Capítulo 2

Comecemos pelo começo.O Clube, o cataclismo, minha décima primeira vida e as mortes que

se seguiram — nenhuma delas em paz — são todas sem sentido, um instante de violência que explode e se esvai, vingança sem motivo, até que você perceba onde tudo começou.

Meu nome é Harry August.Meu pai é Rory Edmond Hulne; minha mãe, Elizabeth Leadmill,

embora só tenha descoberto esses fatos num estágio bem avançado da minha terceira vida.

Não sei dizer se meu pai estuprou minha mãe. A lei teria dificul-dade em interpretar o caso; talvez o júri se deixasse levar por algum advogado esperto que defendesse um lado ou outro. Disseram que ela não gritou, não resistiu, nem chegou a negar quando ele apareceu na cozinha na noite da minha concepção e, nos vinte e cinco inglórios minutos de paixão — e uso esse termo posto que raiva, ciúme e ódio também são paixões —, vingou-se de sua esposa infiel através da ajudante de cozinha. Nesse sentido, minha mãe não foi forçada, mas, levando-se em conta que ela era uma garota de vinte e poucos anos que vivia e trabalhava na casa do meu pai e dependia do dinheiro dele e da boa vontade de sua família, eu diria que resistir não era uma opção

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para ela, coagida pela situação tal qual houvesse uma faca encostada em sua garganta.

Quando a gravidez da minha mãe começou a aparecer, meu pai já havia voltado à ativa na França, onde serviria até o fim da Primeira Guerra Mundial como um major sem destaque da Guarda Escocesa. Em meio a um conflito no qual regimentos inteiros poderiam ser var-ridos do mapa num único dia, passar despercebido era considerado um feito digno de dar inveja. Portanto, ficou a cargo de Constance Hulne, minha avó paterna, expulsar minha mãe de casa sem escrever sequer uma carta de referência durante o outono de 1918. O homem que acabaria se tornando meu pai adotivo — e, ainda assim, um pai mais verdadeiro para mim do que qualquer relação biológica — levou minha mãe ao mercado local na traseira de sua carroça de pôneis e a deixou lá com alguns xelins na bolsa e a recomendação de que procurasse ajuda de outras mulheres do condado que estivessem passando por apuros. Um primo chamado Alistair, que compartilhava apenas um oitavo da carga genética da minha mãe, mas cujo superávit de riqueza mais do que compensava o déficit de conexões familiares, empregou minha mãe em sua fábrica de papel em Edimburgo. No entanto, à medida que a gravidez avançava, dificultando o cumprimento das tarefas, ela acabou discretamente dispensada por um funcionário subalterno a três cargos de distância do responsável pelo setor. Desesperada, ela escreveu para o meu pai biológico, mas a carta foi interceptada pela minha astuta avó, que a destruiu antes de ele ler o apelo de minha mãe; então, na véspera do Ano-novo ainda em 1918, minha mãe gastou os últimos tostões e comprou a passagem de trem mais barata saindo da estação Waverley, em Edimburgo, rumo a Newcastle e, uns quinze quilômetros ao norte de Berwick-upon-Tweed, entrou em trabalho de parto.

Um sindicalista de nome Douglas Crannich e sua esposa, Prudence , foram os dois únicos presentes no meu nascimento, que se deu no ba-nheiro da estação de trem. Disseram que o agente ferroviário ficou do lado de fora da porta para evitar que qualquer mulher inocente entrasse

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ali, com as mãos cruzadas atrás das costas e o quepe, coberto de neve, abaixado tapando seus olhos de um jeito que sempre imaginei ser mis-terioso e maligno. Tão tarde da noite, não havia médicos na enfermaria, ainda mais num dia festivo como aquele, por isso o médico demorou três horas para chegar. Chegou tarde demais. O sangue já se cristalizava no chão, e Prudence Crannich me segurava nos braços. Minha mãe estava morta. Quanto às circunstâncias de seu falecimento, conto apenas com o relato de Douglas, mas acredito que tenha sofrido uma hemorragia, e ela está enterrada numa sepultura com os dizeres “Lisa, † 1 de janeiro de 1919 — Que os Anjos a Guiem em Direção à Luz”. Quando o co-veiro perguntou à senhora Crannich o que devia constar na lápide, ela percebeu que nunca chegou a saber o nome completo da minha mãe.

Houve discussão sobre o que fazer comigo, aquela criança subita-mente órfã. Acredito que a senhora Crannich tenha se sentido bastante tentada a ficar comigo, mas sua situação financeira e o lado prático da ação a levaram a não seguir por esse caminho, assim como a interpre-tação taxativa e literal da lei feita por Douglas Crannich, bem como seu entendimento, esse mais pessoal, de propriedade. A criança tinha pai, exclamou ele, e o pai tem direito à criança. O assunto teria dado pano para manga, não fosse o fato de que minha mãe carregava consigo o endereço do meu futuro pai adotivo, Patrick August, aparentemente com a intenção de pedir sua ajuda para ver meu pai biológico, Rory Hulne. Houve averiguações para saber se esse homem, Patrick, poderia ser meu pai biológico, o que causou uma grande comoção no vilarejo, pois Patrick se via num casamento sem filhos com aquela que viria a ser minha mãe adotiva, Harriet August, e um casamento estéril num vilarejo afastado, onde a simples ideia da camisinha seguia sendo um tabu até os anos 1970, era sempre tópico para debates acalorados. A questão foi tão chocante que logo chegou à casa senhorial, a Mansão Hulne, onde residiam minha avó Constance, minhas tias Victoria e Alexandra, meu primo Clement, e Lydia, a infeliz esposa do meu pai. Acho que imediatamente minha avó teve suspeitas de quem era meu pai

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e da situação em que eu me encontrava, mas se recusou a se responsa-bilizar por mim. Foi Alexandra, minha tia mais jovem, quem demons-trou presença de espírito e uma compaixão que faltava ao restante dos familiares, e, vendo que as suspeitas recairiam bem rápido sobre a sua família assim que se revelasse a verdadeira identidade da minha falecida mãe, ela abordou Patrick e Harriet August com esta proposta: caso adotassem e criassem o bebê como se fossem deles — com os papéis de adoção formalmente assinados e a família Hulne como testemunha para acabar com todos os rumores de um caso extraconjugal, pois nin-guém tinha mais autoridade do que os moradores da Mansão Hulne, então, ela cuidaria pessoalmente para que todo mês recebessem uma quantia por todo o incômodo e para dar apoio à criança, e também para que, quando crescesse, tivesse perspectivas adequadas — não excessivas, que fique claro, mas pelo menos ele não viveria na situação deplorável que se espera de um filho bastardo.

Patrick e Harriet discutiram o assunto durante um tempo e, por fim, aceitaram. Fui criado como filho deles, como Harry August, e só comecei a entender de onde vinha e o que era na terceira vida.

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Capítulo 3

Dizem que há três etapas na vida para aqueles que vivem a existência em círculos. São elas a rejeição, a exploração e a aceitação.

São categorias bem superficiais, que englobam diversas outras camadas ocultas por trás dessas palavras mais amplas. A rejeição, por exemplo, pode ser subdividida em várias reações estereotipadas, como: suicídio, desânimo, loucura, histeria, isolamento e autodestruição. Como quase todos os kalachakra, eu vivi quase tudo isso em alguma etapa das minhas primeiras vidas, e a lembrança permanece em mim como um vírus enroscado na parede do meu estômago.

No meu caso, a transição para a aceitação foi tão difícil quanto se esperaria.

Minha primeira vida foi medíocre. Como qualquer jovem da época, fui convocado para combater na Segunda Guerra Mundial, na qual servi como um soldado da infantaria completamente medíocre. E, se a minha contribuição em tempo de guerra foi escassa, minha vida após o conflito pouco acrescentou a um senso de significado. Voltei para a Mansão Hulne após a guerra e assumi o posto que fora de Patrick, cuidando dos terrenos em volta da propriedade. Assim como meu pai adotivo, eu havia sido criado para amar a terra, o cheiro que ela exala após a chuva e o chiado repentino que toma conta do ambiente quando as sementes de tojo se espalhavam de uma só vez, e, se de alguma forma

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eu me sentia isolado do resto da sociedade, a sensação era apenas como a falta que um filho único sente de um irmão, um conceito de solidão sem a experiência para torná-la real.

Quando Patrick morreu, minha posição foi formalizada, embora àquela altura o esbanjamento e a apatia já tivessem acabado com pra-ticamente toda a riqueza dos Hulne. Em 1964, o Departamento Britâ-nico de Conservação comprou a propriedade. Com isso, passei meus últimos anos conduzindo excursionistas pelos pântanos descuidados e observando as paredes da mansão afundarem lenta e profundamente no lodo negro e úmido.

Morri em 1989, no dia da queda do Muro de Berlim, sozinho num hospital em Newcastle. Um pensionista divorciado e sem filhos que, até no leito de morte, acreditava ser filho de Patrick e Harriet August, falecidos há muito tempo, e que acabou morrendo da doença que tem sido o suplício recorrente das minhas vidas — mielomas múltiplos que se espalham pelo meu corpo até ele simplesmente parar de funcionar.

Como seria de se esperar, minha reação ao renascer exatamente onde havia começado — no banheiro feminino da estação de trem de Berwick-upon-Tweed, no dia de Ano-novo de 1919, com todas as memó-rias da minha vida anterior —, me deixou num estado de loucura bem típico. Quando minha consciência adulta voltou para o meu corpo de criança a plenos poderes, primeiro fiquei confuso, depois senti angústia, dúvida, desespero, então se seguiram os gritos, os berros a plenos pul-mões, até que, por fim, já com sete anos, fui internado no Hospício St. Margot para os Desafortunados, lugar ao qual eu realmente acreditava pertencer, e no sexto mês de confinamento consegui me jogar de uma janela do terceiro andar.

Olhando em retrospecto, compreendo que normalmente três anda-res não bastam para garantir a morte rápida e relativamente indolor que as circunstâncias justificavam, e eu poderia muito bem ter quebrado todos os ossos da parte inferior do corpo e, ainda assim, manter a cons-ciência intacta. Por sorte, caí de cabeça, e isso foi suficiente.

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Capítulo 4

Há um momento em que o pântano ganha vida. Eu gostaria que você visse, mas, de algum modo, sempre que caminhávamos juntos pelo campo, perdíamos esses preciosos e escassos momentos de revelação. Em vez disso, o céu tem ficado bastante nublado, da cor das pedras sob ele, ou a seca transforma a terra num lugar marrom, empoeirado e espinhoso, ou teve aquela vez em que nevou tanto que a porta da cozinha ficou presa por fora e eu precisei sair pela janela e, com uma pá, abrir caminho para a nossa liberdade, e, durante uma viagem em 1949, choveu sem parar, acho que por cinco dias ininterruptos. Você nunca viu o pântano logo depois da chuva, quando fica tudo púrpura e amarelo e cheira a solo negro e fértil.

Estava correta a dedução que você fez logo no começo da nossa amizade, de que eu havia nascido no norte da Inglaterra, apesar de todas as afetações e manias que adquiri ao longo de tantas vidas, e meu pai adotivo, Patrick August, nunca me deixou esquecer minhas raízes. Ele era o único capataz do patrimônio dos Hulne, e havia sido durante toda a sua vida. Assim como seu pai, e o pai dele, remontando a 1834, quando a recém-enriquecida família Hulne comprou a terra para dar forma a seu sonho de cidadãos da classe alta. Plantaram árvores, abriram estradas no pântano, construíram torres e arcos ridículos — construções extravagantes de donos extravagantes — que, na época

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do meu nascimento, já se encontravam tomados pelos musgos que evidenciavam sua decadência. Não era para eles o sórdido matagal que cercava a propriedade, com seus dentes de pedra e suas gengivas pega-josas de carne viva da terra. Mais vigorosas, as gerações anteriores da família criavam ovelhas, ou talvez seja mais justo dizer que as ovelhas se criavam sozinhas, nos prados que se estendiam até os muros de pedra, mas o século XX não foi generoso com a sorte dos Hulne, e o terreno, embora ainda de propriedade da família, encontra-se negligenciado, selvagem — o lugar perfeito para um garoto correr livre enquanto seus pais cumprem os afazeres. Curiosamente, ao viver minha infância no-vamente, fui bem menos intrépido. Meu conservador cérebro de idoso passou a considerar perigosos os buracos e penhascos que eu pulava e escalava durante a primeira vida, e usei meu corpo infantil como uma idosa talvez use um biquíni atrevido presenteado por uma amiga esguia.

Como o suicídio falhou espetacularmente na tarefa de terminar o ciclo dos meus dias, decidi dedicar a terceira vida à busca das respostas que pareciam tão distantes. Acredito que seja um pequeno ato de mi-sericórdia o fato de que nossas memórias voltem aos poucos, conforme avançamos na infância; por isso, a lembrança de ter me atirado para a morte surgiu, por assim dizer, como um resfriado que chega aos poucos, sem causar surpresa, apenas a confirmação de que aquilo acontecera e de fato não servira para nada.

Se considerarmos a ignorância uma forma de inocência e a solidão uma forma de se distanciar das preocupações, minha primeira vida teve um tipo de felicidade, por mais que não tivesse um objetivo concreto. Mas, já sabendo de tudo o que havia vivido antes, eu não poderia viver aquela nova vida da mesma forma. Não só por já saber os eventos que estavam por vir, mas principalmente por causa da nova forma de perce-ber a realidade ao meu redor, e, tendo sido exposto a essa realidade na minha primeira vida, nunca cheguei a pensar na possibilidade de que fosse uma mentira. Outra vez um garoto e ao menos temporariamente em comando de todas as minhas faculdades como adulto, percebi a

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realidade que muitas vezes é encenada na frente de uma criança na crença de que ela não será capaz de compreendê-la. Acredito que meus pais adotivos me amaram — ela, muito antes dele —, mas, para Patrick August, eu nunca fui carne de sua carne até que minha mãe adotiva morresse.

Há um estudo médico sobre esse fenômeno, mas minha mãe adotiva nunca morre exatamente no mesmo dia em cada vida. A causa é sempre a mesma — a menos que fatores externos intervenham violentamente. Perto do meu aniversário de seis anos, ela começa a tossir, e, perto de eu completar sete, a tosse vem com sangue. Meus pais não podem pagar os honorários do médico, mas por fim minha tia Alexandra fornece a moeda para que a minha mãe vá ao hospital de Newcastle e volte com o diagnóstico de câncer de pulmão. (Acredito que sejam carcinomas de células não pequenas, confinadas primeiro ao pulmão esquerdo; frustrantemente tratável quarenta anos após esse diagnóstico, mas, na época, absolutamente fora do alcance da ciência.) O médico prescreve tabaco e láudano, mas a morte chega depressa em 1927. Após o faleci-mento, meu pai para de falar por completo e começa a fazer passeios pelas colinas, às vezes sumindo durante dias. Eu cuido de mim mesmo com total competência, e a partir de então, na expectativa da morte da minha mãe, estoco comida para me alimentar durante as longas au-sências de meu pai. Quando volta, ele permanece calado e distante, e, embora não responda com raiva a nenhuma das abordagens do meu eu infantil, isso se dá, em suma, porque ele não responde a absolutamente nada. Durante a minha primeira vida, eu não entendia seu sofrimento nem sua forma de manifestá-lo, pois eu mesmo me via sofrendo com a mudez exacerbada própria de uma criança que precisava de ajuda, ajuda essa que não tive dele. Na segunda vida, a morte da minha mãe se deu quando eu ainda estava no hospício, e eu me via concentrado demais na minha própria loucura para processar o fato, mas na terceira vida tudo veio como um trem que se aproxima devagar de um homem amarrado aos trilhos; inevitável, irrefreável, visto de longe à noite,

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e, para mim, saber de antemão o que vai acontecer era pior do que o acontecimento em si. Eu sabia o que estava por vir, e, de certa forma, quando ela morreu, foi um alívio, o fim de uma expectativa e portanto, um evento menos traumático.

A morte iminente da minha mãe também me proporcionou uma espécie de ocupação durante a minha terceira vida. A prevenção, ou pelo menos o gerenciamento da situação, havia se tornado minha prin-cipal preocupação. Como não encontrava explicação para o que vivia, salvo, talvez, que um deus do Antigo Testamento tivesse me lançado uma maldição, eu acreditava que, ao realizar atos de caridade ou tentar afetar os grandes eventos da minha vida, talvez quebrasse esse ciclo de morte-nascimento-morte que parecia ter se abatido sobre mim. Pensando não ter cometido crimes que precisassem de redenção e sem eventos maiores por desfazer na vida, eu me apeguei ao bem-estar de Harriet como minha primeira e mais evidente cruzada, e nela embarquei com toda a sabedoria que a minha mente de uma criança de 5 anos (já chegando aos 97) seria capaz de reunir.

Usei a ajuda que servia como desculpa para evitar o tédio da escola, e meu pai estava preocupado demais para prestar atenção ao que eu fazia; assim, eu me dediquei a cuidar da minha mãe e descobri como nunca antes o modo como ela vivia quando meu pai não se encontrava por perto. Acho que se pode pensar nisso como uma chance de conhe-cer, com a mentalidade de um adulto, uma mulher que conheci apenas brevemente quando criança. E foi então que suspeitei pela primeira vez que Patrick não era meu pai verdadeiro.

Toda a família Hulne foi ao funeral da minha mãe adotiva, quando enfim ela morreu na minha terceira vida. Meu pai entoou um breve discurso, e eu fiquei ao lado dele, um menino de 7 anos usando calça e paletó pretos emprestados de Clement Hulne, o primo três anos mais velho que, na minha vida anterior, implicava comigo, quando lembrava que eu estava lá para sofrer com seus maus-tratos. Apoiada na bengala com cabo de marfim talhado no formato de uma cabeça de elefante,

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Constance Hulne disse algumas poucas palavras sobre a lealdade e a força de Harriet, além da família que ela deixava. Alexandra Hulne me disse que eu deveria ser forte; Victoria Hulne se curvou e beliscou minhas bochechas, provocando em mim um estranho impulso infantil de morder os dedos enluvados que haviam profanado meu rosto. Rory Hulne não disse nada e ficou me encarando. Ele havia feito isso antes, na primeira vez em que eu pegara roupas emprestadas para enterrar minha mãe, mas eu, tomado de uma tristeza inexprimível, não com-preendera a intensidade daquele olhar. Dessa vez, nós nos encaramos, e pela primeira vez vi refletida a minha imagem, a imagem do que eu me tornaria.

Você não me conheceu em todos os estágios da vida, então me permita descrevê-los aqui.

Quando criança, eu nasço com o cabelo quase vermelho, tom que, com o tempo desvanece e os caridosos diriam que se torna castanho--avermelhado, mas que francamente parece mais a cor de uma cenoura. A cor vem da família da minha mãe verdadeira, assim como a propensão a ter bons dentes e à hipermetropia. Quando criança sou pequeno, um pouco mais baixo do que a média, e magro, embora isso se dê tanto pela má alimentação quanto pela predisposição genética. Meu estirão começa quando faço 11 anos e continua até os 15, quando, felizmente, posso fingir que sou um garoto de 18 anos que parece mais novo e, portanto, pular três anos entediantes e ir direto para a vida adulta.

Quando jovem, eu deixava a barba crescer desgrenhada, tal qual meu pai adotivo, Patrick; mas ela não me cai bem, e, quando a deixo descui-dada, fico parecido com um conjunto de órgãos sensoriais perdido num arbusto de framboesa. Quando tomei consciência disso, comecei a fazer a barba com regularidade, revelando assim a face do meu pai verdadeiro. Temos os mesmos olhos acinzentados, as mesmas orelhas diminutas, o cabelo levemente ondulado e um nariz que, junto com a tendência a ter doenças ósseas quando idoso, provavelmente é a pior herança genética que ele me legou. Não que o nariz seja especialmente grande — não é;

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mas ele é tão inegavelmente arrebitado que se encaixaria bem no rosto do rei dos duendes, e em vez de ser delineado na minha face e traçar um ângulo com meu rosto, parece homogeneizado, fundido com a minha pele, como se fosse um apêndice moldado em argila, não em osso. As pessoas são educadas demais para comentar, mas vez ou outra, quando uma criança menos comedida e dona de um melhor material genético o vê, começa a chorar. Quando idoso, meu cabelo fica tão branco que parece um flash de fotografia; o estresse pode adiantar a descoloração, e nem a medicina nem a psicologia são capazes de preveni-la. Preciso de óculos para ler aos 51 anos; lamentavelmente chego a essa idade du-rante a década de 1970, época ruim para a moda, portanto, assim como quase todos que chegam a certa idade, eu recorro ao estilo com que me sentia mais à vontade quando jovem e escolho uma armação discreta e antiquada. Com eles na frente dos meus olhos, que são mais juntos do que o normal, eu me olho no espelho do banheiro e percebo que fico igual a um acadêmico idoso; era um rosto ao qual, no momento de enterrar Harriet pela terceira vez, eu já tivera quase cem anos para me familiarizar. É o rosto de Rory Edmond Hulne, encarando-me do outro lado do caixão da mulher que não poderia ser minha mãe verdadeira.

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