Traduzindo Nerval - SciELO - Scientific Electronic Library ... · PDF fileAo me propor a...

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    o ano de 1990, traduzi os vinte sonetos que compem a srie completa de Les chimres de Nerval, ou seja, os doze sonetos que levam exatamen-te esse ttulo, juntamente com os oito outros que constituem as Autres

    chimres, um conjunto de uma unidade evidente, uma totalidade a ser mantida.Fiz a traduo a partir de um convite de meu amigo Marco Lucchesi, que

    pretendia publicar uma edio bilngue pela editora carioca Numen. Para minha surpresa, a traduo fluiu com muita rapidez, sendo os vinte sonetos vertidos para a nossa lngua entre os dias 12 e 16 de maro daquele ano. Alm da primeira edio de 1990, tal traduo teve uma edio portuguesa em 1995, pela Hiena Editora, de Lisboa, e uma segunda edio brasileira pela editora Topbooks, do Rio de Janeiro, em 1996, o que demonstra uma boa recepo. Ainda no presen-te ano a srie reaparecer no meu livro Cinco sculos de poesia: poemas traduzi-dos, pela Editora Record.

    Sobre o meu interesse pessoal em Grard de Nerval, e especialmente em Les chimres, creio que a melhor ilustrao possvel se encontra no seguinte tre-cho do prefcio ao livro:

    O primeiro Nerval a ser conhecido foi o tradutor de Goethe. O segundo o poeta amvel das Odelettes, o autor de lieder alemes em lngua fran-cesa, o lrico delicado dos Petits chteaux de Bohme. O terceiro, e o maior e definitivo, o visionrio, o louco, real e no apenas literrio, o criador de mitologias de Aurlia e de As Quimeras. Como com o Hlderlin da ltima fase, o preo da travessia do portal que se abre ao mundo invisvel foi a loucura, assim como com William Blake ou Swedenborg, com a poss-vel ressalva de os loucos sermos ns. Em nenhum desses casos chegramos ainda deciso racional e pr-surrealista de se tornar um vidente, como fez Rimbaud, atravs de um desregramento geral de todos os sentidos te-orizado e procurado.Entramos assim na controversa relao entre gnio e loucura. Poucas obras poticas, em toda a literatura francesa, deram origem a to vasta biblio-grafia como essas duas dezenas de sonetos, na verdade menos que isso, se considerarmos os que so quase variaes de outros e partes de outros, estranhamente permutadas. Na tentativa v de encontrar uma interpretao definitiva todas as doutrinas e escolas de pensamento foram chamadas, da Alquimia Psicanlise, da Cabala ao Orfismo, da Teosofia Numerologia, sem que nunca se tenha chegado a um resultado totalmente convincente. De fato, a pan-religiosidade das As Quimeras, a sua antiortodoxia em re-lao a qualquer sistema so os ndices infalveis da derrota de toda tentativa

    Traduzindo NervalALexei BuenO

    N

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    de interpretao absoluta. Pois, mais do que a afirmao da existncia de determinada verdade oculta, essa poesia originalssima a prpria verdade oculta, que se realiza mas no se desvela. Atravs dela entramos num mun-do de sensibilidade desconhecido para ns. Depois dela, apesar de sabermos que l estivemos, ela permanece desconhecido. Esse um milagre tpico da arte, a possibilidade de penetrar o mistrio sem desvend-lo, o que signifi-caria destru-lo. E como no perceber que o grande significado intrnseco do mistrio a sua prpria permanncia, tal como ele , na iminncia po-tencial de um desvendamento que o seu predicado mais autntico.Figura dcil e discreta do grande momento do Romantismo, biografica-mente tendendo a um estado de rverie muito comum at em individualida-des bem secundrias daquele perodo, Nerval foi pouco a pouco nutrido de todas as frustraes pessoais e sonhos no cumpridos que acompanham qualquer homem, alm de uma continuada leitura dos grandes textos inici-ticos abrindo a brecha na grande muralha da realidade concreta e indivi-svel, atravs da qual, nos seus ltimos anos de vida, conceberia o estranho coroamento de sua obra. Em As Quimeras, mais do que a estetizao de qualquer doutrina, encontramos um puro e intocado anelo do sagrado, alimentado indiscriminadamente por todas as suas manifestaes externas, mesmo antagnicas. Idntico anelo do sagrado o que encontramos, por exemplo, nos belssimos e hierticos poemas egpcios de ngelo de Lima, divulgados no primeiro nmero de Orfeu, em 1915.Nerval, alimentado havia muito por leituras ocultistas, gnsticas, pitagri-cas e cabalistas, alm do ambiente romntico favorvel a todo o fantstico, viveu pessoalmente o mergulhos na floresta das analogias arquetpicas, das simbologias delirantes. Anos depois, numa experincia semelhante, Strind-berg vagaria pelas mesmas ruas de Paris procurando, nos menores inciden-tes, um sinal escapado da verdadeira ordem oculta do mundo, a autntica frente da tapearia, da qual vemos apenas o reverso, e que a verdadeira origem e determinao de tudo que nos acontece.Entrando, como um arquelogo, no anfiteatro das cincias mortas, tocado para l por suas frustraes amorosas, biogrficas ou outras necessidades mais obscuras e profundas, Nerval se encontra no meio de runas da todas as religies, templos derrudos, esttuas derrubadas, inscries mutiladas, estranhas arquiteturas sacras de cultos desconhecidos ou mesmo inconcili-veis, mas que, no entanto, se misturaram no trovo ensurdecedor e escuro de suas quedas concomitantes, perante a pretensa invaso da razo de um sculo de luzes.Nesse cho juncado de humanidade h smbolos cristos revestindo deuses egpcios, rvores gregas sagradas crescendo sobre fundamentos de zigura-tes babilnicos, cordas de liras rficas enroscadas aos rosrios de santas pe-ninsulares, e a noite eterna da alma, como uma nica catedral indescritvel, crescendo sobre tudo.Ele ento, j o criador de genealogias alucinadas, descendente de persas

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    e de cruzados, de troncos napolenicos e normandos, como um grande iluminado, como um que realmente em sua vida passou pela experincia do desdobramento, a viso de que todo este universo apenas um lado da moeda, ali penetra, como um novo arquiteto, para reconstruir, em duas dezenas de sonetos, em duas dezenas de Quimeras, o seu templo rfico--cltico-egpcio-pitagrico-cabalstico-cristo, onde ele mesmo, com o san-gue mitologicamente nobre que corre em suas veias, o nefito e o mestre, o sacrificador e a vtima, o sacerdote e o dolo oculto.A esto as fadas e as rainhas, os drages mortos e os deuses vingadores, as santas e as grotas impenetrveis, dos quais s uma mente tem a viso e o se-gredo. E dessa confuso de todos os arqutipos, desta corrida alucinada de todas as analogias, desta compensao sagrada de todas as limitaes de nossa vida miservel, desta srie de quadros de Gustave Moreau pintados com pala-vras antes que Moreau os pintasse, emergem, pela primeira vez, e nunca to claramente, o Simbolismo, fonte de toda a poesia moderna, e o Surrealismo, que sempre de alguma maneira impregnou toda a literatura que lhe sucedeu.Este o sacerdote e estes seus altares. Este Nerval e As Quimeras.

    Nessa empreitada segui o caminho que sempre me propus na traduo de poesia, ou seja, a manuteno mais estrita da forma do original, mtrica e rimi-camente, quando fosse o caso, e ritmicamente, em todos eles, a mesma posio no assunto, para usar o mais prestigioso dos exemplos, de Fernando Pessoa. Como antes afirmei, a traduo ocorreu com muita facilidade, talvez pela ndole prxima das lnguas. Nos variados poemas que traduzi, majoritariamente do ingls, do francs, do italiano e do espanhol este bem menos que os outros, por sua grande proximidade com o portugus me dar comumente a impresso da pouca utilidade das tradues esse nvel de fluncia, de maior ou menor facilidade, sempre variou muito. Em lngua inglesa, por exemplo, a traduo que fiz do poema excelsoir, de Longfellow, fluiu com uma naturalidade assombro-sa, redundando num muito belo poema romntico em portugus, tal como o seu original. J a traduo da The charge ot the Light Brigade, de Tennyson, parece-me ter sido a mais difcil de quantas fiz at hoje, entre outros motivos por ser um poema em versos curtos, e numa lngua com as palavras comumente mais curtas do que as nossas, uma lngua de forte tendncia monossilbica como o ingls.

    Ao me propor a traduzir os doze sonetos de Nerval, de incio tomei uma deciso que me parece acertada, traduzi-los em dodecasslabos, mas no obri-gatoriamente em alexandrinos, como o original. Os dodecasslabos acentuados na sexta e, obviamente, dcima segunda slabas, me pareceram mais prximos da ndole da nossa lngua do que o alexandrino, cuja obrigao do hemistquio poderia dificultar a recuperao de outros valores muito mais importantes dos poemas. O alexandrino, de fato, sempre foi um verso transplantado artificial-mente para o portugus, sendo da maior naturalidade, no entanto, numa lngua com um lxico de tendncia fortemente oxtona como a francesa.

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    Obviamente, em muitos casos os dodecasslabos tambm eram alexandri-nos, mas nunca de maneira procurada. Como exemplo reproduzo o primeiro, e provavelmente o mais clebre soneto da srie, no original e na respectiva tradu-o (12.3.1990):

    eL DeSDiCHADO

    Je suis le Tnbreux, _ le Veuf, _ linconsol,Le prince dAquitaine la tour abolie :Ma seule toile est morte, _ et mon luth constellPorte le soleil noir de la Mlancolie.

    Dans la nuit du tombeau, toi qui mas consol,Rends-moi le Pausilippe et la mer ditalie,La fleur qui plaisait tant mon coeur dsolet la treille o le pampre la rose sallie.

    Suis-je Amour ou Phbus?... Lusignan ou Biron?Mon front est rouge encor du baiser de la reine ;Jai rv dans la grotte o nage la sirne...

    et jai deux fois vainqueur travers lAchron :Modulant tour tour sur la lyre dOrpheLes soupirs de la sainte et les cris de la fe.

    EL DESDICHADO

    Eu sou o Tenebroso, _ o Vivo, _ o Inconsolado,O Senhor de Aquitnia Torre da Abulia:Meu nico Astro morto, e o meu alade iriadoIrradia o Sol negro da Melancolia.

    Na noite Sepulcral, Tu que me hs consolado,O Poslipo e o mar Itlico me envia,A flor que tanto amava o meu ser desola