Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

138
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Damares Souza Silva Transposição didática: Uma proposta de ensino da referenciação na produção escrita DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA São Paulo 2017

Transcript of Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

Page 1: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Damares Souza Silva

Transposição didática:

Uma proposta de ensino da referenciação na produção escrita

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

São Paulo

2017

Page 2: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

Damares Souza Silva

Transposição didática:

Uma proposta de ensino da referenciação na produção escrita

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo como exigência parcial para obtenção

do título de DOUTOR em Língua

Portuguesa, sob a orientação do Professor

Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira.

São Paulo

2017

Page 3: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial

desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura______________________________________________

Data___________________________

e-mail_________________________________________________

Page 4: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

Damares Souza Silva

Transposição didática:

Uma proposta de ensino da referenciação na produção escrita

Tese de doutorado apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia da Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título DOUTOR

em Língua Portuguesa, sob a orientação do

professor doutor João Hilton Sayeg de

Siqueira.

Aprovado em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

Professor Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira – PUC-SP

_________________________________________________

Professora Doutora Dieli Vesaro Palma – PUC-SP

_________________________________________________

Professora Doutora Leonor Lopes Fávero – PUC-SP

_________________________________________________

Professor Doutor Marcelo de Abreu César – UNICID

_________________________________________________

Professora Doutora Rosana Valiñas Llausas – Faculdade Drummond

Page 5: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

Ao Nazareno e ao Nicolas, com amor.

À dona Delza, minha amada mãe.

Ao Mey e ao Molizanio, meus queridos irmãos.

Page 6: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por não me deixar perder a fé.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, pela oportunidade para cursar o

doutorado em Língua Portuguesa.

À CAPES pelo incentivo financeiro.

Ao Programa de Língua Portuguesa pela oportunidade de crescimento intelectual.

Ao querido professor Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira por me permitir ser eu mesma neste

percurso.

À professora Dra. Dieli Versaro Palma e à professora Dra. Leonor Lopes Fávero pela leitura

atenta e pelas valiosas sugestões.

Aos alunos participantes desta pesquisa pela acolhida e oportunidade.

Aos companheiros de estudo do programa pelas genuínas interações.

Ao professor Dr. Khalil Salem Sugui (amigo genuíno) por me mostrar esperança.

Page 7: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

RESUMO

O tema deste estudo está centrado no ensino da referenciação e seus respectivos efeitos de

sentido na produção do texto escrito, tendo como perspectiva as regras que orientam o

conceito de transposição didática de Chevallard. As questões que norteiam o estudo são: de

que modo as intervenções de ensino do conceito de referenciação podem favorecer o

domínio da referida atividade discursiva proporcionando ao estudante a capacidade de

produzir e desenvolver efeitos de sentidos na sua produção escrita? Quais aspectos podem

colaborar para que o professor desenvolva, aprofunde e potencialize a capacidade de

converter a teoria em prática no que diz respeito ao ensino da escrita? O objetivo geral da

presente investigação buscou analisar os efeitos de sentido da referenciação nas cartas de

leitor produzidas pelos alunos do nono ano do ensino fundamental após uma intervenção de

ensino acerca do conceito de referenciação. Consideramos quatro objetivos específicos:

identificar qual a relação do aluno com a produção textual; aplicar uma proposta de ensino

sobre o conceito de referenciação e seus respectivos efeitos de sentido; explicitar as

potencialidades dos efeitos do sentido da referenciação no gênero carta do leitor; orientar o

participante a compor uma carta do leitor visando o uso da referenciação como recurso para

compor o argumento. A investigação está balizada em estudos de Mondada e Dubois (2003),

Koch (1987; 1989; 1996; 1997; 2002; 2004), Koch e Elias (2009; 2012), Marcuschi (1983;

2001; 2005; 2007), Cavalcante (2004; 2005; 2010; 2014), Soares (1997; 2002), Pietri

(2010), Abrão (2009), Chevallard (1991) e Vygotsky (1984). Partimos das seguintes

hipóteses: o aluno pode aprender e aprofundar seus conhecimentos sobre a língua escrita

articulando aspectos de sua vivência em sociedade com novos conceitos ensinados na

escola; o professor é capaz de apreender conceitos atualizados desenvolvidos no espaço

acadêmico e, em posse do referido arcabouço teórico, ser autor da sua prática de ensino da

língua portuguesa, convertendo a teoria em prática à medida que lhe seja garantido o acesso

direto ao conhecimento teórico atualizado acerca do ensino da língua; o conhecimento dos

aspectos históricos da constituição da disciplina curricular da língua portuguesa pode

contribuir para identificar possíveis caminhos para desenvolver, analisar e erigir propostas

com a finalidade de sanar problemáticas do ensino da língua materna nos dias atuais.

Analisamos 15 produções textuais. Partindo do resultado da análise das referidas produções,

concluímos que as duas perguntas que erigiram esse trabalho mais o objetivo proposto e

aplicado nos ajudaram a reconhecer que é possível ensinar ao aluno o conceito de

referenciação, oferecendo condições de ensino que considerem a heterogeneidade discente,

de modo que o estudante possa usar as várias possibilidades de interação potencializadas

pelo processo de referenciação para produzir efeitos de sentido em sua produção escrita.

Palavras-chave: Referenciação. Ensino da escrita. Transposição didática.

Page 8: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

ABSTRACT

The subject of this study is centered on the teaching of referencing and its respective effects

of meaning in the production of written text, having as perspective Chevallard's rules that

guide the concept of didactic transposition. The questions that guide the study are: what

historical factors related to the the formation of Portuguese language discipline can facilitate

the understanding of features that permeate the practice of first language teaching nowdays?

How teaching interventions of the referentiation concept can promote the field of this

discursive activity by providing students the ability to produce and develop the sense effects

on their written work? Which aspects can help the teacher develop, deepen and enhance the

ability to convert theory into practice with regard to the teaching of writing? The overall

objective of the present research sought to examine the effects of referentiation in the letters

written by ninth grade students of elementary school after educational intervention about the

concept of referentiation. We consider four specific objectives: identify what is the

relationship of the student with the textual production; apply a proposal for teaching the

referentation concept and its respective meaning effects; clarify the potential effects of

referentiation meaning in the letter writing; guide the participant to compose a reader letter

aiming at referentiation as a resource for argument. The investigation is beaconed in authors

such as Mondada and Dubois (2003), Koch (1987; 1989; 1996; 1997; 2002; 2004), Koch

and Elias (2009; 2012), Marcuschi (1983; 2001; 2005; 2007), Cavalcante (2004; 2005;

2010; 2014), Soares (1997; 2002), Pietri (2010), Abrão (2009), Chevallard (1991) and

Vygotsky (1984). We start with the following assumptions: the students can learn and

deepen their knowledge of written language by articulating aspects of their own experiences

in society with new concepts taught in school; the teacher is able to grasp updated concepts

developed in the academic area and, in possession of that theoretical framework, be the

author of his Portuguese language teaching practice, converting theory into practice as is

guaranteed him direct access to updated theoretical knowledge about language teaching; the

knowledge of the historical formation aspects of the Portuguese language curricular

discipline can help to identify possible ways to develop, analyze and build proposals in order

to fix first language teaching problems nowdays. We analyzed 15 textual productions. Based

on the result of the analysis of these productions, we concluded that the three questions that

erected this work more the proposed objective helped us to recognize that it is possible to

teach students the referentiation concept, offering edcation policies that take in consideration

the students heterogeneity so that the student can use the various possibilities of interaction

increased by the referral process to produce meaning effects on his written work.

Keywords: Referentiation. Writing teaching. Didactic transposition.

Page 9: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9

1 REFERENCIAÇÃO: ENSINO DA ESCRITA ........................................................... 18

1.1 Referenciação e a construção de sentidos: coesão e coerência ............................. 18

1.1.1 Processamento textual e a construção de sentidos ............................................. 18

1.1.2 Coesão e referenciação ..................................................................................... 20

1.1.3 Coerência e referenciação ................................................................................. 25

1.2 Escrita e referenciação .......................................................................................... 30

1.2.1 Referenciação e produção de sentidos .............................................................. 31

1.2.2 Estratégias de referenciação e escrita ................................................................ 34

1.2.3 Introdução de referentes no modelo textual ...................................................... 35

1.2.4 Formas de progressão referencial ..................................................................... 38

1.2.5 Funções das expressões nominais ..................................................................... 42

2 TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA E CURRÍCULO ....................................................... 48

3 METODOLOGIA ....................................................................................................... 58

3.1 Operando com a regra 1 e a regra 2 ..................................................................... 58

3.2 Os sujeitos participantes ........................................................................................ 60

3.3 Caracterização dos instrumentos e procedimentos para a coleta de dados ......... 61

3.4 O plano de atividades para o ensino do conceito de referenciação: operando com

a regra 5 ................................................................................................................ 66

3.5 O plano de atividades para o ensino da produção da carta do leitor: operando

com a regra 3 e a regra 4 ...................................................................................... 72

3.6 Tratamento da análise ........................................................................................... 76

3.6.1 Procedimentos de análise ................................................................................. 76

3.6.2 Apresentação dos resultados ............................................................................. 76

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS ......................................................... 78

4.1 Carta do leitor 1 ..................................................................................................... 78

4.2 Carta do leitor 2 ..................................................................................................... 82

4.3 Carta do leitor 3 ..................................................................................................... 85

4.4 Carta do leitor 4 ..................................................................................................... 87

4.5 Carta do leitor 5 ..................................................................................................... 90

4.6 Carta do leitor 6 ..................................................................................................... 92

4.7 Carta do leitor 7 ..................................................................................................... 94

Page 10: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

4.8 Carta do leitor 8 ..................................................................................................... 95

4.9 Carta do leitor 9 ..................................................................................................... 97

4.10 Carta do leitor 10 ................................................................................................. 99

4.11 Carta do leitor 11 ............................................................................................... 101

4.12 Carta do leitor 12 ............................................................................................... 103

4.13 Carta do leitor 13 ............................................................................................... 105

4.14 Carta do leitor 14 ............................................................................................... 107

4.15 Carta do leitor 15 ............................................................................................... 109

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 111

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 113

ANEXO 1 – ATIVIDADES REFERENTES AO ENSINO DO CONCEITO DE

REFERENCIAÇÃO .................................................................................................. 118

ANEXO 2 – ATIVIDADES DE FIXAÇÃO DA APLICAÇÃO DO CONCEITO DE

REFERENCIAÇÃO .................................................................................................. 119

ANEXO 3 – ATIVIDADES PARA IDENTIFICAR COMO A REFERENCIAÇÃO

PODE CONTRIBUIR PARA ESTABELECER O SENTIDO DA

ARGUMENTAÇÃO NA CARTA DO LEITOR ...................................................... 126

ANEXO 4 – ENTREVISTA DA REVISTA VEJA ....................................................... 130

ANEXO 5 – ATIVIDADES DE LEITURA REFERENTE À ENTREVISTA............. 133

ANEXO 6 – ATIVIDADE DE PRODUÇÃO TEXTUAL 4 .......................................... 136

Page 11: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

9

INTRODUÇÃO

O tema deste estudo está centrado no ensino da referenciação e seus respectivos

efeitos de sentido na produção do texto escrito tendo como perspectiva as regras que

orientam o conceito de transposição didática.

Compreendendo que a transformação da teoria em prática é um dos grandes

problemas que envolvem o ensino da língua na atualidade, erigimos as seguintes indagações:

1. De que modo as intervenções de ensino do conceito de referenciação podem

favorecer o domínio da referida atividade discursiva proporcionando ao estudante

a capacidade de produzir e desenvolver efeitos de sentidos na sua produção

escrita?

2. Quais aspectos podem colaborar para que o professor desenvolva, aprofunde e

potencialize a capacidade de converter a teoria em prática no que diz respeito ao

ensino da escrita?

Estudos recentes têm mostrado que o ensino da leitura e da escrita no Brasil vem

enfrentando grandes dificuldades no que diz respeito à compreensão da teoria. Esses

resultados aparecem nos dados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF) do

período entre 2012 e 2015, calculados pelo Instituto Paulo Montenegro, em parceria com a

ONG Ação Educativa.

Os dados mostram que entre a população brasileira de 14 a 65 anos, a alfabetização

plena (capacidade de ler textos mais longos, relacionando suas partes, comparar e interpretar

informações, distinguir fato de opinião, realizar inferências e sínteses) não foi desenvolvida

totalmente nem mesmo por estudantes do ensino superior: apenas 22% dos indivíduos com

esse grau de instrução apresentaram pleno domínio das habilidades de leitura e de escrita.

Entre aqueles que cursaram um ou mais anos do ensino médio, somente 9% atingiram o

nível de alfabetização plena. No ensino fundamental, o cenário é mais precário: entre os

alunos que estão cursando do 6º ao 9º ano do ensino fundamental ou que já finalizaram essa

etapa de ensino, 32% estão no nível rudimentar (capacidade de localizar uma informação

explícita em textos curtos e familiares, como um anúncio ou pequena carta), e somente 3%

são considerados plenamente alfabetizados. Dos que estudaram até o 5º ano do ensino

fundamental, 49% atingem, no máximo, o grau rudimentar de alfabetismo, e 19% são

considerados analfabetos absolutos.

Page 12: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

10

Pesquisas recentes identificam as especificidades das dificuldades acerca do ensino e

da escrita. Entre elas estão as de Duarte (2009), Kusiak (2012), Mesquita (2013) e Brainer

(2012).

Duarte (2009) estabeleceu uma articulação entre o que preconizam os documentos

oficiais e o que efetivamente acontece na sala da aula. Nesse sentido, coordenou o projeto de

pesquisa O papel da linguística na formação do professor das séries iniciais: leitura e

escrita, no período de 2009 a 2011, no Campus Universitário do Baixo-Tocantins, e

investigou como o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita se desenvolviam em

escolas daquela região.

Os dados da pesquisa foram coletados por meio da observação em três classes (salas

de aula) de séries iniciais e de entrevistas com 20 professoras que atuavam na fase da

escolarização. A autora comparou os indicadores oficiais com a realidade sobre o ensino e a

aprendizagem da leitura e da escrita em escolas de Abaetetuba, Moju e Igarapé-Miri,

fazendo, ao mesmo tempo, uma articulação entre a formação inicial dos professores com

suas respectivas práticas pedagógicas. O referencial teórico-metodológico teve como base os

estudos de Smolka (2003) e Bakhtin (1988), autores que consideram a linguagem como

atividade discursiva.

Duarte partiu do pressuposto de que avaliar a proficiência em leitura e escrita é muito

mais do que computar números, resultados, indicadores. Segundo a autora, avaliar a

proficiência nesse sentido é, principalmente, analisar qual concepção de linguagem ancora o

ensino e a aprendizagem de língua portuguesa na escola. É também compreender o que se

espera do aluno quando se almeja que ele seja proficiente em leitura e escrita e quais

conhecimentos são exigidos do professor para que este possibilite ao aluno o domínio da

leitura e da escrita como práticas discursivas.

No que se refere aos alunos, ainda que os dados oficiais demonstrem que a

proficiência em leitura e escrita tenha avançado, Duarte identificou que a realidade das

escolas do Baixo-Tocantins não correspondeu a esse suposto progresso, pois os alunos

apresentaram um baixíssimo desempenho em atividades de compreensão, interpretação e

produção de textos sob uma concepção discursiva da leitura e da escrita. E no que se refere

ao professor, a investigadora concluiu que a formação inicial do professor faz

correspondência com sua prática pedagógica, pois o conhecimento do educador determina a

forma como ele lida com os fenômenos da linguagem no momento de trabalhar com a leitura

e a escrita.

Page 13: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

11

Além de mostrar a não correspondência entre os resultados oficiais da avaliação

externa com a realidade do domínio da escrita do aluno, o estudo de Duarte apontou para

uma outra problemática: a ausência do conhecimento apurado sobre concepção discursiva e

o ensino da leitura e escrita por parte do professor; algo que, consequentemente, explica as

razões por que o aluno não aprendeu tais conhecimentos. A constatação de Duarte nos

permite inferir que ou há ausência de políticas públicas voltadas para a formação do

professor de língua portuguesa ou as que existem são insuficientes para atender à demanda.

Outro aspecto que agrava ainda mais esse cenário é observado na pesquisa de Kusiak

(2012): de acordo com a referida autora, a avaliação externa é aplicada para analisar

somente uma perspectiva do ensino da língua materna, e tal instrumento de avaliação

externa diagnostica apenas o ensino da leitura, não contemplando uma análise (nem mesmo

por amostragem) do ensino e da aprendizagem da língua escrita.

Kusiak chegou a essa conclusão por meio da análise da Prova Brasil. A autora define

a Prova Brasil como um instrumento que tem a função de dimensionar os problemas da

educação básica brasileira e orientar a formulação, a implementação e a avaliação de

políticas públicas educacionais que conduzam à formação de uma escola de boa qualidade;

além de poder servir ao professor como objeto de reflexão sobre sua prática escolar e sobre o

processo de construção do conhecimento dos alunos, considerando a aquisição de

conhecimentos e o desenvolvimentos das habilidades necessárias para o alcance das

competências exigidas na educação básica.

A investigadora constatou que, embora as funções da Prova Brasil se voltem, na

teoria, para contribuir para melhorar a qualidade de ensino, ainda assim tal instrumento

apresenta inadequação em relação ao seu propósito, pois não avalia a aquisição da

linguagem escrita: o foco da análise da referida avaliação verifica somente a aquisição da

capacidade leitora dos alunos.

A referida autora sugere que, mesmo no que diz respeito à competência leitora, a

Prova Brasil mostra-se ineficiente para atingir os propósitos para que foi criada, uma vez

que analisa o conhecimento dos alunos apenas por recortes de habilidades como localizar,

identificar, distinguir, estabelecer, inferir, interpretar e reconhecer aspectos de variados

gêneros textuais. A conclusão a que a autora chega é que a Prova Brasil teria seus objetivos

atingidos, com êxito, se fosse organizada considerando a aprendizagem como um processo

complexo que contemplasse o processo de avaliação da escrita e, simultaneamente,

Page 14: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

12

mostrasse novas possibilidades educativas que pudessem ser aproveitadas para qualificar o

processo da linguagem escrita.

Mesquita (2013), considerando os problemas comuns relativos ao ensino de Língua

Portuguesa no Brasil e em Portugal, objetivou, a partir de uma perspectiva interacionista

sociodiscursiva (BRONCKART, 1999; 2008; SCHNEWLY; DOLZ, 2004), apresentar e

discutir alguns aspectos da situação da escrita nas salas de aula de escolas públicas de

Portugal comparando-a com a realidade brasileira atual.

Para tanto, Mesquita partiu da hipótese de que as diretrizes propostas pelos

documentos oficiais, divulgadas por meio da publicação e da distribuição dos Parâmetros

Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998), no Brasil; e por meio do Programa

Nacional do Português – PNEP e das Metas Curriculares (BUESCU et al., 2012), em

Portugal.

A autora crê que tais diretrizes não foram tão significativas a ponto de fazerem com

que houvesse uma mudança de concepção tanto de texto quanto de escrita no cenário escolar

e que o texto ainda não se configura como objeto de ensino nas aulas de Língua Portuguesa,

de modo que a escrita se caracteriza ainda como atividade realizada com base em moldes

tradicionais.

Mesquita compreende que, a despeito do cumprimento a diferentes diretrizes

nacionais destinadas a orientar o aluno à produção escrita, os resultados não se mostram

diferentes num país e noutro, o que permite que a autora suponha que apesar de boas

propostas para se trabalhar a escrita em sala de aula, apresentadas e defendidas por

pesquisadores da área e mesmo pelos documentos oficiais, os métodos utilizados pelos

professores não têm apresentado o resultado positivo esperado e a escrita continua sendo

usada como veículo para a transmissão dos conteúdos que interessam somente ao espaço

escolar.

Os dados foram coletados a partir de observação de aulas de Língua Portuguesa dos

alunos do ensino básico (5º ao 9º anos) de escolas públicas portuguesas da cidade de Braga.

O interesse central de observação foi o processo de produção escrita. Além da observação

das aulas, houve a coleta e a análise de textos produzidos pelos alunos por parte dos

professores, cujas aulas foram também alvo de observação. A partir da análise desses dados,

Mesquita almejou responder aos seguintes questionamentos: qual (ou quais) estratégias são

mais eficazes para esse propósito? A partir da análise dos dados coletados, a pesquisadora

concluiu que os professores utilizavam os mesmos métodos para levarem os alunos à

Page 15: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

13

produção escrita e que a reescrita não era entendida como etapa do processo de escrita. A

autora justifica que esses resultados podem estar associados ao modo como professores e

alunos concebem a entidade texto, o que, indiretamente, revela o modo como esses sujeitos

concebem a escrita.

Mesquita conclui seu estudo sugerindo que o desenvolvimento da habilidade da

escrita do aluno requer a adoção de uma concepção interacionista de linguagem, com a qual

o aluno possa ser orientado a perceber que a linguagem não é um produto que se apresenta

pronto, mas que se trata de um processo dialógico e que todas as ações de linguagem são

desenvolvidas a partir das interações sociais. A referida autora parte da premissa de que a

produção textual é uma atividade especial, a partir da qual todo o processo de ensino e

aprendizagem é construído e que, para que essa atividade seja produtiva e se concretize

como o espaço ideal para a pluralidade discursiva em sala de aula, é necessário que o

professor saiba conduzir as aulas de modo que, neste dado momento, o aluno tenha, de fato,

sobre o que falar; saiba como proceder linguisticamente e tenha um interlocutor com o qual

possa dividir suas intenções discursivas.

Assumimos assim a necessidade da adoção de uma perspectiva interacionista

sociodiscursiva, uma vez que legitimar essa postura significa considerar a linguagem como a

essência humana.

Mesmo estudos da área da educação que mostram avanços quanto às transformações

das práticas docentes em relação ao ensino da leitura e escrita não apresentam perspectivas

positivas em relação ao conhecimento linguístico do professor. É o caso da pesquisa de

Brainer (2012), cujo principal objetivo foi investigar os conhecimentos usados por

professores ao ensinar a leitura e a escrita aos alunos dos anos iniciais (2º, 3º e 4º anos do

ensino fundamental), em cujas turmas encontram-se crianças sem autonomia para ler e

escrever.

A investigadora procurou responder às seguintes questões: como os professores

ensinavam a ler e a escrever? Por que motivos eles ensinam da maneira que ensinam? De

que conhecimentos eles lançam mão ao escolher ou preferir ensinar do jeito que fazem?

Brainer adotou como fonte de dados questionários, entrevistas, observações de aulas e

análise de atividades elaboradas e ou selecionadas pelas docentes destinadas aos alunos. O

eixo principal da investigação foram os saberes docentes e a alfabetização. Considerando a

perspectiva dos saberes docentes, a autora dialogou com autores do currículo, da didática e

da formação, entre eles: Monteiro (2010, 2007, 2003), Shulman (1987, 1986), Tardif (2002,

Page 16: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

14

2000) e Moreira (2000, 1998). Buscando fomentar a perspectiva da alfabetização, dialogou

com estudiosos da psicolinguística, da linguística e da educação: Ferreiro e Teberosky

(1985), Kleiman (1995), Schneuwly e Dolz (2004), Solé (1998), Marcuschi (2005; 2007),

Chartier (2007, 2000), Smolka (1996), Carvalho (2005), Morais (2003, 2005), Mortatti

(2006), Sampaio (2008) e Soares (1997; 2002).

Os principais resultados mostraram que críticas aos professores sobre a permanência

de uma prática de ensino alicerçada numa pedagogia tradicional ou em antigos métodos de

alfabetização restrita à proposição de exercícios repetitivos e enfadonhos não são raras. No

entanto, os discursos e as práticas das professoras participantes do estudo em questão

contrariam essa perspectiva.

Segundo Brainer (2012), no momento de praticar o ensino da leitura e da escrita, as

professoras consideravam os saberes das suas próprias experiências práticas como

suficientes. A referida constatação da atitude das docentes nos permite inferir que as

educadoras não possuíam conhecimento teórico aprofundado sobre a alfabetização a ponto

de trazê-lo para amparar e orientar suas práticas.

Ao focalizarmos o ensino da leitura e da escrita, as professoras dos terceiro e quartos anos identificavam os saberes da experiência como aqueles

fundamentais para alfabetizar e, para elas especificamente, eram

insuficientes tendo em vista suas trajetórias profissionais. Associar a

alfabetização à experiência prática nos levou a questionar o reconhecimento pelas professoras da especificidade do objeto de

conhecimento envolvido no processo de ensino. Entendemos que para

ensinar o conhecimento da matéria ensinada constituísse um dos elementos fundamentais, o que implica no aprofundamento teórico dos estudos

produzidos na área específica. Dada à especificidade da alfabetização,

assumir uma identidade de professor alfabetizador implica maior qualificação à profissional, e consequentemente capacidade de crítica mais

apurada para escolhas metodológicas. (BRAINER, 2012, p. 191).

A observação de Brainer no que se refere à preferência das docentes em embasar o

ensino da alfabetização apenas em suas práticas, deixando de considerar concepções teóricas

que fundamentam tal prática, é um forte indício da falta de políticas assertivas de formação

inicial e continuada para o ensino da língua.

Os índices de alfabetização apresentados pelo INAF e os estudos sobre o ensino e a

aprendizagem da escrita evidenciam que o desempenho insatisfatório apresentado pelos

alunos brasileiros em língua portuguesa demonstra que, embora na atualidade um grande

número de estudantes adentre a escola, em menor escala lhes é garantido um nível

apropriado quanto ao conhecimento da linguagem escrita.

Page 17: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

15

Dessa forma, a análise dos resultados das investigações sobre a competência

escritora demonstram que os direitos de ensino e aprendizagem da leitura e escrita na escola,

espaço onde se deve garantir a concretização da realização desses benefícios, não tem

atendido seus interessados de modo a garantir e aprofundar a capacidade leitora e escritora

do discente.

E muitos são os motivos que contribuem para a não realização de tais objetivos.

Entre eles estão: resultados de avaliações externas que demonstram êxito na aquisição da

aprendizagem de leitura de alunos de uma determinada região (que, entretanto, não

convergem com a realidade do local, uma vez que investigações acadêmicas erigidas no

mesmo espaço identificam uma grande dificuldade do aluno); avaliações externas que

avaliam a competência leitora dos alunos da escola pública, mas que não consideram toda

complexidade que envolve tal saber; escassez de avaliações externas que que diagnostiquem

a qualidade de ensino e a aprendizagem da escrita dos alunos das escolas públicas;

insuficiência e/ou ineficiência de políticas públicas voltadas para formação inicial e

continuada para o professor e que garanta a este a apreensão do conhecimento e

compreensão das transformações epistemológicas da língua, bem como a adequada

aplicação do referido saber em sua prática.

Assim sendo, considerando as dificuldades que permeiam o ensino e a aprendizagem

da escrita, propomos um estudo que busca identificar quais estratégias de ensino podem

contribuir para que o aluno domine verdadeiramente os conceitos de língua escrita a ponto

de saber usá-los de modo compatível com suas inúmeras situações de interação.

Justifica-se o presente estudo à medida que apresenta uma proposta de ensino da

produção escrita articulando conhecimentos teóricos desenvolvidos no ambiente acadêmico

com a prática de ensino desenvolvida no espaço escolar, além de buscar identificar e

compreender fatores históricos relacionados à constituição da língua portuguesa que possam

identificar as transformações pelas quais passaram o ensino da língua portuguesa a fim de

compreender quais aspectos favoreceram o aparecimento de uma das grandes problemáticas

que circundam o ensino da língua na atualidade, ou seja, a grande dificuldade em articular o

conhecimento teórico atualizado acerca do ensino da língua com a prática de ensino na

escola.

O objetivo geral da presente investigação buscou analisar os efeitos de sentido da

referenciação nas cartas de leitor produzidas por alunos do nono do ensino fundamental após

uma intervenção de ensino acerca do conceito de referenciação.

Page 18: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

16

Consideramos quatro objetivos específicos; são eles:

1. Identificar qual a relação do aluno com a produção textual;

2. Aplicar uma proposta de ensino sobre o conceito de referenciação e seus respectivos

efeitos de sentido;

3. Explicitar as potencialidades dos efeitos do sentido da referenciação no gênero carta

do leitor;

4. Orientar o participante a compor uma carta do leitor visando o uso da referenciação

como recurso para compor o argumento.

As hipóteses que elencadas neste trabalho são:

a) O aluno pode aprender e aprofundar seus conhecimentos sobre a língua escrita

articulando aspectos de sua vivência em sociedade com novos conceitos ensinados

na escola;

b) O professor é capaz de apreender conceitos atualizados desenvolvidos no espaço

acadêmico e, em posse do referido arcabouço teórico, ser autor da sua prática de

ensino da língua portuguesa, convertendo a teoria em prática à medida que lhe seja

garantido o acesso direto ao conhecimento teórico atualizado acerca do ensino da

língua.

O estudo está dividido em quatro capítulos:

O capítulo 1 é intitulado “Referenciação: ensino da escrita”, e está dividido em duas

partes:

1.1 Referenciação e a construção de sentidos: coesão e coerência: que apresenta

os conceitos de coesão e coerência, identificando de que forma esses elementos podem

contribuir para construção de sentidos do texto, e divide-se em três subitens:

1.1.1 Processamento textual e a construção de sentidos

1.1.2 Coesão e referenciação

1.1.3 Coerência e referenciação

1.2 Escrita e referenciação: busca detalhar o conceito de referenciação e a

contribuição desses elementos para a construção de sentido na escrita. Está subdivido em

cinco partes:

1.2.1 Referenciação e produção de sentidos

1.2.2 Estratégias de referenciação escrita

1.2.3 Introdução de referentes no modelo textual

1.2.4 Formas de progressão referencial

Page 19: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

17

1.2.5 Funções das expressões nominais

O capítulo 2, “Transposição didática e currículo”, apresenta o conceito de

transposição didática e suas implicações no que tange ao currículo escolar.

O capítulo 3, “Metodologia”, detalha os procedimentos metodológicos abarcados

nesta investigação e dá a descrição do material e do método utilizado, bem como

informações sobre os participantes da pesquisa, o local onde foi realizado o estudo, o

delineamento deste e os instrumentos e procedimentos adotados.

O capítulo 4, intitulado “Apresentação e análise dos dados”, apresenta a descrição e a

análise de 15 produções textuais feitas pelos participantes da pesquisa.

Após as seções “Conclusão” e “Referências”, temos anexos relativos às atividades e

outros documentos usados para esta pesquisa.

Page 20: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

18

1 REFERENCIAÇÃO: ENSINO DA ESCRITA

Estudos acerca da referenciação evidenciam a relevância da referida atividade

discursiva para promover a progressão do texto e estabelecer efeitos de sentido, por sua vez

a coesão e a coerência são elementos que estão estreitamente relacionados ao processo de

referenciação do texto, e colaboram para que ocorra o processamento textual e composição

dos efeitos de sentido, assim apresentamos, neste capítulo, algumas características dos

referidos conceitos.

1.1 Referenciação e a construção de sentidos: coesão e coerência

Antes de introduzirmos o conceito de referenciação, vamos expor brevemente a

definição do processamento textual, conceito da Linguística de Texto que garante com

grande eficácia a compreensão de como ocorre a atribuição de sentidos ao texto.

1.1.1 Processamento textual e a construção de sentidos

O processamento textual, como dito, é um fenômeno que ampara a construção de

sentidos do texto, e de acordo com Koch (1996, p. 36):

Para o processamento textual contribuem três grandes sistemas de

conhecimento: o linguístico, o enciclopédico e o interacional (cf.

HEINEMMAN; VIEHWEGER, 1991).

A referida autora explicita a características de cada um deles da seguinte forma:

• Conhecimento linguístico: engloba o conhecimento gramatical e o lexical,

cabendo-lhe a função de articular som-sentido. É o conhecimento linguístico

que define, por exemplo, a organização do material linguístico na superfície

textual, a seleção dos meios coesivos de que a língua dispõe para elaborar a

remissão ou a sequenciação textual, e a escolha lexical adequada ao tema e/ou

aos modelos cognitivos ativados.

• Conhecimento enciclopédico (ou conhecimento de mundo): é o que está

armazenado na memória de cada indivíduo, e pode se referir ao conhecimento

do tipo declarativo (proposições a respeito dos fatos do mundo), ou do tipo

procedural (os “modelos cognitivos” socioculturalmente determinados e

adquiridos através da experiência). Esses modelos não só contribuem para

elaborar hipóteses sobre o conteúdo do texto partindo, por exemplo, de um

título ou de uma manchete, mas também favorecem o ato de criar

Page 21: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

19

expectativas sobre o(s) campo(s) lexical(ais) a ser(em) explorado(s) no texto

e a ação de elaborar as inferências que permitem completar as lacunas ou

incompletudes encontradas na superfície textual.

O conhecimento interacional, segundo Koch (1996, p. 36) “é o conhecimento sobre

as ações verbais, isto é, sobre as formas de interação através da linguagem. Engloba os

conhecimentos do tipo ilocucional, comunicacional, metacomunicativo e superestrutural”.

O conhecimento ilocucional favorece o reconhecimento dos objetivos ou das

intenções que um falante, em determinada situação de interação, deseja atingir. Trata-se, nas

palavras de Koch (1996, p. 36):

[…] de conhecimentos sobre tipos de objetivos (ou tipos de ato de fala),

que costumam ser verbalizados por meio de enunciações características,

embora seja também frequente a sua realização por vias indiretas.

O conhecimento ilocucional por via indireta, de acordo com a referida pesquisadora,

exige dos interlocutores o conhecimento necessário para captação do objetivo ilocucional.

O conhecimento comunicacional está relacionado às normas comunicativas gerais, e

de acordo com Koch (1996, p. 36):

O conhecimento comunicacional é aquele que diz respeito, por exemplo, às

normas comunicativas gerais, como as máximas descritas por Grice (1968);

à quantidade de informação necessária numa situação concreta para que o parceiro seja capaz de reconstruir o objetivo do produtor do texto; à seleção

da variante linguística adequada a cada situação de interação e à adequação

dos tipos de texto às situações comunicativas.

É por meio do conhecimento metacomunicativo que o produtor do texto pode evitar

perturbações previsíveis na comunicação, orientando o interlocutor na construção do sentido

ou para resolver possíveis conflitos. Segundo Koch (1996, p. 37), para evitar perturbações

na comunicação, é necessário introduzir no texto:

[…] sinais de articulação ou apoios textuais, marcadores ou operadores discursivos, macroposições temáticas, etc.; no segundo caso, realiza

atividades metaformulativas específicas, como repetições,

parafraseamentos, resumos, correções, complementações, explicações, entre outras. Trata-se de ações linguísticas com as quais procura assegurar

a compreensão do texto e aceitação dos objetivos com que é produzido,

monitorando com elas o fluxo verbal (cf. MOTSCH; PASCH, 1985).

O conhecimento superestrutural refere-se ao conhecimento sobre estruturas ou

modelos textuais globais, e favorece o reconhecimento de textos como exemplares de classe

ou tipo específico. Está relacionado também ao conhecimento sobre as macrocategorias ou

Page 22: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

20

sequenciação, e sobre o alinhamento entre objetivos, bases proposicionais e estruturas

textuais globais.

O conhecimento sobre o processamento textual, na conclusão de Koch (1996, p. 37),

agrupa

[…] o saber sobre as práticas peculiares ao meio sociocultural em que

vivem os interactantes, bem como o domínio das estratégias de interação, como a preservação das faces, representação positiva do “self”, polidez,

negociação, atribuição de causas e mal-entendidos ou fracassos na

comunicação, entre outras.

Contribui para o processamento textual um fenômeno denominado textualidade, que,

segundo Costa Val (1991, p. 1), é o “conjunto de características que fazem com que um

texto seja um texto, e não apenas uma sequência de frases”. Além disso, nas palavras da

referida autora, “Beaugrande e Dressler (1983) apontam sete fatores responsáveis pela

textualidade de um discurso qualquer”.

Dois desses fatores que alavancam a textualidade, identificados por Beaugrande e

Dressler, são a coesão e a coerência, elementos que estão relacionados ao material

conceitual e linguístico do texto. Os outros cinco fatores são a intencionalidade, a

informatividade, a aceitabilidade, a situcionalidade, a informatividade e a intertextualidade,

que estão relacionados aos fatores pragmáticos inseridos no processo sociocomunicativo.

Focalizamos, no presente estudo, os aspectos da coesão e coerência relacionados à

referenciação, conforme descrito nos itens a seguir.

Nas duas próximas seções procuramos erigir os conceitos de coesão e coerência

examinando de que forma esses elementos podem contribuir para a construção de sentidos

do texto.

1.1.2 Coesão e referenciação

A coesão deve ser um elemento textual capaz de contribuir para o construto de

sentidos. Em razão da relevância desse conceito é que procuramos identificar as

características da coesão e suas possíveis características na superfície do texto, e ao mesmo

tempo buscamos analisar como a referenciação se relaciona com os aspectos coesivos

textuais.

Fávero (2012) e Koch (1989), tendo como base os estudos sobre coesão da clássica

obra de Halliday e Hassan, autores que compreendem a coesão como um conceito semântico

que se refere às relações de sentido existentes no interior do texto e que o definem como um

Page 23: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

21

texto, descrevem que a referência, a substituição, a elipse, a conjunção, e a coesão lexical

são os principais fatores de coesão. Beaugrande e Dressler (1981, apud KOCH, 1989)

afirmam que a coesão é possível por meio de dependências de ordem gramatical, de forma

que as palavras e frases, no texto, conectem-se entre si numa sequência linear.

Ao conceituar a coesão, Koch (1989, p.14 ) afirma que “[…] um texto não é apenas

uma soma ou sequência de frases isoladas”. Segundo a referida autora, para que se constitua

a coesão do texto é necessário que as perguntas que possam emergir da produção escrita

possam ser respondidas adequadamente pelos leitores. Para exemplificar sua definição, a

pesquisadora faz uma análise da seguinte fábula de Rubem Alves:

Os urubus e sabiás

(1) Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos

falavam… (2) Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, eles

haveriam de se tornar grandes cantores. (3) E para isto fundaram escolas e

importaram professores, gargarejaram dó ré mi fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os

mais importantes e teriam a permissão de mandar nos outros. (4) Foi assim

que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de

cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamavam por Vossa Excelência .

(5) Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos

urubus foi estremecida. (6) A floresta foi invadida por bando de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas

com os sabiás… (7) Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor

encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para

um inquérito. (8) “– Onde estão os documentos dos seus concursos?” (9) E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que

tais coisas houvessem. (10) Não haviam passado por escolas de canto

porque o canto nascera com elas. (11) E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente… “(12) –

Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à

ordem.” (13) E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás… (14) MORAL: Em terra de

urubus diplomados não se ouve canto de sabiá (ALVES, 1984 apud

KOCH, 1989, p. 13-14, grifo da autora).

Koch destaca vários termos no texto de Rubem Alves para elaborar uma série de

perguntas a fim de identificar os aspectos coesivos da fábula:

Veja-se o início tudo aconteceu: “Tudo aconteceu…”. Que “tudo” é esse?

Que foi que aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam? Em (3) temos o termo isto; “E para isto fundaram escolas...” Isto

o quê? De que se está falando? Ainda em (3) qual é o sujeito dos verbos

fundaram, importaram, gargarejaram, mandaram, fizeram? É o mesmo de

teriam? Fala-se em quais deles: deles quem? E quem são os outros? Qual é o referente de eles em (4)? Em (5), tem se novamente a palavr tudo: “Tudo

ia muito bem...Será que essa segunda ocorrência do termo tem o mesmo

Page 24: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

22

sentido da primeira? Em (7), a quem se refere o pronome eles? E, seus, em

(8) Quais são as pobres aves de que se fala em (9)? E as tais coisas? E as tais coisas? Elas, em (10), refere-se a pobres aves ou a tais coisas? De que

passarinhos se fala em (13)? (KOCH, 1989, p. 14).

A coesão do texto é comprovada pela autora que responde às referidas perguntas com

base em informações presentes na fábula: assim, tudo em (1) remete a toda a sequência do

texto, sendo, pois um elemento catafórico. Já isto em (3) e tudo em (5) remetem ao

enunciado anterior; o que os caracteriza como elementos anafóricos. Deles em (3) remete a

urubus de (2); que são, por sua vez, os urubus do sujeito (elíptico) da sequência de verbos

(fundaram, importaram, gargarejaram, mandaram, fizeram) em (3).

A pesquisadora, em sua análise, faz um destaque para a questão hierárquica (grau de

importância) dos personagens, identificando que o verbo teriam não se refere a todos os

urubus, e sim a “um subconjunto do conjunto dos urubus, que exclui o complemento

formado por outros”. Já em (4), a autora observa que eles pode remeter a urubus de (2), ou

“ao primeiro subconjunto citado anteriormente”. Semelhante fator ocorre em (7) quando

“eles retoma os velhos urubus que, por sua vez, retoma os urubus citados anteriormente”.

“Seus, em (8), remete a pintassilgos, sabiás e canários. Tais coisas refere-se aos

documentos de que se fala em (8)”. E, por fim, “Os passarinhos, em (13), remete a elas de

(10), que, por seu turno, remete a pobres aves, de (9) e esta expressão a pintassilgos, sabiás

e canários de (7) que retoma (6)” (KOCH, 1989, p.15 ).

Há outro conjunto de elementos, destacado por Koch, que indica relações de sentidos

entre enunciados ou partes de enunciados:

[...] oposição ou contraste (mas, em (2) e (11); mesmo, em (2); finalidade

ou meta (para, em (3) e (11); consequência (foi assim que, em (4); e, em

(7); localização temporal (até que, em (5); explicação ou justificativa (porque, em (9) e (10); adição de argumentos ou ideias em (11) […]

(KOCH, 1989, p.15 , grifo da autora).

Os mecanismos identificados por Koch por meio da fábula de Rubem Alves

contribuem para explicitar como esses elementos tecem o “tecido” (tessitura do texto). Tal

fenômeno, conclui a referida autora, é o que se denomina coesão textual, ou seja,

[…] é possível conceituar a coesão como o fenômeno que diz respeito ao modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual se

encontram interligados entre si, por meio de recursos também linguísticos,

formando sequências veiculadoras de sentidos. (KOCH, 1997, p. 45).

Marcuschi (1983) expõe um ponto de vista semelhante ao de Koch no que se refere à

coesão. Para o referido autor, os fatores de coesão são elementos que garantem a

Page 25: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

23

sequenciação superficial do texto, ou seja, são mecanismos formais de uma língua que

permitem estabelecer, entre os elementos do texto, relações de sentido.

Destacam-se duas importantes modalidades de coesão: a remissão e a sequenciação.

A coesão por remissão pode ter dois significativos papéis no texto: pode desenvolver a

função de:

1. (re)ativação de referentes; e

2. “sinalização” textual.

A reativação de referentes no texto é possível por meio da referenciação anafórica e

catafórica, conforme o exemplo destacado por Koch na fábula de Rubem Alves: “Assim

tudo em (1), remete a toda sequência do texto, sendo, pois um elemento catafórico” (KOCH,

1989, p.15 ). Já isto em (3) e tudo em (5) remetem ao enunciado anterior; o que os

caracteriza como elementos anafóricos. A reativação de referentes pela referenciação

anafórica e/ou anafórica constituem cadeias coesivas. As cadeias coesivas que retomam

referentes principais ou temáticos (protagonistas e antagonistas, na narrativa; ser que é

objeto de uma descrição; tema de uma discussão, em textos-opinião) como, por exemplo, na

fábula “Os urubus e sabiás”, em que os protagonistas urubus eram personagens

constantemente retomados no conjunto do texto.

Esse tipo de remissão pode ser efetuado por meio de recursos de ordem “gramatical”

– pronomes pessoais de terceira pessoa (retos e oblíquos) e os demais pronomes (os vários

tipos de numerais, advérbios pronominais (aqui, aí, lá, ali) e artigos definidos; ou em razão

de recursos de natureza lexical, como sinônimos, nomes genéricos, descrições definidas ou

mesmo por reiteração de um mesmo grupo nominal ou parte dele, e, por fim, por meio da

elipse. Nos próximos itens deste capítulo apresentaremos exemplos textuais de como ocorre

a reativação de referentes por recursos de ordem gramatical.

Algumas vezes a (re)ativação de referentes a partir de “pistas” expressas no texto

ocorre por meio da inferiação. É possível inferir, por exemplo, o todo a partir de uma ou de

algumas partes; um conjunto com base em um ou mais subconjuntos, como ocorreu na

análise elaborada por Koch (1989, p.15 ): “o verbo teriam não se refere a todos os urubus, e

sim a um subconjunto do conjunto dos urubus, que exclui o complemento formado por

outros”.

Também é possível inferir o gênero ou a espécie a partir de um indivíduo; enfim,

conhecimentos que compõem um mesmo “roteiro”, tendo como base um ou vários de seus

Page 26: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

24

elementos explícitos na superfície textual, conforme veremos nos exemplos expostos ao

longo deste capítulo.

A catáfora – “remissão para frente” – ocorre comumente por meio de pronomes

demonstrativos ou indefinidos neutros (isto, isso, aquilo, tudo, nada) ou de nomes genéricos,

e também através dos demais tipos de pronomes, de numerais e de advérbios pronominais.

A “sinalização textual” tem como função básica a de garantir a organização do texto,

tornando explícito ao interlocutor “amparos” para o processamento textual através de

“orientações” ou indicações para cima, para baixo (no texto escrito), para frente e para trás,

ou garantindo uma organização entre segmentos textuais ou partes do texto.

Para exemplificar as ocorrências de “apontamento” para trás, podemos incluir os

tipos de remissão com função “distributiva”, conforme o exemplo descrito por Koch (1997,

p.48 ): “Paulo, José e Pedro deverão formar duplas com Lúcia, Mriana e Renata,

respectivamente.”

Koch (1997, p. 49) defende um ponto de vista em relação à “sinalização textual”:

“Sou de opinião que, nesses casos de “sinalização”, seria mais adequado falar de ‘dêixis

textual’, como tem postulado, entre outros, K. Ehlich”.

Sobre o referido ponto de vista, Koch esclarece:

Segundo Ehlich (1981), as expressões dêiticas permitem ao falante obter

uma organização da atenção comum dos interlocutores com referência ao

conteúdo da mensagem. Para consegui-lo, o produtor do texto tem necessidade de focalizar a atenção do parceiro sobre objetos, entidades e

dimensões de que se serve em sua atividade linguística. Assim sendo, o

procedimento dêitico constitui o instrumento para dirigir a focalização do ouvinte em relação a um item específico, que faz parte de um domínio de

acessibilidade comum – o espaço dêitico. Os procedimentos dêiticos

atualizam-se através do uso de expressões dêiticas. Como as atividades de

orientação dêitica são atividades sobretudo mentais, ouso de expressões dêiticas em procedimentos dêiticos constitui uma atividade verbal com fins

cognitivos e, quando bem-sucedida, com consequências de ordem

cognitiva para o interlocutor. (KOCH, 1997, p. 49).

O que Ehlich busca, de acordo com a referida análise de Koch, é contrapor à noção

de anáfora, defendida na maior parte da literatura, ao que se chama de “dêixis textual”,

direcionando seu estudo. Para Ehlich, a “dêixis textual” é identificada como um uso

anafórico ou catafórico específico, e em virtude de tal perspectiva não tem sido considerada

uma “dêixis” propriamente dita. Com base nos pressupostos de Ehlich, Koch apresenta a

seguinte descrição:

Page 27: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

25

1. A anáfora estabelece uma relação de correferência ou, no mínimo, de

referência, entre elementos presentes no texto ou recuperáveis através da inferenciação; ao passo que a dêixis textual aponta, de forma

indicial, para segmentos maiores ou menores do contexto, com o

objetivo de focalizar neles a atenção do interlocutor.

2. Nos casos de anáfora tem-se, com frequência, instruções de congruência (concordância), o que raramente acontece na dêixis textual, efetuada em

geral por meio de formas neutras e de advérbios ou expressões

adverbiais, portanto invariáveis. 3. Através da remissão anafórica, estabelecem-se no texto cadeias coesivas

ou referenciais, o que não ocorre nos casos de dêixis textual. (KOCH,

1997, p. 51)

Se no caso de ocorrência de anáfora, Koch concorda com o ponto de vista de Ehlich

sugerindo que a dêixis textual não corresponde, integralmente, ao caráter anafórico.

Ao tratar da catáfora, a Koch (1997, p. 51) não defende o mesmo ponto de vista:

“parece-me que fica meio caminho ente os dois fenômenos” (dêixis textual e catáfora); e

apresenta dois exemplos concernentes ao seu ponto de vista: “1. Observem bem isto: não

lhes parece um tanto estranho? 2. Não estava habituado a coisas como estas: ser servido,

receber atenções e homenagens” (KOCH, 1997, p. 51).

A coesão sequenciadora contribui para o texto progredir, oferecendo-lhe a

continuidade dos sentidos. O sequenciamento de elementos textuais pode ocorrer de forma

direta (sem retornos ou recorrências), ou, por vezes, ocorrem na medida em que o texto

progride por meio de recorrências distintas, como de termos ou expressões, de estrutura

(paralelismo), de conteúdos semânticos (paráfrase), de elementos fonológicos ou prosódicos

(similicadência, rima, aliteração, assonância) e de tempos verbais.

A conclusão é que o conceito de coesão textual está relacionado a todos os processos

de sequencialização que garantem ou recuperam uma relação linguística significativa entre

os elementos contidos na superfície textual.

Em suma, entendemos através do conceito exposto que a coesão é um dos fenômenos

mais relevantes para se estabelecer sentido ao texto, e que a referenciação é uma atividade

discursiva que pode contribuir para o construto da coesão e estabelecer sentido ao texto.

1.1.3 Coerência e referenciação

Para Beaugrande e Dressler (1981 apud Koch, 1989, p. 17):

[…] a coerência diz respeito ao modo como os componentes do universo

textual, ou seja, os conceitos e relações subjacentes ao texto de superfície, são mutuamente acessíveis e relevantes, entre si, entrando numa

configuração veiculadora de sentidos.

Page 28: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

26

Marcuschi (1983), ao se referir aos aspectos da coesão, faz referência à importância

de distinguir coesão e coerência no construto de sentidos do texto. O referido autor concorda

com a opinião de muitos estudiosos dos referidos fenômenos de que os elementos coesivos

são relevantes para o estabelecimento de sentidos, todavia afirma que a coesão não é um

contingente necessário ou suficiente. Além disso, segundo o referido autor há textos cujos

recursos coesivos são inexistentes, mas que ainda assim demonstram continuidade que se dá

ao nível do sentido e não ao nível das relações entre os constituintes linguísticos. Em

contrapartida, há textos que trazem a ocorrência de um sequenciamento coesivo de fatos

isolados que permanecem isolados, e com isso não têm condições de formar uma textura. As

conclusões de Marcuschi levam a considerar as diferenças entre coesão e coerência.

A coerência, de acordo com o referido autor, é identificada como a totalização de

uma complexa rede de fatores de ordem linguística, cognitiva e interacional em que a

simples justaposição de eventos e situações em um texto pode ativar operações que

recobrem ou criam relações de coerência.

Com o objetivo de comprovar que podem existir textos nos quais não haja elementos

coesivos, mas em que a textualidade se dá no limiar da coerência, Koch apresenta o seguinte

exemplo:

Olhar fito no horizonte. Apenas o mar imenso. Nenhum sinal de vida humana. Tentativa desesperada de recordar alguma coisa. Nada. (KOCH,

1989, p. 18).

Ao mesmo tempo, pode haver sequenciamentos coesivos de enunciados que, pela

ausência de coerência, não constituem o texto, como no exemplo a seguir:

O dia está bonito, pois ontem encontrei seu irmão no cinema. Não gosto de

ir ao cinema. Lá passam muitos filmes divertidos.

(KOCH, 1989, p.18).

Antes de seguir com a definição do conceito de coerência, abrimos um espaço para

destacar a importância da coesão para emergir a coerência: é verdadeiro que o aspecto

coesivo textual não compõe condição adequada nem suficiente para que um texto possa ser,

de fato, um texto. Em contrapartida, não podemos deixar de observar que a adequada

aplicação de elementos coesivos potencializa o texto com grande legibilidade, porque

permite que as relações constituídas entre os elementos linguísticos presentes em sua

superfície venham à tona. Prova disso, é que em muitos tipos de textos – científicos,

Page 29: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

27

didáticos, expositivos, opinativos, por exemplo – a coesão é imprescindível como fator de

manifestação superficial da coerência.

Retomamos o conceito de coerência, que, nas palavras de Koch (1997, p.45 ), “diz

respeito ao modo como os elementos subjacentes à superfície textual vêm a constituir, na

mente dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos”.

De acordo com Koch e Travaglia (1990), a coerência é a soma de uma composição

elaborada pelos interlocutores, numa determinada situação de interação, pelo conjunto de

ações de um grupo de fatores de ordem cognitiva, situacional, sociocultural e interacional.

Embora a coerência não se aplique ao texto (ou seja, ela está “na mente dos

interlocutores”), não podemos desconsiderar que ela deve ser construída a partir do texto,

considerando os fatores de coesão contidos na superfície textual, que podem funcionar como

guia para orientar o interlocutor na composição do sentido. E para que possa haver o

desenvolvimento das relações satisfatórias entre tais elementos e o conhecimento de mundo

(enciclopédico), o conhecimento socioculturalmente compartilhado entre os interlocutores e

as práticas sociais acionadas no decorrer da interação, fazendo com que haja a necessidade,

em muitos momentos, de se estabelecer uma análise; recorrendo-se a estratégias de

interpretação, como o ato de inferir, e várias outras estratégias de negociação do sentido.

Koch afirma que a coerência pode ser estabelecida em diversos níveis, entre eles

sintático, semântico, temático, estilístico e ilocucional, colaborando todos eles para a

composição da coerência global.

A posição defendida por Koch (1997, p.53 ) é a de que “sempre se faz necessário

algum tipo de cálculo a partir dos elementos expressos no texto – como acontece na absoluta

maioria dos casos – já se está no campo da coerência”.

Segundo a pesquisadora, para interpretar de modo adequado as relações coesivas que

o texto sugere, nos submetemos a elaborar cálculos específicos considerando o sentido

possível dessas relações. Nessas ocasiões, portanto, é que vêm à tona os limites entre coesão

e coerência. Koch examina, segundo ela, seis zonas de intersecção que favorecem o

construto da coerência:

1. Anáfora semântica, mediata ou profunda – para fazer esse cálculo, é

necessário “extrair” o referente da forma referencial de modelos (“frames”,

“scripts”, “cenários”) armazenados na memória, ou seja, de conhecimentos que

constituem nosso “horizonte de consciência”:

Page 30: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

28

Como afirma Webber (1980), a relação entre situação discursiva ou

externa, de um lado, e os referentes da anáfora, de outro, é indiretamente mediada pelos modelos dos participantes, de modo que escolher entre os

possíveis antecedentes de uma forma anafórica pode, pois, demandar

habilidades sintáticas, cognitivas, pragmáticas, inferenciais e avaliativas

muito sofisticadas da parte do interlocutor. (KOCH, 1997, p. 54).

A seguir, três exemplos com os aspectos descritos acima:

1. O aposento estava abandonado. As vidraças quebradas deixavam entrar o vento e a chuva.

2. A baleia azul é um animal em vias de extinção. Elas ainda são

encontradas em algumas regiões do globo. 3. Chamaram-me a atenção os lábios vermelhos, os olhos profundamente

azuis, as sobrancelhas bem desenhadas, o nariz fino, a tez morena. Nunca

iria esquecer aquele rosto! (KOCH, 1997, p. 47, grifo da autora).

Os três exemplos exigem que ocorra a introdução contextual de entidades específicas

por meio do conhecimento de mundo comum entre os interlocutores.

2. A forma como é feita a remissão, ou seja, a composição das cadeias coesivas –

a seleção dos elementos linguísticos usados para fazer a remissão, o tom e o

estilo podem constituir índices valiosos das atitudes, crenças e convicções do

produtor do texto, bem como o modo como ele gostaria que o referente fosse

visto pelos parceiros. Remissões por meio de formas diminutivas, por exemplo,

podem sugerir o carinho ou a empatia do produtor pelo referente; ou dependendo

do tom, na fala, certas marcas prosódicas, expressões fisionômicas, gestos, etc.,

uma atitude pejorativa, permitindo, assim, aos interlocutores depreender a

orientação argumentativa que o produtor pretende imprimir ao seu discurso.

3. Referência por meio de expressões definidas – uma das formas de fazer a

remissão são justamente as expressões nominais definidas, ou seja, as descrições

definidas do referente. O uso de uma expressão definida implica sempre fazer

uma opção entre as propriedades ou qualidades que caracterizam o referente. Tal

opção será feita de acordo com aquelas propriedades ou qualidades que, em

específica situação de interação, em função dos objetivos a serem atingidos, o

produtor do texto tem interesse em ressaltar, ou mesmo tornar conhecidas de

seus(s) interlocutor(es). A seguir, Koch (1997, p.55 ) apresenta dois exemplos

desse tipo de remissão:

1. Reagan perdeu a batalha no Congresso. O presidente americano não tem tido grande sucesso ultimamente em suas negociações com o

Parlamento.

Page 31: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

29

2. Reagan perdeu a batalha no Congresso. O cowboy do faroeste

americano não tem tido grande sucesso com suas negociações com o

Parlamento.

Os exemplos anteriores demonstram que fazer opção por descrições definidas pode

oferecer ao interlocutor dados importantes sobre pontos de vista, crenças, e atitudes do

produtor do texto, amparando-o na composição do sentido. Por sua vez, o locutor pode

também, por meio da descrição definida, garantir ao interlocutor dados que acredita serem

desconhecidos deste, relacionado ao referente textual, com os mais variados propósitos.

Para exemplificar a afirmação anterior, Koch apresenta um exemplo em que o

locutor anuncia ao(s) parceiro(s) que Pedro é o atual namorado de sua irmã ou mesmo

colocar em evidência a troca de namorado da irmã: “Pedro não foi classificado no concurso.

O novo namorado de minha irmã não anda realmente com muita sorte” (KOCH, 1997, p.

55).

4. A seleção dos campos lexicais e a seleção de modo geral – a seleção lexical

mostra-se de grande valia para a construção do sentido. É possível fornecer aos

interlocutores pistas relevantes para compor a interpretação do texto e a

compreensão das finalidades com que é produzido, fazendo o uso de fórmulas de

endereçamento, de uma específica variante da língua, de gírias ou jargões

profissionais, de específicos tipos de adjetivação, de termos diminutivos ou

pejorativos e assim por diante.

5. Ambiguidades referencial – quando, no texto, emergem vários candidatos

possíveis a referentes de uma forma remissiva, torna-se necessário recorrer a um

cálculo para identificação do referente adequado. O referido cálculo terá de levar

em consideração o contexto e as possíveis instruções de congruência oferecidas

pela forma remissiva, isto é: as predicações elaboradas tanto sobre a forma

remissiva, como sobre os eventuais referentes, para só então formalizar a

“união” entre a forma referencial ambígua e o referente considerado adequado.

Assim sendo, torna-se necessário recorrer ao nosso conhecimento de mundo e do

contexto sociocultural em que nos encontramos alocados, além de outros

critérios como a saliência temática.

6. Encadeamento por justaposição – ao fazer o encadeamento de enunciados

apenas por justaposição, ausentando a relação que se pretende garantir entre eles

por meio de sinais de articulação (conectores, termos de relação, partículas de

transição entre segmentos textuais), resta ao interlocutor, com base em seus

Page 32: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

30

conhecimentos linguísticos e enciclopédicos, superar essa falta. Koch apresenta

dois exemplos referentes ao encadeamento por justaposição:

1. Não desejava ser vista por ninguém. Estava suja, cabelos em desalinho, o rosto banhado de lágrimas. Poderiam imaginar coisas a seu respeito. Não

queria pôr a perder a boa imagem que tinha dela.

2. Olhar fixo no horizonte. Apenas o mar imenso. Nenhum sinal de vida humana, Tentativa desesperada de recordar alguma coisa. Nada. (KOCH,

1997, p. 57).

As seis zonas de intersecção examinadas por Koch (1997, p.57 ) evidenciam duas

perspectivas da construção da coerência pelos leitores: a primeira “que o interlocutor, em

geral, não tem dificuldade em reconstruir a conexão do falante”, uma vez que faça uso dos

“processos cognitivos como, por exemplo, a ativação de frames1, a partir dos elementos que

se encontram expressos na superfície textual”; e a segunda é “outros casos existem, os quais

exigem dos interlocutores o recurso a processos e estratégias de ordem cognitiva para

procederem ao ‘cálculo’ do sentido”.

Portanto, o que fica evidente é que coesão e coerência são fenômenos distintos.

Todavia, muitas vezes há um entrelaçamento entre eles em razão do processamento textual e

a referenciação consiste na atividade discursiva realizada por esses dois fenômenos.

1.2 Escrita e referenciação

O conceito de referenciação destacou-se por meio dos estudos erigidos por Mondada

e Dubois (2003). As estudiosas divergem do modelo teórico que compreende as palavras

como uma representação precisa do mundo. Segundo as autoras, ocorre o contrário: ou seja,

não há imutabilidade entre palavra e objeto designado – há, sim, no texto uma mutabilidade

referencial, que muda de acordo com o ato de enunciação no espaço das relações

interpessoais.

Seguindo tal lógica, o referente é construído na interação. Assim, para enfatizar o seu

aspecto processual, procedeu-se chamá-lo de processo de referenciação. Na perspectiva de

Mondada e Dubois, o ato de enunciação cria categorias referenciais que modificam e se

modelam na progressão do texto. Por assim dizer, são retomadas e recategorizadas durante a

produção textual, construindo os objetos de discurso:

[…] as categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos

compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se

1 De acordo com Bentes (2012, p. 282), frame é o “conhecimento de senso comum sobre um conceito central,

e seus componentes podem ser trazidos à memória sem uma ordem ou sequência”.

Page 33: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

31

elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos

contextos. Neste caso, as categorias e os objetos do discurso são marcadas por uma instabilidade constitutiva, observável através de operações

cognitivas ancoradas nas práticas verbais e não verbais, nas negociações

dentro da interação. (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 17).

Concordando com o contínuo construto das expressões referenciais pelos

participantes durante o discurso, Marcuschi complementa a análise de Mondada:

[…] a maneira como dizemos aos outros as coisas é muito mais uma

decorrência de nossa atuação discursiva sobre o mundo e de nossa inserção sociocognitiva no mundo, pelo uso de nossa imaginação em atividade de

integração conceitual, do que simples fruto de procedimentos formais de

categorização linguística. O mundo comunicado é sempre fruto de um agir

comunicativo, construtivo e imaginativo, e não de uma identificação de realidades discretas e formalmente determinadas. (MARCUSCHI, 2001, p.

25).

1.2.1 Referenciação e produção de sentidos

Koch e Elias (2009) apresentam em sua obra Ler e escrever o conceito de

referenciação e sua relevância para a construção de sentidos na produção escrita. As autoras

concordam que o desenvolvimento da atividade de escrita tem em comum com a fala alguns

fazeres, entre eles: fazer continuamente referências a algo, a alguém, a fatos, a eventos, a

sentimentos e assim por diante; manter em evidência os referentes introduzidos por meio da

operação de retomada; e tirar do foco referentes e deixá-los em espera para que outros

referentes possam ser introduzidos no discurso.

Para as referidas autoras, a referenciação é um campo de estratégias “por meio das

quais são construídos os objetos de discursos e mantidos ou desfocalizados na

plurinearilinearidade do texto” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 131).

Custódio Filho evidencia a ideia das múltiplas funções da referenciação enfatizadas

por Koch e Elias (2009):

Podemos dizer que a referenciação é uma proposta teórica que fortalece o

“poder” da anáfora. Essa categoria não pode mais ser entendida nos limitados moldes da relação de identificação entre sintagmas presentes

num texto. Ela é, na verdade, a unidade poderosa que revela um complexo

trabalho sociocognitivo-discursivo de abordagem da realidade, passível de retomar elementos os mais diversos e de realizar múltiplas funções

(CUSTÓDIO FILHO, 2012, p. 843).

Page 34: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

32

Quadro 1 – Texto de exemplo 1: “Laura procura emprego”

Laura procura emprego

Laura está procurando emprego. Ela fez curso de secretariado, fala inglês intermediário e

concluiu o ensino médio. A adolescente encaminha seus currículos para muitas empresas. As

multinacionais estão na lista de sua predileção. As vantagens que essas empresas oferecem são bem

atrativas: oferecem plano de carreira; investem na formação acadêmica e profissional dos seus

funcionários; e com o objetivo de incentivar o trabalhador a permanecer motivado na realização de

suas tarefas, investem na qualidade de vida dos empregados. Não é sem razão que Laura prioriza

essas empresas na hora de divulgar seu perfil profissional.

Fonte: elaborado pela autora

Na produção anterior, o referente inicial ‘Laura’ é retomado e mantido em evidência

pelo pronome ‘ela’, depois pela expressão ‘adolescente’ e por último pelo pronome

possessivo ‘sua’. O mesmo não acontece com a expressão ‘multinacionais’, que atribui um

caráter predicativo à expressão nominal ‘empresas’.

As autoras explicam a diferença entre referenciação e progressão referencial:

O processo que diz respeito a diversas formas de introdução, no texto, de

novas entidades ou referentes é chamado de referenciação. Quando tais referentes são retomados mais adiante ou servem de base para a introdução

de mais referentes, tem-se o que se denomina de progressão referencial.

(KOCH; ELIAS, 2009, p. 132).

Há duas formas de retomada do referente: a retrospectiva ou anafórica, como o

apresentado no trecho ‘Laura procura emprego’, e a forma prospectiva ou catafórica, como

no Quadro 2 a seguir:

Page 35: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

33

Quadro 2 – Texto de exemplo 2: “O esperado de todos os anos”

O esperado de todos os anos

Os preparativos para a chegada do esperado de todos os anos podem iniciar entre fevereiro e

março e seguem doze meses pela frente; mas não pense que é um período entediante – pelo

contrário: durante esse tempo começam as arrumações. Do que sobrou da última estada dele por

aqui, há tentativa de reciclar e reaproveitar os restos, que talvez sirvam como adereços para o

próximo encontro com ele. A seleção das músicas que vão embalar sua visita é criteriosa, os ensaios

altamente organizados, as alegorias demonstram profundo estudo por parte de quem as criou. Para

recepcioná-lo, chegam mulheres lindas, ótimos bailarinos e tudo, tudo é preparado com o maior

rigor, luxo e bom gosto. Até que chega o grande momento, e lá vem ele entrando, sambando pela

passarela afora: é ele, o Carnaval!

Fonte: elaborado pela autora

A noção de referência foi substituída pela noção de referenciação. A referenciação ou

progressão referencial abrange a construção e reconstrução de objetos do discurso. Eles não

representam o mundo real e não são rótulos que nomeiam coisas do mundo: eles se

constroem e se reconstroem no núcleo do próprio discurso considerando nossa percepção de

mundo, nossas crenças, atitudes e propósitos comunicativos.

No exemplo anterior, a expressão ‘O esperado de todos anos’ tem seu sentido

estabelecido somente nesse texto: refere-se ao ‘Carnaval’. Teríamos dificuldades em

identificar o referente fora do contexto, pois ele é constituído no espaço do texto. A

composição textual requer mais do que o conhecimento linguístico e dos conteúdos

inferenciais que podem ser analisados a partir dos elementos nele contidos, como, por

exemplo, os conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais; e aos espaços comuns de

uma determinada comunidade, essa compreensão também requer os conhecimentos, as

opiniões e os juízos erigidos no momento da interação autor-texto-leitor. Tal análise

evidencia o que afirma Marcuschi sobre o caráter criativo da referenciação:

A referenciação é uma atividade criativa e não um simples ato de

designação. Diante disso, a construção referencial deve ser tida como

central na aquisição da língua, estendendo-se todas as ações linguísticas. Considerando que a língua em si mesma não providencia a determinação

semântica para as palavras e as palavras isoladas também não nos dão sua

dimensão semântica, somente uma rede lexical situada num sistema sócio-

interativo permite a produção de sentidos. (MARCUSCHI, 2007, p. 69).

Page 36: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

34

Portanto, os referentes são construídos e reconstruídos durante a produção da escrita.

As formas de referenciação são produtos de escolhas do produtor do texto conduzidas pelo

princípio da intersubjetividade.

1.2.2 Estratégias de referenciação e escrita

A estratégia de referenciação é composta de três características: introdução;

retomada; e desfocalização.

• Introdução (construção): refere-se à introdução de um objeto ainda não

apresentado no texto, e a expressão linguística que o representa fica em evidência

no texto. Isso ocorre com a expressão ‘Laura’ no texto do Quadro 1, ‘Laura

procura emprego’.

• Retomada (manutenção): acontece quando um ‘objeto’ já contido no texto é

retomado por meio de uma forma referencial, fazendo com que o objeto de

discurso permaneça em evidência. Na produção ‘Laura procura emprego’, é

possível verificar a retomada nas expressões ‘ela’, ‘adolescente’ e ‘sua’, que se

referem à expressão nominal ‘Laura’.

• Desfocalização: verifica-se quando há introdução de um novo objeto do discurso

que passa a ocupar o foco. O objeto retirado de foco continua em estado de

ativação parcial, ou seja, ele permanece disponível para utilização imediata

quando necessário. A expressão que representa a desfocalização no texto ‘Laura

procura emprego’ é “As multinacionais estão na lista de sua predileção. As

vantagens que essas empresas oferecem são bem atrativas: oferecem plano de

carreira; investem na formação acadêmica e profissional dos seus funcionários; e

com o objetivo de incentivar o trabalhador a permanecer motivado na realização

de suas tarefas, investem na qualidade de vida dos empregados”.

Sobre as estratégias de referenciação, Koch e Elias (2009) concluem que tais

estratégias permitem que os referentes contidos no texto se modifiquem ou se ampliem,

possibilitando que, no decorrer do processo de compreensão (pelo aparecimento

sistematizado de novas categorizações e avaliações do referente), crie-se na memória do

leitor ou ouvinte uma representação altamente complexa.

Em suma, as estratégias de referenciação no processo de escrita podem ser

compreendidas como um ato altamente sistematizado e intencional do produtor. As escolhas

de como serão conduzidas tais estratégias pelo escritor representa muito de sua

Page 37: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

35

subjetividade. Portanto, compreender como é depreendida a aquisição do conceito de

referenciação pelo aluno analisando sua própria produção textual pode apontar caminhos

para novas estratégias de ensino desse conceito e de outros mais.

1.2.3 Introdução de referentes no modelo textual

Os dois tipos de processo introdução de referentes textuais são: ativação ‘ancorada’ e

‘não ancorada’. A introdução não ancorada ocorre no momento em que o escritor introduz

no texto um novo objeto do discurso, como no Quadro 3 a seguir:

Quadro 3 – Texto de exemplo 3: “O dia em que as Olimpíadas passaram na minha rua”

O dia em que as Olimpíadas passaram na minha rua

Minha mãe me chamou: “Vem, vem logo! Vem ver!”. Não dei a menor bola, estava

concentrado em vencer meu jogo de videogame. Ela chamou de novo. Fiquei irritado. Isso estava

me desconcentrando e me deixando cada vez mais perto da derrota. Dali a pouco, ela de novo:

“Vem, menino! Vem ver o fogo passar!”. Que droga, mãe! O que eu tenho com isso?! “Vem,

menino bruto! Vem ver a tocha olímpica!”

Fonte: elaborado pela autora

No texto do Quadro 3 acima, a palavra ‘fogo’ aparece no início do texto para

posteriormente introduzir a palavra ‘tocha olímpica’. O termo ‘fogo’ representa uma

expressão nominal, e funciona como uma primeira categorização do referente.

O produtor do texto compõe uma introdução ancorada quando um novo objeto de

discurso é apresentado no texto, partindo de um tipo de relação com elementos já contidos

no cotexto ou no contexto sociocognitivo dos interlocutores.

Antes de prosseguirmos discorrendo sobre a referenciação, esclarecemos que a

definição de contexto considerada no presente estudo é a que abrange não só cotexto como a

situação imediata (o entorno social, político e cultural), mas também o contexto

sociocognitivo dos interlocutores, que, segundo Koch (2002), agrupa todos os tipos de

conhecimentos arquivados na memória dos sujeitos sociais.

Page 38: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

36

Quadro 4 – Texto de exemplo 4: “O dono da bola”

O dono da bola

Os garotos aproveitaram o período das férias para organizaram o campeonato. As equipes já

estavam formadas, os atletas escalados. Até que um problema surgiu: a bola resolveu abandonar o

torneio junto com o seu dono!

Fonte: elaborado pela autora

A expressão ‘a bola’ não diz respeito a um referente contido no texto, mas faz

menção a informações estabelecidas no cotexto antecedente.

Segundo Koch (2002; 2004), não existindo no cotexto um antecedente explícito, a

existência de um elemento de relação âncora pode ser um fator determinante para a

interpretação. No texto de exemplo do Quadro 4, ‘O dono da bola’, a palavra ‘campeonato’

serve de âncora para compreender a relação estabelecida com a expressão ‘bola’ e constituir

a relação de sentido do texto.

Para Marcuschi (2005), a anáfora indireta é comumente compreendida por

expressões nominais definidas e pronomes cuja interpretação referencial acontece sem que

haja correspondência com um antecedente ou subsequente explícito no texto. O autor

explica que o que acontece é um processo de referenciação implícita onde há organização de

uma estratégia de ativação de novos referentes, e não de retomada de referentes conhecidos.

O processo de referenciação implícita é acionado tendo como base elementos

textuais ou modelos mentais e exerce uma contribuição fundamental no desenvolvimento da

progressão e coerência do texto. Cavalcante (2004) apresenta uma análise de anáfora

indireta do trecho a seguir:

Quadro 5 – Texto de exemplo 5

Abro uma antiga mala de velharias e lá encontro minha máscara de esgrima. Emocionante o

momento em que púnhamos a máscara – tela tão fria – e nos enfrentávamos mascarados sem

feições. A túnica branca com o coração em relevo no lado esquerdo do peito, “olha esse alvo sem

defesa, menina, defenda esse alvo!” – advertia o professor, e eu me confundia e o florete do

adversário tocava reto no meu coração exposto.

Fonte: Telles (1998 apud CAVALCANTE, 2004)

De acordo com a análise de Cavalcante (2004), as expressões ‘máscara’ e ‘esgrima’

são âncoras que são reativadas pelo novo referente ‘A túnica branca com o coração em

relevo’, trazendo-as para o foco e caracterizando, assim, uma recuperação indireta. Ocorre

Page 39: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

37

processo semelhante quando o referente ‘esgrima’ é refocalizado pela anáfora indireta ‘o

florete adversário’. Todavia, só é possível identificar que se trata da descrição de uma aula

de esgrima quando se dá a introdução da entidade ‘o professor’, com a apresentação do

predicado ‘advertia’ seguido da orientação do professor indicada pelas aspas.

Quadro 6 – Texto de exemplo 6: “O garoto esguio”

O garoto esguio

O garoto era esguio, os braços e as pernas fracos, os lábios ressecados, os olhos fundos, a

barriga roncava denunciando a fome.

Fonte: elaborado pela autora

‘Os braços e as pernas fracos’, ‘lábios ressecados’, ‘olhos fundos’ e ‘a barriga

roncava’ constituem expressões definidas que estão ancoradas na expressão do início do

texto do Quadro 6: ‘o garoto’. As expressões definidas representam a parte que compõe o

todo, ou seja, ‘o garoto’. Essa relação ‘meronímica’ parte-todo também ocorre no texto a

seguir:

Quadro 7 – Texto de exemplo 7: “A menina que era invisível”

A menina que era invisível

Quando entrei na sala notei sua presença. Havia algo de diferente, a menina estava mudada.

Os cabelos, antes alisados, amordaçados e controlados pelos processos químicos, agora estavam

livres, os cachos soltos espalhados pela cabeça, e os fios enrolados e escuros combinavam

perfeitamente com a cor negra da pele e o escuro dos olhos. Todos os dias ela estava lá, mas foi a

primeira vez que a enxerguei.

Fonte: elaborado pela autora

As expressões definidas ‘cabelos alisados’, ‘os cachos soltos’, ‘os fios enrolados e

escuros’, ‘a cor negra da pele e o escuro dos olhos’ ancoram-se na expressão ‘a menina’.

Em ambos os textos, as expressões definidas estabelecem uma relação com os termos

(o garoto e a menina) que as ancoram, portanto, não as retomam, e que por essa razão

configuram anáforas indiretas. É o que ocorre com o texto ‘Voltei para a escola’ no Quadro

8 a seguir:

Quadro 8 – Texto de exemplo 8: “Voltei para a escola”

Voltei para a escola

Mandei muitos currículos, fiz inúmeras entrevistas de emprego, mas não surgia nenhuma

Page 40: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

38

resposta positiva ao meu pedido de emprego. Até que um dia fui chamado por uma empresa para

comparecer para um teste. Tive de fazer uma redação, fui reprovado e continuei desempregado.

Depois disso me vi obrigado a voltar para a escola.

Fonte: elaborado pela autora.

No texto do Quadro 8 acima, a expressão referencial ‘escola’ é introduzida ancorada

na expressão ‘redação’, cujo modelo mental pode ser associado a ‘redação’, ‘professor’,

‘escrita’ e assim por diante.

1.2.4 Formas de progressão referencial

A progressão referencial é constituída de retomadas ou remissões a um mesmo

referente e pode ser concretizada por uma variedade de elementos linguísticos: formas de

valor pronominal; numerais; alguns advérbios locativos; elipses; formas nominais reiteradas;

formas nominais sinônimas ou quase sinônimas; formas nominais hiperonímicas e nomes

genéricos.

Para garantir a continuidade de um texto é preciso estabelecer um equilíbrio entre duas exigências fundamentais: repetição (retroação) e

progressão. Isto é, na escrita de um texto, remete-se continuamente a

referentes que já foram antes apresentados e, assim, introduzidos na memória do interlocutor, e acrescentam-se as informações novas, que, por

sua vez, passarão também a constituir o suporte para outras informações

(KOCH; ELIAS, 2009, p. 137-138).

As formas pronominais de progressão referencial compõem pronomes (pessoais de

terceira pessoa, possessivos, demonstrativos, indefinidos, interrogativos e relativos).

Quadro 9 – Texto de exemplo 9

A mãe ficou perplexa quando soube do baixo desempenho do filho na escola. Ainda assim,

não quis mostrar o boletim ao marido. Precisava acalmar os ânimos do pai do garoto. Ela sabia que,

desta vez, ele deixaria de pagar a escola particular ao filho, e o mandaria para uma instituição de

ensino pública.

Fonte: elaborado pela autora

No exemplo do Quadro 9 acima é possível identificar a progressão referencial com o

uso das formas pronominais. O pronome ‘ela’ faz referência ao termo ‘mãe’; o pronome

‘ele’ também faz referência ao marido da mãe e pai do garoto. O termo ‘o’ refere-se ao filho.

No próximo exemplo (Quadro 10), identificamos a progressão referencial por meio

dos numerais ordinais. Os números ordinais (primeira, segunda e terceira) referem-se às

Page 41: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

39

‘três razões’. A progressão também pode ocorrer por numerais cardinais, multiplicativos e

fracionários.

Quadro 10 – Texto de exemplo 10

São muitos os motivos para a insatisfação política e econômica atualmente, mas

apontaremos três razões: a primeira diz respeito aos escândalos protagonizados por nossos

representantes governamentais por conta dos desvios e gastos inapropriados do dinheiro público; a

segunda é a onda de desemprego causada, sobretudo, por causa do fechamento de muitas indústrias;

e a terceira é a falta de políticas públicas assertivas para diminuir o desequilíbrio social que assola

nosso país.

Fonte: elaborado pela autora

Como no exemplo seguinte (Quadro 11), alguns advérbios locativos, como ‘ali’ e

‘lá’, permitem a progressão referencial da expressão ‘local da prova’.

Quadro 11 – Texto de exemplo 11

Finalmente, marcaram a data e o local para a prova do teste de direção automotiva. Pois

bem, no dia combinado ali estava eu, e de novo a tremedeira nas pernas, e como já esperado não fui

aprovado. Sabia que um mês depois lá estaria eu, no mesmo lugar, refazendo o teste, e, quem sabe,

com sorte seria aprovado.

Fonte: elaborado pela autora

O texto no Quadro 12 a seguir apresenta a progressão referencial por meio de elipse

(omissão de uma expressão recuperável pelo contexto). Os verbos (foi, observou, comparou,

ficou, percebeu, tinha, precisava, decidiu) e a expressão ‘alarmada’ permitem a

identificação e a retomada de um personagem feminino na terceira pessoa do singular:

Quadro 12 – Texto de exemplo 12

Esta manhã, como de costume, foi ao mercado, observou o preço de tudo, comparou o preço

de produtos de outros mercados, ficou alarmada com o alto valor da cesta básica e percebeu que o

dinheiro que tinha não dava para comprar quase nada do que precisava. Decidiu então voltar para

casa sem comprar nada.

Fonte: elaborado pela autora

O texto de exemplo ‘A tesoura” (Quadro 13) apresenta uma forma nominal reiterada

de progressão referencial:

Page 42: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

40

Quadro 13 – Texto de exemplo 13: “A tesoura”

A tesoura

A tesoura é ferramenta de trabalho da costureira. O artista usa a tesoura como instrumento

de trabalho. O professor pode usar a tesoura e também pedir ao seu aluno que faça uso da tesoura. A

estilista tem a tesoura como companheira bem útil de trabalho. A tesoura é usada por cirurgiões. Os

curativos dos enfermeiros podem ser feitos por tesoura. A tesoura tem inúmeras utilidades e é usada

por diversos profissionais.

Fonte: elaborado pela autora

Formas nominais sinônimas ou quase sinônimas podem compor a progressão

referencial como nas expressões ‘mulher’ e ‘a bela dama’ do trecho seguinte (Quadro 14):

Quadro 14 – Texto de exemplo 14

Fazia tempo que não colocava os olhos naquela mulher, mas ela estava muito mudada. A

bela dama trazia na face marcas de muito sofrimento.

Fonte: elaborado pela autora

As formas nominais hiperonímicas (relação parte-todo) podem compor a progressão

referencial. O texto do Quadro 15 a seguir introduz o termo ‘répteis’ representando o todo da

forma nominal ‘as cobras’ (a parte).

Quadro 15 – Texto de exemplo 15

Os trabalhadores do canavial estavam assustados, e entre as coisas que os assustavam

estavam as péssimas condições de trabalho, a baixa remuneração e as cobras venenosas presentes

nas plantações, mas o que estava matando mais rápido os trabalhadores eram os répteis.

Fonte: elaborado pela autora

Nomes genéricos podem constituir progressão referencial. O termo ‘zona urbana’

generaliza os termos ‘pedras’, ‘tijolos’, ‘carros’, ‘asfalto’, ‘prédios’, ‘fumaça’ e ‘poluição’

no exemplo a seguir (Quadro 16); assim como o termo ‘zona rural’ generaliza os termos

‘poucas árvores’, ‘bichos famintos’ e ‘escassos pomares’.

Quadro 16 – Texto de exemplo 16

De um lado avistávamos pedras, tijolos, carros, asfalto, prédios, muita fumaça, poluição. Era

evidente o aspecto dinâmico da zona urbana. Do outro lado, enxergávamos poucas árvores, bichos

famintos, escassos pomares. Era inegável a deterioração da zona rural.

Fonte: elaborado pela autora

Page 43: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

41

Quando remetemos seguidamente a um mesmo referente ou a elementos

estreitamente ligados a ele, formamos, no texto, cadeias anafóricas ou referenciais. Esse movimento de retroação a elementos já presentes no

texto – ou passíveis de serem ativados a partir deles – constitui um

princípio de construção textual, praticamente todos os textos possuem uma

ou mais cadeias referenciais. (KOCH; ELIAS, 2009, p. 144).

Koch e Elias (2009) apresentam três sequências de cadeias anafóricas referenciais:

sequências descritivas; sequências narrativas e sequências expositivas. Em se tratando das

sequências descritivas há, no mínimo, uma cadeia relativa ao elemento descrito.

Quadro 17 – Texto de exemplo 17

Marina sempre foi aluna de destaque na escola. É atualmente uma bem-sucedida empresária.

Apesar do sucesso demonstrado até o momento, no ano passado a comerciante em ascensão teve

problemas com a Receita Federal.

Fonte: elaborado pela autora

No exemplo anterior (Quadro 17) é possível identificar relação a partir da expressão

nominal ‘Marina’, que é seguida de uma sequência descritiva com o uso das expressões

‘aluna de destaque na escola’, ‘uma bem-sucedida empresária’ e ‘comerciante em ascensão’.

A sequência descritiva retoma os elementos nominais ‘Marina’, constituindo a cadeia

anafórica.

As sequências narrativas compõem cadeias relacionadas ao protagonista, antagonista,

outros personagens, espaço, objetos ou outros aspectos da história a seguir (Quadro 18).

Quadro 18 – Texto de exemplo 18: “Era uma vez três velhinhos”

Era uma vez três velhinhos

Eram três velhinhos que viviam num asilo no interior de São Paulo. O lugar era bem grande,

tinha muitos quartos, e mesmo assim os homens dormiam no mesmo quarto, mas ainda bem que

repousavam em camas separadas.

Um dos anciões era surdo, era o mais velho deles. O segundo era cego e o terceiro era

mudo. Acho que era por isso que colocaram eles para dormirem no mesmo quarto.

Os senhores não estavam nada satisfeitos com a acolhida da casa de repouso e planejavam

fugir. Para isso, já tinham tudo arranjado: iam subornar o segurança de lá, que era um sujeito mal-

encarado, mas que, segundo os sexagenários, como todo homem havia de ter o seu preço também…

Fonte: elaborado pela autora

Na sequência narrativa anterior (Quadro 18) há uma cadeia relacionada ao espaço,

que é introduzida inicialmente com a expressão nominal ‘asilo’, e depois segue-se uma

Page 44: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

42

sequência narrativa com as expressões ‘lugar’, ‘casa de repouso’ e ‘lá’. Com a descrição dos

personagens ocorre algo similar: a expressão nominal inicial é ‘velhinhos’, depois ‘homens’,

‘anciões’, ‘deles’ e ‘sexagenários’. A descrição individual dos três personagens

protagonistas é introduzida com a descrição do primeiro ‘ancião’, que além de ser ‘surdo’ é

o ‘mais velho’, por conseguinte ‘o segundo’ ‘é cego’ e por último ‘o terceiro’, que ‘é mudo’.

A descrição do personagem secundário é introduzida pela expressão nominal ‘segurança’,

que posteriormente é retomada pela expressão ‘sujeito mal-encarado’.

A cadeia anafórica principal das sequências expositivas está relacionada à ideia

central desenvolvida, cabendo outras ideias referentes ao processo de exposição.

Quadro 19 – Texto de exemplo 19: “Bebê gigante”

Bebê gigante

O bebê nasceu com seis quilos e meio e sessenta centímetros. O recém-nascido tem o peso e

tamanho acima da média. Agora os médicos tentam descobrir quais razões levaram a criança a

crescer além da conta. Enquanto isso, os pais do bebê gigante celebram a boa saúde do garoto.

Fonte: elaborado pela autora

No texto anterior (Quadro 19), a informação principal ‘o bebê nasceu com seis quilos

e meio e sessenta centímetros’ é relacionada aos termos ‘recém-nascido’, ‘a criança’, ‘bebê

gigante’ e ‘garoto’, compondo uma cadeia anafórica.

Segundo Koch e Elias (2009), uma das formas mais ricas de progressão é aquela que

pode ser realizada por meio de expressões nominais, ou seja, expressões que possuem um

núcleo nominal (substantivo), acompanhado ou não de determinantes (artigos, pronomes,

adjetivos, numerais) e modificadores (adjetivos, locuções adjetivas, orações adjetivas). As

autoras citam algumas expressões como exemplos: a aluna; aluna estudiosa; a aluna de

francês; a aluna que ganhou o prêmio; alguma aluna; esta aluna; a primeira aluna da

classe/duas alunas/estas duas alunas/todas estas alunas; os dois livros que a aluna

comprou; minha querida da 8ª série, e assim por diante.

1.2.5 Funções das expressões nominais

As formas ou expressões nominais exercem uma série de funções para a construção

dos sentidos no texto ao estabelecerem a progressão textual. Entre as funções estão: a

organização do texto, nos níveis macroestrutural e microestrutural; a recategorização de

referentes; explicação de termos por meio de sinonímia e hiperonímia, bem como a

definição de termos que se pressupõem desconhecidos do leitor;

Page 45: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

43

sumarização/encapsulamento de segmentos textuais antecedentes ou subsequentes, por meio

de rotulação; e orientação argumentativa do texto. As formas ou expressões nominais

contribuem para a organização no nível micro e no nível macroestrutural.

No nível microestrutural, são elementos importantes para estabelecimento da coesão

textual, conforme identificamos em alguns textos apresentados anteriormente.

No nível macroestrutural, são algumas vezes responsáveis pela apresentação de

novos referentes, novas sequências ou episódios da narrativa e, portanto, pela paragrafação.

Os parágrafos do texto a seguir (Quadro 20) apresentam um exemplo de como novos

fatos são apresentados. No primeiro parágrafo é introduzida a expressão nominal ‘ao custo

de R$ 100,00 a dose”, o segundo parágrafo apresenta uma nova informação com a

apresentação da expressão nominal ‘vão ser aplicadas 500 mil doses da vacina’, e por último

a expressão ‘o alcance da campanha’ acrescenta outra informação ao texto.

Quadro 20 – Texto de exemplo 20: “Paraná iniciará campanha de vacinação contra a dengue em

agosto”

Paraná iniciará campanha de vacinação contra a dengue em agosto

Ao custo de R$ 100,00 a dose, será realizada no Paraná em agosto a primeira campanha de

vacinação pública contra a dengue no país.

Vão ser aplicadas 500 mil doses da vacina, a primeira do tipo disponível no Brasil,

produzida pela Sanofi Pasteur e aprovada em dezembro pela Anvisa (Agência Nacional de

Vigilância Sanitária).

O alcance da campanha, porém, será limitado: apesar de o vírus ter circulado em quase

todos os 399 municípios do Paraná, apenas 30 terão a vacina e, em 28 deles, ela será restrita à

população entre 15 e 27 anos. […]

Fonte: Carazzai, 2016.

Outra função das formas ou expressões nominais é a recategorização de referentes.

Nas palavras de Cavalcante (2005, p. 132): “A ‘recategorização’ é, por definição, uma

alteração nas associações entre representações categoriais parcialmente previsíveis, portanto,

em nossa visão pública de mundo”.

Na recategorização os referentes introduzidos no texto podem ser retomados

conservando os mesmos aspectos e propriedades, ou podem compor alterações ou

acréscimos. Segundo Mondada e Dubois, a recategorização é situada pelas diferentes

perspectivas que envolvem as situações dos atores e dos fatos:

Page 46: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

44

A variação e a concorrência categorial emergem notadamente quando uma

cena é vista de diferentes perspectivas, que implicam diferentes categorizações da situação, dos atores e dos fatos. A “mesma” cena pode,

mais geralmente, ser tematizada diferentemente e pode evoluir – no tempo

discursivo e narrativo – focalizando diferentes partes ou aspectos. Este

domínio pode ser abordado considerando os recursos linguísticos que servem para tematizar uma entidade, para sublinhar a saliência de aspecto

específico ou de uma propriedade de um objeto, para atrair a atenção do

leitor para uma entidade particular […]. (MONDADA; DUBOIS, 2003, p.

25).

No exemplo a seguir (Quadro 21), as expressões nominais ‘bolinhas de gude’, ‘bola

de futebol’, ‘carrinho já sem roda’ e ‘boneco sem braço’ foram recategorizadas pela

expressão ‘tesouro’.

Quadro 21 – Texto de exemplo 21

Quando a mãe sentenciou que ele sairia do parque e iria para casa tomar banho e jantar, o

garoto não teve dúvidas: juntou suas bolinhas de gude, pegou a bola de futebol, o carrinho já sem

roda, o boneco sem braço, colocou tudo no fundo da motocicleta e foi para casa. Chegando em casa,

foi direto para o seu quarto. Lá retirou da moto o tesouro e o jogou debaixo de sua cama.

Fonte: elaborado pela autora

As formas ou expressões nominais servem para explicar termos por meio de

sinonímia e hiperonímia e para definir termos que se pressupõem desconhecidos ao leitor.

De acordo com Koch e Elias (2009) é possível auxiliar o leitor fazendo uso dessas

expressões, substituindo um termo específico, de determinado gênero ou de pouco uso, por

um sinônimo mais comum ou por um hiperônimo (termo de sentido mais amplo, que

engloba o termo mais específico), ou incluir na retomada uma nota de esclarecimento ou

definição.

No texto seguinte (Quadro 22), a expressão nominal ‘nova espécie de titanossauro’ é

definida por um sinônimo ‘herbívoro famoso pelo longo pescoço’, que na sequência é

retomada por hiperônimo ‘grandes répteis’, e essa definição é parte do todo da expressão

nominal ‘grandes répteis’.

Page 47: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

45

Quadro 22 – Texto de exemplo 22: “Nova espécie de dinossauro é encontrada no interior da Paraíba”

Nova espécie de dinossauro é encontrada no interior da Paraíba

A 438 km de João Pessoa, a região de Sousa, no sertão da Paraíba, abriga um famoso parque

chamado Vale dos Dinossauros, que atrai pesquisadores e turistas do mundo todo devido às

abundantes pegadas desses bichões.

Agora, no entanto, paleontólogos encontram um outro vestígio desses nordestinos pré-

históricos; fragmentos fossilizados da fíbula, um osso da perna, do que seria uma nova espécie de

titanossauro – herbívoro famoso pelo longo pescoço – que viveu no Estado há cerca de 136 milhões

de anos.

A descoberta, liderada pela paleontóloga Aline Ghilardi, da UFPE (Universidade Federal de

Pernambuco), tem dois méritos principais: é a primeira identificação eficaz dos grandes répteis que

habitaram aquela região e é ainda o dinossauro mais antigo do período Cretáceo (entre 145 milhões

e 66 milhões de anos atrás) a ser identificado no Brasil […]..

Fonte: Miranda, 2016.

A expressão nominal sumariza, encapsula os segmentos textuais antecedentes ou

subsequentes por meio de rotulação.

[…] como as AI [anáforas indiretas], as encapsuladoras são inferenciais e, ainda que ancoradas em informações dadas, introduzem um novo referente,

que sintetiza porções de texto; como as AD [anáforas diretas], porém,

parece haver certo grau de correferencialidade entre a porção de texto

sintetizada e o encapsulador. (SANTOS; CAVALCANTE, 2014, p. 227).

Segundo Koch e Elias (2009), o encapsulamento ocorre quando no momento da

progressão referencial é possível sumarizar todo um trecho anterior ou posterior do texto

fazendo uso de uma forma pronominal ou nominal, podendo ser usados pronomes

demonstrativos neutros (isto, isso, aquilo, o) ou expressões nominais, transcorrendo, assim,

a rotulação.

Koch e Elias (2009) apresentam dois tipos de rotulação: o primeiro tipo é a

designação feita pelo rótulo que recai sobre fatos, eventos, circunstâncias contidas no

segmento textual encapsulado. O texto ‘Veio sem avisar’ a seguir (Quadro 23) apresenta a

expressão nominal ‘paixão’, que rotula o segmento textual (eventos) ‘um frio na barriga’, ‘a

fome sumiu’, ‘no estômago parecia que havia borboletas voando’, ‘acordava no meio da

noite e demorava a conseguir voltar a dormir’, ‘o coração acelerava’, ‘ora ficava muito

alegre, ora triste’, ‘até os gostos mudaram’, ‘as mãos suavam’ e ‘algumas músicas davam

nostalgia’.

Page 48: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

46

Quadro 23 – Texto de exemplo 23: “Veio sem avisar”

Veio sem avisar

Veio sem avisar: um frio na barriga; a fome sumiu; no estômago parecia que havia

borboletas voando; acordava no meio da noite e demorava a conseguir voltar a dormir; o coração

acelerava; ora ficava muito alegre, ora triste; até os gostos mudaram; em certas ocasiões as mãos

suavam; algumas músicas davam nostalgia. Enfim, logo ficou esclarecido: a paixão havia chegado

devastadora e tomou conta de todo o seu ser. Tentou escondê-la de si e de todos – foi em vão: tudo

nele denunciava o sentimento.

Fonte: elaborado pela autora

O segundo tipo tem função metadiscursiva: é o que nomeia o tipo de ação que o

produtor atribui aos personagens presentes no segmento encapsulado, tais como a

declaração, a pergunta, a promessa, a reflexão, a dúvida, etc.

Segundo Koch e Elias (2009), há um tipo de rótulo que repete outro já presente no

texto e tem a função de mostrar distanciamento, ironia, crítica em relação a ele, e geralmente

eles vêm entre aspas.

No texto ‘Elegância discreta’ a seguir (Quadro 24), a expressão ‘elegância discreta’ é

o rótulo que a professora deu para as ações do garoto (‘chegar silencioso’, ‘não

cumprimentar os colegas’, ‘arrumar a cadeira e a carteira sem ruídos’, ‘tirar o material com

cuidado mudo’), quando este tentava não fazer notar o seu atraso.

Quadro 24 – Texto de exemplo 24: “Elegância discreta”

Elegância discreta

O garoto chegou silencioso na sala de aula, não cumprimentou os colegas, arrumou a

cadeira e a carteira sem ruídos, tirou o material com cuidado mudo, fez de tudo para passar

despercebido, teve sorte de encontrar a porta aberta. Sabia que a professora não abre a porta em caso

de atrasos. Mal ele se sentou, ouviu a professora perguntar: “A ‘elegância discreta’ é para que eu

não o coloque para fora?”.

Fonte: elaborado pela autora

As expressões nominais definidas e indefinidas e os rótulos podem direcionar o leitor

às conclusões dos objetivos pretendidos quanto à compreensão da orientação argumentativa

do texto. Na charge a seguir (Figura 1), a expressão ‘um político sério, comprometido em

resolver os problemas do povo’ caminha para o construto de um argumento quando é

Page 49: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

47

retomada pela expressão ‘isso’, e finalmente completa o sentido argumentativo quando é

substituída pela expressão ‘um milagre’, compondo assim o rótulo.

Figura 1 – Charge do artista Lila

Fonte: Blog do Barbosa, 2010. Disponível em:

<http://blogdobarbosa.jor.br/?p=26324>. Acesso em: 01 ago. 2016.

A seleção das formas nominais referenciais, pela riqueza das possibilidades de inferir

sentidos, requer uma especial atenção por parte do ensino e aprendizagem da escrita,

considerando que essas formas desempenham uma fundamental contribuição na progressão

textual e na construção do sentido.

Page 50: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

48

2 TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA E CURRÍCULO

Nas palavras de Soares (2002, p. 141), “entre currículo e escola” é necessário

considerar uma relação de “causa e efeito”. Segundo a referida autora, o aparecimento da

instituição escola está estritamente relacionado a saberes escolares, que se constituem em

corpo e forma por meio de “currículos, disciplinas, programas, exigidos pela invenção, que a

escola criou, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem” (SOARES, 2002, p.

141)

As palavras de Magda Soares corroboram com o que defende Chevallard ao

conceituar a transposição didática. Abrão apresenta os três elementos que constituem a tese

de Chevallard:

Para esse autor, o sistema didático é formado por três elementos – professor – saber – aluno – que interagem a partir de mecanismos que lhe

são próprios, que ele denomina de “funcionamento didático”. Essa

concepção tem como mérito trazer para a discussão um terceiro elemento, curiosamente esquecido – o saber – em análises do campo que tendem a

privilegiar nesse sistema apenas a relação professor-aluno. (ABRÃO, 2009,

p. 29).

Quando afirmamos que o que diz Soares corrobora com o que defende Chevallard,

estamos reconhecendo que há diferenças entre como é concebido o conhecimento fora do

campo escolar e como é tratado o conhecimento dentro do campo escolar.

É nesses dois espaços, onde se busca analisar o conhecimento, que, segundo

Chevallard, surge um obstáculo, isto é: o conhecimento (“saber”) é deixado de lado e o

centro passa a ser apenas o professor e o aluno. O obstáculo identificado por Chevallard

pode não contribuir para o funcionamento da prática pedagógica de modo eficiente e eficaz,

como explica Abrão:

Para que esse sistema didático funcione, é preciso que esses três elementos

satisfaçam condições impostas pela própria prática pedagógica. É sobre a

natureza e as condições impostas ao elemento “saber escolar” que se centram as reflexões de Chevallard, dando origem à “teoria da transposição

didática” (Chevallard, 1991), na qual a reflexão epistemológica assume um

papel central. (ABRÃO, 2009, p. 29).

A tese defendida por Chevallard, segundo Abrão (2009, p. 29). “é a de que a

condição essencial imposta pelos imperativos didáticos ao elemento saber consiste na sua

transformação para que ele possa se tornar apto a ser ensinado”.

Page 51: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

49

Tendo como elemento de análise do processo de transformação do saber, a

transposição didática estabelece a existência de três estatutos, patamares ou níveis para o

saber;

a) Saber sábio (savoir savant);

b) Saber ensinar (savoir à enseigner);

c) Saber ensinado (savoir enseigné).

A existência desses patamares ou níveis indica a existência de grupos sociais

distintos que contribuem com a existência de cada um deles. Esses grupos sociais distintos,

que possuem elementos comuns relacionados ao saber, estão inseridos em um ambiente,

denominado noosfera2, mais amplo, onde ser interligam, coexistem e se influenciam. Abrão

(2009) descreve, a seguir, os três saberes concebidos por Chevallard:

A) Saber sábio: diz respeito ao saber original, aquele saber que é tomado como

referência na definição da disciplina escolar. Tal saber é aquele construído no

interior da comunidade científica. Esse saber também passa por transformações

no interior dessa comunidade até tornar-se público, quando da publicação em

revistas específicas das comunidades científicas, por exemplo. Antes da

publicação, é possível acessar o processo de construção específica da área

científica em questão. Aos ser publicado, o conhecimento está limpo, depurado e

em uma linguagem impessoal, que não trata das características de sua

construção. Esse patamar do saber é composto pelas pessoas responsáveis por

sua construção e desenvolvimento no interior das comunidades de pesquisas, isto

é, os cientistas e pesquisadores de uma maneira geral.

B) Saber a ensinar: é o segundo patamar do saber, quando de sua primeira

transposição. Esse processo é o de transformar o saber sábio na produção de

livros didáticos e manuais de ensino, para a transposição didática externa. E ele

se materializa na produção de livros didáticos, manuais de ensino para formação

universitária, programas escolares que têm como alvo os alunos universitários e

professores do ensino médio. Aqui, o conhecimento é reestruturado para uma

linguagem mais simples, adequando-se ao ensino, sendo “desmontado” e

reorganizado novamente de uma maneira lógica e atemporal. Os atores desse

2 Chevallard (1991) introduz o conceito de noosfera, que ele define como sendo a instância que age como um

verdadeiro filtro entre o saber acadêmico e o saber ensinado na sala de aula. É na noosfera que se produz o

“saber ensinado”, expresso tanto nas propostas curriculares quanto nos livros didáticos (ABRÃO, 2009, p.

37).

Page 52: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

50

processo são os autores de livros didáticos, os especialistas das disciplinas, os

professores e a opinião pública em geral, por meio do poder político que

influencia de alguma maneira na transformação do saber. É esse grupo que vai

determinar quais transformações e o que deverá ser transformado do saber sábio

em saber a ensinar, gerando um novo saber que estará mais próximo à escola.

C) Saber ensinado: essa é a segunda transposição do saber, que faz uma

adaptação do saber ao tempo didático, ou seja, é nessa etapa que há

transformação do conhecimento visando ao sequenciamento das aulas. Nesse

papel de transformação do saber para a sala de aula, aparece a figura do

professor, que deve adequar o conhecimento trazido nos livros didáticos (saber a

ensinar) para aquele que efetivamente vai para suas aulas e chega até os alunos.

O professor é o principal personagem dessa transposição, desempenhando papel

central nesse nível do saber. Porém, não é o único: os alunos e a administração

escolar (diretor, orientadores, pedagogos etc.) também são os representantes

desse patamar na noosfera. Esse processo de transformação do saber a ensinar

em saber ensinado é denominado “transposição didática interna”, pois ocorre no

interior do espaço escolar.

De acordo com Abrão (2009), a transposição didática demanda cinco

potencialidades:

a) Primeira potencialidade: o termo transposição implica o reconhecimento da

diferenciação entre saber acadêmico e saber escolar, considerados como saberes

específicos de natureza e funções sociais distintas, nem sempre evidentes nas

análises sobre a dimensão cognitiva do processo de ensino-aprendizagem,

Nesse sentido, Abrão (2009, p. 36) elucida que “uma breve análise das propostas

curriculares que surgiram a partir da década de 80 permite perceber que a tendência é a

existência da lógica que afirma a necessidade de aproximar os saberes ensinados na escola

com os novos saberes de forma automática”. A conclusão de Abrão se assemelha ao que diz

Pietri sobre a elaboração de documentos de referência curricular:

A elaboração de documentos de referência curricular parece não se fazer, portanto, com a transposição didática de conhecimentos produzidos nas

ciências de referência, mas segundo regras próprias de produção

discursiva. Assim, compreender o processo de escolarização em suas especificidades parece ser produtivo também para considerar as práticas

discursivas que se desenvolvem externamente à escola, mas com o objetivo

Page 53: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

51

de produzir efeitos sobre ela. Os documentos de referência curricular não

se constituiriam, então, como um produto, algo pronto, a produzir efeitos a serem controlados em decorrência mesmo do caráter prescritivo de tais

instrumentos. Talvez seja mais interessante considerá-los em função de

suas condições de produção, dos saberes e práticas que se produzem nesse

espaço heterogêneo que envolve relações entre elementos próprios ao

acadêmico, ao oficial, ao pedagógico. (PIETRI, 2009, p. 82).

Pietri revela que a lógica da implantação automática das propostas curriculares nas

escolas está equivocada, uma vez que os documentos de referência não se estabelecem como

um produto pronto que servirá como prescrição no âmbito escolar. O que o referido autor

alerta é que deve-se considerar as condições de produção, dos saberes e práticas que se

constituem nas relações dos três campos: o acadêmico, o oficial e o pedagógico. A seguir a

segunda potencialidade:

b) Segunda potencialidade: ao reconhecer o reconhecimento dessa

diferenciação, o conceito de transposição didática nos obriga a pensar sobre a

natureza do saber histórico escolar. Trabalhar com esse conceito permite o

questionamento do seu processo de naturalização, bastante comum aos

professores e autores de propostas e livros didáticos. Trata-se de pensar o saber

escolar como sendo historicamente construído, abrindo a reflexão sobre as

modalidades de relação que ele estabelece com os outros saberes, entre eles o

saber acadêmico. Toda a discussão que gira em torno da não-neutralidade dos

saberes no bojo da nova sociologia do currículo parte do pressuposto da

necessidade da contextualização. Assumir essa premissa pressupõe, por sua vez,

o processo de desnaturalização dos saberes. Nas palavras de Soares:

Considerando a história da disciplina português, verifica-se que em cada

momento histórico ela se define pelas condições sociais, econômicas e

culturais que determinam a escola e o ensino – os fatores externos: que

grupos sociais têm acesso à escola? A quem se ensina a língua? Que expectativas, interesses, objetivos têm esses grupos e a sociedade como um

todo em relação à escola e ao que se deve ensinar e aprender nela, a

respeito da língua materna? Em que regime político se insere a escola e o ensino da língua? Em que estrutura de sistema educacional? (SOARES,

2002, p. 159).

O saber histórico, segundo a descrição de Abrão, é o processo que permite que

analisemos o sistema de naturalização do saber escolar. De acordo com Soares, para

compreender o saber histórico é necessário responder a diversos questionamentos: quais

grupos sociais têm acesso à escola? A quem se ensina a língua? Quais expectativas,

interesses e objetivos têm esses grupos e a sociedade como um todo em relação à escola e ao

Page 54: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

52

que se deve ensinar e aprender nela, a respeito da língua materna? Em que regime político se

insere a escola e o ensino da língua? Em que estrutura de sistema educacional?

Assim, a busca pelas respostas desses questionamentos pode contribuir para

compreender e analisar o saber escolar instituído. Como exemplo, foi possível perceber a

partir de todas essas perguntas respondidas nos itens anteriores as razões da predominância

do ensino da gramática normativa nas aulas de língua portuguesa.

c) No que diz respeito à modalidade de relação estabelecida entre o saber

escolar e o saber acadêmico, esse conceito oferece subsídios para pensá-la de

forma mais complexa sem, no entanto, cair em uma visão hierarquizada. Ao

definir saber acadêmico como sendo um saber extraescolar que precede e

fundamenta culturalmente e cientificamente o saber escolar, Chevallard (1991)

defende a sua centralidade na medida em que considera que é no confronto entre

esse tipo de saber e o saber escolar que se pode melhor apreender o tratamento

didático no plano cognitivo. Nessa potencialidade, o que está em jogo é a

questão da legitimação dos saberes escolares. Reconhecer a importância do

papel desempenhado pelo saber acadêmico na produção dos saberes escolares,

atribuída pela própria instituição escolar, não implica necessariamente assumir

uma visão hierarquizada na qual os primeiros são vistos como a única forma de

inteligibilidade e de leitura do mundo.

A análise tecida por Pietri confere um exemplo de que o “confronto” entre o saber

acadêmico e o saber escolar pode colaborar para uma melhor compreensão do tratamento

didático no plano cognitivo:

Os resultados da análise dos documentos de referência curricular elaborados no período histórico observado mostram também que, mesmo

em espaços institucionais responsáveis por garantir maior controle dos

sentidos, dado o objetivo do estado de regular o processo escolar de

saberes e práticas, a produção dos sentidos se faz com base em relações

interdiscursivas fundadas em polêmica. (PIETRI, 2010, p. 82).

Para Pietri, o confronto (a polêmica) em relação aos documentos de referência

curricular contribui para a produção de sentidos, tal conclusão evidencia o que diz

Chevallard, ou seja, o confronto em face ao conjunto de distintos saberes (acadêmico,

escolar, curricular) contribuem para compreender que tratamento didático lhes é conferido,

d) Quarta potencialidade: ao definir a transposição didática como sendo um

movimento que traduz o processo de transformação do saber acadêmico em

Page 55: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

53

objeto de ensino de uma disciplina específica, Chevallard (1991) abre pistas

interessantes para se pensar os mecanismos e os interesses dos diferentes atores

que participam desse processo de transformação. Chevallard afirma que, nesse

movimento, a transformação do saber acadêmico em saber escolar se faz em

diferentes instâncias ou etapas que, apesar de apresentarem vínculos estreitos,

não devem ser confundidas. O autor identifica dois momentos dessa

transposição: a transposição externa, que se passa no plano do currículo formal

e/ou dos livros didáticos, e a transposição interna, que ocorre em sala de aula no

momento em que o professor produz o seu texto de saber, isto é, no decorrer do

currículo em ação.

É nesse sentido que se afirma não se tratar a constituição de temas e

objetos de ensino apenas de um processo de transposição didática, mas de conhecimentos que se estruturam segundo regras discursivas que se

constituem nas condições próprias ao contexto de ensino. Não se

reproduzem, no processo de escolarização, portanto, ideias produzidas em outros lugares, mas produzem-se saberes e práticas próprios, segundo

regras discursivas específicas. (PIETRI, 2013, p. 535).

Pietri destaca a autonomia que é conferida aos saberes escolares. Segundo o referido

autor, mesmo que ele se origine do saber acadêmico, ele tem características próprias

construídas no espaço escolar. Assim, ao considerar a explicação de Pietri é que se torna

nítido o que explica Chevallard sobre a transformação do saber acadêmico em saber escolar

(transposição didática).

e) Quinta potencialidade: o conceito de transposição didática permite pensar o

processo de transformação didática de forma mais complexa, abrindo pistas para

se redimensionar o papel dos professores na implementação de novas propostas

curriculares. Um primeiro aspecto a ser ressaltado é que fica claro que o

professor não faz a transposição didática, mas sim trabalha no seu domínio.

Quando ele produz e organiza seu texto de saber, as engrenagens desse

movimento há muito já estão em marcha no plano da noosfera. Logo, a sua

responsabilidade em relação ao fracasso ou ao sucesso das reformas curriculares,

sem ser negada, deve ser relativizada. Todavia, ele não é o único responsável a

desempenhar um papel determinante. Torna-se, pois, fundamental identificar os

critérios a partir dos quais o professor opera no domínio da transposição.

Eis alguns exemplos de como professores podem exercer a sua atuação:

Page 56: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

54

Gestores de municípios que adotaram o uso de apostilas educacionais

defendem a padronização do ensino, que, segundo eles, garante a qualidade do ensino por meio da homogeneização dos projetos pedagógicos

(ADRIÃO, 2009, p. 812).

Levando em conta o que relata Adrião, verificamos que decisões políticas exercem

influência dentro da escola, inferindo na orientação do trabalho pedagógico, ou seja, há um

paradoxo: de um lado um público heterogêneo para ensinar; e de outro uma programação de

ensino única e engessada.

A fim de que tal padronização ocorra, os sistemas privados de ensino

disponibilizam assessoria para as escolas conveniadas, com equipes pedagógicas treinadas para atender a seus clientes (escolas conveniadas),

fazendo esse trabalho em visitas constantes, promovendo workshops com

autores e pedagogos renomados e, ainda, disponibilizando sites com sugestões e exemplos dados por professores integrantes das escolas

assistidas (cf. NUNES, 2012, p. 13).

A escola, conforme sugere Nunes, não tem sua identidade com suas respectivas

características consideradas para elaboração do programa de ensino, uma vez que as

propostas já estão prontas.

Analisando-se especificamente o papel do professor nesse contexto, é digno de nota que escolas e pais passam a exercer uma rígida vigilância de

seu trabalho, à medida que ele passa a ser cobrado pelo uso do material

apostilado e da “parafernália didática” (GERALDI, 2003, p. 93)

De acordo com Geraldi, uma vez que a escola é submetida à fatores externos e

mantida sobre um rígido controle por meio das políticas e propostas pedagógicas externas, o

professor deixa de ter autonomia no que tange a sua prática pedagógica. Assim, Carmagnani

complementa o que diz Geraldi, e chama a atenção para o processo avaliativo dos programas

prontos de ensino:

Como em muitas instituições que adotam sistemas de ensino, as provas chegam prontas às escolas, faz-se um controle austero dos conteúdos

trabalhados em sala, comparando-os com os cobrados nas avaliações

formais e julgando os resultados obtidos, muitas vezes ranqueados numa mesma rede de ensino. Assim, os professores se veem obrigados a seguir

passos preestabelecidos pelos colégios, o que tende a padronizar seu

trabalho, independentemente de suas características pessoais.

(CARMAGNANI, 1999a, p. 54).

De acordo com Carmagnan, o processo avaliativo não avalia o processo de ensino e

aprendizagem do o aluno por suas especificidades heterogêneas, mas sim se as metas

estabelecidas pelos referidos programas de ensino foram cumpridas

Page 57: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

55

Comparando-se, então, livros didáticos e apostilas escolares, vemos que

suas diferenças não são tantas. Embora as apostilas sejam ágeis, possam ser atualizadas num curto espaço de tempo e possam constituir-se num

complemento mais motivante para os livros didáticos tradicionais, ambos

vêm sendo usados como fonte exclusiva de um saber institucionalizado,

apresentado sob um discurso assertivo. (CARMAGNANI, 1999a, p. 54).

Carmagnani evidencia a influência dos materiais didáticos prontos sobre o saber

escolar enfatizando o caráter institucional dos referidos materiais.

Mesmo querendo, professores e alunos não conseguem ultrapassar as informações apresentadas, em virtude do modo fechado com que os temas

e atividades são apresentados. Como contêm notas, adaptações de textos

originais ou apenas sínteses de conceitos complexos, as apostilas solicitam

respostas objetivas, quando não solicitam que se assinale apenas a resposta correta, o que cerceia as possibilidades de desenvolvimento linguístico e

cognitivo dos alunos. O mais lamentável nisso tudo é que se mantém o

discurso ultrapassado de que a aprendizagem é válida à medida que se configure como um mero acúmulo de informações, não importando se

provenientes de uma apostila ou de um livro. (MALFACINI, 2015, p. 57).

As referidas citações elucidam alguns exemplos de como o professor é conduzido a

exercer sua prática: os critérios de acordo com as citações podem ser de ordem política

externa, como a atuação de gestores externos interferindo arbitrariamente na prática escolar;

pode ser ordem interna, quando as escolas com o objetivo de atingirem determinados

objetivos (como garantir que o aluno possa ser aprovado num vestibular concorrido) seguem

rigorosamente orientações de determinadas apostilas ou outro tipo de material; ou, ainda, o

tipo de material pode ser um atrativo por sua praticidade, economia de tempo e dinamismo,

entre outros, contribuindo para o aumento da dependência em relação ao material pronto,

levando ao afastamento das potencialidades do saber acadêmico em prol de um ensino de

boa qualidade.

O fato é que além dessas motivações há outras, como avaliações externas que de

certa forma influenciam a prática pedagógica da escola; ausência de condições de formação

capaz de garantir o aprofundamento e o conhecimento dos saberes acadêmicos por parte do

professor; tempo curto para estudos do professor que trabalha, muitas vezes, em mais de

uma escola, e assim por diante.

Todavia, não podemos deixar de considerar o que indica a quinta potencialidade: é

preciso identificar os critérios a partir dos quais o professor opera no domínio da

transposição didática, e com base nessas informações investigar elementos que possam

contribuir para que o professor se aproprie, se aprofunde e possa expandir o saber genuíno

acadêmico por ele mesmo ou até para que ele (o professor) possa analisar e atuar sobre os

Page 58: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

56

conteúdos das propostas curriculares, dos livros didáticos e de outros materiais, bem como

elementos e propostas oriundos da noosfera.

Além das potencialidades, Abrão (2009) destaca as regras que orientam o conceito de

transposição didática. Assim como as potencialidades, as regras são constituídas de cinco

elementos:

a) Regra 1 – Modernizar o saber escolar: a modernização faz-se necessária pois

o desenvolvimento e o crescimento da produção científica são intensos. Novas

teorias, interpretações e modelos científicos e tecnologias forçam a inclusão

desses novos conhecimentos nos programas de formação (graduação) de futuros

profissionais. “A modernização dos saberes escolares é uma necessidade, pois

legitima o programa da disciplina, garantindo seu lugar no currículo”

(BROCKINGTON, 2005, p. 109 apud ABRÃO, 2009, p. 39).

b) Regra 2 – Atualizar o saber a ensinar: o saber tem de ser renovado,

atualizado, porque esse saber tratado no sistema didático envelhece, “tornando-

se velho em relação à sociedade” (CHEVALLARD, 1991, p. 30 apud ABRÃO,

2009, p. 39), se afastando do núcleo de pesquisa do saber sábio (o que faz com

que esse saber não seja mais reconhecido como atual pelo saber original); e ao

ser modificado para toda a sociedade, aproxima-se do saber dos pais (isso

banaliza o saber, porque o professor estaria ensinando algo diluído na cultura

cotidiana). Esse envelhecimento torna o sistema didático obsoleto do ponto de

vista da sociedade, visto que os próprios pais poderiam transmitir esse

conhecimento.

c) Regra 3 – Articular saber velho com saber novo: o saber novo se articula

melhor quando apresentado para aplicar um saber antigo, mas não de uma

maneira radical, tentando refutar ou negar o saber anterior. Isso poderia gerar o

risco de o aluno ver o novo saber escolar como algo instável, acreditando que ele

sempre será substituído por um mais novo que virá em seguida. Isso poderá

desencadear um estado de “questionamento” permanente, gerando dificuldades

na condução do processo de ensino. A introdução de novos objetos de saber

ocorre melhor se articulados com os antigos. O novo se apresenta para esclarecer

melhor o conteúdo antigo, e o antigo, para hipotecar validade ao novo.

Page 59: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

57

d) Regra 4 – Transformar um saber em exercícios e problemas: o saber sábio

que trouxer maiores possibilidades de exercícios e atividades certamente será

mais bem aceito pelo sistema didático. Isso porque os exercícios e atividades

fazem parte preponderante no processo de avaliação. Assim, esses conteúdos

terão uma vantagem, ou melhor, uma preferência no processo de transposição

didática.

e) Regra 5 — Tornar um conceito mais compreensível: como vimos, na

transformação do saber sábio em saber a ensinar há a perda de sua linguagem

original, passando a ser escrito em uma linguagem mais próxima das pessoas

que não fazem parte da comunidade que compõe o saber sábio. Isso faz com que

esse saber se torne mais próximo dos alunos e, dessa forma, sua compreensão

poderá ser facilitada, tendo como objetivo a melhora do aprendizado desse saber

por parte do aluno.

Considerando as características das cinco regras da transposição didática descritas

por Abrão (2009), podemos inferir que pelas peculiaridades de cada uma delas elas podem

contribuir para potencializar estratégias, metodologias de ensino.

Para concluir este item, apresentamos a reflexão de Soares:

No quadro dessa instituição burocrática que é a escola, também o

conhecimento é “burocratizado”. Transfigurado em currículo, pela escolha de áreas de conhecimento consideradas educativas e formadoras, e em

disciplinas, pela seleção, e consequente exclusão, de conteúdos em cada

uma dessas áreas, pela ordenação e sequenciação desses conteúdos, processo através do qual se instituem e se constituem os saberes escolares.

(SOARES, 2002, p. 142).

A reflexão de Soares constitui evidência para o que defende Chevallard, isto é, a

transposição didática como transformação do saber acadêmico em saber escolar. Portanto,

considerando esse processo, aplicamos uma proposta de ensino da escrita que busca criar

condições para que o aluno aprenda a usar as estratégias de referenciação no gênero carta do

leitor.

Page 60: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

58

3 METODOLOGIA

“O conhecimento (‘saber’) é deixado de lado e o centro passa a ser apenas o

professor e o aluno” (CHEVALLARD, 1991, apud ABRÃO, 2009, p.29) — tal

problemática, identificada pelo referido autor no que se refere à transposição didática, é

também o que motivou Oliveira (2010) a escrever o livro Coisas que todo professor de

português precisa saber – a teoria na prática, em que diz:

O que motivou a elaboração deste livro, cujo conteúdo é, em grande parte, resultado de um projeto de pesquisa realizado na Universidade Estadual de

Feira de Santana, intitulado “O Ensino pragmático da Gramática”, foi a

constatação da existência de uma grande distância entre, de um lado, as pesquisas realizadas nas universidades e os livros teóricos sobre o ensino

de português e, de outro, os professores de português do ensino

fundamental e do ensino médio. (OLIVEIRA, 2010, p. 14).

Oliveira enfatiza que há um grande abismo entre o saber sábio e o saber ensinado, e

ele atribui essa característica à falta de clareza dos professores sobre aspectos essenciais que

envolvem o ensino da língua, sendo uma delas:

A falta de conhecimento das teorias subjacentes à prática pedagógica pode

tornar o professor um mero usuário inconsciente de livros didáticos, um

simples cumpridor de tarefas com um enfoque conteudista. Quando isso acontece, o professor em vez de usar o livro didático, é usado por ele.

(OLIVEIRA, 2010, p. 15).

Considerando as características que envolvem a transposição didática, bem como os

obstáculos que incidem sobre esse conceito na prática docente, elaboramos uma metodologia

balizada nas cinco regras que orientam o conceito de transposição didática. Retomando as

cinco regras brevemente:

a) Regra 1 – Modernizar o saber escolar.

b) Regra 2 – Atualizar o saber a ensinar.

c) Regra 3 – Articular saber velho com saber novo.

d) Regra 4 – Transformar um saber em exercícios e problemas.

e) Regra 5 – Tornar um conceito mais compreensível.

3.1 Operando com a regra 1 e a regra 2

Buscando operar com a regra 1 e regra 2, ou seja, modernizar os saberes escolares e

ao mesmo tempo atualizar os saberes escolares, de acordo com estudos acadêmicos

atualizados sobre a língua, selecionamos a referenciação (atividade discursiva) como

Page 61: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

59

conteúdo principal do nosso estudo; bastante investigada, na atualidade, por sua importância

na atribuição de sentidos tanto para o ato de ler quanto para o ato de escrever.

A referenciação é uma atividade criativa e não um simples ato de designação. Diante disso, a construção referencial deve ser tida como

central na aquisição da língua, estendendo-se a todas as ações linguísticas.

Considerando que a língua em si mesma não providencia a determinação semântica para as palavras e as palavras isoladas também não nos dão sua

dimensão semântica, somente uma rede lexical situada num sistema

sociointerativo permite a produção de sentidos. (MARCUSCHI, 2007, p.

69).

Marcuschi enfatiza o caráter social-interativo do conceito de referenciação para a

produção de sentidos e reforça a conclusão a que chegou Gomes (2014) sobre esse tipo de

atividade discursiva, ou seja, a referida autora acredita ser de grande valia que no ensino de

língua materna os professores pratiquem o trabalho com o texto em sala de aula e saibam

reconhecer e abordar os mecanismos pelos quais se evidenciam intencionalidades, como

ocorre no processo de referenciação. Gomes (2014) ainda afirma que a discussão sobre

referenciação deve ultrapassar a esfera acadêmica a fim de contribuir para a formação de

alunos-cidadãos-leitores críticos e para que os discentes conheçam os mecanismos pelos

quais se compõe o discurso, pois assim terão capacidade para ler o mundo e posicionar-se

diante dele.

Podemos dizer que a referenciação é uma proposta teórica que fortalece o “poder” da anáfora. Essa categoria não pode mais ser entendida nos

limitados moldes da relação de identificação entre sintagmas presentes

num texto. Ela é, na verdade, a unidade poderosa que revela um complexo trabalho sociocognitivo-discursivo de abordagem da realidade, passível de

retomar elementos os mais diversos e de realizar múltiplas funções.

(CUSTÓDIO FILHO, 2012, p. 843).

De acordo com Koch e Elias (2009), no roteiro da agenda de trabalho de muitos

estudiosos no campo da Linguística Textual os estudos sobre os gêneros textuais exercem

uma contribuição de grande valia para potencializar a compreensão cognitiva do texto

(recepção e produção).

Partindo da concepção bakhtiana segundo a qual os gêneros são enunciados relativamente estáveis em cuja constituição entram elementos referentes ao

conteúdo, composição e estilo, Marcuschi (2002) afirma que é impossível

pensar em comunicação a não ser por meio de gêneros textuais (quer orais, quer escritos), entendidos com práticas socialmente constituídas com

propósito comunicacional configuradas corretamente em textos. (KOCH;

ELIAS, 20090, p. 56).

Page 62: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

60

É nesse sentido, que escolhemos compor um programa de ensino que busca

propiciar ao aluno condições de identificar e criar efeitos de sentidos por meio da

referenciação na produção escrita do gênero cartas do leitor.

Segundo o agrupamento de gêneros proposto por Dolz e Schneuwly (1996, 2004), a

carta do leitor pertence à ordem do argumentar, situando-se na esfera de comunicação

(domínio social) de assuntos/temas controversos. É um gênero que circula no contexto

jornalístico, em seções específicas de revistas (semanais/mensais) e jornais. Sua estrutura

básica, de acordo com Silva (1997, apud BEZERRA, 2002) apresenta seção de contato,

núcleo da carta e a seção de despedida.

Acrescentamos aqui o título que se caracteriza como uma forma de sumarização do

assunto exposto nas cartas. Bezerra (2002) vê a carta do leitor como um texto utilizado em

situação de ausência de contato imediato entre remetente e destinatário que não se

conhecem, atendendo a diversos propósitos comunicativos, como opinar, agradecer,

reclamar, solicitar, elogiar, criticar etc.

Para Costa (2005), este gênero discursivo é um termômetro que afere o grau de

sucesso dos artigos publicados nos jornais (ou revistas), pois os leitores escrevem reagindo,

positiva ou negativamente, ao que leram; além de propiciar a interação entre leitor e

jornal/revista, dando a estes uma ideia das expectativas daqueles em relação à linha editorial.

Mas a autora ressalta que a carta do leitor constitui, sobretudo, um dispositivo eficaz de

divulgação de problemas no qual muitas vezes as pessoas se defendem de serviços

malprestados, ameaçando denunciar seus responsáveis ao “escrever para os jornais”. Assim,

“a carta do leitor pode se configurar com teor de queixa, crítica e/ou denúncia” (CECILIO;

RITTER, 2008, p. 2).

Por compatibilidade teórica, elegemos o sociointeracionismo como principal

pressuposto orientador deste estudo, uma vez que nesta perspectiva o método de

investigação deve estar vinculado ao contexto sócio-histórico e cultural, onde a concepção

de realidade está particularmente voltada para a relação/atuação homem-mundo. Levando

em conta a análise da relação homem-mundo, o interacionismo compreende a

evolução/desenvolvimento dos sujeitos a partir das suas vivências nos contextos cotidianos.

3.2 Os sujeitos participantes

A coleta de dados ocorre em uma escola pública municipal da região oeste da cidade

de São Paulo e orientada pela intervenção de ensino realizada pela própria pesquisadora. A

Page 63: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

61

investigação conta com a participação de 27 alunas e alunos do nono ano do ensino

fundamental, com idade entre 13 e 15 anos. Os discentes participantes possuem desempenho

regular nas atividades educacionais e não apresentam histórico de dificuldades de

aprendizagem.

3.3 Caracterização dos instrumentos e procedimentos para a coleta de dados

Para atingir os objetivos do estudo optamos pela pesquisa exploratória. Segundo Gil

(2010), as investigações exploratórias têm como propósito propiciar maior proximidade com

o problema, com vistas a torná-lo mais explícito. O planejamento dessas pesquisas tende a

ser bastante flexível, pois, de acordo com Gil, o que importa é considerar os mais variados

aspectos ao fato ou fenômeno estudado.

O método de coleta de dados decorre da realização de um determinado número de

atividades elaboradas especialmente para o estudo. As atividades foram escolhidas partindo

do resultado da análise de um questionário respondido pelos estudantes antes do início das

atividades.

O referido questionário foi aplicado com o objetivo de conhecer o que pensa o aluno

participante sobre a escrita, qual a relevância desse tipo de atividade para o estudante e

também para identificar em que momento o aluno pratica a escrita. Tais conhecimentos,

segundo Charlot, podem nortear a prática do ensino e aprendizagem para o êxito pois:

[…] o sujeito se constrói pela apropriação de um patrimônio humano, pela

mediação do outro, e a história do sujeito é também uma das formas de

atividade e de tipos de objetos suscetíveis de satisfazerem o desejo, de

produzirem prazer, de fazerem sentido. (CHARLOT, 2005, p. 38).

A análise do resultado do questionário pretendeu verificar em que momento o ato de

escrever fazia sentido para o discente tanto do ponto de vista do escrever pelo prazer quanto

do escrever pela necessidade.

Uma aprendizagem só é possível se for imbuída do desejo (consciente ou

inconsciente) e se houver um envolvimento daquele que aprende. Em outras palavras: só se pode ensinar a alguém que aceita aprender, ou seja,

que aceita investir-se intelectualmente. O professor não produz o saber no

aluno, ele realiza alguma coisa (uma aula, a aplicação de um dispositivo de

aprendizagem etc.) para que o próprio aluno faça o que é essencial, o

trabalho intelectual. (CHARLOT, 2000, p. 76).

Tomando como partido as palavras de Charlot, concordamos com o referido autor

quanto ao fato de que só se pode ensinar alguém que aceita investir-se no construto

intelectual, e ainda ressaltamos que, sendo assim, ao professor cabe a responsabilidade de

Page 64: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

62

oferecer condições educativas (uma aula, a aplicação de um dispositivo de aprendizagem

etc.) que favoreçam o surgimento do querer aprender por parte do discente para que este,

então, possa desenvolver o trabalho intelectual.

Levando em conta tal perspectiva é que elaboramos um questionário com quatro

questões:

1. Para você, em que medida escrever é importante?

2. No seu cotidiano, você costuma escrever em quais destas ocasiões?

3. Descreva pelo menos uma situação em que você tenha gosto em escrever.

4. Identifique um momento na sua vida, fora das situações escolares, em que

você julgue importante saber escrever.

Segue a questão 1 representada por gráfico:

Gráfico 1 – Resultados das respostas à questão número 1

0

5

10

15

20

25

30

POUCO MUITO INDIFERENTE

Para você, em que medida saber escrever é importante?

Fonte: elaborado pela autora

A maioria dos participantes, mais exatamente 26 alunos, respondeu que saber

escrever é muito importante, e apenas 1 dos sujeitos afirma ser indiferente.

A segunda questão continha o enunciado “No seu cotidiano, você costuma escrever

em quais destas ocasiões?”, seguida de algumas possíveis respostas: fazer uma lista de

compras; conversar pelas redes sociais, como o Facebook, ou em aplicativos de mensagens,

como o WhatsApp (um software para smartphones utilizado para a troca de mensagens de

texto instantaneamente, além de vídeos, fotos e áudios, com uma conexão de internet);

escrever no diário; e outra situação. O gráfico a seguir contém o resultado da referida

questão.

Page 65: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

63

Gráfico 2 – Resultados das respostas à questão número 2

No seu cotidiano, você costuma escrever em quais destas ocasiões?

Fazer uma lista de compras Conversar pelas redes sociais fazer atividades escolares

conversar pelo whatsapp Escrecver no diário Outra situação:

Fonte: elaborado pela autora

De acordo com o gráfico, a maioria dos participantes costuma praticar a escrita pelas

redes sociais, com 22 alunos dizendo usar esse tipo de mídia para se comunicar por meio da

escrita; em segundo lugar de preferência dos discentes para exercitar a comunicação pela

escrita está o aplicativo WhatsApp, com 18 alunos respondendo que usam essa ferramenta; o

terceiro lugar onde os estudantes declaram praticar a escrita é para realização de atividades

escolares, com 17 discentes mostrando usar a escrita para práticas escolares; o quarto lugar

ficou para a composição de lista de compras, com 7 alunos declarando usar a escrita para

fazer a relação de itens para compras; o quinto lugar ficou para ‘outra situação’, com 4

alunos afirmando usar a escrita nas seguintes ocasiões: a) ministrar atividades na igreja; b)

escrever nas aulas de reforço de português; e, por fim, c) dois estudantes que escrevem

cartas. O único item que não recebeu nenhum tipo de indicação dos alunos foi “Escrever no

diário”.

Page 66: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

64

Quadro 25 – Transcrição literal das respostas dos alunos à questão 3

3. Descreva pelo menos uma situação em que você tenha gosto em escrever

• “Eu gostei de escrever os textos de aniversário das minhas amigas ou escrever redação”

• “Eu ajudo a escrever um mangá com meu amigo: ele desenha e eu escrevo”

• “Redação escolar”

• “Teve um roteiro que eu desenharia, eu gostei de escrever o anime que eu desenharia”

• “Conversar com meus amigos ou familiares pelo WhatsApp”

• “Gosto de escrever no WhatsApp e principalmente cartas amo escrever”

• “Eu gosto de escrever textos e mensagens na rede social”

• “Mandar mensagem pro meu irmão; escrever coisas que eu preciso; fazer cartas”

• “Quando eu vou escrever carta para uma pessoa”

• “Quando estou triste, ou quando não fico fazendo nada”

• “Resumo de livros que eu leio”

• “Gostei muito de fazer o relatório no último estudo do meio, foi de bastante aprendizado para

mim! Gosto muito de digitar por mensagens, é rápido e prático. Outra ocasião são as histórias

de faz de conta que escrevo para contar às crianças no trabalho da minha mãe”

• “Gosto de escrever em redes sociais com meus amigos, mandar mensagens pelo Facebook ou WhatsApp”

• “Lista de compras”

• “Escrever histórias”

• “Quando estou em casa em frente ao computador”

• “Quando eu estou criando uma história, eu fico muito empolgado, acabo escrevendo muito e

gostando”

• “Quando estou triste ou quando estou na escola e em redes sociais”

• “Em textos de aniversários, e quando eu quero expressar minha opinião”

• “Quando o eu vou conversar pelo WhatsApp”

• “Fazer listas de compras e poder ajudar que tem dificuldade”

• “Quando estou assistindo algum filme, eu gosto de escrever as palavras que me chamam

atenção, me ajuda a ter conhecimento, quando estou lendo livro sempre anoto também as palavras e frases bonitas”

• “Eu gosto de fazer histórias, como por exemplo uma redação já começada, ou uma redação que

tenha um objetivo, tipo um título, aí você foca nele (no assunto) e faz”

• “Mandar uma carta para alguém ou uma mensagem”

• “Qualquer coisa”

• “Eu gosto muito de escrever cartas pro meu pai, aí eu faço umas três folhas escritas e mando

pra ele”

Fonte: elaborado pela autora

O Quadro 25 apresenta situações distintas em que os estudantes demonstram terem

gosto em escrever, e embora esteja presente uma certa predileção em usar a escrita no

WhatsApp ou outro tipo de rede social, as preferências dos estudantes não se restringem

apenas a esses dois tipos de situações de uso da escrita: elas abrangem outros espaços de

interação do aprendente.

Assim sendo, para alguns participantes o ato da escrita serve para expressar

sentimentos, frustrações ou outros tipos de emoções, e abrange gostos peculiares, como a

Page 67: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

65

elaboração de lista de compras, trabalhos escolares, redação de cartas, redações escolares,

cartões de aniversários e assim por diante.

É importante destacar que mesmo o único aluno que respondeu ser indiferente saber

escrever na questão 1 (Gráfico 1), na questão 3 (Quadro 25) revelou gostar da atividade ao

especificar: “Gosto de escrever no WhatsApp e pincipalmente cartas amo escrever” [sic].

A questão 4 procura identificar quando os participantes do estudo avaliam ser

relevante saber escrever. Para tanto, os sujeitos responderam ao seguinte enunciado:

“Identifique um momento na sua vida, fora das situações escolares, em que você julgue

importante saber escrever”. O Quadro 26 apresenta as respostas dos discentes:

Quadro 26 – Transcrição literal das respostas dos alunos à questão 4

4. Identifique um momento na sua vida, fora das situações escolares, em que você julgue

importante saber escrever.

• “Em algumas ocasiões é importante saber escrever, principalmente, que gosto de mandar cartas

para uma pessoa que gosto”

• “Currículos, cartas”

• “Fazer uma prova”

• “No trabalho, ou ir para algum lugar… eu anoto o nome das ruas”

• “Eu tenho um tio que está preso e eu tenho só uma forma de falar com ele, através das cartas,

se eu não soubesse escrever não me comunicaria com ele”

• “Para fazer uma carta par uma pessoa importante, ou mandar um e-mail para uma autoridade”

• “Quando quero escrever uma carta para alguém. Ler uma notícia, receita médica, produtos no mercado ou receber cartas, e-mails ou mensagens. Assinar um papel importante, assinar

documentos”

• “Quando preciso avisar algo importante por mensagem escrita”

• “É muito importante saber escrever porque você vai precisar muito quando for arrumar um

emprego (currículo) ou para quando você for se comunicar com alguém por carta”

• “Redações”

• “É importante saber escrever em várias ocasiões, eu tive que fazer uma redação para entrar para meu curso”

• “Às vezes quando eu faço anotações no meu caderno”

• “No curso que eu fiz, eu cheguei lá, e tive que escrever tudo o que estava fazendo e que eu

aprendi lá”

• “Na hora de fazer uma prova, de algum trabalho ou outra coisa”

• “Em várias ocasiões porque se você escrever errado em qualquer coisa fica feio”

• “Quando for fazer um currículo; assinar um papel importante; notícias; receitas médicas;

quando for mandar uma mensagem importante para alguém”

• “Para você fazer um currículo, receita médica, ou escrever um livro, mandar uma mensagem importante”

• “Em entrevistas ou quando você precisa entrar em lugares, tipo escolas, empregos, etc.”

• “Em um emprego, escrever uma carta, HQs, histórias em quadrinhos”

(continua)

Page 68: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

66

(continuação)

4. Identifique um momento na sua vida, fora das situações escolares, em que você julgue

importante saber escrever.

• “Por mensagem é importante escrever corretamente, mesmo que esteja falando com amigos.

Quando vou escrever e publicar algo nas redes sociais. Nos momentos especiais, quando vou escrever uma dedicatória ou algo carinhoso para alguém. E o mais importante, quando for

arrumar um trabalho ou escrever uma carta para uma autoridade”

• “Saber escrever é muito bom. Você fala com seus amigos pelas redes sociais, manda cartas”

• “Quando escrevo ou recebo cartas, e-mail ou cartas, entrevistas de emprego, receita médicas

ou de culinária, assinar papeladas e documentos importantes”

• Caso você tenha que escrever para um governador, ou mandar um e-mail para alguém;

• Na hora de fazer um teste para uma escola de futebol, pois primeiro você faz uma prova teórica, e depois faz o teste;

• Quando for em uma entrevista de emprego;

• é sempre bom saber escrever, na hora de preencher alguma coisa;

• Whatsapp, facebook, instagram, tudo isso, eu julgo a importância de escrever;

Fonte: elaborado pela autora

O Quadro 26 apresenta um panorama referente ao momento em que os estudantes

julgam importante saber escrever. Tais respostas, como na questão 3 (Quadro 25),

apresentam ocasiões diversas de uso. Contudo, a descrição dos alunos, além de permeada

por situações não formais, como conversar pelas redes sociais e escrever cartas para entes

queridos, revelam a valia de saber escrever em situações formais, destacando o uso da

escrita para interagir com autoridades e em ambientes profissionais, testes para admissão em

algum curso ou emprego, concessões para adentrar outros espaços de interesse do aluno,

como fazer um teste de escrita para ser admitido em uma escolinha de futebol.

Houve ainda o destaque de saber escrever corretamente para evitar possíveis

constrangimentos, enfatizado pela seguinte resposta: “Em várias ocasiões porque se você

escrever errado em qualquer coisa fica feio” [sic].

Com base nas respostas apresentadas pelos participantes às quatro questões,

especificamente nas questões 2, 3 e 4, planejamos, no primeiro momento, um plano de aula

de ensino do conceito de referenciação com três momentos de produção escrita, que

descreveremos mais detalhadamente a seguir.

3.4 O plano de atividades para o ensino do conceito de referenciação: operando com a

regra 5

Para confecção da primeira produção escrita, operamos com a regra 5 (tornar um

conceito mais compreensível), partindo do princípio de que os alunos já possuem e usam o

conceito de referenciação tanto no aspecto oral quanto no escrito, e muito embora seja uma

Page 69: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

67

prática discursiva constante dos sujeitos participantes desta pesquisa, o referido saber ainda

não se configura em um ato consciente, sobretudo na escrita, uma vez que os estudantes

fazem uso da referenciação sem ter o conhecimento sobre as peculiaridades de tal conceito.

Tal desconhecimento por parte do sujeito pode induzir ao uso inadequado ou ao não

aproveitamento das diversas possibilidades de comunicação que podem ser propiciadas pelo

conhecimento das incontáveis potencialidades de produção de sentidos do conceito de

referenciação.

Assim, neste primeiro momento os alunos compuseram uma produção escrita

espontânea, conforme Anexo 1, sem qualquer intervenção de ensino em relação à

referenciação. Considerando que as respostas dos alunos mostraram que cada um tem gostos

distintos para realização escrita e também pela temática, permitiu-se que os sujeitos

escolhessem tanto o gênero textual quanto a temática para elaborarem seus textos.

Para essa primeira atividade, procuramos considerar os saberes que os alunos já

possuíam sobre o conceito de referenciação. Segundo Vygotsky, tal conhecimento está

incutido na Zona de Desenvolvimento Real (ZDR), e, como afirma Rego:

O nível de desenvolvimento real pode ser entendido como referente àquelas conquistas que já estão consolidadas na criança, aquelas funções

ou capacidades que ela já aprendeu e domina, pois já consegue utilizar

sozinha, sem assistência de alguém mais experiente da cultura (pai, mãe,

professor, criança mais velha etc). Este nível indica, assim, os processos mentais da criança que já se estabeleceram, ciclos de desenvolvimento que

já se completaram. (REGO, 1985, p. 72).

Após os discentes terem realizados a primeira produção, a pesquisadora explicitou

aos alunos o conceito de referenciação destacando a característica anafórica e catafórica. Em

seguida, os participantes foram orientados a ler a produção que elaboraram procurando

identificar a ocorrência da referenciação anafórica e/ou catafórica. Considerando por

referenciação anafórica o termo ou expressão que faz referência direta ou indireta a um

termo anterior na produção textual, e por referenciação catafórica um elemento que faz

referência a um termo subsequente.

Neste ponto os participantes deveriam assinalar que tipo de referenciação (anafórica

ou catafórica) emergia de suas produções. Dentre as orientações oferecidas aos aprendentes

estava a de que as dúvidas que surgissem referentes à confecção da referida atividade

poderiam ser esclarecidas pela pesquisadora. Portanto, os discentes comunicariam à

investigadora suas dificuldades em realizar a atividade durante todo o tempo da localização

das referenciações.

Page 70: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

68

A pesquisadora propôs-se a esclarecer as dúvidas dos estudantes de acordo com suas

particularidades tanto na perspectiva de dificuldade de entendimento individual do aluno em

relação ao conceito de referenciação quanto em relação às particularidades ao texto

produzido pelo aprendente, uma vez que a escolha do gênero textual e da temática ficou a

cargo do participante. A intervenção da pesquisadora teve como objetivo oferecer pistas para

os alunos sobre os possíveis caminhos a serem seguidos nas suas composições. Para tanto, a

investigadora respondia às dúvidas dos alunos individualmente, com questionamentos e

inferências relacionados ao próprio conteúdo escrito pelo aluno em seu texto, a fim de que o

participante pudesse por ele mesmo elaborar o exercício intelectual de como o conceito de

referenciação se configurava em sua escrita e quais os tipos de sentidos os referentes

poderiam inferir à sua produção considerando o ponto de vista do autor (neste contexto, o

aluno) e a perspectiva do possível interlocutor (leitor), assim como outras potencialidades de

sentidos que poderiam emergir de sua produção.

Os participantes também foram orientados a readequar as referenciações de suas

produções, trocando-as por outras se julgassem necessário após as intervenções da

investigadora.

A intervenção da pesquisadora tem como base o conceito de Zona de

Desenvolvimento Proximal (ZDP) estabelecida por Vygotsky, que pode ser entendida como:

[…] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma

determinar através da solução independente de problemas, e o nível de

desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas

sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais

capazes. (VYGOTSKY, 1984, p. 97).

A seguir, quadro com síntese dos objetivos da produção textual 1:

Quadro 27 – Objetivos da produção de texto 1

Produção de texto 1

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Elaborar uma produção escrita com o

gênero e temática a escolha do próprio

participante;

• Substituir os referentes escrito por outros

mais adequados à situação e intenção de

comunicação escrita.

• Explicitar ao discente o conceito de

referenciação: características anafóricas e

catafóricas;

• Solicitar aos sujeitos que identifiquem em suas

produções as referenciações explicitando a

ocorrência de referenciação anafórica e

catafórica;

• Interagir com alunos individualmente

esclarecendo as possíveis dúvidas.

Fonte: elaborado pela autora

Page 71: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

69

A segunda produção textual toma como base o resultado da questão 2 do

questionário, na qual a maior parte dos alunos revelaram usar a escrita para se comunicar por

meio das redes sociais, como o Facebook e o WhatsApp.

Com a intenção de identificar se os alunos já eram capazes de compreender como

ocorre a referenciação no processo de comunicação escrita dessas mídias, os sujeitos foram

instruídos a produzirem uma conversa com alguém de sua escolha por escrito, de acordo

com o Anexo 1, na qual poderiam simular conversas habituais nas referidas redes.

Na referida produção foi solicitado aos participantes que tal diálogo tivesse pelo

menos um referente anafórico e outro catafórico. Considerando que as conversas nas redes

sociais e no que se referem aos alunos ocorrem geralmente em situações não formais,

optamos por não interferir no tipo de linguagem que o participante usaria em tais

composições, sendo permitido aos alunos usar gírias, abreviações e signos característicos

das redes sociais.

Para que a própria pesquisadora compreendesse o que o participante queria dizer, ela

orientou alguns alunos a comporem um glossário de algumas expressões. Neste processo,

também os alunos poderiam participar à pesquisadora suas dúvidas a fim de que houvesse

intervenções.

Quadro 28 – Objetivos da produção de texto 2

Produção de texto 2

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Elaborar uma produção escrita que simule

uma conversa em algum tipo de rede social,

na qual o aluno contemple uma

referenciação do tipo anafórica e outra do

tipo catafórica;

• Identificar como ocorre o processo de

referenciação em conversas escritas pelas

redes sociais.

• Verificar se o aluno compreende como ocorre

a referenciação anafórica e catafórica em

produções escritas não formais, como em uma

conversa pela rede social;

• Interagir com os alunos individualmente

esclarecendo as possíveis dúvidas.

Fonte: elaborado pela autora

Para elaboração da terceira produção (Anexo 1) pelos participantes do estudo, a

pesquisadora retomou o conceito de referenciação. Contudo, nesta etapa fez a opção de

aprofundar tal conceito, explicitando, antes de aplicar a terceira produção aos sujeitos, as

principais estratégias de referenciação textual de modo que se compreendesse que:

A retomada é operação responsável pela manutenção em foco, no modelo

do discurso, de objetos previamente introduzidos, dando origem às cadeias referenciais ou coesiva; que são responsáveis pela progressão referencial

Page 72: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

70

do texto. Pelo fato de o objeto já se encontrar ativado no modelo textual, tal

progressão pode realizar-se tanto por meio de recursos de ordem gramatical, como pronomes, elipses, numerais, advérbios locativos [cf.

KOCH, 1989, 1987], como por intermédio de recurso de ordem lexical

(reiteração de itens lexicais, sinônimos, hiperônimo, nomes genéricos,

expressões nominais etc.). (KOCH; ELIAS, 2009, p. 131).

Para composição da terceira atividade, optou-se por não fazer qualquer tipo de

intervenção durante o processo de produção ou depois de os alunos produzirem o texto. O

objetivo de tal ação foi verificar se os alunos podiam compor as estratégias de referenciação,

explicadas pela investigadora, em seus textos autonomamente, sem qualquer tipo de

mediação.

Tal ação tem por objetivo avaliar se os alunos eram capazes de generalizar, ou seja,

usar de modo adequado o conceito de referenciação estudado na primeira e segunda

produções e ainda transpor tal conhecimento para outras situações de uso nas quais não

houve a intervenção direta do mediador.

Segundo Davydov (1982), dominar um conceito supõe conhecer as características

dos objetos e fenômenos que o mesmo abarca, além de também saber ampliar o conceito na

prática e saber operar com ele. Dominar um conceito supõe dominar a totalidade de

conhecimento sobre os objetos a que se refere o conceito dado, e, segundo o referido autor,

quanto maior o conhecimento sobre o conceito, maior o domínio sobre ele.

Considerando a perspectiva de Davydov sobre o domínio do conceito, os

participantes foram instruídos a elaborar uma história em quadrinhos com o tema de

interesse dos próprios sujeitos da pesquisa, na qual fizessem uso de, pelo menos, três formas

de progressão referencial (recursos de ordem gramatical, como pronomes, elipses, numerais,

advérbios locativos; e recurso de ordem lexical; reiteração de itens lexicais, sinônimos,

hiperônimo, nomes genéricos, expressões nominais etc.); e, no mínimo, uma progressão de

sumarização por encapsulamento e outra por rotulação.

A escolha pelo gênero textual história em quadrinhos deu-se por conta do interesse

dos alunos em desenvolver a expressão textual explorando aspectos multimodais3, conforme

demonstrado no questionário.

3 “O texto multimodal consiste em uma construção textual calcada na conexão/união de elementos

provenientes de diferenciados registros da linguagem. Os textos multimodais mais conhecidos são os que

estão pautados na junção de elementos alfabéticos e imagéticos (leia-se linguagem verbal escrita e visual, respectivamente). Sobre tal conceituação, podemos mencionar a título de exemplificação: os anúncios, os

cartuns, as charges, as histórias em quadrinhos, as propagandas, as tirinhas etc. Tais gêneros trazem consigo a

materialização de signos alfabéticos (letras, palavras e frases) e signos semióticos (imagéticos e visuais). Ou

seja, esses gêneros têm sua construção materializada mediante múltiplas e diversificadas semioses”

Page 73: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

71

Dois alunos disseram ter interesse pela escrita para compor a história em quadrinhos

e mangás (tipo de história em quadrinhos de origem japonesa). Outro fator que contribuiu

para tal escolha foi a relevância desse tipo produção na produção de sentidos, conforme

destaca Cavalcante:

A produção de linguagem verbal e não verbal constitui atividade interativa

altamente complexa de produção de sentidos que se realiza, evidentemente, com base nos elementos presentes na superfície textual e na sua forma de

organização, mas que requer não apenas a mobilização de um vasto

conjunto de saberes (enciclopédia), mas a sua reconstrução – e a dos

próprios sujeitos – no momento da interação verbal. (CAVALCANTE,

2010, p. 9).

Quadro 29 – Objetivos da produção de texto 3

Produção de texto 3

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Elaborar uma história em quadrinhos com o

tema de livre escolha, na qual haja uso de

pelo menos três tipos de estratégias de

referenciação; uma referenciação por

encapsulamento e outra por rotulação.

• Verificar se o participante é capaz de

generalizar os conceitos de referenciação, ou

seja, usá-lo de modo adequado, em situações

nas quais não houve intervenções educativas

diretas, tendo como base o que apreenderam

no processo de produção da primeira e

segunda atividades e mais a exposição das

características dos conceitos das formas de

progressão referenciais por elementos

textuais e por encapsulamento e rotulação.

Fonte: elaborado pela autora

Considerando algumas dificuldades identificadas no resultado da análise da terceira

produção dos alunos, como fazer o uso da recategorização e da sumarização por

encapsulamento e por rotulação, elaboramos um conjunto de exercícios (Anexo 2) com o

objetivo de oferecer condições para que os alunos fixassem variadas formas de referenciação

e seus respectivos sentidos. A seguir Quadro 30 contendo as respectivas questões:

(PORFIRIO, Silva; BRAGA, Francisco Ernandes de; CIPRIANO, Luis Carlos. 2015. Textos multimodais: a

nova tendência na comunicação. In: Observatório da Imprensa. Disponível em:

<http://observatoriodaimprensa.com.br/diretorio-academico/textos-multimodais-a-nova-tendencia-na-

comunicacao/> Acesso em: 10 nov. 2016).

Page 74: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

72

Quadro 30 – Questões sobre o conceito de referenciação

Questões que identificam os efeitos de sentidos da referenciação

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Responder às perguntas;

• Fixar os aspectos que envolvem o

conceito de referenciação

• Oferecer condições aos alunos de fixar

o conceito de referenciação;.

• Interagir com os participantes no

sentido de auxiliá-los a realizar o

objetivo anterior;

• Identificar as possíveis dificuldades

dos alunos na compreensão do

conceito de referenciação;

• Fazer uso do resultado dessa análise

para elaborar os esclarecimentos

necessários aos alunos.

Fonte: elaborado pela autora

Portanto, analisando o conjunto de atividades e intervenções, nota-se que o

planejamento das aulas visa oferecer aos alunos condições educativas nas quais os

aprendentes possam adquirir e desenvolver o conhecimento sobre os conceitos de

referenciação em distintas situações de interação escrita.

3.5 O plano de atividades para o ensino da produção da carta do leitor: operando com

a regra 3 e a regra 4

Buscando operar com a regra 3 (articular saber velho com saber novo), e com a regra

4 (transformar um saber em exercícios e problemas), propomos neste item que os alunos

elaborassem duas atividades e uma produção textual.

Para articular o saber velho com o saber novo, consideramos que os alunos já faziam

uso da referenciação tanto na escrita quanto na oralidade antes de iniciarem com a

participação neste estudo. No entanto, esse uso não era consciente (saber velho).

Dessa forma, buscamos articular o referido saber velho com o saber novo (o que os

alunos apreenderam sobre o conceito de referenciação no item anterior), fazendo uso da

regra 4 (transformar um saber em exercícios e problemas).

Para tanto, elaboramos um plano de atividades no qual seria oferecido aos alunos a

oportunidade de colocar em prática o uso do conceito de referenciação na sua produção

escrita por meio da produção de uma carta do leitor.

De acordo com Abrão:

Page 75: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

73

O saber sábio, cuja formatação permite uma gama maior de exercícios, é

aquele que, certamente terá preferência frente a conteúdos menos operacionalizáveis. Esta talvez seja a regra mais importante, pois está

diretamente relacionada ao processo de avaliação e controle de

aprendizagem. (ABRÃO, 2009, p. 41).

Nesse sentido, com o objetivo de colocar em evidência o saber sábio (referenciação),

procuramos garantir condições ao aluno de conhecer o gênero carta do leitor e ao mesmo

tempo desenvolver a capacidade de produzir o referido gênero.

Assim, apresentamos exemplares de carta do leitor e também esclarecemos em quais

suportes esse tipo de gênero costuma estar inserido, bem como os meios por onde circula,

oferecendo aos alunos diversas revistas nas quais os estudantes poderiam localizar variados

exemplares de cartas do leitor.

O gênero carta requer do professor uma atenção especial no que se refere à

argumentação. Nas palavras de Oliveira:

A carta exige que o professor oriente seus alunos acerca de questão textual importantíssima: a ARGUMENTAÇÃO. Todos sabemos que a

argumentação é feita para se convencer alguém de algo, seja para alguém

fazer alguma coisa, seja para levar alguém a uma conclusão, como nos

informa Ducrot (1972). Contudo, o que muitas pessoas não sabem conscientemente é que há estratégias de argumentação. Cabe ao professor

ajudar seus alunos a se conscientizarem dessas estratégias e de seu uso na

produção escrita. (OLIVEIRA, 2010, p. 151).

Para explicitar ao aluno a relevância da argumentação, solicitamos dois tipos de

atividades: na primeira atividade, selecionamos alguns exemplares de carta do leitor e

pedimos para que o discente identificasse os possíveis argumentos presentes nas produções

(Anexo 3) e quais os possíveis efeitos de sentido aferidos, por meio da referenciação, à

compreensão da tese da carta. A seguir, o Quadro 31 exibe os objetivos da atividade 1:

Page 76: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

74

Quadro 31 – Objetivos da atividade 1

Atividade 1

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Identificar os efeitos de sentidos que a

referenciação pode atribuir para

argumentação nas cartas do leitor.

• Verificar se o participante é capaz de

identificar as potencialidades da referenciação

para efeito de sentidos nas cartas de leitor;

• identificar o que o aluno domina em relação

ao primeiro objetivo proposto e quais as

dificuldades encontradas pelo aluno para

reconhecer as potencialidades da

referenciação na argumentação, e identificar o

que o aluno ainda precisa saber;

• Fazer uso do resultado dessa análise para

elaborar os esclarecimentos necessários aos

alunos.

Fonte: elaborado pela autora

A segunda atividade consiste numa estratégia de preparação para a produção da

carta do leitor pelo próprio participante e é composta por um questionário.

Para que o aluno possa compor a carta do leitor, selecionamos uma entrevista

intitulada “‘Amor doentio do pai matou o meu filho’, diz mãe sobre tragédia”, publicada na

Revista online Veja (Anexo 4). Elaboramos, juntamente com os alunos, uma leitura

minuciosa da entrevista, procurando, em conjunto com os alunos, interpretar e compreender

a entrevista, bem como erigir temas para argumentação.

A carta do leitor, por sua característica de interatividade, envolve um processo de

leitura que requer bastante perícia por parte do leitor. Nas palavras de Kleiman no que se

refere ao conhecimento prévio da leitura:

A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela

utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a

interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento

linguístico, o textual e o conhecimento de mundo que o leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o leitor utiliza justamente diversos

níveis de conhecimento que interagem ente si, a leitura é considerada um

processo interativo. Pode-se dizer com segurança que sem engajamento do

conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. (KLEIMAN,

1989, p. 13).

Considerando os aspectos apontados por Kleiman acerca da leitura, solicitamos aos

alunos que identificassem nas cartas (Anexo 5) alguns aspectos que poderiam contribuir para

que os estudantes reconhecessem possíveis temáticas para suas produções, bem como a

perspectiva de argumentação e composição do ponto de vista.

Page 77: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

75

A seguir, o Quadro 32 traz os objetivos da atividade 2:

Quadro 32 – Objetivos da atividade 2

Atividade 2

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Responder às perguntas propostas;

• Identificar, por meio das respostas dadas as

perguntas, aspectos na entrevista que

possam contribuir para erigir opiniões e

argumentos.

• Oferecer condições aos alunos de identificar,

por meio das respostas às perguntas,

possíveis temáticas para produção de sua

própria carta do leitor;

• Interagir com os participantes no sentido de

auxiliá-los a realizar o objetivo anterior;

• fazer uso do resultado dessa análise para

elaborar os esclarecimentos necessários aos

alunos.

Fonte: elaborado pela autora

As atividades foram então avaliadas. A avaliação da primeira atividade (Anexo 3)

consistiu em identificar, por meio das respostas dos alunos, o que eles compreendiam sobre

o efeito de sentido proporcionados pela referenciação nas cartas do leitor, quais aspectos

ainda não dominavam e quais peculiaridades precisavam saber sobre esse conceito para,

finalmente, elaborarem sua própria produção.

Com base no resultado da análise dessa primeira avaliação, foram tiradas dúvidas dos

discentes em relação à proposta e acrescentadas informações sobre as particularidades da

carta do leitor. Como exemplo, uma dessas dúvidas foi relativa ao produtor da carta ter de

escrever apenas sobre o assunto da carta ou se poderia acrescentar outro assunto com o

objetivo de defender um ponto de vista.

A avaliação da segunda atividade (Anexo 5) foi feita em conjunto com os alunos. A

maioria das perguntas era de caráter pessoal, e o objetivo era que os alunos, em conjunto,

contribuíssem com a construção das respostas com o intuito de que tais respostas e

questionamentos viessem a contribuir para que compusessem opiniões, hipóteses e

argumentos para produzirem as suas próprias carta do leitor.

A correção de ambas as atividades foi feita em conjunto com os alunos. Houve um

pequeno nível de correção da segunda atividade (Anexo 5), uma vez que esta já tinha sido

avaliada anteriormente e a maioria das respostas era de ordem pessoal.

A quarta produção textual (Anexo 6) deste procedimento consiste na composição da

carta do leitor pelos próprios participantes, sem intervenção do pesquisador. Dessa forma, os

participantes foram orientados a compor sua própria carta do leitor. Assim, receberam a

seguinte orientação: redigir uma carta do leitor acerca da entrevista contida no Anexo 4

Page 78: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

76

(“‘Amor doentio do pai matou o meu filho’, diz mãe sobre tragédia”), tomando o uso da

referenciação como recurso para atribuir sentido ao texto auxiliando na composição da

argumentação do referido texto.

Para realização da escrita, os discentes poderiam usar como base as atividades 1 e 2.

O objetivo dessa proposta era avaliar se os alunos eram capazes de elaborar a carta do eleitor

usando como recurso o processo de referenciação para a construção dos argumentos,

atribuindo sentido ao texto.

A seguir, finalizamos esse item apresentando o Quadro 33 com os objetivos da

quarta produção textual:

Quadro 33 – Objetivos da produção textual 4 (carta do leitor)

Produção textual 4 - Carta do leitor

Alunos – Objetivos Pesquisadora – Objetivos

• Elaborar a carta do leitor tendo como

referência a entrevista “‘Amor doentio do

pai matou o meu filho’, diz mãe sobre

tragédia”;

• Colocar em prática o que apreendeu sobre

o conceito de referenciação e sobre as

peculiaridades da carta do leitor, tendo

como base as atividades 1 e 2.

• Identificar se os alunos são capazes de usar

os recursos da referenciação para atribuir

sentido à carta do eleitor, sobretudo na

composição da argumentação do texto.

Fonte: elaborado pela autora

3.6 Tratamento da análise

Os alunos produziram 27 cartas do leitor. Todavia, adotamos 15 textos como corpus

da pesquisa. A análise do corpus realizar-se-á de forma qualitativa, como um suporte para o

entendimento do processo de intervenção.

3.6.1 Procedimentos de análise

O procedimento de análise dos dados é descritivo, fundamentando-se no referencial

teórico apresentado. Considerando a perspectiva qualitativa da análise, buscamos identificar

se o participante atendeu aos objetivos das intervenções de ensino aplicada nos itens

anteriores.

3.6.2 Apresentação dos resultados

Para apresentar os resultados, seguiram-se alguns procedimentos com a intenção de

torná-los mais explícitos. Assim:

Page 79: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

77

1. As 15 cartas produzidas pelos alunos serão expostas na íntegra, com exceção

do nome do aluno, que foi trocado para efeito de preservar a identidade do

participante;

2. Os dados são apresentados por meio da exposição das produções textuais com

o propósito de exemplificar a interpretação realizada;

Os dados são discutidos, logo em seguida, bem como a apresentação de cada uma

das cartas. Retomam-se também os pensamentos dos autores da fundamentação teórica a fim

de estabelecer uma discussão entre os dados da pesquisa empírica com a pesquisa teórica.

Page 80: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

78

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Apresentamos a seguir a descrição e a análise de 15 produções escritas pelos

participantes da pesquisa. A descrição está organizada em 15 itens, e cada uma dessas

unidades apresenta a transcrição da carta do leitor (de forma integral, com a redação sem

modificações profundas) e em seguida a descrição e a análise da referida produção.

4.1 Carta do leitor 1

Quadro 34 – Carta do leitor 1

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Caro Thiago!

Parabéns pela iniciativa em entrevistar a mãe do jovem assassinado. Lamento pela

tragédia, mas a fala da infeliz matriarca ajuda a gente a entender a razão de tudo. Pelo que ela diz,

o relacionamento pai e filho já não era grande coisa, o sujeito em vez de procurar meios de buscar

o sustento para dentro de casa ficava monitorando o filho 24 horas. O homem chegava ao cúmulo

de tentar controlar a comida do filho de 20 anos, uma pessoa com 20 anos já é tida como adulta,

mas ele tratava o jovem rapaz como bebê! Sinto muito pela dor dessa mãe que perdeu o filho

querido e o doido do marido, e vá me desculpando pela minha falta de sensibilidade, mas penso

que ela também tem um tantinho de culpa no cartório. O preguiçoso se achava melhor que os

outros dizendo que não trabalhava porque só trabalha gente que não tem competência, depois ela

podia ter se tocado: qualquer mané que pensa em se sentar no túmulo do próprio pai e enfiar um

tiro na cabeça não é de confiança. Se fosse minha mãe no lugar dessa senhora, já tinha dado no pé

e me levado junto, ou seja, a mulher do assassino poderia ter evitado a tragédia, se tivesse, lá atrás,

se separado do marido e carregado o filho junto, com certeza teria evitado que o pai perturbado

atirasse no adolescente. E olha que minha mãe é faxineira, e conhece a tal da lei “Maria da Penha”

e também alguma coisa dos direitos de proteção à criança e do adolescente. Acho que a mãe do

garoto morto, como delegada, deve ter decorado essas leis, será possível que a delegada não

pensou em proteger ela, o filho e o próprio marido dele mesmo? Enfim, o pior aconteceu, estou

tentando dizer que a pobre mulher poderia ter evitado a desgraça de sua família, mas acho que

ninguém melhor do que uma delegada pra saber que lei no nosso país é apenas enfeite, talvez por

isso nunca tenha tomado uma iniciativa. Sinto muito pela dor da mãe e esposa, e obrigado pela

oportunidade de opinar.

Leandro, 14 anos, nono ano.

O produtor da carta do leitor 1, situando a mãe no texto, introduz inicialmente a

expressão ‘a mãe do jovem assassinado’. Posteriormente, faz a retomada usando as seguintes

Page 81: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

79

expressões: ‘infeliz matriarca’, ‘ela’, ‘mãe’, ‘senhora’, ‘a mulher do assassino’, ‘a mãe do

garoto morto’, ‘delegada’, ‘delegada’, ‘ela’, ‘pobre mulher’, ‘sua’, ‘delegada’, ‘próprio’ e

‘mãe e esposa’.

Notamos que para maioria dos referentes, o participante atribui um sentido distinto.

Vejamos: o início segue com expressão ‘a mãe do jovem assassinado’, que colabora para

revelar o assunto sobre o que ele deseja discorrer, isto é, um jovem que foi assassinado.

A expressão ‘infeliz matriarca’ identifica o estado da mãe diante do assassinato do

filho. Em seguida, a expressão ‘ela’ apresenta de modo indireto a fala da mãe “Pelo que ela

diz, o relacionamento pai e filho já não era grande coisa”.

A primeira vez que o participante apresentou a palavra ‘mãe’ sem nenhum tipo de

adjunto adnominal evidencia empatia em relação aos sentimentos da mãe: “Sinto muito pela

dor dessa mãe que perdeu o filho querido e o doido do marido”. Efeito contrário acontece na

frase seguinte: “mas penso que ela também tem um tantinho de culpa no cartório”, quando o

produtor descaracteriza a expressão mãe substituindo-a pelo pronome ela, e, com isso, de

certa forma caminha para um afastamento de tudo o que representa a palavra mãe, ou seja, o

pronome ela dá licença ao produtor da carta para sugerir a responsabilidade da mãe pelo

assassinato do filho.

Esse aspecto ocorre novamente nas frases ‘ela podia ter se tocado’ e ‘Se fosse minha

mãe no lugar dessa senhora’. O pronome pessoal ela e o pronome de tratamento senhora

contribuem para manter o distanciamento e sugerir a culpa pelo assassinato à mãe.

A expressão ‘a mulher do assassino’ na frase “a mulher do assassino poderia ter

evitado a tragédia” culpa a mãe pelo assassinato, evidenciando a cumplicidade da mãe com

o assassino do filho e ao mesmo tempo evidencia a cumplicidade no que tange ao

assassinato do filho.

Assim, podemos observar que a expressão ‘a mulher do assassino’ recategoriza os

referentes anteriores (ela, ela, senhora), que apenas sugeriam a intenção de responsabilizar a

mãe.

Na frase “Acho que a mãe do garoto morto, como delegada, deve ter decorado essas

leis, será possível que a delegada não pensou em proteger ela, o filho e o próprio marido

dele mesmo?”, as expressões ‘a mãe do garoto morto’ e ‘delegada’ contribuem para

identificar a profissão da mãe; e, ao mesmo tempo que coopera para identificar a profissão,

serve de base para compor uma ironia e potencializar a responsabilidade da mãe sobre os

fatos, isto é, ‘delegada’ e mãe que, supostamente, conhece as leis: ‘delegada’ que tem

Page 82: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

80

autoridade para proteger as pessoas e não protegeu a própria família. A expressão ‘ela’

contida nessa frase, sugere mais de um sentido: é possível inferir que a mãe corria o risco de

ser assassinada pelo marido e também de vivenciar a dor de ter o filho morto pelo marido: a

expressão ‘próprio’ infere o sentido de pertencimento do marido em relação à mãe, e

enfatiza a responsabilidade dela no que tange ao marido.

A frase “Enfim, o pior aconteceu, estou tentando dizer que a pobre mulher poderia

ter evitado a desgraça de sua família, mas acho que ninguém melhor do que uma delegada

pra saber que lei no nosso país é apenas enfeite, talvez por isso nunca tenha tomado uma

iniciativa” apresenta uma tentativa de amenizar a responsabilidade da mãe sobre os fatos.

Novamente, a sugestão de empatia pode ser identificada na expressão ‘a pobre mulher’,

seguida da expressão delegada, que é apresentada para justificar a intenção de atenuar a

responsabilidade da mãe pelos fatos ocorridos. Notamos que esses referentes sugerem um

contra-argumento.

A expressão ‘razão de tudo’ sumariza por rotulação a opinião do produtor do texto e

está ancorada nos aspectos que antecederam o assassinato do filho pelo pai e a

responsabilidade da mãe sobre os fatos.

Finalizando a descrição dos referentes que dizem respeito à mãe, identificamos a

expressão ‘mãe e esposa’ na frase “Sinto muito pela dor da mãe e esposa”, e esse referente

infere o sentido de empatia pela situação vivida pela mãe, enfatizando que ela sofre duas

perdas: a do filho e a do marido.

Os referentes que tratam do pai dentro da produção são ‘pai’, ‘o sujeito’, ‘o homem’,

‘ele’, ‘doido do marido’, ‘o preguiçoso’, ‘mané’, ‘marido’, ‘o pai perturbado’, ‘próprio’ e

‘dele mesmo’. Na frase “o relacionamento pai e filho já não era grande coisa”, a introdução

da expressão ‘pai’, além de apresentá-lo na produção, sugere a participação dele nos fatos.

Nas frases “o sujeito em vez de procurar meios de buscar o sustento para dentro de

casa ficava monitorando o filho 24 horas”, e “O homem chegava ao cúmulo de tentar

controlar a comida do filho de 20 anos”; e as expressões ‘o sujeito’ e ‘o homem’ identificam

as atitudes do pai, além de inferir um tom de questionamento, enquanto que a expressão

‘ele’ na frase “ele tratava o jovem rapaz como bebê” apenas revela a atitude do pai em

relação ao filho.

As expressões ‘doido do marido’ e ‘pai perturbado’ claramente apresentam uma

opinião sobre o estado mental do pai. Já a expressão ‘o preguiçoso’ sugere um ponto de vista

sobre a personalidade do pai. A expressão ‘mané’ na frase ‘qualquer mané que pensa em se

Page 83: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

81

sentar no túmulo do próprio pai e enfiar um tiro na cabeça não é de confiança’ não diz

respeito diretamente ao pai, mas está ancorada na atitude dele. A expressão ‘marido’ na frase

“a mulher do assassino poderia ter evitado a tragédia, se tivesse, lá atrás, se separado do

marido e carregado o filho junto” situa a atitude da mãe, conferindo o status de membro da

família ao pai, mas não se refere à atitude do pai, e sim a da mãe. A expressões ‘marido’ e

‘dele mesmo’ contidas na frase “a delegada não pensou em proteger ela, o filho e o próprio

marido dele mesmo?” também dizem respeito à atitude da mãe, e não do pai.

Nos referentes relacionados ao pai, observamos que, quando o produtor quer

expressar um ponto de vista sobre o pai, apresenta referentes (doido do marido, pai

perturbado, mané, preguiçoso, o sujeito, o homem), mas só usa expressões definidas

(marido, próprio e dele mesmo) quando se refere às ações da mãe em relação ao marido.

Na frase “E olha que minha mãe é faxineira, e conhece a tal da lei ‘Maria da Penha’

e também alguma coisa dos direitos de proteção à criança e do adolescente. Acho que a mãe

do garoto morto, como delegada, deve ter decorado essas leis, será possível que a delegada

não pensou em proteger ela, o filho e o próprio marido dele mesmo?”, os referentes

‘faxineira’ e ‘delegada’ sugerem uma comparação entre a profissão da mãe do produtor da

carta (faxineira) e a profissão da mãe que teve o filho assassinado (delegada). A referida

comparação, conforme descrito anteriormente, confere a ironia e reforça a responsabilidade

da mãe pelo assassinato do filho.

Na frase “mas acho que ninguém melhor do que uma delegada pra saber que lei no

nosso país serve apenas de enfeite, talvez por isso nunca tenha tomado uma iniciativa”, a

expressão ‘lei’ é recategorizada pela expressão ‘enfeite’, contribuindo para compor um

ponto de vista; ao mesmo tempo que a expressão ‘isso’ encapsula a frase “mas acho que

ninguém melhor do que uma delegada pra saber que lei no nosso país serve apenas de

enfeite”, justificando a atitude da mãe diante do fato: “talvez por isso nunca tenho tomado

uma iniciativa.”

Nos referentes usados para situar a mãe, o pai, e o próprio produtor da carta,

identificamos o que Koch (1997) denomina como zona de intersecção, ou seja, a forma

como é feita a remissão. De acordo com a referida autora, a escolha dos elementos

linguísticos usados para fazer a remissão constitui índice de grande valor para identificar

atitudes, crenças e convicções, e valida o que Mondada e Dubois (2003, p. 25) afirmam, ou

seja, que

Page 84: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

82

A variação e a concorrência categorial emergem notadamente quando uma

cena é vista de diferentes perspectivas, que implicam diferentes categorizações da situação, dos atores e dos fatos. A “mesma” cena pode,

mais geralmente, ser tematizada diferentemente e pode evoluir – no tempo

discursivo narrativo – focalizando diferentes partes e aspectos.

E conforme podemos identificar nos referentes apresentados na carta do leitor 1, os

efeitos de sentido aferidos são nítidos e “servem para tematizar uma entidade, para sublinhar

a saliência de aspecto específico ou de uma propriedade de um objeto, para atrair a atenção

de entidade particular [...]” (MONDADA; DUBOIS 2003, p. 25).

Em suma, considerando a descrição e a análise dos referentes usados no texto na

carta do leitor 1, concluímos que as estratégias de referenciação usadas pelo produtor da

carta contribuíram para apresentar o ponto de vista e ao mesmo tempo compor os

argumentos da referida produção.

4.2 Carta do leitor 2

Quadro 35 – Carta do leitor 2

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Prezado Thiago Bronzatto!

A entrevista sobre o pai que matou o filho de vinte anos me deixou muito triste e ao

mesmo tempo perplexa. A mãe do jovem assassinado disse que o pai matou o filho por causa de

um amor doentio que o seu Alexandre sentia pelo Guilherme. Isso que a dona Rosália contou é a

tragédia de Édipo às avessas, porque na história de verdade o filho era apaixonado pela mãe. No

caso da família da delegada Rosália, o pai era apaixonado pelo filho, e ele tinha um amor tão

incontrolável pelo filho que nem trabalhar trabalhava, acho que para ter mais tempo para controlar

o rapaz. Infelizmente, como na história de Édipo, o assassinato aconteceu, só que desta vez o pai

matou o filho. Finalizo dizendo que essa não é mais uma tragédia grega, essa é mais uma tragédia

brasileira.

Camila, 13 anos, nono ano.

A frase “A entrevista sobre o pai que matou o filho de vinte anos” apresenta o

assunto sobre o qual o texto é desenvolvido, introduzindo as expressões A entrevista e o pai

que matou o filho de vinte anos.

A expressão ‘a mãe do jovem assassinado’ identifica o entrevistado ao mesmo tempo

que situa a mãe na produção.

Page 85: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

83

Na frase “A mãe do jovem assassinado disse que o pai matou o filho por causa de um

amor doentio que o seu Alexandre sentia pelo Guilherme” a expressão ‘a mãe do jovem

assassinado’ identifica a mãe como autora da informação contida na referida frase; e a

expressão ‘o pai que matou o filho’ também identifica o pai como autor do assassinato do

filho.

Os substantivos próprios ‘seu Alexandre” e “Guilherme” identificam os nomes de pai

e filho; a expressão ‘seu’, que sugere a forma de tratamento a uma pessoa mais velha, sendo

acompanhada pelo substantivo “Alexandre”, permite inferir que esse é o nome do pai,

enquanto o substantivo ‘Guilherme’ não vem acompanhada por nenhuma expressão de

tratamento, aspecto que evidencia as diferenças entre o tratamento dado a uma pessoa mais

velha e o tratamento dado a uma pessoa mais nova. Tal recurso permite que o leitor conclua

que Alexandre é o nome do pai e Guilherme o nome do filho. O mesmo acontece com a

expressão ‘dona Rosália’ contida na frase “Isso que a dona Rosália contou é a tragédia de

Édipo às avessas, porque na história de verdade o filho era apaixonado pela mãe” identifica

o nome da mãe, ‘Rosália’, e evidencia tratar-se de uma pessoa mais velha por causa da

expressão ‘dona’.

Na mesma frase em que aparece a expressão ‘dona Rosália’ surge a expressão ‘isso’,

que sumariza por encapsulamento a informação de que “o pai matou o filho por causa de um

amor doentio que o seu Alexandre sentia pelo Guilherme”. Por sua vez, a expressão

‘tragédia de Édipo às avessas’ confere um rótulo para a mesma informação sumarizada por

encapsulamento por meio da expressão ‘isso’.

Esses referentes constituem elementos que contribuem para compor um argumento.

O uso do referido rótulo evidencia que a produtora da carta recorreu ao seu conhecimento

enciclopédico para constituir o referente, estabelecendo uma comparação entre a relação

parentesca dos envolvidos nos dois episódios (tragédia grega e assassinato em família). As

frases “o filho era apaixonado pela mãe” e “o pai era apaixonado pelo filho” evidenciam a

comparação, explicitando a relação dos referentes filho versus mãe e pai versus filho.

Na frase “ele tinha um amor tão incontrolável pelo filho que nem trabalhar

trabalhava, acho que para ter mais tempo para controlar o rapaz”, a expressão ‘ele’ retoma a

expressão ‘o pai’; já a expressão ‘amor doentio’ verbalizada pela mãe no início da carta é

recategorizada pela expressão ‘amor tão incontrolável’. A expressão ‘filho’ é retomada pela

expressão ‘rapaz’ para identificar o referido participante no texto.

Page 86: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

84

Na frase “Infelizmente, como na história de Édipo, o assassinato aconteceu, só que

desta vez o pai matou o filho. Finalizo dizendo que essa não é mais uma tragédia grega,

essa é mais uma tragédia brasileira” a expressão ‘história de Édipo’ ancora a expressão ‘o

assassinato’, evidenciando a ocorrência do crime e identificando os envolvidos, ou seja,

‘pai’ e ‘filho’. Assim, como evidenciam Koch e Elias:

Casos de introdução de referentes de forma ancorada constituem anáforas

indiretas, uma vez que não existe no cotexto um antecedente explícito,

mas, sim, um elemento de relação que se pode denominar de âncora (Schwarz, 2000) é que é decisivo para interpretação (KOCH; ELIAS, 2009,

p. 135)

A expressão ‘essa’ sumariza por encapsulamento a frase “o assassinato aconteceu, só

que desta vez o pai matou o filho” ao mesmo tempo que claramente expressa uma opinião,

recategorizando a expressão ‘isso’ com a rotulação por sumarização contida na expressão

“uma tragédia brasileira”.

Considerando a descrição e a análise dos efeitos de sentidos dos referentes contidos

na carta do leitor 2, verificamos que predominam nela as anáforas indiretas constituídas por

referentes âncoras. Portanto, a argumentação é construída por meio de anáforas

encapsuladoras e por rotulação, de modo que tal constatação corrobora o que Santos e

Cavalcante (2014, p. 227) afirmam sobre a referida estratégia de referenciação, ou seja:

“como nas [anáforas] indiretas, as encapsuladoras são inferenciais e, ainda ancoradas em

informações dadas, introduzem um novo referente, que sintetiza porções do texto; com AD

[anáforas diretas], porém, parece haver certo grau de correferencialidade entre a porção do

texto sintetizada e o encapsulador”.

Page 87: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

85

4.3 Carta do leitor 3

Quadro 36 – Carta do leitor 3

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Ao Repórter Thiago Bronzzatto!

Se a moda pega, não vamos existir mais. Se toda vez que um pai ou uma mãe decidir matar

o filho por causa de desobediência, não vai demorar muito para que a gente não exista. Os

conflitos entre pais e filhos existem desde que o mundo é mundo, mas graças a Deus a maior parte

deles não acaba em morte. Um exemplo de intolerância é o caso do pai Alexandre que matou o

filho, e tudo porque o moço estava buscando ser participativo na política. Veja, Thiago! Minha

mãe vive reclamando porque eu fico com a cara enfiada no videogame, e que não me interesso por

nada que está acontecendo em volta de casa, no bairro, no mundo e na política. Já pensou se por

causa disso ela resolve fazer igual esse pai lunático e resolve dar um fim em mim? Não quero nem

pensar! O fato é que o moço perdeu a vida, a mãe perdeu o filho, e eu também fiquei cabreiro! Vou

procurar me interessar por alguma coisa, de preferência alguma coisa pela qual a minha mãe

simpatize. Pelo sim, pelo não, não quero contrariar! Era só o que eu tinha pra dizer.

Anderson, 14 anos, nono ano.

A carta é iniciada com a expressão ‘moda’ que, por sua vez, está ancorada na

seguinte informação “toda vez que um pai ou uma mãe decidir matar o filho por causa de

desobediência”. A expressão ‘moda’, por sua função de síntese, também constitui uma

sumarização por rotulação.

A expressão ‘a maior parte deles’ retoma a expressão ‘os conflitos’ e identifica o

tema da produção. A expressão ‘um exemplo de intolerância’ sumariza por rotulação a frase

“é o caso do pai Alexandre que matou o filho, e tudo porque o moço estava buscando ser

participativo na política”. As expressões ‘caso do pai Alexandre’, ‘filho’, ‘o moço’

apresentam os participantes e identifica o tipo de relação parentesca entre eles.

A frase “Veja, Thiago! Minha mãe vive reclamando porque eu fico com a cara

enfiada no videogame, e que não me interesso por nada que está acontecendo em volta de

casa, no bairro, no mundo e na política.” é um exemplar de desfocalização, ou seja, o

produtor se afasta do tema que norteia sua produção, para acrescentar uma nova informação,

logo em seguida ele faz a retomada do assunto inicial estabelecendo uma relação entre a

nova informação e as informações passadas com a frase “Já pensou se por causa disso ela

resolve fazer igual esse pai lunático e resolve dar um fim em mim?”

Page 88: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

86

O substantivo próprio utilizado para identificar e ao mesmo tempo chamar, sugerir a

aproximação com o interlocutor da carta é identificado pela expressão ‘Thiago’ na frase

“Veja, Thiago!” . A expressão ‘minha mãe’ é retomada pela expressão ‘ela’ que identifica a

participação da mãe do produtor na carta. A expressão ‘disso’ sumariza por encapsulamento

o comportamento do produtor “eu fico com a cara enfiada no videogame, e que não me

interesso por nada que está acontecendo em volta de casa, no bairro, no mundo e na

política.” Ajuda a constituir um argumento usando a expressão ‘igual’ para sugerir que sua

mãe pode ter atitude semelhante a do ‘pai lunático”, expressão que recategoriza o termo ‘pai

Alexandre’ expressando a opinião do produtor sobre o autor do crime.

Na frase “O fato é que o moço perdeu a vida, a mãe perdeu o filho, e eu também

fiquei cabreiro! Vou procurar me interessar por alguma coisa, de preferência alguma coisa

pela qual a minha mãe simpatize. Pelo sim, pelo não, não quero contrariar! Era só o que eu

tinha pra dizer.” as expressões ‘o moço’, ‘a mãe’ e ‘eu’ identifica a participação de cada um

dos envolvidos na produção, e a expressão ‘cabreiro’ recategoriza o produtor da carta, que se

mostra desconfiado depois de ter conhecimento dos supostos motivos que levaram o pai

assassinar o filho, tal desconfiança é evidenciada quando o produtor expressa uma mudança

de comportamento procurando mostrar interesse em ‘alguma coisa’, reiterando a expressão

‘alguma coisa’ e ao mesmo tempo qualificando o seu possível objeto de interesse ‘alguma

coisa pela qual a minha mãe simpatize’, esses referentes ajudam a compor o argumento do

produtor e evidenciam o que diz Marcuschi sobre a referenciação:

[...] a maneira como dizemos ao outros as coisa é muito mais uma

decorrência de nossa atuação discursiva sobre o mundo e de nossa inserção sociocognitiva no mundo, pelo uso de nossa imaginação em atividade de

integração conceitual, do que simples frutos de procedimentos formais de

categorização linguística. O mundo comunicado é sempre fruto de um agir comunicativo, e não de uma identificação de realidades discretas e

formalmente determinadas (MARCUSCHI, 2001, p.25)

Em suma, os referentes, apresentados na carta do leitor 03, contribuíram para

conferir efeitos de sentidos à produção escrita contribuindo para que o leitor compreenda os

argumentos construídos pelo produtor.

Page 89: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

87

4.4 Carta do leitor 4

Quadro 37 – Carta do leitor 4

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Caro Thiago Bronzzatto!

Que entrevista chocante! O que mais me chamou a atenção foi a mãe, depois de tudo o que

o pai fez, ainda tentar justificar a atitude dele, dizendo que o marido não deixava o filho ir aos

protestos com medo [de] que a polícia prendesse o garoto. Tá na cara que isso era só desculpa do

pai para manter o controle do filho. Esse pai era um maníaco obsessivo: não se importava com

nada e ninguém, a única coisa que importava era controlar o filho dia e noite a qualquer custo.

Quando percebeu que não era mais possível controlar a vida do adolescente, não deixou por

menos, apertou o último botão do controle da vida do próprio filho, pegou um revólver e atirou,

matou o filho de dona Rosália. E dona Rosália? A pobre delegada aposentada acreditava em toda

representação do chantagista que tinha a cara de pau de se ajoelhar aos pés do filho e dizer que na

vida só restava ele e a mãezinha que já estava velhinha. Agora a perguntas [são]: e ela, a esposa,

que aguentava todas os “pitis” desse insensível, não merecia ser amada? Não merecia ter o filho

vivo? Não merecia ter um marido que fosse um companheiro da vida e não um covarde egoísta?

Enfim, é só um ponto de vista, na verdade nem espero que a dona Rosália leia nunca esta carta,

acho que ela tem sofrido demais, e não precisa saber o que uma adolescente presunçosa, que não

sabe do terço uma bola, como diz minha vó, pensa saber da história de vida dela. Sem mais,

Daniela, 14 anos, nono ano

A expressão “entrevista chocante’ identifica e qualifica o assunto abordado na carta.

A frase “O que mais me chamou a atenção foi a mãe, depois de tudo o que o pai fez, ainda

tentar justificar a atitude dele, dizendo que o marido não deixava o filho ir aos protestos com

medo [de] que a polícia prendesse o garoto.” A expressão ‘a mãe’ identifica o entrevistado,

ou seja, a mãe e também evidencia participação da entrevistada nos fatos. As expressões ‘o

pai’, ‘dele’, e ‘o marido’ introduz o pai e ainda identifica a condição o grau parentesco em

relação a entrevistada. A expressão ‘o filho’ introduz o participante no texto e é retomada

pela expressão ‘garoto’ que permite inferir que o participante é bem jovem ou mesmo ainda

uma criança. Nessa frase é introduzido o referente ‘atitude’ que sumariza por rotulação a

frase “o marido não deixava o filho ir aos protestos com medo [de] que a polícia prendesse o

garoto.”

Page 90: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

88

Na frase “Tá na cara que isso era só desculpa do pai para manter o controle do filho.

Esse pai era um maníaco obsessivo: não se importava com nada e ninguém, a única coisa

que importava era controlar o filho dia e noite a qualquer custo”, observamos que a

expressão ‘isso’ sumariza por encapsulamento a frase descrita no parágrafo anterior “o

marido não deixava o filho ir aos protestos com medo [de] que a polícia prendesse o garoto”.

A expressão encapsuladora ‘isso’, por sua vez, é recategorizada pela expressão ‘desculpa’,

compondo um encapsulamento por rotulação. A expressão ‘pai’ é retomada pela expressão

‘maníaco obsessivo’, constituindo uma recategorização que expressa um juízo de valor do

produtor do texto em relação à personalidade do pai. A expressão ‘a única coisa’ constitui

uma catáfora da frase “era controlar o filho dia e noite a qualquer custo”

A frase “Quando percebeu que não era mais possível controlar a vida do adolescente,

não deixou por menos, apertou o último botão do controle da vida do próprio filho, pegou

um revólver e atirou, matou o filho de dona Rosália” apresenta a expressão ‘a vida do

adolescente’, que revela a faixa etária do participante do texto. Já a frase ‘pegou um revólver

e atirou” ancora a expressão “o último botão do controle da vida”, contribuindo para

descrever que o pai matou o filho. A frase “apertou o último botão do controle da vida do

próprio filho, pegou um revólver e atirou, matou o filho de dona Rosália” também

estabelece a coesão textual quando identifica a que se refere a expressão ‘tudo’ contida na

frase ‘depois de tudo que aconteceu’. A expressão ‘o filho de dona Rosália’ oferece ao

adolescente o status de filho de alguém; na carta em questão, filho de dona Rosália. Esse

último aspecto evidencia que a produtora do texto desenvolve os argumentos mostrando-se a

favor da única sobrevivente do crime, aspecto que não ocorreu na carta do leitor 1, que

buscou evidenciar a responsabilidade da mãe pelo crime.

Na frase “E dona Rosália? A pobre delegada aposentada acreditava em toda

representação do chantagista que tinha a cara de pau de se ajoelhar aos pés do filho e dizer

que na vida só restava ele e a mãezinha que já estava velhinha” o substantivo próprio

‘Rosália’ confere o status de pessoa à participante do texto, como ocorre na carta do leitor 1,

em que o substantivo próprio é acompanhado da expressão ‘dona’, que permite inferir que a

participante do texto tem idade madura. A expressão “A pobre delegada aposentada” sugere

o papel de vítima da participante no desenrolar dos fatos. A expressão “chantagista” traduz o

comportamento do pai em relação ao filho e está ancorada na frase “ajoelhar aos pés do filho

e dizer que na vida só restava ele e a mãezinha que já estava velhinha”. Nessa frase há um

aspecto que confere ambiguidade à informação contida no texto: podemos inferir que o pai,

Page 91: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

89

ao falar da ‘mãezinha velhinha’, fala da esposa, que já é uma senhora, ou fala de sua mãe,

avó do seu filho.

Koch (1997, p. 56) define a ambiguidade referencial como uma zona de intersecção,

e explica que “quando surgem vários candidatos a possíveis referentes de uma forma

remissiva, torna-se necessário proceder a um cálculo para identificação do referente

adequado”. Na frase em questão, a expressão ‘filho’ constitui uma catáfora quando retomada

pela expressão ‘ele’.

Na frase “Agora as perguntas [são]: e ela, a esposa, que aguentava todos os ‘pitis’

desse insensível, não merecia ser amada? Não merecia ter o filho vivo? Não merecia ter um

marido que fosse um companheiro da vida e não um covarde egoísta?” identificamos a

expressão ‘as perguntas’ constituindo uma catáfora por meio da frase “e ela, a esposa, que

aguentava todas os ‘pitis’ desse insensível, não merecia ser amada? Não merecia ter o filho

vivo? Não merecia ter um marido que fosse um companheiro da vida e não um covarde

egoísta?”. As expressões ‘ela’ e ‘a esposa’ retomam a expressão ‘dona Rosália’, e a

expressão ‘esposa’ coloca em evidência o papel da participante dentro do núcleo familiar.

As expressões ‘insensível’, ‘um marido’, ‘ um companheiro da vida’ e ‘covarde egoísta’ são

referentes que sugerem a opinião da produtora em relação ao marido da participante, e esse

aspecto fica evidente quando ela, depois de apresentar o referente ‘insensível’, expõe as

expressões ‘um marido’ e ‘um companheiro da vida’ para se referir a um determinado ideal

de cônjuge, finalizando com a expressão ‘covarde egoísta’, sugerindo que o participante do

texto é o oposto do ideal de marido. A expressão ‘filho vivo’ faz referência à condição do

filho, que está morto.

Na frase “Enfim, é só um ponto de vista, na verdade nem espero que a dona Rosália

leia nunca esta carta, acho que ela tem sofrido demais, e não precisa saber o que uma

adolescente presunçosa, que não sabe do terço uma bola, como diz minha vó, pensa saber da

história de vida dela” a expressão ‘uma adolescente presunçosa’ apresenta a autodescrição

da produtora do texto. As expressões ‘dela’ e ‘ela’ são expressões que retomam o termo

‘dona Rosália’ e que evidenciam a empatia da produtora por Rosália.

Na carta do leitor 4, e nas demais cartas do leitor anteriores (1, 2 e 3), para traçar um

perfil e ao mesmo tempo um ponto de vista sobre a personalidades dos envolvidos no

conteúdo da entrevista, e criar e articular referentes que traduzam os efeitos de sentidos

almejados pelos produtores, os autores tiveram de fazer o processamento textual ao abrir

Page 92: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

90

mão de seus respectivos conhecimentos comunicacionais, levando em conta a perspectiva

ilocucional que caracteriza o referido conhecimento.

O conhecimento ilocucional favorece o reconhecimento dos objetivos ou das

intenções que um falante, em determinada situação de interação, deseja atingir. Trata-se, nas

palavras de Koch (1996, p. 36) “de conhecimentos sobre tipos de objetivos (ou tipos de ato

de fala), que costumam ser verbalizados por meio de enunciações características, embora

seja também frequente a sua realização por vias indiretas”; e que o conhecimento

ilocucional por via indireta “exige dos interlocutores o conhecimento necessário para

captação do objetivo ilocucional”, ou seja, os produtores das quatro cartas dependem do

conhecimento ilocucional dos leitores das referidas cartas para que seus objetivos de

interação possam ser efetivados.

4.5 Carta do leitor 5

Quadro 38 – Carta do leitor 5

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Prezado Thiago Bronzatto!

O caso do pai que matou o filho e depois se matou não deve ser uma regra. A regra é que

os filhos enterrem os pais, por morte de causas naturais. Os pais devem dar a vida aos filhos,

protegê-los até quando for necessário e depois deixarem que sigam seus caminhos na fase adulta.

Infelizmente, não foi isso o que o senhor Alexandre, pai de Guilherme, fez. Ele quebrou três

regras: a primeira quando fez de tudo para não deixar seu filho escolher e seguir seu próprio

caminho; a segunda quando matou o jovem revolucionário; e a terceira quando se matou. Insisto

que isso não deve ser uma regra, a regra é que nos amemos a ponto de conseguirmos sobreviver

um pouquinho mais nesta terra. Sinto muito pela morte do moço!

Gabriel, 15 anos, nono ano.

A carta é iniciada com a frase “O caso do pai que matou o filho e depois se matou

não deve ser uma regra”, identificando qual será o assunto do texto e concomitantemente

expressando uma opinião. A expressão ‘regra’ apresentada no início do texto é reiterada

mais quatro vezes ao longo do texto.

A frase “A regra é que os filhos enterrem os pais, por morte de causas naturais”

apresenta a segunda vez que o termo ‘regra’ é reiterado para explicitar o que o produtor tem

como ideal de “regra”. Na frase “ele quebrou três regras”, a expressão ‘três regras’ refere-se

à atitude do pai e é retomada pelos números ordinais ‘a primeira’, ‘a segunda’ e ‘a terceira’;

Page 93: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

91

os quais, por sua vez, enumeram as atitudes do pai: “Ele quebrou três regras: a primeira

quando fez de tudo para não deixar seu filho escolher e seguir seu próprio caminho; a

segunda quando matou o jovem revolucionário; e a terceira quando se matou”.

A expressão ‘seu filho’ é retomada pela expressão ‘jovem revolucionário’, que

identifica uma característica da personalidade do participante do texto. A terceira e quarta

vez que o termo ‘regra’ é mencionado na carta inferem a não aprovação da atitude do pai, e

também o ideal de regra para o produtor, conforme indica a frase: “Insisto que isso não deve

ser uma regra, a regra é que nos amemos a ponto de conseguirmos sobreviver um pouquinho

mais nesta terra”.

A expressão ‘isso’ sumariza por encapsulamento a frase “a primeira quando fez de

tudo para não deixar seu filho escolher e seguir seu próprio caminho; a segunda quando

matou o jovem revolucionário; e a terceira quando se matou”. A expressão ‘seu filho’ é

retomada pela expressão ‘jovem revolucionário’, que identifica um juízo de valor sobre a

personalidade do participante do texto.

Diferentemente das quatro cartas anteriores, a carta do leitor 5 não expressa juízo de

valor sobre a personalidade do pai que matou o filho e também não apresenta qualquer

informação sobre a mãe. As reiterações expressas a partir do termo ‘regra’ explicitam apenas

a desaprovação do produtor em face das atitudes do pai.

O cálculo elaborado pelo produtor da carta do leitor 4 evidencia a importância da

seleção lexical; e conforme explica Koch (1997), a seleção dos campos lexicais e a seleção

lexical de modo geral é uma zona de intersecção que estabelece “o uso de fórmulas de

endereçamento de dada variante da língua, de gírias ou jargões profissionais, de determinado

tipo de adjetivação, de termos diminutivos ou pejorativos fornece aos parceiros pistas

valiosas” (KOCH, 1997, p. 55-56).

A expressão ‘regra’, retomada cinco vezes na carta do leitor 5, identifica a relevância

do termo para constituir a opinião e argumento do texto.

Page 94: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

92

4.6 Carta do leitor 6

Quadro 39 – Carta do leitor 6

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Saudações, Thiago Bronzatto!

Gostei muito da maneira como publicou a entrevista do pai que assassinou o filho.

Entrevistar a mãe fez com que a gente se emocionasse, mesmo sendo uma entrevista escrita.

Normalmente, a gente lê apenas os repórteres relatando os fatos eles mesmos, sem ouvir o que as

vítimas ou familiares próximos têm a dizer, o que deixa um caso tão triste e emotivo como esse ser

[apenas] mais um entre tantos. Aproveito para parabenizar pelo jeito como falou com a dona

Rosália, as perguntas foram bem difíceis de responder para uma mãe e esposa que acabou de saber

da morte do filho e do marido, mas você conseguiu ganhar a confiança a ponto dela responder e

querer te mostrar o quarto do filho que tinha acabado de partir. Mais uma coisa: a foto que

escolheu para ilustrar a entrevista: até nisso você acertou, colocou a dona Rosália e o filho

Guilherme, provavelmente, num momento bom, não colocou aquelas imagens horríveis da

cobertura do crime. Quero ser repórter, e espero ter esse mesmo cuidado com os entrevistados e

com o público. Parabéns!

Solange, 15 anos, nono ano.

A expressão ambígua ‘a entrevista do pai’ contida na primeira frase da carta do leitor

6 permite ao leitor interpretar o pai como sendo o entrevistado, mas a frase seguinte desfaz

essa ideia: “Entrevistar a mãe fez com que a gente se emocionasse, mesmo sendo uma

entrevista escrita”. A expressão ‘mãe’ identifica o verdadeiro entrevistado. A expressão

‘uma entrevista escrita’ identifica o caráter impresso da referida publicação, e as duas

expressões (‘mãe’ e ‘uma entrevista escrita’) ancoram a seguinte informação:

“Normalmente, a gente lê apenas os repórteres relatando os fatos eles mesmos, sem ouvir o

que as vítimas ou familiares próximos têm a dizer, o que deixa um caso tão triste e emotivo

como esse ser [apenas] mais um entre tantos”.

Essa mesma frase apresenta a expressão ‘os repórteres’, e é retomada pela expressão

‘eles mesmos’, as expressões ‘as vítimas’ e ‘familiares próximos’ estão ancoradas na frase

inicial do texto ‘pai que assassinou o filho’. Na mesma frase, identificamos as expressões

‘um caso tão triste e emotivo’ sendo retomada pela expressão ‘um entre tantos’. Os

referentes selecionados para compor o texto explicitam a admiração da produtora do texto

em relação ao trabalho do repórter.

Page 95: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

93

A expressão jeito contida na frase “aproveito para parabenizar pelo jeito como falou

com dona Rosália” é ancorada pela frase “você conseguiu ganhar a confiança a ponto dela

responder e querer te mostrar o quarto do filho que tinha acabado de partir”. A expressão

‘dona Rosália’ constitui um referente catafórico que retoma o termo ‘mãe’.

Na frase “as perguntas foram bem difíceis de responder para uma mãe e esposa que

acabou de saber da morte do filho e do marido, mas você conseguiu ganhar a confiança a

ponto dela responder e querer te mostrar o quarto do filho que tinha acabado de partir” a

expressão ‘as perguntas’ é ancorada pela expressão ‘entrevista escrita’. As expressões ‘uma

mãe e esposa’ e ‘morte do filho e do marido’ confere à relação o caráter de parentesco e

colabora para que o leitor compreenda o assunto da entrevista. A expressão ‘você’ dirigida

ao repórter confere um grau de proximidade do leitor com o destinatário da carta. A

expressão ‘dela’ retoma a expressão ‘mãe e esposa’. O referente ‘o quarto do filho’

identifica o local onde foi realizada a entrevista, além de evidenciar a importância do local

no desenvolvimento da entrevista.

O termo ‘uma coisa’ contido na frase “Mais uma coisa: a foto que escolheu para

ilustrar a entrevista: até nisso você acertou, colocou a dona Rosália e o filho Guilherme,

provavelmente, num momento bom, não colocou aquelas imagens horríveis da cobertura do

crime” apresenta um conjunto de informações: a expressão ‘nisso’ retoma a expressão ‘a

foto que escolheu para ilustrar a entrevista’; e as expressões ‘dona Rosália’ e ‘o filho

Guilherme’ identificam quem aparece na referida foto. A expressão ‘aquelas imagens

horríveis da cobertura do crime’ está ancorada na expressão ‘foto’.

Na frase “Quero ser repórter, e espero ter esse mesmo cuidado com os entrevistados e

com o público” a expressão ‘esse mesmo cuidado’ é ancorada em todas as ações do repórter

identificadas pela produtora do texto.

A carta do leitor 6 difere das cartas anteriores (1, 2, 3, 4 e 5) ao abordar a perspectiva

da análise da elaboração da entrevista: enquanto o conteúdo das demais cartas evidencia os

fatos e os envolvidos no tema da entrevista, a produção 6 focaliza a própria produção, ou

seja, os aspectos de produção da entrevista.

Em suma, considerando os aspectos da referida descrição, é possível identificar que

as expressões ancoradas são predominantes na produção. Segundo Koch e Elias (2009, p.

135), “o escritor produz uma introdução (ativação) ancorada sempre que um novo objeto de

discurso é introduzido no texto, com base em algum tipo de associação com elementos já

presentes no cotexto ou no contexto sociocognitivo dos interlocutores”.

Page 96: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

94

4.7 Carta do leitor 7

Quadro 40 – Carta do leitor 7

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Caro Thiago!

O assassinato do jovem Guilherme é mais uma prova de que o mundo está de cabeça para

baixo. O pai matou o filho porque não queria que o filho fosse preso pela polícia. Isso não é um

indício de que está tudo “fora da ordem”, como diria Caetano Veloso? A prova de amor que

Alexandre dá ao filho é a morte, porque para o pai dói menos ver o filho morto do que vê-lo preso,

e tudo porque o rapaz quis fazer algo que o pai não era capaz, deixar de ser egoísta. O medo do pai

era que o rapaz fosse preso por participar de protestos contra o governo, então por isso Alexandre,

o pai, matou Guilherme, o filho. Acho, Thiago, que precisamos rever nossa “ordem”. Sem mais.

Alice, 15 anos, nono ano.

A expressão ‘isso’ contida na frase “Isso não é um indício de que está tudo ‘fora da

ordem’, como diria Caetano Veloso?” sumariza por encapsulamento a frase “O pai matou o

filho porque não queria que o filho fosse preso pela polícia”. A produtora do texto faz uso do

conhecimento enciclopédico para evidenciar sua opinião usando a expressão ‘fora da

ordem’, e sugere que sua opinião tem algum tipo de relação com a música de Caetano

Veloso.

A expressão ‘fora da ordem’ expressa uma opinião que está fundamentada e

ancorada na frase “A prova de amor que Alexandre dá ao filho é a morte, porque para o pai

dói menos ver o filho morto do que vê-lo preso, e tudo porque o rapaz quis fazer algo que o

pai não era capaz, deixar de ser egoísta”. Nessa mesma frase identificamos a expressão ‘a

prova de amor’ recategorizada pela expressão ‘morte’.

Na carta 7, há outros elementos que funcionam como referentes e colaboram com a

coesão e coerência do texto, mas os elementos descritos anteriormente conferem à produção

maior e profundo efeitos de sentido e estão em conformidade com o que afirma Marcuschi

(2007, p. 69), ou seja, que

[…] a referenciação é uma atividade criativa e não um simples ato de designação. Considerando que a língua em si mesma não providencia a

determinação semântica para as palavras e as palavras isoladas também não

nos dão sua dimensão semântica, somente uma rede lexical situada num

sistema sociointerativo permite a produção de sentidos.

Page 97: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

95

Em suma, as estratégias de referenciação contidas na carta do leitor 7 evidenciam o

conhecimento enciclopédico e também o conhecimento comunicacional do produtor.

4.8 Carta do leitor 8

Quadro 41 – Carta do leitor 8

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Olá, Thiago!

Começo minha carta com estes dois dizeres: o primeiro [é que] “Deus amou o mundo de

tal maneira que deu seu filho único para salvá-lo”; e o segundo [é] “Alexandre amou seu único

filho de tal maneira que o matou para talvez protegê-lo do mundo”. Esses dois homens

sacrificaram seus filhos em nome de um amor: o primeiro desejava salvar a humanidade; o

segundo ainda não sabemos. Não dá pra saber quem Alexandre queria salvar[:] se ele próprio de

uma vida muito triste, se o filho de um mundo cada vez mais desesperador, ou se os dois, ele e o

filho. A verdade é que ele consumou o ato, matou o filho e a si mesmo e não cabe a nós julgar.

Sinto muito pela dor de dona Rosália, e pelo filho Guilherme, que não escolheu entre ir e ficar.

Termino por aqui.

Amanda, 14 anos, nono ano.

A carta do leitor 8 apresenta a frase “o primeiro [é que] “Deus amou o mundo de tal

maneira que deu seu filho único para salvá-lo”; e o segundo “[é] ‘Alexandre amou seu único

filho de tal maneira que o matou para talvez protegê-lo do mundo’” constituindo o referente

catafórico da expressão ‘dois dizeres’.

O conhecimento enciclopédico está presente no conteúdo da catáfora, uma vez que

para compreender a relação de comparação entre ‘Deus’ , ‘filho único’; ‘Alexandre’ e ‘filho

único’ o leitor precisa ativar um determinado conhecimento bíblico. O conhecimento

ilocucional está presente no conteúdo, uma vez que, sugerindo tal comparação, também

erige uma ironia que problematiza a atitude do pai que matou o filho.

Para erigir a catáfora, o produtor fez uso dos numerais ordinais, e tal aspecto ocorre

novamente para apresentar a expressão ‘dois homens’ contida na frase “Esses dois homens

sacrificaram seus filhos em nome de um amor”, que por sua vez é retomado pelos numerais

ordinais ‘o primeiro’ (Deus) e ‘o segundo’ (Alexandre) contidos na frase “o primeiro

desejava salvar a humanidade; o segundo ainda não sabemos”.

Na frase “Não dá pra saber quem Alexandre queria salvar[:] se ele próprio de uma

vida muito triste, se o filho de um mundo cada vez mais desesperador, ou se os dois, ele e o

Page 98: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

96

filho” a expressão ‘quem’, além de ancorar o termo ‘Alexandre’, que é retomado pela

expressão ‘ele próprio’, também ancora a expressão ‘o filho’ e a expressão ‘os dois’, que

constitui uma catáfora para a expressão ‘ele e o filho’.

Considerando o modo como esses referentes foram organizados no conteúdo da

frase, é possível afirmar que tanto eles servem para constituir o efeito de sentido como para

evitar a ambiguidade referencial. Segundo Koch (1997, p. 56), “para constituir elementos

que possam evitar a ambiguidade referencial é “preciso recorrer ao nosso conhecimento de

mundo e do contexto sociocultural em que nos encontramos inseridos, além de outros

critérios como saliência temática e recência (recency), por exemplo”.

Na frase “Sinto muito pela dor de dona Rosália, e pelo filho Guilherme, que não

escolheu entre ir e ficar” os termos ‘dona Rosália’ inclui a participante no texto, constituindo

um referente não ancorado; já a expressão ‘Alexandre’ identifica o nome do filho que foi

assassinado pelo pai.

Chamamos a atenção para uma expressão comum em algumas cartas que analisamos:

o substantivo ‘Rosália’ quase sempre vem acompanhado do termo ‘dona’, conferindo uma

certa solenidade do produtor do texto em relação à participante.

Considerando a descrição dos referentes da carta do leitor 8, concluímos que os

referentes contidos no texto conferem efeitos de sentido ao texto que colaboram com a

composição dos argumentos.

Page 99: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

97

4.9 Carta do leitor 9

Quadro 42 – Carta do leitor 9

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Saudações, caro Thiago!

Precisamos prestar mais atenção às pessoas. Andamos tão ocupados, envolvidos em tantos

afazeres, que não prestamos atenção aos detalhes que montam o quebra-cabeça de um grande

desastre, Thiago! Pensando na entrevista que você fez sobre o caso do pai que matou o filho, a

dona Rosália, mãe do rapaz assassinado, deixou claro que o marido já estava fora de controle há

muito tempo: o seu Alexandre, pai do Guilherme, já tinha fracassado como profissional, porque

pelo que a dona Rosália disse ele não tinha trabalho, [e] já tinha fracassado como marido, porque

nas declarações de amor dele ao filho, a esposa não estava incluída, [e] já tinha fracassado como

filho, porque tinha o desejo de que o pai ainda que morto presenciasse o suicídio dele. A única

coisa que restava a ele era ser pai, e para acabar de completar naquele terrível dia da proclamação

da República, ele teve a certeza [de] que tinha fracassado nisso também. Imagino que isso tudo

para ele foi insuportável, [e] eis aí o quebra-cabeça do grande drama da vida da família da dona

Rosália. Uma pena que ele só foi montado depois que as últimas peças foram colocadas no

tabuleiro, ou seja, quando seu Alexandre veio a matar o filho. Sinto muito por tudo!

Melissa, 14 anos, nono ano.

Assim como carta do leitor 7, a carta do leitor 9 apresenta um conjunto de referentes

que contribuem para a progressão textual; todavia, para esta descrição e análise,

identificaremos os aspectos da referenciação que evidenciam o caráter argumentativo do

texto.

A expressão ‘quebra-cabeça de um grande desastre’ está ancorada num conjunto de

informações contidas no texto: “o seu Alexandre, pai do Guilherme, já tinha fracassado

como profissional, porque pelo que a dona Rosália disse ele não tinha trabalho, [e] já tinha

fracassado como marido, porque nas declarações de amor dele ao filho, a esposa não estava

incluída, [e] já tinha fracassado como filho, porque tinha o desejo de que o pai ainda que

morto presenciasse o suicídio dele. A única coisa que restava a ele era ser pai, e para acabar

de completar naquele terrível dia da proclamação da República, ele teve a certeza [de] que

tinha fracassado nisso também”. A expressão ‘terrível dia da proclamação da República’

identifica o dia e o mês da tragédia, e requer tanto do produtor quanto do leitor

conhecimento enciclopédico. A expressão ‘nisso’ encapsula a frase “A única coisa que

Page 100: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

98

restava a ele era ser pai”, retomando uma informação relevante para estabelecer o sentido da

argumentação.

Para compor a referenciação e estabelecer o sentido entre a expressão ‘quebra-cabeça

de um grande desastre’, a produtora do texto recorreu a uma série de informações contidas

na entrevista, e a partir da análise do referido grupo de informações compôs uma minuciosa

análise sobre as atitudes do pai que matou o filho. A expressão introduzida posteriormente

ao referido grupo de informações evidencia a importância do termo ‘quebra-cabeça’ para a

composição da argumentação: “eis aí o quebra-cabeça do grande drama da vida da família

da dona Rosália”.

A frase “Uma pena que ele só foi montado depois que as últimas peças foram

colocadas no tabuleiro, ou seja, quando seu Alexandre veio a matar o filho” além de ser

ancorada pelo conjunto de informações que constituíram a análise das atitudes do pai,

também está ancorada na frase que inicia a carta: “Precisamos prestar mais atenção às

pessoas. Andamos tão ocupados, envolvidos em tantos afazeres, que não prestamos atenção

aos detalhes que montam o quebra-cabeça de um grande desastre”. A relação entre a última

e a primeira frase da carta permite inferir que se os envolvidos tivessem prestado atenção

aos detalhes antecedentes ao acontecimento (crime), talvez ele pudesse ser evitado.

Identificamos na carta do leitor 9 a relevância da perícia de leitura da produtora para

a produção do texto: podemos inferir que a produtora teceu uma leitura minuciosa da

entrevista, buscando elementos que pudessem colaborar com a construção do argumento da

carta; balizada nessas informações, elaborou uma rica estratégia de referenciação.

Enfim, os aspectos destacados na carta do leitor 9 servem para exemplificar as

palavras de Marcuschi, segundo o qual “a referenciação é uma atividade criativa e não um

simples ato de designação” (MARCUSCHI, 2007, p. 69).

Page 101: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

99

4.10 Carta do leitor 10

Quadro 43 – Carta do leitor 10

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Olá, Thiago!

É uma pena que uma pessoa tão jovem tenha tido sua vida tirada. Guilherme, o jovem que

foi assassinado pelo próprio pai já não tinha muito sossego quando vivo, porque o pai parece que

não o deixava fazer nada. Onde já se viu não deixar um rapaz de vinte anos colocar uma camiseta

com um ídolo do rock? Esse rapaz teve todos os seus direitos negados, [e] o maior deles foi o

direito à vida. O responsável por isso não vai pagar porque tirou a sua própria vida, mas o caso de

Guilherme não deve ficar no esquecimento, deve ser memória para que busquemos meios de

termos os nossos direitos e os dos outros garantidos.

Laura, 13 anos, nono ano.

Na carta do leitor 10, a expressão ‘uma pessoa tão jovem’ é retomada pela expressão

‘sua’ na frase “É uma pena que uma pessoa tão jovem tenha tido sua vida tirada’. São

expressões catafóricas que introduzem o participante no texto e ao mesmo tempo apresentam

uma informação: “sua vida tirada”.

Na frase “Guilherme, o jovem que foi assassinado pelo próprio pai, já não tinha

muito sossego quando vivo, porque o pai parece que não o deixava fazer nada” a expressão

‘Guilherme’ identifica o referente das expressões catafóricas anteriores (uma pessoa tão

jovem, sua), e é retomada pela expressão ‘o jovem’ e ‘próprio’, que sugere a idade do

participante e revela que o pai é seu assassino. A expressão ‘pai’ insere um novo participante

no texto, e é reiterada no texto como o mesmo referente lexical (pai). A expressão ‘o’

retoma expressões anteriores (Guilherme, o jovem).

Na frase “Onde já se viu não deixar um rapaz de vinte anos colocar uma camiseta

com um ídolo do rock? Esse rapaz teve todos os seus direitos negados, [e] o maior deles foi

o direito à vida” a expressão ‘um rapaz de vinte anos’ retoma a expressão ‘Guilherme’ e

revela sua idade. Novamente o produtor busca manter os participantes no texto com as

expressões ‘Esse rapaz’ e ‘seus’, e introduz um novo referente na carta: ‘direitos’, que é

retomado pela expressão ‘o maior deles’, ao mesmo tempo que é ancorado pela expressão ‘o

direito à vida’. O conjunto de referentes contidos na referida frase contribuem para situar o

participante no texto e ao mesmo tempo colabora para compor a argumentação.

Page 102: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

100

Na frase “O responsável por isso não vai pagar porque tirou a sua própria vida, mas

o caso de Guilherme não deve ficar no esquecimento, deve ser memória para que

busquemos meios de termos os nossos direitos e os dos outros garantidos” as expressões

‘pai’, ‘sua’ e ‘próprio’ retomam a expressão ‘pai’, e por meio da expressão ‘sua própria

vida’ acrescenta mais uma informação ao texto. A expressão ‘isso’ sumariza e encapsula a

frase “Esse rapaz teve todos os seus direitos negados, [e] o maior deles foi o direito à vida”.

A palavra ‘memória’ recategoriza a expressão ‘o caso de Guilherme’. A expressão

‘direitos’ retoma as expressões ‘direitos’ e ‘o maior deles’ (contidas na frase anterior), e

contribui para concluir a argumentação.

Considerando o exposto, as estratégias de referenciação elaboradas na carta do leitor

10 identificam que a produção é constituída de progressão referencial. Tal processo, de

acordo com Koch e Elias (2009, p. 132), que “diz respeito a diversas formas de introdução,

no texto, de novas entidades ou referentes é chamado de referenciação. Quando tais

referentes são retomados mais adiante ou servem de base para introdução de mais referentes

[…]”.

Sendo assim, podemos concluir que o produtor da carta do leitor 10 usa a

referenciação em sua escrita de forma a estabelecer efeitos de sentidos que favorecem a

progressão do texto e também a sua compreensão.

Page 103: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

101

4.11 Carta do leitor 11

Quadro 44 – Carta do leitor 11

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Saudações, Thiago!

Há doenças que são invisíveis, mas não silenciosas, o problema é que apesar delas serem

barulhentas nem sempre conseguimos entender o que elas estão dizendo. O marido de dona

Rosália era doente, parecia normal, mas não era, e a doença dele gritava de várias formas, mas

ninguém conseguia entender de tão alto que ela gritava.

Thiago, a doença do seu Alexandre só foi descoberta quando ele matou o filho e a ele

mesmo, mas aí já não tinha mais o que fazer. Para dona Rosália, esposa e mãe, fica a dor, [a]

tristeza, e para nós o que fica? Cada um de nós tem uma opinião diferente, mas gostaria que disso

tudo ficasse um alerta: de que devemos cuidar do espírito e da mente para que a matéria não acabe

nos matando. Precisamos procurar por Deus!

Regiane, 14 anos, nono ano.

Na frase “Há doenças que são invisíveis, mas não silenciosas, o problema é que

apesar delas serem barulhentas nem sempre conseguimos entender o que elas estão

dizendo” a expressão ‘doenças’ ancora as expressões ‘invisíveis’, ‘silenciosas’ e

‘barulhentas’, ao mesmo tempo que é retomada pelas expressões ‘delas’ e ‘elas’. O conjunto

de referentes, além de introduzir o referente no texto, identifica suas características.

A frase “O marido de dona Rosália era doente, parecia normal, mas não era, e a

doença dele gritava de várias formas, mas ninguém conseguia entender de tão alto que ela

gritava” compõe a introdução de dois referentes ao mesmo tempo, apresentando a expressão

‘O marido de dona Rosália’; e a referida expressão (o marido) é também ancorada pelas

expressões doente, normal, e doença, de modo que a expressão ‘ela’ retoma o termo ‘a

doença’.

O termo ‘dele’ retoma a expressão ‘o marido de dona Rosália’. A expressão

‘ninguém’ é introduzida no texto, mas não possui expressões que a ancorem ao longo do

texto. Os referentes identificam os participantes e acrescentam informações sobre eles.

Na frase “Thiago, a doença do seu Alexandre só foi descoberta quando ele matou o

filho e a ele mesmo, mas aí já não tinha mais o que fazer” a expressão ‘Thiago’ é introduzida

no texto para inferir uma aproximação com o interlocutor da produção. O termo ‘doença’ é

retomado; a expressão ‘seu Alexandre’ identifica os referentes catafóricos (O marido, dele)

Page 104: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

102

expressos na frase anterior, e é seguido pela expressão ‘seu’, que confere um grau de

solenidade ao tratamento do referente; já ‘ele’ e ‘ele mesmo’ retomam a expressão

‘Alexandre’. A expressão ‘o filho’ introduz um novo referente.

Na frase “Para dona Rosália, esposa e mãe, fica a dor, [a] tristeza, e para nós o que

fica? Cada um de nós tem uma opinião diferente, mas gostaria que disso tudo ficasse um

alerta: de que devemos cuidar do espírito e da mente para que a matéria não acabe nos

matando. Precisamos procurar por Deus!” a expressão ‘dona Rosália’, além de ser retomada,

é recategorizada com a expressão ‘esposa e mãe’, e inferem empatia pela participante do

texto. A expressão ‘nós’, até então abordada por elipse por meio do verbo ‘conseguimos’, é

introduzida na frase de modo explícito. As expressões ‘um’ e ‘uma opinião diferente’ estão

ancoradas na expressão ‘nós’, que aparece com o mesmo referente lexical pela segunda vez

na frase; e a expressão ‘disso tudo’ retoma a frase “a doença do seu Alexandre só foi

descoberta quando ele matou o filho e a ele mesmo”.

A expressão ‘um alerta’ sumariza por rótulo a frase “devemos cuidar do espírito e da

mente para que a matéria não acabe nos matando. Precisamos procurar por Deus!”, e o

encapsulamento por rotulação expresso na referida frase identifica uma reflexão,

contribuindo para a composição do argumento. Esse tipo de referente também contribui para

progressão referencial à medida que o rótulo nomeia o tipo de ação que o produtor atribui

aos personagens presentes no segmento encapsulado, como a declaração, a pergunta, a

promessa, a reflexão, a dúvida, etc., ou seja, aqueles que têm função metadiscursiva”

(KOCH; ELIAS, 2009, p. 152).

Na carta do leitor 11 identificamos os efeitos de sentido estabelecidos através da

progressão referencial por meio de referentes ancorados e não ancorados, de expressões

pronominais e nominais, por encapsulamentos e assim por diante.

Sendo assim, considerando as características descritas, inferimos que o produtor da

carta do leitor 11 fez uso da referenciação com o objetivo de inferir sentido à sua produção e

evidenciar o argumento.

Page 105: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

103

4.12 Carta do leitor 12

Quadro 45 – Carta do leitor 12

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Olá, Thiago!

A entrevista que publicou no último dia 15 de novembro me chamou atenção de várias

formas, entre elas: o relacionamento estranho entre pai e filho; a triste fatalidade de um pai matar o

próprio filho; e o suicídio do pai. Mas não pretendo falar sobre nenhum desses assuntos. Há um

tema que já é frequente em nossa sociedade: porte legal de armas de fogo. Fala-se tanto nisso, há

propagandas, campanhas, dizem que os critérios para adquirir o porte de arma são rigorosos, mas

não é o que parece, porque uma pessoa totalmente despreparada possuía uma arma e tinha porte

legal para usá-la, tanto é verdade que ela usou para matar ao filho e para cometer suicídio. Acho

que são coisas que também precisamos analisar em uma situação como essa. Quais critérios são

usados para liberar o porte de arma? Esses critérios foram respeitados no caso da liberação do

porte do seu Alexandre, sendo ele marido de uma delegada aposentada? Não quero criar polêmica,

essas são perguntas apenas! Sem mais.

Carlos, 15 anos, nono ano.

Na frase “A entrevista que publicou no último dia 15 de novembro me chamou

atenção de várias formas, entre elas: o relacionamento estranho entre pai e filho; a triste

fatalidade de um pai matar o próprio filho; e o suicídio do pai” a expressão ‘atenção’ está

ancorada na expressão ‘várias formas’, e a expressão ‘elas’ retoma o termo ‘várias formas’.

Por sua vez, a expressão ‘elas’ encapsula a frase “o relacionamento estranho entre pai e

filho; a triste fatalidade de um pai matar o próprio filho; e o suicídio do pai”. Esse conjunto

de referentes identifica que o produtor tem conhecimento sobre o conteúdo da entrevista.

Na frase “Mas não pretendo falar sobre nenhum desses assuntos. Há um tema que já

é frequente em nossa sociedade: porte legal de armas de fogo” a expressão ‘desses assuntos’

encapsula a frase “o relacionamento estranho entre pai e filho; a triste fatalidade de um pai

matar o próprio filho; e o suicídio do pai”. A expressão ‘porte legal de armas de fogo’ está

ancorada na expressão ‘um tema’. O conjunto de referentes contido na referida frase

apresenta o tema abordado na carta.

Na frase “Fala-se tanto nisso, há propagandas, campanhas, dizem que os critérios

para adquirir o porte de arma são rigorosos, mas não é o que parece, porque uma pessoa

totalmente despreparada possuía uma arma e tinha porte legal para usá-la, tanto é verdade

Page 106: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

104

que ela usou para matar ao filho e para cometer suicídio” a expressão ‘nisso’ retoma o termo

‘porte legal de armas de fogo’. Por sua vez, a expressão ‘porte legal de armas de fogo’

ancora os termos ‘propagandas’, ‘campanhas’ e ‘critérios’, e é retomada pelas expressões ‘o

porte de arma’, ‘uma arma’, ‘la’. Esses referentes colaboram para desenvolver a progressão

referencial temática. A expressão ‘uma pessoa’ é retomada pela expressão ‘ela’. A expressão

‘uma pessoa’ também ancora as expressões ‘despreparada’ e ‘suicídio. A expressão ‘filho’

também é introduzida na referida frase.

Na frase “Acho que são coisas que também precisamos analisar em uma situação

como essa. Quais critérios são usados para liberar o porte de arma?” as expressões ‘coisas’,

‘situação’ e ‘essa’ compõem termos que individualmente encapsulam a frase “há

propagandas, campanhas, dizem que os critérios para adquirir o porte de arma são rigorosos,

mas não é o que parece, porque uma pessoa totalmente despreparada possuía uma arma e

tinha porte legal para usá-la, tanto é verdade que ela usou para matar ao filho e para cometer

suicídio”.

Na frase “Quais critérios são usados para liberar o porte de arma? Esses critérios

foram respeitados no caso da liberação do porte do seu Alexandre, sendo ele marido de uma

delegada aposentada? Não quero criar polêmica, essas são perguntas apenas!” a expressão

‘critérios’ é retomada duas vezes na referida frase, e ancora a expressão ‘porte de arma’, e

‘porte’. A expressão ‘Alexandre’ é introduzida na carta retomando a expressão catafórica

‘uma pessoa’. A expressão ‘Alexandre’ é retomada pela expressão ‘ele’ e ‘marido’. O termo

‘marido’ é ancorado pela expressão ‘uma delegada aposentada’. A expressão ‘essas’

encapsula a frase “Quais critérios são usados para liberar o porte de arma? Esses critérios

foram respeitados no caso da liberação do porte do seu Alexandre, sendo ele marido de uma

delegada aposentada?”.

A descrição dos referentes indica que o participante teceu por meio da referenciação

efeitos de sentido ao texto e abordou um tema bem distinto para erigir a argumentação, ou

seja, focalizou o despreparo do pai para ter o porte legal de armas.

A abordagem temática erigida pelo produtor da carta do leitor 12 remete ao que

afirma Mondada e Dubois (2003, p. 26) quando dizem que a “[…] variação e a concorrência

categorial emergem notadamente quando uma cena é vista de diferentes perspectivas”.

Levando em conta o exposto, é possível inferir o produtor da carta 12 elaborou

estratégias de referenciação que colaboraram para introduzir efeitos de sentidos que

trouxeram à tona a argumentação do texto.

Page 107: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

105

4.13 Carta do leitor 13

Quadro 46 – Carta do leitor 13

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Saudações, Thiago!

Dirijo-me a dona Rosália, e dou os parabéns a essa digna senhora que perdeu o filho e o

marido ao mesmo tempo e [que], ainda assim, continuou a manter a serenidade. Nem por um

momento eu percebi, por parte dela, qualquer tipo de rancor ou ressentimento em relação ao

falecido esposo, apesar da dor que o marido causou a ela em vida e mais ainda em morte (por ter

matado o filho deles e se matado).

Thiago, as suas perguntas foram respondidas pela mãe e viúva com o máximo respeito

pelo filho e pelo marido, prova de um profundo amor e respeito pelos dois homens da vida dela.

No público dessa tragédia, eu levanto para aplaudir de pé a única artista que restou no palco: dona

Rosália! Obrigada pela oportunidade.

Monica, 15 anos, nono ano.

Na frase “Dirijo-me a dona Rosália, e dou os parabéns a essa digna senhora que

perdeu o filho e o marido ao mesmo tempo e [que], ainda assim, continuou a manter a

serenidade”, expressão ‘dona Rosália’ é recategorizada pela expressão ‘digna senhora’; já

as expressões ‘o filho’ e ‘o marido’ são introduzidas no texto e estão ancoradas na expressão

‘dona Rosália’. O conjunto de referentes da referida frase tem como centro ‘Rosália’ e

inferem empatia por ela, além de identificar seu conjunto familiar.

A frase “Nem por um momento eu percebi, por parte dela, qualquer tipo de rancor ou

ressentimento em relação ao falecido esposo, apesar da dor que o marido causou a ela em

vida e mais ainda em morte (por ter matado o filho deles e se matado)” apresenta os termos

‘dela’ e ‘ela’ retomando a expressão ‘Rosália’. A expressão ‘falecido esposo’ recategoriza a

expressão ‘marido’, e a expressão ‘marido’ também se repete na frase. A expressão ‘vida’ e

‘morte’ estão ancoradas na expressão marido. A expressão ‘morte’ é seguida de um conjunto

de informações: “(por ter matado o filho deles e se matado)”. A expressão ‘tipo de rancor ou

ressentimento’ está ancorada na expressão ‘dela’. O conjunto de referentes situa os

participantes do texto apresentando informações sobre os fatos e ainda permitem inferir a

argumentação a favor de ‘Rosália’.

A frase “Thiago, as suas perguntas foram respondidas pela mãe e viúva com o

máximo respeito pelo filho e pelo marido, prova de um profundo amor e respeito pelos dois

Page 108: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

106

homens da vida dela” inicia com a introdução do termo ‘Thiago’, destacando a participação

do interlocutor na interação. A expressão ‘Thiago’ também ancora as expressões

‘perguntas’. A expressão ‘mãe e viúva’ recategoriza a expressão ‘Rosália’ e ancora as

expressões ‘filho’ e ‘marido’. A expressão ‘prova’ ancora as expressões ‘um profundo amor

e respeito’. O termo ‘prova’ está ancorado na frase “as suas perguntas foram respondidas

pela mãe e viúva com o máximo respeito pelo filho e pelo marido”. A expressão ‘dois

homens’ retoma os termos ‘filho’ e ‘marido’. A expressão ‘vida’ é ancorada na expressão

‘mãe e viúva’.

Tomando o exposto como base, podemos inferir que os conjuntos de referentes

presentes na carta do leitor 13 erigem uma argumentação a favor de dona Rosália e

exemplificam o que diz Mondada e Dubois (2003, p. 25): “[…] recursos linguísticos que

servem para tematizar uma entidade, para sublinhar a saliência de aspecto específico ou de

uma propriedade de um objeto, para atrair a atenção do leitor para uma entidade particular”.

Tendo em vista tais aspectos, concluímos que o produtor da carta do leitor 13 efetivou os

efeitos de sentidos em sua produção fazendo uso da referenciação.

Page 109: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

107

4.14 Carta do leitor 14

Quadro 47 – Carta do leitor 14

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Caro Thiago Bronzatto!

Gostei da entrevista que fez com a mãe do Guilherme, fiquei emocionado, mas gostaria

que você estendesse sua área de atuação. Dona Rosália era uma mãe zelosa e amava o seu filho e

agora tem que conviver com a dor de não tê-lo mais, restam apenas as lembranças. Como a dona

Rosália, existem muitas outras mães que perderam e perdem os filhos todos os dias aqui no lugar

onde moro. Essas mães são trabalhadoras, desempregadas, analfabetas ou semianalfabetas [e]

faxineiras [que] às vezes estão envolvidas no mundo do crime, das drogas, ou outras coisas. O que

importa é que elas são acima de tudo mães que têm os filhos tirados delas de alguma maneira,

geralmente, [ou] sempre, trágica, [como] por facada, paulada, tiro de revólver e por diversos

motivos que também não importam, [pois] o que importa é que são filhos de mães que os amam, e

merecem o mesmo tratamento de imprensa dado à dona Rosália. Geralmente para a imprensa e

para o mundo essas mães, daqui onde moro e de outros lugares parecidos com esse, não existem, e

quando existem são tratadas como mães que não sentem dor. Thiago, fica a dica!

Samuel, 15 anos, nono ano.

A carta do leitor 14 apresenta uma temática semelhante à da carta do leitor 6, ou seja,

tece uma crítica aos aspectos de publicação da entrevista. Enquanto que o produtor da carta

do leitor 6 teceu apenas elogios ao trabalho do repórter, o produtor da carta do leitor 14 usa

uma estratégia distinta e erige uma crítica identificando pontos falhos não na entrevista do

pai que matou o filho, mas na abordagem do público entrevistado.

A frase “Como a dona Rosália, existem muitas outras mães que perderam e perdem

os filhos todos os dias aqui no lugar onde moro. Essas mães são trabalhadoras,

desempregadas, analfabetas ou semianalfabetas [e] faxineiras [que] às vezes estão

envolvidas no mundo do crime, das drogas, ou outras coisas” introduz a expressão ‘dona

Rosália” e as expressões ‘outras mães’ e ‘os filhos’. A expressão ‘essas mães’ retoma a

expressão ‘outras mães’. As expressões ‘trabalhadoras’, ‘desempregada’, ‘analfabetas’,

‘semianalfabetas’, ‘faxineiras’, ‘mundo do crime’, ‘das drogas’ e ‘outras coisas’ estão

ancoradas na expressão ‘essas mães’. O referido conjunto de expressões identifica e

descreve a expressão ‘outras mães’. Nessa frase, os advérbios locativos ‘aqui’, ‘lugar’ e

‘onde’ identificam uma cadeia referencial descritiva e, assim como as expressões que

Page 110: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

108

ancoram a expressão ‘outras mães’, essas também erigem uma importante influência na

composição do argumento.

Na frase “O que importa é que elas são acima de tudo mães que têm os filhos tirados

delas de alguma maneira, geralmente, [ou] sempre, trágica, [como] por facada, paulada,

tiro de revólver e por diversos motivos que também não importam, [pois] o que importa é

que são filhos de mães que os amam, e merecem o mesmo tratamento de imprensa dado à

dona Rosália” o conjunto de expressões ‘elas’, ‘mães’, ‘delas’, ‘mães’ contribuem para

situar as participantes no texto. As expressões ‘os filhos’ e ‘filhos’, que estão ancoradas na

expressão ‘mães’, ancora as expressões ‘trágica’, ‘facada’, ‘paulada’, ‘tiros de revólver’ e

‘diversos motivos’. A expressão ‘tratamento de imprensa’ é introduzida na carta do leitor e

constitui um importante elemento de argumentação na referida carta.

As expressões ‘daqui’, ‘outros lugares’, ‘onde’ e ‘esse’ presentes na frase

“Geralmente para a imprensa e para o mundo essas mães, daqui onde moro e de outros

lugares parecidos com esse, não existem, e quando existem são tratadas como mães que não

sentem dor”, evidenciam a relevância dos aspectos locativos para a elaboração dos efeitos de

sentido da produção.

A expressão ‘dica’ contida na última frase da carta “Thiago, fica a dica!” ancora a

expressão ‘sua área de atuação’, e além de evidenciar a importância dos aspectos locativos

descritos no texto para a argumentação, é também um importante elemento para o desfecho

da carta.

Notamos que não há uma descrição dos aspectos locativos presentes no texto, mas os

elementos que estão associados aos referidos aspectos podem ajudar o leitor a compreender

a qual espaço se refere o produtor da carta. Nesse sentido, o conhecimento enciclopédico do

leitor é um importante elemento para estabelecer tal compreensão.

O produtor da carta do leitor 14 faz uso de cadeias referenciais para evidenciar seus

argumentos, e esse fenômeno é identificado “quando remetemos seguidamente a um mesmo

referente ou a elementos estreitamente ligados a ele” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 144).

Levando em conta os aspectos descritos, concluímos que a carta leitor 14 possui

elementos que colaboram para atribuir efeitos de sentidos à carta.

Page 111: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

109

4.15 Carta do leitor 15

Quadro 48 – Carta do leitor 15

São Paulo, 28 de novembro de 2016.

À Revista Veja

Saudações, Thiago!

Ser mãe e pai nessa sociedade de hoje não é nada fácil, e ser filho está sendo mais difícil

ainda. Eu tenho 15 anos, estou muito interessado em colocar uma tatuagem no braço, minha mãe

até deixou, mas o meu padrasto me proibiu de verdade. Às vezes me revolto com ele, mas por

outro lado vejo que ele se preocupa comigo, mesmo me dizendo mais “nãos” que “sims”. Às vezes

acho que essa atitude dele é por eu não ser filho legítimo. Ele disse que eu tenho sorte por isso,

porque se eu fosse filho dele mesmo já tinha levado uma surra. Sei que o meu relacionamento

familiar não vem ao caso aqui, mas acho que pode ser um bom exemplo de um relacionamento em

conflito. Mas apesar de toda essa discórdia entre nós dois, não vejo isso como obsessão, sei que é

um cuidado de um padrasto zeloso que tenta fazer o máximo para conviver com o enteado.

Infelizmente não foi o que aconteceu com o relacionamento do seu Alexandre e do filho

Guilherme, os conflitos e exageros foram tantos que os dois foram a óbito. É isso o que eu queria

dizer. Obrigado.

Rodrigo, 14 anos, nono ano.

Na frase “Eu tenho 15 anos, estou muito interessado em colocar uma tatuagem no

braço, minha mãe até deixou, mas o meu padrasto me proibiu de verdade. Às vezes me

revolto com ele, mas por outro lado vejo que ele se preocupa comigo, mesmo me dizendo

mais ‘nãos’ que ‘sims’. Às vezes acho que essa atitude dele é por eu não ser filho legítimo”

a expressão ‘eu’ é retomada pelas expressões ‘meu’, ‘me’ (que se repete mais duas vezes),

‘comigo’, ‘me’ novamente e ‘eu’.

Essas expressões contribuem para inserir o produtor na carta. A expressão ‘padrasto’

é retomada pela expressão ‘ele’ (que se repete mais uma vez), ‘se’ e ‘dele’, e situa o

participante na carta. A expressão ‘essa’ encapsula a frase “dizendo mais ‘nãos’ que ‘sims’”.

O conjunto de expressões destacado contribui para situar os participantes e introduzir o tema

a ser abordado na referida produção.

Na frase “Ele disse que eu tenho sorte por isso, porque se eu fosse filho dele mesmo

já tinha levado uma surra. Sei que o meu relacionamento familiar não vem ao caso aqui, mas

acho que pode ser um bom exemplo de um relacionamento em conflito” a expressão ‘isso’

Page 112: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

110

encapsula a frase “por eu não ser filho legítimo”. A expressão ‘um bom exemplo’ está

ancorada na expressão ‘um relacionamento em conflito’.

Na frase, “Mas apesar de toda essa discórdia entre nós dois, não vejo isso como

obsessão, sei que é um cuidado de um padrasto zeloso que tenta fazer o máximo para

conviver com o enteado” a expressão ‘isso’ encapsula o trecho “discórdia entre nós dois”.

Nas frase “Infelizmente não foi o que aconteceu com o relacionamento do seu

Alexandre e do filho Guilherme, os conflitos e exageros foram tantos que os dois foram a

óbito” as expressões ‘Alexandre’ e ‘filho Guilherme’ ancoram a expressão ‘relacionamento’.

A expressão ‘relacionamento’ está ancorada na expressão ‘um relacionamento em conflito’,

expressa no início da carta e nas expressões ‘os conflitos’ ‘exageros’ e ‘óbito’. O conjunto

de expressões colaboram para inferir sentido à produção.

As expressões destacadas sugerem que o produtor da carta 15 buscou estabelecer

uma comparação considerando sua experiência de vida e o assunto da entrevista. O recurso

usado na referida produção evidencia que “somente uma rede lexical situada num sistema

sociointerativo permite a produção de sentidos” (MARCUSCHI, 2007, p. 69).

Sendo assim, consideramos que as estratégias de referenciação contidas na carta do

leitor 15 colaboraram para inferir efeitos de sentidos a referida produção.

Page 113: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

111

CONCLUSÃO

Para concluir este estudo, retomamos as perguntas que norteiam a investigação. São

elas:

1. De que modo as intervenções de ensino do conceito de referenciação podem

favorecer o domínio da referida atividade discursiva proporcionando ao estudante

a capacidade de produzir e desenvolver efeitos de sentidos na sua produção

escrita?

2. Quais aspectos podem colaborar para que o professor desenvolva, aprofunde e

potencialize a capacidade de converter a teoria em prática no que tange ao ensino

da escrita?

Buscando responder à primeira pergunta, percebemos que um dos aspectos essenciais

necessários ao professor é conhecer suficientemente as teorias que dizem respeito ao ensino

da língua materna. Quando nos referimos a um conhecimento suficiente, focalizamos não só

e também um essencial conhecimento sobre as teorias da língua, mas também um domínio

suficiente quanto a outras teorias que apoiam o ensino, como as teorias do ensino e a

filosofia. Os referidos conhecimentos (teorias da língua e teorias do ensino, bem como

teorias filosóficas e outras), podem conjuntamente proporcionar ao professor o poder de

identificar, através das peculiaridades do público heterogêneo do seus respectivos alunos,

elementos que ofereçam a clareza dos objetivos de ensino e que, ao mesmo tempo, possam

colaborar para a composição do planejamento de suas aulas, inclusive com a seleção do

conteúdo a ser produzido ou escolhido pelo professor para compor suas atividades em sala

de aula.

A segunda pergunta está interligada à primeira questão: a proposta de ensino elaborada e

aplicada nesta investigação apresentou um planejamento de ensino balizado no

conhecimento da teoria de ensino e da filosofia, especificamente nos estudos de Vygotsky e

Chevallard. Tal perspectiva teórica colaborou para que identificássemos, por meio dos

alunos (participantes deste estudo), estratégias para planejar o ensino do conceito de

referenciação considerando sobretudo o perfil dos referidos alunos.

As estratégias envolveram desde a interação com os alunos acerca do conceito de

referenciação até a composição e escolha do material usado nas atividades. O resultado da

referida junção teórica pode ser observado na descrição e na análise das produções escritas

(cartas do leitor), nas quais identificamos que os alunos produziram suas cartas fazendo uso

da referenciação, de modo a erigir efeitos de sentido nas referidas produções. Tal

Page 114: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

112

constatação evidencia que as intervenções de ensino dos conceitos da língua, sobretudo no

que diz respeito ao conceito de referenciação, podem ser eficazes se respaldadas por um

competente conhecimento teórico do professor acerca dos conceitos da língua e outras

teorias que coadjuvam com o ensino, e que tais conhecimentos devem ser somados ao

conhecimento do professor acerca de peculiaridades dos alunos que possam favorecer a

aplicação do ensino.

Considerando à primeira hipótese deste estudo, constatamos que o professor é capaz de

apreender conceitos atualizados desenvolvidos no espaço acadêmico e, em posse do referido

arcabouço teórico, ser autor da sua prática de ensino da língua portuguesa desde que lhe seja

garantido o acesso direto ao conhecimento teórico atualizado acerca do ensino da língua.

No que se refere à segunda hipótese, podemos afirmar que o aluno pode aprender e

aprofundar seus conhecimentos sobre a língua escrita tendo como referência sua vivência em

sociedade. Para tanto, as estratégias de ensino da língua devem levar em conta a referida

vivência, identificando, por meio do aluno, elementos que possam favorecer o ensino de

modo a visualizar o que o aluno já sabe e buscar meios de ensino para aprofundar esse saber

já existente; além de verificar o que o estudante não sabe, identificando possibilidades para

garantir ao discente tal saber; bem como compor aulas que potencializem a capacidade nata

do aluno de erigir novos conhecimentos através do seu próprio conhecimento de mundo.

Por fim, concluímos que as duas perguntas que erigiram esse trabalho e o objetivo

proposto e aplicado nos ajudaram a reconhecer que é possível ensinar ao aluno o conceito de

referenciação oferecendo condições de ensino que considerem a heterogeneidade discente,

de modo que o estudante possa usar as várias possibilidades de interação potencializadas

pelo processo de referenciação para produzir efeitos de sentido em sua produção escrita.

Page 115: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

113

REFERÊNCIAS

ABRÃO, L. G. Propostas para a transposição didática: o grande desafio da educação

linguística. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Programa de Língua Portuguesa

da Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009.

AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. “O alfabetismo juvenil:

inserção educacional, cultural e profissional”. In: Inaf – Indicador de Alfabetismo Funcional.

Edição Especial Jovens Metropolitanos. 2016. Disponível em: <http://www.ipm.org.br/pt-

br/programas/inaf/relatoriosinafbrasil/Paginas/Inaf-2015---Alfabetismo-no-Mundo-do-

Trabalho.aspx>. Acesso em: 20 ago. 2016.

ALVES, R. Estórias de quem gosta de ensinar. São Paulo: Cortez Editora, 1984. p. 61-62.

BRAINER, M. O ensino da leitura e da escrita para crianças em processo de alfabetização:

saberes e práticas docentes. Rio de Janeiro, 2012. Tese (Doutorado em Educação) –

Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

BEZERRA, M. A. Por que cartas de leitor na sala de aula? In: DIONISIO, A. P.,

MACHADO. A. R., BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro:

Lucerna, 2002, p. 208-216.

CARAZZAI, E. H. Paraná iniciará campanha de vacinação a dengue em agosto. Folha de S.

Paulo, São Paulo, 27 jul. 2016. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2016/07/1795728-parana-iniciara-

campanha-de-vacinacao-contra-a-dengue-em-agosto.shtml>. Acesso em: 7 jul. 2016.

CARMAGNANI, A. M. G. Ensino apostilado e venda de novas ilusões. In: CORACINI

(Org.). Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. Campinas, São Paulo: Pontes,

1999.

CAVALCANTE, M. M. A construção do referente no Discurso. In: CAVALCANTE,

Mônica M.; BRITO, Mariza A. P. (Orgs.). Gêneros textuais e referenciação. Fortaleza:

Protexto/UFC, 2004.

______. Revisitando os parâmetros do processo de recategorização. ReVEL, v. 13, n. 25,

2005.

______. Revisitando o estatuto do texto. Revista do GELNE, v. 12, n. 2, 2010.

CECILIO S. R.; RITTER L. C. B. A estratégia discursiva de auto-referenciação em carta do

leitor In: 1ª JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso.2008 Disponível em:

Page 116: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

114

<http://www.dle.uem.br/jied/pdf/A%20ESTRAT%C9GIA%20DISCURSIVA%20DE%20A

UTO-REFERENCIA%C7%C3O%20cecilio%20e%20ritter.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2016

CHARLOT, B. Da Relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed,

2000.

______. Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a

educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.

COSTA VAL, M. G., Redação e Textualidade. Sâo Paulo. Martins Fontes: 1991.

COSTA, S. D. da. Cartas de leitores: gênero discursivo porta-voz de queixa, crítica e

denúncia no jornal O Dia. In: Soletras – Revista do Departamento de Letras da UERJ – n 10,

2005, p.28-41. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/soletras/10/03.htm>. Acesso em

20 de no. 2016

CUSTÓDIO FILHO, V. Reflexões sobre a recategorização referenciação sem menção

anafórica. 2012. Disponível em: <http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/

index.php/Linguagem_Discurso/article/viewFile/1225/1026>. Acesso em: 16 ago. 2016.

______. Referenciação intertextual: análise da construção de objetos de discurso em

narrativas com episódios. ReVEL, v. 13, n. 25, 2015.

DAVYDOV, V. Tipos de generalizacion em la enseñanza. Habana: Editorial Pueblo e

Educación, 1982. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/hansmejia/tipos-de-generalizacin-

en-la-enseanza-27177666>. Acesso em: 25 set. 2016.

DOLZ, J. SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita – elementos

para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J.

Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro.

Campinas: Mercado de Letras, 2004, p. 41-70.

DUARTE, R. D. O papel da linguística na formação do professor das séries iniciais: leitura

e escrita. Projeto de Pesquisa/2009-2011 – Faculdade de Ciências da

Linguagem/Abaetetuba/UFPA. Projeto cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-

Graduação (PROPESP) da UFPA sob o número 23073-035133/2010-67.

FÁVERO, L. L., Coesão e coerência textuais.11. ed. São Paulo: Ática, 1989.

GERALDI, J. W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GIL, A, C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010.

Page 117: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

115

GOMES, M. C. P. Referenciação e construção de sentido nas fábulas de Monteiro Lobato e

Esopo. 2014. 188 p. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa) –

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

KLEIMAN, A. Texto & leitor- aspectos cognitivos da leitura. 14. Ed. Campinas, SP, Pontes

Editores, 1989.

KOCH, I. G. V. Cognição e processamento textual. Revista da ANPOLL, nº 2, p. 35-44,

1996. Disponível em: <https://anpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/239/252>.

Acesso em: 30 out. 2016.

______. A coesão textual. 22. ed. São Paulo: Contexto, 1989.

______. O texto e a construção dos sentidos. 10. ed. São Paulo: Contexto, 1997.

______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002

______. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins fontes, 2004.

______. & ELIAS, V. M., Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo:

Contexto, 2009.

______ & TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1990

KUSIAK, S. M. “Uma análise da prova Brasil com enfoque nos processos de leitura e

escrita”. In: IX ANPED SUL Seminário de pesquisa em Educação da Região Sul, 2012, p.

1-10. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/

9anpedsul/paper/viewFile/265/106>. Acesso em: 20 ago. 2016.

MALFACINI, A. C. dos S. Breve histórico do ensino de língua portuguesa no Brasil-da

reforma pombalina ao uso de materiais didáticos apostilados. IDIOMA, Rio de Janeiro, nº.

28, p. 45-59, 1º. Sem. 2015, 45.

MARCUSCHI, L. A, 1983. Linguística textual, o que é e como se faz. Recife, Universidade

Federal de Pernambuco. Série Debates, v. 1.

______. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

______. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In: KOCH, Ingedore G. V;

MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Referenciação e discurso.

São Paulo: Contexto, 2005, p. 53-102.

Page 118: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

116

______. Aspectos da questão metodológica na análise da interação verbal: o continuum

qualitativo-quantitativo. In: Revista latino-americana de estudos do discurso, v. 1, n. 1, ago.

2001, p. 23-42.

MESQUITA, E. M. de C. “O ensino da escrita: diferentes contextos, diferentes métodos?”.

In: Anais do SILEL, v. 3, n. 1. Uberlândia: EDUFU, 2013. p. 1-13.

MONDADA, L.; DUBOIS, D. “Construção dos objetos do discurso: uma abordagem dos

processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M., RODRIGUES, B. B. e CIULLA,

A. (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.

NUNES, L. A de L. Texto dissertativo: um produto para o ensino. São Paulo: Universidade

de São Paulo, 2012. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

OLIVEIRA, L. A. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na

prática. São Paulo: Parábola, 2010.

PIETRI, É. de. Sobre a constituição da disciplina curricular de língua portuguêsa. Revista

Brasileira de Educação v.15 n. 43 jan./abr. 2010.

______. O currículo e os discursos sobre o ensino de língua portuguesa: relações entre o

acadêmico, o pedagógico e o oficial na década de 1970, no Brasil. Currículo sem fronteira,

v. 13, n.3 p. 515-537, set./ dez. 2013.

REGO, T. C.,Uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petropólis: Vozes, 1995.

ROMANELLI, O. História da educação no Brasil. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

SANTOS, L.; CAVALCANTE, M. Referenciação: continuum anáfora-dêixis. Intersecções,

Jundiaí, v. 12, n. 1, maio. 2014. p. 224-246.

SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Guias curriculares para o ensino de 1o grau. São

Paulo: CERHUPE, 1975.

SILVA, T. R. N.; A. Lisete R. G. Orientações legais na área de currículo, nas esferas federal

e estadual a partir da Lei 5.692/71. Cadernos Cedes, v. 1, n. 13, p. 26-44, jan. 1985.

SILVA, V. S. & CYRANKA L. F. de M. A língua portuguesa na escola ontem e hoje.

Linhas Críticas, v. 15, n. 29. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. p. 271-287.

Page 119: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

117

SOARES, M. Português na escola: história de uma disciplina curricular. Materiais escolares:

história e sentidos. Revista de Educação AEC. Brasília, vol. 25, nº 101, out/dez. de 1996.

______. Prefácio. In: BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Aula de português: discurso e

saberes. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. vii-xv.

______. Português na escola: história de uma disciplina curricular. In: BAGNO, Marcos

(Org.). Linguística da norma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 141-161.

VYGOTSKY, L. S. “Interação entre aprendizado e desenvolvimento”. In: VYGOTSY, L. S.

A formação social da mente. [S.n.]: São Paulo: 1984, p. 89-103.

Page 120: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

118

ANEXO 1 – ATIVIDADES REFERENTES AO ENSINO DO CONCEITO DE

REFERENCIAÇÃO

ATIVIDADE 1

Nome:_______________________________________Série:________Turma:_______

1. Componha um texto com o gênero (conto, fábula, crônica, causo etc) e tema de sua

escolha.

Observações:

a. O texto deve ter no mínimo 10 (dez) linhas e no máximo 15 (quinze) linhas;

b. Dê um título ao seu texto.

ATIVIDADE 2

Nome:_______________________________________Série:________Turma:_______

1. Crie um diálogo com um assunto de sua preferência, simulando uma conversa com um

amigo ou uma amiga numa rede social (Facebook, WhatsApp ou outros).

Observações:

a. No conteúdo da conversa, procure usar, pelo menos, uma referenciação anafórica e

outra catafórica. Identifique a referenciação do seu texto, sublinhando e nomeando.

ATIVIDADE 3

Nome:_______________________________________Série:________Turma:_______

1. Componha uma história em quadrinhos (com o tema do seu interesse) usando

referenciação anafórica e referenciação catafórica com pelo menos três tipos

diferentes de formas de progressão referencial. Atribua um tipo de referenciação por

sumarização e outro por rotulação.

Observações:

a. Após concluir o texto, destaque os referentes, sublinhando-os.

b. Dê um título a sua história em quadrinhos.

Page 121: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

119

ANEXO 2 – ATIVIDADES DE FIXAÇÃO DA APLICAÇÃO DO CONCEITO DE

REFERENCIAÇÃO

1) Procure no texto Laura procura emprego todos os termos que substituem o nome

Laura. Explique o que os termos que substituem o nome Laura podem nos informar

sobre a personagem.

2) No mesmo texto, identifique se há expressões que substituem o termo empresa e o

que essas expressões descrevem sobre a empresa.

Laura procura emprego

Laura está procurando emprego. Ela fez curso de secretariado, fala inglês intermediário e

concluiu o ensino médio. A adolescente encaminha seus currículos para muitas empresas.

As multinacionais estão na lista de sua predileção. As vantagens que essas empresas

oferecem são bem atrativas: oferecem plano de carreira; investem na formação acadêmica

e profissional dos seus funcionários; e com o objetivo de incentivar o trabalhador a

permanecer motivado na realização de suas tarefas, investem na qualidade de vida dos

empregados. Não é sem razão que Laura prioriza essas empresas na hora de divulgar seu

perfil profissional.

3) Identifique no texto O esperado de todos os anos quais expressões se referem à

palavra Carnaval.

4) Explique, de acordo com o seu entendimento do texto, por qual razão o termo

Carnaval só apareceu ao final do texto.

O esperado de todos os anos

Os preparativos para a chegada do esperado de todos os anos podem iniciar entre fevereiro

e março e seguem doze meses pela frente; mas não pense que é um período entediante –

pelo contrário: durante esse tempo começam as arrumações. Do que sobrou da última

estada dele por aqui, há tentativa de reciclar e reaproveitar os restos, que talvez sirvam

como adereços para o próximo encontro com ele. A seleção das músicas que vão embalar

sua visita é criteriosa, os ensaios altamente organizados, as alegorias demonstram profundo

estudo por parte de quem as criou. Para recepcioná-lo, chegam mulheres lindas, ótimos

bailarinos e tudo, tudo é preparado com o maior rigor, luxo e bom gosto. Até que chega o

grande momento, e lá vem ele entrando, sambando pela passarela afora: é ele, o Carnaval!

Page 122: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

120

5) No texto seguinte, a mãe demonstra ansiedade para que o filho deixe de lado o jogo

e venha atendê-la, A palavra fogo e tocha olímpica podem ajudar-nos a entender

porque a mãe queria tanto que o filho viesse atendê-la. Explique a relação da

palavra fogo com a palavra tocha olímpica, justificando porque a mãe tinha pressa

que o filho fosse até ela.

O dia em que as Olimpíadas passaram na minha rua

Minha mãe me chamou: “Vem, vem logo! Vem ver!”. Não dei a menor bola, estava

concentrado em vencer meu jogo de videogame. Ela chamou de novo. Fiquei irritado. Isso

estava me desconcentrando e me deixando cada vez mais perto da derrota. Dali a pouco,

ela de novo: “Vem, menino! Vem ver o fogo passar!”. Que droga, mãe! O que eu tenho

com isso?! “Vem, menino bruto! Vem ver a tocha olímpica!”

6) Qual a relação da expressão bola com os termos campeonato, equipes e atletas?

Essa relação nos ajuda a entender a expressão a bola resolveu abandonar o torneio

junto com o seu dono. Explique como isso acontece.

O dono da bola

Os garotos aproveitaram o período das férias para organizaram o campeonato. As equipes

já estavam formadas, os atletas escalados. Até que um problema surgiu: a bola resolveu

abandonar o torneio junto com o seu dono!

7) Procure na produção O garoto esguio expressões que se referem ao termo garoto.

8) Procure na produção A menina que era invisível expressões que ser referem a a

menina.

9) Explique o que essas expressões nos indicam sobre as condições do garoto e da

menina.

O garoto esguio

O garoto era esguio, os braços e as pernas fracos, os lábios ressecados, os olhos fundos, a

barriga roncava denunciando a fome.

Page 123: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

121

A menina que era invisível

Quando entrei na sala notei sua presença. Havia algo de diferente, a menina estava

mudada. Os cabelos, antes alisados, amordaçados e controlados pelos processos químicos,

agora estavam livres, os cachos soltos espalhados pela cabeça, os fios enrolados e escuros

combinavam perfeitamente com a cor negra da pele e o escuro dos olhos. Todos os dias ela

estava lá, mas foi a primeira vez que a enxerguei.

Voltei para a escola

10) No texto a seguir está expressa uma relação entre os termos redação e escola. O

que essa relação nos ajuda a entender sobre o texto?

Mandei muitos currículos, fiz inúmeras entrevistas de emprego, mas não surgia nenhuma

resposta positiva ao meu pedido de emprego. Até que um dia fui chamado por uma

empresa para comparecer para um teste. Tive de fazer uma redação, fui reprovado e

continuei desempregado. Depois disso me vi obrigado a voltar para a escola.

11) No texto a seguir, identifique quais expressões substituem a palavra mãe, filho e

marido. Explique para que servem essas substituições neste texto.

A mãe ficou perplexa quando soube do baixo desempenho do filho na escola. Ainda assim,

não quis mostrar o boletim ao marido. Precisava acalmar os ânimos do pai do garoto. Ela

sabia que, desta vez, ele deixaria de pagar a escola particular ao filho, e o mandaria para

uma instituição de ensino pública.

12) Qual a relação da expressão três razões com a expressão os motivos? O termo três

razões refere-se a que elementos no texto?

São muitos os motivos para a insatisfação política e econômica atualmente, mas

apontaremos três razões: a primeira diz respeito aos escândalos protagonizados por nossos

representantes governamentais por conta dos desvios e gastos inapropriados do dinheiro

público; a segunda é a onda de desemprego causada, sobretudo, por causa do fechamento

de muitas indústrias; e a terceira é a falta de políticas públicas assertivas para diminuir o

desequilíbrio social que assola nosso país.

Page 124: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

122

13) Quais expressões indicam lugar no próximo texto?

Finalmente, marcaram a data e o local para a prova do teste de direção automotiva. Pois

bem, no dia combinado ali estava eu, e de novo a tremedeira nas pernas, e como já

esperado não fui aprovado. Sabia que um mês depois lá estaria eu, no mesmo lugar,

refazendo o teste, e, quem sabe, com sorte seria aprovado.

14) Os verbos foi, observou, comparou, ficou, percebeu, tinha, precisava, decidiu e o

termo alarmada nos ajudam a identificar o personagem do texto seguinte.

Explique.

Esta manhã, como de costume, foi ao mercado, observou o preço de tudo, comparou o

preço de produtos de outros mercados, ficou alarmada com o alto valor da cesta básica e

percebeu que o dinheiro que tinha não dava para comprar quase nada do que precisava.

Decidiu então voltar para casa sem comprar nada.

15) A palavra tesoura é reiterada, ou seja, retomada várias vezes no texto seguinte.

Qual o objetivo dessa repetição para compreensão do texto?

A tesoura

A tesoura é ferramenta de trabalho da costureira. O artista usa a tesoura como instrumento

de trabalho. O professor pode usar a tesoura e também pedir ao seu aluno que faça uso da

tesoura. A estilista tem a tesoura como companheira bem útil de trabalho. A tesoura é

usada por cirurgiões. Os curativos dos enfermeiros podem ser feitos por tesoura. A tesoura

tem inúmeras utilidades e é usada por diversos profissionais.

16) Na produção seguinte, a palavra mulher é substituída por outro termo. Qual é esse

termo?

Fazia tempo que não colocava os olhos naquela mulher, mas ela estava muito mudada. A

bela dama trazia na face marcas de muito sofrimento.

Page 125: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

123

17) A palavra répteis, no texto a seguir, faz referência a outra expressão no texto. Qual

é a expressão?

Os trabalhadores do canavial estavam assustados, e entre as coisas que os assustavam

estavam as péssimas condições de trabalho, a baixa remuneração e as cobras venenosas

presentes nas plantações, mas o que estava matando mais rápido os trabalhadores eram os

répteis.

18) A expressão Marina é substituída por outras expressões no texto a seguir. O que

essas expressões nos ajudam a entender sobre a personagem?

Marina sempre foi aluna de destaque na escola. É atualmente uma bem-sucedida

empresária. Apesar do sucesso demonstrado até o momento, no ano passado a comerciante

em ascensão teve problemas com a Receita Federal.

19) Na narrativa Era uma vez três velhinhos há mais de um conjunto de referentes que

dizem respeito: ao lugar onde ocorre os fatos que inicia com a palavra asilo; outra

que se refere aos personagens que inicia com a expressão velhinhos; e há também

de um personagem secundário que inicia com a expressão segurança. Identifique

no texto a sequência de cada um desses conjuntos

Era uma vez três velhinhos

Eram três velhinhos que viviam num asilo no interior de São Paulo. O lugar era bem

grande, tinha muitos quartos, e mesmo assim os homens dormiam no mesmo quarto, mas

ainda bem que repousavam em camas separadas.

Um dos anciões era surdo, era o mais velho deles. O segundo era cego e o terceiro era

mudo. Acho que era por isso que colocaram eles para dormirem no mesmo quarto.

Os senhores não estavam nada satisfeitos com a acolhida da casa de repouso e planejavam

fugir. Para isso, já tinham tudo arranjado: iam subornar o segurança de lá, que era um

sujeito mal-encarado, mas que, segundo os sexagenários, como todo homem havia de ter o

seu preço também…

Page 126: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

124

20) A expressão tesouro, no texto seguinte, refere-se a quais termos no texto. De

acordo com o seu entendimento do texto, responda: por que a expressão tesouro foi

escolhida para substituir os outros termos?

Quando a mãe sentenciou que ele sairia do parque e iria para casa tomar banho e jantar, o

garoto não teve dúvidas: juntou suas bolinhas de gude; pegou a bola de futebol; o carrinho

já sem roda; o boneco sem braço; colocou tudo no fundo da motocicleta e foi para casa.

Chegando em casa, foi direto para o seu quarto. Lá retirou, da moto, o tesouro e o jogou

debaixo de sua cama.

21) O termo paixão, no texto Veio sem avisar, comprime e rotula quais expressões? O

que a expressão por rotulação paixão nos ajuda a entender sobre o texto?

Veio sem avisar

Veio sem avisar: um frio na barriga; a fome sumiu; no estômago parecia que havia

borboletas voando; acordava no meio da noite e demorava a conseguir voltar a dormir; o

coração acelerava; ora ficava muito alegre, ora triste; até os gostos mudaram; em certas

ocasiões as mãos suavam; algumas músicas davam nostalgia. Enfim, logo ficou

esclarecido: a paixão havia chegado devastadora e tomou conta de todo o seu ser. Tentou

escondê-la de si e de todos – foi em vão: tudo nele denunciava o sentimento.

22) No texto Elegância discreta, assim como no texto Veio sem avisar, há outra

expressão por rotulação. Encontre-a identificando quais termos são rotulados por

ela.

Elegância discreta

O garoto chegou silencioso na sala de aula, não cumprimentou os colegas, arrumou a

cadeira e a carteira sem ruídos, tirou o material com cuidado mudo, fez de tudo para passar

despercebido, teve sorte de encontrar a porta aberta. Sabia que a professora não abre a

porta em caso de atrasos. Mal ele se sentou, ouviu a professora perguntar: “A ‘elegância

discreta’ é para que eu não o coloque para fora?”.

Page 127: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

125

23) Na charge a seguir há uma expressão por encapsulamento e outra por rotulação.

Identifique ambas indicando a quais termos elas se referem e em que sentido elas

contribuem na argumentação expressa na charge.

Figura 1 – Charge do artista Lila

Fonte: Blog do Barbosa, 2010. Disponível em: <http://blogdobarbosa.jor.br/?p=26324>.

Acesso em: 01 ago. 2016.

Page 128: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

126

ANEXO 3 – ATIVIDADES PARA IDENTIFICAR COMO A REFERENCIAÇÃO

PODE CONTRIBUIR PARA ESTABELECER O SENTIDO DA ARGUMENTAÇÃO

NA CARTA DO LEITOR

As cartas do leitor 01 e 02 identificam no início da carta o título da publicação a que

se referem, ou seja, na carta do leitor 01 Separação e na carta 02 Planejamento.

1) No texto 01, o leitor apresenta uma opinião e o argumento que justifica o seu

ponto de vista, e ainda acrescenta sugestões para resolver a problemática.

Identifique qual é a opinião do leitor. Quais são as sugestões propostas pelo leitor?

Qual seria a possível intenção do leitor ao fazer essas sugestões?

2) Qual a relação do termo “os advogados” com a expressão “sua competência” e o

termo “acostumados”? Com qual intenção argumentativa o produtor da carta usou

os termos por sua competência e acostumados para se referir aos advogados?

3) A palavra separação é retomada mais de uma vez na carta: a primeira é “grandes

separações”. Que sentido infere à argumentação essa primeira recategorização?

4) Na sequência da carta, a palavra separação aparece novamente, e depois é

retomada como separação amigável e o tipo de separação. Por fim, é expressa

pelo termo ela. Separação amigável e o tipo de separação são recategorizações

que inferem sentido na progressão (continuidade) do texto. Explique, com suas

palavras, como isso ocorre.

Carta do leitor 01

Separação

(323/2004) Divórcio sem (muito) stress

Bastante interessante a reportagem sobre (1) separação. Mas acho que

os (1) advogados consultados, por (2) sua competência, estão (3)

acostumados a tratar de (2) grandes separações. Será que a maioria dos

leitores de ÉPOCA tem obras de arte que precisam ser fotografadas

antes da (3) separação? Não seria mais útil dar conselhos mais básicos?

Não seria interessante mostrar que a (4) separação amigável não

interfere no modo de partilha dos bens? Que seja qual for (5) o tipo de

separação, (6) ela não vai prejudicar o direito à pensão dos filhos? Que

acordo amigável deve ser assinado com atenção, pois é bastante

complicado mudar suas cláusulas? Acho que essas são dicas que podem

interessar ao leitor médio.

ERNESTO LIPPMANN,

São Paulo, SP

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT787092-2119,00.html

Page 129: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

127

Carta do leitor 02

Planejamento

(323/2004) Vencendo o relógio

Posso administrar (1) meu tempo, mas quase sempre me vejo (2)

escravo do relógio e (3) acumulado de tarefas não cumpridas.

Estabelecer a diferença entre o importante e o urgente nem sempre é

fácil, e o circunstancial em algum momento se torna (1) o vilão da

administração do tempo.

ALDIR CUNHA, Belo Horizonte, MG

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT787092-2119,00.html

2) Na carta do leitor 02, a expressão meu tempo é retomada pela expressão escravo do

relógio e acumulado de tarefas de não cumpridas. Essas expressões contribuem para

exemplificar a opinião defendida pelo autor.

a) Identifique a opinião defendida no texto.

b) A expressão o vilão da administração do tempo recategoriza qual ideia do

texto?

Carta do leitor 03

MARCOS AUGUSTO PIRES SILVA,

São Paulo, SP

Lamentável (1) seu (1) artigo, que é (2) coberto de desinformação e no

(3) contra-rumo da mídia, que incentiva a cada dia a prática de esportes

em nosso país, como lazer e, principalmente, como fonte de saúde

preventiva. (1) Academias de ginástica não são (2) ‘minas de ouro’

como (2) você disse. São (3) empresas como as outras, que

proporcionalmente às receitas têm também custos, que não são baixos.

Quanto a (3) sua afirmação de que “paga e não frequenta”, lembro-(4)

lhe de que (4) as academias têm custos fixos de funcionamento e que os

serviços estão à disposição. Por todo o conteúdo de (5) seu (4) texto, só

me resta uma conclusão: (6) você deve ter sido muito (7) maltratado em

uma (5) academia, ou então é totalmente (8) avesso à prática de

esportes, o que é de lamentar.

EUMAR WERNECK DE TOLEDO,

Juiz de Fora, MG

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT787092-2119,00.html

Page 130: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

128

3) Na carta do leitor 03:

a) As expressões coberto de desinformação, contra rumo da mídia e texto estão

ancoradas na expressão artigo. Essas expressões contribuem para sustentação do

argumento do texto? Qual é a opinião defendida pelo autor?

b) A expressão academias de ginástica é retomada pelos termos ‘minas de ouro’,

empresas como as outras e as academias e por último academia. Esses termos

defendem a atuação das academias. Explique como isso ocorre.

c) Os termos seu, você, sua, lhe, seu, você, maltratado, avesso à prática de esportes

referem-se ao interlocutor. Esses termos identificam a possível hipótese de que o

produtor do texto criou acerca dos possíveis motivos que levaram o interlocutor a

produzir um artigo em que parece ser contrário ao trabalho das academias de

ginástica. Explique como essa hipótese é levantada no texto por meio dos termos

destacados.

Carta do leitor 04

(1) O estudo do (2) psicólogo Fernando Braga é (2) preconceituoso.

Como um (2) psicólogo pode acreditar que (1) uma roupa pode significar

(2) motivo de invisibilidade ou humilhação? (1) Eu, que sou (2)

professora, dou mais valor à individualidade, ao lado interior, que (3)

esse psicólogo. (3) A pessoa que veste uniforme e se sente inferior

necessita, certamente, de terapia. Não são as pessoas ao redor que fazem

o (4) ‘uniformizado’ sumir, e sim (5) o próprio. Todos vivem muito

apressados. (1) O tema para a pesquisa do (4) psicólogo em questão

poderia ser: (2) a importância da autoestima, da aceitação própria, do

valor pessoal.

IZABEL DEMARCHI NUNES,

São Bernardo do Campo, SP

http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT787092-2119,00.html

4) Na carta do leitor 04:

a) O termo preconceituoso está ancorado na expressão o estudo. Logo de início

essas expressões apresentam o assunto a que se refere a carta do leitor, além de

já oferecer pistas de qual será a ideia defendida na argumentação. O termo

Page 131: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

129

psicólogo Fernando Braga é retomado pela expressão psicólogo e esse

psicólogo. Esses termos evidenciam de quem se trata o interlocutor da carta,

nesse caso, o psicólogo por meio do seu estudo. Esses termos juntamente com a

apresentação da carta contribuem para identificar qual é o interlocutor e qual é o

objeto sobre o qual a leitora expressa a opinião. Explique como ocorre esse

processo no texto.

b) A leitora (produtora) identifica-se na carta usando a expressão eu e professora.

Essa apresentação da produtora também constitui um argumento, uma vez que

ela estabelece uma comparação de sua profissão com a do psicólogo em questão.

Explique como isso ocorre no texto.

c) O termo uma roupa que ancora as expressões motivo de invisibilidade ou

humilhação ancora ainda as expressões pessoa que veste uniforme, uniformizado

e o próprio. Elas contribuem para fundamentar a opinião da leitora. Qual é a

opinião da leitora? Como se constitui o argumento por meios dos referidos

termos.

d) A que termo se refere a expressão A importância da autoestima, da aceitação

própria, do valor pessoal. Qual a finalidade dessa referenciação no texto?

Page 132: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

130

ANEXO 4 – ENTREVISTA DA REVISTA VEJA

‘Amor doentio do pai matou o meu filho’, diz mãe

sobre tragédia4

Em entrevista a VEJA, Rosália Moura conta como o pai matou o seu filho

após tentar impedi-lo de participar de manifestações estudantis em

Goiânia

Por Thiago Bronzatto 20 nov 2016, 12h25 - Atualizado em 20 nov 2016, 19h12

Rosália Moura e seu filho Guilherme: a mãe acredita que o amor doentio do pai está na origem do crime

No feriado do dia 15 de novembro, um pai tentou impedir o seu filho de participar das

manifestações estudantis em Goiânia. Como não conseguiu, matou o rapaz e depois se

suicidou. A tragédia familiar foi acompanhada de perto pela delegada aposentada Rosália

de Moura, mãe do jovem universitário Guilherme Silva Neto, de 20 anos, como mostra

reportagem de VEJA desta semana. Enquanto mostrava o quarto do seu filho, Rosália

relembrava a relação conturbada de seu marido, Alexandre José da Silva Neto, 60 anos,

com o filho. “O pai era muito possessivo e tinha um amor doente pelo filho”, contou ela,

ainda sob o efeito de sedativos. Veja a seguir os principais trechos da entrevista de duas

horas concedida na última quinta-feira.

Por que o seu marido que deu a vida ao seu filho resolveu tirá-la, suicidando-se logo

em seguida?

O Alexandre era muito possessivo com o nosso filho. Quando o menino saía, ele ligava e

ficava mandando mensagens a cada dez minutos, perguntando onde ele estava. Na

verdade, ele tinha medo de perder o nosso único filho. O pai era muito possessivo e tinha

um amor doentio pelo filho. E foi esse amor doentio do pai que matou o meu filho.

4 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/brasil/amor-doentio-do-pai-matou-o-meu-filho-diz-mae-sobre-

tragedia/>. Acesso em: 28 nov. 2016.

Page 133: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

131

Como ocorreu a tragédia?

O Guilherme gostava de participar de manifestações, e o Alexandre se incomodava com

isso. Ele não aceitava a possibilidade de o menino ser preso pela polícia durante os

protestos nas escolas ocupadas. O Alexandre dizia para o Guilherme: “Pare com isso,

meu filho, a polícia vai te prender, e eu não vou suportar ver meu filho preso”. No feriado

do dia 15 de novembro, o Guilherme disse que iria para a manifestação. O Alexandre se

opôs e falou que o menino não entraria mais em casa. O Guilherme se revoltou e disse

que a casa era dele também e que o Alexandre não pagava as contas. O pai falou que iria

chamar a polícia. O Guilherme pegou o celular e disse que ele mesmo iria ligar para a

polícia. Então, o Alexandre tomou o celular da mão do menino e quebrou o aparelho,

partindo ao meio. Naquele momento, comecei a passar mal. Parece que a mãe sente a

tragédia com o filho, né? Então, o Guilherme disse para o pai dele: “Você conseguiu o

que queria. Fez a minha mãe passar mal”. Alexandre retrucou, dizendo que a culpa era do

Guilherme, porque ele que queria participar da manifestação, contrariando a sua vontade.

Então, o Alexandre saiu de casa. Pensei que ele ir para o shopping para espairecer. O

Guilherme foi para o seu quarto, onde ficou chorando e disse para mim: “Prefiro morrer a

viver desta forma, aprisionado pelo meu pai”.

O Guilherme acabou indo para a manifestação?

Sim, ele arrumou as coisas dele e disse que iria sair. Aí, perguntei se ele iria voltar tarde.

Ele me disse: “Eu vou lá, mas volto, mãe”. Eu estava preocupada, porque ele estava sem

celular. Aí, o Guilherme saiu. Pouco tempo depois, às 17h01, o pai dele me ligou e

perguntou se o menino tinha saído. Eu disse que sim. Ele desligou o telefone. Passou

pouco tempo e ouvi um barulho de tiro. Eu estava na sala com a minha mãe. Aí, me deu

um trem esquisito e desci do meu apartamento para a rua, correndo. Logo pensei: “Será

que esse homem é tão louco para matar o Guilherme?”. Quando eu estava correndo,

alguém comentou: “Foi o pai que matou o filho”. Aí, o meu mundo desabou. Cheguei na

esquina e vi o Alexandre deitado sobre o meu filho, ensanguentado. Eu não acreditava no

que estava vendo. Aí, gritei: “Meu, filho, meu filho”. O guarda me disse: “Já peguei o

pulso dele. Está morto”. Fiquei lá, sem saber o que fazer. “Gente, não acredito que esse

homem teve coragem de fazer isso”, pensei.

Em algum momento, a senhora suspeitou que o seu marido poderia chegar a esse

ponto de matar o seu filho? Ele fazia algum tipo de ameaça?

Algumas vezes, ele ameaçava o menino, dizendo: “Se você sair, vou atrás de você e te

mato”. Ele queria que o menino ficasse com ele. Aí, o Guilherme pensou em denunciar o

pai. Eu disse para esperar. Ameaça poderia dar cadeia. No fundo, no fundo, o Alexandre

não suportava a ideia de ver o seu filho preso pela polícia numa manifestação.

E como era a relação entre pai e filho antes da tragédia?

Uma vez, eles brigaram, e o Alexandre colocou o meu filho para fora de casa. Ele até

trocou as fechaduras das portas. O Guilherme ficou na casa de um colega durante dois

dias. Nesse período, o pai dele ficou doido. Ficou mal demais. Pensei que ele iria morrer.

Ficou desorientado, porque ele tinha ciúmes. Ele era possessivo, louco por aquele filho, e

queria o melhor para o menino. Mas o melhor dele não era o melhor para o meu filho. Aí,

quando o Guilherme decidiu voltar para a casa, o Alexandre o ficou esperando à tarde

inteira. Quando o menino chegou, Alexandre abriu a porta, abriu os braços e disse: “Meu

filho…”. Aí, o Guilherme interrompeu: “Não quero que você me abrace, não”. Os dois

Page 134: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

132

conversaram no quarto. Me partiu o coração quando o Alexandre se ajoelhou, pediu

perdão e falou: “Meu filho, não faz isso comigo, não. Você é o meu bem mais precioso.

Estou com a minha mãe velhinha, que pode ir embora a qualquer momento. Eu só tenho

você nesta vida. Eu te amo. Tenho medo de a polícia te prender”. Os dois fizeram as

pazes e foram viajar. Foi a última viagem que fizeram juntos.

A senhora cogitou se separar do seu marido?

Eu tinha medo de acontecer alguma coisa pior. Ele era tão apegado ao filho que poderia

se suicidar. Fui suportando essa situação, tentando contornar. Eu o conheço bem. A gente

estava junto há 22 anos. Ele não iria se conformar com a separação. Eu tinha medo. Se eu

largasse dele, o que aconteceria? Ele era uma pessoa muito fechada. Não tinha amigos.

Ele focou a vida dele só no filho.

O seu marido tinha problemas psicológicos? Ele tomava algum tipo de

medicamento?

Na minha opinião, o Alexandre nunca esteve bem com ele mesmo. Ele queria que a firma

dele desse certo, mas não deu. Ele tinha uma frustração. E isso o levava a dizer que ele

não conseguiu nada na vida. Numa determinada ocasião, Alexandre me falou que iria

sentar no túmulo do pai dele e se suicidar com um tiro na cabeça. Falei para ele ir a

psicólogos. Mas ele odiava psicólogos. Ele dizia que não precisava ir a psicólogos. Ele

dizia que precisava de dinheiro.

O seu marido estava passando por dificuldades financeiras?

Ele estava sem trabalho há um certo tempo. A firma dele de engenharia não estava sendo

contratada. E eu tinha que pagar as contas de casa. Isso o deixava deprimido.

Quando ele comprou a arma?

Ele tinha essa arma há um certo tempo. Essa arma era registrada. Às vezes, ele saía com

ela para se sentir seguro.

Hoje, refletindo sobre os fatos, o que a senhora mudaria?

Talvez o jeito do Alexandre. Ele era muito difícil. Tudo tinha que ser do jeito dele. Ele

dava opinião até no que o menino deveria vestir. Ele não gostava que o menino usasse

camisetas com estampas de rock. Não deixava usar. Mas o Guilherme usava escondido.

Além disso, Alexandre estava passando por um momento pessoal difícil. Ele não estava

achando emprego na área dele. O mercado estava ruim. Ele não tinha condições de pagar

nem as contas de telefone. Ele se sentia mal de ver pessoas menos preparadas que ele se

dando bem na vida. Tudo isso fez com que ele explodisse.

Page 135: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

133

ANEXO 5 – ATIVIDADES DE LEITURA REFERENTE À ENTREVISTA

Nome:____________________________________________ Série: ______ Turma:______

Questões que auxiliam na interpretação e compreensão da leitura da entrevista

1) De que trata a entrevista “‘Amor doentio do pai matou o meu filho’, diz mãe sobre

tragédia”?

2) Quais são as pessoas envolvidas na tragédia? Qual é a atuação de cada uma dessas

pessoas no desenvolvimento dos fatos?

3) Qual o nome do repórter que faz a entrevista? Qual a data em que os fatos ocorrem?

Qual a data da publicação da entrevista?

4) A mãe é a única sobrevivente do ato violento familiar. Identifique no texto todas as

palavras que ela usa para se referir ao marido. Considerando essas palavras, opine

sobre o que a mãe pensava do marido antes dele assassinar seu filho e depois de

assassiná-lo.

5) Identifique na entrevista as palavras com as quais a mãe do garoto se referia ao filho.

Na sua opinião, quais sentimentos são expressos em relação ao pai?

6) Leia os dois trechos a seguir (retirados da entrevista):

Como ocorreu a tragédia?

O Guilherme gostava de participar de manifestações, e o Alexandre se

incomodava com isso. Ele não aceitava a possibilidade de o menino ser preso pela

polícia durante os protestos nas escolas ocupadas. O Alexandre dizia para o

Guilherme: “Pare com isso, meu filho, a polícia vai te prender, e eu não vou

suportar ver meu filho preso”. No feriado do dia 15 de novembro, o Guilherme

disse que iria para a manifestação. O Alexandre se opôs e falou que o menino não

entraria mais em casa. O Guilherme se revoltou e disse que a casa era dele

também e que o Alexandre não pagava as contas. O pai falou que iria chamar a

polícia. O Guilherme pegou o celular e disse que ele mesmo iria ligar para a

polícia. Então, o Alexandre tomou o celular da mão do menino e quebrou o

aparelho, partindo ao meio. Naquele momento, comecei a passar mal. Parece que

a mãe sente a tragédia com o filho, né? Então, o Guilherme disse para o pai dele:

“Você conseguiu o que queria. Fez a minha mãe passar mal”. Alexandre retrucou,

dizendo que a culpa era do Guilherme, porque ele que queria participar da

manifestação, contrariando a sua vontade. Então, o Alexandre saiu de casa. Pensei

que ele ir para o shopping para espairecer. O Guilherme foi para o seu quarto,

onde ficou chorando e disse para mim: “Prefiro morrer a viver desta forma,

aprisionado pelo meu pai”.

Page 136: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

134

O Guilherme acabou indo para a manifestação?

Sim, ele arrumou as coisas dele e disse que iria sair. Aí, perguntei se ele iria voltar

tarde. Ele me disse: “Eu vou lá, mas volto, mãe”. Eu estava preocupada, porque

ele estava sem celular. Aí, o Guilherme saiu. Pouco tempo depois, às 17h01, o pai

dele me ligou e perguntou se o menino tinha saído. Eu disse que sim. Ele desligou

o telefone. Passou pouco tempo e ouvi um barulho de tiro. Eu estava na sala com

a minha mãe. Aí, me deu um trem esquisito e desci do meu apartamento para a

rua, correndo. Logo pensei: “Será que esse homem é tão louco para matar o

Guilherme?”. Quando eu estava correndo, alguém comentou: “Foi o pai que

matou o filho”. Aí, o meu mundo desabou. Cheguei na esquina e vi o Alexandre

deitado sobre o meu filho, ensanguentado. Eu não acreditava no que estava vendo.

Aí, gritei: “Meu, filho, meu filho”. O guarda me disse: “Já peguei o pulso dele.

Está morto”. Fiquei lá, sem saber o que fazer. “Gente, não acredito que esse

homem teve coragem de fazer isso”, pensei.

Considerando a sequência dos fatos descritos pela mãe, é possível considerar que o pai do

rapaz matou o filho num ato de extrema emoção que fez com que atirasse no filho sem

pensar? Ou ele teve tempo para mudar de ideia, apesar do seu abalado estado emocional, e

agiu com premeditação? Explique sua resposta com base em evidências apontadas pelo

texto.

7) Considere o trecho a seguir:

Em algum momento, a senhora suspeitou que o seu marido poderia chegar a

esse ponto de matar o seu filho? Ele fazia algum tipo de ameaça?

Algumas vezes, ele ameaçava o menino, dizendo: “Se você sair, vou atrás de você

e te mato”. Ele queria que o menino ficasse com ele. Aí, o Guilherme pensou em

denunciar o pai. Eu disse para esperar. Ameaça poderia dar cadeia. No fundo, no

fundo, o Alexandre não suportava a ideia de ver o seu filho preso pela polícia

numa manifestação.

A senhora cogitou se separar do seu marido?

Eu tinha medo de acontecer alguma coisa pior. Ele era tão apegado ao filho que

poderia se suicidar. Fui suportando essa situação, tentando contornar. Eu o

conheço bem. A gente estava junto há 22 anos. Ele não iria se conformar com a

separação. Eu tinha medo. Se eu largasse dele, o que aconteceria? Ele era uma

pessoa muito fechada. Não tinha amigos. Ele focou a vida dele só no filho.

Levando em conta as respostas que a mãe dá a essas duas questões, é possível inferir que a

mãe poderia ter evitado a tragédia separando-se do marido? Justifique sua resposta.

8) Leia os trechos a seguir:

Quando ele comprou a arma? Ele tinha essa arma há um certo tempo. Essa arma era registrada. Às vezes, ele

saía com ela para se sentir seguro.

Page 137: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

135

O seu marido tinha problemas psicológicos? Ele tomava algum tipo de

medicamento?

Na minha opinião, o Alexandre nunca esteve bem com ele mesmo. Ele queria que

a firma dele desse certo, mas não deu. Ele tinha uma frustração. E isso o levava a

dizer que ele não conseguiu nada na vida. Numa determinada ocasião, Alexandre

me falou que iria sentar no túmulo do pai dele e se suicidar com um tiro na

cabeça. Falei para ele ir a psicólogos. Mas ele odiava psicólogos. Ele dizia que

não precisava ir a psicólogos. Ele dizia que precisava de dinheiro.

Os dois trechos anteriores da entrevista apontam para um grave perigo, ou seja, o uso de

armas de fogo por pessoas emocionalmente desequilibradas. Considerando as palavras

da entrevistada e mais o que você conhece sobre a regras e leis para o porte e uso de

armas de fogo, qual a sua opinião sobre o uso de armas pelo pai autor da tragédia?

9) Quanto a publicação da entrevista, como o repórter tratou os fatos? Ele procurou

respeitar a mãe do rapaz para não deixá-la ainda mais sensibilizada? Ele escolheu

uma foto de mãe e filho para ilustrar a notícia. Qual seria a possível intenção do

entrevistador, em relação ao público e à família das vítimas, ao escolher justamente

essa foto?

10) É importante considerar que Rosália era ex-delegada, já aposentada, e que o marido

morto, embora não estivesse trabalhando, era engenheiro e ex-empresário. O filho

morto, por sua vez, era estudante universitário. Essa família pertencia à considerada

classe média em nossa sociedade. Será que se a família que tivesse sofrido essa

tragédia pertencesse à grande massa que vive abaixo do nível da pobreza, essa

entrevista seria realizada e publicada numa revista tão bem-conceituada socialmente

como é a revista Veja? Explique sua resposta.

Page 138: Transposição didática: Uma proposta de ensino da ...

136

ANEXO 6 – ATIVIDADE DE PRODUÇÃO TEXTUAL 4

Nome: ___________________________________________________ Série: ________

1) Com base na entrevista “‘Amor doentio do pai matou o meu filho’, diz mãe sobre

tragédia”, elabore uma carta do leitor considerando para a composição dessa carta o que

você compreendeu sobre referenciação e seus possíveis efeitos de sentido na escrita da

carta do leitor. Leve em conta também a leitura e a discussão que fizemos sobre a entrevista,

bem como o questionário que respondeu sobre os aspectos da referida entrevista.

• Não se esqueça de identificar o local e data de onde escreve.

• Indique onde em leu a entrevista (revista Veja).

• Dê as suas saudações ao destinatário da carta.

• Identifique-se, ao final da carta, colocando seu nome e sua idade.