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idar com a morte não é uma tarefa fácil, mas quando ela está presente nas histórias em quadrinhos, tor- na-se até divertida. Neste univer- so, nem mesmo os personagens conseguem escapar da “iniludível”. Super-ho- mem e Robin já tiveram suas carreiras encurtadas nos gibis. A novidade é quando a morte surge não como o fim, mas como um personagem com ações e falas muito próprias, como por exemplo, quando ela negocia mais tempo de vida com suas vítimas. As encarnações são diversas, algumas até bem humoradas e cheias de amigos. Um exemplo disso é a Dona Morte, personagem da Turma do Penadinho, criada em 1960, pelo desenhista Maurício de Souza. Vestida de capuz preto e com uma foice na mão, ela se encarrega de perseguir os que estão presentes na sua lista de vítimas. No entanto, apesar da fama assustadora, a perso- nagem é sensível, transmitindo mensagens descon- traídas às crianças e aos adultos, sendo capaz até de se apaixonar. Para Maurício de Souza, as ori- gens da sua criação são quase tão extensas quanto as lendas sobre a morte. – A série do Penadinho, foi criada para desmisti- ficar os medos e pavores que cercaram a nossa infância. Sou do tempo em que minha avó nos pas- sava a certeza da existência das almas penadas em v e rossímeis histórias. E ainda me lembro dos arrepios e do medo da escuridão que sentia. Daí resolvi criar a turma do Penadinho. Quanto à Dona Morte, até que gostaria de pensar numa morte que chega com uma marquinha no caderno dizendo que chegou a nossa hora. Seria mais “humano” do Julho/Dezembro 2004 62 AMANDA BOAVENTURA, PEDRO HENRIQUE TORRE, PRISCILA FAGUNDES E TIAGO CORDEIRO Traços da morte Carismáticos ou sedutores, personagens encarnam a morte e levam leitores à reflexão A morte de Robin: um caso raro de morte definitiva © DC Comics

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idar com a morte não é uma tare f afácil, mas quando ela está pre s e n t e

nas histórias em quadrinhos, tor-na-se até divertida. Neste univer-so, nem mesmo os personagens

conseguem escapar da “iniludível”. Super- h o-mem e Robin já tiveram suas carreiras encurt a d a snos gibis. A novidade é quando a morte surge nãocomo o fim, mas como um personagem comações e falas muito próprias, como por exemplo,quando ela negocia mais tempo de vida com suasv í t i m a s .

As encarnações são diversas, algumas até bemhumoradas e cheias de amigos. Um exemplo dissoé a Dona Morte, personagem da Tu rma doPenadinho, criada em 1960, pelo desenhistaMaurício de Souza. Vestida de capuz preto e comuma foice na mão, ela se encarrega de perseguir osque estão presentes na sua lista de vítimas. Noentanto, apesar da fama assustadora, a perso-nagem é sensível, transmitindo mensagens descon-traídas às crianças e aos adultos, sendo capaz atéde se apaixonar. Para Maurício de Souza, as ori-gens da sua criação são quase tão extensas quantoas lendas sobre a morte.

– A série do Penadinho, foi criada para desmisti-ficar os medos e pavores que cercaram a nossainfância. Sou do tempo em que minha avó nos pas-sava a certeza da existência das almas penadas emv e rossímeis histórias. E ainda me lembro dosarrepios e do medo da escuridão que sentia. Daíresolvi criar a turma do Penadinho. Quanto à DonaMorte, até que gostaria de pensar numa morte quechega com uma marquinha no caderno dizendoque chegou a nossa hora. Seria mais “humano” do

Julho/Dezembro 200462

AMANDA BOAVENTURA, PEDRO HENRIQUE TORRE, PRISCILA FAGUNDES E TIAGO CORDEIRO

Traços da mort eCarismáticos ou sedutores, personagens encarnam

a morte e levam leitores à reflexão

A morte de Robin: um caso raro de morte definitiva

© DC Comics

que acontece. Nossa proposta é que a morte, ou aDona Morte, não seja levada tão a sério, enquantonão a encontramos.

Já para o professor de história da arte da PUC-Rio,Alfredo Grieco, a personagem apresenta feminili-dade e até mesmo sedução para o público infantil,diferente de personagens para outras idades.

– Em revista para criança, não poderia ser deoutra forma. Se bem que criança ainda não temmedo da morte, tem medo é de bicho papão, dacuca, do lobisomem. O que não é o caso da Morteem Neil Gaiman, história em quadrinhos que passauma atmosfera de terror gótico inglês, com visualque lembra as novelas góticas de Sheridan Le Fanu,Walpole, e M a ry Shelley, a criadora de F r a n-kenstein. A faixa etária que curte Sandman já gostade se assustar um pouco – revela.

Para a psicóloga Dulce Miriam Raffide, contudo,a morte personificada na história em quadrinhosproporciona uma forma mais leve de lidar comuma realidade que vem, geralmente, na forma demedo ou dor e que está presente desde a infância.

– Os quadrinhos para crianças de aproximada-mente sete anos são a possibilidade de um contatocom uma realidade que não se compreende, apesarde se conviver com ela. Seja através da perda de umente querido, um vizinho ou por algo que vê na TV.A partir daí até à adolescência, a noção de mortevai sendo absorvida ou compreendida gradativa-mente, e continua na idade adulta – ressalta apsicóloga.

Na fase adulta as tentativas de explicação dofim da vida continuam com ações nas corre n t e scientíficas, filosóficas e re l i g i o s a s .Séculos atrás, na Renascença, Adança da mort e, com ilustraçõesdo artista Holbein, era um livrobem vendido que re p resentou am o rte como um esqueleto dan-çante, arrebatador de ricos ep o b res, crianças e velhos. Séculosdepois, o artista mexicano JoséGuadalupe Posada (1851-1913)também desenharia esqueletos.Na maior parte do tempo, a re-p resentação gráfica da morte nãop rocura ser extremamente re a-

lista. Talvez para que os leitores não pensem de-mais no que ela re p re s e n t a.

Na editora Marvel Comics, direcionada para opúblico jovem, o visual clássico daM o rte, como uma caveira com véue s c u ro e foice, foi assumido semp roblemas em sagas como D e s a f i oi n f i n i t o, onde a criatura tambéms u rgia como uma mulher bela einsensível para o alienígena e ne-c romaníaco Thanos. O leitor Otá-vio Kleber, de 30 anos, diretor dea rte da Imagem Comunicação, emCuiabá, acredita que o visual es-t e reotipado e a falta de singulari-dade da personagem se re f e rem aofato dela não ter se transform a d o

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Na editora MarvelComics, direcionada

para o público jovem,o visual clássico daMorte, como umacaveira com véuescuro e foice, foi

assumido sem problemas

Crianças não temem a Dona Morte

© Maurício de Souza

num estilo próprio para uma série de histórias, masapenas aparecer limitando-se à sua clássica funçãode recolher as almas dos mortais. Nada mais lógico,já que para muitos adolescentes filmes de terro rpodem ser tão divertidos e irre a i squanto a clássica imagem daM o rt e .

Mesmo com leitores que costu-mam comprar quase todos os gibisda banca como Daniel Karrer, estu-dante de engenharia, de 22 anos,que coleciona revistas há 11 e temum acervo com mais de 500 exem-plares, o tipo de leitor ainda é fun-damental para a criação do per-sonagem. Entre tantas razões para as diferençasestéticas, o público-alvo é sempre a maior referên-cia. Em 1993, a editora DC Comics criou a linhaVertigo com o objetivo de atingir um público adulto

de leitores, que não estava mais tão interessado nashistórias de super-heróis, mais voltadas para opúblico jovem. O roteirista inglês Neil Gaiman foi oresponsável por um dos maiores sucessos da edito-ra: o personagem Sandman, envolto por referênciasmitológicas e literárias de um ser encantado quesoprava areia mágica nos olhos das pessoas paraelas dormirem ou terem pesadelos. Sandman é ca-racterizado com uma pele pálida e cabelos negrosarrepiados e conquistou milhares de leitores pelomundo. Ele é um dos Perpétuos, entidades que re-presentam forças máximas do universo, como seusirmãos Destino, Desejo, Desespero, Delírio, Destrui-ção e, claro, a Morte.

Apesar de representarem poderes tão elevados, osucesso do universo da Linha Vertigo não está nasenormes capacidades de seus protagonistas. A estu-dante de medicina veterinária Joana Ikeda, de 19anos, lê histórias em quadrinhos desde criança e hásete anos conhece o universo dos personagens adul-tos criados por Gaiman. Segundo Joana, os leitoresde quadrinhos adultos buscam personagens maiselaborados, diferenciados das figuras comuns daMorte.

– Assim como os seus irmãos, a Morte é represen-tada como um ser perfeitamente aceitável, inclu-sive com defeitos e personalidade humanas. Acre-dito que esses traços coerentes instigam o leitoradulto – disse Joana.

Para o professor aposentado da UniversidadeFederal Fluminense (UFF) Moaci Cyrne, especialistaem Histórias em Quadrinhos, a razão desse fascínio

por um personagem que represen-ta algo tão amedrontador não édifícil de se explicar.

– É mais fácil lidar com a mort ecomo algo simbólico do quecomo sua realidade. Essa re l a ç ã oé bem recebida exatamentep o rque traz algo sombrio e mór-bido, mas ao mesmo tempo beloe fascinante. E vem com todoaquele mistério do que existe de-

pois da morte? – re s u m e .E se as representações da morte, nos quadrinhos,

são variadas e diferentes, talvez isso seja, simples-mente, porque re p resentem a mesma função.

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“É mais fácil lidarcom a morte como

algo simbólico do quecomo sua realidade”

Moaci Cyrne

Morte de Gaiman: personagem humana e apaixonante

© DC Comics

Grieco vê nas coincidências históricas a certezadesta afirmação.

– O historiador francês Philippe Ariés aponta emseus livros sobre a história da morte, da idademédia aos nosso dias, uma tipologia de váriasm o rtes. Cada qual re p resentando uma re l a ç ã odiferente com o homem: ele fala da morte romanti-zada, da morte selvagem, da morte domesticada.Talvez o grafismo da morte seja uma tentativa defingir que há diálogo onde, certamente, não existenenhum. Na hora da morte não tem papo, talvezpor isso mesmo ela venha sempre acompanhada,quer de muito bom humor, como em Maurício deSouza, ou em uma atmosfera gótico-poética, comono “Sandman”.

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Para qualquer leitor que co-meçou a comprar gibis nos anos1990, a morte de personagens nashistórias em quadrinhos já é algocomum. Depois da década de1980 em que personagens comoBatman e X-men passaram poruma total reformulação que mo-dificou seus estilos e traços, amoda foi matar para revitalizar opersonagem.

Em 1992, a DC Comics assustouvários fãs de histórias em qua-drinhos ao afirmar que o Super-homem, o maior e mais famososuper-herói de todos os tempos,morreria. Contudo, para outrosnão passava de um jogo de cena.E era. Meses depois na saga “OR e t o rno do Super-homem”, ohomem de aço ressuscitaria. Issoconfirmaria que se o assassinatode personagens era uma formade reavivar uma marca adorme-cida pelo tempo e pela queda deleitores, a sua ressurreição pode-ria funcionar tão bem quanto.Não apenas assassinatos nãovingam, mas a ação do temponão age sobre os personagens.A l f redo Grieco lembra que amaior parte dos heróis per-manece intocada pelo tempo eque a ressurreição de persona-

gens não é privilégio das históriasem quadrinhos.

– Sir Arthur Conan Doyle, cri-ador de Sherlock Holmes, nãoconseguiu “matar” seu mais fa-m o s o personagem. Milhares deleitores escreveram e Conan Doy-le sentiu-se obrigado a ressuscitaro grande detetive. O mesmo a-contece nos quadrinhos. Quandoalgum super-herói morre, ou secasa, é sempre mais uma jogadade marketing do que uma soluçãoespontânea e criativa do roteiro.O Super-homem, um dos que jácasou e já morreu, acabouvoltando, como se nada tivesseacontecido.

Mesmo assim, a seqüência“morre e ressuscita” não é umatendência absoluta. Quatro anosantes do último filho de Kriptonp a rtir desta para melhor (edepois voltar), Batman perderiaseu segundo parceiro, Robin (nosquadrinhos o primeiro Robin,Dick Grayson, abandonou aparceria para se tornar o heróiAsa Noturna e, atualmente, oC a v a l e i ro das Trevas re c e b eajuda do jovem Tim Drake) ejamais o veria novamente. Nasaga “A Morte de Robin”, o Co-ringa assassina o alter ego de Ja-

son Todd e produziu, assim, umadas mais fortes cenas vistas nosgibis.

Para Moaci Cyrne, a conjunturaera completamente diferente nosquadrinhos dos anos dourados.

– Nos anos 1940 e 1950 não ha-via morte de personagens. Só melembro de um super-herói quemorreu, mas ele era tão insignifi-cante que nem sei mais o nomedele. Nem mesmo os vilões pode-riam morrer, imagine se o Corin-ga morresse? O Batman não seriahoje o que ele é – afirma.

De qualquer forma, todo essedescrédito com a morte não pas-sou impune. A fórmula hoje emdia não convence ninguém, eleitor algum acredita que edi-toras tradicionais exterm i n a r ã ouma poderosa marca em nomede uma boa história. No últimoano Joe Arad, editor-chefe daM a rvel Comics afirmou que ap a rtir de então os heróis da edi-tora não ressuscitariam mais.Mesmo assim, algumas históriasindicam que o personagem Co-lossus morto há alguns anos,deve re t o rn a r. Para os quadri-nhos a morte pode até ser per-sonagem, mas nunca uma bar-re i r a.

Para Alfredo Grieco matar personagens sempre foi difícil

A morte de personagens Frank Miller

Pedro Henrique Torre