Tratado Do Amor de Deus I

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S. FRANCISCO DE SALES

T R ATA D O D O A M O R D E DEUSTRADUO SOBRE A EDIO CRT ICA PUBLICADA PELAS

RELIGIOSAS DA VISITAO D'ANNECY

REVISTA PELO

P.E AUGUSTO DURO ALVES

SEGUNDA EDIO

1950 LIVRARIA APOSTOLADO DA IMPRENSAP O E T O

Imprimi potesi. Olysipone, 5 iulii 1950. Josephus Leite, 3. J. Vicepiaep, Prov. Lusil.

Pode imprimir-se. Porto, 7 da Julho de 1950.Mons. Pereira Lopes:Vigrio Geral.

IMPRESSA MODERNA, WD.E

. da Fbn^ suporto

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ORAO DEDICATRIA

ClANTSSIMA Me de Deus, vaso espiritual, rainha do ^ amor divino, sois a mais amvel, a mais amante e a mais amada de todas as criaturas. O Senhor, desde toda a eternidade, ps em vs as suas complacncias, destinando o vosso purssimo Corao ao santo amor, para que um dia amasseis o seu Filho nico, como me, como Ele o amou eternamente como Pai. O Jesus, a quem posso melhor dedicar as palavras do vosso amor, do que ao Corao ama-bilssinio da querida da vossa alma? Mas, Me gloriosa, como contemplar a vossa Majestade sem ver Aquele que vosso Filho quis tantas vezes, por amor de vs, honrar com o ttulo de Pai, tendo-vos ligado a ele, para ser o vosso auxiliar e cooperador no cargo da direco e da educao da sua divina infncia? Grande S. Jos, Esposo amadssimo da Me do Bem amado, ohl quantas vezes tivestes em vossos braos o Amor do Cu e da terra; quantas vezes, abrasado pelos ternos amplexos e os doces sculos deste divino Menino, sentistes a vossa alma enternecer-se de amor quando o ouveis carinhosamente dizer--vos ( e com que suavidade, meu Deus!) que reis o seu grande amigo e o seu querido Pai! Assim como as almpadas do templo de Jerusalm repousavam sobre flores de aucenas de ouro ( 1), tambm eu, 6 Maria e Jos, par sem igual, lrios sagrados de incompa-rvel formosura, entre os quais o Bem amado se delicia (2) e apascenta todos os seus amantes!, se alguma esperana tenho de que este escrito de amor possa esclarecer e inflamar

(i) III Eeis, VII, 49.^ ( 2 ) Cant., VI, 2.

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os meus irmos, filhos da luz onde 0 colocarei melhor do que entre os vossos lrios ? lrios que to soberanamente deleitaram o meu Deus, Sol de Justia, claro de luz eterna (2), que neles ps as complacncias do inefvel amor do seu Corao para connosco! O Me amadssima do Bem amado! O Esposo amadssimo da Bem amada! prostrado no po da terra, ante os vossos ps que tantas vezes conduziram o meu Salvador, ofereo, dedico e consagro este pequeno trabalho de amor imensa grandeza da vossa dileco. Suplico-vos pelo Corao do vosso amabilssimo Jesus, Rei dos coraes e que os vossos adoram, abrasai minha alma e as de todos que lerem este escrito no Esprito Santo, para que imolemos de hoje em diante em holocausto todos os nossos afectos sua divina Bondade, para viver, morrer e reviver para sempre nas chamas deste celeste fogo que o vosso Filho e Senhor nosso tanto desejou acender nos coraes ( 5 ) no cessando de trabalhar e de suspirar para este fim at morte e morte de cruz (4).

(i) Luc, XVI, 8.-{2) Sab., VII, 25, 26.-(3) Luc.XII, 49.-(4) Fi-lip-, II, 8,

N O TA

A presente verso portuguesa do Tratado do Amor de Deus de S, Francisco de Sales feita sobre a traduo publicada em 1908 no Porto, cuidadosamente revista e cotejada com a edio francesa de 1894 (Annecy), a qual, por sua vez, reproduz o texto da edio princeps de 1616, a nica de que o Autor tem a responsabilidade. O original autgrafo desta Obra encontra-se disseminado por cadernos e folhas soltas manuscritas, que acusam numerosas variantes, desde os manuscritos primitivos at redac-o definitiva. Isto explica uma ou outra divergncia que possa ser notada entre a presente verso e o texto francs, que porventura venha a cair nas mos dos leitores. P,E AUGUSTO DURO ALVES.

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V I V A "j- J E S U S

PREFCIO

ESPRITO Santo ensina que os lbios da divina Esposa, isto , da Igreja, se assemelham a ama fita de escar-late ou ao favo que destila doura ('), para que todos saibam que a doutrina que ela anuncia se resume no sagrado amor, A Igreja, banhada pelo sangue de Jesus, mais viva e brilhante que o escarlate, mais suave que o mel, por causa da doura do Bem amado que a inunda de delcias (2), Por isso, este celeste Esposo, ao comear a publicao da sua Lei, fez descer sobre os discpulos seus pregoeiros, grande nmero de lnguas de fogo, mostrando assim que o Evangelho era destinado a abrasar os coraes, E um quadro admirvel contemplar as pombas, to belas, expostas aos raios do sol. Vede: mudam de cor, segundo as diversas posies em que as examinamos, porque as suas penas so to sensveis luz, que o sol dardejando-as forma uma surpreendente variedade de matizes; cores to agradveis, que excedem em formosura o esmalte das mais preciosas pedrarias; to deslumbrantes e to delicadamente douradas que o seu ouro as toma mais vivamente coloridas, por isso que o Profeta-Rei diz aos Israelitas: (3).Seja embora a vossa face macerada pela dor, Como as asas da pombinha d'oravante se h-de ver, Quando aos raios do sol expostas, variando a suacor. Ora de prata, ora de ouro parecem as penas ser. t1) Cant,, IV, 3, 11(2) Caat, VII, 5.-(S) Ps., LXVII, 14.

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Na verdade, a Igreja tem uma rica variedade de instrues, sermes, tratados e livros piedosos, todos belos e agradveis porque o Sol da Justia mistura adrairvelmente os raios da sua divina Sabedoria com as lnguas dos Pastores, que so as suas penas, e com suas penas que, por vezes, fazem tambm de lnguas, e so a rica plumagem desta pomba mstica Contudo por entre a diversidade de cores da doutrina, que a Igreja publica, descobre-se por toda a parte o precioso ouro da santa dileco, iluminando com seu incomparvel brilho toda a cincia dos Santos e erguendo-a acima de qualquer outra cincia. Tudo na Igreja procede do amor, radica no amor, tende ao amor e vive do amor, Assim como do sol provm toda a claridade do dia, embora digamos usualmente que o sol no alurnia seno quando dardeja seus raios a descoberto, assim tambm, ainda que toda a doutrina crist provenha do amor sagrado, s chamamos Tratado de amor divino quela parte da teologia que se refere origem, natureza, s propriedades e s operaes deste amor, Muitos autores tm admirvelmente tratado este assunto, sobre tudo os antigos Padres. Porque amavam a Deus, falavam divinamente do seu amor. Como bom ouvir falar das coisas do Cu a ura S. Paulo, que as aprendeu no prprio Cu! (-) Como agradvel ver almas alimentadas no seio da dileco escreverem da sua santa suavidade! Por isso mesmo, entre os escolsticos, os que mais e melhor discorreram sobre esta matria, mais eminentes foram em piedade. S. Toms deixou-nos um tratado digno de S. Toms; S. Boa ventura e o beato Dionsio Cartuxo escreveram vrios, por diversos ttulos, excelentes. Quanto a Joo de Gerson, chanceler da Universidade de Paris, Sixto Sienense fala dele desta sorte: To dignamente discorreu sobre as cinqenta propriedades do amor divino, recolhidas do Cntico dos Cnticos, que parece s ele ter dado conta dos afectos do amor de Deus , Mas, para que se saiba que esta espcie de escritos procede mais almas devotas do que de (i) Ps., XLIV, 2. (2) II Cor., XII, 4. inteligncias ilustradas, o Esprito Santo quis que muitas mulheres operassem maravilhas neste captulo. Quem jamais exprimiu melhor as celestes paixes, do amor sagrado do que Santa Catarina de Gnova, Santa ngela de Foligno, Santa Catarina de Sena? Nestes nossos dias, e sobre esta matria, muitos escreveram, cujos livros no tive ocasio de ler, seno pela rama, tanto quanto se requeria para ver se este teria ainda lugar. 0 P.e Lus de Granada, esse grande doutor da piedade, incluiu no seu Memorial um Tratado do amor de Deus, que basta ser de to bom autor para merecer recomendao. Diogo Estrela, da Ordem de S. Francisco, escreveu um outro, grandemente afectivo, e til para a orao. Cristvo da Fonseca, religioso Agostinho, publicou um ainda maior, em que diz muito belas coisas. 0 P. e Lus Richome, jesuta, tambm escreveu um livro intitulado Arte de amar a Deus pelas criaturas, e este autor to amvel na sua pessoa e nos seus escritos que no pode duvidar-se de que o seja mais ainda, falando do prprio amor, de

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O P.e Joo de Jesus Maria, da Ordem dos Carmelitas descalos, comps tambm um livrinho que tem igualmente o ttulo de Arte de amar a Deus e muito apreciado. Tambm o grande e clebre Cardeal Belarmino deu h pouco publicidade um pequeno livro intitulado Escada para subir at Deus pelas criaturas, que no pode deixar de ser admirvel, saindo daquela sapientssima mo e devotssima alma, que tanto e to doutamente escreveu para bem da Igreja, Nada direi do Parentico, dessa torrente de eloqncia que corre por toda a Frana em numerosos e variados sermes e belos escritos. A estreita consanginidade espiritual que minha alma contraiu cora a sua, quando, por imposio de minhas mos recebeu o caracter episcopal, para felicidade da diocese de Belley e honra da Igreja, alm de mil laos de sincera e recproca amizade, no permitem que eu fale, sem me tornar suspeito, de suas obras, entre as quais o Parentico do Amor divino foi um dos principais jorros da ine-gualvel torrente espiritual, que todos nele admiramos. H ainda o grande e magnfico Palcio que o Rev. P.c Loureno de Paris, da Ordem dos Capuchinhos, levantou

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em honra do amor divino, e que, uma vez acabado, ser um curso completo da cincia de bem amar. Finalmente, a bem-aventurada Teresa de Jesus escreveu to bem das sagradas moes do amor em todos os livros que nos deixou, que nos encanta ver tanta eloqncia em to grande humildade, tanta energia de esprito em tanta simplicidade ; a sua sapientssima ignorncia faz parecer ignorantssima a cincia de muitos letrados, que, cansados de tanto estudo, sofrem a vergonha de no entenderem o que ela escreveu, com tanta felicidade, acerca da prtica do amor divino, Assim Deus levanta o trono do seu poder sobre o pedestal da nossa fraqueza, servindo-se dos fracos para confundir S fortes (1), Este tratado que te apresento, meu caro leitor, est bem longe de todos esses excelentes livros, nem espera poder alcan-los ; porm confio tanto na proteco dos dois Amantes celestes a quem o dedico, que, espero, poder prestar-te ainda algum servio. Neste, deparars com muitas consideraes que no te seria fcil encontrar noutros livros; como tambm encontrars noutros, muitas boas coisas que no esto expostas neste, 0 meu desgnio muito especial. Eu tenho em vista apresentar simples e singelamente, sem arte e ainda mais sem artifcio, a histria do nascimento, do progresso, da decadncia, das operaes, propriedades, vantagens e excelncias do amor divino, Se algumas outras coisas aqui encontrares, so meras excrescncas que quase impossvel evitar, quando se escreve, como eu, entre muitas distraces e interrupes, Quero crer todavia que nada ficar sem alguma utilidade. A natureza que to sbia obrera, para produzir uvas cria ao mesmo tempo, por prudente inadvertncia, to grande nmero de parras e de rebentos, que poucas vinhas h que, na estao competente, no precisem de ser desfolhadas e esladroadas. Tratam-se muitas vezes os escritores com excessiva rudeza ; proferem-se contra eles juzos precipitados, e a maior parte das vezes mais impertinentes, do que a ousadia praticada por eles publicando os seus escritos.(i) I Corint,, 1, 27,

http://alexandriacatolica.blogspot.comUm juzo precipitado pe sempre em grande risco a conscincia dos juizes e a inocncia dos acusados : se muitos escrevem nsciamente, muitos censuram sem razo, A benevolncia dos leitores torna suave e til a leitura, Para que sejas favo rvel, meu caro leitor, quero explicar-te alguns pontos, que, sem estas reflexes, poderiam indispr-te comigo. Alguns notaro, talvez, que eu disse demais e que no era necessrio ir at raiz do assunto; porm, eu penso que o divino amor uma planta semelhante que ns chamamos anglica cuja raiz to odorfera e salutar, como o tronco e as folhas. Os quatro primeiros livros, e alguns captulos mesmo dos outros, poderiam ser

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facilmente omitidos ao arbtrio das almas que no procuram seno a prtica da santa dileco; mas, tudo isto lhes ser muito til, se o lerem devotamente, Muitas outras pessoas reprovariam o no ter aqui apresentado tudo o que respeita ao Tratado do amor de Deus. Nisto tive em considerao a ndole dos espritos deste sculo, e assim o devia fazer: porque importa muito no perder de vista a poca em que se escreve. Cito algumas vezes a Sagrada Escritura com termos diferentes dos da edio vulgar, Meu caro leitor, no me faas por isso a injustia de julgar que quero afastar-me desta edio; no, mil vezes no, porque sei que o Esprito Santo a autorizou pelo sagrado Concilio de Trento, e que por isso devemos todos aceit-la. Emprego as outras verses unicamente em servio desta, e quando elas explicam e confirmam o seu verdadeiro sentido. Por exemplo, o que o Esposo celeste diz sua Esposa: Tu feriste o meu corao (2), perfeitamente esclarecido pela outra verso ( 3): Ta me roubaste o corao, ou Tu atraiste e arrebataste o meu corao. O que Nosso Senhor diz (4): Bem-aventurados os pobres de esprito, aclarado pela verso grega; Bem1) Angica-arcanglica, planta muito estimada pelas suas propriedades medicinais e pelo aroma.(2) Cant., IV, 9.{3) Verso dos 70 intrpretes, ou grega.{*) Mat., V, 3.

(Nota do tradutor).

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-aveturados os mendigos de esprito. Assim nos outros textos. Cito muitas vezes os Salmos em verso, com o fim de recriar o teu esprito e pela facilidade que tive de o fazer, servindo-me da excelente traduo de Filipe (Des-Portes), abade de Tyron ( l), do qual contudo me afastei algumas vezes, mas no por me julgar capaz de fazer versos melhores do que os deste clebre poeta, pois seria ousadia inqualificvel da minha parte, se, no tendo nunca pensado sequer em tal forma literria, presumisse escrev-los numa idade e condio que me obrigaria a afastar-me desse campo, se nele alguma vez tivesse entrado. Em certas passagens que poderiam oferecer diversos sentidos no segui os seus versos por no querer seguir o seu sentido. Assim no Sal. CXXXII ele traduziu uma palavra latina por franjas do vestido e eu entendo que deve ser gola; por isso traduzi a meu modo. ' No digo coisa alguma que no tivesse aprendido dos outros, mas ser-rae-ia impossvel recordar-me de quem recebi cada coisa em particular. Afirmo, porm, que se tivesse extrado de qualquer autor trechos importantes e dignos de ateno, a minha conscincia me impunha o dever de prestar o louvor que merecesse. Para que no haja dvidas sobre a minha sinceridade, advirto que o captulo XIII do stimo Livro, tirado de um sermo que preguei em Paris, em St. Jean en Greve, no dia de Assuno de Nossa Senhora, em 1602. Nem sempre me cingi a um mtodo rigoroso na seqncia dos captulos; contudo com alguma ateno achars facilmente os ns que os ligam. Nisto tive todo o cuidado de poupar o meu tempo e a tua pacincia. Quando publiquei a Introduo vida devota, o Senhor Arcebispo de Viena, Pedro de Villars, fez-me a fineza de me escrever em termos to encomisicos para este optsculo e para mim, que nunca ousarei revel-los. Exortava-me a aplicar, quanto me fosse possvel, as horas vagas a este gnero de trabalho, e entre muitos e(i) Des-Portes (1546-1606). Os CL Salmos de David postos em verso Francs por Philippe (Des-Portes). Com algumas obras cris ts e oraes do mesmo autor. Rouen, Raphael du petit Vai, 1594. (Nota do tradutor).

importantes conselhos com que me honrou, disse-me que observasse sempre, tanto quanto o assunto o permitisse, a brevidade dos captulos; porque, diz ele, assim como os viajantes, quando tm notcia de que h um belo jardim a vinte ou vinte e cinco passos do seu itinerrio, se desviam facilmente para o irem ver, o que no fariam se o julgassem mais afastado, assim tambm aqueles que sabem que um captulo breve, o lem de boa--vontade, o que no fariam, por atraente que o assunto fosse, se precisassem de muito tempo para terminar a sua leitura. Tive, pois, motivo de seguir neste ponto a minla inclinao, pois que ela mereceu a aprovao deste preclaro varo, que foi um dos mais santos prelados e dos mais ilustres doutores que a Igreja possuiu no nosso sculo, e era, quando me honrou com a sua caria, o decano dos doutores da faculdade de Paris. No h muito tempo, que um grande servo de Deus me avisou de que o ter dirigido Filoteia os meus conselhos da Introduo vida devota, tinha feito com que muitos homens a no tivessem lido, porque no julgavam digno da leitura dum homem os conselhos dirigidos a uma mulher. No pude deixar de admirar que houvesse homens, que, por quererem parecer homens, se mostrassem to-pouco homens, pois v tu, caro leitor, se a devoo no igual para os homens e para as mulheres, e se no devemos ler com igual ateno e

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respeito a segunda Epstola de S. Joo dirigida santa matrona Electa, como a terceira que ele destina a Caio, e se milhares de cartas ou de excelentes tratados dos antigos Padres da Igreja, devem considerar-se inteis aos homens por terem sido dirigidos a santas mulheres daquele tempo! Mas, alm disto tudo, alma que aspira devoo que eu chamo Filoteia, e os homens tm uma alma como as mulheres. Entretanto, para nisto imitar o grande Apstolo que se considerava devedor a todos, (1) mudei o endereo 1) Rom., I, 14. neste Tratado e dirijo-me a Teotimo: e, se por acaso houvesse mulheres (e este disparate seria mais compreensvel nelas..,), que no quisessem ler as instrues que se fazem a um homem, rogar-lhes-ia que reflectissem que o Teotimo a quem me dirijo, o esprito humano, que deseja fazer progressos no amor de Deus, esprito que est igualmente nas mulheres como nos homens. Este Tratado feito para ajudar a alma j devota a aperfeioar-se, e por isso, fui obrigado a dizer muitas coisas um pouco menos conhecidas do vulgo e que, por conseqncia, parecero mais obscuras; o fundo da cincia sempre um pouco mais difcil de sondar, e encontram-se poucos mergulhadores que queiram e saibam ir colher as prolas e outras pedras preciosas nos abismos do oceano, Mas, se tiveres verdadeira coragem para aprofundar este escrito, acontecer-te- o mesmo que aos mergulhadores, os quais, segundo diz Plnio (J), quando esto nos profundos abismos do mar, vem ali claramente a luz do sol; porque* encontra-rs nos pontos mais difceis deste Tratado uma boa e aprazvel clareza. Nem quis seguir aqueles que desprezam certos livros que tratam de um gnero de vida de perfeio super-eminente, nem a ela me referir, porque no posso censurar os autores, nem autorizar os censores de uma doutrina que no entendo. Toquei em muitos pontos de teologia, mas sem esprito de crtica, propondo simplesmente no tanto o que noutro tempo aprendi em discusses, mas o que a experincia no servio das almas e o emprego de vinte e quatro anos na santa pregao, me fizeram julgar como mais conveniente glria do Evangelho e da Igreja. Finalmente algumas pessoas notveis de diversos lugares, me avisaram, que alguns opsculos tm sido publicados com as iniciais do nome de seus autores, iguais s do meu, o que fez escandalizar a algum, julgando que eu me houvesse desviado da minha simplicidade, para encher o meu estilo de palavras pomposas, de conceitos mundanos e de rendilhados duma eloqncia arrogante e enfatuada.(1) Hist. nat 1. II, c. XLIJ.

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A este respeito dir-te-ei, meu caro leitor, que assim como os que talham ou lapidam pedras preciosas, cansando a vista fora de a aplicarem s linhas delicadas do seu trabalho, tm sempre diante de si alguma formosa esmeralda para a fitarem de tempos a tempos, e descansarem na sua cor verde os olhos enfraquecidos para tomarem novo vigor, assim tambm na variedade de negcios a que a minha condio me obriga necessariamente a aplicar-me, tenho sempre pequenos planos de algum tratado de piedade com que me entretenho, quando posso, para aligeirar e distrair o esprito, Mas isto no quer dizer que faa profisso de escritor, porque nem a fraqueza do meu esprito, nem as obrigaes do meu cargo, exposto a servir e atender uma infinidade de pessoas, mo permitiriam. Por esta razo tenho escrito muito pouco e publicado ainda menos, e s para seguir o conselho e a vontade de meus amigos. Digo isto, para que no atribuas o louvor que merece o trabalho dos outros, a quem no merece nenhum pelo seu prprio. H dezanove anos achando-me em Thonon, pequena cidade nas margens do lago de Genebra, que ento se convertia pouco a pouco f catlica, o ministro, adversrio da Igreja, clamava por toda a parte que o dogma catlico da presena real do Corpo do Salvador, na Eucaristia, destruia o Smbolo e a analogia da f, (era muito fcil dizer esta palavra analogia, incompreensvel para os ouvintes, com o fim de parecer muito sbio); e, por isso, os outros pregadores, com os quais estava, me encarregaram de escrever, refutando esta tolice, Fiz o que me pareceu conveniente, redigindo uma breve meditao sobre o Smbolo dos Apstolos para confirmar a verdade, e todas as cpias foram distribudas nesta diocese, onde j no encontro nenhuma. Pouco depois Sua Alteza (') veio de Frana e encontrando os bailios do Chablais, Gaillart e Ternier, situados nos1) S, Francisco de Sales refere-se aqui ao prncipe Carlos Emanuel, duque dos estados da Sabia, de que o Chablais fazia parte. ( Nota do tradutor).

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arrabaldes de Genebra, meio dispostos a receberem a santa religio catlica, que lhes tinha sido roubada pela desgraa das guerras e revoltas, havia perto de setenta anos, resolveu este prncipe restabelecer o seu culto em todas as parquias, abolindo a heresia; e como, de um lado, havia grandes dificuldades para realizar este feliz propsito, pelas consideraes a que se d o nome de razes de Estado, e, por outra parte, alguns, ainda no bem instrudos na verdade, resistiam a este to desejado restabelecimento, Sua Alteza venceu o primeiro obstculo pela firmeza invencvel do seu zelo pela santa religio, e o segundo por uma suavidade e prudncia extraordinrias. Reuniu os principais e mais obstinados, falou-lhes com eloqncia to amvel e cativante que, quase todos, vencidos pela doce violncia do seu amor pater-nal, depuzeram aos seus ps as armas da sua contumcia e entregaram suas almas nas mos da santa Igreja, De passagem, seja-me permitido dizer-te o seguinte: Podem-se louvar muito as nobres aces deste grande prn-cipe^ entre as quais brilha a prova da sua bravura e cincia militar que a Europa inteira admira; quanto a mim, o que mais me admira o restabelecimento da santa religio nos trs bailios j mencionados. Por esta ocasio fui testemunha de muitos rasgos de piedade, harmonizados com uma admirvel prudncia, constncia, magnanimidade, justia e benevolncia, parecendo-me ver como num quadro em miniatura, tudo o que se diz em louvor dos prncipes que outrora trabalharam mais ardentemente para a glria de Deus e da Igreja; o campo era pequeno, mas as aces eram grandes. E como aquele antigo artfice (*) que no foi to estimado pelas suas obras de grande vulto, como admirado por ter feito um navio em marfim, provido de toda a equipagem, em to pequeno volume que as asas duma abelha o cobriam todo; assim tambm aprecio mais o que este grande prncipe realizou ento naquele cantinho dos seus Estados, do que os altos feitos que muitos exaltam at s nuvens. Por esta ocasio erigiram-se por todas as avenidas e praas pblicas daquelas cidades, as vitoriosas insgnias da cruz; e entre elas levantou-se urna, muito solenemente, em Annemasse, perto de Genebra, Um ministro protestante escreveu um pequeno tratado contra a (i) Myrmecides. Ver Plnio. Hist. nat liv. VII, cap. XXI. honra devida cruz, contendo, uma invectva violenta e venenosa, que devia ser refutada. Monsenhor Cludio de Granier, meu predecessor, de santa e saudosa memria, encarregou-me de lhe responder, ao que obedeci no s por ser o meu Bispo, mas, alm disso, um santo servo de Deus. Escrevi a refutao com o ttulo de Defesa do Estandarte da Cruz, e dediquei-a a Sua Alteza, em parte para lhe testemunhar a minha humilde submisso, e em parte para lhe agradecer o cuidado que havia tido da Igreja naquelas localidades. Pouco depois, reimprimiram esta Defesa com p honroso ttulo de Pantalogia ou Tesouro da Cruz, ttulo em que eu nunca teria pensado, porque no tenho estudos, nem tempo, nem memria para poder reunir documentos to importantes num livro que merecesse o ttulo de Tesouro ou de Pantalogia; estes frontspcios arrogantes fazem-me horror:

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bem louco o arquitecto, que, privado de razo, Faz o portal maior do que toda a coustruo.

No ano de 1602 celebraram-se em Paris, onde eu estava, as exquias do magnnimo prncipe Filipe Emanuel, de Lorena, duque de Mercoeur, o qual havia realizado to grandes faanhas contra os Turcos na Hungria, que todos os cristos concorreram para honrar a sua memria. Mas foi principalmente a duquesa Maria de Luxemburgo, sua viva, que fez tudo o que a sua coragem e o amor que consagrava ao finado lhe sugeriam, para solenizar estes funerais; e como meu pai, meu av e meu bisav tinham sido pagens dos prncipes de Martigues, seus predecessores, considerava-me como servo hereditrio da sua casa, e por isso me escolheu para fazer a orao fnebre nesta notvel solenidade, a que afluam, no s muitos cardeais e prelados, mas ainda grande nmero de prncipes, princesas, marechais de Frana, cavaleiros de Ordem e at o Parlamento. Compus, pois, este discurso e o pronunciei nesta respeitvel assemblia, na grande igreja de Paris; e como ele encerrasse um verdadeiro resumo dos feitos hericos do defunto Prncipe, impriro-o, porque a Princesa viva mostrou desejos disso, e os seus desejos para mim eram ordens. Dediquei este trabalho Senhora Du-quesa de Vandome, ento ainda donzela e muito novel princesa, mas em quem se divisavam j traos da primorosa virtude e piedade que hoje nela reluzem, dignas da famlia e da educao da sua to devota e piedosa me. Quando se imprimia esta orao chegou-me a notcia de que estava nomeado Bispo, o que me obrigou a vir imediatamente para aqui para ser sagrado e comear a minha residncia. Logo no princpio me notaram a necessidade que havia de advertir os confessores sobre alguns pontos importantes do seu ministrio, por isso redigi vinte e cinco Avisos, que mandei imprimir para fazer chegar mais facilmente s mos daqueles a quem os dirigia. Mais tarde foram reim-pressos em diversos lugares. Trs ou quatro anos depois, publiquei a Introduo vida devota, pelos motivos e da maneira que j declarei no seu Prefcio; e nada tenho a dzer-te a respeito deste opsculo, meu caro leitor, seno que, se recebeu, em geral, favorvel e lisongeiro acolhimento, mesmo entre os mais graves prelados e doutores da Igreja, no foi contudo isento de spera censura por parte de alguns que no s me criticaram, mas at me injuriaram rudemente em pblico, por eu ter dito Filoteia que os bailes em si mesmo so aces indiferentes, e que nas conversas se admitem gracejos, Como conheo a qualidade destes censores, louvo-lhes muito a inteno, porque creio que foi boa, mas desejava que notassem : que a primeira proposio extrada da doutrina verdadeira e geral dos mais santos e doutos telogos: que escrevia para pessoas que vivera no mundo e nas cortes; e que alm disso, inculcava cuidadosamente o grande perigo que se encontra nas danas. Quanto segunda proposio, com respeito aos gracejos, tambm no minha, mas sim do admirvel rei S. Lus, doutor digno de ser seguido na arte de bem dirigir os cortesos na vida devota, Creio bem que se tivessem ponderado tudo isto, a sua caridade e discrio no teriam nunca permitido ao seu zelo, embora rigoroso e austero, indignarem-se contra mim.

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Por todos estes motivos, te suplico, meu caro leitor, que me sejas benvolo e indulgente na leitura deste Tratado; se achares o estilo ura pouco (parece-me que ser muito pouco), diferente do que usei escrevendo a Filoteia, e ambos muito diversos do que empreguei na Defesa da Cruz, lembra-te que em dezanove anos aprendem-se e desaprendem-se muitas coisas; que a linguagem da guerra diferente da linguagem da paz, e que se fala de uma maneira aos jovens aprendizes, e de outra aos velhos camaradas. Aqui dirijo-me s almas adiantadas na devoo; porque preciso que te diga, que temos nesta cidade uma Congregao de donzelas e vivas, que, retiradas do mundo, vivera unanimemente no servio de Deus, sob a proteco da Sua Me Santssima; e como a sua pureza e piedade de esprito me tm proporcionado grandes consolaes, impusme o dever de as recompensar distrbuindo-lhes freqentemente a sagrada palavra, que lhes tenho anunciado tanto em sermes pblicos como em colquios espirituais, e quase sempre na presena de muitos religiosos e de pessoas altamente piedosas: foi-me, pois, preciso tratar muitas vezes dos mais delicados pontos de piedade, indo alm do que havia dito a Filoteia. E uma boa parte do que aqui te comunico, devo-o a esta abenoada comunidade, porque a superiora que a ela preside, sabendo que escrevo sobre este assunto e que dificilmente poderia levar ao fim esta tarefa, se Deus me no ajudasse de uma maneira especial, e se eu no fosse continuamente animado a faz-lo, teve um cuidado muito particular de orar e mandar orar sem cessar por esta inteno, suplicando-me santamente que aproveitasse todos os bocadinhos que tivesse de vago, ou que pudesse tirar s minhas obrigaes, para os empregar neste trabalho, Como respeito esta alma de uma maneira que s Deus sabe, no teve ela pouco poder para animar a minha, neste propsito, H muito tempo que projectava escrever sobre o amor sagrado, mas este projecto estava muito longe de se realizar se no fossem os motivos apontados e que te descubro singelamente maneira dos antigos, para que saibas que no escrevo seno por circunstncias eventuais, e assim me sejas mais benvolo. Dizia-se entre os gentios, que Fidas nada esculpia to genialmente como as divindades, nem Apeles pintava coisa alguma como o retrato de Alexandre, Nem sempre se colhem resultados iguais: se sou breve neste Tratado, meu caro leitor, faze tu por adiantar na bondade, e Deus abenoar a tua leitura. Por tal razo dediquei esta obra a Nossa Senhora e a S, Jos, como j havia dedicado a Introduo ao Divino Menino que o salvador dos amantes e o amor dos salvados, Pois, assim como as mulheres, enquanto novas, escolhem ordinariamente para padrinhos de seus filhos os amigos da terra, e, quando a sua fraqueza e falta de sade lhes torna difceis e perigosos os trabalhos da maternidade, invocam os santos do Cu e prometem convidar um pobre ou uma pessoa devota, em nome de S, Jos, S, Francisco de Assis, S. Francisco de Paula, S, Ncolau, ou qualquer outro Bem-aventurado que possa impetrar de Deus o seu feliz sucesso; assim tambm eu, antes de ser Bispo, como tinha mais vagar e menos desassocego para escrever, dedicava os meus modestos trabalhos aos prncipes da terra, Agora, que me vejo oprimido pelo meu cargo e encontro mil embaraos para escrever, no consagro nada seno aos prncipes do Cu, para que eles me alcancem

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TRATADO D AMOK ua ucua

a luz de que necessito, e, se isto for do seu agrado, para que estes escritos tenham um nascimento fru-tuoso e til a muitos. Deus te abenoe, meu caro leitor, e te faa rico do seu santo amor. Submeto, porm, sempre e de todo o meu corao os meus escritos, as minhas palavras e as minhas aces correco da Santssima igreja Catlica, Apostlica e Romana, porque sei que ela a coluna e firmamento da verdade. 1), da qual no pode afastar-se nem separar-se, e que ningum pode ter a Deus por Pai, quando no tem esta Igreja por Me ( 2 ) . Annecy, no dia dos amantssimos Apstolos S. Pedro e S, Paulo, 1616,BENDITO SEJA DEUS,

(i) I Tim,, III, 15. ( 2 ) Serm., III do Simb., S. Agost. attib..

LIVRO PRIMEIROCONTENDO

UMA PREPARAO DE TODO O TRATADO

CAPTULO I Para beleza da natureza humana Deus concedeu vontade o governo de todas as faculdades da alma A unidade na variedade a ordem: a ordem produz a convenincia e a proporo, e a convenincia no todo constitui a beleza. Um exrcito belo, quando os soldados esto por tal modo colocados em sua ordem, que fazem um s exrcito, Para que uma msica seja bela, no somente necessrio que as vozes sejam sonoras, claras e bem distintas, mas que se aliem por tal forma umas s outras, que produzam uma perfeita consonncia e harmonia, pela unio que existe na distino, e pela distino na unio das vozes, a que com razo se chama um acordo discordante, ou antes um desacordo concordante. Ora, como explica muito bem o anglico S, Toms depois do grande S. Diniz (2), a beleza e a bondade, ainda

t1) Ia II*e. Qu. XXVII, art. 1.

( 2 ) De div. nomin,, c, IV.

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TRATADO DO AMOR DE DEUS

que tenham alguma semelhana, no so uma e mesma coisa: porque bem o que agrada ao apetite e vontade; belo o que agrada ao entendimento e ao conhecimento; ou, para me explicar de outra forma, bem aquilo cujo gozo nos deleita; belo aquilo cujo conhecimento nos satisfaz. E por isso que, falando com propriedade, ns no atribumos a beleza corporal seno aos objectos dos dois sentidos que mais tm por funo conhecer e servem mais ao entendimento: os quais so a vista e o ouvido; e assim, no devemos dizer: belos perfumes ou belos sabores, mas sim: belas vozes e belas cores. 0 belo, sendo belo porque o seu conhecimento nos deleita, alm da unio e da distino, da integridade, da ordem e da convenincia de suas partes, deve ter muito esplendor e luz, para que seja conhecvel e visvel. As vozes para serem belas, devem ser claras e lmpidas, os discursos inteligveis, as cores brilhantes e resplandecentes: a obscuridade, a sombra, as trevas so feias e desfiguram todas as coisas, porque nelas nada se torna conhecido, nem a distino, nem a unio, nem a convenincia; o que fez dizer a S. Dinis ( ' ) , que Deus, como soberana beleza, autor da formosa convenincia, do primor e do esmero que se encontra em todas as coisas, fazendo resplandecer em forma de luz, as irradiaes e divises do seu raio, por meio das quais todas as coisas se tornam belas, querendo para estabelecer a beleza, que em todas houvesse a convenincia, a claridade e a harmonia. Sem dvida, Teotimo, a beleza no traduz efeito, intil e morta, se a claridade e o esplendor a no avivam, dando-lhe fora; eis a razo porque costumamos dizer que as cores so vivas, quando tm brilho. Mas quanto s coisas animadas e vivas, a sua beleza no completa sm a harmonia, a qual, convenincia das partes que constitui a perfeio, acrescenta a convenincia dos movimentos, gestos e aces, que so como a alma e a vida da beleza das coisas vivas. Do mesmo modo, na soberana beleza do nosso Deus, reconhecemos a unio, ou antes a unidade da essncia na distino das Pessoas, com uma infinita luz, junta conve{1) Cap. 4 dos Nomes Div.

nnca incompreensvel de todas as perfeies das aces e movimentos, contidas mui soberanamente, e, para assim dizer, juntas e reunidas majestosamente na sngularssma e sim-plissssima perfeio do puro acto divino, que Deus mesmo, imutvel e invarivel, como o demonstraremos noutra parte Deus, pois, querendo tornar todas as coisas boas e belas, reduziu a multido e a distino das mesmas a uma perfeita unidade, ordenando-as todas de modo que os seres se sustentem uns aos outros, e todos nele, que o soberano Monarca, Reduz todos a ura corpo, cora uma cabea; de muitas pessoas forma uma famlia; de muitas famlias u m a cidade; de muitas cidades uma provncia; de muitas provncias ura reino, e um reino inteiro obedece a um s rei. Assim tambm, Teotimo, entre a inumervel multido e variedade de aces, movimentos, sentimentos, inclinaes, hbitos, paixes, faculdades e potncias que existem no homem, Deus estabeleceu uma natural supremacia na vontade, que ordena e domina tudo o que est neste

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CAPTULO I

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pequeno mundo, parecendo ter dito vontade o que Fara a Jos^ ( 2); Tu governar s a minha casa; todo o povo obedecer ao mando da tua voz; e sem tua ordem no mover ningum mo nem p. Esta dominao da vontade realiza-se de formas mui diversas, como veremos.

CAPTULO II A vontade dirige de diversos modos as potncias da a l m a 0 pai de famlia guia sua mulher, seus filhos e seus criados por conselhos e ordens, s quais todos so obrigados a obedecer, bem que possam deixar de o fazer; se tem servos e escravos, governa-os pela fora, qual no podem(!) Livro II, c. II. - ( 2 ) Gen., XL, 40, 44.

deixar de se submeter. Os seus cavalos e os seus bois maneja-os com indstria, prendendo-os, pondo-lhes o freio, chegando-lhes a espora, encurralando-os, soltando-os. Por certo, que a vontade governa a faculdade dos movimentos exteriores como um servo ou um escravo; a no ser que externamente qualquer coisa a estorve, nunca deixa de obedecer. Abrimos e fechamos a boca, movemos a lngua, as mos, os ps, os olhos, e todas as partes em que a faculdade do movimento se encontra, sem resistncia, como nos apraz e segundo a nossa vontade. Mas quanto aos nossos sentidos e faculdade de nutrir, crescer e desenvolver-nos, no a podemos governar to facilmente, antes carecemos de empregar a indstria e a arte. Se chamamos um criado, ele vem; se lhe dizemos que pare, ele para; mas no podemos esperar esta obedincia de um gavio ou falco; quem o quiser obrigar a voltar, tem de fazer-lhe negaas, quem o quiser sossegar, tem de lhe cobrir a cabea. Diz-se a um criado: volta esquerda ou direita, e ele obedece; mas para fazer voltar assim u m cavalo, precisamos servirnos das rdeas. No podemos, Teotimo, ordenar aos nossos olhos que no vejam, nem aos nossos ouvidos que no ouam, nem s nossas mos que no toquem, nem ao nosso estmago que no digira, nem ao nosso corpo que no cresa, porque todas estas faculdades so privadas de entendimento, e portanto incapazes de obedecer. Ningum pode acrescentar um covado sua estatura Raquel queria, mas no podia conceber. Comemos muitas vezes sem nos nutrirmos nem nos desenvolvermos. Q\iem quiser dominar as suas faculdades, tem de ser industrioso. 0 mdico, tratando de uma criana de bero, no se dirige nunca a ela, mas ordena ama que lhe aplique isto ou aquilo; s vezes manda que tome este ou aquele alimento, que use de certo medicamento; o efeito deste comunica-se ao leite, o leite alimenta o corpo da criana, e a vontade do mdico alcana feliz xito neste

(i) Mat., VI, 27.

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TRATADO DO AMOR DE DEUS

pequenino doente, que nem sequer nisso podia pensar. No de certo necessrio impor leis de abstinncia, de sobriedade e de continncia ao estmago, garganta ou ao ventre; mas preciso ordenar s mos que no forneam boca as viandas e bebidas, a no ser nesta ou naquela medida. preciso tirar ou dar s paixes ms os objectos e os alimentos que as fortificam, segundo o que a razo exigir. preciso distrair os olhos, ou fech-los quando quisermos que no vejam; e com estas indstrias os encaminharemos como a vontade o desejar. assim, Teotimo, que Nosso Senhor ensina ( ] ) que h eunucos que o so para o Reino dos Cus, isto , que no so eunucos por impotncia natural mas pelos meios de que a sua vontade se serve para os reter na santa continncia. loucura ordenar a um cavalo que no engorde, que no cresa, que no escoicinhe; se desejais tudo isto, levantai-lhe a manjedoura; no basta mand-lo, preciso refre-lo duramente para o domar. Sim, a vontade tem poder sobre o entendimento e sobre a memria: porque das muitas coisas que o entendimento pode compreender ou das que a memria pode recordar, a vontade determina aquelas s quais quer que as suas faculdades se apliquem, ou das quais quer que se desviem. verdade que no pode dirigi-las nem submet-las to absolutamente como faz cora as mos. com os ps ou com a lngua, em razo das faculdades sensitivas, e especialmente a imaginao, no obedecerem pronta e infalivelmente vontade; todavia a vontade agita-as, emprega-as e aplica-as como lhe apraz, se bem que no to firme e invariavelmente que a fantasia, inconstante e volvel, as no distraia muitas vezes, desviando-as para outro lado: de forma que, como diz o Apstolo ( 2 ) : Eu fao, no o bem que quero, mas o mal que aborreo: do mesmo modo somos muitas vezes forados a lamentar-nos, porque pensamos no no bem que amamos, mas no mal que detestamos.

1) Mat., XIX, 12.- ( 2 ) Rom VII, 15.

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CAPTULO III

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CAPTULO III A vontade governa as paixes A vontade, Teotimo, domina a memria, o entendimento e a imaginao, no pela violncia mas pela autoridade, de forma que nem sempre obedecida, como nem sempre o o pai de famlia por seus filhos e seus servos. Ora acontece o mesmo com o apetite sensual que, como diz S. Agostinho, em ns, pecadores, tem o nome de concupiscncia, e est sujeito vontade e ao esprito, como a mulher a seu marido; porque (2), assim como foi dito mulher: Tu estars no poder do teu marido e ele te dominar (5), tambm foi dito a Caim que a sua concupiscncia se voltaria contra ele (4), mas que a podia dominar e submeter. 0 homem, diz S. Bernardo (5), est na tua mo, se quiseres, fazer do teu inimigo teu servo, de forma que todas as coisas volvam em teu benefcio: O teu apetite est debaixo do teu domnio e o subjugars. O teu inimigo pode excitar em ti o sentimento da tentao, mas tu podes, se quiseres, dar-lhe ou recusar-lhe o consentimento, Se permites ao apetite que te conduza ao pecado, ento ficars sujeito a ele e ele te subjugar, porque todo aquele que comete o pecado escravo do pecado ( 6 ) ; porm antes que o cometas, enquanto ainda no est em teu consentimento, mas s em teu sentimento, quer dizer que s est em teu apetite e no na tua vontade, o teu apetite est sujeito a ti e tu o subjugar s. O imperador antes de ser elevado dignidade imperial, depende dos eleitores, que dominara sobre ele, podendo escolh-lo ou rejeit-lo; mas uma vez eleito, fica desde logo governando e domina sobre eles. Antes da vontade dar o consentimento ao apetite, domina sobre ele; porm, depois do consentimento, a vontade torna-se sua escrava. Em suma, este apetite sensual na verdade um sbdito rebelde, sedicioso, inquieto; e devemos confessar, que no poderemos nunca desfazer-nos dele, de maneira que no ataque e assalte a razo. Contudo a vontade to superior, que, se quiser, pode aniquil-lo, derrubar os seus projectos e repeli-lo, no consentindo nas suas sugestes. No se pode impedir que a concupiscncia nasa na alma, mas sim que produza e consuma o pecado ( ' ) . Esta concupiscncia ou apetite sensual tem doze movimentos pelos quais, como outros tantos capites amotinados, levanta a sedio dentro do homem, (1) Por o apetite sensativo, entendem os filsofos escolsticos a Estes movimentos sensuais, operao pela qual o homem tende para um bem que convm sua natureza de^ ordinrio inquietara a alma e sensitiva, e que foi percebido pelos sentidos. As operaes desta faculdade, elevadas agitam o corpo; enquanto a um grau iatenso de fora e energia, tomam o nome especial de paixes, que desassossegam a alma, chamam-se podem ser boas ou ms, perturbaes; enquanto comovem o (Nota do tradutor). corpo, chamam-se paixes, segundo (2) Aug., 1. 15 de Civit. c. 7. ( 3 ) Gen III, 16; juxta Septuag. et Chaid . - diz Santo Agostinho (*). Todos tm em vista o bem e o mal; aquele para ( 4 ) Gen., IV, 7.-(r') Serm., 5. de Quad.-(.) Joan, VIII, 34. o adquirir, este para o evitar. Se o bem considerado em si mesmo, segundo a sua natural bondade, excita o amor, primeira e principal paixo; se o bem est ausente, provoca-nos o desejo; se, sendo desejado, julgamos poder obt-lo, concebemos a esperana ; se pensamos no o poder obter, sentimos o desespero; mas quando o possumos, enche-nos de alegria. Ao contrrio, apenas conhecemos o mal, aborrecemo-lo; se est ausente, fugimos dele; se julgamos que o no podemos evitar, tememo-lo; se cremos que o podemos evitar, afoitamo :nos e an-mamo-nos; mas, se o sentimos presente, afligimo-nos, e ento a ira e a clera aodem repentinamente para rejeitar e repelir o mal, ou pelo menos vingar-nos dele. Se no conseguimos afast-lo, ficamos tristes; se o repelimos ou logramos vingar-

ia

Jacob, I, 15. - ( 2 ) De Civit. Dei, I. XIV, c. VIII.

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-nos, sentimos o contentamento e a satisfao que causa o prazer do triunfo; porque, assim como a posse do bem regozija o corao, a vitria contra o mal alimenta a coragem. E sobre toda essa multido de paixes sensuais, a vontade mantm o seu imprio, rejeitando as suas sugestes, repelindo os seus ataques, impedindo os seus efeitos, e, por fim, recusando-lhes o consentimento, sem o qual no a podem prejudicar, e com cuja recusa ficam vencidas, abatidas, enfraquecidas, extenuadas, reprimidas, e, se no completamente mortas, pelo menos amortecidas ou mortificadas, para exercitar a nossa vontade na virtude e fora espiritual, que esta multido de paixes existe nas nossas almas, Teotimo; de sorte que muito se enganavam os esticos quando afirmaram que elas no se encontram no homem prudente; tanto mais, que o que negavam com suas palavras o praticavam em seus actos, como refere Santo Agostinho ( ' ) , na seguinte interessante histria, Tendo Aulus Gellius embarcado com um clebre estco, sobreveio uma grande tempestade que o atemorizou; empali-deceu, enfiou e tremia tanto, que se tornou notado por todos os que estavam no navio, e curiosamente o observavam, apesar de se acharem no mesmo perigo, Pouco depois o mar acalmou-se, o perigo passou, e da os passageiros comearam a rir-se e a escarnecer uns dos outros do medo que tiveram. Ento um passageiro da sia, dirigindo-se ao filsofo censurou o susto que manifestara, tornando-se lvido e desfigurado durante o perigo, enquanto ele, ao contrrio, se conservara forte e destemido, 0 estco replicou contando o que Aristipus, filsofo socrtico, tinha respondido a um homem que pelo mesmo motivo o havia mofado; fizeste bem, lhe disse, em te no teres inquietado pela sorte da alma dum perverso trapaceiro, como tu, porm eu faria muito mal se no receasse a perda da alma de Aristipus, 0 melhor da(1} Livr. de Civit. 9, c. 4,-0 estoicismo um sistema filosfico fundado por Zenon, da Cittium, original pela sua moral, que estabelecia como primeira regraviver conforme a razo. Os esticos diziam afectar uma indiferena absoluta perante os fenmenos da natureza e os revezes da vida, (Nota do tradutor).

http://alexandriacatolica.histria ser o prprio Aulus Gellius, testemunha ocular, quem a refere ( ' ) , Enquanto rplica que ela encerra, o estico que a deu, provou mais a sua finura do que a sua razo, porque, citando u m companheiro do seu susto, provou por duas irrepreensveis testemunhas, que os esticos eram susceptveis de ter medo, e do

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CAPTULO III

medo que manifesta os seus efeitos nos olhos, no rosto e na atitude, o que por conseqncia se torna uma paixo, grande loucura querer afectar indiferena, quando impossvel! A Igreja condenou a louca doutrina que certos anacoretas presunosos quiseram introduzir, e contra os quais a Escritura, mas sobretudo o grande Apstolo ( 2 ) , clama, dizendo que temos em nossos corpos uma lei que repugna lei do nosso esprito. Entre ns, Cristos, diz o grande Santo Agostinho (s), conforme refere a Escritura Sagrada e a s doutrina, os cidados da Santa Cidade de Deus peregrinando neste mundo, segundo os desgnios da Providncia, temem, desejam, lastimam-se e regozijam-se, Sim, o prprio Rei soberano desta Cidade, temeu, desejou, lastimou-se e rejubilou; chorou, tornbu-se lvido, tremeu e suou sangue, posto que n'Ele estes movimentos no fossem paixes iguais s nossas, movimentos que o grande S, Jer-nmo ( 5), e depois dele os escolsticos, no ousaram apelidar de paixes, em reverncia pessoa em que eles se manifestavam, antes lhes deram o nome respeitoso de pro-paixes, para testemunhar que os movimentos sensveis em Nosso Senhor ocuparam n'Ele o lugar de paixes, se bem que no fossem paixes; tanto mais que no tinha absolutamente nada a sofrer por parte delas, seno o que fosse do seu agrado e como lhe aprouvesse, governando-as e dirigindo-as sua vontade; o que ns, pecadores, no podemos fazer, porque sofremos e suportamos esses movimentos desregrados contra a nossa vontade, e com grande prejuzo da boa ordem e tranqilidade das nossas almas.(i) Noctes Atticffi, 1. XIX, c, 1. _(*) Rom,, VII, 23, (3) L, 14. de Civit, c. 9. (4) Estes cidados cujo Rei e chefe Jesus, so os cristos em oposio aos maus, cidados do demnio. (5) In Mat. V, 28 e XXVI. 37. ( Nota do tradutor),

blogspot.com.br/CAPTULO IV O amor domina todas as afeies e paixes e dirige mesmo a vontade, ainda que esta tenha tambm domnio sobre ele

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CAPTULO III

O amor, que a primeira complacncia que sentimos pelo bem, como adiante diremos, precede o desejo, porque desejamos s o que amamos, Precede a deletao, pois quem poderia regozijar-se no gozo de uma coisa que no amasse? Precede a esperana, porque s se espera o bem que se a m a ; precede o dio, porque no aborrecemos o mal seno pelo amor que temos ao bem; antes o mal no mal seno por ser oposto ao bem; e acontece o mesmo, Teotimo, com todas as outras paixes ou afectos, porque todos provm do amor como da sua origem e da sua raiz, por isso que as paixes e afeies so boas ou ms, viciosas ou virtuosas, conforme o amor donde procedem bom ou mau porque este derrama sobre elas por tal modo as suas qualidades, que aparentam ser o prprio amor. Santo Agostinho (*) reduziu a quatro todas as paixes e afectos. O amor diz ele, que tende a possuir aquilo que ama, chama-se desejo; alcanando-o e possuindo-o, chama-se gozo; fugindo ao que lhe oposto, chama-se temor; e, se este mal lhe sucede, e o sente, chama-se tristeza; e estas paixes so ms, se o amor mau, boas, se ele bom. Os cidados da Cidade de Deus, isto , os cristos, temem, desejam, lastimamse, regozijam-se, e como o seu amor recfo, todos os seus afectos so tambm rectos. A doutrina crist, submete o esprito a Deus, para que o guie e o socorra, e submete ao esprito todas estas paixes para que as refreie e modere, convertendo-as ao servio da justia e da virtude ( 2). A vontade recta amor bom; a vontade m amor m a u * ^ ) ; cm resumo, Teotimo, o amor domina por tal modo na vontade, que a torna tal-qual ele . A mulher de ordinrio muda a sua condio na de seu marido, e torna-se nobre se ele nobre, rainha se rei, duquesa se duque. A vontade tambm muda de qualidade conforme o (1) L. 14, c. 7 e 9, de Civit. () Crieis, Liv. 9, c. 5. amor que ela esposa; se sensual, torna-se sensual; espiritual, se espiritual; e todos os afectos de desejo, alegria, esperana, temor e tristeza, como filhos nascidos da aliana do amor com a vontade, recebem tambm do amor as suas qualidades. Numa palavra, Teotimo, a vontade no estimulada seno pelas suas afeies, entre as quais o amor, como o primeiro mbil e o primeiro afecto, d o impulso a todos os outros afectos, e produz todos os movimentos da alma. Isto no obsta a que a vontade possa dominar o amor, tanto mais que a vontade s ama quando quer amar, e de muitos amores que a ela se apresentam, pode escolher o que mais lhe agrade: doutra forma nem poderia haver amor proibido, nem amor preceituado, A ^vontade domina pois os amores, como uma donzela domina os pretendentes que a requestam entre os quais pode escolher, Outro tanto, porm, lhe no sucede depois do casamento, porque perde a sua liberdade, e de dominadora passa a ser dominada pelo marido, ficando presa por aquele mesmo que ela prendera, Do mesmo modo, a vontade que

(1) Crieis, c. VII.- (2) I Cor, VII, 39.

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escolheu o amor segundo o seu agrado, logo que o aceitou, fica-lhe sujeita: e assim como a mulher fica subordinada ao marido enquanto vivo, e, morrendo ele, retoma a sua antiga liber-berdade ( 2 ) , podendo passar a outras npcias, tambm enquanto um amor vive n a vontade, domina-a, e conserva-a dependente dos seus movimentos: mas se este amor deixar de existir, poder retomar outro. H, porm, na vontade u m a liberdade que se no encontra na mulher casada; e que a vontade pode repelir o seu amor quando quer, aplicando o entendimento s causas que podem desgost-la, e, formando a resoluo de mudar de objecto: e assim, para fazermos viver e reinar o amor de Deus em ns, temos de destruir o amor prprio; se o no podemos aniquilar completamente, pre-

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TRATADO DO AMOR DE DEUS

ciso, ao menos, enfraquec-lo, de forma que, embora viva em ns, no reine; como tambm podemos, ao contrrio, deixando o amor sagrado, aquiescer ao das criaturas, que o infame adultrio que o celeste Esposo tantas vezes exprobra aos pecadores,

CAPTULO V Dos afectos da vontade Na vontade h, como no apetite sensitivo, movimentos chamados afectos; mas os da vontade chamam-se ordinariamente afeies, os outros, paixes. Os filsofos gentios podiam amar a Deus, a ptria, a virtude, as cincias; aborreceram o vcio, desprezaram as honras, a morte ou a calnia, desejaram a cincia; podiam at ser bem-aventurados depois da sua morte; animaram-se a vencer os obstculos que encontravam na aquisio da virtude, temeram a censura, fugiram de cometer muitas faltas, vingaram as afrontas pblicas, indignaram-se contra os tiranos, sem interesse prprio. Todos estes movimentos residiam na vontade, visto que nem os sentidos, nem por conseqncia o apetite sensual, so capazes de ser aplicados a estas coisas, e portanto, estes movimentos eram afectos do apetite intelectual ou racional, e no paixes do apetite sensual. Quantas vezes temos ns paixes contrrias aos afectos que sentimos ao mesmo tempo na vontade! O mancebo de que fala S. Jernimo (!), cortando a lngua com os prprios dentes, e atirando-a cara daquela maldita mulher que o excitava voluptuosdade, no manifestou ter na vontade uma extrema afeio de desagrado, contrria paixo do prazer que, fora, lhe faziam sentir no apetite sensual? Quantas vezes trememos ns de susto nos lances perigosos

(i) In vita Pauli.

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a que nos conduz a vontade! Quantas vezes detestamos as voluptuosidades em que se compraz o apetite sensual, amando os bens espirituais que ele detesta! ^ Nisto consiste a luta que sentimos todos os dias entre o esprito e a carne; entre o nosso homem exterior, que depende dos sentidos, e o homem interior, que depende da razo: entre o velho Ado, que segue os apetites da sua Eva ou da sua concupiscncia e o novo Ado, que secunda a sabedoria celeste e a santa razo. Os esticos, segundo refere S. Agostinho, negando que o sbio possa ter paixes, confessavam, todavia, ao que parece, que tem afeies, e a estas chamavam eupatias, ou boas paixes. Diziam eles que o sbio no cubia, mas quer; no sente gosto, mas prazer; no tem temor, mas previdncia e precauo, de sorte que no movido seno pela razo e conforme a razo. E assim negavam que o sbio possa ter tristeza, porque esta refere-se ao mal que nos acontece, e mal algum acontece ao sbio, visto ningum ser maltratado seno por si prprio, segundo a mxima dos esticos. Na verdade, Teotimo, alguma razo tiveram era pretender que h eupatias e bons afectos na parte racional do homem, mas foi sem razo que afirmaram no haver paixes na parte sensitiva, e no ser o corao do sbio afectado pela tristeza, porque, sem falar de que esta os perturbava a eles prprios, como ficou dito no Cap, III, bem poderia suceder que a sabedoria nos privasse da misericrdia, que uma virtuosa tristeza que se apodera do nosso corao, e nos impele ao desejo de libertar o prximo do mal que o aflige. Por isso, o maior homem de bem de todo o paganismo, Epitecto, no abraou este erro de no haver paixes no homem sbio. Assim atesta S. Agostinho, mostrando que o desacordo dos esticos com os outros filsofos no passa de pura disputa de palavras e debate de linguagem. Estas afeies que sentimos na nossa parte racional, so mais ou menos nobres e espirituais, conforme os objectos a que se referem; porque h afeies em ns originadas na experincia dos sentidos; outras h que procedem das cincias humanas; ainda outras que procedem da f ; finalmente algumas h que nascem do assenso da alma verdade e vontade de Deus, As primeiras so chamadas afeies naturais; porque, quem que no deseja ter a sade, os meios necessrios para se vestir e manter, e travar agradveis conversas? As segundas afeies so chamadas racionais, porque so fundadas na razo, pela qual a nossa vontade excitada a procurar a tranqilidade do corao, as virtudes morais, a verdadeira honra, a contemplao filosfica das coisas eternas, As afeies de terceira ordem chamam-se crists, porque se baseiam na doutrina de Nosso Senhor, que nos faz amar a pobreza

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voluntria, a castidade perfeita, a glria do Paraso, As afeies do ltimo grau so chamadas divinas e sobrenaturais, porque o prprio Deus que as infunde em nossos espritos, e porque se referem e tendem a Deus sem meios naturais, como adiante explicaremos E estas afeies sobrenaturais, so trs principalmente: o amor do esprito para com as belezas dos mistrios da f, o amor para com a utilidade dos bens que nos so prometidos na outra vida, e o amor para com a soberana bondade de Deus.

CAPTULO VI O amor de Deus domina os outros amores A vontade governa todas as outras faculdades do esprito humano, mas governada pelo seu amor que a torna tal--qual ele , O amor de Deus o primeiro entre todos os amores, e possu a tal ponto o direito de dominar insepar-velmente unido e prprio sua natureza, que se ele no domina, deixa de existir e perece, Ismael no herdou com Isaac, seu irmo mais novo ( 2 ) ; Esau foi destinado ao servio de seu irmo, nascido depois(i) Cap. XII.- (3) Galai., IV, 30.

http.V/alexandriacatolica.dele ( ) ; Jos foi adorado, no s por seus irmos, mas tambm por seu pai, e at mesmo por sua me, na pessoa de Benjamim, como o tinha previsto nos sonhos da sua adolescncia ( 2 ) . No sem mistrio que os ltimos entre estes irmos tiram as vantagens que pertenciam aos primeiros, O amor divino , na verdade, o ltimo nascido entre todos os afectos do corao humano; pois, segundo diz o Apstolo (3), aparece primeiro o que animal e s depois o que espiritual. Este ltimo nascido herda toda a autoridade, e o amor prprio, como um outro Esau, destinado ao seu servio; e no s todos os outros movimentos da alma, como seus irmos, o adoram e lhe so sujeitos, mas at o entendimento e a vontade, que lhe!

LIVRO I

CAPTULO V

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fazem as vezes de pai me, Tudo est sujeito a este celeste amor, que quer ser sempre ou rei ou nada, no podendo viver sem reinar, nem reinar seno soberanamente, Isaac, Jacob e Jos, foram filhos sobrenaturais; porque suas mes, Sara, Rebeca e Raquel, sendo estreis por natureza, os conceberam pela graa da bondade celeste; eis a razo porque foram constitudos senhores de seus irmos, Da mesma forma o amor sagrado um filho milagroso, porque a vontade humana no pode conceb-lo, se o Esprito Santo o no comunica aos nossos coraes; e, como sobrenatural, deve presidir e reinar sobre todos os outros afectos, inclusive o entendimento e a vontade. Mesmo que haja outros movimentos sobrenaturais na alma, como o temor, a piedade, a fortaleza, a esperana, assim como Esau e Benjamim foram filhos sobrenaturais de Raquel e de Rebeca, assim o divino amor o senhor, o herdeiro e o superior, como filho da promessa visto que em ateno a ele que o cu foi prometido ao homem, A salvao revelada pela f, prepara-se pela esperana, mas s dada caridade, A f mostra o caminho da terra prometida, como uma coluna de nuvem e de fogo, isto , claro-escura; a esperana sustenta-nos com a suavidade do seu man; a caridade intro-duz-nos nela, como a Arca da aliana que nos abre a passagem do Jordo, quer dizer do juzo final, e permanecer no(i) Ram., IX, 13, Galat., IV, 28.

(a) Gen., XXXVII, 6110, (3) I Cor., XV, 46, )

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TRATADO DO AMOR DE DEUS

meio do povo, na ptria celeste, prometida aos verdadeiros Israelitas, na qual nem a coluna da f j necessria para nos guiar, nem o man da esperana para nos sustentar. O santo amor reside na mais alta e elevada regio do esprito, onde faz os seus sacrifcios e holocaustos Divindade, como Abrao fez o seu ( ' ) , e como Nosso Senhor se imolou no Calvrio, para dum to elevado cume ser ouvido e obedecido pelo seu povo, isto , por todas as faculdades e afeies da alma, que Ele governa com uma incomparvel doura. O amor no tem nem forados nem escravos, antes submete todas as coisas sua obedincia com uma fora to deliciosa, que, assim como nada mais forte do que o amor, nada tambm to amvel como a sua fora. As virtudes residem na alma para animar os seus movimentos, e a caridade, como a primeira de todas, as dirige e modera, no $