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O show do eu Paula Sibilia A intimidade como espetáculo

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  • O show do eu

    Paula Sibilia

    A intimidadecomo espetculo

  • 1Eu, eu, eu... voc e todos ns

    Parece-me indispensvel dizer quem sou. [...] A desproporo entre a grandeza da minha tarefa e a pequenez de meus contemporneos manifestou-se no fato de que no me ouviram, sequer me viram. [...] Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que um ar das alturas, um ar forte. preciso ser feito para ele, seno h o perigo nada peque-no de se resfriar.Friedrich Nietzsche

    Aqui, no vou contar a ningum os dez passos para nada, nem vou dar dicas de o que fazer ou no para ter sucesso. Esse vai ser apenas um relato das lies que o mundo e a vida me ensinaram at este momento. Nesta curta mas intensa trajetria, muita gente fez questo de no me enxergar...Bruna Surfi stinha

    COMO ALGUM SE TORNA O QUE ? Isso perguntava Nietzsche logo no sub-ttulo de sua autobiografi a, signifi cativamente intitulada Ecce Homo e redigida em 1888, nos meses prvios ao colapso de Turim. Aps esse episdio, o fi lsofo mergulharia em uma longa dcada de sombras e va-zio, at morrer desprovido de esprito, de acordo com os amigos que o visitaram. Nas fascas desse livro, Nietzsche revisa sua trajetria com a fi rme ambio de dizer quem sou. Para isso, solicita a seus leitores que o ouam, pois eu sou tal e tal; sobretudo, no me confundam!. claro que atributos como a modstia e a humildade esto radicalmente ausen-tes no texto, mas isso no pode surpreender em algum que se orgulhava de ser oposto espcie de homem que at agora se venerou como virtuo-sa, preferindo ser um stiro a um santo.1 Essa atitude, porm, fez com que seus contemporneos enxergassem na obra de Nietzsche uma mera evidncia da loucura. Suas fortes palavras, aquilo to imenso e mons-truoso que ele tinha a dizer, foram lidas como sintomas de um fatdico

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    diagnstico sobre as falhas de carter daquele eu que falava: megaloma-nia e excentricidade, entre outros eptetos de calibre semelhante.2

    Mas por que comear um ensaio sobre a exibio da intimidade na internet dos primrdios do sculo XXI citando as excentricidades de um fi lsofo megalomanaco de fi nais do XIX? Talvez haja um motivo vli-do, que permanecer latente ao longo destas pginas e procurar reen-contrar seu sentido antes do ponto fi nal. Por enquanto, bastar tomar alguns elementos dessa provocao que vem de to longe, na tentativa de disparar o nosso problema. Qualifi cadas ento como doenas mentais ou desvios patolgicos da normalidade exemplar, hoje a megalomania e a excentricidade no parecem desfrutar daquela mesma demonizao. Em uma atmosfera como a contempornea, que estimula a hipertrofi a do eu at o paroxismo, que enaltece e premia o desejo de ser diferente e querer sempre mais, so outros os desvarios que nos assombram. Outras so as nossas dores porque outras tambm so as nossas delcias, outras as presses que cotidianamente se descarregam sobre nossos cor-pos e outras as potncias (e impotncias) que cultivamos.

    Um sinal destes tempos foi antecipado pela revista Time, por si s um cone do arsenal miditico global, quando encenou seu costumeiro ritual de escolha da personalidade do ano no fi nal de 2006. Nessa edio, criou-se uma notcia que foi ecoada pelos meios de comunicao de todo o planeta, e logo esquecida no turbilho de dados incuos que a cada dia so produzidos e descartados. A revista norte-americana vem repetindo essa cerimnia h quase um sculo, com o intuito de apontar as pessoas que mais afetaram o noticirio e nossas vidas, para o bem ou para o mal, incorporando o que foi importante no ano. Assim, ningum menos que Hitler foi eleito em 1938, o aiatol Khomeini em 1979 e George W. Bush em 2004. E quem foi a personalidade do ano de 2006, de acordo com o respeitado veredicto da Time? Voc! Sim, voc. Ou melhor: no apenas voc, mas tambm eu e todos ns. Ou, mais precisamente ainda, cada um de ns: as pessoas comuns. Um espelho brilhava na capa da publi-cao e convidava seus leitores a nele se contemplarem, como Narcisos satisfeitos de verem suas personalidades cintilando no mais alto pdio da mdia.

    Quais foram os motivos dessa curiosa escolha? Acontece que voc e eu, todos ns, estamos transformando a era da informao. Estamos

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    modifi cando as artes, a poltica e o comrcio, e at mesmo a maneira de percebermos o mundo. Ns, e no eles, a grande mdia tradicional, tal como eles prprios se ocupam de sublinhar. Os editores da revista res-saltaram o aumento inaudito de contedo produzido pelos usurios da internet, seja nos blogs, nos sites de compartilhamento de vdeos como o YouTube ou nas redes sociais de relacionamento como o MySpace e o Orkut. Em virtude desse estouro de criatividade (e de presena miditica) entre aqueles que costumavam ser meros leitores e espectadores passivos, teria chegado a hora dos amadores. Por tudo isto, ento, por toma-rem as rdeas da mdia global, por forjarem a nova democracia digital, por trabalharem de graa e superarem os profi ssionais em seu prprio jogo, a personalidade do ano da Time voc, afi rmava a revista.3

    Nas comemoraes pelo fi m do ano seguinte, um jornal brasileiro tam-bm decidiu colocar voc como o principal protagonista de 2007, permi-tindo que cada leitor fi zesse sua prpria retrospectiva anual atravs do site do peridico na web. Assim, entre as imagens e comentrios sobre grandes feitos e catstrofes ocorridos no mundo ao longo dos ltimos doze meses, no site do jornal O Globo apareciam fotografi as de casa-mentos de gente comum, bebs sorrindo, frias em famlia e festas de aniversrio, todas acompanhadas de legendas do tipo: Neste ano, o Hlio casou com a Flvia, Priscila desfi lou no Sambdromo, Carlos conheceu o mar, Marta conseguiu vencer a sua doena, Walter e Susana tiveram gmeos.

    Como interpretar essas novidades? Ser que estamos sofrendo um sur-to de megalomania consentida e at mesmo estimulada? Ou, ao con-trrio, nosso planeta foi tomado por uma repentina onda de extrema humildade, isenta de maiores ambies, uma modesta reivindicao de todos ns e de qualquer um? O que implica esse sbito resgate do pequeno e do ordinrio, do cotidiano e das pessoas comuns? No fcil compreender para onde aponta essa estranha conjuntura, que, me-diante uma incitao permanente criatividade pessoal, excentricidade e procura constante da diferena, no cessa de produzir cpias e mais cpias descartveis do mesmo. Mas o que signifi ca essa repentina exalta-o do banal, essa espcie de reconforto na constatao da mediocridade prpria e alheia? At mesmo a entusiasta revista Time, apesar de toda a euforia com que recebeu a ascenso de voc e a celebrao do eu na

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    web, admitia que esse movimento revela tanto a burrice das multides como a sua sabedoria. Algumas prolas lanadas no turbilho da in-ternet fazem-nos lamentar pelo futuro da humanidade, declararam os editores da publicao, e isso somente em funo dos erros de ortografi a, sem considerar a obscenidade e o desrespeito gritante que tambm costumam abundar por esses territrios.

    Por um lado, parece que estamos diante de uma verdadeira exploso de produtividade e inovao. Algo que estaria apenas comeando, se-gundo a Time, enquanto milhes de mentes que de outro modo teriam se afogado na escurido ingressam na economia intelectual global. At a, nenhuma novidade: j foi bastante comemorado esse advento de uma era enriquecida pelas potencialidades das redes digitais, sob bandeiras como as da cibercultura, da inteligncia coletiva e da reorganizao rizo-mtica da sociedade. Por outro lado, convm dar ouvidos tambm a ou-tras vozes, nem to deslumbradas com as novidades e mais atentas para seu lado menos luminoso. Tanto na internet quanto fora dela, hoje a capacidade de criao sistematicamente capturada pelos tentculos do mercado, que atiam como nunca essas foras vitais e, ao mesmo tempo, no cessam de transform-las em mercadorias. Assim, o seu potencial de inveno costuma ser desativado, pois a criatividade tem se convertido no combustvel de luxo do capitalismo contemporneo: seu protoplas-ma, como diria Suely Rolnik.4

    Entretanto, apesar disso tudo e da evidente sangria que h por trs das alegrias do marketing, sobretudo em sua reluzente verso interativa, os prprios jovens costumam pedir para serem constantemente motivados e estimulados, como advertiu Gilles Deleuze nos incios dos anos 1990. Esse autor acrescentava que caberia a eles descobrir a que so levados a servir; a eles, quer dizer, a esses jovens que hoje ajudam a construir esse fenmeno conhecido como Web 2.0. A eles incumbe a importante tarefa de inventar novas armas, capazes de opor resistncia aos novos e cada vez mais ardilosos dispositivos de poder; criar interferncias, vacolos de no-comunicao, interruptores, na tentativa de abrir o campo do possvel desenvolvendo formas inovadoras de ser e estar no mundo.5

    Talvez o novo fenmeno encarne uma mistura indita e complexa des-tas duas vertentes aparentemente contraditrias. Por um lado, a festejada exploso de criatividade vincula-se a uma extraordinria democrati-

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    zao dos canais miditicos. Esses novos recursos abrem uma infi nidade de possibilidades que eram impensveis at pouco tempo e que agora so extremamente promissoras, tanto para a inveno quanto para os conta-tos e trocas. Vrias experincias em andamento j confi rmaram o valor dessa fenda aberta para a experimentao esttica e para a ampliao do possvel. Por outro lado, porm, a nova onda tambm desatou uma revigorada efi ccia na instrumentalizao dessas foras vitais, que so avidamente capitalizadas a servio de um mercado capaz de tudo devo-rar para convert-lo em lixo. por isso que grandes ambies e extrema modstia aparecem de mos dadas nesta inslita promoo de voc e eu que se espalha pelos novos circuitos interativos: glorifi ca-se a menor das pequenezas, enquanto se parece buscar a maior das grandezas. Vontade de potncia e de impotncia ao mesmo tempo? Megalomania e despre-tenso? Para tentar sair desse impasse, pode ser inspirador indagar na relao entre este quadro to atual e aquelas intensidades patolgicas que infl amavam a voz nietzschiana no fi nal do sculo XIX, quando o fi lsofo alemo incitava seus leitores a abandonarem sua humana peque-nez para ir alm. Inclusive alm do prprio mestre, que no queria ser nem santo, nem profeta e nem esttua, propondo a seus seguidores que se arriscassem, que o perdessem para se encontrarem, e, desse modo, que eles tambm fossem algum capaz de se tornar o que . Qual a relao deste eu e deste voc, to venerados hoje em dia, com aquele algum de Nietzsche?

    Algo se passou entre essas duas realidades, um acontecimento histrico que talvez possa fornecer algumas pistas. O sculo passado assistiu ao surgimento de um fenmeno desconcertante: os meios de comunicao de massa baseados em tecnologias eletrnicas. muito rica, embora no to longa, a histria dos sistemas fundados no princpio de broadcasting, tais como o rdio e a televiso, tipos de mdia cuja estrutura comporta uma fonte emissora para muitos receptores. J nos primrdios do sculo XXI, testemunhamos a consolidao deste outro fenmeno igualmente desnor-teante: em menos de uma dcada, os computadores interconectados atra-vs das redes digitais de abrangncia global se converteram em inesperados meios de comunicao. No entanto, esses novos canais no se enquadram de maneira adequada no esquema clssico dos sistemas broadcast. E tam-pouco so equiparveis s formas low-tech da comunicao tradicional,

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    que eram interativas avant la lettre, tais como as cartas, o telefone e o telgrafo. Quando as redes digitais de comunicao teceram seus fi os ao redor do planeta, tudo comeou a mudar vertiginosamente, e o futuro ainda promete outras metamorfoses. Nos meandros desse ciberespao de escala global germinam novas prticas de difcil qualifi cao, inscritas no nascente mbito da comunicao mediada por computador. So rituais bastante variados, que brotam em todos os cantos do mundo e no cessam de ganhar novos adeptos dia aps dia.

    Primeiro foi o correio eletrnico, uma poderosa sntese entre o telefone e a velha correspondncia, que se espalhou a toda velocidade na ltima dcada, multiplicando ao infi nito a quantidade e a agilidade dos conta-tos. Em seguida se popularizaram os canais de bate-papo ou chats, que logo evoluram nos sistemas de mensagens instantneas do tipo MSN ou Yahoo Messenger; e em redes de sociabilidade como Orkut, MySpace e FaceBook. Estas novidades transformaram a tela de qualquer compu-tador em uma janela sempre aberta e ligada a dezenas de pessoas ao mesmo tempo. Enquanto o portal de relacionamentos Orkut se tornou um fenmeno majoritariamente brasileiro, com cerca de 24 milhes de usurios desta nacionalidade (mais da metade do total), jovens do mun-do inteiro freqentam e criam espaos semelhantes. Calcula-se que pelo menos 60% dos adolescentes dos Estados Unidos, por exemplo, j utilizam habitualmente essas redes. MySpace a favorita em escala global: com mais de cem milhes de usurios em todo o planeta, cresce a um ritmo de trezentos mil membros por dia. No inexplicvel que esse servio tenha sido adquirido por uma poderosa companhia de mdia multinacional, em uma transao que envolveu vrias centenas de mi-lhes de dlares.

    Outra vertente desta aluvio so os dirios ntimos publicados na web, nos quais os usurios da internet contam suas peripcias cotidianas usando tanto palavras escritas como fotografi as e vdeos. Trata-se dos famosos weblogs, fotologs e videologs, uma srie de novos termos de uso internacional cuja origem etimolgica remete aos dirios de bordo mantidos pelos navegantes de outrora. enorme a variedade dos estilos e assuntos tratados nos blogs de hoje em dia, embora sejam maioria os que seguem o modelo confessional do dirio ntimo. Ou melhor: do dirio xtimo, de acordo com um trocadilho que procura dar conta dos

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    paradoxos dessa novidade, que consiste em expor a prpria intimidade nas vitrines globais da rede. Os primeiros blogs apareceram quando o milnio agonizava; quatro anos depois existiam trs milhes em todo o mundo, e em meados de 2005 j eram onze milhes. Atualmente, a blogosfera acolhe cerca de cem milhes de dirios, mais do que o dobro dos hospedados um ano atrs, de acordo com os cadastros do banco de dados Tecnorati. Essa quantidade tende a dobrar a cada seis meses, pois todos os dias so engendrados cerca de cem mil novos rebentos, portanto o mundo v nascer trs novos blogs a cada dois segundos.

    Por sua vez, as webcams so pequenas cmeras fi lmadoras que permi-tem transmitir ao vivo tudo o que acontece nas casas dos usurios, um fenmeno cujas primeiras manifestaes chamaram a ateno nos l-timos anos do sculo XX. Agora so vrios os portais que oferecem links para milhares de webcams de todo o planeta, tais como o Camville e o Earthcam. Mais recentemente surgiram os sites que permitem a exibio e troca de vdeos caseiros, uma categoria na qual o YouTube ainda constitui uma das grandes coqueluches da rede: ao permitir expor pequenos fi lmes gratuitamente, conquistou um sucesso estrondoso em pouqussimo tempo. Aps ter sido comprado pela empresa Google por um montante prximo dos dois bilhes de dlares, o YouTube recebeu o ttulo de inveno do ano, uma distino tambm concedida pela revista Time no fi nal de 2006. Hoje recebe cem milhes de visitantes por dia, que assistem a setenta mil vdeos por minuto. Existem, ainda, outros sites menos conhecidos que oferecem servios semelhantes, tais como MetaCafe, BlipTV, Revver e SplashCast.

    Alm de todas essas ferramentas que constantemente se espalham e do luz inmeras atualizaes, imitaes e sucessoras , existem ainda outras reas da internet onde os usurios no so apenas os pro-tagonistas mas tambm os principais produtores do contedo, tais como os fruns e os grupos de notcias. Um captulo parte mereceriam os mundos virtuais como Second Life, onde os usurios costumam passar vrias horas por dia desenvolvendo diversas atividades on-line, como se levassem uma vida paralela nesses ambientes digitais. Entre os treze milhes de habitantes atuais desse universo, os brasileiros constituem uma das comunidades nacionais mais importantes; tambm aqui, porm, os nmeros se dilatam e mudam sem cessar.

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    Trata-se, em suma, de um verdadeiro caldeiro de novidades, que ga-nhou o pomposo nome de revoluo da Web 2.0 e acabou nos con-vertendo nas personalidades do momento. Essa expresso foi cunhada em 2004, em um debate do qual participavam vrios representantes da cibercultura, executivos e empresrios do Vale do Silcio. A inteno era batizar uma nova etapa de desenvolvimento da internet, aps a decepo gerada pelo fracasso das companhias pontocom: enquanto a primeira gerao de empresas on-line procurava vender coisas, a Web 2.0 confi a nos usurios como co-desenvolvedores. Agora a meta ajudar as pessoas a criarem e compartilharem idias e informao, segundo reza uma das tantas defi nies ofi ciais, equilibrando a gran-de demanda com o auto-servio. Essa peculiar combinao do velho slogan faa voc mesmo com o novo mandato mostre-se como for, porm, vem transbordando as fronteiras da internet. A tendncia tem contagiado outros meios de comunicao mais tradicionais, enchendo pginas e mais pginas de revistas, jornais e livros, alm de invadir as telas do cinema e da televiso.

    Contudo, como afrontar esse novo universo? A pergunta pertinente porque as perplexidades so incontveis, alimentadas ainda pela novi-dade de todos esses assuntos e pela inusitada rapidez com que as modas se instalam, mudam e desaparecem. Sob essa rutilante e nova luz, certas formas aparentemente anacrnicas de expresso e comunicao tradi-cionais parecem voltar tona com uma roupagem renovada como o caso das trocas epistolares, dos dirios ntimos e at mesmo das at-vicas conversas. So os e-mails verses atualizadas das antigas cartas, aquelas que se escreviam mo com primor caligrfi co e atravessavam extensas geografi as encapsuladas em envelopes lacrados? E os blogs, po-demos dizer que so meros upgrades dos velhos dirios ntimos? Nesse caso, seriam verses apenas renovadas daqueles cadernos de capa dura, rabiscados luz trmula das candeias para registrar todas as confi sses e segredos de uma vida. Do mesmo modo, os fotologs seriam parentes prximos dos antigos lbuns de retratos familiares. E os vdeos casei-ros, que hoje circulam freneticamente pela rede, talvez sejam um novo tipo de cartes-postais animados, ou ento anunciem uma nova gerao do cinema e da televiso. Quanto aos dilogos digitados nos diversos messengers com ateno fl utuante e ritmo espasmdico, em que medida

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    eles renovam, ressuscitam ou rematam as velhas artes da conversao? Evidentemente, existem profundas afi nidades entre ambos os plos de todos os pares de prticas culturais acima comparados, mas tambm so bvias as suas diferenas e especifi cidades.

    Nas ltimas dcadas, a sociedade ocidental tem atravessado um tur-bulento processo de transformaes, que atinge todos os mbitos e leva at a insinuar uma verdadeira ruptura em direo a um novo horizonte. No se trata apenas da internet e seus universos virtuais para a interao multimdia. So inmeros os indcios de que estamos vivenciando uma poca limtrofe, um corte na histria; uma passagem de certo regime de poder para um outro projeto poltico, sociocultural e econmico. Uma transio de um mundo para outro: daquela formao histrica anco-rada no capitalismo industrial, que vigorou do fi nal do sculo XVIII at meados do XX e que foi analisada por Michel Foucault sob o rtulo de sociedade disciplinar , para outro tipo de organizao social, que comeou a se delinear nas ltimas dcadas.6 Nesse novo contexto, certas caractersticas do projeto histrico precedente se intensifi cam e ganham renovada sofi sticao, enquanto outras mudam radicalmente. Nesse movimento, transformam-se tambm os tipos de corpos que so produzidos no dia-a-dia, bem como as formas de ser e estar no mundo que so compatveis com cada um desses universos.

    Como infl uem todas essas mutaes na criao de modos de ser? De que maneira elas acabam nutrindo a construo de si? Em outras pala-vras, de que modo essas transformaes contextuais afetam os processos pelos quais algum se torna o que ? No h dvidas de que tais for-as histricas imprimem sua infl uncia na conformao dos corpos e das subjetividades: todos esses vetores socioculturais, econmicos e polticos exercem uma presso sobre os sujeitos dos diversos tempos e espaos, estimulando a confi gurao de certas formas de ser e inibindo outras mo-dalidades. Dentro dos limites desse territrio fl exvel e poroso que o organismo da espcie Homo sapiens, as sinergias histricas (e geogrfi cas) incitam certos desenvolvimentos corporais e subjetivos, ao mesmo tempo que bloqueiam o surgimento de formas alternativas.

    Mas o que so exatamente as subjetividades? Como e por que algum se torna o que , aqui e agora? O que nos constitui como sujeitos hist-ricos, indivduos singulares, embora tambm inevitveis representantes

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    de nossa poca, partilhando um universo e certas caractersticas idios-sincrticas com nossos contemporneos? Se as subjetividades so modos de ser e estar no mundo, longe de toda essncia fi xa e estvel que remete ao ser humano como uma entidade a-histrica de relevos metafsicos, seus contornos so elsticos e mudam ao sabor das diversas tradies culturais. Portanto, a subjetividade no algo vagamente imaterial que reside dentro de voc, personalidade do ano, ou de cada um de ns. Assim como toda subjetividade necessariamente embodied, encarnada em um corpo, ela tambm sempre embedded, embebida em uma cultu-ra intersubjetiva. Certas caractersticas biolgicas traam e delimitam o horizonte de possibilidades na vida de cada um, mas muito o que essas foras deixam em aberto e indeterminado. E inegvel que nossa experin-cia tambm seja modulada pela interao com os outros e com o mundo. Por isso, fundamental a pregnncia da cultura na conformao do que se . E quando ocorrem mudanas nessas possibilidades de interao e nessas presses histricas, o campo da experincia subjetiva tambm se altera, em um jogo por demais complexo, mltiplo e aberto.

    Considerando todas essas complexidades, se o objetivo compreender os sentidos das novas prticas que consolidam o atual auge de exibio da intimidade, como abordar um assunto to delicado e atual? As experin-cias subjetivas podem ser estudadas em funo de trs grandes dimenses ou perspectivas diferentes. A primeira se refere ao nvel singular, cuja anlise focaliza a trajetria de cada indivduo como um sujeito nico e ir-repetvel a tarefa da psicologia, por exemplo, ou at mesmo das artes. No extremo oposto a esse nvel de anlise estaria a dimenso universal da subjetividade, que abrange todas as caractersticas comuns ao gnero humano, tais como a inscrio corporal de cada sujeito e sua organizao por meio da linguagem este tipo de estudo a tarefa da biologia ou da lingstica, por exemplo. Mas entre essas duas abordagens extremas existe um nvel intermedirio: uma dimenso de anlise que poderamos denominar particular ou especfi ca, localizada entre os nveis singular e universal da experincia subjetiva, que visa detectar aqueles elementos comuns a alguns sujeitos mas no necessariamente inerentes a todos os seres humanos. Essa perspectiva contempla aqueles aspectos da subjeti-vidade que so claramente culturais, frutos de certas presses e foras histricas nas quais intervm vetores polticos, econmicos e sociais que

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    impulsionam o surgimento de certas formas de ser e estar no mundo. E que solicitam intensamente essas confi guraes subjetivas, para que suas engrenagens possam operar com maior efi ccia. Esse tipo de anlise o mais adequado neste caso, pois permite examinar os modos de ser que se desenvolvem junto s novas prticas de expresso e comunicao via internet, a fi m de compreender os sentidos desse curioso fenmeno de exibio da intimidade que hoje nos intriga.

    Foi nesse mesmo nvel analtico nem singular, nem universal; mas particular, histrico, cultural que Michel Foucault estudou os meca-nismos de disciplinamento nas sociedades industriais. Essa rede mi-cropoltica que o fi lsofo analisou envolve todo um conjunto de prticas e discursos, que agiu sobre os corpos humanos dos pases ocidentais en-tre os sculos XVIII e XX, e que levou confi gurao de certas formas de ser enquanto ajudava a evitar cuidadosamente o surgimento de outras modalidades. Foram engendrados, assim, certos tipos de subjetividades hegemnicas da era moderna, dotadas de determinadas habilidades e aptides, mas tambm de certas incapacidades e carncias. Segundo Fou-cault, nessa poca foram construdos corpos dceis e teis, organismos capacitados para funcionar da maneira mais efi caz dentro do projeto his-trico do capitalismo industrial.

    Mas esse panorama tem mudado bastante nos ltimos tempos, e v-rios autores tentaram mapear o novo territrio, que ainda se encontra em pleno processo de reordenao. Um deles foi Gilles Deleuze, que recorreu expresso sociedades de controle para designar o novo monstro, como ele prprio ironizou. J faz quase duas dcadas que esse fi lsofo francs descreveu um regime apoiado nas tecnologias eletrnicas e digi-tais: uma organizao social ancorada no capitalismo mais desenvolvido da atualidade, que se caracteriza pela superproduo e pelo consumo exacerbado, no qual vigoram os servios e os fl uxos de fi nanas globais. Um sistema articulado pelo marketing e pela publicidade, mas tambm pela criatividade alegremente estimulada, democratizada e recompen-sada em termos monetrios.

    Alguns exemplos devem ajudar a detectar os principais ingredientes desse novo regime de poder. Um dos fundadores do YouTube, signifi ca-tivamente presente no encontro do Frum Econmico Mundial, decla-rou que a empresa pretendia partilhar suas receitas com os autores

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    dos vdeos exibidos no site. Assim, o usurio da internet que disponibi-lizar um fi lme de sua autoria no famoso portal passar a receber parte das receitas publicitrias conseguidas com a exibio do seu trabalho. De fato, outros sites similares implementaram tal sistema, e j h tem-pos compensam com dinheiro seus colaboradores mais populares. O MetaCafe, por exemplo, assumiu o compromisso de pagar cinco dla-res a cada mil exibies de um determinado fi lme. Um dos benefi ciados foi um especialista em artes marciais que faturou dezenas de milhares de dlares com seu brevssimo vdeo, intitulado Matrix For Real, no qual aparece fazendo acrobacias, que em poucos meses foi assistido por cinco milhes de pessoas.

    As operadoras de telefones celulares tambm comearam a remunerar os fi lmes produzidos por seus clientes com seus prprios aparelhos. Res-pondendo a diversas promoes e campanhas de marketing, os usurios enviam os vdeos para o site da operadora, onde o material fi ca dispon-vel para quem quiser assistir. Os prprios clientes se ocupam de divulgar os vdeos entre seus contatos; em alguns casos, recebem crditos por cada fi lme baixado do portal, para serem investidos em outros servios da mesma empresa. No Brasil, por exemplo, uma dessas companhias oferece dez centavos de crdito por cada download dos fi lmes produzi-dos por seus clientes, quantia que s pode ser resgatada uma vez que o montante ultrapassar duzentas vezes esse valor. Uma jovem de dezoito anos foi uma das primeiras colocadas no ranking dessa empresa, cujo servio leva o nome de Claro Video-Maker, tendo arrecadado cerca de cem reais com suas criaes. Do que se trata? Imagens que registram um acampamento com um grupo de amigos, por exemplo, e outras cenas da vida adolescente. Uma concorrente dessa operadora telefnica resolveu parafrasear um clebre manifesto das vanguardas artsticas de outros tempos para promover seu servio, parodiando em tom bem contempo-rneo a famosa convocatria do Cinema Novo dos anos 1960: Uma idia na cabea, seu Oi na mo... e muito dinheiro no bolso. De modo semelhante, com o anzol da recompensa monetria pela criatividade dos usurios, a empresa estimula o envio de fi lmes gravados com o celu-lar de seus clientes para o seu site, usando a conexo por ela fornecida e tributada. Assim, enquanto vocifera: Voc na tela!, acrescenta que tem gente pagando pra ver; e, a rigor, no parece faltar verdade.

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    Mas os exemplos so inmeros e dos mais variados. Esse esquema que combina, por um lado, uma convocao informal e espontnea aos usurios para partilhar suas invenes e, por outro lado, as formalida-des do pagamento em dinheiro por parte das grandes empresas, parece ser a alma do negcio desse novo regime. O site de relacionamentos FaceBook, por exemplo, tambm resolveu compensar monetariamente aqueles usurios que desenvolverem recursos inovadores e surpreen-dentes para incorporar ao sistema. Por isso, a idealizao de pequenos programas e outras ferramentas para esse site se transformou em uma auspiciosa atividade econmica, que inclusive chegou a motivar a aber-tura de cursos especfi cos em institutos e universidades, como a presti-giosa Stanford.

    Algo semelhante acontece com alguns autores de blogs que so des-cobertos pela mdia tradicional devido a sua notoriedade conquistada na internet, sendo contratados para publicar livros impressos co-nhecidos como blooks, pela fuso de blog e book ou colunas em revistas e jornais. Assim, esses escritores comeam a receber dinheiro em troca de suas obras. Um caso tpico a brasileira Clarah Averbuck, que publicou trs livros baseados em seus blogs, um dos quais foi adap-tado para o cinema. A autora defende abertamente sua opo: Agora eu vou escrever livros, declarou, chega de blog, chega de escrever de graa, chega de gastar as minhas histrias.7 No entanto, seu blog muda de nome e endereo mas continua exposto na rede: fi rme, forte e sempre atualizado, como mais uma janela para promover os outros produtos da sua marca. Parecido, talvez at demais, o caso da ar-gentina Lola Copacabana, que se considera enjoada dos blogs mas agradece o fato de ter sido descoberta e, por conta disso, ter passado a receber dinheiro para fazer o que gosta. Escrevo os melhores mails do mundo, afi rma sem falsas modstias e com escasso risco de suscitar acusaes de megalomania ou excentricidade, enquanto confessa ser prostituta das palavras, visto que desfruto escrevendo, por favor, paguem-me para escrever.8

    Esses poucos exemplos ilustram o complexo funcionamento do mer-cado cultural contemporneo. So muito astuciosos os dispositivos de poder que entram em jogo, vidos por capturar todo e qualquer vestgio de criatividade bem-sucedida, a fi m de transform-lo velozmente em

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    mercadoria. Faz-la trabalhar a servio da acumulao de mais-valia, diria Suely Rolnik. No entanto, essa ttica costuma ser ardentemente solicitada pelos prprios jovens que geram essas criaes, talvez sem compreenderem exatamente a que so levados a servir, como intu-ra Deleuze h mais de quinze anos, antes mesmo da popularizao da j quase envelhecida Web 1.0. Na pgina inicial do Second Life, por exemplo, entre vistosos corpos tridimensionais e fragmentos de parasos virtuais, no h muito espao para sutilezas: constantemente notifi cada a quantidade de usurios que se encontram on-line em um dado momen-to; ao lado dessa cifra, com idntico formato e propsito, o site informa a quantidade de dlares gastos pelos fregueses do mundo virtual nas ltimas 24 horas.

    Por sua vez, a empresa que administra o MySpace anunciou o lana-mento do seu novo servio de publicidade direcionada, para cuja im-plementao no recorre apenas aos dados pessoais que compem os perfi s de seus usurios, mas tambm a eventuais informaes garimpadas em seus blogs sobre gostos e hbitos de consumo. Assim, na primeira fase da experincia, a companhia classifi cou seus milhes de usurios em dez categorias diferentes, de acordo com seus interesses manifestos (tais como carros, moda, fi nanas e msica), a fi m de que cada um deles pudesse receber publicidade sintonizada com suas potencialidades como consumidor. Mas essa primeira classifi cao foi apenas o comeo, segun-do a prpria empresa admitiu, destacando a novidade da proposta e as grandes expectativas nela envolvidas.

    Agora os anunciantes dispem de muito mais do que simples dados demogrfi cos extrados dos formulrios de cadastramento, explicou um dos membros da fi rma MySpace. Alm do mais, os idealizadores do projeto consideram que no se trata de nada invasivo para os usurios, visto que estes podem optar por se tornarem amigos das empresas que lhes agradam. Muitos jovens no parecem ter instintos de proteo da privacidade, justifi cou outro especialista, enquanto previa lucros bilio-nrios para o nascente behavioral targeting, ou envio de publicidade em funo do comportamento. Um representante do MySpace ilustrou esse otimismo com o exemplo de uma usuria da rede social que gosta de moda e escreve em seu blog acerca das tendncias da temporada, ela chega inclusive a nos contar que precisa de um par de botas novas para o

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    outono. A concluso parece bvia: Quem no gostaria de ser o anun-ciante capaz de lhe vender esses sapatos?

    Razes similares motivaram que o valor do FaceBook fosse calculado em quinze bilhes de dlares, apenas trs anos depois de seu nascimento como despreocupado hobby de um estudante universitrio. No fi nal de 2007, quando essa outra rede de relacionamentos j contava com mais de cinqenta milhes de usurios e crescia mais rpido que todas as suas concorrentes, ocupou espao nos noticirios porque duas grandes em-presas da rea, Google e Microsoft, disputaram pela compra de uma parcela mnima do seu capital: 1,6%. Finalmente, a dona do Windows venceu a briga: aps desembolsar mais de duzentos milhes de dla-res, justifi cou a transao aludindo ao potencial que o crescente nmero de usurios do servio representava em termos publicitrios. No dia se-guinte a essa aposta aparentemente desmesurada, o mercado fi nanceiro aprovou a jogada: as aes da Microsoft subiram. Poucas semanas mais tarde, o FaceBook inaugurou um projeto apresentado como o Santo Graal da publicidade, capaz de converter cada usurio da rede em um efi caz instrumento de marketing para dezenas de companhias que ven-dem produtos e servios na internet.

    Esse inovador sistema permite o monitoramento das transaes co-merciais realizadas pelos usurios da grande comunidade virtual, a fi m de alertar seus amigos e conhecidos sobre o tipo de produtos que estes compraram ou comentaram. De acordo com a empresa, a inteno dessa estratgia fornecer novas formas de se conectar e partilhar informaes com os amigos, permitindo que os usurios mantenham seus amigos melhor informados sobre seus prprios interesses, alm de servir como re-ferentes confi veis para a compra de algum produto. O novo mecanismo de marketing tambm possibilita outras novidades: se um usurio compra um pacote turstico, por exemplo, a agncia de viagens pode publicar uma foto do turista em plena viagem de frias como parte do seu anncio social, a fi m de estimular seus conhecidos a comprarem servios simila-res. Nada infl ui mais nas nossas decises do que a recomendao de um amigo confi vel, explicou o diretor e fundador do FaceBook. Empurrar uma mensagem para cima das pessoas j no mais sufi ciente, acres-centou, preciso conseguir que a mensagem se instale nas conversas. Assim, aps ter comprovado que as recomendaes dos amigos consti-

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    tuem uma boa maneira de suscitar demanda, a nova gerao de avisos publicitrios tenta colocar esse valioso saber na prtica: Os anncios di-rigidos no so intrusivos porque podem se integrar melhor nas conversas que os usurios j mantm uns com os outros.

    Em alguns casos, os prprios autores de blogs se convertem em prota-gonistas ativos das campanhas publicitrias, como aconteceu com a li-nha de sandlias Melissa, comercializada por uma marca brasileira. Bem no tom dos novos ventos que sopram, porm, a fi rma prefere no falar de campanha publicitria, mas de um projeto de comunicao e bran-ding. A empresa escolheu quatro jovens cujos fotologs faziam certo sucesso entre as adolescentes brasileiras, e as nomeou suas embaixado-ras. Alm de divulgar a marca em seus fotologs, as meninas colabora-ram no processo de criao do calado, incorporando tanto suas pr-prias idias e gostos quanto as opinies deixadas pelos visitantes em seus sites. Com essa estratgia, a companhia anunciante pretendia agradar um segmento do seu pblico: a nova gerao de mulheres adolescentes. Foi um sucesso: as quatro jovens se tornaram celebridades da internet, e seus fotologs receberam mais de dez mil visitantes por semana. Sem sa-ber a que estavam sendo levadas a servir (ou talvez sabendo muito bem), as garotas expressaram sua satisfao por participar de um projeto que privilegiou meninas comuns em vez de profi ssionais. Modelo, alm de no ser real, s vezes nem gosta do que vende, explicou uma delas.

    Contudo, no apenas por todos esses motivos que se torna evidente a inscrio, nesse novo regime de poder, da parafernlia que compe a Web 2.0 e que converteu voc, eu e todos ns nas personalidades do mo-mento. Algo que certamente teria sido impensvel no quadro histrico descrito por Foucault, no qual a celebridade era reservada para uns poucos muito bem escolhidos. As cartas e os dirios ntimos tradicionais denotam sua fi liao direta com essa outra formao histrica, a socie-dade disciplinar do sculo XIX e incio do XX, que cultivava rgidas separaes entre o mbito pblico e a esfera privada da existncia, reve-renciando tanto a leitura quanto a escrita silenciosa em recluso. Apenas nesse solo moderno, cuja vitalidade talvez esteja se esgotando hoje em dia, poderia ter germinado aquele tipo de subjetividade que alguns auto-res denominam Homo psychologicus, Homo privatus ou personalidades introdirigidas.

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    J neste sculo XXI que est ainda comeando, as personalidades so convocadas a se mostrarem. A privatizao dos espaos pblicos a outra face de uma crescente publicizao do privado, um solavanco capaz de fazer tremer aquela diferenciao outrora fundamental. Em meio aos vertiginosos processos de globalizao dos mercados em uma sociedade altamente midiatizada, fascinada pela incitao visibilidade e pelo imprio das celebridades, percebe-se um deslocamento daquela subjetividade interiorizada em direo a novas formas de autocons-truo. No esforo de compreender estes fenmenos, alguns ensastas aludem sociabilidade lquida ou cultura somtica do nosso tempo, onde aparece um tipo de eu mais epidrmico e fl exvel, que se exibe na superfcie da pele e das telas. Referem-se tambm s personalidades al-terdirigidas e no mais introdirigidas, construes de si orientadas para o olhar alheio ou exteriorizadas, no mais introspectivas ou intimis-tas. E, inclusive, so analisadas as diversas bioidentidades, desdobra-mentos de um tipo de subjetividade que se fi nca nos traos biolgicos ou no aspecto fsico de cada indivduo. Por tudo isso, certos usos dos blogs, fotologs, webcams e outras ferramentas como o Orkut e o YouTube seriam estratgias que os sujeitos contemporneos colocam em ao para res-ponder a essas novas demandas socioculturais, balizando outras formas de ser e estar no mundo.

    Entretanto, apesar do veloz crescimento dessas prticas, e em que pese a euforia que costuma envolver todas essas novidades, sempre puxadas pelo alegre entusiasmo miditico, alguns dados conspiram contra as es-timativas mais otimistas quanto ao acesso universal ou incluso digital. Hoje, por exemplo, apenas um bilho dos habitantes de todo o planeta possuem uma linha de telefone fi xo; desse total, menos de um quinto tm acesso internet por essa via. Outras modalidades de co-nexo ampliam esses nmeros, mas de todo modo continuam fi cando fora da rede pelo menos cinco bilhes de terrqueos. O que no chega a causar espanto se considerarmos que 40% da populao mundial, quase trs bilhes de pessoas, tampouco dispem de uma tecnologia bem mais antiga e reconhecidamente mais bsica: o vaso sanitrio.

    A distribuio geogrfi ca desses privilegiados que possuem senhas de acesso ao ciberespao ainda mais eloqente do que a mera quantidade j insinua: 43% na Amrica do Norte, 29% na Europa e 21% em boa

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    parte da sia, incluindo os fortes nmeros do Japo. Nessas regies do planeta, portanto, concentram-se nada menos que 93% dos usurios da rede global de computadores e, portanto, daqueles que usufruem das maravilhas da Web 2.0. A magra porcentagem remanescente respinga nas amplas superfcies dos pases em desenvolvimento, disseminada da seguinte forma: 4% na nossa Amrica Latina, pouco mais de 1% no Oriente Mdio e menos ainda na frica. Assim, no contrapelo das come-moraes pela democratizao da mdia, os nmeros sugerem que as brechas entre as regies mais ricas e mais pobres do mundo no esto di-minuindo. Ao contrrio: talvez paradoxalmente, pelo menos em termos regionais e geopolticos, essas desigualdades parecem aumentar junto com as fantsticas possibilidades inauguradas pelas redes interativas. At o momento, por exemplo, apenas 15% dos habitantes da Amrica Latina tm algum tipo de aceso internet. Constataes dessa natureza levaram a formular o conceito de tecno-apartheid, que procura nomear essa nova cartografi a da Terra como um arquiplago de cidades ou regies muito ricas, com forte desenvolvimento tecnolgico e fi nanceiro, em meio ao oceano de uma populao mundial cada vez mais pobre.

    Esse cenrio global se replica dentro de cada pas. No Brasil, por exem-plo, j existem quase quarenta milhes de pessoas com acesso internet, a maioria concentrada nos setores mais abastados das reas urbanas. Dessa quantidade, s trs quartos dispem de conexes residenciais, e de fato so apenas vinte milhes os que se consideram usurios ativos; ou seja, aqueles que se conectaram pelo menos uma vez no ltimo ms. Os nmeros tm crescido e j representam uma quinta parte da populao nacional com mais de quinze anos de idade; no entanto, convm explici-tar tambm o que esse nmero berra em surdina: so 120 milhes os bra-sileiros que (ainda?) no tm nenhum tipo de acesso rede. Embora em nmeros absolutos o pas ocupe o primeiro lugar na Amrica Latina e o quinto no mundo, se as cifras forem cotejadas com o total de habitantes, o Brasil se encontra na 62 posio do elenco mundial, e na quarta do j relegado subcontinente. Na Argentina, por sua vez, calcula-se que sejam mais de quinze milhes os usurios da internet, o que representa 42% da populao nacional, porm as conexes residenciais no passam de trs milhes; a maior parte dos argentinos s acessa esporadicamente, a par-tir de cibercafs ou lan houses. Quase dois teros desse total se concen-

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    tram na cidade ou na provncia de Buenos Aires; enquanto nessas reas as conexes de banda larga tm uma penetrao de 30%, nas regies mais pobres do norte do pas essa opo no atinge sequer 1%.

    luz desses dados, parece bvio que no exatamente qualquer um que tem acesso internet. Assim, embora dois teros dos cidados bra-sileiros jamais tenham navegado pela web e muitos deles sequer saibam do que se trata, seis milhes de blogs so desta nacionalidade, posicio-nando o Brasil como o terceiro pas mais blogueiro do mundo. Porm, tampouco um detalhe menor o fato de que dois teros desses autores de dirios digitais residam no Sudeste, que a regio mais rica do pas. Nesse sentido, no convm esquecer que trs quartos dos 774 milhes de adultos analfabetos que ainda h no mundo vivem em quinze pases, e o Brasil um deles.

    Por todos esses motivos, caberia formular uma defi nio mais precisa daqueles personagens que foram premiados com tanto glamour como as personalidades do momento: voc, eu e todos ns. Se persistirem as condies atuais (e por que no haveriam de persistir?), dois teros da populao mundial nunca tero acesso internet. E mais: uma boa parte dessa gente comum sequer ter ouvido falar dos blogs ou do reluzente YouTube, do Second Life ou do Orkut. Esses bilhes de pes-soas, que no entanto habitam este mesmo planeta, so os excludos dos parasos extraterritoriais do ciberespao, condenados cinza imo-bilidade local em plena era multicolorida do marketing global. E o que talvez seja ainda mais penoso nesta sociedade do espetculo, onde s o que se v: nesse mesmo gesto, tal contingente tambm condenado invisibilidade total.

    Portanto, impossvel desdenhar a relevncia dos laos incestuosos que amarram essas novas tecnologias ao mercado, instituio onipresen-te na contemporaneidade, e muito especialmente na comunicao media-da por computador. Laos que tambm as prendem a um projeto bem identifi cvel: o do capitalismo atual, um regime histrico que precisa de certos tipos de sujeitos para alimentar suas engrenagens (e seus circuitos integrados, e suas prateleiras e vitrines, e suas redes de relacionamentos via web), enquanto repele ativamente outros corpos e subjetividades. Por isso, antes de investigar as sutis mutaes nas dobras da intimidade, na dialtica pblico-privado e na construo de modos de ser, preciso

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    desnaturalizar as novas prticas comunicativas. Algo que s ser possvel se desnudarmos suas razes e suas implicaes polticas.

    Longe de abranger todos ns como um harmonioso conjunto homo-gneo e universal, cumpre lembrar que apenas uma poro das classes mdia e alta da populao mundial marca o ritmo dessa revoluo de voc e eu. Um grupo humano distribudo pelos diversos pases do nosso planeta globalizado, que, embora no constitua em absoluto a maioria numrica, exerce uma infl uncia muito vigorosa na fi sionomia da cultura global. Para isso, conta com o inestimvel apoio da mdia em escala pla-netria, bem como do mercado que valoriza seus integrantes (e somente eles) ao defi ni-los como consumidores tanto da Web 2.0 como de tudo o mais. precisamente esse grupo que tem liderado as metamorfoses do que signifi ca ser algum e logo ser eu ou voc ao longo da nossa histria recente.

    Nesse mesmo sentido, um outro esclarecimento se impe: a riqueza das experincias subjetivas imensa, sem dvida nenhuma. So incont-veis, e muito variadas, as estratgias individuais e coletivas que sempre desafi am as tendncias hegemnicas de construo de si. Por isso, pode ocorrer que certas aluses aos fenmenos e processos analisados neste ensaio paream reduzir a complexidade do real, agrupando uma diver-sidade incomensurvel e uma riqussima multiplicidade de experincias sob categorias amorfas como subjetividade contempornea, mundo oci-dental, cultura atual ou todos ns. No entanto, a inteno deste livro delinear certas tendncias que se perfi lam fortemente em nossa sociedade ocidental e globalizada, com uma ancoragem especial no contexto latino-americano, cuja origem remete aos setores urbanos mais favorecidos em termos socioeconmicos: aqueles que usufruem de um acesso privilegia-do aos bens culturais e s maravilhas do ciberespao. A irradiao des-sas prticas pelos diversos meios de comunicao, por sua vez, passa a impregnar os imaginrios globais com um denso tecido de valores, crenas, desejos, afetos e idias. Tais categorias um tanto indefi nidas e generalizadas so comparveis e por isso muitas vezes comparadas, inclusive nestas pginas quilo que no apogeu dos tempos modernos cristalizou em noes igualmente genricas e vagas, tais como sensibi-lidade burguesa e homem sentimental ou, mais especifi camente ainda, Homo psychologicus e personalidades introdirigidas.

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    Voltando queles eu e voc que esto se convertendo nas personalida-des do momento, retorna a pergunta inicial: como algum se torna o que ? Neste caso, pelo menos, a internet parece ter ajudado bastante. Ao longo da ltima dcada, a rede mundial de computadores tem dado luz um amplo leque de prticas que poderamos denominar confessionais. Milhes de usurios de todo o planeta gente comum, precisamente como eu ou voc tm se apropriado das diversas ferramentas dispo-nveis on-line, que no cessam de surgir e se expandir, e as utilizam para expor publicamente a sua intimidade. Gerou-se, assim, um verdadeiro festival de vidas privadas, que se oferecem despudoradamente aos olhares do mundo inteiro. As confi sses dirias de voc, eu e todos ns esto a, em palavras e imagens, disposio de quem quiser bisbilhot-las; basta apenas um clique do mouse. E, de fato, tanto voc como eu e todos ns costumamos dar esse clique.

    Junto com essas instigantes novidades, vemos estilhaarem-se algu-mas premissas bsicas da autoconstruo, da tematizao do eu e da sociabilidade moderna; e justamente por isso que essas novas prticas resultam signifi cativas. Porque esses rituais to contemporneos so ma-nifestaes de um processo mais amplo, certa atmosfera sociocultural que os abrange, que os torna possveis e lhes concede um sentido. Esse novo clima de poca que hoje nos envolve parece impulsionar certas transformaes que atingem, inclusive, a prpria defi nio de voc e eu. A rede mundial de computadores se tornou um grande laboratrio, um terreno propcio para experimentar e criar novas subjetividades: em seus meandros nascem formas inovadoras de ser e estar no mundo, que por ve-zes parecem saudavelmente excntricas e megalomanacas, mas outras vezes (ou ao mesmo tempo) se atolam na pequenez mais rasa que se pode imaginar. Como quer que seja, no h dvidas de que esses reluzentes es-paos da Web 2.0 so interessantes, nem que seja porque se apresentam como cenrios bem adequados para montar um espetculo cada vez mais estridente: o show do eu.

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    1 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como algum se torna o que . So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 17.

    2 FRANCO FERRAZ, Maria Cristina. Nietzsche, o bufo dos deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994, p. 49-52.

    3 GROSSMAN, Lev. Times person of the year: you. In: Time, vol. 168, n. 26. 25 dez. 2006.

    4 ROLNIK, Suely. A vida na berlinda: como a mdia aterroriza com o jogo entre subjetividade-lixo e subjetividade-luxo. In: Trpico. So Paulo: 2007.

    5 DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de con-trole. In: Conversaes. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 226.

    6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: histria da violncia nas prises. Petrpolis: Vozes, 1977.

    7 Apud: AZEVEDO, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. In: Matraga, v. 14, n. 21. Rio de Janeiro: UERJ, jul.-dez. 2007, p. 55.

    8 Apud: VALLE, Agustn. Los blooks y el cambio histrico en la escritura. In: Debate, n. 198. Buenos Aires: 29 dez. 2006, p. 50-1.

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