TÍTULO: RAPADURA - O CÓRREGO | O PARQUE - POÉTICAS...
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TÍTULO: RAPADURA - O CÓRREGO | O PARQUE - POÉTICAS URBANAS
CATEGORIA: EM ANDAMENTO
ÁREA: CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS
SUBÁREA: Arquitetura e Urbanismo
INSTITUIÇÃO: UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO - UNICID
AUTOR(ES): GABRIELLA DE FATIMA DIAS
ORIENTADOR(ES): ALTIMAR CYPRIANO
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Rapadura | o córrego | o parque – Poéticas Urbanas
Rapadura | the steam | the park – Urban Poetics
Gabriella de Fátima Dias 1, Profº Me. Altimar Cypriano
1 Universidade Cidade de São Paulo; Rua Freguesia de Poiares, 178 – Vila Carmosina, São Paulo, Brasil; [email protected]
2 Universidade de São Paulo; [email protected]
RESUMO
A malha urbana da cidade desenvolveu-se tendo como eixo os rios e córregos, fundamentais para o desenho das vias e caminhos, porém com o passar dos anos e a priorização de quaisquer aspectos que não os mesmos, sua preservação e inserção no cotidiano urbano, passaram a ser ignorados e desrespeitados, tornando-se parte dos assuntos pouco abordados, mas de extrema relevância para o crescimento sustentável das cidades. A proposta deste estudo passa pela compreensão de aspectos históricos e sociais, levantando questionamentos relacionados à bacia hidrográfica do Rio Aricanduva, importante afluente do Rio Tietê, especificamente do Córrego Rapadura e suas imediações, englobando o Parque Linear do Córrego Rapadura, analisando seu potencial de uso; as ocupações irregulares que o margeiam; a memória dos que residem no local; ao tratarmos de memória coletiva, somos levados a diferentes relações de habitação e convívio social, intervenções e fatos que marcaram as alterações ao longo dos anos. A relevância dessa pesquisa é indubitável, uma vez que há um desconhecimento geral da população com relação a importância da preservação das margens dos rios e córregos e da influência da memória coletiva nos aspectos mais primordiais do processo de urbanização.
Palavras-chave: Memória-coletiva, Rapadura, Rios, Córrego.
ABSTRACT
The urban network of the city was developed with the axis of rivers and streams, fundamental for the design of roads and pats; however the years and the prioritization of any aspects other than the same, theirs preservation and insertion in urban daily life, started to be ignored and disrespected, becoming part of the matters not addressed, but extremely relevant to the sustainable growth of cities. The purpose of this study is to understand historical and social aspects, raising questions related to Aricanduva's hydrographic basin which is an important affluent of the Tietê river, specifically the Rapadura stream linear park, analyzing its potential use; the irregular occupations that surround it; the memory of those residing on the site; when dealing with collective memory, we are led to different housing and social relations, interventions and facts that marked the changes over the years. The relevance of this research is undoubted, since there is a general ignorance and unawareness of the population regarding the importance of preserving stream and river banks besides the influence of collective memory on the most primordial aspects of the urbanization process.
Key-words: Collective-memory, Rapadura, Rivers, Stream;
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RESUMEN
El tejido urbano de la ciudad se desarrolló con el eje de ríos y arroyos, que son fundamentales para el diseño de calles y carreteras, pero a lo largo de los años y la priorización de cualquier cosa que no sean ríos y arroyos, su preservación e inserción en la vida. vida cotidiana urbana Fueron ignorados e irrespetados, convirtiéndose en parte de los problemas que fueron poco abordados pero extremadamente relevantes para el crecimiento sostenible de las ciudades. El objetivo de este estudio es comprender los aspectos históricos y sociales, planteando preguntas relacionadas con la cuenca del río Aricanduva, un importante afluente del río Tietê, específicamente el arroyo Rapadura y sus alrededores, que abarca el parque lineal del arroyo Rapadura, analizando su uso potencial; las ocupaciones irregulares que lo rodean; el recuerdo de quienes residen en el lugar; Cuando tratamos con la memoria colectiva, somos conducidos a diferentes viviendas, relaciones sociales, intervenciones y hechos que han marcado los cambios a lo largo de los años. La relevancia de esta investigación es incuestionable, ya que existe un desconocimiento general de la población sobre la importancia de preservar las orillas de los ríos y arroyos y la influencia de la memoria colectiva en los aspectos más fundamentales del proceso de urbanización.
Palabras-clave: Memoria colectiva, Rapadura, Ríos, Arroyo.
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1. INTRODUÇÃO
O estudo em questão inicia-se obrigatoriamente narrando um cenário a
aproximadamente 4.000 a.C. por meio de uma viagem direta às primeiras civilizações,
no Egito antigo; ao tratarmos das primeiras relações de aglomerações urbanas
verificamos a essencial relação dos povos com o Rio Nilo, considerado o segundo mais
extenso rio do mundo com cerca de 6.650km, cortando a região central e nordeste do
continente Africano, indo do sul ao norte respeitando a topografia sem que isso altere
necessariamente o sentido de seu curso para a descrição de rio que corre ao contrário,
e desaguando no mar mediterrâneo. O rio Nilo conhecido até então conhecido por “Iteru”
“rio grande” era considerado responsável por toda espécie de interação urbana e
narrativa da mesma; pela prosperidade da nação e desenvolvimento da sociedade vendo
que a posse da água significava poder, tendo total influência nos aspectos sociais tidos
como prioritários nesta civilização extremamente social, ao buscarmos por histórias
antigas é comum ver citações em que o Egito é a dádiva do Nilo, colocando-o
protagonista da vida como também o responsável por toda ela. O cronograma de
atividades do povo era baseado nas cheias do rio, que localizado em uma região
desértica era a única fonte de água para beber, irrigar plantações, criar gado e produzir
o húmus, uma espécie de lodo fértil que permitia o cultivo de grãos na região, de acordo
com BAINES; MALIK (2008,P.15):
“As águas do Nilo provêm do Nilo Azul, que nasce nas terras altas da
Etiópia, e do Nilo Branco, que se divide num emaranhado de regatos no Sudão
meridional e se origina no lago Vitória, no centro da África […] No Egito a água do
Nilo alcançava o nível mais baixo de abril a junho. Já em julho o nível subia e a
inundação começava normalmente em agosto, cobrindo a maior parte do vale
desde aproximadamente meados de agosto até o final de setembro, lavando os
sais do chão e depositando um estrato de sedimentos que crescia a um ritmo de
vários centímetros por século. Depois que o nível da água baixava, eram
semeados os plantios principais em outubro e novembro, que, segundo a espécie,
amadureciam de janeiro a abril”.
tão importante era sua relação com a sociedade que as épocas de seca do rio narravam
não somente um período de escassez absoluta de recursos, mas também um período
de baixa nas interações sociais; todo o calendário do povo era baseado nas vantagens
proporcionadas pelas cheias dos rios, como exemplificado com a especificação de
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meses anteriormente, e em como se preparar para sobreviver aos momentos em que o
rio não estivesse presente, trazendo diversas privações ao estilo de vida da população,
o tornando então, mais do que o protagonista da vida em sociedade, mas o responsável
por todos os aspectos da civilização Egípcia.
“O rio permeia as manifestações culturais, entre outros, da mitologia, da
história, da literatura, da música, da religião, da filosofia, da pintura, da escultura
e do cinema. Para diversas civilizações, sua presença foi, historicamente,
sinônimo de riqueza e poder, mas, por outro lado, também de fúria, de força da
natureza, por seu potencial destruidor e catastrófico, trazendo doenças,
arrasando cidades e dizimando populações”.1
Ao nos deparar com a história do Brasil colônia e até então América Portuguesa tamanha
era a importância dos rios e córregos que Dom João VI em 09 de agosto de 1817 ditou
normas de proteção aos mananciais de rios, com o único intuito de preservar o volume
das aguas de forma preventiva, pois, a falta de água potável já se anunciava no Rio de
Janeiro por meio de uma demanda crescente e das poucas iniciativas de renovação
deste importante recurso natural. Dentre essas medidas é valido destacar neste trabalho
de pesquisa científica, a proibição da extração da mata ciliar, visando reduzir a
velocidade em todo o percurso e extensão do rio devido ao fato de se entender que o
caminho mais rápido não seria de forma alguma o mais viável; corte de árvores nas
margens de alguns rios que possuíam seu trajeto menos sinuoso e precisavam
necessariamente do apoio fornecido pelas raízes de árvores nativas no auxílio do mesmo
processo de desaceleração de percurso e pelo fortalecimento dos leitos evitando
deslizamentos; foram também limitadas as construções em margens e nascentes para
preservar os aspectos naturais da biodiversidade e qualidade da água; e limitadas as
alterações em seu curso sinuoso tal como, largura, profundidade e alterações lineares.
Dados estes, que confrontam o atual pensamento de que o desenvolvimento do Brasil
não contou com nenhum planejamento de cunho urbanístico para preservação e cuidado
com os rios, este conjunto de medidas apontam para o fato de que houve sim um
planejamento, alterado e abandonado com o tempo visando quaisquer outros aspectos
que não a saúde dos rios e córregos como partes fundamentais do desenvolvimento
urbano, mas pensados como eixos estruturantes em um momento importante da história
1 Cf. Maria da Graça Amaral Neto Saraiva, O rio como paisagem: gestão de corredores fluviais no quadro do
ordenamento do território (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/ Fundação para ciência e tecnologia,1999)
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e das diretrizes que dariam andamento ao que seria o Brasil colônia. GORSKI, CECILIA
(2010 P36)
“No Brasil, de modo geral, a relação harmoniosa de encontro da população com o rio
ocorreu até metade do século XIX, quanto, então, ampliaram-se os conflitos entre
desenvolvimento, sociedade e meio físico.”
O crescimento das cidades, as estratégias de planejamento adotadas e a falta de
informação não somente no que diz respeito a população, mas também aos governantes
é que foram fatores decisivos para o atual estado de preservação, deterioração e
calamidade nos quais se encontram os rios da cidade de São Paulo mais
especificamente devido a aproximação com o objeto de estudo deste trabalho, o rio
Tietê, seu afluente, Rio Aricanduva e os córregos que dele derivam como o Rapadura,
englobando o Parque Linear do Córrego Rapadura, implantado pela Prefeitura Municipal;
é necessito trazer uma narrativa histórica do córrego estabelecendo suas ligações com
o entorno, sejam elas harmônicas ou não, indo desde suas margens como local de
passeio até a visão de “esgoto a céu aberto” das áreas mais precárias do córrego; as
alterações e intervenções que ele sofreu ao longo dos anos tal como a inclusão do
Parque Linear na área mais nobre, tendo sua inserção como um dos pontos de
discussão, pois afeta de forma direta as relações de memória dos moradores do bairro
nobre que não se apropriam do espaço tornando-o um local perigoso e vazio, e dos
moradores das áreas mais carentes que não possuem área de lazer ou equipamentos
públicos, desvalorizando ainda mais o rio que a cada dia mais passa a ser visto apenas
como local descarte e não como área de convívio para as novas gerações que crescem
com a perspectiva de local a ser ignorado, tal qual é ignorada a descarga nas
residências, um ponto que passa despercebido a menos que gere algum eventual
problema; o fechamento por meio de muros metálicos feito pela população da parte
nobre para cortar a comunicação e acesso das áreas de ocupação irregular e sua
população ao bairro como narrado pelos moradores dos lotes lindeiros; buscando
estabelecer uma ligação significativa entre córrego e as mais diversas relações de
memória, visto que é através da memória coletiva que instituímos a importância ou
irrelevância de algo ou de um local, os rios e córregos são importantes pontos nodais
das cidades, definido por Kevin Linch como: “lugares estratégicos de uma cidade através
dos quais o observador pode entrar, são os focos intensivos para os quais ou a partir
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dos quais ele se locomove” 2; a perda destes pontos por meio de seu desuso e
degradação é então uma perda significativa, será possível visualizar durante o
desenvolvimento deste estudo a memória coletiva como importante ferramenta na luta
para que os mesmos voltem a ser protagonistas da qualidade de vida urbana e da vida
em sociedade.
2. MÉTODOS
Por meio de revisão bibliográfica, narrativas amparadas por pesquisas e
levantamentos de campo, considerando o contexto histórico da ocupação, o
desenvolvimento e os aspectos urbano e social na realidade atual do Córrego
Rapadura; análises de mapas de plataformas digitais, relatórios e planos de
intervenção disponibilizados pela Prefeitura Municipal de São Paulo, para
comparação com dados históricos também serão meios de desenvolver uma das
principais questões: a relação documentada versus a realidade da região, resultando
em uma análise comparativa, critica e atualizada, que quando atrelada à
levantamentos de opinião e entrevistas no local, nos fornecerá as informações
necessárias para narrar a relação de memória urbana aos olhos de quem realmente
vivencia a vida ao lado do Córrego Rapadura.
4. DISCUSSÃO
Com 2,7km o córrego rapadura é um dos grandes afluentes do Rio Aricanduva,
conhecido inicialmente por Córrego Jardim Têxtil; tem sua pior área localizada próximo
à Rua Conselheiro Carrão onde enchentes são comuns em dias de chuva mais intensas
e encontram-se as moradias em estado mais precário, diversas demolidas parcialmente
devido ao risco iminente, pragas e a falta de manutenção por parte dos próprios
moradores que fazem descarte ilegal de entulho e resíduos domésticos nas margens do
córrego; a área também sofre com a crescente especulação imobiliária que tem cada
vez mais afastado os moradores das ocupações irregulares do córrego sem trazer
melhoria alguma para o mesmo pois frequentemente os lotes passam a ser destino de
mais descarte de entulho agravando ainda mais o quadro geral em que se encontra a
região, estes fatos tem contribuído significativamente para que os destroços do que um
2 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 52.
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dia foram habitações e o lixo irregular engulam o córrego num processo aparentemente
irreversível e progressivo.
Parcialmente canalizado, o Córrego Rapadura abriga um parque linear, moradias
irregulares como citado anteriormente, e é responsável por diversas formas de
interpretação de contentamento ou não, no que diz respeito a sua importância social e
urbana. A memória coletiva relacionada aos elementos urbanos e sua apropriação pelo
cidadão, que outrora utilizava essa “rede como estrutura de caminhos transitáveis”
(CULLEN, 2001), vai se apagando, uma vez que o nome da rua associada ao nome do
rio também se perde no tempo visto que nem mesmo é possível identificar esta
associação, atualmente reforçada pela desvalorização de elementos históricos. Segundo
Kevin Lynch (1999) vias são “os canais ao longo dos quais o observador se move, usual,
ocasional ou potencialmente. Podem ser ruas, passeios, linhas de trânsito, canais,
caminhos-de-ferro”, embora ainda segundo o autor, em alguns casos apresentados
houve uma dificuldade da população entender a interrelação entre o desenho viário e o
curso dos rios, dificuldade que se repete em diversos locais além do trazido para
discussão pelo autor: “Mas a noção de água não era tão clara, pois era apagada por
muitas estruturas [...] A maioria dos indivíduos não foi capaz de interligar o Rio Charles
e o porto de Boston de uma forma concreta”.
De igual forma acontece em São Paulo e é impossível não citar Odette Seabra3 que certa
vez ao conversar com o Jornal a folha de São Paulo, narrou as relações do paulistano
com o rio Tietê, da seguinte forma: “o rio é uma referência de espaço” o que é evidente
no dia a dia, inclusive no dos moradores da região do córrego, que tomam como ponto
nodal o parque linear; por exemplo, é mais rápido e prático durante uma conversa ao
telefone quando se é questionado a respeito do local em que se está, dizer que esta as
margens do rapadura próximo ao parque, do que dizer o nome da própria rua que os
abriga; “integra a identidade de um povo”, visto que, a forma com a qual lidamos com
estes importantes recursos diz muito sobre nossas prioridades e nossa forma de pensar
em planejamento urbano, como cidadãos e como nação principalmente; e finaliza sua
entrevista dizendo que “há quem cruze o Tietê quatro vezes ao dia sem se dar conta”,
ressalto que a menos que o mesmo esteja com seus níveis baixos e o odor esteja tão
3 Odette Carvalho de Lima Seabra – Professora Doutora Livre-Docente do Departamento de Geografia da USP.
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desagradável ao ponto de nos fazer perceber que algo não está certo gerando um
questionamento mental e por vezes um incomodo momentâneo caso esteja dividindo o
espaço de um automóvel com terceiros quando olha-se para a pessoa ao lado em tom
de questionamento, e em segundo plano finalmente é possível perceber o rio como
causador da situação, fato que ironicamente é capaz de livrar os usuários do veículo do
constrangimento, mas não os exime de qualquer responsabilidade no que diz respeito
ao quadro atual do rio e consequentemente do ar. Através destes aspectos é possível
finalmente introduzir e de forma singela, porém direta experimentar o poder da memória
coletiva, pois qualquer pessoa que já tenha passado pelo local em tais dias, certamente
consegue trazer a memória a sensação aqui narrada e ainda que tenham vivenciado
este momento separadamente são capazes de traçar uma relação de memória de quem
experimenta um momento em comum ao reviver algo ainda que o mesmo não tenha
experimentado em conjunto e simultaneamente, o que foi descrito por Maurice
Halbwachs da seguinte forma:
“... nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas
pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca
estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam
materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade
de pessoas que não se confundem. ” (HALBWACHS, 1990, P.26).
Uma relação bastante similar à proposta pelo estudo ente os moradores e o córrego,
quando questionados a respeito do “Córrego Rapadura” e sua localização os mesmos o
desconhecem mesmo morando a cerca de 500m do local ou menos, e quando
reformulada a questão utilizando o nome original do córrego “Jardim Textil” é comum ser
informado de que o mesmo foi canalizado a anos, sem que seja feita qualquer analogia
ou assimilação com a parte que resta a céu aberto; as diversas estruturas naturais e
forjadas pelo ser humano tem colaborado para que o mesmo seja cada vez mais engolido
e apagado, mirrando qualquer vestígio de proteção que a memória possa fornecer seja
de forma abstrata como lembrança ou de forma palpável como objeto de preservação
prática.
Ao trabalhar com a memória coletiva no local é possível se deparar com moradores que
vivem as margens do córrego há mais de 60 anos e moradores mais jovens, onde é
visível a sua influência na forma de pensar em moradia dessas pessoas, após caminhar
pelo local e encontrar um morador que sempre esteve as margens do rio desde a
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infância, desde que se reconhece como pessoa e até mesmo antes de se reconhecer
como cidadão e vivenciou todo o processo de crescimento populacional, desmatamento
de uma área que fora rural e degradação completa do córrego, podemos notar uma
diferença exacerbada entre a relação deste senhor com o rio e a de um jovem que mora
lá a pouco mais de 15 anos. Este morador mais antigo experimentou transições,
transformações, desconstruções e reconstruções de memória inenarráveis a respeito de
um mesmo local, e de um mesmo objeto de estudo, mesmo sendo abordado da mesma
forma com pessoas de diferentes faixas etárias e de diferentes pontos ao longo do
percurso do Rapadura. O dia a dia deste morador e a forma dele de se relacionar é
completamente diferente, por exemplo: a margem do córrego próximo a casa do morador
mais antigo, tem a grama aparada, flores plantadas e nenhum lixo ou descarte irregular
de resíduos domésticos. É sabido que seria precipitado e equivocado dizer que este
senhor não contribuiu em nada na poluição total e morte do córrego, porém não é
possível fechar nossos olhos a respeito da verdade de que por ter crescido no local e
brincado ali, criado laços e até mesmo por se sentir parte daquela realidade, que ele tem
contribuído para o não agravamento a situação, a menos não por suas mãos ou através
das pessoas que dividem a residência com ele.
A forma com que os jovens têm sido conduzidos a lidar, vivenciar e experimentar estes
recursos reflete diretamente no que temos colhido em dias de chuva com suas cheias,
em dias de sol com seu odor, e diariamente ao não usufruirmos de todo o potencial que
um córrego preservado e limpo poderia proporcionar à população próxima a ele.
Não é correto a mentalidade de despoluir os rios e córregos, se juntos a ela não for
desconstruída e trabalhada diretamente a mentalidade dos moradores da região, para
uma revitalização muito mais profunda do que qualquer uma realizada por qualquer
responsável público, é necessário reconstruir a memória desta e a das próximas
gerações a respeito destes importantes recursos; ao tratar do porquê deste pensamento
radical e específico é necessário apontar que sem esta medida, os mesmos se tornariam
sujos e inutilizáveis novamente num curto período de tempo, é necessário construir a
memória das novas gerações de forma que o impacto da preservação resulte na inclusão
deste recurso no dia a dia e sua limpeza e revitalização sejam consequência de um novo
estilo de vida, ai sim poderá ser trabalhado de forma integral e efetiva com as grandes
intervenções de melhoria que o poder público pode proporcionar, para que a melhoria
seja complementar ao que o recuso em si pode de fato oferecer e se existe uma
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ferramenta capaz de executar esta transformação esta ferramenta esta ferramenta é a
memória coletiva.
“Não basta despoluir o rio! Mesmo que ele volte a correr límpido, piscoso,
potável, de nada modificará a percepção que a população tem do seu ‘esgoto a
céu aberto’. O rio precisa voltar a se incorporar na vida do paulistano e, para isso,
a única alternativa é reconstituí-lo como espaço de lazer”4
Após os primeiros levantamentos e visitas em campo, pode-se perceber que há
nitidamente uma dicotomia na paisagem do córrego Rapadura – a primeira maquiada
pela instauração do parque, que mesmo espremido entre a via e a área outrora invadida,
permite a aproximação amigável das pessoas e curso d’água e a segunda pela
constatação da ocupação dos espaços residuais pela população que se acomoda como
pode sobre as margens.
Falando um pouco a respeito das relações já existentes ao longo da parte não canalizada
do Córrego Rapadura, podemos notar uma clara divisão entre uma área de alto e baixo
poderes aquisitivos e um processo de exclusão e gentrificação evidente e
intencionalmente causado pelos próprios moradores.
Para o andamento deste trabalho foram explorados dois cenários já existentes no local
desde que é feito o acompanhamento a aproximadamente 7 anos:
A faixa paralela a Rua Conselheiro Carrão próxima a um Centro de Educação Infantil,
onde vemos diariamente crianças brincando de bicicleta, esconde-esconde e transitando
livremente e sem supervisão no meio de uma rua movimentada, por ser uma rua de
escape a loucura da via coletora que tem seu movimento cada vez mais se tornado
próximo a de uma via arterial, alterando completamente os aspectos projetados, onde
uma via local passou a ter tráfego de coletora e uma via coletora passou a ter tráfego de
via arterial, e a inserção de um parque linear que leva o nome do córrego rapadura e foi
feita, pelos mesmos motivos pelos quais os parques lineares sempre são feitos, visando
a “melhoria” na qualidade de vida, segurança do entorno e adição de um importante
equipamento público para impacto social, vide a ironia já expressa por Jane Jacobs
4 Cf.Z.Neiman, “Queremos nadar no nosso rio! O simbolismo da balneabilidade para a construção do conceito de
qualidade de vida urbana”, em L.Dowbor & R. A. Tagnin (orgs.), Administrando a água como se fosse importante;
gestão ambiental e sustentabilidade (São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005) p, 264.
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“Ninguém se importou com o que precisávamos. Mas os poderosos vêm aqui, olham
para esse gramado e dizem: ‘Que maravilha! Agora os pobres têm tudo’”.5
O intrigante neste caso é o local escolhido para sua inserção, que foi a parte nobre do
córrego, transmitidas estas importantes informações o intuito a seguir é traçar uma
projeção de impacto nas gerações atuais e futuras.
Os moradores da porção nobre do córrego, construíram um “muro de contenção” de
pessoas, como será nomeado neste estudo, impossibilitando quase que por completo o
acesso (ao menos por aquela porção mais próxima ao córrego) para o parque linear,
quase que como se fossem estabelecidos dois córregos ou como se o mesmo fosse
parcialmente interrompido, ao questioná-los boa parte das respostas tem como
característica a seguinte narrativa: “foi uma medida adotada para segurança de nossas
moradias”, o resultado disso é uma nova barreira, física e de memória, as relações entre
estes moradores e entre eles e o Rapadura claramente não são harmônicas, porém eles
não perceberam o impacto disso nas relações que estão construindo não só para seus
filhos, mas para sua realidade atual.
As crianças que moram na parte próxima a conselheiro além de se exporem
constantemente a riscos iminentes, porém por elas despercebidos e pelos adultos
ignorados, tem fixado indiretamente em sua memória uma imagem de córrego que serve
tão somente de esgoto, local para descarte de coisas que não querem mais e o aspecto
de barreira física para acesso a “rua de lazer”. Em contrapartida na região do parque
linear, temos uma área quase inutilizada, pois dificilmente pais com casas de mais de
250m² e seus quintais avantajados permitem que seus filhos brinquem em um parque
próximo a um córrego sem proteção alguma, estas crianças têm do local uma imagem
de perigo, quase que nenhum contato com o córrego e fixam somente o fato de que o
local “fede” e tem roedores além de outras coisas que apresentam riscos sanitários.
Temos então além de problemas atuais agravados por esta memória um quadro onde
existe um parque abandonado, que se tornou uma região onde ocorrem assaltos e que
protagoniza comumente o consumo de drogas lícitas e ilícitas, uma benfeitoria que por
ter sido mal alocada tem causado mais desgastes que vantagens aos olhos dos
moradores, salvo alguns que ainda tentam colaborar com o plantio de algumas espécies
5 Jacobs, Jane. Morte e vida das grandes cidades. Coleção a, São Paulo, WMF Martins fontes, 2000. P. 14
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de arvores frutíferas e pequenos jardins, se apropriando da forma positiva e esperada
do local.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O questionamento nasce necessariamente do fato de que será que se inserido mais
próximo à região menos favorecida as crianças que hoje brincam na rua e veem uma
área com potencial de lazer como esgoto a céu aberto não teriam uma construção de
memória mais próxima a do senhor, que hoje cuida de sua porção de terra próximo ao
córrego com respeito? E a vinda destas pessoas e o uso de forma apropriada do parque
não tornaria o local mais vigiado pelo que Jane Jacobs6 descreveu como “os olhos da
rua”? Essa relação mais próxima não poderia causar nas crianças da parte nobre
também um impacto positivo no que diz respeito a segurança e salubridade? Não seria
um passo na direção certa e com isso uma direção mais inclusiva e adequada? Todas
estas construções não poderiam ter um impacto grande o suficiente ou significativo o
suficiente para que cada um colaborasse com sua parte no futuro? A memória tem o
poder de impactar profundamente todas as nossas relações pessoais, porque não
aceitar que ela tem o poder de impactar também nossos ambientes coletivos?
“Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,
[...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...]
este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros
meios. ” (HALBWACHS, 1990, P.51).
“A memória coletiva é da ordem da vivência, a memória nacional se refere
a uma história que transcende os sujeitos e não se concretiza
imediatamente no seu cotidiano (...) a memória coletiva se aproxima do
mito e se manifesta, portanto ritualmente. A memória nacional é da ordem
da ideologia, ela é o produto de uma história social, não da ritualização
da tradição (...) a memória coletiva dos grupos populares é
particularizada, ao passo que a memória nacional é universal. Por isso o
nacional não pode se constituir como prolongamento dos valores
populares, mas sim como um discurso de segunda ordem” (LYNCH,
Kevin, 1997, p. 135-136.)7
Foi previsto no Plano Diretor de São Paulo, assim como no Projeto São Paulo 2040 uma
“reconciliação da cidade com as águas” onde a população encontrará “a forma de
6 Jacobs, Jane. Morte e vida das grandes cidades. Coleção a, São Paulo, WMF Martins fontes, 2000. 7 LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 135-136.
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conviver com rios e com o meio ambiente e com sua paisagem”, onde 20,1% apontaram
o projeto dos “rios vivos” como prioridade superior aos que envolvem inclusão e
comunidades de menor renda, visto que boa parte das gerações não viram o Rio Tietê,
Pinheiros e outros vivos em fase alguma de suas vidas, algo distante, porém desejado e
de prioridade imediata 8 as ideias materializadas em propostas seriam potencializadas
quando aliadas aos aspectos benéficos da influência da memória visto que, as pessoas
preservam, aquilo que é parte de seu dia a dia, as pessoas zelam por aquilo que lhes é
familiar e por último mas não menos importante, as pessoas só usufruem completamente
daquilo que lhes é comum e ensinado como importante desde sempre:
“Não é na história aprendida, é na história vivida que se apoia nossa memória”
(HALBWACHS, 1990, P.60).
6. REFERÊNCIAS
6.1 Bibliografia
BAINES, John; MALIK, Jaromir. Cultural Atlas of Ancient Egypt. London: Andromeda
Oxford Limited, 2008.
BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BIAGOLINI, C. Rio Aricanduva; um pouco de sua história. São Paulo, 2013.
CULLEN, G. Paisagem Urbana. 2001
GEHL, L. Cidade para pessoas. Perspectiva, 2013.
GORSK, M. Rios e cidades: ruptura e reconciliação. SENAC, 2010.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva, São Paulo: Centauro,2018.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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LYNCK, K. A imagem da cidade. Edições 70, 1999.
8 São Paulo (cidade). Secretaria Municipal do Desenvolvimento Urbano. SP 2040: a cidade que queremos. São
Paulo: SMDU, 2012.
14
TORMENTA, P. Arqueologias hídricas na procura da metrópole fluvial. Caleidoscópio,
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Janeiro. Imprensa Nacional 1890 – Reimpresso pelo 1º escriturário do Tesouro Nacional:
Joaquim Isidoro Simões.
6.2 Teses, Dissertações e Artigos
São Paulo (cidade). Secretaria Municipal do Desenvolvimento Urbano. SP 2040: a
cidade que queremos. São Paulo: SMDU, 2012.
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Os meandros dos Rios nos Meandros do Poder
Tietê e Pinheiros: Valorização dos Rios e das Várzeas na cidade de São Paulo.
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Urbanização e industrialização: rios de São
Paulo. Labor e Engenho, Campinas, SP, v. 9, n. 1, p. 37-48, mar. 2015. ISSN 2176-8846.
Disponível em:
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Acesso em: 03 ago. 2018. doi:https://doi.org/10.20396/lobore.v9i1.2092.
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/
6.3 Vídeos
"ENTRE RIOS" - a urbanização de São Paulo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc>> Visto em 05 mar. 2017