Uesley Fatareli. Cantai ao Senhor um novo cântico - Influênica da Teologia da Libertação no...

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CANTAI AO SENHOR UM C´NTICO NOVO: INFLU˚NCIA DA TEOLOGIA DA LIBERTA˙ˆO NO CANTO PROTESTANTE BRASILEIRO UESLEY FATARELI

Transcript of Uesley Fatareli. Cantai ao Senhor um novo cântico - Influênica da Teologia da Libertação no...

CANTAI AO SENHOR UM CNTICO NOVO: INFLUNCIA DA TEOLOGIA DA LIBERTAO NO CANTO PROTESTANTE BRASILEIRO

UESLEY

FATARELI

MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho Orientador Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr Mrcia Mello Costa De Liberal Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Gladir da Silva Cabral Universidade do Extremo Sul Catarinense

RESUMO Esta tese tem como foco a influncia da Teologia da Libertao na msica protestante feita no Brasil durante as dcadas de 1960, 1970 e 1980 e as possveis razes que este contexto religioso em questo teve a ainda tem dificuldades em desenvolver uma cano que trate de assuntos relacionados com temas sociais, como proposto pela Teologia da Libertao. Com relao a este tipo de trabalho musical produzido no Brasil, autores como Joo Dias de Arajo, Jaci Maraschin e outros so mencionados. Esta tese tem tambm a inteno de estimular a reflexo em torno de dois legados teolgicos. O primeiro aquele que chegou ao Brasil com os missionrios vindos dos Estados Unidos no comeo do sculo dezenove, e o segundo aquele deixado pelo primeiro hinrio editado no Brasil chamado Salmos e Hinos. PALAVRAS-CHAVE: Teologia da libertao, protestantismo, msica.

ABSTRACT The focus of this thesis is the influence of the Liberation Theology in protestant music made in Brazil during the decades of 1960, 1970 e 1980 and the possible reasons which this religion context had and still has difficulties in developing a song that treats themes related with social issues, like those which were purposed by the Liberation Theology. In relation to this kind of musical work produced in Brazil, authors like Joo Dias de Arajo, Jaci Maraschin and others are mentioned. This thesis also intends to stimulate a reflection on two theological legacies. The first one arrived in Brazil with the missionaries who came from United States in the beginning of the nineteenth century, and the second is the one left by the first hymn book edited in Brazil called Psalms and Hymns. KEYWORDS: Liberation theology, Protestantism, music.

INTRODUO

De acordo com a Organizao No-Governamental Unmillennium Project1 mais de um bilho de pessoas no mundo vivem com menos de 1 dlar por dia. Dois bilhes e 700 milhes sobrevivem com menos de dois dlares por dia. Alm destes dados financeiros, muitas destas pessoas tm que andar uma milha para coletar gua e madeira para o fogo. Este quadro tem trazido consigo as seguintes conseqncias: a presena em determinados pases de doenas que j foram erradicadas h dcadas nos chamados pases desenvolvidos; a morte anual de 11 milhes de crianas que no atingem os cinco anos de idade, sendo que seis milhes destas crianas por ausncia de preveno morrem em razo da malria, diarria e pneumonia. Todos os dias mais de 800 milhes se recolhem para dormir com fome, destes 300 milhes so crianas. A cada 3.6 segundos uma pessoa morre vtima de fome aguda. A maioria delas so crianas com menos de cinco anos de idade. Todos estes dados, sem mencionar outros, tais como: sade, gua, educao etc. nos fazem pensar que a sociedade precisa abrir seus olhos e, individual e coletivamente, engajar-se, no numa revoluo armada e muito menos intolerante e torturante, mas numa revoluo solidria permanente que, no somente d po ao que tem fome, mas, tambm que crie meios scio-educacionais para que o faminto aprenda a fazer o seu prprio po e assim rena condies para ser no necessariamente um heri ou mrtir nesta revoluo, mas, simplesmente, um ser humano. O projeto de pesquisa que intitulamos Cantai ao Senhor um cntico novo: Influncia da Teologia da Libertao no Canto Protestante Brasileiro, tem como alvo fazer uma anlise do impacto da Teologia da libertao, conforme leitura hermenutica apresentada por Gustavo Gutirrez, na linguagem musical evanglica brasileira no perodo de 1960 a 1980. O objetivo estudar a Teologia da Libertao e sua insero dentro do protestantismo histrico atravs de letras de msicas compostas por autores como Jaci Maraschin, Joo Dias de Arajo e outros. A referncia ao ramo histrico do1

Disponvel em http://www.unmillenniumproject.org/press/press2.htm Capturado em 12 de dezembro de 2006 s 9h48min

protestantismo

brasileiro

implica

denominaes como Igreja Presbiteriana

Independente, Igreja Presbiteriana Unida, Igreja Metodista e Igreja Anglicana. Tendo em vista a proposta enunciada, pretendemos mostrar que a Teologia da Libertao trouxe uma contribuio para valores sociais, at ento pouco explorados na hinologia protestante desenvolvida e aplicada no Brasil. Alm disso, buscaremos apontar os possveis motivos pelos quais tais contedos musicais no alcanaram uma maior aceitao e desenvolvimento em ramos do protestantismo histrico no Brasil. A pesquisa ser do tipo exploratria, ou seja, com levantamento bibliogrfico, e, tambm, documental. Nossa hiptese central a de que uma herana teolgica de influncia fundamentalista e pr-milenista, ensinada por alguns missionrios estrangeiros de tendncia politicamente direitista e economicamente capitalista, favoreceu em grande parte o estabelecimento de uma conceituao missiolgica descomprometida com fatores de ordem social. Quanto s hipteses corolrias nos ateremos a aspectos associados a: uma tradio teolgica com nfase mais na recapitulao do que propriamente na perscrutao; uma formao teolgica baseada em leitura de autores estrangeiros desconectados com a realidade latino americana e, conseqentemente com o Brasil; um padro musical protestante fortemente voltado para uma espiritualidade de relao do indivduo ou dos indivduos com Deus com pouca nfase na relao de uns para com os outros; uma espiritualidade mais preocupada com destino futuro do homem depois da morte do que com sua vida, situao e ao no mundo presente. O desejo de desenvolver esta pesquisa pode ser justificado por trs fatores. O primeiro de fator pessoal, ou seja, estamos envolvidos com composio musical no meio evanglico desde 1980 e acreditamos que a anlise proposta pode trazer alguma contribuio no sentido de resgatar o papel conscientizador da linguagem musical. Em segundo lugar, existe o fator cientfico, isto , no h como negar que a msica tem ocupado lugar de destaque no campo religioso atual, seja pelo seu uso mercadolgico, seja pelas novas concepes de espiritualidade que ela tem promovido. Nesse sentido, acreditamos que a anlise de um passado recente da msica evanglica brasileira seja uma forma de observar que a linguagem musical tem tambm a possibilidade de absorver realidades sociais e de forma potica fazer uma leitura crtica destas realidades. Em terceiro e ltimo lugar, tem o fator social. Como algum j disse voltar ao passado progredir. Nesse sentido, entendemos que a anlise de contedos musicais de um reducionista e

passado recente, podem nos apontar caminhos concretos para progredirmos em relao a uma religiosidade menos abstrata e mais participativa, menos especulativa e mais objetiva. Para desenvolver nossa anlise nos valeremos do filsofo alemo Theodor Wiesengrund-Adorno como referencial terico. O destaque a Adorno est associado principalmente a sua anlise da indstria cultural ps-segunda guerra mundial, perodo a partir do qual a msica torna-se mero produto de consumo e que, segundo ele, ao invs de exercer um funo disciplinadora, parece contribuir ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expresso, para a incapacidade de comunicao2 Esta pesquisa se estrutura em quatro captulos. O primeiro trata da contribuio da linguagem na elaborao de novos paradigmas. Procuramos mostrar neste caso que a linguagem, especialmente no campo religioso, seja ela musical ou no, no somente pode refletir realidades, mas, tambm pode ter a qualidade de facilitar a manuteno de estruturas scio-religiosas. O segundo captulo tem o seguinte ttulo: A Teologia da Libertao, sua formao e a proposta hermenutica de Gustavo Gutirrez. Nosso interesse nesta parte da pesquisa a de se familiarizar com as razes deste movimento, seus primeiros protagonistas e acentuar alguns aspectos ligados ao carter interpretativo do telogo Gustavo Gutirrez. O terceiro captulo voltado para a influncia da Teologia da Libertao em composies musicais protestantes brasileiras. Apontamos nesta parte do trabalho questes ligadas msica produzida pela Teologia da Libertao na Amrica Latina, o contedo do canto expresso atualmente nas Igrejas Protestantes brasileiras e as letras de msicas de autores brasileiros vinculados ao protestantismo que foram influenciados pela mensagem libertacionista. O quarto captulo, ltimo da pesquisa, aborda os possveis motivos pelos quais o desenvolvimento de um canto com a temtica libertacionista no ocorreu no meio protestante brasileiro. Para isso, fazemos consideraes relacionadas com a poltica brasileira no perodo do regime militar e tambm sobre a uma dupla herana que se faz presente no protestantismo brasileiro, ou seja, a herana teolgica de missionrios

2

Theodor W. Adorno, O Fetichismo na Msica e a Regresso da Audio (Coleo Os Pensadores). So Paulo: Nova Cultura, 1999, 67.

estrangeiros do incio do sculo XIX e a herana musical do primeiro hinrio produzido no Brasil. Essa dissertao , portanto, uma tentativa de compreender as razes pela quais o protestantismo histrico no Brasil teve e ainda tem imensas dificuldades em desenvolver um canto musical que tenha associao com temas relacionados com contedos sociais, como foi o canto proposto pela Teologia da Libertao. Se a proposta da pesquisa foi bem sucedida somente os leitores tero condies de apresentar um veredicto.

CAPTULO I: A CONTRIBUIO DA LINGUAGEM NA ELABORAO DE NOVOS PARADIGMAS

1.1 Consideraes preliminares H sem dvida, muitos tipos de vozes no mundo, nenhum deles, contudo, sem sentido. 1 Epstola aos Corntios A vida cotidiana sobretudo a vida com a linguagem, e por meio dela, de que participo com meus semelhantes. A compreenso da linguagem por isso essencial para minha compreenso da realidade da vida cotidiana.3 (Berger & Luckmann) O dicionrio de Sociologia de Allan G. Johnson nos apresenta um significado amplo de linguagem, ele registra:

No mago de todas as culturas encontramos a linguagem, o conjunto de palavras e regras de sintaxe e gramtica que determinam como palavras devem ser usadas a fim de transmitir um dado significado. A linguagem fundamental porque atravs dela que conseguimos criar o significado da experincia, dos pensamentos, dos sentimentos, da aparncia e do comportamento humanos. Neste sentido, ela nos permite criar a prpria realidade, substituindo a experincia direta por palavras. Quando lemos um jornal usamos palavras para criar na mente aquilo que em seguida consideramos ser conhecimento do que est acontecendo no mundo. O mesmo acontece em conversas, nas quais pessoas usam palavras para representar quem so, ou no dilogo interior, no qual pensam e refletem sobre a realidade de si mesmas. A linguagem possui diversos usos na vida social. No sentido mais comum, o meio que nos permite armazenar, manipular e transmitir conhecimento. As comunidades lingsticas o conjunto dos que compartilham de uma lngua comum contribuem tambm para definir as FRONTEIRAS culturais de comunidades mais amplas, tais como tribos, grupos tnicos, regies e naes. O mesmo acontece tambm at certo ponto em ocupaes, como direito, cincia, medicina ( e sociologia) cujo jargo especializado as separa de estranhos. O interesse sociolgico pela linguagem estende-se por um vasto terreno, da anlise de significado, conversas, questes sobre a construo social da realidade, importncia no processo de SOCIALIZAO e formao3

Peter L. Berger e Thomas Luckmann, A Construo Social da Realidade (Petrpolis: Vozes, 2004), 57.

da identidade at o papel que desempenha na desigualdade e na opresso. (1997, p. 136-137)

A linguagem, alm de expressar nossas experincias, exerce funes diversas. Atravs dela somos conduzidos a indagaes, proposies, elucubraes, especulaes, codificaes, concepes etc. A linguagem pode, tambm, dentro do contexto social, despertar fuses ou confuses, expressar o sentido das aes ou das alienaes. Tratar sobre o papel da linguagem decidir-se envolver numa tarefa interpessoal rdua, difcil, mas recompensadora, pois ainda que a linguagem seja diversa e esteja em contnua mutabilidade podemos atravs dela detectar processos de interao social, compreender smbolos, costumes, ritos etc. Bourdieu citando Humboldt escreve:

...cada linguagem desenha um crculo mgico em torno do povo a que pertence, um crculo de que no se pode sair sem saltar para dentro do outro.4

Bourdieu acrescenta:Esta teoria da linguagem como modo de conhecimento que Cassirer estendeu a todas as formas simblicas e, em particular, aos smbolos do rito e do mito, quer dizer, religio concebida como linguagem, aplica-se tambm as teorias e, sobretudo s teorias da religio como instrumentos de construo dos fatos cientficos.5

No nos cabe decifrar entre linguagem e religio ou vice-versa, quem surge primeiro, todavia, no resta a menor dvida de que uma no existe sem a outra. Alis, no entrelaamento de ambas que novos sistemas so estabelecidos e novos tecidos sociais so construdos. Nossa proposta fazer uma anlise da influncia da teologia da libertao atravs da msica, e considerar os possveis motivos de sua breve insero no protestantismo histrico. Atravs desta anlise buscaremos tambm mostrar que a linguagem musical religiosa pode ser no somente um veculo que recapitula tradies e valores de um determinado campo religioso, mas tambm pode tornar-se uma ferramenta legtima na construo de uma abordagem crtica da religio e sua funo social no tempo e no espao.

4 5

Pierre Bourdieu, A Economia das Trocas Lingsticas. So Paulo: Perspectiva, 2003, 27. Ibid.

1.2 A conexo entre religio e linguagem O homem vive e comunica-se das mais variadas formas. Nesse sentido, sua linguagem possui traos distintos com vnculos prprios, ou seja, o homem ao comunicar-se estabelece limites na sua fala no s por questes ligadas a sua gnese e ao ambiente religioso, social e histrico em que vive, como tambm pelo seu alvedrio, ou seja, sua capacidade de decidir por uma determinada linguagem. A religiosidade, conforme j tem sido demonstrado no campo da pesquisa cientfica, tem seu campo de linguagem prprio nas mais diversas civilizaes ao longo da histria humana. Nesse sentido, a religio contribuiu em grande parte para tornar a linguagem um instrumento de comunicao e instrumento de conhecimento. Bourdieu afirma:

A primeira tradio trata a religio como uma lngua, ou seja, ao mesmo tempo enquanto um instrumento de comunicao e enquanto um instrumento de conhecimento, ou melhor, enquanto um veculo simblico a um tempo estruturado ( e portanto, passvel de uma anlise estrutural) e estruturante, e a encara enquanto condio de possibilidade desta forma primordial de consenso que constitui o acordo quanto ao sentido dos signos e quanto ao sentido do mundo que os primeiros permitem construir.6

A mentalidade mstica do homem primitivo, servindo-se de sua capacidade racional, ao contrrio do que se pensa, contribuiu tanto na formao de signos de expresso como tambm na criao de sistemas de sinais. Martins observa:

... inegvel, como diz Vendrys, que um elemento racional se desenvolve pouco a pouco na mentalidade mstica do primitivo e termina por predominar. Dessa forma, a linguagem caminha do concreto para o abstrato e do mstico para o racional. Racionalizar o real , ao mesmo tempo, sujeit-lo norma do convencional: de emotiva que deveria ter sido em seus primrdios, a linguagem alcanaria o plano convencional em que j a encontramos por mais antigas que sejam as lnguas tomadas para estudo. Racionalizar a expresso emotiva , igualmente, submet-la a uma regra: a definio mais geral que se possa dar linguagem, segundo Vendrys, a de ser um sistema de sinais.7

No desenrolar da histria das religies podemos notar que a linguagem foi elemento decisivo no s no sentido de acumular significados e experincias, mas tambm de preserv-los, transmitindo-os assim s geraes futuras. Nesse sentido, a6 7

Ibid., 28 Wilson Martins, A Palavra Escrita Histria do livro, da imprensa e da biblioteca. So Paulo: tica, 1996, 23-24.

linguagem dentro do campo religioso tambm vai estabelecer campos semnticos, ou seja, smbolos que podem ser considerados a partir da experincia diria, e, atravs deles, ultrapassar o tempo e o espao. De Liberal e Nicolini observam:

A linguagem pode se tornar o repositrio objetivo de vastas acumulaes de significados e experincias que sero preservados e transmitidos s geraes vindouras. A linguagem constri campos semnticos, smbolos abstrados da experincia diria e pode transpor e transcender o tempo e o espao. O acervo de valores e conhecimentos se transmite de uma a outra gerao, pela tradio oral e escrita, e por outras formas de comunicao. No mundo do senso comum, que equipado com corpos especficos de conhecimento, sofremos constantemente as influncias das diferentes formas de conhecimento. As diferentes dimenses do desenvolvimento humano sofrem a influncia do meio geopoltico, cultural e social. O homem desencadeia seu processo de socializao num determinado contexto social. No existe pessoa humana sem histria, sem linguagem e sem cotidiano. O homo sapiens sempre, na mesma medida, homo socius (Berger, 2003). A atividade humana, uma vez transformada em hbitos, torna-se padro apreendido pela comunidade.8

A intuio ou experincia religiosa original traz consigo expresses tericas que so representadas de forma simblica. Tais representaes sinalizam elementos de pensamento e de doutrina. Wach registra:

A natureza compreensiva de tais smbolos foi belamente expressa por dois grandes poetas: Aquilo que somente aps o decurso dos sculos foi encontrado pela razo amadurecida era, h tempo, revelado no obscuro reino da beleza e da grandeza ao pensamento infantil e essa a simbolizao autntica na qual o particular representa o geral, no como sonho ou sombra, mas como revelao viva e momentosa do inexplorvel.9

Wach ainda acrescenta:Embora antiquada, a obra de Friedrich Creuzer, o romntico, intitulada Symbolik est repleta de observaes estimulantes acerca da linguagem da experincia religiosa arcaica e da sua gramtica. Citando o filsofo grego Proclo, ele retoma a diviso da expresso religiosa em insinuaes atravs de smbolos (dieikonon), e a expresso no velada, atravs do discurso (aparakalyptos). Com relao a isto, pensamos igualmente na definio de Crisstomo do poder de adivinhar como a habilidade para reconhecer, ver e explicar sinais: Vim cognoscentem et videntem et explicantem signa10

8

Mrcia Mello Costa de Liberal e Marcos Henrique de Oliveira Nicolini, A Influncia da Religio na construo de um tecido social, s/d, s/p. 9 Joachim Wach, Sociologia da Religio, So Paulo: Paulinas, 1990, 32. 10 Ibid., 32-33.

Podemos, a partir da, entender tambm que a linguagem conectada religio desenvolve caractersticas e funes prprias. Para isso, pretendemos tratar a seguir de alguns traos e padres da linguagem mtica. Nosso propsito demonstrar que a experincia religiosa traz consigo expresses peculiares, tais como: expresses tericas tambm conhecidas como doutrinas; expresses prticas relacionadas com o culto; e expresses sociolgicas associadas vida comunitria, tanto no aspecto coletivo como difuso. Adiantamos, desde j, que o termo expresso representa uma forma de linguagem que pode estar associada direta ou indiretamente com o rito ou com o discurso religioso nos limites do seu campo e, at mesmo, alm dele. Nesse sentido, cientificamente falando, a linguagem vinculada religio est sujeita tanto anlise histrica como a anlise do discurso.

1.3 Traos da linguagem mtica: desenvolvimento e formas de expresso A linguagem mtica, segundo Wach, possui sua prpria lgica e seus prprios padres. O supracitado autor comenta:

A histria das noes primitivas de tempo, espao, causao, como tambm da personalidade nos mitos bastante esclarecedora. Freqentemente, o estgio de polimorfismo, caracterizado por grande variedade de contos e de tradies mticas sem unificao, persiste atravs de toda a histria de uma civilizao.11

Na linguagem mtica no se destaca apenas um personagem, uma experincia, uma expresso ou um discurso, mas, sim, vrios.

1.3.1 A expresso sistemtica Primeiramente, podemos notar que um dos traos ou expresses da linguagem mtica caracterizado pelo seu aspecto sistemtico, ou seja, a linguagem mtica, ainda que sujeita a constantes mudanas ao longo de seu desenvolvimento histrico, apresenta inclinaes acentuadas no sentido de sistematizao de suas tradies prprias. Isso vem demonstrar que razo e reflexo desempenham papis destacveis dentro do contexto da linguagem mtica. Wach comenta:11

Id. Ibid., 34.

As narrativas so assim constantemente alteradas. Todavia, no decorrer do desenvolvimento histrico, podem ser discernidas tendncias para a sistematizao. Ciclos e mitos so dispostos, podendo cristalizar-se em torno de figuras centrais. Determinados motivos so enfatizados, enquanto outros so abandonados. Delineiam-se esquemas (genealogias), e, caso o processo continue, seguir-se-o compilao, estandardizao e unificao. O papel desempenhado pela razo e pela reflexo significativo, tornando-se fator importante no desenvolvimento continuado. Outro fator a ser notado o desejo natural de comunicar e de propagar as prprias experincias.12

A sistematizao, por sua vez, culmina com a criao da teologia. Quanto a isso, Wach escreve:

Um sistema mais ou menos unificado de carter normativo (doutrina) assim o substituto de uma variedade de tradies mitolgicas independentes, associadas somente por acaso. isto que assinala a origem da teologia propriamente dita. O trabalho de copilao, redao e codificao continua. A tradio escrita agora substitui a tradio oral na forma de escrituras sagradas. A fim de racionalizar as concepes fundamentais que so as expresses de experincias religiosas particulares, os telogos desenvolvem sistemas normativos da f sustentados em defesas apologticas apropriadas. Resumos sucintos so incorporados em credos, enquanto reflexes e meditaes mais elaboradas, que dizem respeito aos contedos da f so deixadas para os telogos. A teologia eventualmente produz a filosofia. As mitologias africanas e polinsias ilustram a primeira etapa neste processo de crescimento e de sistematizao da expresso intelectual da experincia religiosa. As religies babilnica, egpcia, mexicana, chinesa, grega mostram a etapa seguinte, que a tendncia ntida para a unificao e codificao. As religies de livros, com o seu dogma bem desenvolvido Cristianismo, Judasmo, Islamismo, Zoroastrismo, Maniquesmo, Budismo, Jainismo, Hindusmo, Confucionismo e Taosmo ilustram a terceira etapa. Estas religies, atravs da discusso de seus fundamentos, estimularam o desenvolvimento da filosofia.(1990, p. 36)

1.3.2 A expresso cltica

12

Id. Ibid., 35.

Em segundo lugar, podemos tambm considerar que a expresso prtica estabelecida na religio atravs do culto est intimamente associada a forma de expresso que foi tratada anteriormente, pois os atos considerados religiosamente inspirados e utilizados na linguagem cltica so, em grande parte, resultado daquilo que foi formulado na declarao terica da f. Isto ocorre tanto no sentido amplo como estrito conforme acentua Wach:

Em sentido mais amplo, todas as aes que dimanam da experincia religiosa, e por ela so determinadas, devem ser consideradas como expresso prtica ou cultus. Num sentido mais estrito, entretanto, denominamos culto o ato ou os atos do homo religiosus: adorao. A religio, enquanto tal, foi definida como adorao, experincias do sagrado so expressas em todas as religies em atos de reverncia para com o nume cuja existncia definida intelectualmente em termos de mito, doutrina ou dogma.13

O cultus geralmente se desenvolve atravs de rituais que se fazem acompanhar de formas estticas e litrgicas prprias. E, ainda que dentro deste campo haja muitos aspectos a serem tratados, por questes de ordem metodolgica que sublinhe o foco de nossa pesquisa, destacaremos mais adiante e com mais detalhes a msica como parte integrante dos atos e da linguagem do homo religiosus, seja ela expressa na forma de canto ou na forma instrumental, em conjunto ou separadamente.

1.3.3 A expresso sociolgica Em terceiro lugar, como complemento das expresses anteriores surge a expresso sociolgica, ou seja, aquela que envolve o aspecto inter-pessoal da vida comunitria em seu contexto social. Quanto religio e seu papel social, argumenta Dimond:

A religio vital, pela sua prpria natureza, tem de criar e sustentar um relacionamento social.(apud Wach, 1990, p. 41)

Levando em conta o papel social da religio, ainda este no seja seu nico foco de ao, podemos entender que o uso da linguagem mtica foi e continua sendo um fator fundamental no que diz respeito ao estabelecimento de uma religiosidade com fortes vnculos e desdobramentos sociais. Nesse sentido, Wach, citando Scheler, faz o seguinte comentrio sobre um dos aspectos do cristianismo:13

Id. Ibid., 38-39

cada ato religioso sempre, simultaneamente, ato individual e ato social, que a frase Unus christianus, nullus christianus um s cristo no nenhum cristo aplica-se, em sentido amplo, a todas as religies. (Apud Wach, 1990, p.43)

Convm salientar que o exemplo dado no caracterstica de um nico tipo de linguagem religiosa. As religies atravs de seus mais variados tipos de linguagem e expresso so veculos de interao social, ainda que a sociabilidade entre elas possua, em muitos casos, traos bem distintos. Desta forma, procuramos aqui salientar que a linguagem mtica de um modo geral, ao desenvolver-se dentro de campos religiosos afins ou eqidistantes, trouxe desdobramentos que propiciaram a formao de expresses doutrinrias, clticas e sociais. Nesse sentido, pode-se constatar claramente a extenso que a linguagem mtica traz consigo e tambm reconhecer seu poder e fora simblica como elementos propulsores de construo e transformao scio-religiosas.

1.4 A linguagem religiosa musical O homem religioso desde os tempos mais antigos e nas mais variadas civilizaes encontrou na msica, seja ela executada instrumentalmente ou expressa atravs de canto vocal conjugado com instrumentao ou no, uma das formas de estabelecer e manifestar sua relao com o sagrado. Vrios autores nos chamam ateno no que tange ao sagrado vinculado msica e vice-versa. Eliade, por exemplo, ao tratar do xamanismo na sia Central, comenta que o xam tremyugan necessita de cair em xtase para tratar dos doentes e, para que isso ocorra, toca-se o tambor e a guitarra at que ele entre neste estado14. Basurko, por sua vez, ao tratar do canto cristo e sua funo epicltica comenta que os salmos, ao serem cantados pela cristandade, tem no somente a virtude de afastar os demnios, mas tambm a de atrair a presena de bons espritos e do prprio Deus15. Brando, por outro lado, tambm acentua no campo da mitologia grega a figura de Orfeu, uma personagem lendria vinculada ao mundo da msica e da poesia. De acordo com o autor, este mito, com sua maestria na ctara e suavidade de voz, fazia com que os animais o seguissem, as rvores se inclinassem para ouvi-lo e os homens mais colricos14

Mircea Eliade, O Xamanismo e as Tnicas Arcaicas do xtase. Martins Fontes Editora, So Paulo 2002, p.248 15 Xabier Basurko, O canto cristo na tradio primitiva. Paulus, So Paulo 2005, p.66

fossem penetrados de ternura e bondade16. Andrade, por conseguinte, em sua pesquisa sobre prticas da alta magia das civilizaes espirituais e da baixa feitiaria das civilizaes naturais afirma que a msica uma parceira instintiva, imediata e necessria17. No Brasil ainda muito comum o ditado popular que diz: Quem canta seus males espanta. Possivelmente, este idia de canto como meio de afastar males tenha suas razes nas mais antigas concepes musicais desenvolvidas e estabelecidas a partir das religies em seus mais diversos contextos culturais. Desta forma, podemos observar a partir das consideraes feitas e de muitas outras que poderiam ser acrescentadas que religio e msica tem ao longo da histria humana caminhado lado a lado. Ou seja, no podemos ignorar o papel religioso da msica nas civilizaes nem deixar de reconhecer seu vnculo com o sagrado . Acrescentamos ainda em relao a este ponto que a msica expressa no campo religioso pode trazer consigo no somente preocupaes estticas e sonoras, mas, tambm, contedos que envolvem: formao e integrao humana, manuteno de uma relao interativa com incentivo transformao scio-religiosa. Este tipo de msica tem sido utilizado em algumas situaes de forma legtima como meio de aproximao e preservao do sagrado, no obstante, em outras situaes, tem tambm sido usada como meio de explorao e domnio do sagrado. No primeiro caso a msica religiosa pode trazer conseqncias at mesmo teraputicas, tanto no aspecto relacional como o sagrado como na formao de uma cosmoviso do sagrado. Atravs deste tipo de msica, o homem se depara com a possibilidade de no somente ser despertado para com aquilo que inerente a ele, ou seja, sua natureza religiosa, mas, tambm, conforme assinala Hume18, com a oportunidade de desenvolver concepes e aes provenientes das mesmas, sejam essas aes reativas ou passivas. Entretanto, ainda que existam neste tipo de canto religioso aspectos que apontem para uma relao de passividade e subservincia a deuses tidos como agentes causadores de males, ainda assim, tal fato poder ser fator de formao, manuteno e construo scio-religiosas relevantes e unificadoras. Por outro lado, existe tambm em profundamente positivos no que diz respeito ao modo de encarar a vida diante da morte determinadas expresses musicais religiosas, aspectos

16 17

Junito Brando, Dicionrio Mtico-Etimolgico. Petrpolis: Editora Vozes,Vol II, 196. Mario de Andrade, Msica de Feitiaria no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, 23. 18 David Hume, Histria natural da religio. So Paulo: Unesp, 2004, 109.

e a morte como passagem para a vida eterna, temas permanentemente reverenciados no campo religioso. Nesse sentido, Campbell19 nos lembra o registro encontrado em Atos de Joo, um documento apcrifo, que faz meno do hino cantado por Jesus antes de sua crucificao na celebrao da ltima Ceia. Naquela ocasio, conforme registra o texto apcrifo, Jesus diz aos seus acompanhantes:

Dancemos! Glria a ti, Pai! Amm! Glria a ti, Palavra! Amm Eu nasceria e suportaria! Amm! Eu comeria e seria comido! Amm! Tu que danas, v o que fao, pois tua a paixo dos homens, que logo em seguida sofrerei! Amm! Eu voaria e permaneceria! Amm! Eu seria unido e uniria! Amm! Porta eu sou para ti, que me procuraste. (...) Caminho eu sou para ti, um transeunte.

No obstante, existe tambm na esfera musical religiosa, como j anunciamos anteriormente, desdobramentos que podem ser nefastos, ou seja, ao invs da linguagem musical religiosa ser meio de aproximao, integrao e interao ela passa a ser, conforme destaca o filsofo alemo Adorno20 ao tratar da expanso da indstria cultural moderna, um mero artigo de consumo21. Neste sentido, ela deixa de ser teraputica e passa a ser patolgica, perde sua capacidade de mover pessoas contemplao sbria do sagrado no mundo e passa a ser veculo de alienao e entorpecimento, lanando assim seus agentes e suas vtimas numa rbita que os distancia e os impossibilita de sacralizar,

19 20

Joseph Campbell, O poder do mito. Editora Palas Athena, So Paulo, 1991, p.115-116 Theodor Wiesengrund Adorno nasceu em Frankfurt em Main no dia 11 de setembro de 1903 e morreu no dia 6 de agosto de 1969. Foi um destacado socilogo, filsofo, musiclogo e crtico da cultura do sculo. No ano de 1930, ele iniciou um longa relao com o Instituto para a Investigao Social (Institut fr Sozialforschung), da cidade de Frankfurt, com a colaborao de Max Horkheimer. Ambos so tidos como o principais representantes da chamada Escola de Frankfurt. Em 1931, Adorno apresentou sua Habilitationnsschrift e teve com orientador Paul Tillich. Sua tese na ocasio tinha o seguinte ttulo: Kierkegaard: a construo da Esttica. Adorno, ops-se a todo individualismo abstrato, isto , a toda noo de indivduo alheia a seu componente social, mas ao mesmo tempo se ops dissoluo do indivduo no social, j que nessa dissoluo desaparece seu carter concreto. (cf. Jos Ferrater Mora, Dicionrio de Filosofia, tomo I: A-D, Loyola, So Paulo, 2000, 53). 21 Theodor Wiesengrund -Adorno, Filosofia da Nova Msica, So Paulo: 2004, 15.

transformar e encantar o mundo. Alm disso, este tipo de msica deixa de promover sanidade e passa a ser um tipo de droga que causa dependncia, aprisionando em guetos mortais aqueles que por ela foram envolvidos direta ou indiretamente. O texto22 que se segue nos apresenta um tipo de canto utilizado no culto de Cibele e tis. Este culto foi introduzido em Roma no ano 204 a.C. como ltimo recurso, quando a cidade estava ameaada por Hanibal. O contedo do canto, conforme descrio feita pelo poeta latino Catulo23, o seguinte:Apressemo-nos vinde, vinde todas juntas, galas, para os cumes arborizados de Cibele, vinde todas juntas, galas, rebanho errante da soberana do Dndimo, vs que, procurando, como exilados, uma terra estrangeira e, seguindo o meu exemplo, enfrentastes, sob minha conduo os desencadeamentos e os perigos temveis e os perigos temveis da onda salgada, vs que despojastes vossos corpos de sua virilidade por causa de um dio desmedido a Vnus, animais vossos espritos em corridas precipitadas atrs da senhora nossa. Nenhuma demora, nenhuma hesitao em vossos coraes; vinde todas e segui-me para a morada frgia de Cibele, para a floresta frigia da deusa, onde ressoa a voz dos cmbalos, onde ecoam os tamborins, onde o frgio faz ouvir os graves acentos de sua flauta de tubo recurvado, onde as Mnades, ornadas de hera, agitam violentamente a cabea, onde elas celebram suas cerimnias sagradas emitindo uivos agudos, onde o cortejo errante da deusa tem costume de rodopiar, para onde devem levar-nos prontamente nossas danas impetuosas.

Pode-se notar nesta estranha celebrao romana, poeticamente descrita por Catulo, um canto com fortes traos de alienao e frenesi. Adorno24, crtico da cultura de massa, em sua obra intitulada Filosofia da Nova Msica, ao considerar a indstria cultural moderna, comenta sobre a presena nela da msica ligeira. Ele observa:No somente o ouvido do povo est to inundado com a msica ligeira que a outra msica lhe chega apenas como a considerada clssica, oposta quela; no somente os sons onipresentes de dana tornam to obtusa a capacidade perceptiva que a concentrao de uma audio responsvel impossvel; mas a sacrossanta msica tradicional se converteu, pelo carter se sua execuo e pela prpria vida dos ouvintes, em algo idntico produo comercial em massa...

22

J. Comby, J. P. Lemonon, Vida e religies no Imprio Romano. Edies Paulinas, So Paulo, 1988, p. 23-24 23 Catulo, Poemas. LXIII, 1-35, Ls Belles Lettres, C.U.F., 1926. 24 Adorno, op. cit, 18.

Segundo o supracitado filsofo alemo, a arte musical ao ser transformada em mera mercadoria deixa de ser um desdobramento da verdade com objetividade esttica, e passa a favorecer um antiintelectualismo. Mais adiante em nossa pesquisa, quando tratarmos do campo musical protestante no Brasil apontaremos aspectos associados a este lado negativo da linguagem musical que, ao invs de exercer na sociedade um poder proftico, utpico e revolucionrio acabou por anestesi-la.

CAPTULO II - A TEOLOGIA DA LIBERTAO: SUA FORMAO E A PROPOSTA HERMENUTICA DE GUSTAVO GUTIRREZ

2.1 Consideraes preliminares

Iniciamos nossas consideraes com relao Teologia da Libertao, que de agora em diante caracterizaremos, com exceo das citaes, atravs da abreviao TdL, ressaltando a sua importante contribuio no que diz respeito a formao de uma teologia mais contextualizada com a realidade social vigente na Amrica Latina. Nesse sentido, a TdL, ainda que traga consigo alguns instrumentos de anlise provindos de correntes do pensamento europeu, questo que abordaremos mais adiante, teve sua formao e desenvolvimento no ambiente religioso e no limite scio-geogrfico latinoamericano. Atualmente, conquanto alguns julguem a TdL morta, ela continua despertando ateno e considerao de muitos pesquisadores. Para termos uma idia, somente nos Estados Unidos e no Canad os trabalhos acadmicos com relao a TdL ultrapassam a marca de 600 dissertaes entre 1971 e 2005. Este dado est disponvel no portal da Universidade do Texas nos Estados Unidos. Nele podemos conhecer os ttulos de vrias teses que j foram apresentadas naquelas universidades. Segundo a supracitada universidade texana, a tese mais recente de 2004. Seu autor, John Burdick, deu a ela o seguinte ttulo: Legacies of Liberation: The Progressive Catholic Church in Brazil25

.

Acrescentamos tambm que, um dos principais protagonistas da TdL, o tologo peruano Gustavo Gutirrez, ao ser perguntado recentemente sobre a morte da TdL no II Congresso da Doutrina Social da Igreja da Amrica Latina, ocorrido na cidade do Mxico entre 11 a 15 de setembro de 2006, respondeu: ... No me preocupo com a morte ou no da Teologia da Libertao, isso no me angustia. O que imortal a opo de Deus pelos pobres, isso no morre. Estou interessado na libertao do povo, muito mais que na teologia da libertao. Entretanto, se ela morreu, esqueceram de me convidar para o seu funeral.26 . Jos Comblin27, por sua vez, em encontro promovido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie no ano de 2005, ao ser perguntado sobre a morte da TdL, disse

25 26

http://lanic.utexas.edu/project/rla/theology.htm. capturado em 30 de outubro de 2006 s 18h30min (http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=24550, capturado dia 03 de novembro de 2006 s 15h30min). 27 O sacerdote catlico Jos Comblin nasceu em Bruxelas (Blgica). Foi ordenado em 1947 e doutorou-se em teologia. Considerado subversivo e ameaador ao sistema foi expulso do Brasil em 24 de maro de 1972. Foi para o Chile e l residiu por 8 anos (1972-1980).Com o golpe militar no Chile, Comblin foi de l tambm expulso. Retornou ao Brasil com visto de turista, o que o obrigava a sair do Brasil de trs em trs meses. Com o estabelecimento da anistia no Brasil, ele recebeu o visto permanente para neste pas residir. Fundou o Seminrio Rural no Estado da Paraba. Desde 1995 tem domiclio na Casa de Retiros So Jos, em Bayeux e permanece oferecendo assessoria a vrias entidades de formao de lideranas populares no Nordeste Brasileiro, alm de acessria teolgica para os mais variados grupos eclesiais ou sociais no Brasil e na Amrica Latina.

que a mesma havia envelhecido. Envelhecida ou no, morta ou viva, ela continua despertando interesse em pesquisadores e poetas, ao mesmo tempo em que atrai a vigilncia e a oposio ferrenha daqueles que vem nela uma ameaa para a manuteno do status quo religioso e scio-econmico. Para quem a julga morta, convm lembrar aquilo que aprendemos a partir da histria, ou seja, que nem toda morte sepulta as vozes daqueles se enveredaram na construo de um mundo melhor e de uma sociedade mais justa, ao contrrio, morte pode, tambm, despertar sentimentos, anseios, esperanas, utopias etc. Envelhecimento, por sua vez, ainda que possa caracterizar aproximao da morte, tambm tem relao com amadurecimento e, nesse sentido, nem tudo que envelhece se faz acompanhar de esclerose, alis, em alguns casos, quanto maior a maturidade, mais esclarecimento e maior compreenso transmite-se. No obstante, do ponto de vista histrico, conforme acentua Shaull (SHAULL,1993, p.25), quando um movimento ou grupo de igrejas se institucionaliza, a maior parte de seus lderes geralmente gasta a maior parte de suas foras em prol de seu bom funcionamento e de sua auto-preservao. Essa postura, na maior parte das vezes, se faz acompanhar de recapitulaes do passado que no atingem situaes humanas atuais. Quando isso ocorre, tal movimento, seja ele religioso ou no, pode estagnar-se, esclerosar-se e, por fim, morrer. Em nosso modo de ver, a TdL, seja ela julgada morta ou viva, envelhecida ou ultrapassada, no pode ser ignorada por qualquer pesquisador que tenha os olhos abertos para a realidade latino-americana e para as classes oprimidas estejam elas em que contexto estiverem. Nosso alvo neste captulo tecer algumas consideraes sobre a TdL. Para isso, e tambm tendo em vista o escopo de acentuar melhor nosso foco de pesquisa, limitaremos nosso limites de investigao aos predecessores do movimento libertacionista, seus primeiros protagonistas latino-americanos e suas respectivas propostas. Alm disso, trataremos da expanso e diversificao do movimento libertacionista, bem como acentuaremos a contribuio de Gustavo Gutirrez um dos principais porta-vozes do movimento. Salientamos que as consideraes que nos propomos a fazer mostrar, em captulo subseqente, que a reflexo que nasce a partir da TdL deu impulso elaborao de composies musicais que contemplavam com maior rigor questes de ordem social. Tais composies trouxeram consigo, direta ou indiretamente, a proposta de uma

renovao litrgica tanto dentro dos limites catlico-romanos como tambm nos grupos protestantes estabelecidos no Brasil. Nosso objetivo nesta pesquisa, entretanto, focalizar a influncia libertacionista no Brasil, mais especificamente, no campo musical protestante. Para isso, necessrio agora tratar da Teologia da Libertao, movimento sem o qual a proposta de renovao litrgica no teria eclodido.

2.2 Razes do movimento Um compositor canadense chamado Neil Young diz em uma de suas canes a seguinte frase: Theres more in the picture than meets the eye. Tratar de movimentos que surgem na histria dos homens, geralmente implica descobrir e reconhecer que, antes deles, existiram fatores sociais e expresses de pensamento que lhes deram impulso e forma. Por isso, parafraseando o compositor canadense, podemos tambm dizer que por detrs do quadro da TdL, existe mais do que aquilo que seus protagonistas latino-americanos desenharam. Em outras palavras, no possvel falar em TdL sem considerar Bartolom de las Casas, no sculo XVI, e, tempos depois, os movimentos teolgicos ocorridos na Frana na dcada de 1950. Conforme destaca Caldas, ao analisar a compreenso missiolgica de Orlando Costas (p 121), Bartolom (Bartolomeu) de las Casas, ao denunciar a violncia perpetrada em nome do Evangelho contra as populaes aborgenes latino-americanas e ao refletir sobre a f crist luz dos oprimidos, foi, possivelmente, o primeiro a lanar propostas de uma nova hermenutica que, tempos depois, tomaria corpo na TdL, teologia esta que teve como instrumental de inspirao o marxismo, ideologia propagada na Europa na dcada de 1950 atravs de pensadores como Pierre Chardin, Emmanuel Mounier e outros. Estes pensadores, ao darem mostras de grande interesse em marxismo e socialismo, criticaram o capitalismo. Mounier, por exemplo, foi um dos que criticou com maior severidade o sistema capitalista. Lwy comenta:..., Mounier impressionou seus leitores com sua crtica veemente do capitalismo como um sistema que tem por base o imperialismo do dinheiro, a anonimidade do mercado (encontra-se aqui o elemento a que Weber deu mais nfase) e a negao da personalidade humana; uma averso tica e religiosa que o levou a propor uma forma alternativa de

sociedade, o socialismo personalista, que, em suas prprias palavras, tem muitssimo que aprender do marxismo.28

Podemos a partir da tica acima considerar que, embora o movimento da TdL tenha nascido na Amrica Latina, ele trouxe consigo influncias de pensadores europeus. No obstante, ainda que tais influncias existam na construo da TdL, no h como refutar que a mesma tomou forma e desenvolveu-se dentro do contexto scioreligioso latino-americano e, nesse campo, estabeleceu sua prpria expresso pastoral e poltica, especialmente, em favor dos pobres, fazendo assim, conforme nomenclatura estabelecida em Puebla, uma opo preferencial por eles.

2.3 Os primeiros protagonistas do movimento na Amrica Latina Convm salientar ainda, que este desenvolvimento preliminar da TdL nos aproxima tambm de Richard Shaull, Camilo Torres e de Ruben Alves. Alves publicou em 1969 uma obra intitulada Towards a Theology of Liberation e nela tentou examinar as alternativas que o homem tinha para procurar a libertao, pois, para ele, nem existencialismo, tecnologismo, marxismo, o antigo calvinismo e outras correntes de pensamento, ainda que possussem pontos fortes, no libertavam realmente o homem. Alves procura o homem livre, humanizado, o homem criador. Dasilio faz o seguinte comentrio a respeito de Alves e de sua supracitada obra:Desde o incio, Rubem Alves, discpulo de Richard Shaull, que teve o seu livro publicado pela Corpus Books, Washington, 1969, discutia a Teologia da Esperana fazia uma crtica linguagem da teologia contempornea europia, estudada em Barth, Bultmann e Moltmann. A crtica visava demonstrar como a linguagem teolgica at ento estivera sempre voltada para realidades metafsicas e meta-histricas, e assinalava o nascimento de cristos, animados por uma viso e por uma paixo pela libertao humana, e cuja linguagem teolgica se tornava linguagem histrica. Tambm a linguagem da teologia da esperana se bem que funcionasse como um corretivo com a relao a teologia dialtica e existencial, continuava ainda tangencial histria.29

Camilo Torres, mesmo no pertencendo ao crculo dos que refletem acerca da libertao, tem grande significncia para o movimento. Segundo o Dicionrio28

Michael Lwy, A Guerra dos deuses religio e poltica na Amrica Latina. So Paulo: Petrpolis, 2000, 52-53. 29 Derval Dasilio, A Teologia da Libertao e o Protestantismo Brasileiro, s/d, s/p. Disponvel em http://www.paoquente.org/espacoecumenico.htm, capturado no dia 19 de outubro de 2006 s 16h57min)

Enciclopdico das Religies30, ele foi um sacerdote catlico, socilogo, poltico e guerrilheiro colombiano que entrou em desacordo com o Cardeal Lus Concha, arcebispo de Bogot, que lhe proibiu atuar em questes sociais. Em conseqncia disso pediu a reduo ao estado laical. Torres, na dcada de 1960, atuou como capelo e professor da Universidade Nacional da Colmbia e, durante aquele perodo, conclamou e articulou mudanas nas estruturas bsicas econmicas e sociais. Sua ao provocou uma reao da Igreja Catlica, pois ele afirmava: A ao revolucionria uma luta crist e sacerdotal. Esta atitude de Torres fez com que ele fosse no s removido de sua ctedra universitria, mas, tambm, proibido de falar sobre questes de ordem social. Em 1965, Torres deixou o sacerdcio e, naquele mesmo ano, associou-se a um movimento guerrilheiro revolucionrio. Quanto a sua morte e suas idias Conn registra:Sua morte trgica numa emboscada eletrificou o mundo latino e virtualmente canonizou-o como santo pioneiro do pensamento da libertao. Em resumo, as idias de Torres incluam muitos dos elementos que mais tarde seriam incorporados no pensamento da libertao a prxis revolucionria, o enfoque sobre a sociedade e no a igreja, e a anlise scio-econmica. A relevncia dele, no entanto, no est ali. Encarnou para a Amrica Latina a significao do lema conscientization. E por isto saudado por homens tais como MiguezBonino e Gustavo Gutirrez.31

O Dicionrio Enciclopdico das Religies32, de forma resumida, diz que ele foi um sacerdote catlico, socilogo, poltico e guerrilheiro colombiano que entrou em desacordo com o Cardeal Lus Concha, arcebispo de Bogot, que lhe proibiu atuar em questes sociais. Em conseqncia disso Torres pediu a reduo ao estado laical. Millard Richard Shaull nasceu na Pensilvnia em 24 de novembro de 1919. Sua famlia era presbiteriana e ele cursou Sociologia no Elizabeth College, uma instituio de tradio anabatista. Segundo Dasilio (ibidem, p. 1), foi nesta instituio educacional que Shaull sofreria a influncia de reformadores radicais, como Thomaz Mnzer. Seus estudos teolgicos em Princenton estabelecerem as condies para que ele conhecesse Josep Luki Hromadka, telogo da Universidade de Praga, profundamente envolvido com as questes da Igreja na Europa, especialmente no que diz respeito ao nazismo incipiente. Alm da influncia de Hromadka, Shaull teve contato a teologia de reformada europia e de autores como Karl Barth, Rudolf Bultmann e Emil Brunner.30 31

Hugo Schlesinger e Humberto Porto, Dicionrio Enciclopdico das Religies. Petrpolis: 1995, 2534. Harvie Conn /Richard Sturz, Teologia da Libertao. So Paulo: Mundo Cristo, 1984, 42. 32 Schlesinger e Porto, op. cit., 2534.

Em 1950 aprofundou seus estudos no Union Seminary de Nova Iorque. Nesta ocasio Shaull inicia seus estudos sobre o marxismo e posteriormente fez um programa de doutoramento no mesmo Seminrio. Seu orientador foi o respeitado telogo presbiteriano Reinhold Niebuhr. Este, tendo como referencial a teologia de Karl Barth, propiciou para que Shaull aprofundasse sua reflexo teolgica. Mais adiante, Paul Lehmann ofereceu a Shaull os meios para que ele formulasse seu pensamento polticoteolgico na direo da TdL. Depois que Shaull trabalhou na Colmbia ele veio para o Brasil. Aqui ele atuou como professor do Seminrio Presbiteriano de Campinas por vrios anos. Sturz comenta que Shaull contribuiu na formao de uma pr-teologia da libertao, principalmente, no incio dcada de 1960. Com relao a isto ele diz:Durante o tempo em que estava no Brasil, Shaull passou de uma linha ligeiramente liberal para a posio no-ortodoxa e, eventualmente, nos anos sessenta, para uma Teologia da Revoluo em que ele props que no haveria nenhuma possibilidade de o cristo estar ausente de uma revoluo armada no Brasil. Nos vrios estgios de seu pensamento, Richard Shaull deixou discpulos, seja na Argentina seja no Brasil, onde o impacto de seu pensamento foi muito grande. Alis, ele foi mais uma espcie de catalisador do que propriamente um pensador original. Como resultado do trabalho de Shaull, surge nos anos cinqenta para sessenta uma linha que uma espcie de pr-teologia da libertao. Numa reunio, onde nasceu a ISAL (Igreja e Sociedade na Amrica Latina), realizada em Lima em 1961, surgem os primeiros trabalhos que do indcios da direo que a ISAL vai tomar. Nos primeiros trabalhos apresentados nessa primeira reunio de 1961 apenas um dos trabalhos destacadamente avanado em termos de teologia sociolgica. Poucos anos depois em El Tabo, a ISAL tornou a reunir-se. Agora, em meados da dcada de sessenta, todos os trabalhos tm esse teor de que o Evangelho uma opo pelos oprimidos.33

No incio da dcada de 1990, mais precisamente no ano de 1991, Richard Shaull lana nos Estados Unidos o livro intitulado The Reformation and Liberation Theology insights for the challenges of today. Esta obra foi impressa no Brasil em 1993 pela Editora Pendo Real e sua edio foi patrocinada pelos Seminrios Teolgicos da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. A verso brasileira da obra de Shaull trouxe o ttulo A Reforma Protestante e a Teologia da Libertao. Neste escrito, Shaull prope que a Reforma Protestante foi tambm, no contexto e na poca em que aconteceu, uma oportunidade de libertao. Ele registra:33

Sturz, op. cit., 80.

A Reforma Protestante do sculo XVI foi a oportunidade de libertao mais importante que ocorreu na Europa Ocidental na poca. Foi uma resposta dinmica dada pelo poder do Esprito Santo nova situao humana e pelo qual o Evangelho se revelou como uma expresso de poder transformador. Demonstrou que o cristianismo, muitas vezes feito prisioneiro de estruturas causadoras de morte e esclerose, portador do Evangelho como Boas Novas para o amanh, sendo capaz de se recriar em resposta a novos desafios.34

Para Shaull, na obra supramencionada, a Reforma do sculo XVI foi um movimento de libertao e sua anlise no s favorece aqueles que querem estar familiarizados com a identidade protestante, mas tambm mostra aos prprios protestantes como essa histria pode ter relevncia para as lutas de libertao dos cristos dos dias atuais. Os primeiros protagonistas demonstram assim que a TdL, ainda que traga consigo influncias do pensamento europeu, traou contedos prprios e estabeleceu identidades compatveis com o contexto cultural e scio-poltico latino-americano.

2.4 A importncia de Medelln e de Puebla Ao tratar da TdL no podemos deixar de considerar a contribuio dos telogos catlicos Latino-americanos, especialmente depois do Vaticano II ocorrido em Roma entre 1962 e 1965. a partir da que esses telogos comeam sua guinada para a esquerda. Esta mudana de direo e de posio torna-se expressa de forma concreta na Conferncia Episcopal Latino-Americana (CELAM) reunida em Medelln, Colmbia, em 1968. Foi nesta reunio que a tese de Gustavo Gutirrez intitulada Hacia una teologa de la liberatin foi adotada pelos bispos. Medelln tornou-se assim um passo importante na inaugurao e construo de uma teologia que privilegiava a reflexo crtica no mbito catlico-romano latino-americano. Tal postura chegou a servir at mesmo, em alguns momentos, de ponte de aproximao e interlocuo com alguns telogos protestantes. Quanto a esta origem do movimento no crculo catlico latino-americano, McGrath registra:

34

Richard Shaull, A Reforma Protestante e a Teologia da Libertao. So Paulo: Pendo Real, 1993, 22.

Em 1968, bispos da igreja catlica romana da Amrica Latina reuniramse em um congresso em Medelln, na Colmbia. Esse encontro normalmente conhecido como CELAM II causou um grande impacto em toda a Amrica Latina, ao reconhecer que a igreja havia freqentemente se posto ao lado dos governos ditatoriais dessa regio, e ao declarar que, no futuro, tomaria o partido dos necessitados.35

A Conferncia Geral do Episcopado Latino-americano em Medelln, segundo acentua Libnio, o lugar do reconhecimento oficial por parte do episcopado da nascente Teologia da Libertao. Ele observa:A partir da, Medelln vai ser um marco e smbolo de todo um universo teolgico e pastoral envolvido com a problemtica da libertao.36

Galilea, por sua vez, acentua que foi em Medelln que a idia de libertao e da teologia da libertao adquiriu estatuto eclesial. Quanto Conferncia e o tema da libertao, Galilea observa e comenta:Ali, d-se um sentido e uma interpretao teolgica tarefa de Libertao humano-temporal da Amrica Latina, ao relacion-la com a salvao de Jesus Cristo. Se h relao entre f e libertao humana, entre o reino de Deus e a construo da sociedade, entre a evangelizao e a promoo temporal, ento libertao no uma noo puramente terrena, mas tem uma dimenso escatolgica. Portanto, pode-se falar de uma teologia da libertao.37

Houve tambm uma outra Conferncia realizada em Puebla de Los Angeles de 21 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979. Puebla, termo que se identifica com a III Assemblia Geral do Episcopado Latino-Americano ocorrida no Mxico, teve uma direta relao com a Conferncia do Episcopado ocorrida em Medelln. Galilea observa:..., a Conferncia de Puebla assume amplamente o tema da libertao e da evangelizao libertadora, na mesma perspectiva. Puebla chega mesmo a elaborar mais a fundo a idia de libertao...38

Puebla produziu um documento que destacava o carter missionrio da Igreja. A respeito deste documento Bettencourt faz o seguinte comentrio:

35 36

Alister E. McGrath, Teologia sistemtica, histrica e filosfica. So Paulo: Shedd, 2005, 153. Joo Batista Libnio, Teologia da Libertao. So Paulo: Loyola, 1987, 26. 37 Segundo Galilea, Teologia da Libertao- ensaio de sntese. So Paulo: Paulinas, 1978, 25. 38 Ibid., 26.

Segundo o documento de Puebla, a misso da Igreja fica sendo, antes de mais nada, uma tarefa escatolgica e transcendental, tarefa, porm, que passa por estruturas temporais e se preocupa seriamente com a cristianizao das mesmas, a tal ponto que esquecer tais estruturas seria incoerncia ou traio ao Evangelho.39

O documento de Puebla, dentre outras coisas, propunha despertar uma religiosidade que no ficasse alheia ao abismo entre ricos e pobres, especialmente no contexto latino-americano, pois neste ambiente, na dcada de 1960, que proliferavam os regimes militares e os modelos econmicos que favoreciam o aumento da misria e a situao de dependncia dos chamados pases subdesenvolvidos aos pases desenvolvidos. Quanto ao perodo que antecedeu Conferncia de Puebla, Saranayana comenta:

Aumentava a violao dos direitos humanos, dando comeo a toda uma poca de perseguio, violncia de todo tipo. Qualquer solidariedade como os pobres era causa de perseguio a at de morte. Muitos cristos foram tachados como comunistas por suas opes em favor dos pobres.40

A quarta parte41 do documento emanado da Conferncia de Puebla foi dedicada Igreja missionria a servio da evangelizao. Nesta parte do documento existe todo um captulo centrado na opo preferencial pelos pobres. Nesse sentido, o documento de Puebla demonstra uma clara aproximao na tradio que emergia de Medelln. Saranyana destaca que esta parte do documento de Puebla nos oferece uma viso sociocultural da realidade da Amrica Latina. Sua compreenso, neste sentido, baseia-se no texto que trata das Concluses de Puebla. O texto diz assim:A imensa maioria de nossos irmos continua vivendo em situao de pobreza e ainda de misria que se tem agravado. Queremos tomar conscincia do que a Igreja latino-americana fez ou deixou de fazer pelos pobres depois de Medelln, como ponto de partida para a busca de pistas opcionais eficazes de nossa ao evangelizadora, no presente e no futuro da Amrica Latina. (Concluses, n.590 [n.1135])42

39 40

Schlesinger e Porto, op. cit., 860-861. Josep-Ignasi Saranyana, Cem anos de Teologia na Amrica Latina (1899-2001). So Paulo: Paulinas e Paulus, 2005, 117. 41 O documento de Puebla constava das seguintes partes: anlise da realidade (primeira parte), resposta da Igreja a evangelizao (segunda parte), a aplicao pastoral para a Amrica Latina (terceira e quarta partes) e, finalmente, opes pastorais (quinta parte). 42 Saranyana, ibid., 124.

Puebla alm de destacar em seu bojo fatores scio-culturais acentuou que, embora a mensagem da Igreja seja fundamentalmente espiritual, a eficcia do Evangelho implicava numa reviso do comportamento religioso e moral dos homens, e esta reviso deveria refletir-se, tambm, no mbito do processo poltico e econmico. Outro fator que convm salientar quanto aos bastidores desta Conferncia tem relao com aqueles que nele caminhavam tendo como referencial a proposta libertacionista apresentada na Conferncia de Medelln e aqueles que se colocam em posio contrria a mesma. Nesse sentido, Caldas Filho observa:Para a terceira Assemblia Geral da CELAM (Puebla, Mxico, 1979), orquestrou-se cuidadosamente uma maneira de fazer a TdL perder a legitimidade obtida em Medelln. Os protestos no entanto de bispos e telogos progressistas e comunidades eclesiais de base em todo o continente fizeram com que Puebla reafirmasse o compromisso de Medelln...43

O escritor catlico Comblin, por sua vez, assevera que o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) preparou a conferncia geral dos bispos convocada em Puebla para condenar a TdL e apresentar uma alternativa tanto a essa teologia como ao programa de Medelln. Segundo o escritor catlico, do ponto de vista dos comentaristas, o resultado foi um empate em terreno alheio. Comblin comenta:Os bispos da linha da teologia da libertao conseguiram que as concluses renovassem e repetissem os temas de Medelln com o linguajar da libertao e o apoio dado s CEBs. No entanto, a assemblia levou muito em conta as advertncias do Papa no seu discurso inaugural contra o magistrio paralelo e a Igreja popular assim como a insistncia na necessidade de afirmar a verdade sobre Cristo, a Igreja e o homem. Tudo isso parecia referir-se s CEBs e teologia da libertao.44

Como ressalta Comblin, a Conferncia em Puebla trouxe consigo, aps sua realizao, um duplo resultado, ou seja, ela tanto serviu de estmulo queles que seguiam a linha proposta em Medelln, como tambm encorajou aqueles que eram seus opositores.43

Carlos Ribeiro Caldas Filho, Alm da Encruzilhada: Uma apreciao da Teologia da Evangelizao Contextual de Orlando Costas. Tese de doutorado em Cincias da Religio. So Bernardo do Campo. Universidade Metodista de So Paulo, 2000, 122. 44 Jos Coblin, Historia Liberationis 500 Anos de Histria da Igreja na Amrica Latina. So Paulo: Paulinas, 1992, 628.

2.5 A formulao, expanso e diversificao do movimento libertacionista Tratar da formulao da TdL implica tecer ou elaborar definies a seu respeito. Conquanto definir possa trazer consigo restries ao objeto que alvo de anlise, concordamos com Caldas que existem definies que so abrangentes o suficiente para no reduzir em larga escala tema to intrincado como o caso da TdL. Nesse sentido reproduzimos a citao que Caldas Filho faz de Garcia no que diz respeito a uma definio da TdL. Eis o texto:Liberation theology is that form of reflection that attempts to discern the religious significance of the sociopolitical struggles in which the poor are engaged as they free themselves of their present state of political domination and economic exploitation. It is the practical theology that has accompanied the emergence, clarification, and consolidation of a new social political and historical project that has been slowly but steadily captivating the minds and hearts not only of Latin Americans but of the Christian community as a whole. The reality of mass poverty and political powerlessness to which the people of Latin America have been subjected and their struggles to overcome this burden are seen as religiously significant events, that raise once more the question of what it means to be a Christian and what it means to be a church in todays world.45

Por sua vez, com relao ao mtodo teolgico da TdL, Caldas Filho observa:A TdL trabalha a partir de um mtodo teolgico que privilegia um engajamento do telogo na luta pela transformao da sociedade. Para tanto, utiliza instrumental de inspirao marxista. Alm disso, privilegia tambm a figura do pobre, que passa a ocupar lugar epistemolgico de destaque em sua formulao teolgica. A TdL favoreceu toda uma renovao de estudos bblicos, com sua postura de ver na histria bblica paradigmas da luta por justia por justia na sociedade. O xodo e a morte de Jesus so temas-chave em uma leitura bblica de inspirao libertacionista. Na Teologia propriamente, a TdL d especial ateno Cristologia. O conceito de salvao, especialmente caro para pietistas e evangelicais em geral, reformulado da TdL.46

Quanto expanso e diversificao da TdL podemos notar que ela no se restringiu somente ao circuito latino-americano, mas, tambm, como termo descritivo, estendeu-se a determinados setores de pases considerados industrializados. Nesse sentido, podemos destacar o livro de James H. Cone intitulado A Black Theology of45 46

Caldas Filho, op. cit., 119. Ibid., 123-124

Liberation escrito em 1970. Neste livro Cone incorpora o conceito da libertao no seu modo de entender a funo da teologia. Conn destaca:Ao reescrever os pontos tradicionais da teologia sistemtica para o negro norte-americano, Cone v a teologia crist como a teologia da libertao, a teologia como um estudo racional do divino Ser no mundo luz da situao existencial de uma comunidade oprimida, relacionando as foras da libertao essncia do evangelho, que Jesus Cristo. O ndice do livro de Cone no d a indicao de que, naquele tempo, tinha escutado a Amrica Latina. Mesmo assim, os temas da libertao so notavelmente paralelos o contexto da opresso funcionando como a norma da teologia, a luta para redefinir a teologia em termos de realidades scio-polticas, e o temor de uma teologia separada da correnteza da existncia, seu aspecto abstrato defendido em nome de uma teologia pseudo-universal.47

Alm da obra de Cone tratada acima, houve tambm, em agosto de 1975, nos Estados Unidos da Amrica, na cidade Detroit, Michigan, uma conferncia de uma semana de durao sobre a Teologia das Amricas. Nesta conferncia deu-se outra mudana no desenvolvimento da teologia da libertao. Conn acrescenta:Sob a direo do sacerdote chileno Sergio Torres, os representantes latino-americanos da teologia da libertao reuniram-se com seus parceiros norte-americanos. A inteno original dos parceiros no dilogo, segundo Torres, era induzir os telogos dos E.U.A. a repensar seu relacionamento com a cultura dominante do seu pas e dedicar-se aos pobres. medida que avanava o processo de planejamento, aqueles alvos eram enriquecidos pelas reaes de vrios grupos de estudos, que notaram que no havia uma experincia americana nica. Uma reflexo teolgica sobre a histria americana no pode ser completa a no ser que fossem convidados preletores em prol da comunidade negra, dos americanos mexicanos, dos porta-riquenhos, dos americanos asiticos... As mulheres devem ser convidadas para refletir sobre sua luta em prol da emancipao na igreja e na sociedade.48

Esta conferncia, mesmo no sendo realizada dentro do contexto scio-poltico latino-americano, trouxe consigo identificaes com os anseios que previamente haviam sido considerados expostos em Medelln e, tambm, foi um dos germens que incentivou a formao de novos movimentos de libertao.

2.6 A contribuio do telogo Gustavo Gutirrez47 48

Conn, op. cit., 10. Ibid.

Gustavo Gutirrez nasceu em Lima no Peru em 1928. Foi licenciado em psicologia na Universidade de Louvaina (Blgica) e, depois, em Lyon (Frana). Atuou como assessor nacional da UNEC (Unio Nacional dos Estudantes Catlicos) e foi professor nos Departamentos de Teologia e de Cincias Sociais da Universidade Catlica de Lima (Peru). Publicou La Pastoral de da Iglesia Latino-americana (1968) e Apuntes para una Teologia de La Liberation (1971). Tomando como referencial esta segunda e mais conhecida obra de Gutirrez, no Brasil intitulada Teologia da Libertao Perspectivas, notamos que um dos principais enfoques do movimento liberacionista vincula-se a uma postura de construo teolgica que se estabelece a partir de realidades concretas e que, ao mesmo tempo, denuncia, combate e empenha-se por abolir toda situao que cause ou promova opresso, injustia e escravizao ao ser humano. Nesse sentido, ela no aliada de sistemas escravizantes e opressores, nem alienada ou inerte quanto aos mesmos. Gutirrez afirma:A f num Deus que nos ama e nos chama ao dom da comunho plena com ele e da fraternidade entre os homens no alheia transformao do mundo e leva necessariamente construo dessa fraternidade e dessa comunho na histria.49

O supracitado autor ressalta que isto no significa negar a ortodoxia, mas fortalecer a dinamizao de uma ortoprxis. Com relao ao termo ortoprxis, Gutirrez acrescenta:No se pretende com ele negar o sentido que pode ter uma ortodoxia entendida como proclamao e reflexo sobre afirmaes consideradas verdadeiras. O que se procura equilibrar, e mesmo repelir, o primado e a quase toda exclusividade do doutrinal na vida crist, sobretudo o empenho muitas vezes obsessivo de procurar uma ortodoxia que amide no passa de fidelidade a uma tradio caduca ou a uma interpretao discutvel. Mais positivamente, o que se quer valorizar a importncia do comportamento concreto, do gesto, da ao, da prxis na vida crist. A esse respeito, dizia E. Schillebeeckx em uma entrevista: Esta me parece ter sido a maior transformao operada na concepo crist da existncia. evidente que o pensamento tambm necessrio ao, mas a Igreja preocupou-se essencialmente, durante sculos, em formular verdades e, enquanto isso, nada fazia para conseguir um mundo melhor. Em outras palavras, limitou-se

49

Gustavo Gutirrez, Teologia da Libertao perspectivas. So Paulo: Loyola, 2000, 66.

ortodoxia acabou deixando a ortoprxis nas mos dos que estavam fora dela e nas dos no-crentes.50

De um modo geral o movimento da Teologia da Libertao empenha-se por uma reflexo teolgica que tem os olhos abertos para o mundo ao redor, ou ainda, para a realidade concreta na qual estamos inseridos. Esta reflexo, por sua vez, uma reflexo contnua, pois a sociedade vive em constante mutao e os desafios missiolgicos se deparam com aspectos distintos e diversos. Segundo Libnio, a expresso teologia da libertao uma contribuio direta de Gustavo Gutirrez. Libnio afirma:

incontestvel que Gustavo Gutirrez o autor que no s forjou a expresso teologia da libertao como tambm exprimiu suas primeiras intuies,...51

Com relao s razes do pensamento de Gutirrez, Libnio considera que as mesmas esto intimamente ligadas como os movimentos teolgicos ocorridos na dcada de 1950 no mundo de lngua francesa. Com relao a isso e tambm ao que ele chama de nascimento da TdL, Lbnio escreve:Ir as razes de seu pensamento significa remontar os movimentos teolgicos que agitavam o mundo de lngua francesa, na dcada de 1950, com as idias de Pierre Teilhard de Chardin, Emmanuel Mounier, Henri de Lubac e outros. Alm disso, quer dizer traar o quadro sociopoltico e pastoral da Igreja latino-americana dos anos de 1960, com vigorosa mobilizao da UNEC (Unin Nacional de Estudiantes Catlicos) do Peru e da JUC (Juventude Universitria Catlica) do Brasil, que ento viviam sua poca de ouro na vida de f integrada num intensa participao poltica. difcil datar uma intuio. No obstante, a conferncia de Gustavo Gutirrez Para uma teologia da libertao, no segundo encontro de sacerdotes em Chimbote, no Peru, em julho de 1968, a um ms do incio da Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano em Medelln, pode ser considerado o nascimento do que mais tarde, seria proclamado como a teologia da libertao.52

50 51

Id. Ibid., 66-67. Joo Batista Libnio, Gustavo Gutirrez. So Paulo: Loyola, 2000, 11. 52 Ibid.

Quanto proposta metodolgica e hermenutica de Gutirrez, podemos encontr-la expressa em seu livro publicado em 1971 sob o ttulo de Teologia da Libertao. Nesta obra ele escreve:A matriz histrica da teologia da libertao est na vida do povo pobre e de modo especial na vida das comunidades crists que surgem no seio da Igreja presente na Amrica Latina. A partir dessa vivncia, a teologia da libertao busca ler a Escritura e estar atenta s interpretaes sempre novas e inesperadas que a Palavra de Deus faz ao processo histrico desse povo. Revelao e histria, f em Cristo e vida de um povo, escatologia e prtica constituem os pontos que ao se por em movimento do lugar ao que se chamou o crculo hermenutico. Tratase de apronfudar-se na f em um Deus que se fez um de ns em dado momento da histria passada para converter-se em nosso permanente futuro. Essa f que nos chega por meio da Tradio deve ser refletida, considerando a experincia crente e compromisso daqueles que acolhem a libertao em Cristo. Os maiores desafios dessa teologia viro, por isso, das exigncias evanglicas que hoje se apresentam no devir de um povo oprimido e cristo. Enquanto reflexo crtica luz da Palavra acolhida na Igreja, ela explicitar os valores de f, esperana e caridade que animam a prtica dos cristos. Mas tambm ter de ajudar a corrigir possveis desvios, tanto aqueles que desdenham as exigncias de insero histrica e de promoo da justia que crer no Deus da vida implica, como daqueles que esquecem aspectos centrais da existncia crist premidos pelas exigncias de uma ao poltica imediata.53

Podemos observar que para Gutirrez a teologia tem a funo de refletir criticamente. Quanto a isso, ele explica:

A teologia deve ser um pensamento crtico de si mesmo, de seus prprios pensamentos. S isso pode fazer dela um discurso noingnuo, consciente de si, em plena posse de seus instrumentos conceituais. Mas no apenas a esse aspecto, de carter epistemolgico, fazemos aluso ao carter ao falar da teologia como reflexo crtica. Referimo-nos tambm a uma atitude lcida e crtica como relao ao condicionamentos econmicos e socioculturais da vida e da reflexo da comunidade crist; no os considerar enganar-se e enganar os outros. Alm disso e sobretudo, porm, tomamos essa expresso como a teoria de uma prtica determinada. A reflexo teolgica seria, ento, necessariamente, uma crtica da sociedade e da Igreja enquanto convocadas e interpretadas pela palavra de Deus; uma teoria crtica, luz da palavra aceita na f, animada por uma inteno prtica e, portanto, indissoluvelmente unida prxis histrica.54

53 54

Gutirrez, op. cit., 32-33. Id. ibid., 68.

Segundo a tica de Gutirrez a teologia ato segundo, ou seja, ela vem sempre depois da manifestao de atos concretos de caridade eficaz, de aes compatveis com o seguimento de Jesus e de manifestaes permanentes de compromisso com o servio por parte da comunidade crist. Gutirrez esclarece:A ao pastoral da Igreja no se deduz como concluso de premissas teolgicas. A teologia no gera a pastoral, antes reflexo sobre ela; deve saber encontrar nela a presena do Esprito inspirando o agir da comunidade crist. A vida, pregao e compromisso histrico da Igreja h de ser, para a compreenso da f, um privilegiado lugar teolgico.55

No livro intitulado Beber em Seu Prprio Poo, Gutirrez tambm trata da teologia como ato segundo. Ele comenta:

...a experincia espiritual refletida, teologizada, em um segundo momento. Isso facilitar sua comunicao, alm de operar um maior discernimento.56

Em outra obra intitulada A verdade Vos Libertar Gutirrez reproduz o mesmo pensamento dizendo:

Na perspectiva da teologia da libertao, afirma-se que inicialmente se deve contemplar a Deus e acolher sua vontade; apenas em um segundo momento se pensa a respeito dele. O que queremos dizer com isso que a venerao a Deus e a atualizao de seu desgnio so a condio necessria para um reflexo sobre Ele. S a partir da prtica (contemplao e compromisso) possvel elaborar um discurso autntico e respeitoso sobre Deus. No gesto para com o pobre, encontramos o Senhor (cf. Mt 25,31-46), mas ao mesmo tempo esse encontro torna mais profunda e verdadeira nossa solidariedade como o pobre. Na histria, contemplao e compromisso so dimenses fundamentais da prtica crist e, conseqentemente, no podem ser evitadas. O mistrio revela-se na orao e na solidariedade com os pobres: o que chamamos o ato primeiro, a vida crist; s depois essa vida pode inspirar uma reflexo, o ato segundo.57

Mais adiante, Gutirrez acrescenta:Uma reflexo teolgica desenvolvida a partir de uma experincia particular pode constituir uma contribuio muito positiva, j que55 56

Ibid. Gustavo Gutirrez, Beber em Seu Prprio Poo. So Paulo: Loyola, 2000, 70. 57 Gustavo Gutirrez, A Verdade Vos Libertar. So Paulo: Loyola, 2000, 18.

permite evidenciar alguns aspectos da Palavra de Deus cuja riqueza total ainda no foi plenamente percebida.58

Nesse sentido, Gutirrez entende que a histria da comunidade crist farta quanto aos exemplos que ele mesmo chama de que-fazer teolgico. O sacerdote peruano cita dentre outros exemplos o de Alberto Magno (1206-1280) e Toms de Aquino (1224-1274), que posteriores a Domingo de Gusmo (1173-1221), tratam sobre a vivncia espiritual deste e lhe do o apoio de uma slida pesquisa teolgica. Todavia, preciso que se esclarea que toda experincia deve sofrer uma ampla confrontao. Gutirrez argumenta:Refletir teologicamente uma experincia espiritual significa trabalh-la, confrontando-a com a palavra do Senhor, com o pensamento do seu tempo, e com diferentes maneiras de se entender o seguimento de Jesus.59

Por sua vez, em obra que traz o ttulo A Verdade Vos Libertar, Gutirrez faz o seguinte comentrio com relao teologia como reflexo crtica:A teologia como reflexo crtica luz da Palavra acolhida na f sobre a presena dos cristos no mundo, deve nos ajudar a ver como se estabelece a relao entre a vida de f e as exigncias de construo de uma sociedade humana e justa. Ela explicitar os valores de f, esperana e caridade que esse compromisso contm. Mas lhe competir tambm contribuir para corrigir possveis desvios, assim como lembrar alguns aspectos da vida crist que correm o risco de ser esquecidos se nos deixarmos levar pelas exigncias da ao poltica imediata, por mais generosa que seja. Tal a tarefa de uma reflexo crtica que, por definio, no pretende ser uma justificao crist a posteriori. No fundo, a teologia contribui para que o compromisso a servio da libertao seja mais evanglico, mais concreto e mais eficaz. A teologia est a servio da ao evangelizadora da Igreja e se desenvolve nela como uma funo eclesial.60

Libnio resume a proposta teolgica de Gutirrez com as seguintes palavras; A proposta teolgica de Gutirrez fundamenta-se num trpode: a inteno de valorizar a teologia como reflexo crtica sobre a prxis; o papel da coletividade dos pobres e fiis como objeto e

58 59

Ibid., 124. Gutirrez, op. cit., 71. 60 Op.cit., 19.

destinatrio original da histria, na igreja e na teologia; e a articulao entre libertao histrica e salvao divina.61 Libnio ainda observa: Seria uma pssima interpretao do projeto teolgico de Gutirrez entend-lo como uma teologia latino-americana em oposio teologia europia. Se houve uma tenso inicial, deve ser entendida no sentido de mostrar que a teologia produzida pelos telogos europeus participa da mesma condio prpria de cada teologia. Goza da universalidade da f, mas possui limitaes devidas s circunstncias em que elaborada. A diversidade dos lugares serve para enriquecer a construo teolgica.62 A contribuio de Gutirrez, conquanto seja de grande amplitude, pode ser resumida nas palavras de Giacomo Canobbio, na contracapa do livro de Joo Batista Libnio intitulado Gustavo Gutirrez. Canobbio assim escreve: No movimento denominado Teologia da Libertao, o telogo peruano Gustavo Gutirrez ocupa um lugar de destaque. A ele deve-se a primeira obra sistemtica de reflexo crtica a partir da acolhida e vivenciada na f. Em sua tica, a teologia representada como um ato segundo, que supe como ato primeiro no uma prxis qualquer, mas a prxis da f, isto uma espiritualidade caracterizada pelo compromisso com o outro que no contexto latino-americano o empobrecido e, ento, pela luta em prol da justia que o Deus da vida no s comanda mas compartilha. Trata-se de uma teologia do avesso da histria, que se deixa provocar pela identificao de Cristo com os oprimidos e leva os cristos a a descer aos infernos deste mundo e a comungar com a misria, com a injustia, com as lutas e com as esperanas dos condenados na Terra, porque deles Reino dos Cus. Nesse sentido, o objetivo da teologia apologtico no significado mais elevado: dar testemunho do Deus da vida que escuta o grito do pobre.63 Alm do que foi dito, no podemos deixar de mencionar que a vida e a obra de Gutirrez, alm das 17 obras e dos 62 artigos por ele publicados at ao ano 2000, continua sendo objeto de vrios estudos e dissertaes no campo da pesquisa acadmica, sejam elas vinculadas ao campo religioso catlico ou protestante. Tal fato

61 62

Op. cit., 13. Op. cit., 12. 63 Ibid., s/p.

vem demonstrar o interesse crescente pela proposta de anlise apresentada por Gutirrez, proposta que tem se difundido no s por meio da literatura, mas, tambm, atravs de expresses musicais que resgatam o compromisso e a conexo com o outro. o que nos propomos a considerar no captulo seguinte.

CAPTULO III - A INFLUNCIA DA TEOLOGIA DA LIBERTAO EM COMPOSIES MUSICAIS PROTESTANTES BRASILEIRAS.

3.1 Consideraes preliminares

msica religiosa consistente pertence ao que h de mais profundo e rico de efeito que a arte em geral pode produzir.64

A TdL tem sido conhecida de forma mais ampla atravs de sua rica e diversificada literatura. Existem mesmo autores e obras voltadas para a TdL que contam com reconhecimento internacional. Entretanto, a TdL no tem atrado somente o interesse de pesquisadores e escritores de livros, ela tambm, desde sua formao, tem provocado a criao de composies musicais que podem ser detectadas dentro do campo religioso protestante, ou, tambm, dentro do campo religioso catlico. Nesse sentido, a TdL, no tem somente um considervel nmero de obras literrias, ela tambm se faz acompanhar de uma voz potica que pode ser conhecida atravs de canes voltadas para sua temtica. Todavia, poucos so os trabalhos que tem se64

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Cursos de Esttica, volume III. So Paulo: Edusp, 2000, 333.

dedicado a analisar o campo musical vinculado TdL. Nesse sentido, Boadella tece o seguinte comentrio:

Uno de los aspectos menos estudiados de la TL ha sido, curiosamente, el de su msica. Y, sim embargo, fue uno de los ms aceptados y difundidos, ya que sus autores e intrpretes alcanzaron uma fama que rebasaba lo meramente religioso y litrgico y algunas de sus obras han llegado a insertarse en el repertorio general de la msica popular latinoamericana.65

Como se pode notar, ainda que a msica da TdL no tenha sido objeto de maior considerao por parte de pesquisadores do campo religioso, isto no impediu que a criao musical voltada para a temtica libertacionista deixasse de se desenvolver ou mesmo de se difundir na Amrica Latina. Quanto aos antecedentes do fenmeno musical ligado TdL, Boadella, registra:El fenmeno musical de la TL tiene vrios antecedentes que conviene recordar. En primero lugar en los aos 60, se produjo en toda Iberoamrica un movimiento muy poderoso de reivindicacin de ls msicas populares e indgenas. Surgieron cantantes y compositores de la talla de Atahualpa Yupanqui, Mercedes Sosa, Violeta Para, Victor Jar y Oscar Chvez, por citar algunos, que, adems, de dignificar el folklore americano, introdujeron elementos de protesta, poticos y de alto contenido humanista. Su fama lleg pronto a Europa.66

Boadella acentua tambm que a TdL proporcionou condies favorveis no sentido de se criar um canto novo latino-americano. Boadella,67 argumenta:

Este movimiento, conocido tambin como canto nuevo latinoamericano, fue el grito de los que no tienen voz, um grito de dolor y esperana de nuestros pueblos e intenta responder a la situacin de dominacin y a los esfuerzos de liberation. [...] La imaginacin de los creadores del canto se v sacudida por los conflitos sociales y polticos internos, por uma juventud que nace al terminar la segunda Guerra Mundial y que inaugura la bsqueda de valores que le sean prprios; es sacudida tambin por ls consecuencias que crea uma migracin progressiva del campo a la ciudad, y por uma Iglesia que debe comprometerse

65

Montserrat Gal Boadella, Anuario de historia de la Iglesia, ISSN 1133-0104, N. 11, 2002, 177, disponvel em http://dialnet.unirioja.es/servlet/autor?codigo=278269, capturado em 17 de outubro de 2006.66 67

Ibid., 178. Ibid., 177-178.

cada vez ms con las necesidades del pueblo [...].(apud Mrquez, 1982 p.559-560)

Nosso objetivo neste captulo considerar a influncia da TdL em composies musicais de autores protestantes. Como j dissemos anteriormente, a TdL no influenciou somente este campo religioso, entretanto, nosso foco de pesquisa tem como objeto de estudo o campo protestante. Nosso interesse nasce tanto pela razo de estarmos envolvidos com a msica protestante desde a infncia, como tambm pelo entendimento de que a msica tem a capacidade no s de nos fazer vislumbrar grandes horizontes por meio de sua poesia, como tambm pode, em sentido contrrio, despertar reducionismos desastrosos. Analisar a influncia da TdL no campo musical protestante uma oportunidade de refletir sobre uma poesia que nos convida a cantar de forma contemplativa e ao mesmo tempo comprometida com a realidade histrica em que vivemos, ou seja, cantar levantando os olhos para os cus com os ps firmes na terra e tendo os ps firmes na terra caminhar na direo do outro para o seu bem. , tambm, uma poesia cantada que desperta uma caminhada comunitria onde todos, unidos e conscientes de seu papel na histria, trabalham na construo de novos paradigmas que combatam toda forma de opresso ou excluso, injustia ou acepo, pobreza ou omisso, devastao ou destruio.

3.2 O contedo do canto expresso atualmente nas Igrejas Protestantes brasileiras Assistimos em nossos dias a profuso de um vasto nmero de canes de pessoas ligadas direta ou indiretamente ao protestantismo que se manifesta no Brasil. Todavia, como j bem observou Adorno a cultura contempornea confere a tudo um ar de semelhana68. Nesse sentido, podemos tambm observar que os contedos musicais atualmente expressos nas Igrejas protestantes tm sido, na maior parte das vezes, semelhantes uns aos outros, tanto no que se refere a sua temtica como no que tange a sua qualidade potica e textual.

68

Theodor W.Adorno e Max Horkheimer, Dialtica do Esclarecimento fragmentos filosficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, 113.

Precisamos, antes de prosseguir, salientar um duplo aspecto relacionado ao campo musical a que nos referimos nesta parte de nossa anlise. Ou seja, no que envolve a msica instrumental popular houve avanos e alguns aprimoramentos. No obstante, o mesmo no se deu, pelo menos com a mesma intensidade, em relao composio no que tange s suas letras. Queremos dizer com isso que muitas destas canes contemporneas, atualmente chamadas no Brasil de msica gospel ou msica evanglica, repetem, geralmente de forma intimista, os mesmos assuntos. Por conseguinte, uma crescente falta de critrio neste campo musical tem favorecido, em grande parte, a banalizao e a massificao da msica religiosa de cunho protestante especialmente por parte daqueles que a tratam como mero produto a ser comercializado e no mais como meio de instruo. Isto, entretanto, no significa que no tenha ocorrido evoluo no meio musical protestante. H exemplos positivos que trataremos posteriormente. No momento convm retornar ao contedo que tem sido expresso na maioria das msicas que tem relao prxima ou distante com o protestantismo. Ressaltamos, inicialmente, que muito do que expresso no Brasil nas composies atuais, seja ele expresso dentro do protestantismo de imigrao ou de origem missionria, ou ainda, proveniente de ambiente pentecostal ou neopentecostal, tem, ainda, fortes vnculos com os hinos do sculo XIX, especialmente no que diz respeito ao carter individualista e intimista das canes. Pode-se concluir este fato pelo vasto nmero de composies que continuam sendo elaboradas a partir da primeira pessoal do singular. A razo disso se deve, em grande parte, no s pela influncia da teologia presente no primeiro hinrio feito no Brasil, como tambm pela constante influncia das verses para o portugus de canes norte-americanas que aqui so gravadas e difundidas. Estas nos aproximam da ps-modernidade, aquelas, as inspiradas no primeiro hinrio, do mundo moderno afeioado ao romantismo que representava uma uma reao sentimental nfase exagerada razo objetiva do iluminismo no sculo XVIII69. Com relao ao romantismo, Olson registra:Os romnticos celebram os sentimentos, pelos quais entendiam no as emoes irracionais, mas os anseios humanos profundos e a apreciao da beleza pela natureza. O movimento romntico deu origem a novos florescimentos nas artes em meio a uma cultura que tendia a valorizar dados cientficos slidos e filosofias intelectuais.7069

Roger Olson, Histria da Teologia Crist, 2000 anos de tradio e reformas. So Paulo: Vida, 2001, 558. 70 Ibid.

Por outro lado, para que tenhamos uma compreenso do que vemos hoje acontecendo na produo musical ligada ao protestantismo, convm tecer algumas breves consideraes com relao indstria cultural e o chamado ps-modernidade. Segundo Huisman a expresso indstria cultural foi fabricada por Horkheimer e Adorno. Ele comenta:

A indstria cultural expresso forjada por Horkheimer e Adorno em vez de corresponder s necessidades efetivas dos indivduos, , segundo eles, uma empresa de manipulao e condicionamento que no permite efeito retroativo nem feedback. A cultura que se pretende democrtica ou democratizada na verdade no e , de modo algum, e os novos empresrios da cultura, assistidos por especialistas em marketing, contentam-se em distribuir as migalhas da cultura burguesa tradicional. Disso s pode resultar uma gigantesca mistificao das massas.71

De acordo como pensamento do filsofo Adorno a indstria cultural coloca a imitao como algo absoluto. Ao tratar sobre ela, o filsofo alemo registra:A indstria cultural est corrompida, mas no como uma Babilnia do pecado, e sim como catedral do divertimento de alto nvel... . A fuso atual da cultura e do entretenimento no se realiza apenas como depravao da cultura, mas igualmente como espiritualizao forada da diverso. Ela j est presente no fato de que s temos acesso a ela em suas reprodues, como cinefotografia ou emisso radiofnica.72

Adorno relaciona a indstria cultural com a cultura de massas, sendo esta uma cultura de carter monopolizante com fortes traos mercadolgicos. Adorno comenta:Sob o poder do monoplio, toda cultura de massas idntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, comea a se delinear. Os dirigentes no esto mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de pblico. O cinema e o rdio no precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que no passam de um negcio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente reproduzem. Eles se definem a si mesmos como indstrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dvida quanto necessidade social de seus produtos.7371 72

Denis Huisman, Dicionrio dos Filsofos. So Paulo: Martins Fontes, 2001, 11. Adorno/Horkheimer, op. cit., 134. 73 Ibid., 114.

Neste tipo de ambiente focalizado por Adorno, onde milhes de pessoas participam da indstria cultural, os padres de arte so determinados por fatores de consumo, ou ainda melhor, pelas necessidades dos consumidores. Desta forma, torna-se inevitvel a disseminao de bens padron