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Caminhadas de universitários de origem popular UFPE Universidade Federal de Pernambuco Caminhadas de universitários de origem popular UFPE “(...) Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social.” Ricardo Henriques Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD

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Caminhadas de universitários de origem popular

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“(...) Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social.”

Ricardo Henriques

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD

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UFPE

Caminhadas de universitários de origem popular

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Copyright © 2006 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Organização da Coleção Jailson de Souza e Silva Ana Inês Sousa

Coordenação Editorial Jorge Luiz Barbosa

Programação Visual Seção de Produção Editorial da Extensão / PR-5 / UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo

Revisão de Textos Simone Maria de Paiva Martins

Imagem da Capa www.visipix.com

C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UFPE / Adson da Silva Gomes Ferreira ... [et al.]. � Rio de Janeiro : Universidade Federal doRio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2006.

88 p. ; il. ; 24 cm. � (Coleção Caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada., Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 85-89669-14-9

1. Estudantes universitários � Programas de desenvolvimento � Brasil. 2. Integração universitária � Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade � Brasil. I. Ferreira, Adson da Silva Gomes. II. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. III. Universidade Federal de Pernambuco. IV. Universidade Federal do Rio de Janeiro. V. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CCD: 378.81

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Rio de Janeiro - 2006

Ministério da EducaçãoSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Caminhadas de universitários de origem popular

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Presidente da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministério da Educação

Fernando HaddadMinistro

José Henrique Paim FernandesSecretário Executivo

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário Executivo Adjunto

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade - SECAD

Ricardo HenriquesSecretário

Departamento de Desenvolvimento eArticulação Institucional

Francisco Potiguara Cavalcante JuniorDiretor

Programa Conexões de Saberes:Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares

Jailson de Souza e SilvaCoordenação Nacional

Luis de la MoraCoordenação Geral na Universidade Federal de Pernambuco

Alessandra PinheiroAna Maria RamalhoMaici LeiteMarcus SilvestreThiago DiasCoordenação Adjunta na Universidade Federal de Pernambuco

Universidade Federal de Pernambuco

Amaro Henrique Pessoa LinsReitor

Anísio Brasileiro de Freitas DouradoPró-Reitor de Assuntos de Extensão

Chistina NunesCoordenadora de Desenvolvimento Social

Instituição Parceira:

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

Dalcio Marinho GonçalvesCoordenação Técnica da Coleção“Caminhadas de Universitários de Origem Popular”

Coleção

Caminhadasde universitários de origem popular

Autores

Adson da Silva Gomes Ferreira

Alda Gomes Lacerda de Meneses

André Luiz Gonçalves Diniz

Andreswamy Barbosa Alves

Ana Karolina Pereira

Edvaldo Lopes da Silva Filho

Fernando Correia de Paiva Júnior

Fernando Silva de Oliveira

Gustavo Alexandre Silva

José Israel de Vasconcelos Filho

Janaína do Nascimento Botelho

Josemir Silva de Mousinho

Karina Fabiana da Silva

Lucineide Cristina Barbosa

Maurício Francisco de Oliveira

Maurício Alves Paes

Paula Taciana Soares da Rocha

Renilda Maria da Costa Cabral

Rosivaldo Vieira Paulino

Saula da Silva Fernandes

José Sebastião Ferreira

Thiago de Oliveira Santos

Valdeanio Alves Leite

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafi o a construção de mecanismos que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continuada, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Se-cretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitá-rios de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 32 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO e UNIVASF.

Através do Conexões de Saberes essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 25 universitários que participam de um processo contínuo de qualifi cação como pesquisa-dores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos alunos de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de ações voltadas para a melhoria das con-dições de permanência dos alunos de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

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Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 14 livros publicados em 2006, reunindo as con-tribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2005. Em 2007, teremos 18 novas obras, que reunirão os relatos dos estudantes das universidades que ingressaram no Programa em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, uma sociedade brasileira mais justa e fraterna e uma humanidade a cada dia mais plena.

Ricardo HenriquesSecretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

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Sumário

Da experiência de serAdson da Silva Gomes Ferreira .......................................................................................9

Ser genteAlda Gomes Lacerda de Meneses ...................................................................................12

Memorial de AndréAndré Luiz Gonçalves Diniz ..........................................................................................16

Minha história é a seguinte...Andreswamy Barbosa Alves ... .......................................................................................18

Só sei que comigo foi assim. E com você?Ana Karolina Pereira ...................................................................................................23

Memorial de Edvaldo LopesEdvaldo Lopes da Silva Filho ........................................................................................29

Tentando ser informalFernando Correia de Paiva Júnior .................................................................................31

Olhar, falar, ouvir...Fernando Silva de Oliveira ... ........................................................................................35

O Engenheiro do EngenhoGustavo Alexandre Silva ...............................................................................................37

Israel: uma caminhada de 23 anosJosé Israel de Vasconcelos Filho ...................................................................................43

Um direito fundamental que para muitos é sonhoJanaína do Nascimento Botelho .....................................................................................46

Minha memória, minha vidaJosemir Silva de Mousinho ............................................................................................49

O que pode o sonhoKarina Fabiana da Silva ...............................................................................................52

Luci em: Ilustrando sentimentos a caminho da universidadeLucineide Cristina Barbosa ...................................................................................................... 57

A engenharia da vidaMaurício Francisco de Oliveira .....................................................................................61

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Projeto familiar como porta para a vidaMaurício Alves Paes .....................................................................................................65

Memórias de uma vidaPaula Taciana Soares da Rocha ....................................................................................69

Foi um tempo que ao tempo não pertenceRenilda Maria da Costa Cabral .....................................................................................71

Da vida que a experiência encantaRosivaldo Vieira Paulino ..............................................................................................74

Pelas estradas de minha vidaSaula da Silva Fernandes ...........................................................................................77

A jumenta e o açudeJosé Sebastião Ferreira ................................................................................................80

MemorialThiago de Oliveira Santos .............................................................................................83

Um fi lho de Valdenor e Maria EugêniaValdeanio Alves Leite ...................................................................................................85

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Da experiência de serCaro leitor, não gostaria que minha história fosse apenas mais uma; no entanto sei que,

por mais inusitada e diferente que seja, é sempre mais uma. O que salva é a singularidade das ações e, visto que toda ação humana é um modelo, espero que ao lê-la possa também servir de modelo.

Na segunda-feira, 13 de março de 1984, um ano cheio de notícias e criações como outro qualquer, nasci na maternidade Barros Lima, no bairro de Casa Amarela, em Recife, Pernambuco. Meu nome foi escolhido por meu pai, que admirava um médico que se chamava Adson, que também era o nome de um cientista famoso. Sou fi lho único de José Edvaldo e Rosânia Ferreira, condição que me fez ser excessivamente mimado e cobrado.

Aos poucos, fui crescendo. Com quase um ano, dei meu primeiro passo e falei; nessa época morávamos em Casa Amarela. Aos dois anos, mudamos para uma nova vila chamada Caetés I, em Abreu e Lima, e comecei a estudar em uma escola do bairro, a Dinâmica. No começo, como toda criança, chorava muito e queria logo voltar para casa, mas com o passar do dias fui me acostumando e passei a gostar de estudar.

Naquela escola, fui alfabetizado e tornei-me orador da turma na formatura. Minha família sempre foi forte na minha vida, seja me cobrando nos estudos, seja no carinho da relação amorosa e cuidadosa. Por isso penso ser a família uma das forças mais importantes de nossa história. É a base, pois não há vitórias sem que haja pessoas para nos apoiar. As vitórias só têm graça se forem compartilhadas.

Vivi o que uma criança deve viver, não tinha preocupações com o futuro, era vida de criança, gostava de jogar bola, correr e brincar de tudo: esconder, corre-corre, corre e pega, de queimado, etc. Numa dessas brincadeiras, caí e tenho até hoje a cicatriz.

Na primeira série, estudei no Joana D’arc. Naná e Adelmilda eram minhas professoras, sempre fui uma criança atenciosa, mas com sérios problemas de saúde, o que complicava meu desempenho escolar. Nessa época, meu sonho era ser advogado, sonho que seria mudado alguns anos depois. Comecei a participar da Igreja Católica São João Dom Bosco, onde fi z catequese. Era o menor e o mais tagarela da turma, daí os apelidos de “adição”, “pequeno” e outros do tipo. Mas isso não me intimidava, era engraçado, isso sim. Fiz a primeira comunhão com o padre João Carlos, da pequena igreja do bairro de Caetés I, que se tornou cantor na mesma época e logo fi cou famoso.

Desde criança, fi cou claro que gostava de ajudar e minhas brincadeiras eram sempre no sentido de ajudar as pessoas. Fiz uma escolinha de reforço com meus colegas, e todas as crianças da rua iam ter aulas comigo e com meus amigos, dentre eles, Tatiana, Aline e Junior. Talvez essa prática tenha incentivado na maioria de nós o gosto pelo estudo. Mas como qualquer criança, também tinha meus problemas infantis. Era um menino tímido e vivia sendo taxado de “CDF” da turma, ou seja, aquele que ninguém gosta por ter sempre as melhores notas. Essas guerrinhas e o fato de sempre ser taxado com apelidos por causa de minha altura não me incomodavam muito, mas devem ter provocado algum dano em minha

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personalidade que ainda não consegui detectar. Como a vida é feita de traumas, um a mais, um a menos não é muito grave.

Minha infância foi dividida em duas partes, a primeira foi relativamente alegre, brincalhona e, apesar da vida simples, existir naquela casa e naquela família era um prazer. No segundo momento, vivi uma fase de isolamento. Cansei de tudo, me afastei dos amigos, das brincadeiras e, como nessa época estava na quarta série, foi a única vez em que fi z recuperação e quase fui reprovado. Pode ter sido um momento de depressão infantil ou resultado de uma séria escolha, talvez prematura, mas esse foi meu ponto de partida para a universidade. Fiquei revoltado com tudo e minha vida se resumia aos estudos, como forma de compensar todos os outros afastamentos. Sofri muito, mas continuei estudando sem vontade e sem ilusão, não percebia mudanças em minha vida e, cada vez mais isolado do mundo, tendo como companheiro a televisão, comecei a fi car revoltado com a minha condição social e vivia muito triste por perceber e viver as desigualdades na pele.

No entanto, como é próprio das fases, essa também foi superada, embora não lembre como as coisas se deram. Na adolescência, estudei na Escola Professora Isaura de França e comecei a participar do seu grupo de esportes que estava começando. Nessa época, o professor incentivava todo o colégio a participar do grupo de esporte que estava sendo criado. Comecei a participar do atletismo, mas sai do colégio e também sai do grupo. De lá, saiu Keila Costa, esportista de rele-vância internacional, que graças à instituição e a patrocinadores conseguiu se destacar nacional e internacionalmente.

Eu falava muito bem em público, com excelente poder de comunicação, mas, quando a conversa era com poucos, me tornava tímido. Isso sempre me causou difi culdades, pois as pessoas me viam em público de um modo e, quando se aproximavam, meu retraimento difi cultava-lhes o acesso.

No Colégio João Barbalho, fi z muitos amigos, mas não gostava de lá pelo fato de ter que ser muito longe de minha e ter que enfrentar um longo engarrafamento em Paulista. Isso me pro-vocou algumas doenças tais como, cansaço, bronquites e outras. Passava mal nas longas viagens por conta da asma, tendo que recorrer diversas vezes a hospitais. Mesmo com essa difi culdade, consegui concluir o ensino básico desenvolvendo também anticorpos para ônibus e outras coisas da vida cotidiana dos adultos.

Nessa época, minha tia Socorro se formou em relações públicas e foi a primeira universitária da família. Fui a sua formatura e gostei muito, o que me fez dizer a minha mãe que um dia também eu estaria vivendo aquela situação. Essa foi a primeira vez que entrei numa Igreja Batista, a da Capunga, onde foi realizado o culto de gratidão dos formandos. Maravilhei-me com o culto.

Meu avô Severino teve complicações em decorrência da diabete e, infelizmente, sofreu mutilações físicas que o invalidaram. Foi muito sofrido para a família, mas a uniu ainda mais. Meus pais começaram a ajudar meus avós na mercearia e, como todas as noites eu fi cava lá, fui aperfeiçoando minha capacidade comunicativa.

Um dia, fui visitar a Primeira Igreja Batista em Caetés I, com meus tios Edvalda e Sérgio. Tornei-me evangélico sem entender e sem querer, pois, na hora do levantar as mãos, fi z porque eles haviam feito. Estava perdido, era evangélico e ninguém me comunicou. Desnecessário dizer que queria desistir depois de algumas tentativas malogradas, mas meus tios insistiram para que eu fosse aos cultos aos domingos. Um dia concordei e houve então um momento mágico para mim. No decorrer da programação, uma das irmãs cantou um hino que sempre me havia tocado muito, mesmo fora do âmbito religioso. Senti uma força diferente e boa, passei a freqüentar regularmente os cultos, preenchido por esse alargamento que algumas experiências nos provocam.

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Mudei então, comecei a me socializar, mesmo com todas as difi culdades provenientes de minha timidez. Batizei-me e entrei para um grupo de teatro que me ajudou a desinibir.

Fui eleito como dirigente da União de Adolescentes, da qual participavam cerca de quinze integrantes. Fiz ali algumas transformações, o grupo, que estava desmotivado, foi crescendo com a amizade e o companheirismo que conseguimos criar. No começo a freqüência era fraca, mas aos poucos, com as inovações, o grupo foi tomando corpo. Na minha saída da diretoria, havia quase 40 adolescentes e tinha começado a fazer intercâmbios com integrantes de outras igrejas. Acredito ter sido essa uma das épocas mais importantes de minha experiência, pois ali perdi a timidez e comecei a ter sonhos maiores.

Essa experiência me ajudou a constituir um lema de vida, de jamais aceitar as situações como defi nitivas e absolutas, pois a capacidade de mudar está em nós, como nossa própria alma. O importante é criar motivações e inovações para que as mudanças aconteçam.

Nessa época, estudava no Colégio Mickey, com bolsa de mensalidade e de transportes. Lá, aprendi a nadar, me apaixonei e fi z amizades com os professores e alunos. Terminei o segundo grau nesse colégio em que chamar os professores de tio era sinal de respeito. Isso me fascinava, porque na minha escola anterior os alunos não respeitavam nem os colegas e, menos ainda, os professores. Data dessa época minha amizade com Janaina, Juliana, Flávio, Emanuel e tantos outros que marcaram minha vida como amigos e, me incentivaram a chegar numa universidade.

No último ano do ensino médio, decidi estudar para valer. Pois queria passar em Me-dicina. Fiz meu primeiro vestibular em 2000; passei na primeira fase, mas, na segunda, não emplaquei. No ano seguinte, resolvi fazer Ciências Biológicas, na Universidade Federal de Pernambuco, e Medicina, na Universidade de Pernambuco; passei na UFPE. Às vezes, temos que modifi car o caminho porque as cobras que nele andam podem nos devorar e, surpresa: descobrimos que há outros caminhos tão belos de alarmar a alma.

Nessa época, era professor da Escola Bíblica Dominical de minha Igreja. Os alunos tinham entre sete e nove anos e eu adorava, aprendi muito com isso. Talvez essa experiência tenha me ajudado a superar a espera pelo fi m da longa greve de seis meses e ainda um grande tempo para o inicio das aulas, que começaram no fi nal de 2002.

Ao começar as aulas, por conta da longa espera e da ansiedade galopante, fui acometido por toxoplasmose ocular e tive que tomar muitos remédios; vinha à faculdade e não conseguia assistir às aulas, pois somente vultos e vozes me povoavam. A família foi unânime em que eu parasse, mas não aceitei, sequer fi quei em recuperação tal o meu desespero pelas aulas.

Enfi m, hoje estou no sétimo período, vencendo as difi culdades do caminho impostas pela vida e por um ensino básico de qualidade ruim. Na minha Igreja, presido a união de Jovens e os Embaixadores do Rei, que são um grupo de crianças e adolescentes. Participo também do Conexões de Saberes, como se pode perceber pela presente publicação. Minha vida está boa, as doenças me abandonaram e a possibilidade de fazer Medicina está sempre em aberto. Tenho fé, o que sempre ajudou a mover-me, e sei que a relação com Deus ajuda-me a conseguir o inexplicável.

Adson da Silva Gomes FerreiraCiências Biológicas

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Ser genteSer gente: quanto signifi cado há nessa expressão para as famílias que sempre estiveram

à margem do que as sociedades, em cada época, consideram como a boa cultura, o desen-volvimento e, até mesmo, a inteligência. Ser gente, para essa gente, é uma busca, um sonho, crescer, tornar-se melhor, alcançar. Lembro-me das palavras do meu pai: “Essa aqui ainda vai ser gente”. Parecia-me simples essa confi ança estimulante, mas o tempo me mostrou que ser gente não é fácil para pessoa alguma.

Sou de um ambiente familiar de oito fi lhos, cinco homens, nascidos primeiro, e três mu-lheres, das quais sou a terceira. Crescemos no sítio Canabravinha, município de Mauriti, zona rural do interior do Ceará. Meu pai era agricultor e minha mãe, dona de casa e costureira.

O campo, como sabemos, é um ambiente que oferece incontáveis benefícios para o crescimento de uma família. No entanto, sem citar esses benefícios, minha família sempre teve muitas difi culdades de acesso a serviços básicos necessários para o que se considera como um bom desenvolvimento, especialmente a educação, seja pela distância dos centros urbanos mais desenvolvidos ou pelas difi culdades fi nanceiras, agravadas por formarmos uma família numerosa.

Em muitos casos, a educação, para as famílias do campo, é colocada em plano secun-dário. No geral, tal fato é provocado pelas circunstâncias reais das necessidades imediatas, que exigem de seus membros o trabalho para garantir os meios de sobrevivência. Felizmente, em minha família, sempre fomos estimulados a superar as nossas difi culdades e procurar o caminho do aprendizado e do crescimento.

No processo da minha formação, não posso deixar de citar a importância que teve o incentivo constante de minha mãe. Com a sua maneira dura e decisiva de ensinar, sempre nos estimulou o aprendizado desde cedo, de modo que, aos cinco anos, quando fui matriculada pela primeira vez, já sabia ler e escrever. Isso foi de extrema importância para a construção do meu caminho posterior, pois as nossas escolas municipais apresentavam um quadro de defi ciência muito grande, e que se agravava pelo fato de que tínhamos que percorrer longas distâncias, a pé, para chegarmos até elas.

Como considero impossível contar um pouco da minha trajetória escolar sem contex-tualizá-la com outros aspectos de minha vida, escolhi esses detalhes por que revelam parte do quadro da realidade que me foi imposta pelo meio aonde nasci. Foi nele que realizei os meus estudos até a oitava série.

Tenho encantadoras recordações desse período de minha vida escolar. Foi uma época cheia de experiências maravilhosas e isso difi culta selecionar e expressar, em seus detalhes mais marcantes, a totalidade dessas experiências. Mas gostaria de ilustrá-lo, de forma sintéti-ca, mesmo sabendo que o que vivi e senti ontem em muito já foi modifi cado pelas vivências que tive até agora.

O que mais me marcou nesse período foi a descoberta de uma nova teia de relações e de exigências, tanto sociais quanto educacionais, para as quais eu não me sentia preparada.

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Desenvolvi meus primeiros anos escolares sem maiores difi culdades, mas, a partir daí, começou a haver uma diferença de idade muito grande nas turmas. Quando fui estudar a quinta série, os alunos, em geral, tinham entre treze e dezesseis anos, e eu estava com nove anos. Foi terrível, tive que repetir o ano para não perder o compasso com a turma.

Por ter que conviver com pessoas que já estavam na adolescência quando eu ainda era criança, sofri um pasmo, era uma realidade ao mesmo tempo encantadora e chocante. Foi a descoberta de novos mundos em meus sentimentos, revelando-me as novas amizades, os novos conhecimentos. Lembro-me bem do entusiasmo que tinha ao estudar as fi guras de linguagem, os conteúdos das ciências naturais, a descoberta das operações matemáticas mais complexas, as descobertas sobre o corpo humano, os estudos de história, os espaços da geografi a. Tudo isso me fazia perceber universos e possibilidades maiores para meu mundo.

Assim passei os anos que se seguiram até a oitava série, e quanto mais o tempo pas-sava, maior era a expectativa para o término do primeiro grau, pois ali estaria o caminho para uma nova forma de vida, a vida na cidade, em Juazeiro do Norte. Outras das fases mais importantes de minha vida escolar. Mais uma vez me deparei com o novo, o desconhecido: a cidade, uma nova escola, novas amizades, novo aprendizado e, em meio a tudo isso, as visões e turbulências da adolescência.

O primeiro ano foi o mais difícil, tive difi culdades em acompanhar algumas disciplinas, em especial, química e física. Eram conteúdos completamente estranhos. Além dessa difi culda-de, outro fator veio contribuir para que meu rendimento escolar fosse baixo, acarretando uma reprovação de ano. Como estávamos morando de aluguel e não possuíamos renda sufi ciente para suprir as necessidades, aos quinze anos tive que procurar emprego para ajudar na renda de casa. Depois que já estava habituada ao lugar, à minha nova realidade, foi mais fácil superar a repetição do primeiro ano e cursar o segundo. Quando ao término deste, no ano de 1994, tive uma grande surpresa que me deixou eufórica. A vinda para o Recife, capital que estava em nossos planos para a tentativa de cursar universidade, fora antecipada.

Mais uma vez, expectativas, mudanças e adaptações. Fiquei instalada na casa de Vilani, noiva de meu irmão. Ele morava na casa de um primo de meu pai, e já cursava universi-dade. Vilani e eu morávamos no município de Paulista, Região Metropolitana do Recife. Fui estudar numa escola local, o estudo não era de qualidade, mas era melhor do que todos por onde eu havia passado. Conclui o terceiro ano nessa escola e foi lá que tive o primeiro contato com a realidade do vestibular e tive também que fazer uma escolha profi ssional.

O ano fora proveitoso em alguns aspectos, porém muitas lacunas que fi caram de toda a trajetória até então não poderiam ser preenchidas em um único momento. Com pouca base e sem maturidade, encarei o vestibular pela primeira vez. Optei pela profi ssão que meus pais, desde que eu era criança, achavam que deveria seguir: Medicina. Não fui aprovada e isso acarretou mais uma vez mudanças em meu caminho. Minha irmã, que estava morando em Fortaleza me convidou a morar com ela, para ajudá-la com seu bebê e estudar nessa capital. Fiz pré-vestibular em Fortaleza e tentei o vestibular mais uma vez para Medicina. Novamente a história se repetiu, não passei.

Como não havia mais muitas saídas, estava cada vez mais difícil alcançar o caminho para “ser gente”, era o momento em que eu deveria procurar a minha independência fi nan-ceira e fazer novas trilhas com meus próprios passos. Foi então que fi z a mudança mais radical, fui para São Paulo, pois tinha um irmão morando lá há alguns anos.

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Não poderia deixar de citar esse fato, porque muito da formação de uma nova consciência em meu viver se deu nesse lugar. São Paulo foi uma escola da vida. Nessa realidade, despertei para sentimentos que nenhuma escola havia conseguido tocar, e creio que nem mesmo poderia fazê-lo. Apresentou-se diante de mim um mundo de vastidão enigmática para a cultura que tinha até então. Tinha que descobri-lo, tinha que entendê-lo.

Rapidamente consegui trabalho, a carga horária era de onze horas diárias, o que difi cultava ainda mais a possibilidade de continuar os estudos. Passei dois anos em São Paulo e trabalhei em quatro empregos diferentes e, como a carga diária sempre foi grande, não havia possibilidade de seguir o sonho do ensino superior. Então, decidi com muito receio voltar para o Recife, pois, mesmo com todas as difi culdades, valorizava muito alguns aspectos da cultura de São Paulo. Afeiçoei-me ao lugar pelo que lá vivi e aprendi, mas queria mesmo era estudar na universidade.

Nessa época, meu irmão que morava em Recife estava com melhores condições de vida e me deu apoio para que eu voltasse a estudar. No entanto, havia necessidade de continuar trabalhando, o que fi z logo quando cheguei. Também me matriculei em um cursinho pré-vestibular e pagava todas as despesas com meu salário.

Quando veio a escolha para o vestibular, mais uma vez, queria permanecer na área de saúde, mas tinha consciência de que não estava preparada para Medicina, pois, embora tendo ensino de qualidade no cursinho, não sobrava tempo para estudar em casa e poder concorrer com melhores chances.

Optei por Biomedicina. Não consegui. Foi então que decidi juntar dinheiro e fi car apenas estudando no ano seguinte. Assim o fi z. Consegui pagar outro cursinho e optei, depois de uma auto-refl exão, por fazer o curso de Arquitetura e Urbanismo. Nessa tentativa de autoconhecimen-to, percebi que estava optando nos vestibulares anteriores pelos meus pais, que o meu desejo de provar que poderia alcançar aquilo para o que eles sempre me haviam estimulado era maior do que a realidade das minhas inclinações.

No ano de 2000, consegui fi car apenas estudando para fazer o vestibular da Universidade Federal de Pernambuco. Estava decidida e confi ante no meu sucesso. Tive um ano muito pro-dutivo em termos de estudo. Matriculei-me em um cursinho maravilhoso e conheci pessoas que me ajudaram e estimularam, sobretudo os professores. Finalmente consegui, passei no vestibular de Arquitetura e Urbanismo da UFPE. AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH-HH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Entusiasmo geral. Senti-me extremamente feliz por ter conseguido, a duras penas, ingressar no ensino superior público.

Entrei na UFPE com a alma cheia de orgulho e de vontade de crescer. Imaginava um ambiente de abertura, solidariedade, amizades e férteis trocas de idéias. Infeliz decepção! Os primeiros meses se encarregaram de me mostrar que, infelizmente, o ambiente era, e ainda é, mais um exemplo do que se reproduz em sociedade cotidianamente, com raríssimas exceções. Pessoas centralizadas demais em seus próprios umbigos e em suas exuberantes vaidades. Foi esse cenário que encontrei. Desencanto. Boa parte do quadro universitário se refl ete nesse prisma. Os próprios mecanismos estruturais das universidades favorecem a criação e a reprodução de vícios seculares de nossa história.

A vivência nesse ambiente me mostrou que teria muitas difi culdades para conseguir terminar o curso, de forma que pensei algumas vezes que não conseguiria, chegando inclusi-ve a me desviar por uns tempos dos meus objetivos. Tive uma desvantagem desde o inicio, quando passei no vestibular. Meu curso sempre teve a imagem de ser direcionado para elites e a minha realidade não se encaixava nesse mundo e, por isso, não tive muito apoio familiar.

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Mas, quanto ao fato de ser direcionado para elites, não deixa de ser uma verdade, pois a estrutura curricular é pensada para quem tem possibilidade de se dedicar apenas à universidade. Mesmo assim, ousei acreditar que poderia dar certo. Gosto muito de tudo o que apreendi no campo específi co de Arquitetura e Urbanismo. Identifi co-me com os conteúdos, especialmente urbanísticos, e hoje, além de acreditar que vou superar as difi culdades de permanência na graduação, já estou sonhando e me preparando para a pós-graduação.

A cultura brasileira atribui às instituições escolares a tarefa de educar e formar os cida-dãos; todavia, das lições que a experiência na vida me mostrou, uma das mais importantes é que a escola não é a única responsável pela formação de pessoas conscientes e atuantes como profi ssionais e cidadãos. No processo de formação da personalidade, é de extrema importância o aprendizado familiar, ou seja, o modo como a família direciona a formação de caráter dos indivíduos contribui decisivamente para se ter cidadãos críticos, criativos e cuidadosos com o mundo que os cerca.

Do meu aprendizado na escola da vida, concluí que o alcance de se “ser gente” não se restringe ao fato de estar inserido nos meios institucionais de ensino. Esses são apenas uma via para se obter desenvolvimento intelectual, cultural, material, etc., que possibilitem uma sobrevivência digna. Uma educação mais ampla, capaz de fomentar uma consciência crítica e, por isso, ampla, se dá com a experiência formal da educação, mas, sobretudo, com as vivências e a interação social que nos tornam aptos à criação de novas possibilidades de mudanças sociais, redefi nindo novos caminhos para uma dignidade humana abrangente. O meu desejo, pois, tornou-se mais ambicioso, e penso que essa criação não se faz por vias de ser socialmente favorecido ou não.

Aqui, encerro meu breve relato, não tão breve como deveria, mas também não tão amplo para que possam contemplar o meu viver, pois o que aqui falei não corresponde a um átimo das minhas memórias. Mas... Como a memória é seletiva, deixo aqui minha vida para vocês. Ah! Quase ia esquecer, para verem como a memória é seletiva, meu nome é Alda Gomes Lacerda de Meneses e hoje faço parte do projeto Conexões de Saberes.

Alda Gomes Lacerda de MenesesArquitetura e Urbanismo

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Memorial de André

Bem, tudo começou quando minha mãe e meus avós moravam no bairro Boa Viagem. Às escondidas, iniciou-se um relacionamento entre minha mãe e um homem, o resultado foi a minha existência. A gravidez foi escondida enquanto se pôde, mas, quando meus avós descobriram, foi um problemão: reclamaram, gritaram, esbravejaram. Ameaçaram expulsá-la de casa, entre outras torturas. Mas, depois de uma grande tempestade, a barriga começou a crescer e tal foi a fascinação deles que eu, mesmo sem ter nascido, já era triplamente amado. Aos poucos, se acostumaram com a idéia, não cumpriram as ameaças e aquele novo momento da vida deles e de minha mãe virou prazer.

Nasci! Minhas primeiras lembranças são lá do bairro Boa Viagem, onde morávamos em um prédio que tinha uma vizinhança boa, muitas crianças, brinquedos, praia. Tudo que era animal eu queria criar dentro do apartamento, tinha pinto, codorna, pássaros, etc. Havia perto de onde morávamos o antigo mercado de Boa Viagem e meu avô, sempre quando vinha de lá, trazia toda sorte de cacareco para mim.

Sempre fui muito curioso, com tudo. Um belo dia, estava no quarto de meu avô, que tomava comprimidos guardados numa caixinha rosa, de aroma agradável, o que me fascinava mais ainda, então encontrei a caixinha e tomei todos os comprimidos que estavam dentro dela. Foi um desespero. Minha mãe, ao ver a cena, quase enlouqueceu, me levou ao hospital mais próximo para serem realizados os devidos procedimentos, fi zeram uma lavagem intestinal, horrível. Sofri porque colocaram uma sonda no meu nariz, mas no fi nal tudo deu certo e por isso estou aqui.

Outra grande aventura foi quando, aos três anos, num descuido de meus tios, vi a porta da cozinha aberta. Desci a escadaria do prédio correndo, atravessei a avenida só para comprar, sem dinheiro, bombons numa banca de revista cuja dona era amiga da família e gostava muito de mim. Quando me procuraram no apartamento e não encontraram, foi um reboliço, meus tios desceram as escadas em desespero e foram ao alvo certo: a banca de revistas.

Certo dia, o dono do apartamento onde morávamos veio buscar o dinheiro do aluguel e informou-nos que o prédio tinha sido vendido para uma construtora e no local seria construído um hotel. Foi triste, muito triste para mim. Fomos morar no bairro Campo Grande, numa casa simples, no entanto muito boa. Lá aprendi a andar de bicicleta sem rodinhas. Minha avó só permitia que eu brincasse na rua com os vizinhos após as quatro da tarde quando o sol estava mais calmo. Era muito bom. As ruas eram esburacadas, eu caa sempre e abandonava a bicicleta como se ela fosse culpada pelos meus tombos, mas minhas renúncias duravam pouco. Um dia, caí e me machuquei muito. Com raiva, joguei a bicicleta no lixeiro, mas por sorte minha avó a salvou da minha ira.

Mais uma vez tivemos de nos mudar, para tristeza minha. O dinheiro encurtou e tive-mos que entregar as chaves. Senti muito porque tinha feito muitas amizades e me divertia lá. Fomos morar em Casa Amarela, que eu já conhecia um pouco, pois meus tios moravam lá

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e eu passava alguns dias na casa deles. Nessa época, minha mãe casou e foi morar no bairro Arruda e eu fi quei morando com meus avós.

Na nova moradia, consegui fazer muitas amizades, aumentei os laços afetivos com meus tios que moravam próximo à minha casa. Gostava muito de ir ao colégio, também fi z muitos amigos e alguns ainda preservo até hoje.

O tempo foi passando e a saúde de minha avó também; descobrimos que ela estava com tuberculose, que já havia consumido parte do pulmão. Numa das crises de falta de ar, precisou ser internada no hospital público, onde passou um mês até falecer. Senti muito a sua falta, pois a considerava minha mãe e passaei o maior tempo de minha vida com ela. Demorei a aceitar a perda, tinha apenas nove anos e me sentia perdido. O que ajudou foi que próximo à nossa casa havia uma pequena igreja, a Igreja do Nazareno. Eu freqüentava regularmente os cultos, escolas bíblicas, encontros jovens, corais, teatros, palestras. Era maravilhoso.

Fui passar férias de dezembro na casa de um amigo no bairro do Janga. A casa dele era ótima: perto do mar, íamos à praia todos os dias. Um belo dia de chuva, fi zemos uma aventura muito perigosa, juntamos eu e meus amigos e fomos tomar banho de praia com um imenso temporal. O mar estava cheio e agitado, ondas enormes, mesmo assim entramos e fomos nadar. Brincamos de afogar um ao outro, muito perigoso, mas éramos jovens e o risco nos atraía, nada de terrível nos aconteceu, graças.

No dia seguinte, o céu estava ensolarado e resolvemos tomar banho de piscina num clube de perto. Mas tinha um grande empecilho, só nosso colega era sócio, houve uma negociação e conseguimos entrar. O banho de piscina nos deixou maravilhados, aprontamos muito, brin-camos de pega-pega, até que o pega fui eu. Subi na borda e mergulhei atrás de meu amigo, ele saiu nadando desesperado e eu o perseguindo, numa de minhas braçadas coloquei a mão embaixo do pé dele, só escutei o “crack”, quebrei a mão. Fiquei no gesso mais de quarenta dias. Voltei muitas vezes a essa casa, e lá tudo era especial. Foi também nessa época que, aos quinze anos, conheci minha primeira namorada.

O tempo passava, comecei a estudar mais, desejava passar no vestibular de Odontologia na Universidade Federal de Pernambuco, e isso exigia esforço máximo. Muitas pessoas con-fi avam em mim, mas, como aluno oriundo de escola pública, não consegui passar de primeira. Fiquei muito triste, muitos amigos que tinham oportunidade de freqüentar cursinhos haviam me emprestado material para estudo, mas só isso não foi sufi ciente.

No ano seguinte freqüentei “aulões” que alguns professores ofereciam gratuitamente e continuei contando com os amigos que tinham material de cursinho, até que fi nalmente consegui passar, fi quei no remanejamento do curso de odontologia. Até hoje venho levando a vida com difi culdade, mas com esperança de que, um dia, de preferência num futuro bem próximo, irá melhorar.

André Luiz Gonçalves DinizOdontologia

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Minha história é a seguinte...

Há algum tempo atrás, foi a minha hora de nascer. Mas minha história começou pouco antes disso, quando ainda estava ligado à minha mãe pelo cordão umbilical. Aos sete meses de gestação, minha mãe viveu um susto muito grande: caiu um cacho de coco próximo a ela e o choque foi tão grande que, no mesmo momento, parei de dar sinal de vida. Desenganada pelos médicos, afl ita pela dor, antes de marcar o aborto, pediu licença ao doutor, pois sua fé ia muito além do que a ciência ditou.

Foi num Centro Médico Espírita, chamado Swamy, onde tudo recomeçou. Minha mãe foi atendida por um médium indiano chamado Swamy, que, ao tocar em sua barriga, me fez mexer e não parei até aqui.

Muitas coisas ele lhe disse, outras lhe recomendou, que seu parto seria tranqüilo, que lhe traria orgulho e amor. Dali, nasceria um homem e também um vencedor: pois eu nem sequer tinha nascido e a morte já tinha vencido.

Minha mãe era tesoureira de uma gráfi ca, hoje aposentada, espírita praticante, sempre viu seus fi lhos como se fossem de cristal, mas os criou fortes como ferro. Meu pai, ex-militar, serviu na ONU¹ e por isso conheceu parte do mundo, de onde lhe surgiu a idéia de documentar fatos através de fotografi as. Evangélico fervoroso, pregador, se tornou missionário. Porém, longe de tudo isso, meu pai e minha mãe se encontraram e foram tomados de um amor tão grande que cinco fi lhos geraram. Mas um dia o destino testou a fé de ambos e foi essa fé na crença de cada um que os separou. Meu pai, durante muito tempo, permaneceu morando na mesma casa que nós, pois minha mãe sabia que os fi lhos precisavam do pai por perto.

Tenho três irmãs, a mais velha já casou, a do meio e a caçula ainda não pensam em casar. Tenho também um irmão, quase da mesma idade que eu, com quem compartilhei boa parte da minha infância. Quando pequenos, dizíamos que éramos os “irmãos mão”, pois a mão fechada tinha muita força e assim nos deixava fortes e invencíveis. Hoje ele é militar como meu pai, vivendo para servir e servindo para viver. Nós crescemos no evangelho e na doutrina militar, conhecendo a espiritualidade e aprendendo desde cedo a respeitar as diferenças, pois religião e fé eram intocáveis para nossos pais. Um exemplo disso é que hoje sou católico, não fi cando nem cá, nem lá.

Nossa situação econômica era muita limitada, então nosso maior tesouro eram a imagi-nação e a energia, que nos davam muito orgulho e infi nitas reclamações. Havia a promotora, nossa mãe, e o juiz carrasco, nosso pai, que dava sentença e punição. Isso não nos fazia menos felizes, pois éramos de uma alegria contagiante.

Desde quando nasci, a vida me foi colocando provas e me modelando ao passar por cada uma delas. Aos cinco anos, descobri algo que deu um sentido diferente: tínhamos ido a uma

¹ ONU - Organização das nações Unidas

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praia e, ao longo de uma caminhada não muito distante, me deparei com a mais bela casa que havia visto naqueles poucos anos de vida, era uma casa inovadora e aparentava um conforto excessivo; naquele momento, decidi que era aquilo que queria fazer. Voltei correndo e falei para minha mãe que queria “fazer casas”, ela sorriu e disse que eu deveria querer ser médico, mas não ia adiantar o que ela dissesse porque aquilo tinha fi cado bem claro na minha cabeça. Aos nove anos, veio a confi rmação de que minha mãe realmente estava errada, quando tive um leve acidente no carnaval e fi quei cinco horas na emergência de um hospital. Decidi que não voltaria mais num lugar daqueles.

Comecei a freqüentar a alfabetização aos cinco anos, graças a um sorteio para o Jardim de Infância Ana Rosa, escola pública muito concorrida, que era uma maravilha, pois os professo-res eram doces, o espaço era amplo e agradável, sem falar nos lanches que até hoje lembro os sabores. Lá fi z amizades com quem brincava e participava de todas as festas de fi m de ano.

Aos sete anos comecei o primário tinha que ter mais responsabilidade, não era tão bom assim. Na primeira série, até que foi divertido, consegui me entrosar com alguns colegas e era dedicado, apesar de impulsivo. Na segunda série, meu jeito impulsivo virou agressividade, fui incorporado ao sistema de escola pública no pior sentido, freqüentava a Escola Cônego Rochael de Medeiros e o problema se tornou sério. Quando brigava na sala de aula, era encaminhado para a sala de uma coordenadora que só fumava e falava ao telefone e me passava tarefa do B-A, BA , B-E, BE. No dia seguinte, quando retornava à sala de aula, aquele que tinha brigado comigo no dia anterior levava uma camada de pau ainda maior. Isso se repetia de tal forma que até tocaias faziam em grupo para que eu caísse, e o pior é que todos se queixavam de mim, então eu tinha que fi car dias e dias com a coordenadora fumante – até hoje detesto cigarros. Mas passei de ano, pois apesar de todas as brigas e intrigas sempre fui um aluno dedicado.

Sabia cativar os professores e coordenadores ganhando, assim, respeito e prestígio. Mas senti a difi culdades, pois o assunto que estudávamos não era compatível com o que usamos no dia-a-dia e muitas vezes, sobretudo a matéria de português, foi me vencendo.

Aos nove anos, me apaixonei pela primeira vez e coitado do mortal que pela boca o nome dela pronunciasse. Sofri muito, pois jamais tive coragem de me revelar para ela. Apesar de ter fama de paquerador e bravo, diante dela era apenas um cordeiro e mudo, fi quei toda a quarta série naquela situação.

Naquele tempo, as coisas não tinham muito sentido para mim. Eu pensava no por quê de termos que estudar coisas tão difíceis, quando havia outras tão importantes e tão mais fáceis. Como eu podia gostar tanto de alguém que nem me conhecia. Comecei a me questionar muito sobre a vida e pensar como seria a morte. Toda aquela mistura em minha cabeça me levou a repetir o ano letivo, mas naquele tempo, para mim, não havia diferença em passar de ano ou não, afi nal eu me questionava no que iria mudar.

Mas o caso é que aquilo que julgava irrelevante ensinou-me uma lição. Meu pai, um homem vivido, não me questionou a reprovação, me convidou para passear e me levou para visitar alguns lugares. O primeiro foi o escritório de um amigo seu, um lugar muito bonito. Ele perguntou a seu amigo como iam os negócios e ele respondeu que “iam bem, não tinha do que reclamar, mas para isso não havia parado de estudar desde a sua formatura, pois tinha que estar atualizado”. Nisso, entra uma copeira e nos oferece um cafezinho, meu pai perguntou a ela se gostava de trabalhar ali, e ela respondeu que sim, aquele emprego foi um milagre em sua vida, pois não havia muitas oportunidades para quem só tinha estudado até a primário. Meu pai perguntou o por quê de ela só ter estudado até o primário e ela respondeu que achava o estudo sem graça, gostava mesmo era de pular corda, elástico, trocar papel de carta, ir a festas e tomar

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conta de casa. Depois, meu pai perguntou quanto ganhava e ela respondeu que, graças ao seu chefe, um salário mínimo. Então, meu pai agradeceu sua resposta, nos despedimos de todos e fomos embora. Meu pai calado fi cou.

Quando saímos dali, andando pela rua, avistamos um rapaz muito bonito que puxava uma carroça de papelão, meu pai lhe ofereceu um refrigerante, ele logo aceitou. Meu pai perguntou se ele gostava de jogar bola e ele respondeu que era o que melhor fazia. Depois perguntou sobre os estudos, o rapaz respondeu que tinha pouco estudo, pois, na época em que freqüentava a escola, fugia todos os dias da aula para ir jogar bola, empinar pipas e namorar, porém naquele momento namorava pouco por não ter dinheiro para gastar. Meu pai perguntou quanto ganhava com aquele trabalho e ele respondeu que pouco, mal dava para se alimentar. A conversa fi cou por ali e meu pai, mais uma vez, se calou.

Quando estávamos chegando em casa, paramos em um canto, sentamos e, aí, sim, meu pai falou. Disse-me que a vida tinha várias opções e que eu teria que escolher a mi-nha, como também escolher os meus objetivos e me dedicar a eles para desfrutá-los mais tarde. Ou então fazer minhas vontades naquele momento e ter meus desejos limitados no futuro. E concluiu dizendo que um ano que o homem repete no colégio são dez anos a menos na vida dele. Tudo aquilo mexeu muito comigo, me fez refl etir e, daquele dia em diante, nunca mais reprovei.

Fiz o ginásio no Colégio João Barbalho, onde vivi minha adolescência, foram anos marcantes para mim, pois tudo era aceitável, afi nal de contas éramos jovens. Fiz grandes amizades e me tornei muito brincalhão, foi lá também que conquistei minha primeira na-morada: comunicativo que me tornei, conhecia do diretor à faxineira.

Aproveitei a época para enterrar minha fama de bravo e tudo comigo passou a ser no diálogo. Me tornei respeitado e isso, num colégio público, era fundamental, pois as brincadeiras eram sempre muito pesadas.

Organizei um grupo para cuidar da formatura e conseguimos colocar a primeira placa de formandos daquele colégio na parede; era de metal, para durar muito. Ao concluir o ginásio, pude escolher entre fazer o segundo grau em um colégio normal ou dar um passo maior para o curso que eu tinha escolhido, Engenharia Civil. Naquele momento, o mais perto dele era Técnico em Edifi cações. Passei na Escola Técnica Estadual e concluí o seguindo grau. O curso era apaixonante, pois abordava temas que foram aos poucos delineando minha vocação e meu amor pela Engenharia Civil.

Aprendi que o tipo de aluno que eu deveria ser não dependia dos professores, mas sim de mim, e isso despertou o desejo pela pesquisa e a necessidade de estar sempre me atualizando. Apesar de ter feito muitos amigos, comecei a compreender que a competição por tudo era acelerada.

A vontade de aprender me fez avançar nas matérias do profi ssional e, no segundo ano, realizei um projeto completo de construção. De lá em diante não parei mais, estagiando em vários lugares. Fiz dos professores grandes amigos e até monitor me tornei. Lá também fi z esportes: vôlei, atletismo, capoeira e tomei gosto por eles, pois me ajudaram no conceito de trabalho em equipe e de qualidade de vida. Quando podia, dormia cedo, o que me fazia agüentar o ritmo, principalmente no último ano, pois estagiava em dois lugares, manhã e tarde, com funções diferentes, estudava à noite e ainda presidia a comissão de formatura, além de estudar para o vestibular nos fi nais de semana. Foi um ano bem intenso e eu pro-curava viver tudo aquilo com a verdade que cada coisa tinha.

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Os estágios foram fundamentais para minha formação. Naquele ano só passei na primeira fase do vestibular, notando que o meu segundo grau foi pouco para o curso de Engenharia Civil, que desejava alcançar.

No ano seguinte, recebi propostas de emprego, mas abri mão delas, pois, por mais que eu gostasse do curso de edifi cações, meu objetivo realmente era Engenharia e caso aceitasse aquelas propostas poderia ser que o prejuízo do segundo grau eu não conseguisse recuperar, o que me afastaria do meu objetivo. Então, comecei a estudar em casa, com livros e programas na TV e também com alguns amigos, mas ainda sim não era sufi ciente para o nível do curso de Engenharia Civil da UFPE. Mas, como eu já havia pensado, caso não pudesse alcançar o meu objetivo, o mais próximo dele eu gostaria de estar.

Como a concorrência para o curso que tanto almejava era muito alta e eu não me sentia preparado, então resolvi optar por um curso da mesma área em que a concorrência fosse menor e mais tarde poderia trocar para o curso desejado. Então, no meu segundo vestibular, consegui ingressar na UFPE, no curso de Engenharia de Minas. Para sorte mi-nha, passei a sentir grande interesse pelo curso, pois ele abrange informações de boa parte das Engenharias.

A universidade era um novo universo para mim, sem falar na responsabilidade, pois fui o único da minha turma a entrar na UFPE e o primeiro de toda a minha família a estar numa universidade. Porém, a responsabilidade me servia de entusiasmo, pois acreditava que a felicidade sorria para mim. Mal tinha entrado e já fazia planos para quando saísse.

Pena que essa alegria não durou muito tempo, bastou começarem as aulas para que eu me sentisse um peixe fora d’água, pois o assunto não tinha semelhança com o que eu havia estudado. Eu mal conhecia matérias como cálculo e geometria analítica e me assustava com as que eu conhecia. Foi aí que percebi que, se quisesse superar os obstáculos, teria que me esforçar muito. Procurei fazer aulas de monitoria, fazer amigos e estudar em grupos, mas as notas não subiam. Notei que isso era algo comum na área II e que muitos dos meus colegas passavam pelo mesmo problema.

Como já havia mencionado, fi z muitos amigos, pois sou muito comunicativo, em especial, uma amiga que, a cada dia, se tornava mais querida para mim, a ponto de não podermos mais nos separar. Foi quando a pedi em namoro e, dois anos depois, noivamos e espero, para o resto de nossas vidas, em companhia dela eu possa viver. Foi um relacio-namento que veio fortalecer meus objetivos.

Mais tarde, comecei a me preocupar, as notas baixas que tirava, eram tapas na cara e, então, quando veio o primeiro zero, comecei a me questionar se aquele realmente era o meu lugar. Resolvi ir em frente, pois tinha motivos para fi car. Reprovei em algumas cadeiras, em outras fui mais bem sucedido, pois o conceito que guardo é de que o conhecimento que adquiri ninguém pode tirar de mim e foi justamente esse conceito que me fez nunca “fi lar”, o que para mim é enganar a si mesmo.

A universidade, apesar de pública, não é para todos, pois o meu curso é integral, fi cando a impossibilidade, quase total, de trabalhar e estudar. Isso defi ne os que podem continuar e também os que se sacrifi cam para poder. Nesse momento, a família se torna fundamental, pois é um apoio real, porque o apoio oferecido pela universidade é virtual, não é real. Em particular condições impostas para troca de serviço por bolsas simbólicas que exigem ótimas notas, caso contrário não se tem lugar.

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Nunca me conformei com a situação, buscando sempre alternativas paralelas e graças ao meu curso técnico, alguns serviços pude prestar, o que atrapalhou de leve o curso, porém me forneceu condições de não desistir.

Já ouvi falar que curiosidade mata, mas em outros casos salva, esse foi o meu caso. Certa vez, vi, em um mural, um cartaz que me fazia um convite: “Para aquele estudante de origem humilde que em prol dos outros já trabalhou estão sendo oferecidas bolsas para esse trabalho voltar a fazer. E para os demais, se quiserem, voluntários serão”. O prazo era curto e as inscrições via e-mail, mas para mim só havia um problema, eu ainda não sabia me co-municar desse jeito e então não fui classifi cado, mas me apresentei como voluntário.

Era o projeto Conexões de Saberes, um diálogo entre a universidade e as classes popu-lares. Nesse campo de trabalho, já tinha experiência, pois, praticante em minha Igreja, parti-cipei arquitetando como também executando salões comunitários em comunidades diversas, cada uma com suas difi culdades. Dava cursos de construção e aplicava os conhecimento da universidade, criava mutirões e liderava. Com tudo isso, estava defi nido, ali de qualquer jeito era o meu lugar.Por sorte, em pouco tempo, bolsista eu me tornei, tendo agora como me sustentar e aos estudos melhor me dedicar.

No Conexões, em contato com outros 24 bolsistas, pude, com o resto da universidade, me comunicar, pois antes isso para mim não existia, e ótimos amigos pude formar. Hoje sou professor de matemática em um pré-vestibular do projeto, participo de um grupo de enge-nheiros e arquitetos e fazemos projetos de diversas casas populares.

Nessa minha história, só não pode haver fi m. Ficando assim para mais tarde outras histórias contar...

Andreswamy Barbosa AlvesEngenharia de Minas

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Só sei que comigo foi assim. E com você?

Foi lá na cumeeira da serraQ’uessa história sucedeuDois jovens se encontraramE dali o amor nasceuViveram eternamenteO fato que ali se deu.

Sebastião, homem guerreiroLigeiro e trabalhadorFilho da terra da esperançaCabra da peste sim sinhôSem preguiça nem vingançaÊta homem vencedor.

Irailda, moça bonita, Saia rodada, jeito de fl orOlhos de mel, cabelo de fi ta Divina beleza cheia de esplendorCandura de anjo, vestido de chitaGraça de moça que Deus fabricou.

Na capital do ForróFoi que os olhinhos se “encontrô”Olhou, cheirouSentiu, gamou.Daquele dia em diante Foi Deus quem abençoou.

O casório, como se dizFoi como manda a tradiçãoTudo posto no papéAs alianças na mãoPromessa de fi delidadeAmor e compreensão.

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24 Caminhadas de universitários de origem popular

Caruaru, melhor terraDe meu amado PernambucoCom sertão, agreste e serrasTerras de Joaquim NabucoDe índio, festas e guerrasNegro, branco e mameluco.

O agreste que acima vos faloNum dia se fez em fl or E deu ao casal guerreiroNuma casaca de corUma fi lha pra criarPaz, alegria e amor.

Com uma saia pra plinçá2 O sorriso se expandiaTodos a comemorarEssa vida que surgiaFoi só a bela chegar Pra puder raiar o dia.

Fabiana, a primogênita.Parecida com o solBranca que nem uma nuvemCabelo sem nenhum nóUma bela galeguinhaQue de todos era o xodó.

Muito logo IraildaDe novo veio anunciarQue por bondade divinaResolvera engravidarE agora FlavianaA terra vinha habitar.

Bastião e sua amadaResolveram se mudarPegaram suas duas fi lhasSaíram dos além-marE dentro de poucos diasEstavam na capitá.

Recife das pontes lindasLindas de enfeitiçarFoi paixão que sucedeu-seDeles com o grande marNesta vila de riquezaResolveram se assentar.

No bairro de São José Um comércio iniciaramTrabalhavam dia e noiteNova vida começaramMesmo com muito empecilhoNum progresso engrenaram.

Depois de dois anos passadosUma grande alegria viveramO sonho de um fi lho homemQue a si se prometeramEra hora de cumprirMas de Deus não receberam.

José, o grande meninoNasceu, mas não demorouFoi ali mesmo no partoQue seu corpo se enroscouNum dia bendito e tristeVeio e logo Deus levou.

Ao viverem a grande perdaCom falta, tristeza e dor Noites e noites de lágrimasO coração em clamorKarolina a nova fi lhaLogo à família brindou.

É dessa menina aquiQue começo a falarToda cheinha e alegreBrilhante que nem luarTinha olhos de esperançaE uma vida pra inventar.

2 Uma fi lha para cuidar.

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Beleza que nem aquelaNunca se viu nascerÉ tanto que em poucos dias Fez na família renascerA alegria perdidaNaquele triste entardecer.

A peraltice era sua marcaNuma infância de riquezaBrincava, corria, pulavaDançava com realezaCantava que nem cigarraDe voz era uma beleza.

Certa vez em sua infânciaProcurava o que fazerSubiu em cima da mesaFoi a manteiga comerDe posse do manteigueiroO fez desaparecer.

Como era imunizadaPelas trelas que faziaNem dor de barriga teveSó apenas uma aziaQue passou que nem fogueteNão se demorando um dia.

Essa é só uma das artesQue Karolina aprontouSempre com o poder da falaEla a todos conquistouCom seu jeito desenroladoO mundo ela conquistou.

Ainda quando criançaDecidiu foi trabalharPara ajudar uma moçaQue tinha dívidas de enforcarTrabalhou por vários mesesMas não quiseram lhe pagar.

Passado o ocorridoDo trabalho só lembrançaContinuou com os estudosEra motivo de esperançaSempre foi boa na classeDesde quando era criança.

Por dominar nos estudosKarolina era conhecidaGanhava muitos troféusTinha inteligência aguerridaMas quando ganhou estrelas3

A vida fi cou sofrida.

Aquele prêmio lhe deuDireito à piscina freqüentarComo era espaço disputadoTodos queriam tomarNeste meio de guerrilhaVeio um inimigo arrumar.

Rafael, o terror da escolaDecidiu lhe atormentarMas já era a quarta sérieTinha ela que agüentarRafael lhe torturavaE ela sem revidar.

Logo em outro colégio Entraria pra cursarA quinta série almejadaUm estudo de lascarNuma escola bonitinhaE sem ninguém pra infernizar.

No colégio de agoraNão conhecia ninguémMas isso não foi problemaPara quem bom papo temKarolina fez amigosTalvez pra mais de cem.

3 Prêmio dado mensalmente para os alunos mais organizados e destacados pela nota.

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

O empenho escolarContinuou a acontecerSempre em primeiro lugarEra de surpreenderAquela menina espertaInteligente de arder.

Mesmo sem o desejarA liderança conquistouTodos confi avam nelaPara representante ganhouLutou agindo bravamenteE a ninguém enganou.

Chegando ao ensino médioNova escola apareceuCom ajuda dos professoresEducação boa conheceuCom dedicação e forçaSeu mundo se enverdeceu.

Neste novo ambienteVeio a reencontrarAquele antigo inimigoA quem um dia quis matarMas já passada a infânciaGostou de se aproximar.

O sentimento que tiveramNão foi o de antigamentePareciam mais segurosCom até jeito de genteSe juntaram, conversaramRiram furtivamente.

Relembrando os velhos temposOs dois se aproximaramEsqueceram as antigas brigasMas não se desarmaramViveram a atualidadeMas muito não se achegaram.

Mas no ano que seguiuRafael não estava láTinha era se mudado

Para uma escola particularKarol lamentando muitoNão podia acompanhar.

Foi naquele mesmo anoQue o pesadelo chegouUma dor grande lhe invadiuMas Karolina enfrentouVia seu pai internadoUm derrame o derrubou.

Bastião, cabra da pesteAbençoado por DeusTeve um derrame sem seqüelasPara alegria dos seusMas Karol preocupadaDos estudos esqueceu.

O desestímulo visitouA vida de KarolinaE um emprego ela arrumouDe vendedora num shopping O tempo se encurtouE da escola desertou.

Não só a doença do paiFez Karolina fraquejarNa escola teve problemasGrandes demais a enfrentarPois um professor de químicaQueria a todos detonar.

Chegando o 3º anoKarolina escolheuContinuar só estudandoPara alegria dos seusSatisfazendo seu egoChegaria ao apogeu.

O apogeu de KarolinaEra chegar à universidadeQue tinha de ser FEDERALComo os sem oportunidadeO dinheiro era curto Pra pagar mensalidade.

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Em meio aos acontecimentosE outras coisas desejarUm professor procurouPara aprender a tocarAgarrado a um violão Foi Rafael reencontrar.

Nesse momento citadoFoi que tudo aconteceuKarol voltou a cantarNa igreja do bairro seuE Rafael seu amigoPuro ânimo ofereceu.

Logo as aulas começaramEIa aprendendo a tocarRafael em certas tardesIa a Karol ensinarFreqüentava sua casaPra melhor lhe estimular.

A alegria foi voltandoPara o coração brilhanteO sonho do vestibularVoltava a ser importanteE todo aquele gásEra mesmo inebriante.

Por ironia do destinoOutro fato aconteceuNo dia da inscriçãoDinheiro não apareceuA isenção não ganhouE perdeu os sonhos seus.

A universidade pareciaSonho impossível de alcançarO medo era não conseguir Na federal ingressarPois era mais uma estudante De origem popular.

Em meio a tanta tristezaCoisa boa aconteceuComeçou a namorar

Com o velho amigo seuRafael era seu nomeEla a Deus agradeceu.

Rafael lhe ajudouDesde o primeiro momentoA Karolina incentivou Deu-lhe amor e alentoOs seus sonhos alcançariaMesmo com tanto tormento.

Pois ele também almejavaChegar ao mesmo lugarPara isso sua mãeCursinho resolveu pagarQueria estudar melhorE passar no vestibular.

O moço não teve dúvidaDa amizade sagradaE escondido da mãeFez uma negociadaE o dinheiro do cursoDividiu com sua amada.

Quatro meses passouPagando as mensalidadesA dele e a de KarolinaA quem jurava fi delidadeE seria no fi m do anoQue viria a felicidade.

Mas a moça decididaTrabalhava e estudava De dia estava na lida E à noite ela sonhavaCom a universidade públicaQue tanto idealizava.

Estava chegando a horaDe conferir o listãoNervosismo e euforiaExpectativa e tensãoUnidos os dois derrotavamO grande “bicho-papão”.

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Ela foi agraciada Com o curso de estatística E Rafael dava entradaEm engenharia agrícolaEstava agora iniciada Toda uma grande jornada.

Alguns anos se passaram E juntos os dois continuam Dentro da universidadeO amor se perpetuaSentem que são um conjuntoE ali é a casa sua.

Num desses dias de aulaKarolina conheceu Um projeto encantadorQue num mural ela leuConexão de SaberesEra esse o nome seu.

A seleção estava abertaPara todo estudanteQue vindo de escola públicaE sem renda abundanteTivesse garra e coragemDe trabalhos importantes.

Conexões de saberesUm projeto de extensãoQue deseja estenderPra toda populaçãoOs saberes da escolaCom muita convicção.

Mas também é engajadoNa prática de pesquisarTrazendo pra universidade As experiências de láDe toda comunidade Que conhecimento tenha a dá.

Desse jeito a intertrocaTem muito pra prosperarPesquisando e estudandoConhecer pra articularMostrando caminhos diversosPara todos dialogar.

Todas as comunidades Agora ao projeto ligadasMorro da Conceição, Chico Mendes Em cidade conectadasIputinga, Silva Jardim, peixearteEstabelecem rede ampliada.

Karolina é professoraDe uma comunidadeMatemática é sua áreaLutando contra a realidadeDeseja levar a todos Pra dentro da universidade.

Sendo a vida muito boaValendo a pena viverEssa foi a minha história Que você acabou de lerLute agora com coragem E certamente vai vencer.

Ana Karolina PereiraEstatística

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Memorial de Edvaldo LopesEm 29 de setembro de 1984, nasceu Edvaldo Lopes da Silva Filho. Um dos quatro

fi lhos de um funcionário público com uma dona de casa. Sua história de vida é marcada pelo esforço dos pais de sempre lutarem para que ele e seus irmãos tivessem, a partir de uma boa educação, as melhores oportunidades no viver.

Começou a estudar aos quatro anos e, graças ao emprego do pai, conseguiu, em um colégio particular, uma bolsa de estudos até a quarta série. Esse foi um dos fatores que mais contribuiu para a sua caminhada à universidade, uma vez que é imprescindível uma boa base escolar para formar um bom aluno. Fato que, como é senso comum, as escolas públicas não proporcionam.

Nesse período, era notável o esforço de seus pais para que Edvaldo e seus irmãos não absorvessem os problemas que eles vivenciavam para lhes dar uma vida melhor.

Uma cena que o marcou profundamente nessa época foi quando seu pai entrou em casa chorando e dizendo que fora assaltado no ônibus ao voltar para casa, justamente no dia em que havia recebido o salário. Esse e alguns meses seguintes foram, para a família, infelizmente inesquecíveis, pois, além de faltar suprimentos, até a energia elétrica da casa chegou a ser cortada. Mas a situação foi superada e, com alguns esforços e privações, voltaram a viver com tranqüilidade.

No bairro, apesar do seu bom relacionamento com todos, era fl agrante a diferença entre seu nível de aprendizado escolar e o das outras crianças, que, em sua maioria eram estudantes de escolas públicas.

A partir da quarta série, o emprego do pai não mais podia cobrir sua bolsa de estudos. Os pais fi caram afl itos por não poderem pagar um bom colégio e por não quererem que o fi lho sentisse o impacto na troca para a escola pública. Dessa vez foi mãe que entrou em ação, decidiu ir até um colégio particular do bairro, contou o que se passava para o diretor e, como Edvaldo era um bom aluno, o diretor comoveu-se e aceitou dar uma bolsa até a oitava série.

Foi aí que Edvaldo percebeu que era um felizardo, freqüentava uma escola de qualidade e sentia o quanto a sociedade é injusta por não proporcionar o mínimo de uma boa educação para seus cidadãos.

Os quatro anos seguintes também não foram dos mais tranqüilos fi nanceiramente, uma vez que os preços dos produtos aumentavam e o salário continuava o mesmo. Nesse período, apesar de se relacionar bem com os colegas de classe, sentiu-se pela primeira vez, de forma indireta, discriminado fi nanceiramente. Evitava ir para as festas da turma, simplesmente, por ser o único que não tinha uma roupa nova para usar. Quando lhe perguntavam por que não fora à festa, dizia que não estava a fi m ou porque tivera outra para ir. Tudo mentira, evitava ir para não ser taxado de “o pobrezinho da sala”. Que besteira, meu Deus!

Quando chegou à oitava série, ele e sua família começaram novamente a pensar naquele velho problema de ter que sair da escola, uma vez que lá não tinha ensino médio. Daí, em uma noite de domingo, seu tio sugeriu que ele fi zesse teste para o CEFET-PE, Centro Federal de

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Educação Tecnológica de Pernambuco, pois, apesar de não ser centro de excelência, era sua melhor possibilidade no momento. Ele gostou da idéia, fez o teste e conseguiu passar. Durante esses três anos de ensino médio, Edvaldo teve que morar com sua avó, para economizar nos gastos com transporte.

Chegou, por fi m, ao vestibular, mas a alta concorrência do curso escolhido, aliada a uma preparação insufi ciente durante o ensino médio, impossibilitaram sua aprovação no exame da Universidade Federal.

No ano seguinte, ele e sua mãe foram em um cursinho pré-vestibular e conseguiram meia bolsa. A partir desse dia, Edvaldo colocou em mente que entraria na universidade a qualquer custo. Estudou muito! Felizmente, seu esforço foi recompensado e conseguiu realizar seu maior sonho: fazer Ciência da Computação em uma universidade pública e de qualidade.

Sem dúvida, os maiores responsáveis por todo o seu sucesso foram seus pais, pois, desde o momento do seu nascimento, sempre lutaram para que Edvaldo pudesse viver, inclusive, acima dos padrões de vida que eles poderiam oferecer.

Depois de ter alcançado a tão disputada vaga na universidade, qual será o próximo obs-táculo que Edvaldo terá que enfrentar? Uma coisa é certa e ele já decidiu, vai exigir menos a presença dos pais na resolução de seus problemas, pois, por mais que o apóiem irrestritamente, Edvaldo deseja não apenas ser cuidado, mas cuidá-los.

Edvaldo Lopes da Silva FilhoCiência da Computação

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Tentando ser informalAs pessoas sempre lembram de suas vidas por fatos isolados. Sempre nos pegamos

pensando em algo importante que aconteceu em nossa história e que, de um jeito ou de outro, nos marcou para sempre. É tentando me apoiar em fatos que marcaram minha vida, que estou escrevendo esse, como posso dizer, histórico escolar.

Mas, antes desse mergulho nas profundezas de minhas lembranças escolares, tenho que justifi car quem sou e o porquê de estar escrevendo, revelando em público minhas memórias, que até pouco tempo só faziam parte da minha história, de minhas lembranças.

Meu nome é Fernando Correia, tenho 23 anos e sou aluno do curso de Comunicação Social, com habilitação em Radialismo e TV, pela UFPE. Participo do Projeto Conexões de Saberes e, por esse motivo, estou relatando minhas histórias estudantis até a chegada a universidade. A principio não entendi o porquê disso, na verdade, você sempre pensa: o que a minha história tem de tão interessante para que possa ser publicada? Outras pessoas terão curiosidade? Acredito que, entre outros motivos, o fato de sermos estudantes provenientes da rede pública de ensino, talvez, nos situe como exemplos para outros jovens educados na mesma situação. É possível que, com tal iniciativa, se animem na tentativa de conseguirem se tornar alunos de uma universidade pública.

Então, me deixem começar... Penetrar em minhas lembranças, conseguir ordenar os fatos.Acredito que minha primeira lembrança de uma escola foi do pré-escolar: eu estava

esperando minha mãe vir me buscar, é verdade que era muito pequeno – como ela sempre fala que tenho uma ótima memória pra fatos importantes –, talvez seja só imaginação minha, inspirada em histórias contadas por ela. Não tenho certeza do que aconteceu, o que foi fato e o que foi fruto da imaginação.

Hoje, eu estou aqui como um “jovem carente”. O projeto Conexões de Saberes buscava alunos que tivessem cursado o ensino médio na rede pública e isso realmente aconteceu comigo, mas não posso dizer que fui uma criança “carente”, ao contrário, sempre tive, como minha mãe diria, “do bom e do melhor” que uma criança “pobre” poderia ter. Meu pai é militar... Bombeiro militar, minha mãe é dona de casa, mas costura para a vizinhança e, com essas costuras, sustentava nossos luxos. Ah! me deixem dizer que tenho uma irmã dois anos mais nova... Nossa como tá desorganizado isso, né? Mas essa é a condição para que eu escreva esse texto com naturalidade, eu sou assim, as coisas vão surgindo e é inevitável não contar, já que têm um papel fundamental na minha formação, mas, continuando...

Essa escola onde estudei o pré-escolar era particular, e todas as outras até chegar ao ensino médio. Nunca estudei nos colégios famosos ou tradicionais do Recife, mas posso dizer que todas as instituições por onde passei deram contribuições importantes para formação desse que vos fala.

Outra lembrança que tenho é da alfabetização quando já estudava na escola Solar da Criança, perto da casa da minha avó. Nessa época, meus pais tinham se separado pelas primei-ras vezes, digo isso porque as separações têm se repetido infi nitamente ao longo dos anos.

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Mas, voltando à memória, lembro que minha mãe nos dava, a mim e minha irmã, remédio para aumentar o apetite, já que nós éramos magrinhos e havia essa mentalidade que só as crianças gordas é que tinham saúde. O remédio se chamava Cobavital, parece que hoje não é mais vendido, mas o fato é que esse remédio nos dava um sono mortal, eu estudava à tarde e lembro ter ido à escola entre dormindo e andando. Ao chegar lá, baixei a cabeça na mesinha e só acordei no fi m da aula, não vi nem a hora do recreio, que era o acontecimento mais esperado do dia... Lembro de estar todo babado, é, crianças babam quando dormem, e alguns adultos também. Desse tempo, minhas memórias são muitas, mas vamos dar um salto. Lembro agora de meu primeiro caderno na primeira série do ensino fundamental e também lembro que nesse ano mudei de colégio, fui para o Instituto Monteiro Lobato, tenho muitas lembranças boas dessa escola... Adorava tudo...

Ah, mas voltando ao caderno, minha mãe e eu o compramos a caminho da escola, já que meus pais ainda não tinham comprado a grande lista de matérias comum a todos os alunos que estudam em colégios privados. Lembro que minha mãe o encapou com um papel de presente do Garfi eld. Ah! Lembrei outra coisa da minha infância... Sou muito apegado aos materiais em si, lembro do cheiro, da cor... No pré-escolar, tinha um avental da Moranguinho e uma pasta amarela que tinha um sol, nossa... Era lindo! E cheiroso também.

Agora vou começar a andar com essa história, senão o livro vai ser todo meu. Na terceira série, mudamos de bairro e fui estudar em outro colégio, o Monsenhor Viana, bem diferente dos que tinha estudado, era maior, tinha todo tipo de gente... Vou passar rápido por esse período já que não foi tão bom assim... Um tio meu foi assassinado nessa época, também tive problemas com um aluno que era bem mais velho e meio “mau-feitor”; fui pego colando em uma prova; enfi m...

Passados esses dois anos, voltei ao antigo Instituto Monteiro Lobato, agora Instituto Carlos Drummond de Andrade. Nessa volta que durou três anos – já que o colégio só ia até a sétima série –, tudo foi só felicidade. Gostava de tudo, dos alunos, dos professores; convivíamos como uma família, todos tinham uma intimidade que até hoje só vi lá mesmo, e acho que isso não é uma impressão somente minha, quando converso com minha mãe, ela confi rma esse grau de intimidade que a escola proporcionava.

Na oitava série, mudei mais uma vez de colégio, agora fui para o Instituto Santo Amaro, um colégio bem maior: muita gente, bonito, bem desenvolvido, mas tinha o mesmo problema do Monsenhor Viana, as pessoas... Quando digo as pessoas, digo de minha relação com elas. No ISA, como abreviávamos o Santo Amaro, todos andavam em patotinhas, o que difi cultava a integração, além de que entrar em turmas da oitava série é mesmo muito difícil, você acaba sendo excluído, fora isso também tem o fato de todos serem muito “metidos”, odeio gente que se acha o máximo.

Nesse tempo, meu pai estava com difi culdades de pagar as mensalidades, então, me inscreveram para três testes em instituições públicas, porém de qualidade. Foram elas: a Escola Técnica Federal, a Escola Técnica Estadual Professor Agamemnom Magalhães (ETEPAM) e o Liceu de Artes e Ofícios.

Nunca fui um aluno exemplar, sempre fui aquele “das médias”, tirava sempre a nota necessária para passar, nenhum décimo a mais. Na oitava série, não fui bem, a mudança de ambiente, os colegas de escola, ou mesmo a falta deles, e as difi culdades em aprender marcaram aquele ano que já anunciavam as provas fi nais e recuperações.

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Fiz os três testes: na ETEPAM e no Liceu, dizia que tinha feito o que sabia, quando me perguntavam como tinha sido a avaliação, mas, na Técnica Federal, foi ótimo, achei que tinha arrasado na prova. É importante salientar que eu não estudava para os exames, tinha preguiça e minha mãe me ameaçava. Penso que não eram ameaças, era o medo dela de me ver em alguma “temida” escola pública, que não me ensinasse o que eu poderia aprender em uma escola me-lhor. Voltando às ameaças, ela falava que, se eu não passasse nos exames, iria para um colégio qualquer, compraria uma caixa de isopor e eu venderia picolé nas ruas. Que terror! É verdade também que nunca acreditei nessas ameaças, sabia que ela não seria capaz disso.

Chegado o tempo dos resultados, o da Técnica Federal foi o primeiro, não passei. O desespero tomou conta da minha mãe, logo essa em que eu tinha feito ótima prova, imaginem as outras que dissera que tinha feito o que sabia. Então, nesse mesmo dia, fui ver o resultado do Liceu e, para minha surpresa, tinha sido aprovado. Nossa! Quanta emoção! Penso que foi até mais forte do que o próprio vestibular.

Nesse dia, por ter ido pegar os documentos necessários para a matrícula, demorei a chegar em casa, depois soube que no tempo em que estive ausente minha mãe se esvaía em lágrimas, pensado que eu não tinha sido aprovado e que tinha me jogado de uma das pontes do centro do Recife para fugir dela. Quando cheguei com a notícia, foi aquela festa, tinha sido aprovado num colégio público renomado aqui em Recife como um dos melhores, incluindo os da rede privada.

No outro dia, fui ao ISA saber da minha situação, já que ia para a fi nal em diversas matérias. Quando cheguei lá, a diretora veio e me abraçou junto com uma professora que nunca tinha me dirigido a palavra... Parabéns, você passou!... “É, passei no Liceu”. E elas: “Não, no ETEPAM...”, “Ah, nos dois?!” Mas o motivo de tanta felicidade é que eu era um dos dois únicos alunos da escola que tinha sido aprovado no exame. Pois é, passei de futuro vendedor de picolé a aluno exemplo, imaginem.

Passado o fi m do ano, no início das aulas, matriculei-me nos dois colégios: pela manhã, no Liceu e, à tarde, no ETEPAM, no qual ia fazer o curso Técnico em Artes Gráfi cas, nome bonito, pomposo, mas o curso em si era ultrapassadíssimo. No ato da inscrição, pensava que o curso seria todo ministrado no computador, eu me tornaria um mestre na computação, mas o curso estava sucateado, a escola oferecia poucas oportunidades de novos métodos e, para minha surpresa, só toquei nos computadores no último ano, que, vale salientar, eram apenas seis para mais de mil alunos. Não tenho certeza se o número de alunos era esse, mas o colégio era enorme e tinha muita gente estudando.

No Liceu, cursei o ensino médio em uma sala formada por alunos novatos, o ensino médio foi ótimo, tenho saudades até hoje e guardo muitas amizades daquele tempo. O prédio é cedido pela UNICAP, uma universidade daqui de Recife e os professores são de responsa-bilidade do estado, que formam uma parceria.

Chegando ao terceiro ano: vestibular. Nunca tinha pensado que curso gostaria de fazer, que profi ssão seguir. Milhões de testes vocacionais de revistas especializadas. Decidi tentar Jornalismo, pois sempre gostei de escrever. Comecei a me imaginar escrevendo para jornais, no entanto os testes não me indicavam esse curso, mas eu, como bom taurino, decidi tentar o vestibular para Jornalismo assim mesmo.

Na primeira tentativa, nota 4,0. Bom para um aluno vindo da rede pública, que não estudava muito e que nunca tinha feito nada parecido, mas, para Jornalismo, era necessário, no mínimo, 6,0.

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No ano seguinte, meu pai resolveu pagar um cursinho intensivo, desses que começam na metade do ano. Jornalismo mais uma vez, fi nalizando... 5,9. Quase!

Terceiro ano de tentativa, meus pais separados: só a pensão alimentícia. Eu procurando meu primeiro emprego. Nesse tempo, saía duas vezes por semana para procurar trabalho e o resto dos dias era um alienado em frente à TV, estava como uma samambaia, plantado. Estudei para o vestibular através de fascículos que vinham encartados em um jornal, todas as terças-feiras. É importante ressaltar, também, que recebia os jornais graças a uma promoção do governo do estado para alunos carentes.

Esse foi o ano de 2001, houve uma greve nas federais que durou mais ou menos seis meses. O resultado foi o adiamento do vestibular de novembro para janeiro. Minha mãe aproveitou o décimo terceiro da pensão alimentícia e pagou um curso de revisão, um mês antes do vestibular.

É importante ressaltar que nesse ano desisti do curso de Jornalismo por outro que mi-nha nota pudesse atingir. Precisava passar, pois recebia pensão alimentícia e a idade estava chegando. Era necessário que eu estivesse na universidade. Decidi prestar para Radialismo, era próximo de Jornalismo e a nota, dava pra conseguir. Resultado: das 30 vagas fui o 29° lugar.

Hoje, posso dizer que a universidade mudou minha vida, pois considero que era meio louco, sei lá. Abriu horizontes, possibilidades não apenas para minha vida profi ssional, mas também para minha existência.

Estou no sétimo período do curso de Comunicação/Radialismo e TV, em meio a mais uma greve que talvez termine em breve, para que eu possa ser um comunicador formado, cheio de sonhos e com muita vontade de transformar a realidade ao meu redor.

Tenho certeza que a caminhada é longa, mas também é certo que, como diz a música... “É preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê”.

Fernando Correia de Paiva JúniorComunicação Social

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Olhar, falar, ouvir...Meu nome é Fernando Silva de Oliveira, sou fi lho de Jaboatão, Pernambuco e dei minha

primeira respiração ao mundo em 1979. Meus pais são do interior, das regiões de Caruaru e São Lourenço da Mata. As atividades de minha família sempre foram ligadas à agricultura e ao comércio. Quase todos eram feirantes, tinham bodegas, vendiam abanos, vassouras, chapéus, candeeiros, bolo de goma e miudezas em geral, tão comuns nas feiras no interior.

O que irei contar sobre a minha vida, sobre minha história? Saberei eu contar? E se contar, interessará a alguém? No fi m das contas, o que é a história de alguém, o que há de relevância numa vida? Bem, só sabemos disso quando nos contamos a nós mesmos, nossas próprias horas e sonhos. Minhas memórias são de uma infância feliz, brincando na casa dos meus avós, subindo em árvores, empinando pipa, desenhando. Apesar de simples e sem grandes aventuras, foram prazerosos os dias protegidos pela capa do amor.

Na escola, sempre fui considerado um bom aluno, quieto e comportado. Mas tive também a fase de rebeldia, não fui sempre um “santo”. Nessa fase, como toda criança, não ia com a cara das aulas e contribuía com o barulho e a desordem na sala. Como todo bom malandri-nho, fui levado algumas vezes para a secretaria, mas nunca perdi a fama de “santinho”. As professoras diziam que a culpa não era minha, e sim das más companhias. Vejam só, eu era a peste e ou outros levavam a culpa. Os gregos estavam certos em desconfi ar da percepção: as aparências enganam.

Estudei em escola particular até a sexta série do ensino fundamental. A partir daí, fui para a escola pública; foi um choque. Parecia que estava em outro mundo, e estava de fato. Era muito estranho, principalmente os colegas, sempre mais velhos do que eu, que moravam em bairros distantes e falavam muitas gírias, palavrões e toda sorte de linguajar que não fazia parte do meu vocabulário. Tinham um rendimento escolar muito abaixo do meu, viviam indo para barzinhos, mesas de sinuca, shows de pagode e por aí vai. Eu, do alto dos meus doze anos e inocência, nem sonhava ou imaginava o que era aquilo. Nesse contexto, foi difícil estabelecer amizades, passava a maior parte do tempo lendo ou assistindo quieto àquele espetáculo, ao mesmo tempo fascinante, chocante e sem graça, do qual eu não conseguia participar.

As coisas só vieram a melhorar quando mudei de escola, que também era pública, só que menos desorganizada e menos aterrorizante. A principal diferença é que, na nova escola, passei a ter amigos para ir ao cinema, conversar sobre música, pegar livros na biblioteca, etc. Nessa época, fui iniciado na tribo dos roqueiros e skatistas. Que revolução traz a adolescência.

Por falar em revolução, sempre acreditei que conquistaria meu espaço na sociedade. Por mais que a situação não fosse fácil, sempre me percebi como possibilidade de mais e não me contaminei pelo espírito da negatividade reinante no meu universo. A voz corrente de que “pobre não tem vez” não foi sufi cientemente alta para se fazer ouvida por mim e aplacar minha vontade.

Eu sabia que a universidade pública me abriria portas e, por isso, passei um ano inteiro me dedicando ao vestibular e passei para Ciências Contábeis. Hoje, estudo numa das me-

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lhores universidades do país, mas como quanto mais bela é a fl or, mais agudo é o espinho, a caminhada tem sido árdua.

Quando comecei a estagiar, trabalhando em escritórios de empresas públicas ou privadas, percebi o quanto a realidade do nosso país é dura e repleta de limites, de como muitas vezes a academia está distante dessa realidade. Há uma difi culdade imensa de estabelecermos nossas idéias num mundo já constituído e defi nido, seja pelas normas de mercado ou pelas normas ideológicas das empresas.

Refi ro-me diretamente à relação ética criativa que possibilita o crescimento e a ma-turidade, tanto de indivíduos, quanto de instituições, e que muitas vezes não conseguimos estabelecer no campo de trabalho porque a estrutura já é viciada.

Nesse embate com a vida, a sociedade me apresentou duas alternativas: seguir o fl uxo e os modelos constituídos do egocentrismo e da ambição desmedida em prol de um mercado, seja de consumo ou de trabalho, ou ter a coragem de ser meu próprio desejo e sonho aguardando os frutos improváveis que uma sorte madrasta traria. Difícil escolha, não?

Não houve escolha, pois desde sempre estava decidido e escolhi a mim. Ouvi a voz do coração e descobri, num exercício diário, meu melhor modo de viver. Esse diálogo não é fácil, mas aos poucos percebemos o que nos deixa felizes quando fazemos o que de fato gostamos. O que, para muitos, pode parecer uma carreira de sucesso, para mim, é um processo. O sucesso é estar bem com a vida, com a alma, com o mundo. E isso é o que me motiva.

Hoje estou no Conexões de Saberes e sinto-me bem com a proposta e o trabalho de-sempenhado. Acredito que o projeto é uma oportunidade para nós, vindos da escola pública e com uma visão de mundo diferente da correnteza. Trata-se de um projeto inovador, que faz com que o jovem estudante de origem popular possa resgatar e reconstruir sua identidade, tendo como base o desejo comum de atuar numa sociedade sem fronteiras e sem máscaras, onde cada cidadão tem a possibilidade de se expressar e fazer valer a sua contribuição na construção de um mundo melhor.

Sei que contar não é apenas narrar um fato para alguém, o contar é entretecido no en-redo da memória por todas as nossas experiências que se misturam em infi ndáveis conexões e composições. Sei também que, sobre aquilo que falamos, há sempre um ouvir que, direta ou indiretamente, é afetado por ele, então...

Fernando Silva de Oliveira Ciências Contábeis

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O Engenheiro do EngenhoNasci no dia 22 de abril do ano de 1978, na Cidade de Barreiros, Pernambuco. Pri-

meiro fi lho de Mário Apolônio Silva e Dulcinéia Cajazeira da Silva, responsáveis pelo meu nome, Gustavo Alexandre Silva. Nos primeiros meses de vida, não tive problemas de saúde e a situação fi nanceira de minha família era estável. Meus pais pertenciam a famílias de agricultores e, nessa época, na região da zona da mata Sul, a agricultura – principalmente a dos fornecedores de cana-de-açúcar que era o nosso caso – equipa-rava-nos à classe média.

Morávamos no engenho São Domingos, no município de Barreiros, meu pai e seis irmãos dele. Minha tia, Maria Iva Silva, irmã mais velha de meu pai, por ter muito desejo de estudar, conseguiu concluir o segundo grau, sendo a única na família paterna a conseguir tal feito. Isso lhe possibilitou conseguir emprego em um banco da cidade, posto muito cobiçado na época.

Morei em Barreiros até os oito meses. Em 1979, meu pai, que trabalhava na lavoura com meu avô, recebeu uma proposta de um usineiro da região, para administrar uma de suas propriedades, a Engenho Arial, em Alagoas. Uma proposta irrecusável, pois meu pai tomaria conta da propriedade e ainda poderia plantar e colher sem ter que pagar tributos pelo uso da terra. Ele aceitou e fomos morar em Alagoas.

No ano de 1983, comecei a freqüentar uma pequena escola rural que fi cava a cerca de 3km do Engenho Areal, como acompanhante de uma prima que morava conosco para ajudar nos afazeres da casa e estudar. Nesse ano, já tínhamos condição fi nanceira boa, o que me permitia ter muitos brinquedos e meu pai ter um caminhão para o transporte da produção de cana, além de bons eletrodomésticos na casa.

Mas alguns fatos indesejáveis começaram a acontecer: meu tio Ivo Apolônio Silva, que após a morte de meu avô paterno fi cara com a responsabilidade de tomar conta dos negócios do Engenho São Domingos, estava passando por difi culdades econômicas de-correntes de irresponsabilidade administrativa. A cada quinze dias recorria a algum tipo de ajuda do meu pai. Devido a fatos como esse e a alguns motivos não revelados pelos meus pais, tivemos que voltar para Pernambuco, dessa vez para o Engenho Batinga, pois o Engenho São Domingos já havia sido repartido em quatro partes, pelo fato de pertencer a outras famílias, e a parte que nos coube foi o Engenho Batinga.

No começo de 1985, fomos para Pernambuco, fato que lembro até hoje, pois tive que deixar para trás alguns colegas e quase todos os meus brinquedos, que meus pais resolveram doar para meus amigos. Outro fato marcante foi o momento em que vieram buscar um carro bastante antigo e velho que vivia estacionado no quintal de casa e que eu costumava brincar dentro dele. O mais terrível de tudo foi que só vi que o carro estava sendo levado embora quando já estava em cima do caminhão. A única alternativa que me restou foi chorar, chorar muito, o que de nada não adiantou.

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Quando chegamos no Engenho Batinga, sentimos carência de algumas coisas: energia elétrica, abundância de água potável, que tínhamos na antiga morada. Então, meu pai fez um acordo com meu tio Ivo Apolônio, responsável legal pelo engenho: meu pai arrendava 50 hectares de terra do engenho a meu tio, para o cultivo da cana, e pagaria a renda anualmente e também colocaria energia elétrica no engenho e cobriria outras necessidades fi nanceiras como empréstimo, para que meu tio fosse pagando nos anos seguintes. Depois de feito o acordo entre os dois e registrado em cartório, meu pai vendeu um dos dois caminhões e algumas poucas cabeças de gado que possuía, reestruturando todo o engenho.

Nesse mesmo ano, ocorre o nascimento de meu irmão em Porto Calvo-AL. A partir daí, passei a ter uma companhia para as brincadeiras que eram realizadas de maneira solitária. Ainda nesse ano, fui batizado na igreja católica de um engenho vizinho, o Enge-nho Pracinha, e lembro até hoje do banho dado pelo padre. Na mesma época, ganhei um motorádio, que me foi muito útil, pois gostava e gosto muito de ouvir música e, segundo minha mãe, quando era bebê, ela colocava um rádio perto de mim para que parasse de chorar, e conseguia.

Foi com esse presente que comecei a me interessar por equipamentos eletroeletrô-nicos e por engenhocas. Ainda nessa época, com seis anos de idade, comecei a estudar numa fazenda vizinha, Fazenda Santo Antônio. Comecei na primeira série do primeiro grau, tendo como minha primeira professora a Sra Iraci, que morava na fazenda e se tornara muito amiga dos meus pais.

Em 1985, com cinco anos, fui para a segunda série e já me sentia à vontade com a professora e com toda a turma. Até a quarta série, todos os alunos estudavam juntos e com a mesma professora. Pode-se ter idéia do caos que era a sala de aula. Mesmo assim, foi um dos melhores anos do meu primeiro grau, em termos de notas e provas; tirar um dez era um fato muito natural.

No ano seguinte, agora na terceira série e com oito anos (1986), as coisas não mu-daram muito, mas lembro até hoje de alguns elogios no sentido de ser muito novo frente aos colegas mais velhos e mesmo assim, normalmente, obter as melhores notas, elogios feitos pelos próprios colegas.

O ano de 1987 foi problemático, pois passei pela primeira mudança da minha vida: fui transferido de uma escola rural, onde tinha estudado até a primeira unidade da quarta série, para uma escola da cidade (Barreiros-PE). Isso porque minha mãe e minha Tia Iva, aquela citada no começo, pensando no meu futuro, convenceram meu pai a permitir que eu fi casse morando na casa de minha tia em Barreiros, só indo para casa nos fi nais de semana, quando a estrada permitisse. A estrada era de barro, separava a cidade do engenho e nos períodos de chuva, fi cava intrafegável por conta dos grandes atoleiros. Na primeira semana que fi quei na casa de minha tia,chorei muito, pois não queria aceitar aquela idéia de fi car longe dos meus pais. Depois de algumas semanas comecei a perce-ber que não ia adiantar nada, então, comecei a estudar o resto da quarta série no colégio municipal de Barreiros.

Essa mudança de escola pode parecer banal, mas não é, já que passei a conviver com outras pessoas, com outras cabeças e outras perspectivas de vida, sem falar no nível de exigência diferenciado e nos problemas pessoas que enfrentei. O resultado foi a perda do ano letivo.

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No ano seguinte, já estava mais adaptado a situação consegui passar de ano. Tive uma professora marcante, Genilda: ensinava português, era amiga de minha tia e uma espécie de fi scal da minha conduta no colégio. Mas não teve muito problema, pois estava quase “um santo”, quase não falava.

Nessa época, quem cuidava de mim era minha prima Joselma, que também morava na casa de minha tia e tinha por função, além de cuidar da casa, cuidar também de mim. Ela estudava e foi muito presente em minha vida. Na casa de minha tia, além dela, de mim e de Joselma, morava também a mãe dela, minha avó e meu tio Isaac. Joselma exerceu essa atividade durante todo o período em que morei na casa de minha tia Iva.

Na quinta série, com 11 anos, passei a estudar à tarde. Convivi com outras pessoas e com outra professora amiga de minha tia coincidentemente, também de português. Maria da Conceição era o nome dela, se preocupava muito com meu aprendizado e, por isso, exigia muito de mim, a ponto de convencer minha tia a me obrigar a freqüentar em outro turno e em outro colégio, onde essa professora também lecionava, aulas de português. Como eu gostava das aulas, isso não era um suplício pra mim. Continuei nesse ritmo até o fi m do ano, quando fui aprovado em todas as disciplinas, inclusive em português, com um dos melhores desempenhos da turma.

Na sexta série, estudei com os mesmos professores de matemática e de português, mas houve acréscimo de outras disciplinas. Foi quando conheci um colega de turma, Luciano, que tinha uma história parecida com a minha, morava na fazenda com os pais onde eu estudara até a terceira série e estudava na mesma escola rural onde eu havia sido tão feliz. Na época, ele era de uma série anterior a minha, o que me fazia ter apenas uma vaga lembrança dele.

Ele era um ano mais velho que eu, muito estudioso e só tirava boas notas. Nos tornamos muitos amigos, compartilhávamos as dúvidas das disciplinas e até, caso neces-sário, na hora da prova formávamos uma boa dupla. No fi nal do ano, fomos aprovados por média.

No ano seguinte, agora com 13 anos, fi camos na mesma turma da sétima série e conhecemos outro colega que passou a fazer parte do nosso grupo. Era uma boa pessoa e morava na mesma rua, a Conselheiro Manoel dos Anjos, conhecida com prainha. Mas ele não era muito de estudar como eu e Luciano. O “cara” não estudava nada para as provas confi ando em nós. O bom de tudo é que nos tornamos muito amigos e, no fi nal do ano, passamos nas provas.

No fi nal desse mesmo ano, comecei fazer um curso de eletrônica por correspondên-cia, incentivado por um colega que morava em minha rua e que sabia do meu interesse por essa área. Não só ele, mas todos que me conheciam sabiam, pois gostava muito de brincar com a ciência, com a física e me aventurava a criar engenhocas sem muito suces-so, já que não dispunha de conhecimentos básicos o que só vim a adquirir com o curso por correspondência e com a prática diária. Tive incentivo de minha mãe, que tentava atender a todos os meus pedidos, principalmente quando se tratava de estudo e, também, de minha tia, que muito valor dava às pessoas que gostavam de estudar, diferente de meu pai, que não acreditava muito nessa idéia, mas também não criticava.

No ano de 1993, fi z a oitava série em turma separada dos meus amigos, Luciano e Atoniel. Passei por alguns problemas tanto de natureza fi nanceira como nos estudos.

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Minha tia acabara de ser demitida do banco em que trabalhava e tinha criado uma con-fecção que, no início, demandou quase todo dinheiro da indenização, então começaram a faltar algumas coisas em casa, sem falar que na casa dos meus pais, no engenho, as condições financeiras também não andavam boas.

A incapacidade do meu tio tinha novamente vindo à tona. Dessa vez, para piorar, ele não só não pagou a dívida acertada com meu pai, não progrediu nada com a parte das terras que tinha ficado em suas mãos e ainda adquiriu novas dividas. Meu pai, com apenas 50ha, conseguiu atingir uma excelente produção comparada com o tamanho do engenho de meu tio, que tinha 172ha.

Mesmo com essa excelente produção, meu pai começou a ter problemas com o pagamento da usina OTHOM (criada por volta de 1900, foi a primeira usina do Nor-deste a produzir um milhão de sacas de açúcar). A empresa, até então, não tinha dado calote em ninguém, porém, com a entrada dos filhos dos proprietários nos negócios e, ao mesmo tempo, transferindo verbas para outros empreendimentos, começaram os problemas com dívidas, entre elas, pagamentos a fornecedores de cana. Foi nessas circunstâncias que meu pai começou a perder o que tinha; ele era fornecedor e todo ano ficava um valor considerável a receber. Esses pagamentos finais nunca aconteciam, a produção começou a diminuir e a crise se instalou.

Além desses problemas com minha família, passei por alguns dias insuportáveis, principalmente por morar em casa dos outros e ter que escutar piadas e gritos, princi-palmente de quem eu tinha contato mais constante. Meu desempenho no colégio não andava bem, por esses acontecimentos e por estar profundamente ligado ao curso de eletrônica. Não conseguia me concentrar nos estudos e segui nesse ritmo até o fim do ano, tendo um dos piores desempenhos de minha vida de estudante.

Diante dessa situação, deixei o curso por correspondência pelo menos no período de estudo para as finais e consegui não ser reprovado. Meus colegas, a essa altura, tinham formado uma dupla dinâmica em outra turma e já estavam de férias.

Começava agora uma nova fase, chegou o momento de tomar a primeira decisão importante de minha vida; escolher qual ensino médio seguir, se técnico em contabili-dade, em uma escola municipal na qual eu estudara desde a quinta série, ou uma escola técnica federal, com um ensino mais exigente. Optei por esse.

Começo, em 1994, o primeiro ano do curso técnico em agropecuária. No início, passei por uma das piores fases de minha vida. Muitos assuntos para estudar e eu não acompanhava. Cheguei a conversar com minha família sobre a possibilidade de desistir, mas segui até o fim do ano, conseguindo passar por média em todas as disciplinas; com isso adquiri autoconfiança e maturidade para o próximo ano.

Nessa época, eu acabara de ganhar minha primeira bicicleta, fato que me deixou muito feliz. No ano de 1995, com a situação mais tranqüila, voltei a me dedicar à prá-tica de eletrônica e a praticar mais esportes, sobretudo futebol, que sempre foi minha paixão, herdada de meu pai, que por pouco não se profissionalizou.

Voltando a minha vida de estudante, no ano de 1995 concluí o segundo ano sem maiores problemas, tive férias longas de dois meses que tratei de curtir muito em praias que ficavam próximas ao Engenho, o que servia de terapia para o estresse do ano letivo.

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Em 1996, começou meu terceiro e último ano escolar. O começo do ano letivo sempre foi aguardado por mim com ansiedade. Eu sentia falta da rotina e o fascínio em aprender novos assuntos me fez ter desprezo pelos assuntos rotineiros.

Esse ano letivo foi o mais tranqüilo, comecei a sair à noite com os colegas, estava começando uma fase mais livre. Minhas primeiras paixões estavam começando e, também, algumas decepções com as mulheres. Paixões passageiras no geral. Tive contato maior com meus pais, pois como estava sempre atarefado só os via quinzenalmente. Passei a ir toda semana ao engenho, onde, além de meus pais, tinha muitos amigos, sobretudo para jogar futebol. No fi m desse ano tudo foi festa, era minha formatura de técnico agrícola, festejada num dos clubes da cidade.

Em janeiro de 1997, fui estagiar na Usina São Gonçalo por três meses, tempo sufi ciente para fazer um relatório e defender o certifi cado, pois era parte obrigatória da formação. Acabara de receber uma oferta irrecusável do professor Leví, do Recife, para fazer um cursinho pré-vestibular com um desconto de 50% da mensalidade. Minha mãe era colega de trabalho da esposa dele e, de conversa em conversa....

Em julho de 1997, comecei a estudar no intensivo desse cursinho. Era uma loucura acompanhar três anos em apenas cinco meses e ainda com assuntos que não tinha estu-dado no meu segundo grau. Organizei um horário e, nesses cinco meses, estudei num ritmo de 13 horas por dia. Foi complicado lembrar de todas as informações adquiridas no intensivo, e embora a base tenha fi cado registrada na memória, não foi sufi ciente para passar no vestibular. No ano seguinte, voltei para o engenho, pois morar na casa dos outros só quem morou é que sabe.

Como já tinha uma base, dava pra estudar sozinho tirava as dúvidas relendo várias vezes e revendo os exercícios trabalhados no cursinho. Em 1998/1999, fi z vestibular e tive uma nota melhor do que a anterior, mas ainda não consegui fi car entre os classifi cados. No ano seguinte, estudei com o mesmo entusiasmo, prestei novamente vestibular 1999/2000 e passei para o curso de Engenharia de Minas (UFPE). Com isso mostrei, sobretudo para mim, que se há uma coisa que jamais devemos desistir é de nosso objetivo.

Passar no vestibular foi só uma das guerras que tive que travar, outra tão grande quanto foi conseguir uma casa na residência dos estudantes. Eu não possuía condições de me manter no Recife e começar meu curso. Só fui chamado uma semana depois de começadas as aulas. Em relação ao convívio na casa, não tive problemas; principalmente pelo fato de, no quarto onde fui morar, todos os habitantes serem de Engenharia, o que facilitou a convivência pela proximidade dos objetivos.

Em agosto de 2000 comecei a estudar na Universidade Federal de Pernambuco. O início foi complicado, pois estava ocorrendo outra grande mudança em minha vida. Afi nal estava estudando em um centro de excelência. Tive tantas difi culdades no início que pensei em mudar de faculdade, ir para a Universidade Federal Rural, mas, depois de muita conversa, resolvi “peitar a fera” e continuei.

Comecei a conhecer o curso e, cada vez mais, gostar dele, mas percebia que falta-va algo aos estudantes de meu curso. Descobri o que era em uma greve que houve em 2001, que durou quatro meses. Faltava uma representação estudantil que satisfi zesse os interesses dos estudantes do curso e, também, um canal de diálogo professor/aluno. Nessa época, afi nei a amizade com Antônio Carlos, que até então era apenas colega de

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turma. Tínhamos pensamentos parecidos e demos apoio à greve éramos representantes dos estudantes das engenharias.

Ao fi nal da greve, percebemos o quanto era importante a reestruturação do diretório acadêmico (DA) de Engenharia de Minas. Assim montamos uma chapa para disputar e compô-lo; fomos eleitos em assembléia, pois era chapa única.

Antônio tornou-se presidente e eu vice. Nessa época, surgiram outros três grandes amigos representantes dos outros DAs de Engenharia: Bruno Oliveira (Eletroeletrôni-ca); Vanderson (Produção); Calos Gurgel (Mecânica) e Kiara (Engenharia Química). Realizamos grandes eventos, como a I Semana de Engenharia e Geociências da UFPE, “calouradas unifi cadas”, recepção aos novos alunos. Tudo isso começou em 2003 e hoje é tradição.

Voltando para o relacionamento na casa do estudante da UFPE, onde residi durantes esses quatro anos e meio, posso dizer que tive grandes amigos, tanto os que moravam no mesmo apartamento que eu quanto os demais. Conheci pessoas de diversos cursos, pensamentos e culturas. Conheci pessoas de diversas cidades e estados e até de minha cidade, André (engenheiro mecânico), uma das pessoas que mais me apoiou no processo de seleção para a casa. Entre os que até hoje estão dividindo quarto, posso citar Alderi, Edson Ricardo, Calos Gurgel, Thiago Airon, todos de Engenharia. No quarto, desde a mi-nha chegada, existe uma política de só convidar pessoas da área de exatas, pois, por serem pessoas com características comuns, o convívio se torna mais tranqüilo. Isso realmente dá certo e, nesse tempo em que lá estou, não houve confl itos, o que é muito bom.

Nesse período de universidade, me tornei monitor da disciplina estatística, por um ano. Apresentei trabalho em congressos e pratiquei muitas atividades visando à feitura do curriculum. Participei de palestras, projetos, e me diverti muito como qualquer uni-versitário graças às bolsas de apoio que consegui na universidade (apoio acadêmico e do Conexões, que tem me ajudado no ano de 2005).

Se não fosse a difi culdade fi nanceira minha vida acadêmica teria sido melhor, pois deixei de fazer intercâmbio na Espanha porque não tinha condições de bancar minhas despesas. Tirando isso, posso assegurar que minha vida de universitário tem sido muito boa e vou ter saudades quando concluir meu curso em 2006. Para que, para surpresa de alguns, embora tenha estudado apenas em escola pública, será individual, não por estar atrasado, mas sim por estar concluindo antes do restinho da turma que sobreviveu bra-vamente aos apuros das disciplinas e conseguiu chegar na reta fi nal.

Gustavo Alexandre SilvaEngenharia de Minas

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Israel: uma caminhada de 23 anosMeu nome é José Israel de Vasconcelos Filho. Nasci no dia 19 de fevereiro de 1982,

no município de Goiana, em Pernambuco, coincidentemente, no dia do aniversário do meu avô paterno e, exatamente, um mês depois da morte do meu pai, que faleceu em um acidente de carro na cidade de João Pessoa, Paraíba.

Após o meu nascimento, minha mãe, Eliza Tavares de Vasconcelos, que estava com a minha irmã de dois anos, tinha que resolver pendências referentes ao falecimento do meu pai e, como era sozinha, fi cava difícil resolver tudo com duas crianças de colo. Por isso, fi cou decidido que eu iria morar durante um tempo na casa dos meus avós paternos em Bezerros, Pernambuco. Passei algumas semanas no interior e ganhei o nome do meu pai, o que, talvez, ajudasse a família a se conformar pela perda tão brusca de um fi lho.

Em pouco tempo, todos criaram um carinho e um afeto muito grande por mim. Na casa dos meus avós, moravam minha avó Conceição, meu avô Ananias e duas tias minhas, Regina e Lourdinha. Elas foram de grande importância na minha educação. Todos viam em mim a imagem do meu pai, pois, além de ter o mesmo nome, sempre diziam que eu me parecia muito com ele, foi como se meus avós tivessem perdido um fi lho e ganhado outro.

O tempo passou e chegou o dia que minha mãe iria me pegar para levar de volta para Goiana. A casa, que após o acidente tinha ganhado um pouco mais de conforto e voltava a sorrir, nesse dia, foi como se um outro fi lho estivesse indo embora; meus avós choravam e não acreditavam que eu pudesse realmente sair daquela casa. Minha mãe, após longas conversas com meus avós, decidiu que eu iria morar com eles. Meus avós tinham acabado de ganhar outro fi lho: Sendo assim, comecei a chamar meu avô de painho e minha avó de mainha.

Sempre soube quem eram meus pais e o que tinha acontecido, visitava minha mãe sem-pre que podia e ela sempre me mandava presentes, tive uma educação ótima e minha família sempre fazia o que era possível por mim. Painho e mainha sempre viajavam para São Paulo, pois eu tinha vários tios por lá e eles sempre me levavam junto. Apesar de ser muito pequeno, lembro dos detalhes das nossas viagens, inclusive que eu tinha ganhado uma lebre, viajei com meus avós, e, quando voltei, tinham comido a lebre assada, foi um desespero.

O tempo passou: Nunca fui o melhor aluno do mundo, mas sempre passava de ano, por média, e dava o maior orgulho em casa. Também nunca fui muito quieto, às vezes aprontava algo na escola, nada demais.

“Painho” era um homem simples, mas muito respeitado na cidade. Tinha vindo, não só ele, mas quase todos da minha família, do sítio para a cidade. Eram bem conservadores e minha educação foi rígida, o que foi muito importante na minha vida.

Creio que uma das maiores lições que aprendi foi quando “painho”, já aposentado, começou a negociar com caldo de cana e, aos sábados, eu o ajudava. Certa vez, chegou um bêbado pedindo para lavar as mãos, seu pedido foi atendido; depois “painho” me pediu para entregar um pano para o homem enxugar as mãos. Eu, com nojo do bêbado, em vez de entregar o pano em suas mãos, joguei-o. Após enxugar as mãos, ele jogou de volta para

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mim. Logo que ele saiu, painho me disse que o bêbado só tinha jogado o pano porque eu tinha jogado primeiro. Se eu tivesse entregado nas suas mãos, certamente ele também teria tido a mesma atitude. Disse, também, que eu deveria me lembrar disso para o resto da minha vida as pessoas me tratariam da mesma forma como eu as tratasse. Isso já faz cerca de quatorze anos e vejo que essas palavras fi caram gravadas em mim, servindo de ajuda para os obstáculos que sempre encontro.

Quando eu tinha sete anos, minha tia Regina teve uma menina chamada Thalyta. Nessa época, minha outra tia já não estava mais morando conosco, pois acabava de se formar em Letras e estava trabalhando no Ceará. Foi mais uma criança para alegrar a casa, crescemos praticamente juntos e nos tratávamos como irmãos, brincávamos, brigávamos e tudo o mais que dois irmãos fazem juntos.

Quando completei meus dez anos, fi zeram minha primeira comunhão juntamente com o casamento da minha tia Lourdinha, que tinha voltado do Ceará e estava morando em Gravatá. Nesse mesmo dia, também foram celebradas as bodas de prata da minha tia Cristina, que é freira e estava completando vinte e cinco anos de congregação, como também os incríveis cinqüenta anos de casados de “painho” e “mainha”. Faziam bodas de ouro e pareciam um casal de namorados. Foram quatro festas em uma só, nesse dia estava reunida quase toda a família e foi uma noite que, com certeza, nunca vou esquecer. Todos estavam muito felizes.

Ao fazer quinze anos, fui crismado; freqüentava tanto a igreja que chegou um tempo em que eu pensei até que podia ser padre. Quando era criança, até roupa de padre eu tinha e brincava de celebrar missa. Mas não era tão santo assim e, logo cedo, descobri que não tinha a menor vocação para o sacerdócio.

Ao fi nal do ano 2000, concluí o ensino médio. Minha turma sempre foi muito unida, fi zemos uma pequena festa e a colação de grau foi uma missa especialmente para nós. Al-gumas semanas de preparação foram necessárias para que, nessa missa, nada saísse errado; foram dezenas de ensaios e, no dia, cada aluno entraria na igreja com uma pessoa.

Nesse tempo, eu namorava já com Emiliana, uma garota de Bezerros, com quem eu entraria na igreja. Tudo certo, no dia cada um tinha seu tempo certo de entrar e eu cheguei na igreja atrasado, todos já tinham entrado e a missa já havia começado, então o padre parou para que eu e Emiliana pudéssemos entrar; foi um “grande mico”, que hoje é lem-brado com saudades.

Depois de concluir o ensino médio, fui me preparar para o vestibular. Freqüentava um cursinho em Gravatá e fi cava na casa da minha tia. Trabalhei numa escola de informática, dando aulas de computação e fazendo manutenção de computadores, prestei serviço também em uma livraria na parte de informática. Talvez por estar trabalhando, não me empenhei ao máximo para passar no vestibular e, quando fi z as provas no fi nal de ano, não passei. Foi uma das minhas grandes decepções.

Começou 2002, até agora o ano mais difícil da minha vida. Comecei a estudar por conta própria, só estudava e não trabalhava, até aí tudo parecia normal, mas meu pai já não era o mesmo homem forte de sempre, a diabetes o havia abatido muito. Há muito tempo já não negociava, fi cava em casa e, para um homem que sempre trabalhou e viveu na ativa, era muito difícil a vida ociosa. As complicações da diabetes apareceram e ele, apesar de bem cuidado, fi cava cada vez pior, sua memória já não era mais a mesma e suas palavras não tinham sentido.

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Tia Regina é enfermeira e ajudava muito no tratamento dele, fazíamos o possível, mas, a partir do mês de agosto, sua saúde piorou muito, teve esclerose, já não conhecia os velhos amigos nem mesmo a família. Foi um tempo muito difícil para todos nós, ele já não podia dormir sozinho e revezávamos noites acordados, eu e minha tia, para olhá-lo e ajudá-lo.

Minha avó sofria muito, o homem com quem tinha vivido tanto tempo não a conhecia. Tudo isso mexia muito conosco; no começo de novembro o estado dele piorou e tivemos que interná-lo em Recife. Foram quinze dias difíceis, à espera, quem sabe, de um milagre. O homem a quem eu devia minha vida estava em coma, numa cama de um hospital, e eu ao lado, sem nada poder fazer. Passei quinze dias no Recife com ele e cada ida ao hospital, era um choque, pois não havia boas notícias. Na noite do dia 17 de agosto, eu estava sozinho no apartamento de um amigo, quando, por volta da meia-noite, o telefone toca, era uma vida que chegava ao fi m.

Oito dias depois, eu faria o vestibular e, ao contrário do que todos pensavam, passei, mesmo com tantos contratempos. Fui morar no Recife, no fi nal do ano de 2003, e iniciei meu curso.

José Israel de Vasconcelos FilhoEngenharia Civil

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Um direito fundamental quepara muitos é sonho

Ruas largas e pavimentadas, sensação de bem-estar e ambiente apropriado para um lazer qualquer entre vizinhos; e as casas? Grandes, espaçosas, privacidade e conforto adequado, os irmãos quase não brigam! Saneamento básico, nem precisa falar, completo e efi ciente! O bairro onde nasci e moro, Peixinhos, periferia de Olinda, cidade patrimônio da humanidade e eleita capital nacional da cultura, é o contrário de tudo isso.

Nossas crianças brincam num quintal coletivo: as ruelas do bairro, misturando linhas de pipas aos fi os elétricos; fazendo, dos cruzamentos das ruas, campos de futebol. Às vezes, se propõem a andar um bocado em busca de algum bairro vizinho que possua um campinho ou boa praça. E para as meninas, poucas opções: pular corda, elástico, jogar dominó e pega-pega. Não há dinheiro para a aula de dança, natação, teatro, música e outros esportes, além de futebol ou queimado.

Eu brincava muito de pular corda, elástico e rodar bambolê, o brinquedo predileto. Mas também sonhava em fazer curso de música, de desenho e, passada a pré-adolescência, estudar Astronomia. A idéia do Universo me fascinava e então comecei a gostar de ler, de estudar o Universo e outros temas. Isso porque, nas escolas em que estudei, quando os professores não faltavam, a lengalenga era copiar perguntas, olhar a resposta no livro e copiar. Às vezes, surgiam algumas explicações, mas que não explicavam. E na prova: só decorar!... Então, o Universo foi meu professor.

Como meu pai, devido à morte do seu pai, parou de estudar cedo para trabalhar e como, desde o seu primeiro emprego até o atual, o dinheiro só é sufi ciente para as coisas básicas, não me incentivou a gostar de estudar. Minha mãe, que parou de estudar para cuidar dos fi lhos, me obrigava sempre a fazer as tarefas e decorar a tabuada, e nisso ajudou, pois nunca a esqueci.

Mesmo com todas essas difi culdades na formação, não posso deixar de dizer que, até ingressar na universidade, tive oito professores que conseguiram superar as difi culdades da escola pública, me ensinaram, incentivaram e, por isso, tiveram um papel fundamental na minha formação.

À noite, preparada para dormir, pensava em muitas coisas... Pensava no que via na televi-são e nas ruas, sobre as pessoas com fome, os meninos das ruas. Imaginava como pessoas muito mais pobres do que eu conseguiam viver. Queria sempre saber por que era assim, por que tinha de ser assim? Depois de muitas noites de pensamentos e planos, decidi estudar para diversifi car o cardápio de opções em relação ao meu futuro.

Convívio familiar quase sem confl itos, estabelecimento de ensino com adequada estrutura física, professores sempre presentes e sem muitas difi culdades para desempenhar seus papéis. Qualquer livro necessário, em mãos! Algumas pessoas da família a orientar e aconselhar nas decisões. Os momentos de lazer, as atividades culturais e o computador para ajudar a descobrir coisas, indispensáveis. Bom, nada disso eu tive, mas tive força de vontade e pessoas, conhecidas no período do segundo grau, que acreditaram em mim, uma em especial.

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Durante a oitava série, estudei muitas horas por dia para tentar o Centro Federal Tecnológico de Pernambuco (CEFET), que era, nas minhas expectativas, a única solução para uma tentativa no vestibular com chances reais. Estudava em casa, sozinha. Meu pai, então, espremeu as despesas e pagou um preparatório no Colégio Especial, cujas aulas eram nos fi nais de semanas. Como minha carência era muito grande e as aulas eram apenas resoluções de questões, não conseguia resolver um problema simples de equação do primeiro grau então, não passei no CEFET nem na Escola Técnica Prof. Agamenon Magalhães (ETEPAM). Fui estudar no Almirante Soares Dutra, escola profi ssionalizante, no curso de técnico em Contabilidade: nenhuma relação com o que eu queria!

Quando comecei o ensino médio, tinha a ilusão que aprenderia Contabilidade e estaria apta para trabalhar na área. Foi só isso, ilusão: apenas nas disciplinas de Estatística, Português; Direito e Legislação e Química lecionaram professores presentes e comprometidos. Laboratório de informática não existia, ou, se existia, não funcionava. Assim também eram os laboratórios do curso de Enfermagem e Patologia. Pingos de água na cabeça eram comuns quando andávamos nos corredores num dia de chuva. Era raridade termos palestras ou eventos culturais. Soma-se tudo isso a indiferença de grande parte dos alunos. Não havia nem grêmio estudantil.

No inicio do segundo ano, um padre e uma socióloga passaram de sala em sala falando sobre uma ONG da igreja católica de reforço escolar, dirigida ao vestibular, para estudantes de escola pública. No início, funcionou na parte de Teologia do Colégio São Bento e, depois, na sede do projeto que estava sendo construída. As aulas eram dadas por professores voluntários; material didático, alimentação e, inclusive, passagem de ônibus, eram custeados pelo projeto, além de orientação e acompanhamento dos padres e, principalmente, da socióloga do projeto.

No colégio, foi feita a seleção de trinta estudantes para compor a primeira turma do projeto. É claro que me inscrevi! A seleção teve por critério a observação das notas do aluno, uma entre-vista e a renda familiar baixa. Fui selecionada e, a partir desse momento, começou de fato minha batalha para ingressar na universidade.

Quando saía do colégio, ia direto para o projeto, cantávamos uma oração, uma vez que a maior parte do grupo era religiosa, almoçávamos, conversávamos e assistíamos às aulas. Os me-lhores momentos eram com a socióloga do projeto, Cristina Amaral Lira, que, freqüentemente, se reunia conosco e, então, debatíamos vários temas. Ela nos explicava muitas coisas, ouvia as nossas angústias e nos ajudava como podia, com sua atenção, suas conversas e sua compreensão e orientação. Todas as manhãs, a socióloga ia para o colégio, pois lá o projeto Padre Melotto tinha uma sala que lhe possibilitava acompanhar de perto o nosso desenvolvimento.

Como havia muitos professores faltosos, eu aproveitava e sempre ia para a sala do projeto conversar com ela. Eram conversas muito ricas e meu mundo se alargava.

Comecei a perceber que podia tentar fazer algum movimento para melhorar a escola; então, pensei em criar o grêmio livre. Conversei com alguns colegas que também estavam interessados e procuramos uma entidade estudantil, montamos uma chapa e começamos a percorrer as salas de aula falando da importância do grêmio. No turno da noite, surgiu outra chapa concorrente apoiada por outra entidade estudantil, e ganharam a disputa. No entanto, continuamos trabalhando na tentativa de despertar a consciência critica. Realizávamos palestras, distribuíamos jornais, argu-mentávamos com a direção da escola. Nessa época, comecei a participar da União dos Estudantes Secundaristas de Pernambuco.

No terceiro ano, percebi que a militância estava tomando muito do meu tempo e que era hora de voltar a me dedicar ao vestibular, então parei. Foi aí que apareceu a oportunidade de um estágio no Instituto de Tecnologia de Pernambuco (ITEP) pela manhã, projeto à tarde, colégio

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à noite e Rumo à Universidade, programa de pré-vestibular do Governo Federal, realizado nos fi nais de semana. Esse passou a ser o meu cotidiano. No primeiro vestibular em 2002, Terapia Ocupacional, não passei. A nota foi 4,6, muito baixa. Fiquei profundamente triste, mas não desisti. Do projeto, apenas uma colega passou. Continuei a estudar, especialmente matemática e física, minhas maiores difi culdades. Só parava para comer.

Em maio, o projeto me selecionou para participar de uma conferência sobre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, na Itália. Passei um mês estudando o Estatuto da Criança e do Adolescente para falar o quanto a nossa realidade estava longe do nosso estatuto. Quando conheci de perto a Itália, fi quei maravilhada; além da beleza das cidades, não vi nenhuma criança de rua! Nenhuma criança abandonada, violentada, drogada e faminta, como é comum em nosso país.

Voltei ao Brasil com todo o gás, estudei muito e ainda assim não consegui passar no meu segundo vestibular para Terapia Ocupacional. Abri o berreiro mais uma vez, enxuguei as lágrimas e continuei. Dessa vez, ouvi muito que era hora de parar e tentar conseguir um emprego para ajudar em casa, só Cristina continuou a acreditar que eu conseguiria. Minha mãe confi ava em mim, mas não tinha noção real do que era o vestibular.

No ano de 2003, quando já não estava mais no projeto, morei por um tempo na casa de Cristina, pois precisava de sossego para continuar estudando. Conseqüentemente, desenvolvi um enorme afeto por ela e seus quatro fi lhos. Ela me matriculou em um bom cursinho e lá descobri que já tinha uma base de conhecimentos maior do que uma grande parte da turma, estudantes oriundo de colégio particular desde pequenos. Como a essa altura já dominava os conteúdos de física e matemática, passei o ano revisando de forma geral todas as matérias. Fiz vestibular para Serviço Social e, na primeira fase, passei com nota sete, uma excelente colocação para quem até então só conseguira quatro. Na segunda fase, passei com média seis. Alegria geral!

Mudei de opção de curso não pela difi culdade de passar, mas porque, durante as três tentativas, mudei de percepção de mundo. Hoje me sinto bem com meu curso, embora me sinta triste com a crueza de nossa realidade que ele revela-me. Quanto ao projeto Melotto, muitos alunos tentaram vestibular diversas vezes, uns foram trabalhar e outros continuam tentando.

Meu nome é Janaína Botelho, tenho vinte e três anos, hoje estou cursando o quarto período do meu curso e gosto muito da universidade, embora não seja como imaginava, pois percebi logo nos primeiros dias de aula alguns centros carentes de reformas, de investimentos, assim como bibliotecas e laboratórios.

Minha trajetória estudantil é essa. Sei que milhares de jovens de classe popular viveram ou vivem essas, outras ou piores difi culdades para ter acesso à educação. Consegui superar alguns obstáculos e isso me alegra, mas quando me lembro dos colegas de infância com os quais cresci, quando vejo eles serem rotulados como marginais, serem presos e muitas vezes mortos, me sinto triste, pois não acredito que isso se deva a uma escolha deles.

Janaína do Nascimento BotelhoServiço Social

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Minha memória, minha vidaNesta narrativa, conto-lhes minha história em forma de memórias, memórias que vivo

com afi nco. A partir delas. posso reviver o passado. Sejam boas ou más, estão sempre in-quietas em meu pensamento, sempre saltam aos meus olhos ao rever um amigo de infância, sussurram aos meus ouvidos, trazem-me sons, palavras; chegam repentinamente como se estivessem sempre disponíveis a desafi ar o presente, não são como meras fotografi as porque são carregadas de emoção e não são estanques no tempo.

Essas memórias fazem parte do meu mundo, cujo conhecimento migra tanto do imaginário, quanto do real, se fundem numa mistura mágica de riso, de tristeza, de zanga, de amor, de calor, de frio, de aromas, enfi m, de tudo que a vida é feita e revelada a cada dia vivido.

Passei a infância no mesmo bairro em que até hoje moro. As memórias que tenho dessa fase de minha vida são muitas e são frágeis. Estão ligadas a momentos felizes e de diversão com colegas da escola e também da área onde fui criado. Hoje, vejo que há nelas pureza, beleza, ingenuidade, manifestações típicas de quem está começando a viver.

Minha mãe trabalhava e estudava e meu pai apenas trabalhava, enquanto eu fi cava na casa de minha avó, que morava próximo à casa de meus pais. Era em um córrego, um lugar que para mim era como outro qualquer, pois lá havia amigos, pessoas simples que andavam com os pés no chão como eu. Corríamos, brincávamos, fazíamos estilingues, derrubávamos mangas das mangueiras, inventávamos novas brincadeiras, enfi m, não havia dia ruim. Minha avó, sempre com cuidado, fi cava vez ou outra a me olhar para saber o que fazia e onde estava, um sentimento típico de mãe. Os dias pareciam passar depressa e quando menos se esperava já tinham ido, à tardinha ou mesmo à noite, minha mãe vinha me buscar ou então algum dos meus tios ia me levar em casa.

Os dias foram se passando, eu fui crescendo, minha avó saíra do córrego e agora estava mais próxima de minha casa. Eu já começara a estudar em uma escolinha simples, mas que parecia ótima para mim, pois lá conheci novos amigos. Ainda me lembro das duas primeiras professoras no jardim de infância. As idas e vindas à escola, agora já eram freqüentes, os amigos com quem outrora brincava no córrego, já não os via mais. As brincadeiras agora aconteciam durante o recreio e sempre havia algo novo a ser feito, seja uma brincadeira inventada na hora, uma conversa entre o grupo dos meninos sobre as meninas, ou mesmo qualquer outro boato de interesse social.

Quando terminava a aula, sempre tinha alguém da família a me esperar para voltarmos juntos para casa e, no caminho, eu contava as histórias que ouvira e que fi zera naquele dia.

Ainda nessa mesma escola, tive minha mãe por professora, que me ensinou durante a “alfabetização”; posteriormente, tive uma professora que me acompanhou da primeira à quarta série, ainda na mesma escola.

As aulas de ciências, português e história eram bem movimentadas, sempre havia ativi-dades a serem feitas. As de matemática, no entanto, eram um pouco monótonas e só saíamos para o recreio ou para casa se a tabuada estivesse na ponta da língua.

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Sempre gostei de obter boas notas, isso me incentivava na aprendizagem e nas relações com meus colegas de turma. No último ano do primeiro grau menor, na festa de formatura, recebi o prêmio por ter sido o aluno com as melhores notas gerais. Foi uma felicidade só para mim e, sobretudo, para meus pais. Alguns amigos dessa época, ainda os vejo hoje, outros mudaram de bairro ou de cidade ou mesmo desistiram de estudar.

Mudei de escola e a vida seguiu seu rumo. Fui para uma escola maior, mais assustadora, com pessoas desconhecidas e novos professores. Ficava em outro bairro, o que me obrigava a ir de ônibus, alterando a rotina a que estava acostumado. Tinha onze anos na época da quinta série. Sofri certo impacto diante de uma nova realidade, com tantas matérias e novidades. Sentia-me fraco, incapaz e, como conseqüência, perdi alguns pontos nas primeiras avaliações. Comecei a conhecer o que é o sarcasmo na fi gura de alguns garotos que gostavam de me intimidar e tripudiar do meu tipo físico, que não era lá o de nenhum galã.

Quando chegava da escola, que alívio! Por alguns minutos, poder correr de bicicleta, assistir ao desenho animado, brincar com personagens imaginários. Mas as tarefas estavam lá a me esperar. Outra coisa que sempre fazia era acompanhar minha avó à igreja, mesmo não gostando muito.

Quando fui para a sexta série, agora aos doze anos, já me sentia mais confi ante, os obstáculos não impediam meu encantamento com o conhecimento. Percebi que era capaz de aprender tudo aquilo a que me dedicasse, seja matemática, geografi a e tantas outras matérias que não constituíam mais difi culdades. A única exceção era educação física, freqüentava as aulas apenas para não ter falta, mas não me interessavam, pois não sabia nadar e nem jogar futebol, que eram as atividades mais comuns.

Dessa época, tive vários amigos e amigas que marcaram minha vida, dentre estes, estão Francarlos e Filipe, meus melhores amigos. Encontrávamo-nos sempre, seja quando nos divertí-amos ou quando estudávamos para alguma atividade escolar.

No inicio da adolescência, não vivi os confl itos que caracterizam essa fase, sempre me colocava em posição de defesa aos demais garotos da turma ou mesmo da própria comunidade, não gostava de contrariar professor, menos ainda as pessoas de minha família. Estava sempre quieto e desconfi ado.

Continuei estudando muito e mantendo boas notas e, ano após ano, não tinha difi culdades em já ser aprovado por média na terceira unidade. Mas os confl itos típicos da adolescência co-meçaram a aparecer, principalmente com meus pais. Não entendia por que não podia ter o que queria no exato momento do desejo. As garotas já não me pareciam inacessíveis, comecei a viver as primeiras paixões, embora secretas e platônicas, só para que eu mesmo me pudesse sentir. O sentimento de rebeldia, de critica, a necessidade de viver intensamente se mostrara forte, era algo sentido e, ao mesmo tempo, desconhecido.

Faltando três anos para terminar o ensino médio, já sentia a responsabilidade que estava por vir; o caminho percorrido revelava-me que quando o vestibular chegasse tudo seria cobrado. Mas enquanto não chegava, continuei estudando, lendo, curtindo, vivendo, pois sempre tive consciência de que os momentos e as pessoas não se repetem.

As difi culdades durante os três últimos anos eram muitas, a falta de informação sobre Medicina, curso que pretendia fazer, bem como as próprias experiências da adolescência, se misturavam, gerando sentimentos de expectativa, contradições e responsabilidades. Sentia-me responsável pelas decisões que haveria de tomar, mas não me sentia preparado. Considerava-me incapaz de ser aprovado, já que não tinha uma base sólida dos conteúdos que me possibilitasse resolver os exercícios com tranqüilidade.

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Minha mãe, por já ter passado pela experiência de vestibular, foi muito importante, pois me incentivava sem mitos. Enfi m, a família, os colegas, todos me apoiavam. Mas ainda assim parecia uma utopia, pois o curso para o qual havia me inscrito era um dos mais concorridos da Universidade Federal de Pernambuco.

O resultado foi negativo, mas sabia que a experiência tinha sido válida e na próxima vez certamente estaria mais preparado. Percebi que Medicina não era o meu objetivo. Resolvi optar pela Licenciatura, gostava de ensinar, o que sempre fazia na escola, ajudando aos colegas. Optei por Licenciatura em Ciências Biológicas e, dessa vez, o resultado foi positivo.

O vestibular, apesar de seu caráter medíocre de avaliar o conhecimento, é ainda o passaporte para quem deseja ingressar em um curso superior, quer seja na universidade pública ou privada. Na pública, o sabor de vitória é maior, seja pela concorrência, seja pela gratuidade.

Hoje, dentro da universidade, percebo as coisas com mais clareza. A consciência de que entrar em um curso universitário é apenas o inicio de um longo processo em que o conheci-mento é o caminho para a realização do sujeito enquanto ser social, político, cultural.

Quanto a manter as boas notas, é ainda um dos meus objetivos; no entanto, aprendi que isso não é sufi ciente, é necessário construir a própria história, não se deixar ser conduzido. Enfi m, é preciso entender os motivos de se estar estudando determinados conteúdos e de que maneira tais conteúdos poderão ser utilizados na vida acadêmica e profi ssional. Na univer-sidade, desejo um dia poder ensinar-e-aprender, ou seja, lecionar. Pretendo também fazer outro curso de graduação, talvez Direito.

Josemir Silva de Mousinho Ciências Biológicas

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O que pode o sonhoChamo-me Karina Fabiana da Silva. Karina é o nome que minha mãe escolheu, Fabiana

porque minhas três irmãs se chamam Fabiana, penso que seja alguma fi xação apaixonada do meu pai, e Silva vem da árvore genealógica paterna. Nasci em 29 de fevereiro de 1981, no Recife, porém ao me registrar meu pai estava alcoolizado e pôs como data de meu nascimento 20 de março. É essa a data em que comemoro aniversário. Sou de família grande, tenho seis irmãos, sendo um adotivo, Laúcio, que seria afi lhado e acabou se tornando fi lho.

Tenho boas recordações da infância. Quando nasci, morávamos numa casa alugada e brincava muito com meus irmãos e os vizinhos, brincadeiras de cozido, bola de gude, cantigas de roda; pião; espeto e muitas outras. Quando meus pais compraram a casa onde moro até hoje, no Morro da Conceição, fi quei com saudades das brincadeiras e dos vizinhos, mas logo fi z novos amigos e fui à escola, que fi cava ao lado da minha nova casa. Ali, aprendi a escrever meu nome (K-A-R-I-N-A), a letra K era o estranho para mim, pois tinha o mesmo som do C.

Com seis anos, na primeira série, estudava pela manhã em uma escola de educação popular, onde meus irmãos também estudavam, e à tarde, na Escola Padre João Barbosa, no pré-escolar. Estudava os dois turnos porque minha mãe trabalhava. No segundo semestre, continuei estu-dando na Escola Padre João Barbosa, com Tia Dulce, uma pessoa adorável e inesquecível que levava lanche todos os dias para nós.

No pré-escolar, fi z muitas amizades: Marineide, Diana, Jaqueline e Saula. Gostava de colorir os desenhos e só não aturava ir para a secretaria todos os dias para esperar minha mãe me buscar, pois ela se atrasava e eu era sempre a última a sair. Estudei no Padre João Barbosa até a quarta série, mas, a partir da segunda, já ia para casa só; que alivio, enfi m, liberdade.

Fui uma criança feliz, divertia-me muito rodando pião, pulando corda, amarelinha, brincando de desfi le de moda, pique-esconde e tantas outras traquinagens que inventávamos, sempre na frente de casa de olho no meu pai, que a qualquer momento chegaria do trabalho. Quando o avistava na esquina, corria para casa, pois se me visse na rua, principalmente descalça, era castigo na certa.

O quintal da minha casa era grande e, nele, preferia fazer festa de boneca, cozido, montar quebra-cabeça, brincar de banco imobiliário, escritório e casinha. Também gostava de desenhar e costurar roupas para bonecas e vender às minhas vizinhas. Como minha mãe era costureira, aproveitava os retalhos de tecidos e dizia que ia ser estilista ou secretária quando crescesse.

Gostava muito quando minha mãe fazia roupas para mim, levava-me à praia e também quando chegava o dia das crianças. Meu pai trabalhava em uma fábrica que, no dia 12 de outu-bro, dava uma festa para os fi lhos dos funcionários, com sorvete, sacos de confeitos e presentes. Você escolhia o presente que quisesse. Ele nunca me levou a essa festa: todos os anos sonhava com ela. Ele escolhia o presente e levava para casa. Sempre quis uma bicicleta, mas meu pai só escolheu para mim bonecas e o Pimpão, um urso de pelúcia que até pouco ainda tinha.

Nunca repeti o ano e sempre estudei em escola pública, fui boa aluna. A escola Padre João Barbosa era pequena e tradicional. Ainda pintávamos a capa das provas. Só havia dois professores para cada turma, fazíamos fi la e rezávamos todos os dias antes de entrar na sala de

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aula. Lá conheci Saula, estudamos juntas até a quarta-série, fomos muito amigas, mas brigamos e só viemos a nos falar nas aulas de crisma, quando tínhamos aproximadamente dezesseis anos. Somos hoje grandes amigas.

Quando tinha entre sete e oito anos, minhas irmãs montaram um balé amador misturado com ginástica rítmica: como gostava muito de dançar passei um ano treinando e me destaquei. Aprendi muito e, talvez, se tivesse orientação profi ssional, teria me tornado uma ginasta. Gostava também de cantar, mas não tinha jeito. Participei de um grupo de dança popular na escola onde meus irmãos estudavam e também faziam parte, o Raízes de Quilombo. Era maravilhoso, nos apresentávamos em escolas particulares, no teatro Guararapes, no Centro de Convenções, em associações e nas ruas.

Fizemos várias apresentações com o famoso Balé Popular do Recife. Também havia vários passeios para a Casa da Cultura, o teatro do Parque, dentre outros. Dançávamos samba, coco, frevo, maracatu, maculelê, galante, ciranda e capoeira. Apesar de, no início, não saber rebolar e fazer tesoura, dançava o samba e o frevo com maestria e entusiasmo inigualável; fazia sucesso porque era a mais nova e a menor do grupo. Quando os shows eram pagos, recebíamos cachê.

Nas férias, viajávamos para a casa da minha avó materna, em Nazaré da Mata. Lá, gostava mesmo era de brincar com minhas primas e chupar confeitos da venda do meu tio. O interior era divertidíssimo: banho de rio, colher frutas na fazenda em que minha prima Mira trabalha-va, ver o maracatu na rua, e o melhor de tudo: a viagem. Viajava cantarolando no ônibus as músicas que aprendia na escola e olhando a paisagem e os animais pela janela. Para mim, era o céu: para os outros passageiros, o caos, aquele ônibus lotado, que muitas vezes tínhamos que descer pelas janelas.

Mas, chega de boa vida, as aulas começariam e tive que mudar de colégio. Matriculei-me na Escola Matias de Albuquerque, que era diferente da anterior. Havia um professor para cada matéria e o estilo das provas era diferente, tínhamos que fazer e apresentar trabalhos, além das aulas de educação física serem no horário da manhã.

Lembro que tirei nota baixa na primeira prova de história da quinta série, mas desde então estudei e não mais repeti a experiência. Em março desse mesmo ano, 1992, comprei a farda da escola e Ana Lúcia, a professora de história, mandou que fi zéssemos uma maquete de argila sobre o dia do índio. Fiquei tão empolgada que me sujei toda; quando cheguei em casa tentei lavar a roupa sozinha e acabei manchando-a. Levei a maior bronca de minha mãe e só comprei outra no ano seguinte.

Dessa época, lembro que Lidiane, nossa colega da quinta série, criou um grupo de “pa-quitas” e convidou Marineide, que não sabia dançar, para participar, só porque ela era loira e eu, que queria fazer parte e sabia dançar, fi quei de fora por ser parda. Fiquei irada e montei um grupo de “paquitas” com minhas vizinhas. Inovamos, “paquitas” morenas e pardas, enfi m.

Na sétima série, a biblioteca da escola promoveu um concurso sobre o folclore, o trabalho mais bem elaborado ganharia um prêmio. Juntei-me com mais três colegas e confeccionamos um saci numa folha de ofício, horrível! Daquele jeito não ganharíamos nada, então pedi para as meninas comprarem uma cartolina para que eu pudesse fazer o trabalho em casa. Desenhei e escrevi sobre todos os tipos de danças folclóricas e lendas que conhecia (coco, maracatu, frevo, samba, ciranda, saci, curupira, mula-sem-cabeça, Iara). Usei madeira, areia, tecido, lã, lantejoula, fi tas e linhas para confeccionar as roupas dos dançarinos. O trabalho fi cou belíssimo, ganhamos o 1º lugar, mas fi quei triste porque as meninas, antes do resultado, nem se interessaram em ver como o trabalho tinha fi cado, só estavam interessadas no prêmio: uma caixa de chocolate.

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Boneca era a minha brincadeira predileta até a sétima série, quando uma colega de classe me fl agrou brincando; fi quei envergonhada e as abandonei.

Minhas férias daquele ano, 1995, foram muito boas. Fui para Nazaré da Mata para a casa das minhas primas. Divertíamos-nos todos os dias, andávamos de bicicleta, locávamos fi lmes, fi cávamos com os garotos, escondidos do meu tio. Íamos para as festas dançar forró e paquerar os gatinhos, sobretudo os primos das minhas primas que também estavam de férias, isso sob guarda vigiada de adultos.

Na oitava série, fi zemos uma festa com comidas típicas para comemorar o folclore. Débora e eu demos tapioca. Teve bolo de fubá, de mandioca, milho cozido, mungunzá, pipoca, canjica e muitas outras delícias. No fi nal do ano, fi zemos nossa formatura, e novamente, outra correria para procurar escola, pois o Matias só tinha até o primeiro grau maior.

Quando sai de lá, sabia que sentiria saudades de Josete, minha professora de português desde a quinta série. Ela sempre me ajudara na construção dos textos e das redações, se disponibilizando inclusive quando eu não mais estava na escola. Débora e eu decidimos ir para a escola Dom Bosco, considerado o melhor colégio de Casa Amarela. Enfi m, Dom Bosco, lá vamos nós...

Por termos feito a matrícula por último, fomos para o primeiro ano E, uma turma eclética, da faixa etária ao comportamento. Logo nós que sempre fomos das turmas A? Mas nos adapta-mos.

O colégio Dom Bosco era grande, tinha quadra de jogos, time de futebol masculino e femi-nino, handebol, ginástica, cantina, teatro, uma biblioteca maior, aulas de inglês e espanhol, aula de música em francês, laboratórios de química e física e, mais tarde, de informática. Uma sala de aula só para educação artística, palestras e debates sobre educação sexual, um grêmio, correio secreto, jornalzinho, feira de ciências e, no intervalo, escutávamos música. Era a escola dos meus sonhos, mas com o tempo percebi que nem tudo era perfeito: alguns professores fi ngiam que ensinavam e os alunos fi ngiam que aprendiam.

Na feira de ciências, no primeiro ano, tive a incumbência de ler A Normalista, de José de Alencar e reescrevê-lo em quadrinhos. Fui socorrida por Josete, que me ajudou a fazer um trabalho belíssimo. Depois disso, não mais a vi. Sinto saudades.

No segundo ano, voltei a ser da turma A. Tive um professor, Alcides, que todos temiam, pois ensinava matemática para o vestibular e 95% da turma não tinham base. Também tive uma ótima professora de geografi a, Bernadete, mas ela passou no mestrado e nos deixou no segundo semestre do terceiro ano. Outro professor excelente foi Fábio, de história. Com ele aprendi a gostar da matéria, mas era estagiário e teve que sair; logo veio outro professor, Antônio Carlos, também estagiário e muito bom. Suas aulas eram dinâmicas, podíamos perguntar, concordar, discordar, argumentar, era gostoso aprender e compreender o sistema em que vivemos.

Eu, que quando criança dizia que iria ser secretária ou estilista, me apaixonei por Odonto-logia; mas foi paixão efêmera, decidi mesmo por História.

No último ano, os professores nos incentivaram a prestar vestibular. Eu não sabia nada sobre o curso, nem sobre a universidade, porque as informações não chegavam à escola pública e, além disso, não tinha uma boa preparação. Só via meus colegas comprando livros e apostilas para estudar e eu também queria, mas não tinha dinheiro nem para as apostilas, quanto mais para a inscrição.

Alguns colegas conseguiram fazer as provas, passaram na primeira etapa, mas nenhum conseguiu aprovação fi nal. No entanto, essa derrota não os desanimou e hoje tenho um amigo, Adriano, que está fazendo mestrado em Matemática e é professor universitário.

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Ao fi nal do ensino médio, nossa formatura foi diferente. Preferimos uma viagem para Caruaru e Brejo da Madre de Deus. Foi maravilhoso! Saímos da escola às 7: 00 e estava previsto para chegarmos às 19:00, mas quando estávamos voltando, o ônibus quebrou e só chegamos à escola às sete do dia seguinte.

Depois que conclui o ensino médio, queria trabalhar e continuar estudando então, Débora e eu fomos fazer um curso técnico em Contabilidade. Estudamos um ano e não conseguimos estágio, a única coisa que se aproveitou é que lá conheci Júnior, um dos meus grandes amigos.

Por alguns anos, participei com intensidade das atividades da igreja do Morro da Conceição, inclusive do grupo de dança e de coroinha, mas abandonei para me preparar para o vestibular. Ia à igreja sempre com Monique; lá conhecemos George, que se tornou meu amigo e namorado dela. No dia 25 de dezembro de 1999, George nos apresentou Dalmo, seu amigo, que num primeiro momento me julgou “metida”, mas nos tornamos amigo e daí ao namoro foi só um passo.

Desiludida com os estágios não conseguidos, comecei a participar do grupo de estudos pré-vestibular no Morro da Conceição, o GEMCO, junto com um grupo de amigas, incluído Saula. As aulas eram nos fi nais de semana. Débora queria ser veterinária, mas tinha medo de não passar, isso a imobilizou, nunca tentou, hoje trabalha como vendedora numa loja de presentes, semi-escrava. Enfrentei o medo dos livros e resolvi estudar, ia ao GEMCO e estudava em casa, fi cava tão cansada que dormia em cima dos livros.

Quando vieram as inscrições, ganhei isenção para o vestibular na Universidade Federal de Pernambuco. Fiz Licenciatura em História, mas só passei na primeira fase. No ano seguinte, resolvi inscrever-me no GEMCO novamente. No segundo semestre, fui para o cursinho do NAP Comunidade – Núcleo de Apoio Pedagógico, que funcionava durante a semana à noite. Alguns alunos do NAP Comunidade foram escolhidos para fazer revisão no Colégio; eu fui e me fez muito bem, apesar de ter uma base frágil e também enfrentar preconceitos dos alunos e até de alguns professores. Eles não acreditavam em nós e, de mais ou menos 500 alunos, somente quatro falavam conosco. Fiz novamente Licenciatura em História na Federal, minha nota foi boa, mas não passei. Fiquei no remanejamento que não houve.

O grupo de estudos do Morro da Conceição fechou em 2001 e no ano seguinte fi quei só no NAP Comunidade. Foi cansativo rever tudo pela terceira vez e Dalmo estava ali sempre dando forças para eu não desistir. Queria ser professora de história e cientista, um dos meus sonhos.

Trabalhei três meses em uma empresa de telemarketing, mas não deu para guardar o dinheiro da inscrição do vestibular, então fi zemos um bazar com roupas e sapatos que os alunos do colégio doaram para nós. Com o bazar, consegui metade do dinheiro e minha irmã me deu a outra metade. Inscrevi-me em Licenciatura em História no vestibular da Federal e da UPE (em Nazaré da Mata). Fomos eu e Dalmo, duas colegas que estudavam comigo no NAP (Nadja e Íris), mas só Íris passou em Pedagogia. Dalmo tentou uma faculdade particular e hoje faz Relações Públicas.

A essa altura já estava cansada de tantas tentativas, sem contar que quase todos os meus amigos já haviam passado. Foi quando percebi que só aquele cursinho não era sufi ciente para minha aprovação, porque os estudantes do ensino privado estavam cada vez mais preparados e eu, em franca desvantagem. Então, minha irmã, Andréia, pagou cursinho e prometi a mim mesma que iria passar.

Já que estudava no NAP Comunidade e conhecia a capacidade dos professores, procurei o colégio. Por ser perto de casa e não precisar pagar passagem, era o ideal para mim. Pedi um desconto aos diretores, mas, por não crerem na minha capacidade, não me deram, me mandaram procurar um cursinho mais barato. Fiquei decepcionada, mas não desisti.

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56 Caminhadas de universitários de origem popular

Em 2003, Monique e eu fomos para o cursinho Contato, onde conseguimos 50% de des-conto; estudei muito, me dediquei à dura rotina de aulas até aos domingo e todo o esforço valeu a pena. Passei em 20º lugar para o curso de Licenciatura em História, em uma universidade pública, contrariando as estatísticas. Monique passou, no ano seguinte, para Enfermagem, na Universidade Estadual. Tenho muito a agradecer a minha irmã, que patrocinou o cursinho o ano todo e continuou pagando as passagens e o material da faculdade, e a Dalmo, que sempre esteve ao meu lado me dando forças para continuar lutando.

Assim que passei no vestibular, pensei em contribuir com a comunidade. Dessa forma, Saula e eu reabrimos o grupo de estudos. Conseguimos professores voluntários, mas não deu certo, porque a maioria dos alunos era concluinte de escola pública e o governo ofereceu um pré-vestibular também no fi m de semana que pagava cinqüenta reais por mês. Então, como os alunos precisavam do dinheiro, saíram do grupo de estudos, que fechou por falta de alunos. Penso em um dia reabrir o grupo de estudos, com aulas regulares semanais para que mais pessoas possam ter acesso à universidade.

Na universidade, fi z vários amigos: Cleide, Amanda, Aline, Graziele, Deise, Fábio, entre outros. Fiquei maravilhada e com sede de saber. Minha turma do curso de História, apesar de ser noturna, é muito inteligente e exigente, os professores vivem elogiando-a. Sempre que posso participo dos congressos que acontecem dentro e fora da universidade e compro livros.

Sinto-me feliz por saber que ter vindo de escola pública e morar em comunidade popular, dois fatores tão descriminados pela sociedade, me proporcionaram fazer parte do Projeto Co-nexões de Saberes, que tem o mesmo objetivo que eu: integrar a universidade à comunidade e a comunidade à universidade, numa troca de experiências.

Hoje, estou no quarto período de História e já leciono na minha área no pré-vestibular da comunidade do Morro da Conceição. A vida, apesar dos contratempos, me tem sido boa. Aprendi com essas difi culdades todas que sonho que se sonha só é só um sonho só e sonho que se sonha junto é sinal de construção.

Karina Fabiana da Silva História

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Universidade Federal de Pernambuco 57

Oi Marina,

como vai?

Oi Luci!

Luci em: Ilustrando sentimentosa caminho da universidade

Lucineide Cristina BarbosaSecretariado Executivo

Essa é uma estória que começa com o encontro de duas estudantes:

Luci, uma universitária, e Marina, uma pré-vestibulanda.

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58 Caminhadas de universitários de origem popular

Ah! Eu estou preocupada e indecisa

com relação ao curso para o qual

devo prestar vestibular.

Compreendo, a escolha de uma

profissão, é quase sempre um

dilema, porém, depois de alguns

desafios que alguns estudantes de

escola publica tendem a enfrentar

até chegar a universidade, tudo fica

mais claro.

Vou contar a minha estória,

que, de uma certa forma

envolveu-me em um passeio

por diversas profissões até

chegar aquela que me

formarei na UFPE.

Como assim

Luci?

Vou contar a minha estória,

que, de uma certa forma

envolveu-me em um passeio

por diversas profissões até

chegar aquela que me

formarei na UFPE.

Sabe Marina, as vezes é preciso ser

um pouco arquiteta quando se pensa

em fazer vestibular. A maioria dos

estudantes de escola pública, cohecem

suas dificuldades de ensino principalmente

com relação as matérias exatas, então,

arquitetei uma pilha de livros com assuntos

que não dominava para começar a estudar.

ok, estou

pronta

para ouvir.

Como vai

Marina?

Como vai

Marina?

É, tem razão, os assusntos

programados para o

vestibular formam realmente

uma obra arquitetônica de

livros.

Mas, continuando, quando fiz

vestibular pela primeira vez, não

passei na segunda fase, mas

fiquei feliz de ter passado na

primeira, pois percebi que tinha

capacidade de alcançar meus

objetivos e foi aí que assumi as

atitudes de uma médica.

Médica, não

vejo lógica!

Claro! Depois de não ter

conseguido chegar ao meu

objetivo por que havia alguns

problemas, foi preciso

examina-los e diagnostica-los,

afim de conseguir os remédios

para a cura!

Ah, que interessante,

eu nunca havia visto

as coisas dessa forma.

E voce diagnosticou os

problemas?

Lógico, e me receitei com

altas doses de paciencia,

maior dedicação para os

estudos da area de ciencias

exatas, sem esquecer a area

de humanas, é claro!

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Universidade Federal de Pernambuco 59

Mas que

trabalhão!

É mesmo, o

que mais você

tem para me

contar?

É Luci, a falta de

condições financeiras

para comprar bons livros

nos prejudica bastante.

É, e foi por isso que

eu me senti as vezes

uma economista.

Como vai

Marina?

Como vai

Marina?

Depois de tudo isso

voce passou no segundo

vestibular, não é?

Por incrível que pareça,

apesar de ter melhorado

minha nota, não consegui

passar na segunda fase

mais uma vez. E fui tentando

mais duas até conseguir.

Foi então que eu tive a impressão de ser

uma psicóloga, por que depois de ficar

deprimida por não obter um bom resultado

no vestibular, fiz a terapia de conversar

comigo mesma buscando eliminar os

traumas e seguir lutando.

É realmente deu trabalho,

mas quando se deseja algo

temos que abdicar um pouco

das diversões.

Eu falei que precisei

estudar mais horas e

me esforçar para

aprender melhor as

matérias exatas, não

falei?

Sim, assim que eu pude controlar o

pouco de dinheiro que eu ganhava

dos meus parentes, cortando gastos

com coisas supérfluas, direcionando

o meu dinheiro na aquisição de xérox

e lanches, para aguentar o ritmo puxado

dos estudos.

Economista!

E Como voce

fez isso?

Comecei a assumir o papel

de administradora, dividindo

meu tempo entre os trabalhos

domésticos e as idas a biblioteca

central porque não tinha livros

em casa.

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60 Caminhadas de universitários de origem popular

Legal, pode ser uma boa idéia

nos auto-avaliarmos.

Sabe, Marina, eu disse tudo isso

por que através de situações

cotidianas podemosdescobrir

talentos que implicam na escolha

de uma profissão!

Depois de tudo isso,

o que voce escolheu

finalmente?

Eu escolhi um curso que tivesse de

aprender algo que me motivasse e

aprender língua estrangeira, dentre

outras coisasque acho interessante.

Acabei optando por Secretariado.

E voce acha que valeu

a pena passar por

tudo isso?

Lógico Marina, passar no vestibular para

mim não foi apenas uma realização de

um sonho, mas a certeza de que através

do conhecimento eu possa desempenhar

ações que signifiquem desenvolvimento

pessoal e para mim e para os outros.

Que legal!

Então, depois de tudo isso posso

concluir que meu percurso foi entre

várias profissões até chegar a

universidade.

Gostei Luci. E depois de

toda essa conversa, vou

dizer uma coisa... O que?

Acho que sempre vou consultar

minha personal arquiteta-médica-

administradora-economista-

psicóloga-secretária.

HAHAHAHAHAHAH!

FIM

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Universidade Federal de Pernambuco 61

A engenharia da vidaMaurício Francisco de Oliveira, nascido em Guarulhos, São Paulo, fi lho de Pedro Fran-

cisco de Oliveira e Maria José Pereira da Silva, irmão de Mônica Maria de Oliveira e Murilo Francisco de Oliveira. Como muitos jovens de origem popular, viveu muitas difi culdades para conseguir ingressar numa universidade pública.

Quando tinha 15 dias de vida, contraiu pneumonia e fi cou internado por vários dias no hospital. Sua mãe tinha que ir amamentá-lo todos os dias e, por isso, passava o dia no hospital, muitas vezes não tinha sequer o dinheiro do almoço, pois o que tinha só dava para a condução, uma vez que o hospital fi cava longe de sua casa. A pneumonia era recorrente em sua vida, chegando a, num prazo de cinco anos, contrair a doença cinco vezes. A família de Maurício morava numa região de indústrias poluentes o que explica a existência de pro-blemas respiratórios.

Por falta de dinheiro, só veio a freqüentar uma sala de aula aos sete anos, na Escola Estadual de Primeiro Grau do Sítio São José, onde começou a cursar a primeira série. Nesse ano, o Governo do Estado implementou um programa para os alunos de primeira e segunda séries permanecerem na escola por um período integral. Maurício logo se destacou como um dos melhores alunos da sala. Foi o primeiro a começar a ler e a escrever. Na segunda série, continuou a se destacar. Era muito querido pelos professores e direção da escola por causa de seu jeito espontâneo e do desempenho escolar.

No bairro onde morava, tinha muitos colegas e brincava muito. Os fi lhos da sua madri-nha e um vizinho seu eram como se fossem seus próprios irmãos. A memória de Mauricio é povoada pelos fi ns de semanas em que todos se reuniam para ouvir músicas, ir ao rio, ao campo de futebol ver os jogos locais, sem contar com as festas da igreja, festas juninas e as festas de fi m de ano, que eram diversão só. Os churrascos que a empresa onde seu pai trabalhava oferecia eram ocasiões para diversão e prazer. E as “farofadas” que os moradores organizavam nas praias do litoral de São Paulo eram hilárias. Por serem as praias distantes, todos iam juntos, o que era sinônimo de diversão garantida. O que também o marcou foi sua festa de 9º aniversário, que, apesar de simples, foi maravilhosa porque foi comemoração e despedida do estado.

Seus pais resolveram mudar-se para Recife, ele não gostou da idéia, não queria deixar os colegas e nem trocar de escola, uma vez que tinha grande paixão por ela. Mas não adiantou, era voto vencido e a família veio, mesmo contrariando-o.

Chegando a Recife, perceberam que a vida não seria fácil. Seu pai, desempregado, acabou por se tornar comerciante. Com nove anos, Maurício teve que começar a trabalhar vendendo picolé, doces e salgadinhos para poder comprar suas roupas, pois seus pais não mais tinham condições de vestir a ele e a seus irmãos. O que ganhavam mal dava para alimentação.

Começou a cursar a terceira série na Escola Caio Pereira, localizada no Alto José Bo-nifácio, Casa Amarela, bairro no qual até hoje mora. Como era aluno novato, só conseguiu

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62 Caminhadas de universitários de origem popular

vaga na sala de alunos veteranos, cujas idades variavam de treze a vinte anos, e ele tinha apenas nove. Para Maurício, foi muito difícil, se sentia isolado porque ainda era criança e seus colegas, por já serem adolescentes, o ignoravam.

Na quarta série, continuou na sala dos alunos veteranos, mas dessa vez tinha alunos de sua idade e ele também já estava acostumado com os veteranos. Trabalhava pela manhã e a tarde ia para a escola.

Da quinta à oitava série do ensino fundamental (antigo ginásio), muitos riam dele, inclusive seus amigos, por muitos motivos e, sobretudo, por não ter roupas, uma vez que só as comprava duas vezes por ano, no Natal e no São João. A escassez de dinheiro era grande e isso o afetava; mesmo assim conseguia ter bom desempenho escolar.

Desejando um futuro escolar melhor, pensou em fazer o teste de seleção para ingres-sar no Centro de Formação Escolar Técnica de Pernambuco (CEFETE), mas julgava não estar preparado para realizar o teste, devido a sua precária formação. O sistema público de onde vinha era um dos maiores empecilhos para aquisição de conteúdos: então, resolveu não se inscrever. Decidiu sair da escola onde estudava, pois só oferecia o segundo grau à noite e, nesse horário, a qualidade do ensino era muito ruim. Através de uma prima, conseguiu uma vaga na Escola Sizenando Silveira, Instituto Estadual de Pernambuco.

Enganado, pensava que estava numa escola de alto nível, o que logo se revelou falso, pois os descasos dos governos sucessivamente conseguiram transformar a instituição em um ambiente educacional sem professores e sem infra-estrutura. Mesmo assim, e com difi cul-dades de locomoção devido à falta de dinheiro, conseguia manter-se ali e ainda ter um bom desempenho.

O índice de violência no seu bairro era muito alto, o que o obrigava a não buscar di-vertimentos longe de casa. Houve uma época em que se matava, na comunidade, de quatro a cinco pessoas por semana. Muitos deles eram seus amigos, que se envolviam com drogas e roubos.

Mas não foram apenas experiências ruins que ali viveu, quando aparecia um dinhei-rinho extra, ele e seus colegas iam ao cinema e ao teatro, o que era maravilhoso. Na época dos jogos escolares todos se uniam para torcer pela escola, era uma semana inteira de jogos, desde futebol, vôlei, handebol, basquete, dentre outros.

Quando estava cursando o terceiro ano conseguiu um emprego numa locadora de vídeo, que, apesar de cansativo por ser em tempo integral, lhe possibilitou conhecer muitas pessoas.

Com o fi nal do segundo grau, mais um ciclo de sua vida estava por se encerrar. Por não se achar preparado, não se inscreveu para o vestibular, apesar de ter conseguido uma boa nota no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e de ser considerado um dos melhores alunos da escola. Resolveu prestar vestibular somente no ano seguinte.

Sua saga para entrar na universidade começava naquela decisão. No começo do ano, matriculou-se no cursinho pré-vestibular oferecido pelo Colégio Neo Planos. Trabalhava de manhã em uma casa lotérica e à noite ia para a aula. O cansaço era geral, pois a carga de aula do cursinho era muito pesada, sem contar com o trabalho na lotérica. Acordava às seis da manhã e ia dormir às duas, todos os dias. No sábado, tinha que acordar ainda mais cedo, pois as aulas começavam às sete da manhã e iam até as dezoito horas. Aos domingos, a aula era de oito ao meio-dia.

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Universidade Federal de Pernambuco 63

Na metade do ano, pensou em desistir do curso, pois não estava mais conseguindo pagar as mensalidades. Então contou com a ajuda da sua irmã, que dava uma parte, e também decidiu assistir às aulas do sábado somente pela manhã e à tarde trabalhar na lotérica para ganhar extra. Isso o prejudicava na aquisição dos conteúdos, no entanto, era o único modo de se manter estudando.

Nessa época, indeciso entre Ciência da Computação e Engenharia Civil, optou por Ciência da Computação, na Universidade Federal de Pernambuco. Chega por fi m o grande dia do vestibular. Maurício estava tenso e apavorado; na hora da prova teve uma crise de ansiedade, o medo gerou a sensação de inutilidade de seus esforços; perdeu a concentração e se deu mal no primeiro dia de prova. Abatido pelo desastre do dia anterior, no segundo dia não teve ânimo e novamente “dançou”. Mesmo assim, conseguiu passar pela primeira fase, mas já não tinha nota sufi ciente que lhe garantisse aprovação na segunda fase.

No ano seguinte, Maurício resolveu estudar por conta própria, com o material do ano passado. Decidiu que prestaria vestibular para Engenharia Civil, pois tinha mais afi nidade pela área. No meio do ano, fez o concurso do Censo 2000 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística. Foi aprovado e começou a trabalhar, lotado para realizar a pesquisa em Nova Descoberta, onde pode constatar que existem pessoas mais pobres do que ele. As condições de algumas casas eram impróprias para moradia; geralmente em área de risco, desabamento, esgoto, violência, etc. Essa experiência alimentou seu desejo de ser engenheiro. Ali fez muitas amizades.

Chegava mais um fi nal de ano e o vestibular era inevitável. Dessa vez ele estava mais tranqüilo e preparado. Conseguiu 75% de desconto na inscrição, por fi m as coisas estavam dando certo. Terminadas as provas, veio a aprovação para o curso de Engenharia Civil e, fi nalmente, ele conseguiu entrar para a Universidade Federal de Pernambuco.

Antes de começarem as aulas, devido ao seu bom desempenho como recenseador, foi convocado pela Prefeitura da Cidade do Recife para realizar o cadastramento dos moradores do Recife, para que eles recebessem o Cartão SUS (Sistema Único de Saúde). Com esse cartão, as pessoas seriam atendidas em qualquer unidade médica de forma computadorizada, ou seja, os médicos teriam acesso ao histórico do paciente em toda e qualquer unidade do SUS.

Após esse trabalho, as aulas na universidade começaram e os problemas também. O horário de aulas do curso de Engenharia é integral, o que impede que o estudante trabalhe. A coordenação do curso só libera o estudante para estágio a partir do término do quarto período, após Ciclo Geral do curso. Isso quer dizer que Maurício fi cou sem emprego, chegou até a passar no concurso da Prefeitura da Cidade do Recife para ser um ASA (Agente de Saúde Ambiental), mas não assumiu o cargo devido ao choque de horário.

Ficou por dois anos sem renda alguma. Seus pais não tinham condições de mantê-lo na universidade. O socorro veio dos irmãos, que o ajudavam com dinheiro para fotocópias e lanches.

Seu rendimento acadêmico, devido às difi culdades, foi baixo, pois a biblioteca não dispunha de exemplares de livros sufi cientes para todos os alunos, tinha-se que cadastrar numa fi la de espera e, na maioria das vezes, quando fi nalmente tinha acesso ao livro, a prova já havia ocorrido. Mesmo assim não foi reprovado em nenhuma disciplina do Básico, mesmo sendo o departamento de Engenharia o que mais reprova alunos dentro da UFPE.

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Quando estava no fi nal do quinto período, a situação fi nanceira de Maurício piorou a tal ponto de não conseguir pagar as passagens. Pensou seriamente em trancar o semestre para poder trabalhar e levantar o dinheiro. Então seus irmãos foram tábua de salvação.

No sexto período, conseguiu uma bolsa de iniciação científi ca pelo CNPq e, a partir daí, manteve suas despesas com bolsas e estágios, o que lhe facilitou a vida. Realizou pesquisas sobre a reação álcali-agregado4 em concretos, tema hoje muito discutido no Recife, devido a alguns edifícios apresentarem esse problema. Paralelamente, deu início a outro trabalho que consiste em transformar rejeitos de uma indústria de papel em material de construção.

Para obter mais conhecimentos sobre a reação álcali-agregado, realizou um estágio de um mês em FURNAS CENTRAIS ELÉTRICAS S.A., localizada em Goiânia-GO, empresa que é referência nacional sobre o tema. Lá, Maurício esteve com os melhores profi ssionais do assunto, visitou os melhores laboratórios do Brasil, que realizam os ensaios necessários para a detecção da reação, aumentando assim seus conhecimentos. Ficou hospedado na Casa do Estudante da Universidade Católica de Goiás, onde foi bem recebido e fez muitas amizades, visitou algumas cidades do interior de Goiás e também passou um fi m de semana em Brasília-DF, visitando todos os pontos turísticos da cidade. Como podem ver, foi uma viagem muito rica. Hoje é voluntário dessa experiência.

No início de 2005, passou a ser bolsista do Conexões de Saberes, projeto do qual participam 25 bolsistas em Pernambuco, todos oriundos de comunidades de baixa renda e que tenham estudado em escola pública. O projeto visa estabelecer diálogos entre as comu-nidades populares e a universidade. Atualmente, atua na Região Metropolitana do Recife: no Morro da Conceição, com o Projeto Crescendo no Morro; em Peixinhos, com o Projeto Peixarte; em Casa Amarela, no Centro de Comunicação Social da Juventude; na Iputinga, com o Projeto Habitacional Dom Helder Câmara; no Monteiro, com a Inclusão Digital na Escola Estadual Silva Jardim e, em Chico Mendes, com o Micro-Crédito Habitacional e Produtivo, do qual faz parte com outros colegas.

O projeto em Chico Mendes tem por objetivo oferecer micro-crédito aos moradores para que possam realizar pequenas melhorias em suas casas. Os bolsistas do Conexões, além de terem participado da pesquisa que teve por objetivo traçar o perfi l socioeconômico da região, também irão ajudar aos moradores elaborando projetos arquitetônicos, urbanísticos e construtivos. Maurício acredita que poderá co ntribuir com a sociedade através de seus conhecimentos obtidos na universidade e isso o deixa feliz.

Apesar de todas as difi culdades, felizmente está chegando ao término do curso. Quando se graduar, pretende trabalhar na sua área e também tem por objetivo fazer mestrado, dando assim continuidade aos seus conhecimentos.

Maurício Francisco de OliveiraEngenharia Civil

4 A reação álcali-agregrado consiste na reação entre os minerais reativos presentes em alguns tipos de brita e os álcalis, que estão presentes no cimento, provocando a expansão do concreto e assim compro-metendo a toda a estrutura.

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Projeto familiar como porta para a vidaDez de março de 1979, eis o dia do meu nascimento, sendo registrado com o nome de

Maurício Alves Paes, na cidade de Campo Alegre de Lourdes, Bahia.Até os nove anos de idade, vivi na referida cidade com meus pais e meus cinco irmãos,

sendo quatro homens e uma mulher. Campo Alegre é uma cidade de, aproximadamente, trinta mil habitantes, localizada no Norte da Bahia; lá reside a grande maioria dos meus familiares: avó, tios, primos, etc. Vivem ainda hoje, basicamente, da agricultura familiar.

Meu pai, assim como os demais familiares, era agricultor. Em meados da década de 60 e aos dezoito anos, foi para São Paulo em busca de melhores condições de vida, sonho do imaginário nordestino. Até conseguiu melhorar fi nanceiramente, mas esbarrou num em-pecilho decisivo para o progresso de qualquer cidadão, o aprendizado escolar. Estagnou-se como operário médio, pois sabia apenas ler e escrever, o que não lhe possibilitava ascensão dentro das empresas. Após dez anos, resolveu voltar à sua cidade; ali conheceu minha mãe, também de família de agricultores, e casaram-se. Construíram a família, cinco fi lhos homens e uma fi lha adotada.

O sustento da família vinha da agricultura e de um pequeno comércio de artigos do-mésticos, mas meus pais tinham o sonho de um futuro diferente para os fi lhos no que se refere aos estudos. Foi a partir desse sonho que eu e meus irmãos conseguimos chegar a uma universidade. Tudo o que meus pais faziam tinha como objetivo nos proporcionar melhores condições de estudo e foi por esse motivo que, em fevereiro de 1988, quando eu estava prestes a completar nove anos, meus pais resolveram mudar para Petrolina, Pernambuco.

Tenho uma memória viva desse acontecimento, meu pai reuniu toda a família num quartinho que fi cava no fundo do quintal da nossa casa e nos comunicou sobre a mudança, queria saber nossa opinião. Meus dois irmãos mais velhos já cursavam o segundo grau em outras cidades e o terceiro estava em vias de seguir o mesmo caminho. Nossa cidade só tinha o magistério. A saída do terceiro fi lho traria um custo muito elevado, a única solução seria morarmos em Petrolina, pois era a cidade mais próxima e com boas escolas. Além disso, era, na época, uma cidade promissora, que poderia oferecer as condições que desejávamos naquele momento. Todos concordaram com a idéia. Recordo-me que um dos meus irmãos disse que eu não concordaria, pois não poderia jogar bola na rua como fazia em Campo Alegre. Para contrariedade dele, fi quei extremamente feliz com aquela notícia, estava certo que daria um jeito de continuar fazendo o que mais gostava, jogar futebol.

Durante esses nove anos em que morei em Campo Alegre, aprendi a gostar do simples, tinha contato permanente com a natureza, com os vizinhos e com meus parentes. Sempre que podia ia para o sítio do meu avô; foram passeios inesquecíveis: andava a cavalo, tomava banho de barreiro, saboreava a típica comida do interior: ia caçar e tirar mel de abelha na mata com meus primos, entre outras peripécias. Nessa época, já infl uenciado por meus irmãos, jogava futebol todos os dias e participava das mais diversas brincadeiras na pracinha da igreja, ati-vidades essas que só poderia vivenciada depois de cumprir as obrigações escolares.

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Chegou o dia da nossa mudança para Petrolina, todos com saudade daquela vida pacata que estávamos deixando, porém esperançosos no futuro que estava por vir. Depois de uma inesquecível noite de viagem, trazendo conosco toda a mudança em um caminhão, chegamos a Petrolina. Uma bela manhã ensolarada, tudo o que eu via era novo. Tantos carros, vários ônibus, imensas praças, edifícios, viadutos, largas avenidas; de imediato apaixonei-me pela cidade.

Meu pai providenciou a matrícula de todos os fi lhos, dando continuidade ao sonho. Logo nas primeiras semanas de aula, fi z boas amizades, que perduram até hoje. Passei dois anos nessa primeira escola, concluindo a quarta série com boas notas. Todos os dias meu pai levava-me e trazia da escola; certo dia, ele demorou e resolvi ir para casa sozinho, por pouco não fui surrado. Isso já mostrava um traço de auto-sufi ciência a minha personalidade. Sempre fi z o que desejava, mesmo sabendo que poderia fi car de castigo ou até mesmo apanhar. No entanto, foi com essa característica que fui ganhando a confi ança de meus pais para ajudar no dia-a-dia. Desde os dez anos, ajudava-os no comércio, fazia compras nos supermercados e resolvia problemas burocráticos, como pagar contas e ir ao banco.

Iniciou-se a década de 90, que é marcada por conquistas e muitas difi culdades. Meu pai teve que vender suas posses em Campo Alegre, para nos manter em Petrolina. Vendeu as terras, casa de comércio e até mesmo a nossa morada. Algumas pessoas falaram-lhe que estava fazendo uma enorme besteira e que ia perder tudo que construiu com muito trabalho e difi culdade; porém, ele não hesitou, sabia o que estava fazendo e tinha confi ança na sua família, sendo minha mãe seu principal incentivo e apoio.

Por volta de 1993, meus quatro irmãos mais velhos já estudavam em universidades fe-derais, depois de terem passado por períodos de extrema dedicação e difi culdades para serem aprovados. Três irmãos estudavam na Paraíba e um em Petrolina. Isso reduziu ainda mais o orçamento familiar, o comércio já não era sufi ciente para cobrir todas as despesas. Então, minha mãe começou a dedicar-se à costura e em pouco tempo, o que era complemento passou a ser o principal sustento da família. Foi um momento delicado para nós, pois meu irmão que estudava em Petrolina foi o único que conseguiu conciliar a faculdade com o trabalho, ajudando fi nanceiramente aos outros a concluírem seus respectivos cursos. Esse compromisso mútuo entre os irmãos foi um dos grandes ensinamentos que nossos pais nos deram e foi por isso que conseguimos superar essa fase.

Na época, eu estava em plena adolescência e tinha por obrigação ajudar meus pais a superar tudo aquilo e ao mesmo tempo desfrutar aqueles que foram os melhores anos de minha vida. Fazia de tudo um pouco, auxiliava meu pai no comércio e a minha mãe no acabamento das costuras, conciliando com os estudos e toda sorte de divertimentos.

Sempre fui uma pessoa de ótimos amigos, com os quais participava de festas, passeios e, principalmente, do meu querido futebol, que sempre foi minha diversão preferida. Jogava futebol quase todos os dias, o que me deu oportunidade de estudar nas melhores escolas da cidade, pois recebi bolsa de estudo para frequentá-las e jogar futebol pelas mesmas. Esse incentivo me veio no momento certo, pois nessa época já pensava em ser médico e para isso tinha que ter boa formação para concorrer a uma vaga na universidade. Eu estava na oitava série e meus pais não tinham condições fi nanceiras para que eu permanecesse na escola particular devido às altas despesas com meus irmãos. Com essa ajuda, consegui concluir o ensino médio e dar início a uma nova fase na minha vida, que era enfrentar o tão temido vestibular.

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Universidade Federal de Pernambuco 67

Desde a infância sonhava em ser médico; com o passar dos anos fui fortalecendo ainda mais essa idéia. Certa vez, acometido de uma bronquite, tive que ser internado por dez dias em um hospital, me apaixonei, não mais queria sair de lá, só voltei para casa por força de chantagens. Estava decidido, iria ser médico e aquele ambiente era o que queria para minha vida.

Talvez fosse muita ambição de minha parte, vir de uma família simples, não tendo ne-nhum parente com nível superior e conseguir tal feito. Poderia parecer impossível, no entanto, eu tinha o exemplo dos meus irmãos e o apoio de toda família, que alimentaram meu desejo, incentivando-me a ir em busca do meu sonho: ser aprovado em Medicina, numa Universidade Federal. Enfrentei aquela que foi a maior difi culdade de minha vida e, talvez por isso, um dos maiores aprendizados. Para atingir tal feito, foram necessários quatro inesquecíveis anos e uma carga de treze vestibulares.

Quando terminei o ensino médio, fui morar em Brasília com meu irmão mais velho, Regivalther, formado em Ciências da Computação. Ele custeou minhas despesas com cursinho pré-vestibular e livros, juntamente com os outros dois, Reginaldo, formado em Biologia, e Rizonaldo, em Engenharia Elétrica. No meu último ano de tentativa, tive o apoio fundamental do quarto irmão, Ronilton, que se formou em Direito e na época foi meu principal incentivador. O apoio fi nanceiro, juntamente com o apoio psicológico e as orações dos meus pais contribu-íram decisivamente para aquela que seria uma conquista de todos, a minha aprovação.

O processo de aprendizagem foi difícil e, nos dois primeiros anos de tentativas, não tinha conhecimento sufi ciente para ser aprovado. A cada reprovação, cresciam os comentários de alguns que eu não iria conseguir. Porém, contrário a tais, eu tinha convicção de que estava no caminho certo. Certo momento, pensei em fazer concursos e depois voltar a Medicina, esse foi um momento chave para minha aprovação, pois pensava que meus irmãos iriam concordar comigo, mas eles foram unânimes e enfáticos: minha única obrigação era estudar para ser aprovado no vestibular e iria conseguir.

Relembraram-me que nossos pais jamais interferiram ou opinaram na opção que cada fi lho escolhesse como profi ssão, tanto que cada um fez o curso de livre vontade, nas mais diversas áreas, mas convicto de que era o que desejava.

Nessa época, meus pais já dependiam fi nanceiramente de meus irmãos, que também custeavam as minhas despesas. Foi muito onerosa a minha aprovação, pois como disse foram quatro anos de dedicação e treze vestibulares, sendo seis na UnB, três na UFBA, dois na UFPB, um na UFC e, fi nalmente, na UFPE, onde fui aprovado em dezembro de 2000. Por coincidência, um dia após o casamento de meu irmão mais velho, que reuniu toda a família. Foi o maior momento de alegria já vivido por mim até então, eu via em todos a felicidade e a sensação de uma vitória coletiva.

Em janeiro de 2001, cheguei a Recife pela primeira vez, para efetivar a matrícula na UFPE, já que as provas do vestibular tinham sido realizadas em Petrolina. Mas tive que passar praticamente todo o ano de espera e ansiedade até iniciarem as aulas, uma vez que tinha sido aprovado para a segunda entrada. Quando estava prestes a começar, em agosto, a universidade aderiu à greve, sendo meu ingresso como estudante universitário prorrogado para janeiro de 2002.

Não tinha nenhum conhecido na cidade, tão pouco conhecia a cidade, mas isso não importava naquele momento, pois estava onde sempre desejei, uma faculdade de Medicina. Passei dois anos morando em um simples pensionato e depois consegui uma vaga na casa do estudante universitário da UFPE, onde estou até hoje.

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O sonho delineado por meus pais ainda não se efetivou completamente, pois minha irmã ainda não ingressou na universidade. Depois de um período de negligência com a escola, fi nalmente ela concluiu o ensino médio e está na mesma luta pela qual passamos, é só uma questão de tempo e persistência.

Em 2003, encontrei a pessoa que viria completar a minha felicidade de viver. Tivemos um ano de relacionamento maravilhoso, após o qual noivamos e nos casamos. Meu segundo sonho depois de aprovado em Medicina era ter alguém a quem amar e ser amado, e que juntos pudéssemos construir uma família com os valores que aprendemos das nossas.

Tenho ao meu lado uma esposa indescritível e com um passado semelhante ao meu, o que nos ajudou no relacionamento, pois as afi nidades são fundamentais na construção de uma família. A que temos juntos, considero digna e abençoada. Um dos nossos maiores sonhos já nos foi agraciado, ter fi lhos: Maria Júlia, que hoje tem sete meses, nos enche de felicidade a cada dia, é nosso maior incentivo para nos formarmos e dar continuidade a essa linda história de vida.

Maurício Alves PaesMedicina

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Memórias de uma vidaAs pessoas começam a estudar desde pequeninos e comigo não foi diferente. Comecei

a estudar por volta dos três anos de idade, numa escola que fi cava no bairro onde eu morava, no Cordeiro. Ainda tenho lembranças daquela época. Depois fomos morar em São Luís, Ma-ranhão, pois meu pai foi trabalhar junto com o meu tio na loja dele e, então, continuei meus estudos por lá. Depois, fomos morar em Maceió, Alagoas, também por questões de trabalho e permanecemos por lá durante três anos. Logo após retornamos para o Recife.

Meus pais não nasceram em berço de ouro, mas no decorrer da vida trabalharam muito para dar a nós, seus fi lhos, o que eles não puderam ter. Com a ajuda de Deus e com seus esforços, conseguiram nos educar. Somos uma família composta por dez fi lhos, seis homens e quatro mulheres. Eu e a minha irmã somos as caçulas, somos gêmeas. O meu irmão mais velho tem quarenta e dois anos. Minha mãe sempre nos fala que, quando ele era adolescente, ela sentava e estudava matemática com ele, para que pudesse ser aprovado na escola militar, na qual passou e hoje é major do exército.

Os outros irmãos terminaram o ensino médio e têm cursos técnicos, sempre procuraram se atualizar, exceto minha irmã gêmea, que ainda está fazendo cursinho para fazer o vestibular para Enfermagem. A perspectiva de vida traçada por nossos pais nos faz lutar para conseguir-mos o melhor para nós, não esquecendo os valores morais que nos foram ensinados.

Em Recife, fi z o ensino fundamental I, numa escola particular. Depois, meu pai teve que voltar para São Luís, mas a família fi cou em Recife. Nossa situação fi nanceira era difícil e tivemos que nos adaptar à nova situação para melhorá-la. No decorrer de três anos, fomos morar no bairro da Torre, numa comunidade popular, totalmente diferente da nossa e que só conhecíamos de ouvir falar. Penso que, às vezes, Deus nos coloca em determinados lugares para que possamos aprender e avaliar determinados valores e modos de vida que muitas ve-zes não conhecemos, revelando-nos como a falta de informação gera tanto desequilíbrio na vida de famílias pobres. Foi uma experiência gratifi cante. Pude fazer amizades com pessoas especiais e também refl etir sobre a realidade da comunidade na qual morávamos. Comecei a ter consciência de como é importante se fazer políticas públicas dentro dessas comunidades, em diversos âmbitos.

No decorrer dos anos, fui para o ensino fundamental II, em outra escola, pois a mensa-lidade de onde estudava aumentava praticamente todo mês. Então, fui estudar em uma que pudesse atender às condições fi nanceiras de meus pais.

Até o fi nal do meu ensino fundamental, estudei em escola particular, mas quando estava para entrar no ensino médio tive que estudar em escola pública. Minha irmã e eu fomos nos inscrever para fazermos o ensino médio, mas não havia vaga para todos os alunos. Então, foi feito um sorteio no qual fui contemplada. A diretora pediu que eu sorteasse outra pessoa e, quando o fi z, a escolhida foi minha irmã; a coincidência foi mágica e maravilhosa.

Nessa mesma época, minha irmã e eu tínhamos feito o concurso para as escolas técnicas do Recife, tanto a federal como a estadual. O que aconteceu foi que eu passei tanto na federal

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como na estadual e minha irmã não passou. Então, fui cancelar minha matrícula na escola estadual e minha irmã foi estudar numa escola particular recém-inaugurada na Avenida Ca-xangá. Já que eu havia optado pela escola técnica federal, fi cava mais fácil para meus pais pagarem uma escola que tivesse uma mensalidade compatível com as condições fi nanceiras. No ano seguinte, minha irmã também passou na Escola Técnica Federal.

Meu ensino médio não foi algo voltado para o vestibular, como acontece na maioria das escolas. Era uma turma que estava vivendo uma nova experiência de ensino. Fomos a primeira turma do ensino médio, implantada na escola técnica federal de Pernambuco; no regime anterior, os alunos tinham que cursar o ensino médio em paralelo com o técnico e nossa turma não trabalharia mais com esse modelo. Eu não tinha noção da importância de se fazer um vestibular, já que na escola técnica não se tinha essa preocupação. Apesar de alguns professores não terem completado todo o conteúdo programado e apesar das greves, o meu ensino médio foi bom.

Meu sonho desde criança é fazer Medicina, daí, quando terminei o ensino médio, fi z vestibular para essa carreira, mas não passei. No ano seguinte, entrei em um cursinho e fi z vestibular para Odontologia e Enfermagem, novamente não passei. Então, procurei o cursi-nho de Biologia, de Fernando Beltrão, que tinha relevância na área e que selecionava alunos oriundos de escolas públicas, concorrendo a uma vaga no mesmo; fi z a prova e passei. Dado esse passo, me dediquei a estudar para o vestibular.

No fi nal desse cursinho, fi quei muito cansada, tive estafa, aí me ausentei no último mês para descansar antes das provas do vestibular. Graças a Deus, consegui fazer um bom vestibular, tanto na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como na Universidade de Pernambuco (UPE). Fiquei em décimo segundo lugar na primeira fase da federal com nota sete no curso de Enfermagem, isso me ajudou na classifi cação fi nal para obter uma boa média. Também passei na UPE, com 6,38 no curso de Enfermagem.

O sonho de cursar Medicina é algo que ainda me guia, mas aprendi a gostar de Enfer-magem e pretendo terminar o curso. O amplo papel do profi ssional de Enfermagem, que, na maioria das vezes, não é reconhecido, me fez gostar do curso, mesmo que, em comparação à classe médica, seja marginalizado.

Optei pela UFPE pelo fato de morar perto da universidade, por perceber que teria me-nos gastos estudando perto de casa, e também pesou o fato de a UFPE ser uma das melhores universidades do país. Foi assim que entrei na UFPE. Hoje estou cursando o quarto período e sou integrante do projeto Conexões de Saberes, onde atuo no Morro da Conceição, com aulas de Biologia para a comunidade.

Paula Taciana Soares da RochaEnfermagem

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Foi um tempo que ao tempo não pertenceRosto meio oval, sorriso largo e bonito, lábios bonitos e grossos, olhos puxados gran-

des e nariz um pouco grosso. O conjunto do rosto bonito de se ver. Meu nome é Renilda e, ao procurar na Internet, encontrei que é um afrancesamento do nome Renato, que signifi ca renascido, com o sufi xo Hilda, que signifi ca donzela de batalha.

Meus pais são naturais de Glória de Goitá, Pernambuco. Minha mãe, de descendência indígena, era analfabeta e meu pai só fez até a quarta série, ambos eram feirantes com banca de verduras e comidas. Trabalhavam em Recife na feira do bairro do Arruda, mas residiam em Vitória de Santo Antão. Tenho muitas recordações dessas viagens, pois sempre vinha a Recife com eles, por ser muito pequena e não ter com quem fi car. Vivi o que a geografi a chama de movimento pendular, com a diferença de que, comigo, as idas e vindas aconteciam toda semana.

Meus pais tiveram nove fi lhos e eu sou a última dos nove. Nasci em Recife e logo após fui para Vitória de Santo Antão, Zona da Mata Centro a 55km de distância da Região Me-tropolitana. Lá permaneci até os treze anos de idade, quando, já sem minha mãe desde 1981, perdi também meu pai em 1987. Então, vim morar em Recife em outubro do mesmo ano.

Boa parte de meus irmãos só tem até a quarta série do ensino fundamental, com exceção de dois, minha irmã mais velha, Maria José, e Rogério. Ela terminou o segundo grau num projeto supletivo no bairro do Arruda, mas antes disso já era microempresária, pois é dona de uma pronta entrega, e Rogério está concluindo o ensino médio.

Tenho mais três irmãs, que só cursaram até a quarta série, são empregadas domésticas; atualmente, uma delas reside em Recife e as outras duas em São Paulo, uma delas já trabalhou como montadora. Meu irmão mais velho, que seguiu a profi ssão dos meus pais, desde 1982, já não está mais entre nós; Rogério, meu segundo irmão, é motorista de ônibus e transporte alternativo, e, por último, Severino é mestre de obras em Recife.

Minha infância foi muito boa, o quintal de nossa casa era, e ainda é, muito grande e nós brincávamos de tudo: de balançar; de esconde-esconde; de corre-pega; de fazer esteira com minha avó. Brincava também de boneca na calçada de casa; de barra bandeira; de sem esconder com minhas amigas de infância da minha rua, digo de minha rua porque, quando crianças, tínhamos mania de nos apropriarmos das coisas e podíamos fazer isso, na nossa ingenuidade.

Outro lugar que me marcou muito foi um sítio que pertencia a um namorado da minha irmã. Lá tinha cavalos, bodes, galinhas, um lago, pintinhos, e eu morria de medo dos pinti-nhos e dos gatos.

Nessa época, eu ainda não estava ofi cialmente na escola, quando comecei a estudar tinha oito anos e já sabia ler e escrever, pois meu pai havia me matriculado numa escolinha de bairro que tinha apenas uma salinha e no máximo uns 20 alunos, mas lá os alunos aprendiam a ler. Penso que aquela sala era para alunos que estavam em recuperação e eu estava me preparando para entrar na escola. Então, quando chegou o momento de ir para a Escola Professora Amélia

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Coelho, fi quei encantada, pois era enorme e tinha espaço para tudo: brincadeiras, quadra de esporte, lanchonete, sala de datilografi a, atividades de práticas comerciais.

Um fato muito marcante na minha vida escolar foi quando discordei da opinião da professora de religião, que se chamava Regina. Ela não gostou e deu-me um beliscão, eu prontamente dei outro nela e saí correndo e chorando da sala para falar com o diretor que se chamava Heron, hoje falecido. Disse-lhe que “se a professora fi zesse isso comigo novamente eu chamaria meu pai para dar um tiro na cara dela”. Eu tinha uns doze anos, cursava a quinta série e meu pai não possuía nenhum revólver. Acho que funcionou, pois ela não fez mais nada comigo, a turma me achava o máximo e me respeitava, por causa disso, porque tinham medo ou as duas coisas, não sei.

Fora esse episódio, adorava a escola, aliás, acredito que não fi quei traumatizada porque revidei. O ambiente era bom, limpo, eu gostava, sobretudo, do que acontecia antes das aulas; todos os alunos rezavam e eu, em voz baixa, orava, mas não fazia o sinal da cruz por ser da igreja Batista. Contávamos o Hino Nacional todo santo dia; o que odiava era ter que participar do desfi le de 7 de setembro, pois tinha que fi car o dia inteiro no sol causticante.

As aulas eram boas, as de história abordavam toda a História do Brasil, com uma visão muito romântica e patriota, mas acredito que isso foi o que criou não só em mim, como também nos meus colegas o civismo e o amor à pátria. Só mais tarde no segundo grau é que o romantismo foi se desfazendo, o que não signifi ca que passei a desacreditar, mas sim a ver as coisas por outro ângulo, de forma objetiva e isso inclusive contribuiu para que eu tivesse a consciência critica da necessidade de construção de um país mais justo e igualitário para todos. Não que eu tenha a ilusão de mudar totalmente o mundo, mas acredito que podemos fazer algo de bom no espaço em que atuamos.

O ensino médio foi feito no Ginásio Pernambucano, em Recife. Esse colégio me despertou para o vestibular, pois até então essa possibilidade era muito distante. Continuei a estudar e, no terceiro ano, comecei a fazer um cursinho que não era pago. Quando os profes-sores faltavam, os alunos davam as aulas. Estávamos em época de eleição e o professor que organizou o cursinho era candidato a vereador.

Chegando o dia da inscrição no vestibular, pedi isenção da taxa, consegui 50% do valor, me inscrevi para Pedagogia e passei. A felicidade foi imensa, mas o problema só estava começando. Tive que voltar para o interior, por não ter como me manter na capital e muito menos no curso superior. Ao dar início aos estudos, conheci uma amiga que me falou da casa do estudante da Universidade Federal de Pernambuco, então vislumbrei uma possibilidade de continuar e concluir o curso.

Ao fazer seleção para moradia, fui aprovada pelos critérios estabelecidos que eram o de ter a renda até 3 salários mínimos e não residir na região metropolitana. Passado o sufoco de onde morar, o que vestir, comer, tirar cópias e comprar livros, entrei no Núcleo de Pesquisa em Educação Popular e Educação de Jovens e Adultos. Esse núcleo de pesquisa, localizado no Centro de Educação da UFPE, tinha como objetivo trabalhar com os movimentos sociais, MST (Movimento dos Sem Terra), através do PRONERA (Programa Nacional de Educação a Reforma Agrária), e tinha como parceiros o INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária), a FETAPE (Federação dos Trabalhadores de Pernambuco), Sindicatos Rurais e Programa Alfabetização Solidária, com fi nanciamento do Governo Federal.

Essas atividades de alfabetização e escolarização das comunidades populares urbanas e rurais revelaram-me um traço marcante dos ranços da educação brasileira. Nesse trabalho,

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comecei a participar de um projeto de escolarização dos funcionários da UFPE, alfabetizando 40 funcionários, durante dois anos. Foi estágio e a universidade não permite a participação dos professores por um período mais longo. Infelizmente, o projeto está em vias de fi nalização, mesmo com uma demanda ainda tão grande.

Identifi quei-me com o projeto pela minha formação em Pedagogia e por me inquietar com o dilema da universidade, que, sendo um centro de excelência acadêmica, ainda tem funcionários sem saber ler e escrever.

Esse encontro com os movimentos sociais despertou em mim a consciência da dívida histórica que o Brasil tem com as camadas populares, com os sem teto, os sem-casa, sem-saúde, com a população indígena da qual faço parte, enfi m, os sem-nada.

Os encontros possibilitaram também, através de intercâmbio com os municípios, resgatar minhas raízes indígenas, pois casei com uma pessoa da comunidade Xukuru de Cimbres, em Pesqueira-PE, que fi ca a 204km da capital pernambucana.

Dentre esses acontecimentos, uma das coisas boas que me aconteceu foi o projeto Conexões de Saberes, onde me reconheci e me identifi quei pela proposta de fazer com que as classes populares possam estudar e se manter na universidade. Por isso, me sinto tão integrada, porque faço parte da classe popular e luto desde sempre, não apenas para cursar universidade, mas para construção de um mundo mais digno e rico para todos.

Esta é parte da minha história, pois se fosse mencionar toda a história da minha vida não haveria espaço para os demais colegas e como o espaço é do nós, e nós estamos ten-tando a construção de uma vida que não seja apenas Vida Severina, aprendemos a dividir o mundo.

Renilda Maria da Costa CabralPedagogia

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Da vida que a experiência encantaChamo-me Rosivaldo Vieira Paulino, nasci no dia 8 de novembro de 1972, na cidade de

Olho D’água das Flores, alto sertão alagoano. Filho de Osvaldo José Paulino, encanador da Companhia de Abastecimento de Água e Saneamento do Estado de Alagoas, e Cícera Vieira Paulino, feirante e dona de casa. Seis meses após o meu nascimento, meus pais foram morar em Arapiraca, cidade localizada no agreste.

Aos sete anos, entrei na primeira série na escola pública de 1º grau Manoel Lúcio da Silva, graças à iniciativa de meus pais, que, apesar do baixo grau de instrução, tinham consciência da necessidade da educação.

Minha infância foi ativa e cheia de aventuras: caça, pesca, ciclismo e bicicross foram os principais esportes praticados por mim. Gostava de estudar e tinha facilidade em aprender, principalmente disciplinas como matemática e ciência, mas não gostava de língua portuguesa, talvez devido à forma de ensino da época ou de determinados professores. Apesar disso, perdi alguns anos de estudo, justamente por excesso de liberdade. Ainda na infância desenvolvi alguns ofícios, não porque precisasse trabalhar, mas por curiosidade e prazer: feirante, mecânica de automóveis e de motocicleta foram alguns deles.

Aos treze anos, estava na quinta série do primeiro grau, agora na Escola Senador Rui Palmeira, onde cursei até a sétima série. Aos dezesseis, sem muita experiência de vida, fui a São Paulo. Lá, passei a trabalhar como offi ce boy em uma imobiliária, seis meses depois estava desenvolvendo o mesmo ofício em uma empresa de informática. Um ano após, era auxiliar de manutenção de computadores.

Nesse período, não esqueci a escola, passei a estudar em um colégio municipal, mas após seis meses fui obrigado a deixá-lo, pois a violência dentro da escola era gritante. Sentia-me refém das gangs formadas por alunos da instituição, que trafi cavam e comercializavam objetos roubados dentro da própria escola, em espaços como banheiro e outros lugares de difícil acesso. Tentei ao máximo manter-me distante desse mundo, mas foi impossível. Um dia, ao fi nal da aula, estavam todos à minha espera na saída, me esquivei e corri, corri muito; quando fui buscar meu histórico escolar, o diretor me perguntou por que eu havia abandonado o colégio, respondi: por que o senhor deixa bandido estudar?

Aos dezoito anos, me alistei no serviço militar e, após vários exames de conhecimento, fui enviado a uma unidade do exército, especializada em manutenção de equipamentos militares no geral. Deixei o trabalho e passei a morar no quartel, virei “laranjeira”, como se dizia por lá. No parque, como era chamado, aprendi muito, especialmente valores distorcidos. Um ano após, deixei a força, com “uma mão na frente e outra atrás”. Sem dinheiro, passei a trabalhar no mer-cado informal, na feira de carro do Anhembi, vendendo água mineral, refrigerante e cerveja.

Alguns meses após, estava de volta a Arapiraca, depois de ter passado quase três anos na terra da garoa. Refl etindo sobre a minha vida, vi que havia perdido muito tempo e pouco cons-truído. Retomei meus estudos e, em breve, estava cursando o primeiro ano científi co; foi quando conheci o professor Nivaldo, excelente matemático, que, ao fi nal do ano letivo, me orientou a

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cursar os dois últimos anos no Colégio José Quintella Cavalcanti. Valeu a pena, tive um ensino público de qualidade, com professores pós-graduados e muita vontade de ensinar. Foi o único colégio que ouvi falar que se vê o conteúdo das disciplinas por completo. Lá aprendi ciência de fato, o que me levou a não ter difi culdades nas disciplinas básicas dos cursos técnicos.

Nessa época, conheci uma garota e passei a namorá-la. Com ela, casei-me e tivemos um fi lho, o que tornou mais difícil continuar a estudar. Mas já tinha decidido fazer um curso supe-rior, mesmo com as difi culdades da situação. Trabalhando como feirante nos fi nais de semana e estudando em média oito horas por dia, me preparei e fi z o meu primeiro vestibular ainda no terceiro ano científi co, mas não tive êxito. Avaliando-me, notei que ainda havia defi ciência, era a velha língua portuguesa e a estrangeira que outrora tinha negligenciado.

Fora do colégio, passei a estudar sem auxílio de professores. No fi nal do ano, tentei novamente vestibular para Medicina em duas instituições: Universidade Federal de Alagoas e Universidade Federal de Sergipe. Em Alagoas, fui desclassifi cado na primeira fase, já em Sergipe, passei na primeira etapa e, na segunda, obtive um resultado excelente nas disciplinas de peso, sendo mais uma vez derrotado em língua estrangeira, e por pouco. No ano seguinte, comecei fazer um curso de espanhol oferecido pela prefeitura de Arapiraca. Ao fi nal do ano, e já com outras idéias, fi z vestibular para Química Industrial na Universidade Federal de Pernambuco, fui aprovado.

Não sei por que não fi quei muito feliz, apesar de gostar muito de química. No dia 26 de fevereiro de 2000, cheguei defi nitivamente em Recife, vindo a me instalar provisoriamente na casa do estudante, como hóspede, enquanto o resultado da seleção para novos residentes saía. O resultado negativo me deixou indignado, pois muitos dos que conseguiram aprovação eram estudantes que tinham poder aquisitivo.

Fiquei morando clandestinamente na residência universitária, o que me possibilitou observar determinados acontecimentos e comportamentos antiéticos por parte dos integrantes. Por isso, passaram a me repudiar e quiseram me despejar, uma vez que eu não concordava com tais comportamentos. Mas o tiro saiu pela culatra, ao invés disso deram-me uma bolsa e melhores condições de morada até a próxima seleção, na qual fui aprovado; por quê?

Quanto à vida acadêmica, não tive muitos problemas com disciplinas. Mas observei que, do número de alunos reprovados no básico dos cursos técnicos, que em geral é de 70 %, a grande maioria tem pouco conhecimento teórico em disciplinas como matemática e física, mesmo sendo, na maioria dos casos, alunos oriundos da rede privada. Alguns colegas de curso chegaram a dizer-me que me admiravam por eu ser proveniente de escola pública, não ter curso técnico na área química e, mesmo assim, me sair bem no curso. Isso me deu entusiasmo para seguir.

Durante esse período, consegui várias bolsas, dentre elas, as de iniciação tecnológica, monitoria de Física, manutenção acadêmica e de colaboração em programas sociais como o Conexões de Saberes; passei também por vários laboratórios que me possibilitaram grande aprendizado.

A maior difi culdade, no entanto, foi conseguir vagas de estágio no mercado de trabalho. Na academia, ouvimos que devemos nos qualifi car, fazer cursos de extensão, dentre outras coisas. Mas ingressar no mercado é muito mais que isso, é ser prudente e malicioso como as serpentes, pois quem está selecionando um estagiário não é o gerente, que teoricamente quer o melhor para a empresa, e sim aquele que vai ter o aluno como subalterno, e que, muitas vezes, não quer alguém qualifi cado ao seu lado para ameaçá-lo profi ssionalmente.

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Dentre todos esses obstáculos que tive de superar, nenhum foi maior que a distância. Suportar a saudade de minha mulher e fi lhos. Filhos, pois durante esse período que aqui estou e entre várias idas e vindas, mais uma bênção de Deus eu recebi. Para ajudar a superar, ocu-pei meu tempo ao máximo entre as atividades acadêmicas, bolsas e aulas particulares, sendo esta a minha principal fonte de renda. Através destas consegui comprar casa e computador e manter as necessidades básicas da minha família.

Estou com as disciplinas obrigatórias concluídas desde setembro de 2004 e nem uma oportunidade real de trabalho surgiu até o momento. Por esse motivo, iniciei meu relatório de estágio em um laboratório da universidade, o que é irônico. Após quatro anos de dedicação aos estudos e formação de um currículo, não consegui entrar no mercado de trabalho, tal qual outros colegas do Departamento. O pior de tudo é saber que estágio curricular é uma disciplina obrigatória, que, sem a sua conclusão, o aluno está impedido de se formar e, mesmo assim, a instituição não se preocupa com isso.

No momento, estou estudando para prestar concurso público na minha área de formação. Espero que, como no vestibular, tenha êxito através do meu esforço.

Esta é a minha história, feita de experiências fortes e frágeis, umas boas, outras nem tanto, mas o importante é que aprendi muito durante esse intervalo que Deus está me conce-dendo. Agora é tocar a bola, concluir o curso e construir novos horizontes, continuando a tecer páginas que talvez não venham a ser escritas, como agora, mas partindo do principio vivo de que cada experiência vale pelo que é, que cada momento tem seu próprio estatuto de valor e cada instante é fugidio e irrepetível, então; o que de fato importa é o engajamento no viver.

Rosivaldo Vieira PaulinoQuímica Industrial

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Pelas estradas de minha vidaChamo-me Saula da Silva Fernandes e minha história começou no dia sete de julho de

1981, no Recife. Aos seis anos, fui para a escola (pré-escolar) e até hoje lembro de tia Dulce, minha primeira professora. Meu sonho era ter um tênis, sonho que realizei na quinta série, quando meu pai me deu. O tênis era branco e com bordas cor de rosa, recordo ainda todos os detalhes dele.

Na minha primeira escola, tive muitas amigas, algumas continuam até hoje, outras se perde-ram com o tempo: Diana, Juscelene, Marineide, Karina. Diana, não mais a vi; Juscelene fi nge não me ver, Marineide terminou os estudos, teve fi lho e trabalha como escrava numa loja de roupas, ainda nos vemos; Karina, passamos muitos anos sem nos falar, voltamos a amizade em um retiro que houve na nossa igreja. Hoje está na universidade, faz História e, nesse momento, já deve ter terminado o seu memorial.

Quando criança, meu pai vivia cortando meus cabelos curtinhos, pois tinha o sangue doce para piolhos. Essa fase durou até a quinta série quando mudei de escola. Quando fui para a escola Carlos de Lima, onde passei toda a minha adolescência, fi z amizades que perduram até hoje, como Juliana, que considero uma irmã, devido ao tempo, dedicação e paciência que tem comigo.

Até aos dezesseis anos, meu prazer era brincar de bonecas, confeccionava roupinhas e ven-dia para outras meninas. Por esse motivo, minha casa estava sempre cheia de crianças da minha idade. Todo tempo livre era dedicado a brincadeiras e às bonecas, até esquecia de comer, minha mãe tinha que me ligar ao chão, senão esquecia do mundo. Foi nessa época que conheci minha segunda melhor amiga e minha freguesa nessa arte, Pricila. Um tempo depois, conheci Anne, a mais nova amiga, que chegou a participar de uma parte das brincadeiras.

Aos doze anos, comecei o catecismo, queria fazer primeira comunhão. Tive dois anos de preparação, mas não fi z, pois não tinha dinheiro para alugar o vestido. Vi minhas amigas arrumadas na igreja, chorei muito. No entanto, não desisti, tentei novamente e deu certo. Minha tia conseguiu o vestido e as luvas emprestados, e eu, o sapato e a vela. Fiz, ao mesmo tempo, batismo e primeira comunhão. Meu pai, como não tem muitas amizades, não se interessou em me batizar, tive que escolher os padrinhos, o que ele não concorda até hoje.

Após a Eucaristia, estudei Crisma e também dei aula de catecismo para crianças na minha escola por um ano. Fiz parte da igreja do Morro da Conceição, participei de grupos de dança, peças de teatro do grupo jovem. Queria sempre participar de todas as atividades, só não consegui fazer parte do grupo de acólitos no Morro, mas fui para a Igreja do bairro Vasco da Gama e consegui, mas não gostei da experiência e desisti.

No segundo ano do segundo grau, deu a louca de fazer parte de um grupo cover das Spices Girls, me apresentei em uma festa no colégio e ainda hoje me pergunto como tive coragem de viver tal absurdo. Por falar em dança, participei de um grupo de forró estilizado; foram aulas boas, mas não tenho jeito para a coisa.

Sempre gostei de fazer cursos, foi o melhor modo que encontrei para sair de casa. No meu primeiro curso, de corte e costura, confeccionávamos as peças e, ao término, desfi lávamos ser-

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vindo de manequim, expondo assim as roupas à venda. Desfi lei na Universidade Federal Rural de Pernambuco; nessa época nem sabia o que era universidade.

Fiz curso de datilografi a na casa de dona Otília, uma senhora que morava sozinha; a casa dela dava arrepios e só tinha dois alunos, eu e outro. Depois que fi quei sua amiga, ela me pediu para passar suas roupas, pois já era idosa e não mais podia. Comecei a passar e ela me pagava três reais, que para época era muito dinheiro. O pior de tudo nem era passar as roupas, mas é que ela me deixava só na casa e eu morria de medo, acabei o curso e não pisei mais lá.

Fiz curso de tudo que é ofi cio: lembrançinhas de bebê, informática, espanhol, auxiliar de escritório, dentre outros. Este último coincide com a época do meu primeiro vestibular; o problema é que era muito longe, meia hora para ir e meia hora para voltar. No começo, faltei muito, mas, quando estava na metade, não faltei mais; a professora era maravilhosa, atenciosa, brincalhona e inteligente. Quando lhe contei que ia prestar vestibular para Direito, ela me apoiou e ainda me indicou um amigo advogado que ensina na Universidade Católica de Pernambuco, para me ajudar na decisão de seguir a carreira. Procurei-o e ele me recebeu muito bem e me ensinou muito. Prestei vestibular para Direito, mas não passei, então a vontade de ser advogada adormeceu.

Meu pai não me deixava sair na rua, era de casa para o colégio e do colégio para casa, meu fantástico itinerário. Só me deixava ir à igreja, o que justifi ca ter passado lá quase toda a adoles-cência. Meu pai, para consolo meu, fez uma escadinha que dava em cima da casinha do cachorro, dali eu podia ver a rua e minhas amigas brincando do outro lado.

Ganhei liberdade quando meu pai foi embora de casa. Ele envolveu-se com outra mulher e foi morar com ela. Foi um momento feliz e triste ao mesmo tempo, podia ir aonde quisesse, por outro lado nossa situação fi nanceira declinou muito. Minha mãe, além de lavar roupas, tinha que realizar outros trabalhos para podermos comer. A situação piorou quando ela foi demitida e fi camos dependentes de meu pai. Foram dias difíceis, mas logo apareceu um trabalho integral, que só lhe permitia vir em casa a cada oito dias.

Nesse período, se deu a morte do meu irmão de criação, que foi baleado no peito e teve hemorragia interna. Não havia nenhum adulto em casa, meu pai morando longe, minha mãe trabalhando longe e eu com meus três irmãos não sabíamos resolver nada. Foi uma experiência horrível. Os amigos dele socorreram-no, mas foi tarde, ele faleceu e eu fi quei muito sentida, pois não nos falávamos há anos.

Nessa época, eu estava no cursinho pré–vestibular do (GEMCO), no Morro da Conceição, onde moro, que funcionava nos fi nais de semana. Como não trabalhava, estudava o dia todo durante a semana.

No meu primeiro vestibular, consegui isenção total da taxa de inscrição e, como já falei, fi z para Direito, passei na primeira fase e ainda fi quei no remanejamento na segunda, mas não foi dessa vez. Na segunda tentativa, continuei estudando nos dias de semana, agora com um grupo, em uma casa que estava em construção e foi cedida por Anelena, uma das organizadoras do cursinho. Na metade desse mesmo ano (2000), me inscrevi em outro curso com aulas diárias, na Biblioteca Rafael de Menezes. Foi bom, mas o curso não foi adiante, pois o dono era candidato a deputado e perdeu a eleição, então tive que voltar a estudar com o grupo.

Organizamos-nos, fi zemos pedágio para conseguir o dinheiro da inscrição do próximo ves-tibular, fi zemos festas, mas não foi sufi ciente. No período da inscrição, julho de 2000, fui adotada. Anelena conseguiu um patrocinador que pagou a inscrição de “um fera”, no caso, eu. Fui aprovada no curso de Licenciatura em Geografi a.

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Se entrar na universidade foi difícil, continuar foi outra luta que tive que travar contra a falta de dinheiro. Foi difi cílimo no começo, pois não tinha dinheiro sufi ciente para ir às aulas. Anelena e sua mãe, Helena Lopes, também organizadora do cursinho, ajudaram-me com vale transporte.

No curso de Geografi a, conheci inúmeros lugares tanto dentro do estado quanto fora. Co-nheci o Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro e Brasília, estes dois últimos quando fazia parte de um maracatu e tocava alfaia e ganzá. Fui convidada para tocar em Brasília, num Congresso. Como ainda não tinha viajado para tão longe, meus pais foram resistentes, mas, ao fi nal, acabaram aceitando, eu freqüentava na surdina as reuniões do grupo que ia viajar e eles, diante de minha persistência, aceitaram. Quando surgiu a viagem para o Rio de Janeiro, minha mãe, que já tinha se acostumado com a idéia na primeira, nem fez mais objeções, as viagens foram maravilhosas. Algum tempo depois, devido a ocupações na universidade e outros dissabores, abandonei o maracatu.

No terceiro período de estudo na universidade, através novamente de Ana Helena, consegui um estágio na EMTU (Empresa Municipal de Transporte Urbano). Nesse momento era o que mais precisava, o estágio era de apenas seis meses, fi quei dez e foi de grande ajuda. O estágio acabou em março de 2003 e eu, mais uma vez, fi quei desempregada. Em outubro de 2003 consegui outro estágio, dessa vez na minha área, pelo CIEE, e nele permaneci até março de 2005.

Em 2005, estava vindo do estágio à noite quando uma conhecida me chamou e perguntou se eu ainda estava na universidade, então ela disse que as inscrições para um projeto que seria para alunos que moravam na comunidade e que freqüentavam a universidade estavam abertas, que eu falasse com um representante do bairro e ele me informaria melhor. No outro dia, chamei Karina e fomos falar com Jairo, ele nos deu o folder do projeto e nos desejou boa sorte. Inscrevemo-nos, fomos selecionadas e hoje faço parte do Conexões de Saberes.

Minha vida mudou um pouco, recentemente mudei de religião, pois a minha já não mais me satisfazia espiritualmente. E também houve mudanças familiares, meu pai voltou para casa, e isso implica problemas, mas também alegrias.

Não sei se é relevante o que irei contar agora, mas o farei assim mesmo. Certo dia, estava conversando com uma conhecida e ela me perguntou por que eu estava tão nervosa e ansiosa, isso foi no mês de julho ou agosto. Então, ela disse que eu não me preocupasse, pois em outubro iria conhecer alguém que seria defi nitivo em minha vida. Não dei bola, achei que era invenção, mas torcia para chegar o mês de outubro. No mês esperado, nada aconteceu, no seguinte um rapaz que eu conhecia há muito, se aproximou de mim e estava só, pensei: será ele? Então começamos a namorar, em principio não gostava dele, gostava de um rapaz do meu estágio, chamado Riverson, que fi ngia não me notar. Como pensava não ter chances, desisti e investi no outro, mas a cada dia me sentia estranha naquele relacionamento. Então, terminamos.

Nesse mesmo mês, Riverson, que tinha passado por uma virada e estava de olho em mim, começou a se aproximar; fi quei embevecida, hoje estamos juntos e, bem, não sei por quanto tempo, mas não importa. O que de fato vale é a vida. Se minha amiga adivinhou o que ia acontecer, não sei, só sei que gostei do desfecho.

Agradeço a muitas pessoas que me ajudaram até hoje, pois, enfi m, a vida não passa de uma mútua cooperação que sustenta e anima os homens, como raízes e folhas, mas agradeço essencial-mente a minha mãe, pela grandeza e pela beleza de vida e companhia que me deu.

Saula da Silva FernandesGeografia

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A jumenta e o açude Nasci em Pilar, uma das cidades mais antigas do estado da Paraíba, que fi cou famosa

nos romances do paraibano José Lins do Rego; terra de Senhor de Engenho, cortada no meio pelo rio Paraíba.

Registrado com nome de santo, José Sebastião; José, defensor da família e Sebastião, guerreiro, valente e mártir. Meu pai, Severino, pedreiro, um exemplo de homem. Minha mãe chama-se Josefa, nunca aprendeu a ler nem escrever.

Sou fi lho de Pilar, nascido na Serventia do Cruzeiro. Trago meu lugar na alma e, por isso, sei o que diz Casimiro de Abreu que “o homem é o seu lugar”. Minha casa, além da do seu Rui, um fazendeiro da região, era a única na vizinhança que tinha televisão e, por isso, estava sempre lotada de vizinhos, sobretudo em horário de novelas. Era divertido, mas minha mãe detestava essa invasão, gerando pequenos confl itos.

Sou o único fi lho homem de uma família de 13 fi lhos, dos quais apenas três viveram. Meu pai viajou muito cedo para o Rio de Janeiro, deixou a família e a agricultura, passan-do a trabalhar longe. Sempre quando voltava de viagem, trazia roupas novas para todos, e também passeávamos muito.

Minha primeira professora foi uma preta muito bonita chamada Zezé. Fui alfabetizado por ela e me sentia encantado. Depois, minha mãe me tirou dessa escola, que era particular, e me colocou em uma municipal. Eu gostava de estudar, mas o melhor era a merenda, um leite vermelho, com sabor de chiclete, muito gostoso. Lembro-me que no primeiro dia de aula, quando tocou para o recreio, fui para casa e minha mãe fi cou muito chateada por causa disso, mas depois me acostumei. Lá eu tinha amigos, professores bons e algumas meninas belas para animar os olhos.

Meus tios tinham sítios onde eu sempre ia brincar com meus primos, tomar banho de açude, andar de jumento e comer frutas no mato. Minha infância foi muito boa.

Certa vez, estava tomando banho de rio com meu primo e só saíamos da água para comer frutas dali mesmo. Por volta das onze da manhã, resolvemos ir para casa. Sol a pi-que, terra escaldante. Meu primo monta na jumenta e me diz que não posso ir junto, pois o animal estava cansado. Atracamos-nos e brigamos feio, rola pra cá, rola pra lá, vai em cima, vai embaixo e, nesse vai e vem, nem percebemos que rolávamos num matagal de urtiga branca. Foi um desastre total; na brincadeira, acabamos com o corpo encaroçado de coceira e ardendo em fogo, daí a entrar no rio como forma de solução foi um passo. Sendo que a urtiga é traiçoeira, quando se entra n’água, depois de ser tocado por ela, a sensação é de que o corpo está pegando fogo. Coça, arde, dói e tudo o mais que se possa imaginar. Voltamos montados na jumenta, mas o corpo pedia socorro. Foram dias tomando banho de salmoura.

Um dos momentos marcantes da minha vida foi quando meu pai e minha mãe se casaram no civil. Foi uma festa muito bonita. Nessa época, nos mudávamos muito, devido à profi ssão de meu pai, no entanto isso não destruía o clima de união que havia entre nós.

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Quando eu tinha oito anos, nos mudamos para o estado de Alagoas, morávamos na cidade de Marechal Deodoro, uma cidade muito bonita. Meu pai trabalhava num con-vento e minha mãe aprendeu a fazer rendas. Foi lá que tentei aprender música, mas não consegui porque o curso era de cinco anos e, após dois anos de estudo, nos mudamos novamente para a Paraíba, onde passamos dois anos; depois fomos morar em Pernambuco, na cidade de Abreu e Lima.

Tempos difíceis aqueles, morávamos no bairro Fosfato, que na verdade era uma invasão muito perigosa. Eu não gostava de lá, tinha vergonha do lugar e, além disso, passávamos por graves difi culdades fi nanceiras.

Foi nessa época que comecei a trabalhar, tinha aproximadamente doze anos. Vendia picolé, cocada e doces caseiros. Gostava de vender essas coisas para ajudar minha mãe, gostava de colecionar gibis e depois vendê-los no Recife, num sebo que existia na Rua do Sol, próximo ao cinema Trianon, e, com isso, ajudava nas despesas de casa. Ajudava sem que meu pai soubesse, pois ele era orgulhoso e pensava que o dinheiro que ganhava dava para o sustento da família. Sei que ele sabia, mas acho que fazia de conta que não.

O que eu realmente gostava em Abreu e Lima era da escola e da feira. Desde os onze anos, era eu quem fazia a feira da minha casa, era trabalhoso, mas eu gostava de administrar o dinheiro da família, era muita confi ança que meus pais tinham em mim. Meu pai sempre me ensinou a andar sozinho! Sempre, para todos os lugares, para o centro do Recife, viajava sozinho para Paraíba e Alagoas. Isso foi muito bom porque eu aprendia a me “virar”.

Meus pais conseguiram comprar um terreno em Olinda, mas não tinham dinheiro para construir a casa e eu vivia sonhando em deixar aquele bairro com fama de favela e local de bandido. Na escola, dizia a todos que morava em outro bairro, tal era a minha vergonha.

Finalmente, meu pai conseguiu vender nossa casa que já estava com placa de venda há três anos. Mudamos-nos para Olinda, bairro Cidade Tabajara, nunca fi z uma mudança tão satisfeito, a única coisa que lamentei era que na escola onde eu estudava havia uma menina chamada Sônia que eu adorava, os rapazes a chamavam de Sônia “belas pernas”, ela parecia com Sônia Braga, uma atriz da televisão.

Assim se faz um HomemEm Olinda, a nossa casa era precária, não tinha piso, nem banheiro, laje era recen-

te e, quando chovia, caía mais água dentro de casa do que na rua. A casa tinha grades de ferro nas entradas, mas não tinha portas, era um frio terrível nas noites de inverno. Também não tinha reboco, mas me senti feliz assim mesmo, porque o bairro era próximo ao centro. Eu estudava pela manhã em Abreu e Lima, na Escola Polivalente, e à tarde trabalhava carregando água para as casas das pessoas, isso porque o nosso bairro ainda não tinha água encanada.

Algum tempo depois, comecei a cavar cacimba junto com um amigo, assim ganhava mais dinheiro, mas o trabalho era muito perigoso e as cacimbas chegavam a ter até 24 metros de profundidade. À noite, fazia cursos de datilografi a, auxiliar de escritório, almoxarifado etc. Trabalho, estudo, enfado, dinheiro e cadê a namorada? E cadê tempo e coragem? Mi-nha rotina era a de um cidadão de camada popular que se preocupa em construir um futuro mais próspero; o trabalho me mantinha longe das drogas, da violência e da malandragem, nesse sentido foi um ganho.

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Um caso curioso é que, na escola estadual onde estudava, a turma inteira não merendava, porque muitos alunos cujos pais tinham dinheiro compravam seus lanches e nós fi cávamos com vergonha de comer a merenda, que inclusive era muito boa. Aí, eu tinha que trabalhar não apenas para ajudar em casa, mas também para lanchar na escola.

Como andava muito com o meu pai, fui aprendendo sua profi ssão; ele não gostava. Certa vez, pedi-lhe para comprar uma colher de pedreiro e uma escala, ele se recusou, dizia que aquilo não era uma boa profi ssão. Sempre quis que eu estudasse e defi nisse minha vida a partir disso.

Com a adolescência, me tornei extremamente vaidoso e cuidadoso com o vestir. Isso exigia dinheiro, então passei a trabalhar mais. Meu pai dizia-me que eu iria trabalhar no es-critório da construtora, mas isso não aconteceu, então resolvi trabalhar de pedreiro. Comecei trabalhando no bairro e fi quei conhecido profi ssionalmente, nessa época estava no ensino médio, estudava à noite no Almirante Soares Dutra, fazia técnico contábil. Trabalhar e estudar, essa era a minha rotina; como lazer, ia para o cinema, uma das atividades que mais gosto.

Nunca gostei de andar em grupos e isso difi cultou meus relacionamentos afetivos; em compensação, me aproximou da fi losofi a, da interioridade. Era extremamente tímido; um dia resolvi ir para um prostíbulo do bairro após um longo confl ito existencial, pois sempre fui dado à poesia e à leitura e, por isso, não aceitava a idéia de pagar uma mulher para fazer sexo. Imagine o que aconteceu, grave desastre. Mas era assim que se fazia um homem.

Superado esse rito de passagem, conquistei a primeira namorada aos vinte anos. Es-tava, enfi m, apaixonado, gostava da moça, mas após dois anos e meio de namoro acabei o relacionamento porque ela não gostava de estudar.

Quatro anos depois, já com vinte e seis anos, seis anos depois de concluído o ensino médio, consegui juntar dinheiro e acreditar no sonho: fui estudar novamente. Era um cursi-nho pré-vestibular cuja mensalidade comia metade do que eu ganhava na construção civil. Trabalhava de dia e estudava de noite. Tudo novamente.

Ao fi nal do cursinho, fi z vestibular na Universidade Federal de Pernambuco, para o curso de Ciências Biológicas, e na Universidade de Pernambuco, para Biologia, passei nas duas, foi um dos momentos mais felizes de minha vida. Eu não acreditava naquilo, havia passado nas melhores universidades do país. Desse fato resultou meu primeiro protesto, me recusei terminantemente a raspar a cabeça.

Hoje, sou casado, tenho uma fi lha linda de um ano e, após trancar o curso por dois semestres e ter várias reprovações por falta, continuo minha luta para me formar, porque educador eu já sou e também um vencedor, mas, mais do que isso, sou um homem que se fez herói ao romper as barreiras da exclusão, opressão, racismo, classismos... e outras desgraças. Dou graças a Deus por isso.

José Sebastião Ferreira Ciências Biológicas

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Memorial

PARTE I. Escola Maternal, Jardim Infantil e AlfabetizaçãoNo primeiro ano de idade, minha irmã e eu (sendo ela a primeira e mais velha que eu

apenas dez meses) entramos para a escola maternal. A entrada para escola quando éramos muito crianças contribuiu para a compreensão futura da sua importância, se tornando mesmo um hábito.

Estudamos juntos durante um ano. Minha irmã foi colocada no Jardim Infantil e eu permaneci na Escola Maternal. No ano seguinte, ela foi para a Alfabetização e eu para o Jardim de Infância, onde permaneci por mais um ano.

A entrada para a escola, juntos, e a posterior separação foram importantes para a criação de um referencial escolar na família, onde a meta escolar para mim era seguir os passos da minha irmã, que estava sempre dois degraus à frente.

Estudamos na mesma escola durante seis anos. Chamava-se Instituto Batista, pertencia à Igreja Batista do Ibura, o que contribuiu para a nossa formação moral, de caráter religioso.

PARTE II. Escola Primária (1ª à 4ª série)O primeiro ano do ensino primário foi meu último ano no Instituto Batista. Ao fi m daquele

ano, nos mudamos para a Zona da Mata de Alagoas, para o município de Colônia de Leopoldina, por força da separação dos meus pais. O município distante foi escolhido por ser a terra natal da minha mãe, lá ela ainda tinha parentes e uma casa própria da família, que poderiam nos ajudar fi nanceiramente.

Em séries e escolas diferentes, eu já tinha mais ou menos que traçar meu próprio caminho. Fui matriculado na Escola Estadual Aristeu de Andrade, onde tive difi culdades para me adaptar.

Não permaneci muito tempo com minha mãe e voltei à casa do meu pai. Meu pai valorizava o estudo, apesar de não ter curso superior. Terminei o ensino primário numa escola pública muni-cipal do Recife, Engenheiro Guilherme Diniz, e, em seguida, nos mudamos e mudei novamente de escola para cursar a 5ª série.

PARTE III – Ginásio (5ª à 8ª série)Daí para frente, a instabilidade foi grande. Volto para Alagoas e divido a 5ª série entre

Escola Menino Jesus, em Olinda, e Escola Estadual Joaquim Francisco, em Alagoas. Ao fi m desse ano, minha mãe retorna ao Recife. Curso a 6ª série na extinta escola Bandeirante, hoje chamada Preferencial, no bairro do IPSEP, no Recife, seguido da 7ª e 8ª séries na escola João Paulo I, no bairro do Ibura, também em Recife.

Nessa última, adquiri a preferência pelas disciplinas na área das ciências humanas. A simpatia começa na Escola Bandeirante, por necessidade de aprimoramento e graças a con-tribuição de um professor de história chamado Pedro.

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As constantes mudanças e a necessidade de adaptação com pedagogias, metodologias e, até mesmo, cronogramas diferentes, me fi zeram desenvolver uma capacidade de assimi-lação rápida e um certo grau de independência do cronograma para a aprendizagem; até mesmo por necessidade de compensação do programa, isso me fez desenvolver certo grau de autodidatismo.

PARTE IV. Ensino MédioJá não podia mais estudar em escola particular, o que só o havia conseguido em alguns

momentos por ser bolsista da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), na qual meu pai era funcionário. A bolsa durava apenas o ensino fundamental.

O primeiro ano foi cursado na tradicional Escola Estadual Santos Dumont, em Boa Viagem, no Recife. O segundo e terceiro na Escola Estadual Murilo Braga, no bairro de Cavaleiro em Jaboatão, pois não tínhamos condições fi nanceiras para custear o transporte até o bairro de Boa Viagem. Nessa última, o ensino foi muito defasado.

PARTE V. Vestibular e ingresso na UniversidadeNa juventude, conheci um padre católico holandês chamado Humberto Plumen, que

era sociólogo e foi professor do Instituto de Teologia do Recife (ITER), fechado pelo Vati-cano por pressão das forças conservadoras. Sua atuação social na comunidade me chamou a atenção. Aproximando-me dele, descobri que fora ligado a Dom Helder Câmara e teve importante atuação política contra a ditadura militar. Todos esses aspectos me atraíram para o que ele fazia.

Outra fi gura muito infl uente e conhecida pelos que lutaram pela redemocratização do país fora Edival Nunes Cajá, preso político e sociólogo. Conheci sua história através de mi-nha mãe, que, impressionada com as manifestações pela libertação do então estudante Cajá, que presenciara na juventude, repetia por diversas vezes a sua história. Conheci Cajá como presidente do Centro Cultural Manoel Lisboa – CCML, ao qual me associei e me aproximei das idéias marxistas através da Biblioteca do CCML Amaro Luis de Carvalho (nome do líder operário fundador do Partido Comunista Revolucionário – PCR), com vasto acervo literário que inclui romances, teatros, documentos e produções científi cas.

Essas duas fi guras, somadas à vontade de estudar o marxismo e discutir os problemas da sociedade, me fi zeram optar por prestar vestibular para o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco. Para surpresa de alguns, fui aprovado para a entrada o segundo semestre de 2003.

Thiago de Oliveira SantosCiências Sociais

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Um filho de Valdenor e Maria EugêniaMeu nome é Valdeanio Alves Leite, sou fi lho de Valdenor Alves Leandro e Maria

Eugênia Leite Leandro. A família é composta, além de mim, por seis irmãos, sendo duas mulheres e quatro homens. Nasci e me criei no município de Cedro, Pernambuco, localizado no Sertão Central do estado. A fonte de renda principal da região é a agricultura.

Os estudos e o trabalho vieram muito cedo na minha vida. Quando criança, vendia fru-tas, doces, picolés e outras bugigangas na rua. Sou oriundo de família de agricultores e cedo comecei a trabalhar na agricultura, com meus pais e meus irmãos, para ajudar no sustento da família. Cresci trabalhando e estudando e resumo nos parcos versos que se seguem meu amor por minha terra.

Cidade onde nasci

Posso está no Rio de JaneiroEm São Paulo ou Piauí.Mas nunca vou esquecerA cidade onde nasci.

Cedro é o nome delaEssa não vou esquecerUma cidade tão bela Ela, que me viu nascer.

Moram lá minha família,Meus parentes e meus amigos E mesmo que esteja longeEles sempre estão comigo.

Em Cedro nasci e me crieiAprendi viver e amarSe na vida me fi eiFoi porque ela é meu lar.

Nela comecei a vida Nela quero terminarEsta vida que é sofridaEsta vida que é meu mar.

Vida vivida e envolvida.

Vida que muito me dei

Navego dentro da lida

Nesses dias que criei.

No tecido desta vida

Trabalhei e estudei

Dei a mim melhores dias

Nesta vida que lutei.

Estudar é um sinal

De quem a vida está amando

Sendo-se forte afi nal

Vai a vida prosperando.

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Em Cedro, estudei em escolas públicas. No ano de 1994, já no segundo grau, fi z primeiro magistério na Escola Professor Manoel Joaquim Leite e o científi co, em Sal-gueiro, na Escola Aula Sampaio Parente Muniz, a 54km de minha cidade, chegava em casa à meia-noite. No ano seguinte, como só tinha turma do segundo magistério à noite, optei por terminar o magistério, primeiro para, depois, concluir o científi co.

Em 1997, voltei para Salgueiro, fi z ali um curso básico de Informática e, por conta dele, consegui um emprego de cargo comissionado na Câmara Municipal de Vereadores de Cedro, na função de assessor administrativo; aprendi muito.

Em 1998, fui terminar o científi co no Crato, Ceará, a 80km de distância, ia e vol-tava todos os dias. O ensino lá era um pouco melhor do que o de Salgueiro. Em 1999, saí da Câmara Municipal de Cedro e logo fui chamado para trabalhar no sindicato dos trabalhadores rurais da cidade, fi cando ali por um semestre.

Na época em que trabalhava na Câmara, tive alguns contatos com deputados da região, que conseguiram um trabalho para mim no Recife, então fi z as malas e fui embora. Trabalhei na I DIRES – Primeira Diretoria Regional de Saúde, na função de Auxiliar Administrativo. Mas, antes de sair de Cedro, tinha feito um concurso para o IBGE local e o resultado só saiu 45 dias depois, quando eu já estava trabalhando e estudando em Recife. Passei em primeiro lugar.

Quando cheguei em Recife, no dia 5 de maio de 2000, não tinha onde fi car, até conseguir uma vaga na Casa do Estudante do Nordeste – CEN. Então, me inscrevi para concorrer a uma vaga de sócio na Casa do Estudante de Pernambuco – CEP, pois os sócios recebiam ticket refeição, o que me ajudaria muito.

Além do emprego, consegui uma bolsa no cursinho pré-vestibular Especial. Mas não dava para me manter; então, quando saiu o resultado do concurso do IBGE, aliado à saudade da família, não pensei duas vezes, abandonei tudo e voltei para minha cidade: dancei, pois trabalhava como burro e ganhava como mendigo, só durou dois meses.

Fiz vestibular para Medicina, em Barbalha, pela Universidade Federal do Ceará, e, em Enfermagem, no Crato, pela Universidade Regional do Cariri, não passei em nenhum dos dois. Então, em fevereiro de 2001, voltei para o Recife e comecei um cursinho pré-vestibular com bolsa no pré-universidade Contato.

Nessa época, como já era sócio da CEP (Casa do Estudante de Pernambuco), não tive difi culdade com alimentação e sim com moradia: só podia morar na CEP depois de completar um ano na condição de sócio externo. Por isso, morei um semestre na Casa do Estudante de Serrita, Pernambuco.

No primeiro ano de cursinho, a partir do segundo semestre trabalhei nos correios, na função de operador de triagem e transbordo (OTT), o que me prejudicou no vestibu-lar, pois não sobrava tempo para estudar. Passei somente na primeira fase do curso de bacharelado em Física na UFPE, estava inscrito também em Enfermagem na Universi-dade de Pernambuco – UPE. Preparei-me por mais um ano, até passar no vestibular de Química na UFPE.

Quando morava em Cedro, eu e meus irmãos fomos catequistas de Crisma e também lecionei várias vezes como professor substituto em algumas escolas. No inverno, sempre trabalhava na agricultura e, na seca, trabalhava fazendo cerca e vendendo coisas.

Tive também uns romances que me renderam alguns versos do tipo que agora relato.

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Estudante Apaixonado

Sou um estudante apaixonado

Vivo pensando em você

Fico sofrendo calado

Sem saber o que fazer.

De um lado vários livros

Do outro meu padecer

Seus cabelos cor de sol

Neste claro alvorecer

Nessa vida de amargura

Você me faz renascer

Seus olhos negros me olham

Deixando a vida crescer

O feitiço em mim chegou

Minha alma consumiu

Entre quatro paredes estou

Nesse mundo que se abriu

Prisioneiro da tua luz

Teu amor me ofuscou

Não tenho dia nem noite

Nessa vida que parou

Vem me iluminar o dia

Arrancar-me a solidão

Devolver-me a alegria

Na tormenta da paixão.

Teu sangue é fogo que queima

A arder-me o coração

O vermelho marca a vida

Faz cair na contra mão.

Hoje não falo nem durmo

Se não estás ao meu lado

Meu coração te respira

Sou estudante apaixonado.

Depois de passar dois anos estudando, morando na Casa do Estudante e vivendo toda sorte de difi culdades, fi nalmente fui aprovado no vestibular. Comecei a estudar em maio de 2003. Passei a morar na Casa do Estudante Universitário (CEU).

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No ano de 2004, concorri, junto com alguns amigos, ao diretório acadêmico das ciências exatas, área II, o maior DA da UFPE; representa vinte cursos, aproximadamente 2.500 alunos, ganhamos e passamos um ano trabalhando.

Nessa gestão, denominada de Atitude 2004/2005, realizamos várias atividades; uma delas foi o projeto de doação de livros cujo slogan era “Livros + Solidariedade = Cultura + Liberdade”. Com essa campanha, arrecadamos aproximadamente 10.000 livros, que foram doados para algumas escolas, para a Casa do Estudante e, a maioria, para o projeto Conexões de Saberes, do qual sou integrante. Nesse mesmo ano, entrei para a diretoria da empresa Multi Jr. Empreendimentos, da Casa do Estudante, posição que ocupo até hoje.

Outra atividade relevante dessa época é que eu e outros alunos formamos uma chapa, de nome CEU não é limite, para concorrer à diretoria da Casa do Estudante; fomos eleitos para a gestão 2005; até hoje, desenvolvo o trabalho de organização e cuidado político com o espaço público.

Ainda em 2004, participei de um projeto coordenado pelo professor dr. Antonio Carlos Pavão, o Interação Ciência e Educação: Geração de Novos Espaços de Educação para a Quí-mica. O objetivo geral era implantar um programa de formação permanente para professores e estudantes talentosos de baixa renda, através do desenvolvimento de atividades de pesquisa na área de Química. É um trabalho bom.

Em janeiro de 2005, fui selecionado para participar do Projeto Conexões de Saberes, onde desenvolvo atividades no Morro da Conceição, no pré-acadêmico popular, lecionando a disciplina de Química.

Portanto, estou na diretoria da Casa do Estudante Universitário da UFPE, na diretoria da empresa Multi Jr. Empreendimentos da CEU, no Projeto Conexões de Saberes e estou matriculado no sexto período do curso de Química da UFPE.

Como já foi mencionado, fui criado trabalhando e estudando. Tenho uma família grande que me ama e me dá força. Meus pais me ensinaram a ser honesto e incentivaram-me os estudos, mesmo com poucas condições e oportunidades. Lembro-me que estudávamos na madrugada, lembro ainda que ajudávamos na limpeza doméstica de casa como também no trabalho de minha mãe, que fazia serviços gerais em uma escola.

Antes de passar no vestibular, precisamente em 30 de julho de 2002, comecei a namorar uma garota que é bela, o nome dela é Geane Moura da Silva. Dessa data até agora, enfrentamos um grande obstáculo no nosso relacionamento: a distância e a freqüência em nos vermos. Ela mora em Cedro, a quase 600km do Recife, e por isso nos vemos poucas vezes por ano.

Posso me dizer uma pessoa feliz, sempre fui, e um dos motivos da minha alegria é que não tenho ambição, nem inimigos; desde que me conheço sempre amei e fui amado. Quando falo que não tenho ambição, não quero dizer que não tenho sonhos ou não luto por uma vida melhor, mas é que aprendi que a felicidade acontece na simplicidade. Não é algo que está no possuir, mas no viver, no sentir, no amar; o resto vem com trabalho, estudo, paciência e persistência.

Sei que estou só a caminho, mas enfi m a vida não passa disso, de um leve caminhar. Se o sucesso virá, não sei, mas por enquanto é tempo de plantar. Tenho como companheira a fé, pois como diz Ralph Waldo Emerson: “Nenhuma aptidão, nenhum auxílio, nenhum treinamento será capaz de compensar a falta de fé”.

Valdeanio Alves LeiteQuímica