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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO: imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo NATAL/RN 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA

WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA

UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO:

imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

NATAL/RN

2015

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WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA

UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO:

imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

Dissertação submetida à banca examinadora como

parte dos requisitos para a obtenção do título de

Mestre em Estudos da Linguagem, na área de

concentração Linguística Aplicada, da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA

DA PENHA CASADO ALVES

NATAL/RN

2015

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UFRN. Biblioteca Central Zila Mamede.

Catalogação da Publicação na Fonte.

Oliveira, William Brenno dos Santos.

Um coração que pulsa fora do corpo: imagens passionais nas cartas

de Frida Kahlo. / William Brenno dos Santos Oliveira. – Natal, RN, 2015.

150 f. : il.

Orientadora: Maria da Penha Casado Alves, Dr.ª

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação

em Estudos da Linguagem.

1. Kahlo, Frida – Imaginário – Dissertação. 2. Carta pessoal –

Dissertação. 3. Ethos Discursivo – Dissertação. I. Alves, Maria da Penha Casado.

II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/BCZM

CDU 159.954.4

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WILLIAM BRENNO DOS SANTOS OLIVEIRA

UM CORAÇÃO QUE PULSA FORA DO CORPO:

imagens passionais nas cartas de Frida Kahlo

Dissertação submetida à banca examinadora como

parte dos requisitos para a obtenção do título de

Mestre em Estudos da Linguagem, na área de

concentração Linguística Aplicada, da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

ORIENTADORA: PROFA. DRA. MARIA

DA PENHA CASADO ALVES

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA EM 18 DE JUNHO DE 2015

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (UFRN)

Orientadora

Prof. Dr. Pedro Farias Francelino (UFPB)

Examinador Externo

Prof. Dr. João Maria Paiva Palhano (UFRN)

Examinador Interno

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Para Frida Kahlo, que me ensinou a ver, com sensibilidade e paixão, o mundo

da vida e os outros que me constituem.

Para Maria da Penha Casado Alves, que me aceitou e acreditou em meu

potencial quando até eu mesmo duvidei, uma Frida contemporânea.

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Figura 1 – Desenho de Odyjackson Lopes

Fonte: Página de Odyjackson Lopes no Instagram1

1 Disponível em: <https://instagram.com/p/wnEeGssAcv/?taken-by=odyjackson> Acesso: 05 de mai. de

2015.

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, pelos livros que me deu e pelo exemplo de pessoa e profissional

da educação que é.

Aos meus irmãos, pela escuta cuidadosa de minhas reclamações, mesmo sem

entender o porquê.

A Frida Kahlo, por emprestar-se ao meu olhar exotópico de pesquisador.

A Penha, por orientar minhas relações dialógicas com Frida, com o mundo

científico e com o mundo da vida.

A Tânia Lima, por abrigo, comida, amizade, conselhos e por sempre me mandar

escrever.

A Maria das Graças Rodrigues (Graça), pelas inúmeras oportunidades.

A Henrique, por me ensinar cantilenas que nunca ouvira antes, por sempre

provocar o riso em mim.

A Palhano, por me ensinar que, para escrever uma dissertação, é preciso ter

disciplina e pela disponibilidade sincera de quem nunca duvidou de mim.

A Gilvando, por pegar em minhas mãos e me ajudar a treinar o olhar

perscrutador de um analista do discurso.

A Danielle de Paula, por olhar, escutar e falar com carinho e respeito de meu

trabalho, pelas ligações amigas e pelos abraços sinceros.

A Sandra, por ser professora, amiga, mãe, colega, parceira e uma mulher cheia

de passionalidade.

A Aline, Joaquim, Regina, Felipe e William (negão), por serem os melhores

parceiros de graduação que a vida poderia ter me dado.

A Diana, pelo belo resumo em espanhol e por partilhar de minha admiração por

Frida.

A Ágatha e Josse, por proferirem as palavras sinceras e produzirem os

acalantos singelos em momentos precisos.

A Ody, pelos traços valorativos que açambarcam a imagem que abre meu texto.

A Leandro, pelas discussões que atravessam as metáforas do meu dizer e do

meu devir.

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Aos meus alunos do IFRN da Zona Norte, por constituírem tudo aquilo que sou

hoje.

As minhas professoras de Língua Portuguesa da Escola Estadual Profa. Isabel

Ferreira, Dona Lourdes e Maria do Ó, por enxergarem algo em mim que a sociedade

equadorense nunca viu.

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E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La maílana nace”. Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu a suportarei. Como ela, em sua homenagem, Frida. Fragmento da crônica Frida kahlo, o martírio da beleza, de Caio Fernando Abreu

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RESUMO

Entre os anos 30 e 40 do século passado, o México viu surgir, das cinzas da

Revolução Mexicana, uma figura singular. Frida Kahlo é descrita pelo imaginário social

– em seus quadros, em suas fotografias – como uma mulher que marcou uma época e

que se tornou símbolo de lutas, e isso se estende até a contemporaneidade. Criou-se, em

volta da pintora mexicana, várias imagens sociais que eram delineadas no jogo

dialógico entre suas obras e seus interlocutores. Tomando como referência essas

assertivas, a pesquisa ora apresentada tomou como procedimento realizar uma análise

de seis cartas escritas por Frida para os seus interlocutores amados/amantes – três

homens com os quais ela se envolveu, afetivamente, durante períodos diferentes de sua

vida –, e, como objetivo, mapear os ethé construídos por ela em enunciados nos quais

ela “pinta” verbalmente uma imagem de si que se revela nas escolhas lexicais eleitas

para falar de amor, de traição, de amizade, de dor e de seu estar no mundo. Diante disso,

refinamos uma imagem estética e ideológica de Frida Kahlo que se recobre de

passionalidades distintas e de graus dialógicos diversos. Há, no recorte temporal e

axiológico que fizemos para esta pesquisa, uma mulher de natureza amante e que

transformou esse amor em mote para seus embates com interlocutores com quem se

envolveu afetivamente. A nossa análise encontra-se ancorada nas postulações teóricas

da Análise Dialógica do Discurso (ADD), que tem como teórico-base o filósofo russo

Mikhail Bakhtin (2003, 2009, 2013) – no que se refere ao estilo, principalmente –, e na

teoria enunciativa de Maingueneau (2008, 2005) e Charaudeau (2006) – no que se refere

ao ethos discursivo. Esta pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada e possui um

enfoque qualitativo-interpretativista.

Palavras-chave: Frida Kahlo. Carta Pessoal. Ethos Discursivo. Estilo.

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RESUMEN

Entre los años 30 y 40 del siglo pasado, México vio surgir de las cenizas de la

revolución mexicana, una figura singular. Frida Kahlo es descrita hasta la fecha de hoy,

por el imaginario social – en sus pinturas, en sus fotografías – como una mujer que ha

marcado una época y se ha convertido en un símbolo de luchas, y esto se extiende hasta

la contemporaneidad. Se ha creado en torno a la pintora mexicana, varias imágenes

sociales que se describen en el juego dialógico entre sus obras y sus interlocutores.

Teniendo por referencia estas afirmaciones, la investigación aquí presentada ha tomado

como procedimiento realizar un análisis de seis cartas escritas por Frida a sus

interlocutores amados/amantes – tres hombres con los que estuvo involucrada,

emocionalmente, durante diferentes períodos de su vida – y, como objetivo, hacer un

mapeo de los ethé construidos por ella en enunciados en los cuales ella "pinta"

verbalmente una imagen de sí misma que se revela en las opciones léxicas elegidas para

hablar de amor, de traición, de amistad, de dolor y de su estar en el mundo. Por lo tanto,

hemos refinado una imagen estética e ideológica de Frida Kahlo que se cubre de

pasionalidades distintas y de diversos grados dialógicos. Hay, en el recorte temporal y

axiológico que hicimos para esta investigación, una mujer de naturaleza amante y que

transformó ese amor en el tono de sus enfrentamientos con los interlocutores con

quienes estuvo involucrada emocionalmente. Nuestro análisis está anclado en los

postulados teóricos del Análisis Dialógico del Discurso (ADD), cuyo teórico base es el

filósofo ruso Mikhail Bakhtin (2003, 2009, 2013) – sobre todo cuando se trata de estilo

– y en la teoría de la enunciación de Maingueneau (2008, 2005) y Charaudeau (2006) –

en lo que se refiere al ethos discursivo. Esta investigación se inserta en el área de

Lingüística Aplicada y tiene un enfoque cualitativo-interpretativo.

Palabras clave: Frida Kahlo. Carta Personal. Ethos Discursivo. Estilo.

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PALETA

1 SO(U)FRIDA, DOR E PAIXÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE UM SUJEITO INACABADO . 13

1.1 Justificativa: um ser de linguagem sob as lentes da LA .................................................... 15

1.2 Questões de pesquisa e objetivos específicos ................................................................. 18

1.3 Caminhos metodológicos ................................................................................................. 19

1.4 Critérios para a seleção do corpus: os enunciados e suas categorias .............................. 19

1.5 Procedimentos .................................................................................................................. 21

2 MEXICANISMO: CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E CULTURAL QUE CONSTITUÍA FRIDA KAHLO

E DO QUAL ERA CONSTITUINTE ................................................................................................. 23

2.1 Cultura: uma fôrma híbrida e grávida de ideologias ........................................................ 28

2.2 Ideologia: os roteiros socialmente valorados ................................................................... 36

2.2.1 A Ideologia na Análise Dialógica dos Discursos (ADD) ................................................. 38

2.3 Ser líquido: a responsividade fridiana diante do prenúncio de tempos pós-coloniais .... 41

2.4 O gênero discursivo carta pessoal: um trajeto epistolar ................................................. 45

2.4.1 Práticas discursivas ................................................................................................... 45

2.4.2 A emergência das práticas discursivas da carta........................................................... 47

3 CORES TEÓRICAS QUE DELINEARAM NOSSA PESQUISA: CAMINHANDO SOB O LASTRO DE

OUTRAS VOZES ........................................................................................................................... 54

3.1 Uma concepção dialógica de linguagem .......................................................................... 57

3.1.1 Gêneros discursivos: uma abordagem na perspectiva bakhtiniana .............................. 59

3.2 O sujeito bakhtiniano: considerando as influências histórico-culturais .......................... 62

3.3 Da noção dialógica de enunciado .................................................................................... 64

3.4 Estilo e ethos discursivo: as categorias basilares da pesquisa ......................................... 68

3.4.1 A respeito do estilo ................................................................................................... 69

3.4.2 A respeito do ethos ................................................................................................... 73

4 EM BUSCA DOS ETHÉ DE FRIDA: A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS VERBOAXIOLÓGICAS

DIANTE DOS SEUS AMORES ....................................................................................................... 80

4.1 Os enunciados/cartas vistos à luz da teoria bakhtiniana................................................ 82

4.1.1 Emergências valorativas: o que dizem os enunciados a respeito das imagens de Frida 85

4.3 Análises dos enunciados/cartas: as cores passionais na paleta diversificada de Frida . 87

4.3.1 Os enunciados rosas-chás: os indícios juvenis de um ser amante ................................ 87

4.3.2 Os enunciados magentas: marcas de uma paixão mais intensa ................................... 98

4.3.2 Os enunciados vermelho-rubros: um amor mais maduro e racional .......................... 113

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5 SOMBREANDO ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES SOBRE FRIDA: A QUE MÁSCARA CHEGAMOS?

....................................................................................................................................... 123

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 130

APÊNDICES.........................................................................................................................134

ANEXOS.............................................................................................................................137

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Figura 2 – Foto do acervo pessoal de Frida Kahlo

Fonte: Site do Museu Oscar Niemeyer – Curitiba/PR2

2 Disponível em: <http://www.conexaofotografica.com.br/frida-kahlo/> Acesso: 22 de nov. de 2014.

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1 SO(U)FRIDA, DOR E PAIXÃO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE UM

SUJEITO INACABADO

Figura 3 – Foto do acervo pessoal de Frida Kahlo:

Frida pintando em sua cama, com Miguel Covarrubias a seu lado, Cidade do México, 1940.

Fonte: Site A rosa meditativa3

3Disponível em: <http://arosameditativa.blogspot.com.br/2014/07/magdalena-carmen-frieda-kahlo-y-

calderon.html>. Acesso em: 22 jul. 2014.

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Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.

Frida Kahlo

Frida Kahlo é uma mulher vista em seus autorretratos como exótica e bela,

porém torturada e martirizada por todo o sofrimento de uma vida e por um acidente que,

entre outras dores, impossibilitou-lhe de realizar um de seus maiores sonhos: ser mãe.

Além de tudo isso, Frida já havia sofrido com uma poliomielite aos seis anos de idade

que lhe rendeu o apelido de Frida perna-de-pau na infância/adolescência (ver apêndice –

Cronologia sucinta da vida e da obra de Frida Kahlo). Interessa, no entanto, nesta

pesquisa, a Frida escritora de inúmeras cartas, ao longo de toda sua vida, para diversos

interlocutores, dentre eles, o seu grande amor, Diego Rivera, seus amigos, suas amigas,

seu médico.

Tais cartas são reveladoras de vários ethé que não podem ser visualizados

apenas observando seus quadros. Nessas cartas, Frida mostra seus sentimentos mais

profundos e toda sua revolta com sua condição física e a concepção de fidelidade que

seu amado marido seguia, pois, segundo ele, “ser fiel era apenas mais um dos valores

burgueses” (HERRERA, 2011, p.55). Ao escrever, Frida usava de toda sua franqueza,

empregava um vocabulário singular e marcado de afetividade para externar suas ideias.

Construímos, portanto, uma pesquisa inserida nas altercações bakhtinianas a

respeito da noção de enunciado. Em outras palavras, interessa-nos como ele vai se

construir e se organizar; e como ele irá constituir e ser constituído pelo mundo da vida e

seus roteiros sociais.

Assim, especificamente, interessa-nos, no modo de organização do

enunciado, aquilo que Bakhtin (2010a) irá chamar de estilo individual. Na relação de

constituição do enunciado com o mundo da vida, será primordial para a nossa pesquisa

a noção de ethos discursivo – encabeçada pela análise do discurso. Dessa maneira,

procuramos em nosso trabalho, com a finalidade de atingir os nossos objetivos,

entrecruzar e fundir essas duas categorias (ethos discursivo e estilo individual). Em

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outras palavras, podemos dizer que há, na construção da análise que fizemos, o estilo

individual dando suporte estruturante para a construção do ethos discursivo.

Em decorrência disso, olhamos para os dizeres de Frida Kahlo na intenção

de buscar e definir, quem sabe, imagens sociais, amparados por pistas estilísticas, que

foram, ao longo do tempo, construindo e desconstruindo ideologicamente Frida que,

obviamente, estava inserida em múltiplos contextos sociais.

Assim sendo, nossa pesquisa se desenvolveu em seis capítulos: o primeiro

traz uma discussão inicial sobre nosso trabalho, buscando construir uma visão geral do

texto (justificativa, questões de pesquisa e objetivos, metodologia, apresentação e

seleção do corpus e procedimentos); o segundo traça uma contextualização histórica e,

ao mesmo tempo, teórica, do espaço-tempo no qual Frida estava inserida4; o terceiro

traz um panorama do percurso do gênero discursivo carta pessoal; o quarto capítulo

mostra as vozes teóricas com as quais dialogamos para compor e sustentar a “paleta”

desta pesquisa; o quinto capítulo expõe tanto um quadro com as categorias de análise

quanto a análise de uma amostragem dos discursos de Frida nas cartas aos seus amantes

e o que, de alguma forma, pôs em evidência o objeto de estudo; por fim, o sexto

capítulo retoma os resultados do trabalho e busca responder, incisivamente, às questões

que nortearam esta pesquisa.

1.1 Justificativa: um ser de linguagem sob as lentes da LA

Investigar e observar os escritos de Frida Kahlo por meio das lentes da

Linguística Aplicada é um desejo que, há algum tempo, buscamos consolidar. Essa

ousadia vem, ultimamente, ganhando corpo, forma e carne, ou seja, se materializando

linguisticamente nos artigos que temos publicado e, principalmente, nesta dissertação. A

fonte de empiria a partir da qual construímos nosso corpus foi um livro intitulado

“Cartas apaixonadas de Frida Kahlo”, compilado por Martha Zamora, uma pesquisadora

interessada na vida da artista mexicana. Trata-se, portanto, de uma reunião de cartas

pessoais que Frida escreveu durante toda sua vida, compondo um fascículo com mais de

4 Optamos por fazer o entrecruzamento do contexto histórico e as discussões teóricas que envolvem

cultura, ideologia e liquidez, no capítulo dois, porque acreditamos que não seria possível dissociar as

categorias do mundo da práxis, ou, como diria Bakhtin, do mundo da vida. Foi, principalmente, por

estarmos desenvolvendo uma pesquisa nas Ciências Humanas, e mais especificamente na área da

Linguística Aplicada, que consideramos necessária a presença de tais discussões teóricas que nos

ajudaram a compreender as influências que, na prática, Frida carregava. Essas influências, de certo,

vinham desse entorno axiológico que constituiu a autora e do qual ela era constituinte.

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cinquenta cartas escritas em diferentes épocas de sua vida e com interlocutores os mais

variados possíveis, remetentes que rodeavam a vida social da mulher que mantinha o

hábito de escrever cartas. Nosso objeto de análise, no entanto, é composto por seis

cartas que selecionamos de acordo com interesses específicos, os quais explanaremos

mais adiante.

Contudo, gostaríamos de explanar algumas justificativas sem as quais nosso

trabalho perderia o tom científico e, por que não dizer, artístico. A primeira delas advém

da seguinte assertiva de Geraldi no livro “Palavras e contrapalavras: enfrentando

questões da metodologia bakhtiniana”, organizado pelo Grupo de Estudos dos Gêneros

do Discurso (GEGe) da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos-SP:

Quem estuda a linguagem não está interessado nos “recortes” dos

discursos, mas no enunciado completo, total, para cotejá-lo com

outros enunciados fazendo emergirem mais vozes para uma

penetração mais profunda no discurso, sem silenciar a voz que fala em

benefício de um já dito que se repete constantemente. (2012, p. 27-

28):

Portanto, trataremos as cartas como enunciados concretos e inacabados.

Deles emergem vozes que nos ajudarão, no embate dialógico com nosso olhar

exotópico, a dar acabamento às imagens que a pintora constrói de si, agora,

discursivamente. Interessa-nos ouvir a Frida que está em embate constante com seus

outros, que é constituída nessa arena dialógica e que também a constitui.

A segunda deriva da razão de que Frida Kahlo é, por um lado, conhecida,

mundialmente, por seus quadros, propiciando muitos trabalhos no campo das artes

plásticas e história da arte, em nível de mestrado e doutorado, com as telas da artista

mexicana. São evidências dessa afirmação a dissertação de mestrado A sublimação, o

trauma e o corpo: Frida Kahlo (BASTOS, 2008), escrita na área da psicanálise, na

Universidade Veiga de Almeida/RJ, cuja análise dos quadros de Frida se orientou por

uma perspectiva freudiana e lacanina, e a tese de doutorado Corpos se (mo)vendo com

imagens e afetos: dança e pedagogias culturais (BERTÉ, 2014), defendida na área de

Arte e Cultura Visual, na Universidade Federal de Goiás, com discussão sobre corpo,

afeto e imagens diante dos investimentos culturais de Frida Kahlo, Madona e Pina

Bausch. Por outro lado, porém, Frida é pouco conhecida por sua produção escrita, de

modo que a produção acadêmica voltada para os escritos de Frida é quase inexistente.

No campo de investigação da Linguística Aplicada (LA), por exemplo, não foi

identificado nenhum estudo em nível de pós-graduação, apenas alguns artigos escritos

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que serão apresentados a seguir. Portanto, como vemos, não existe investigação, em

níveis mais “complexos”, que contemple o nosso objeto de pesquisa, muito menos com

o foco teórico e metodológico no qual pretendemos nos apoiar, qual seja: um enfoque

orientado pela concepção dialógica de linguagem e, consequentemente, de sujeito

(BAKHTIN, 2003, 2009). Para Bakhtin, o sujeito, histórico e inacabado, é construído e

constituído nos processos de interação verbal. Interação que pressupõe um outro, sendo

esse outro o mundo em que esse sujeito está mergulhado, e não apenas o seu

interlocutor direto.

Dessa maneira, por sopesarmos e adotarmos o que diz Bakhtin (2003, p.

262) a respeito dos gêneros discursivos – que estes são produzidos, reelaborados e

estilizados nas práticas sociais e que cada esfera social elabora seus “tipos relativamente

estáveis” –, entendemos que o gênero discursivo “carta pessoal” não se constitui de

forma diferente. No caso de Frida, ela é esse sujeito histórico e inacabado que, em

constante diálogo com seus outros, por meio das cartas, cria para si mesma

determinadas imagens que serão interpretadas, lidas e acabadas por tantos outros os

quais, dependendo do lugar em que estão, poderão observá-las de formas diferentes.

Portanto, propomo-nos a perscrutar as cartas de Frida Kahlo, a partir do olhar

exotópico5 (BAKHTIN, 2003), para tentar dar acabamentos às imagens que a pintora

revolucionária construiu de si mesma.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, a prática de escrita de Frida –

via gênero carta pessoal – interessa-nos por consistir uma prática social de linguagem a

partir da qual ela se posicionava a respeito dos mais variados temas. Então, devido ao

fato de a LA, segundo Moita Lopes (2006), ser, principalmente, “um modo de criar

inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” e,

ainda, segundo Celani (2000, p.19), a LA como área do conhecimento ser “vista hoje

como articuladora de múltiplos domínios do saber, em diálogo constante com vários

campos que têm preocupação com a linguagem”, entendemos que nossa proposta

necessita do par de óculos “indisciplinar” (MOITA LOPES, 2009) da LA para

prosseguir nesse caminho até agora inexplorado.

Em quarto lugar, por fim, conforme já indicado anteriormente, a pesquisa

toma importância pelo fato de não haver, na área da Linguística Aplicada, trabalho em

5 Compreendemos, aqui, esse olhar como um olhar de distanciamento. Um olhar que me permite ver,

como pesquisador, o meu objeto. Permite-me, também, certo distanciamento que poderia comprometer

uma visão menos apaixonada e mais “neutra”. Bebemos, com essa nomenclatura, nos dizeres

bakhtinianos a respeito de exotopia e olhar alheio. Bakhtin (2003, 2009, 2013).

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nível de mestrado ou doutorado que tenha se proposto a investigar as práticas

discursivas de Frida Kahlo. Existem, no entanto, duas publicações que merecem

destaque: o artigo Frida Kahlo entre palavras e imagens: a escrita diarista e o

acabamento estético, de Casado Alves (2012a), publicado no periódico da USP Linha

D’água; e o capítulo de livro Ethos e exotopia do olhar: as cartas apaixonadas de

Frida Kahlo, também de autoria de Casado Alves (2012b), publicado no livro

Linguística Aplicada, Linguística e Literatura: Intersecções Profícuas, pela Pontes

Editora. Tais publicações estão situadas na mesma área em que se insere nossa pesquisa

e ajudaram a subsidiar o recorte que nos deu o corpus, bem como a construir o nosso

objeto de pesquisa.

São essas, portanto, as nossas justificativas diante da necessidade de tornar

coerente o trabalho com as cartas de Frida Kahlo para a comunidade científica.

1.2 Questões de pesquisa e objetivos específicos

Com base na exposição das justificativas, apresentamos as seguintes

questões da pesquisa:

• Como se dá a construção dos ethé passionais nas cartas de Frida Kahlo?

• Que marcas linguístico-discursivas deram acabamento aos diferentes ethé

passionais nas cartas pessoais da pintora mexicana?

• Como autora-criadora, que acabamento estético Frida Kahlo deu a si

mesma nas cartas escritas para seus amantes?

Como desdobramento das questões de pesquisa, delimitamos os objetivos a

seguir:

• Analisar como se dá a construção dos ethé passionais nas cartas pessoais

escritas por Frida Kahlo.

• Problematizar como as marcas de estilo (individual e do gênero

discursivo) dão acabamento aos diferentes ethé passionais nas cartas da pintora

mexicana.

• Explicitar como Frida Kahlo, ao versar sobre si mesma nas cartas

pessoais aos amantes, deu acabamento estético à sua própria imagem.

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1.3 Caminhos metodológicos

Quanto à abordagem metodológica, esta pesquisa caracteriza-se como

qualitativo-interpretativista, o que nos leva à adoção de um posicionamento reflexivo

acerca dos processos de elaboração, registro e análise. Tal posicionamento

[...] anteriormente dominado pelas questões da mensuração, definições

operacionais, variáveis, testes de hipóteses e estatística alargou-se para

contemplar uma metodologia de investigação que enfatiza a descrição,

a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais.

Designamos esta abordagem por Investigação Qualitativa (BODGAN;

BIKLEN, 1994, p. 11).

De Grande (2011) destaca algumas das vantagens da abordagem qualitativa:

a centralidade do cenário (aspecto naturista), a interpretação dos fenômenos que parte

de seus significados para os sujeitos da pesquisa e a geração e o uso de subsídios

empíricos e metodológicos para a prática interpretativa.

Assim, tomamos como construção basilar o modelo sócio-histórico da

linguagem, entendendo esta como uma prática discursiva. No modelo de pesquisa que

elegemos, reconhece-se o pensamento empírico através da interpretação da linguagem.

Ou seja, o procedimento que utilizaremos não recusará: as relações sociais em que a

linguagem é produzida; o imaginário sociocultural que intervém nessa linguagem –

modifica, emoldura, reformula, apresenta, interpenetra, etc.; e seu caráter

trans/multi/in/pluri disciplinar.

Para melhor compreendermos essa escolha teórico-metodológica, na qual

nos inscrevemos, trazemos a voz de Rojo (2006, p. 274), que afirma:

[...] no caso da pesquisa sócio-histórica, a maneira do fazer

transdisciplinar em LA não tem dispensado um diálogo intenso com

conceitos da filosofia, da sociologia e da política, da antropologia, da

história, da educação, da psicologia, das análises dos discursos – em

especial, teoria da enunciação bakhtiniana –, mas, como vimos,

ressignificados como facetas de interpretação do objeto de estudo e

não como níveis estanques de análise.

1.4 Critérios para a seleção do corpus: os enunciados e suas categorias

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Para a delimitação do corpus analisado, tomamos como ponto de partida,

conforme expressamos na seção anterior, enunciados concretos, localizados

historicamente em um contexto sociocultural e entendidos como manifestações de

linguagem de Frida Kahlo, a qual travava relações dialógicas responsivas com seus

interlocutores. Portanto, interessa-nos enunciados que integram o livro Cartas

Apaixonadas de Frida Kahlo, organizado por Martha Zamora, em sua terceira edição

– datada de 2002a, da editora José Olympio.

Objetivando construir uma amostragem, definimos alguns critérios. Em

primeiro lugar, escolhemos, como corpus de análise, seis cartas presentes na obra acima

citada. Nelas observamos recorrências peculiares que atenderam ao nosso objetivo

maior: investigar a imagem valorada da Frida apaixonada diante dos seus interlocutores

amados e amantes. Em segundo lugar, estabelecemos dois crivos a partir dos quais

selecionamos os dados para esta análise.

O primeiro crivo que utilizamos para a escolha foi direcionado pela

recorrência de interlocutores. Nesse caso, optamos por trabalhar somente com as cartas

que a pintora escreveu aos seus amores. Selecionamos três homens com os quais Frida

se envolveu afetivamente durante sua cantilena apaixonada, ou seja, por toda vida. É

óbvio que Frida enamorou-se de vários outros parceiros e parceiras, foram muitos

amantes e em lugares distintos. No entanto, não elegemos, como intenção primordial da

pesquisa, dar conta de todos esses amores. Restringimo-nos aos mais emblemáticos,

àqueles com quem Frida estabeleceu mais relações dialógicas. E o fato de aparecerem,

em nosso recorte, apenas as cartas endereçadas aos homens, e nenhuma às mulheres, se

deu pelo simples motivo de não haver na totalidade do corpus carta alguma para as

mulheres com quem Frida manteve relações apaixonadas. Sabemos notícias de seus

envolvimentos homoafetivos pela biografia da pintora escrita por Hayden Herrera

(2011).

O segundo crivo está no foco de ordem temporal, do início de sua produção

epistolar até o ápice de sua carreira como pintora, o que ocorreu um pouco antes de sua

morte. Portanto, temos as duas primeiras cartas que datam de 25 de dezembro 1924 e

de 1º de janeiro de 1925. Referem-se aos anos em que Frida – agora adolescente e

iniciando sua prática comunicativa epistolar – estudava na melhor instituição docente do

México: A Escuela Nacional Preparatoria. Tais cartas foram endereçadas ao primeiro

namorado dela, Alejandro Gómez Arias. As duas que seguem nesse mesmo

ordenamento temporal têm data de 23 de julho de 1935 e 3 de dezembro de 1938.

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Dessa vez, tendo como interlocutor seu marido, e maior amante, o muralista

mundialmente conhecido, Diego Rivera. Os últimos enunciados/cartas foram escritos,

um em 16 de fevereiro de 1939 e outro em 27 de fevereiro de 1939. Nestes, o outro

com quem Frida dialogava era Nickolas Muray, fotógrafo húngaro que ela conhecera no

México em 1938.

Dessa forma, deixamos claro que nossa escolha foi orientada: primeiro, pela

recorrência dos interlocutores do sexo masculino (a quem chamamos de amantes, não

no sentido pejorativo que a palavra ganhou na história da humanidade, mas na intenção

de criar uma bipolaridade entre a figura que ama e as figuras que são amadas), visto que

buscamos, diante das recorrências linguístico-discursivas, das pistas estilísticas, no

modo de construção dos enunciados/carta, uma imagem passional da pintora mexicana;

segundo, pelo recorte temporal que demarca fases da vida de Frida em que esta se

mostra em contextos socioculturais distintos. Poderemos, então, a partir dessa

categorização, traçar um panorama da formatação desse ethos passional ou, até mesmo,

das variadas formas em que essa imagem se apresenta – explicaremos melhor mais

adiante. Mantivemos, portanto, as cartas/enunciados na ordem de sequenciação que

dissertamos nos parágrafos anteriores e optamos por numerá-los de 1 a 6.

Uma última ponderação necessária concentra-se na quarta carta (Enunciado

4) que constitui o recorte empírico deste trabalho, ou seja, a segunda carta endereçada a

Diego Rivera. Para compor a cena enunciativa na qual ela se insere, decidimos trazer a

carta que Rivera escrevera para Frida e que, muito provavelmente, gerou uma resposta –

a carta que Frida escreveu para Diego e que se une às recorrências que separamos para

análise na seção que segue.

Subdividimos, também, os enunciados por cores (rosa-chá, magenta e

vermelho rubro) que acreditamos fazer parte da estética fridiana de compor – falamos

aqui da Frida pintora que tingia suas telas com cores bem particulares de sua cultura e

do mundo da vida – e que correspondem ao momento cronológico da produção de cada

par de cartas e das próprias escolhas que revelarão ora uma falta de maturidade, ora

maturidade transbordante; ora a presença de um amor mais quente (erótico e visceral),

ora um amor mais pueril (fraterno e inocente).

1.5 Procedimentos

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As cartas de Frida Kahlo permitiram diálogos que nos ajudaram a proceder

as seguintes ações:

• selecionar as cartas que foram nosso objeto de análise;

• analisar as cartas (comprovação ou negação das vozes, as relações

dialógicas e o estilo, que julgamos fazerem parte de materialidade linguístico-discursiva

da pintora e que nos direcionou para a construção da imagem ideológica, intencional ou

não, de Frida Kahlo);

• observar os recursos linguístico-estilísticos utilizados nas formas distintas

de enunciações (escolhas lexicais feitas pela autora para garantir ou conferir-lhe um

estilo individual).

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2 MEXICANISMO: CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO E CULTURAL QUE

CONSTITUÍA FRIDA KAHLO E DO QUAL ERA CONSTITUINTE

Figura 4 – Pintura a óleo: Mi nana y yo (1937), óleo sobre lágrima, 30x35 cm.

Fonte: Site Yazim Live6

6 Disponível em: <http://yazim.livejournal.com/147322.html> Acesso em: 20 out. 2014.

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Despertar para a história significa adquirir consciência da nossa

singularidade, momento de repouso reflexivo antes de nos

entregarmos ao fazer.

Octavio Paz

O poeta mexicano Octavio Paz, em seu Livro O Labirinto da Solidão e

Post Scriptum, convoca-nos a uma ação, no momento de considerar a história e a cultura

de um povo, bem como as influências refletidas em suas representações nas mais

variadas esferas, como é o caso desta pesquisa, que resolve debruçar-se sobre a

produção epistolar da pintora mexicana Frida Kahlo. Paz (1984) nomeia de “repouso

reflexivo” esse momento de reflexão sobre a história do México que encaminha para a

verdadeira singularidade apresentada por aquele povo. Dito de outra maneira, é a busca

de uma identidade genuinamente mexicana.

Desta feita, não foi à toa que escolhemos, para compor a epígrafe deste

capítulo, juntamente com a assertiva do poeta mexicano, um dos afrescos de Frida que a

retrata sendo amamentada por uma índia, nomeado por Frida de Minha ama e Eu ou Eu

a Mamar. “Fui amamentada por uma ama indígena cujos peitos eram lavados toda vez

que me dava de mamar” (HERRERA, 2011, p. 24), Frida confessa, orgulhosa, a uma

amiga. Esse fato, mais tarde, vai ser crucial para a pintura da tela que vai nortear a

nossa discussão sobre as influências e constituições culturais da pintora. A ama, índia, é

a personificação da herança cultural que a artista traz em seu discurso, seja em suas

telas, conhecidas mundialmente, seja em suas cartas, não tão conhecidas e, agora, objeto

de estudo desta dissertação.

Mas a ama de leite de Frida tem sua identidade e seu rosto omitidos pela

máscara asteca que ela carrega em sua face. A respeito das máscaras, Octavio Paz as

coloca como parte integrante na cultura que diz bastante sobre a personalidade do

mexicano e afirma que “[...] a máscara do velho é a história de algumas feições amorfas

que um dia emergiram confusas, vagamente captadas por um olhar absorto. Em virtude

deste olhar as feições se fizeram rosto e, mais tarde, máscara, significação, história”

(PAZ, 1984, p. 14). Ele ainda acrescenta que:

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A preferência pelo fechado em vez do aberto não se manifesta apenas

como impassibilidade ou desconfiança, ironia e receio, mas também

como amor à Forma. Esta contém e encerra a intimidade, impede seus

excessos, reprime suas explosões, separa e isola, preserva-a. A dupla

influência indígena e espanhola se conjuga na nossa predileção pela

cerimônia, pelas fórmulas e pela ordem. [...] As complicações rituais

da cortesia, a persistência do humanismo clássico, o gosto pelas

formas fechadas na poesia (o soneto e a décima, por exemplo), nosso

amor pela geometria nas artes decorativas, pelo desenho e pela

composição na pintura, a pobreza do nosso Romantismo em contraste

com a excelência da nossa arte barroca, o formalismo das nossas

instituições políticas e, finalmente, a perigosa inclinação que

demonstramos pelas fórmulas – sociais, morais e burocráticas – são

outras tantas expressões desta tendência do nosso caráter. O mexicano

não só não se abre; também não se derrama (PAZ, 1984, p. 32-33).

Dessa forma, a máscara representa muito mais que um simples enfeite ou

ornamento no rosto da ama de Frida. Representa, na verdade, uma marca identitária,

cultural e ideológica que define a persona(l)idade de um povo que prefere a

desconfiança de não se mostrar.

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, terceira filha de Guillermo e

Matilde Kahlo, nasceu no dia 06 de julho de 1907, em sua casa, na esquina das ruas

Londres e Allende, situada em Coyoacán, um antigo distrito residencial nos arredores

da periferia sudoeste da Cidade do México. De acordo com Haydem Herrera, que

escreveu “Frida: a biografia”, essa é a data que consta em sua certidão de nascimento.

Mas Frida era filha da década revolucionária, quando as ruas da Cidade do México

estavam coalhadas de caos e derramamento de sangue. Provavelmente, optando por uma

verdade menos precisa, ela escolheu nascer em 1910, ano da explosão da Revolução

Mexicana. Herrera (2011), na biografia de Frida, define essa revolução como:

[...] movimento armado que começou com alguns motins em várias

partes do país e com a formação de exércitos de guerrilheiros em

Chihuahua (sob a liderança de Pascual Orozco e Pancho Villa) e

em Morelos (sob o comando de Emiliano Zapata); os conflitos e focos

de revolta se estenderiam por dez anos. Em maio de 1911, caiu o

antigo ditador, Porfírio Díaz, que partiu para o exílio. O líder

revolucionário Francisco Madero foi eleito presidente do país em

1912, mas em fevereiro de 1913, depois da Dezena Trágica, etapa de

dez dias de combates em que tropas antagônicas no Palácio Nacional e

na Ciudadela bombardearam-se mutuamente, causando tremenda

destruição e mortandade, Madero foi traído pelo

general Victoriano Huerta e assassinado. No norte, Venustiano

Carranza insurgiu-se para vingar a morte de Madero. Adotando o

título de Primeiro Chefe do Exército Constitucionalista e contando

com um pequeno contingente à sua disposição, lutou para

derrubar Huerta. A cruel disputa de poder e o inevitável

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derramamento de sangue só cessariam com a posse do presidente

Álvaro Obregón, um dos generais de Carranza, em Novembro de 1920

(HERRERA, 2011, p. 25).

Muitos desses conflitos foram presenciados pela pequena Frida. Em seu

diário íntimo, publicado após sua morte, ela relata que a mãe abria a janela – que dava

para a rua Allende – e dava acesso aos zapatistas feridos, a quem dava de comer e

cuidava de seus ferimentos. Mais tarde, esse movimento vai contar com a juventude

comunista, da qual Frida fazia parte. Ele procurou implantar mudanças fundamentais na

estrutura social do México pós-colonialista. A identificação da artista com

o Mexicanismo (1910-1920) foi tão grande que se tornou um dos símbolos mais

difundidos em toda sua produção artística. Frida exclamava, em cartas, em telas ou em

seu diário: ¡viva la revolución!. Assim como Kahlo, o México estava em um momento

de reconstrução de sua identidade e contava com seus artistas para o fazer.

Não foi diferente com a arte da “pomba delicada”, um dos apelidos que

Frida recebeu nas rodas sociais em que circulava. Seus autorretratos se enchem de

elementos de seu cotidiano que ganham um valor simbólico e representam, com grande

precisão, essa mulher exótica aos olhos estrangeiros, enquanto que, para seu esposo, o

grande muralista mexicano Diego Rivera, ela era a personificação de toda glória

nacional. Seus escritos (cartas, poemas e diário íntimo), também, não se diferenciam

nesse aspecto cultural.

Doravante, a questão do sentimento de identidade nacional no México pós-

revolução, ou melhor, a busca por uma identidade mexicana, que envolveu o país em

discussões calorosas a respeito do Mexicanismo, se dava no bojo conceitual da

representação nacional que traziam as obras de Frida Kahlo. Essas discussões

levantavam questões e elementos que iam da esfera econômica às artes. Passou-se a

pensar o papel social de que se investe a arte. Dessa forma, buscava-se uma arte

genuinamente nacional que rompesse com os padrões europeus.

Na América Latina, a sociedade está representada na pintura desde a

formação das nações. No século XIX, no período pós-independência, não apenas o

México, mas em todo o continente, já se problematizava uma identidade nacional

através das artes. Era necessário despertar um sentimento de pertencimento à nação

recém-surgida. Nesse sentido, teve muita relevância a pintura histórica. Era muito

comum os Estados custearem jovens pintores promissores em seus estudos na Europa.

No “Velho Mundo”, entravam em contato com usos de cores e luz, adquiriam as últimas

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técnicas e eram treinados para escolher temas em voga. No entanto, quando

regressavam à terra natal, repensavam os temas para suas pinturas, tendo como tema

recorrente a independência, evocando as lutas contra os exércitos espanhóis, fundação

das repúblicas e os heróis desses processos. Dessa maneira, formaram-se símbolos

nacionais através na pintura.

Contudo, é importante dizer que esses símbolos e imagens nacionais

compunham uma identidade, na voz das elites, que já assumia a mestiçagem, mas

mantinha o discurso de que apenas os brancos letrados tinham a capacidade e o direito

legítimo de terem propriedades e assumirem o governo, enquanto os pobres, índios,

negros, mestiços e camponeses não tinham, para as elites, capacidade de assumir cargos

públicos e nem mesmo poderiam comandar propriedades. Era utilizada a famigerada

dicotomia “civilização versus barbárie” para justificar a dominação de um grupo pelo

outro.

Mas os grupos marginalizados formaram reivindicações sociais e, em meio

a esta cultura mestiça, desenvolveu-se uma vigorosa cultura popular. Distintos pintores,

em diversos países, dedicaram-se a representar temas da vida cotidiana retratando

pessoas simples.

As diferenças estéticas entre os pintores populares e os pintores viajantes

são expressivas. Enquanto estes procuravam reproduzir sempre o mesmo estilo de pose,

retratando mais um tipo de pessoa, aqueles retratavam sempre a pose dura e frontal,

característicos dos retratos coloniais, e tinham ainda uma imensa preocupação com os

detalhes das roupas, o que conferia um caráter deliberadamente realista ao retrato.

Por conseguinte, Frida Kahlo busca inspiração nesses pintores retratistas

populares para compor os seus autorretratos. Em seu segundo quadro – O tempo Voa –

feito em 1929, a artista já mostra sua adesão à arte popular mexicana. A apresentação de

um rosto visto de frente com uma expressão determinada e a importância que ela dá

para suas vestimentas remetem ao realismo dos retratos populares do século XIX.

Juntamente com essas influências, Frida também trata da questão indígena, que é

reavivada pela Revolução Mexicana (1910) e, logo após, pelo Mexicanismo. Essa foi

uma questão que trazia em seu bojo um sentimento de pertencimento. Uma dúvida que

pairava sobre o México dos anos vinte do século passado: seria ou não o México duas

nações? Ou seja, um México índio, mestiço e um México europeu. Nas palavras de

Octavio Paz (1984), ao versar sobre o movimento educativo encabeçado por José

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Vasconcelos, o fundador da educação moderna do México, destacamos o seguinte

trecho:

Emergem as artes populares, esquecidas durante séculos; nas escolas e

nos salões, tornam-se a cantar as velhas canções; dançam-se as danças

regionais, com seus movimentos puros e tímidos, feitos de vôo e

estática, de reserva e fogo. Nasce a pintura mexicana contemporânea.

Uma parte de nossa literatura volta os olhos para o passado colonial;

outra, para o indígena. Os mais valentes encaram o presente: surge o

romance da revolução. O México, perdido na dissimulação da

ditadura, de repente é descoberto por olhos atônitos e apaixonados:

‘Filhos pródigos de uma pátria que nem sequer sabemos definir,

começamos a observá-la. Castelhana e mourisca, listrada de

asteca’. (PAZ, 1984, p.136-137).

Destarte, chegamos ao muralismo, que foi o movimento artístico mais

emblemático do século XX e que se apresentou como movimento crítico do capitalismo,

sobretudo da exploração do trabalhador. Pode-se dizer que o muralismo cumpriu com o

papel de arte nacional e, de certo modo, procurou, ao menos nas artes visuais, redimir o

indígena. Esse afluxo artístico mexicano teve como figura maior o muralista Diego

Rivera, esposo de Frida Kahlo, que buscou recontar a história mexicana por meio dos

marginalizados ou vencidos ao colocar, em seus murais, figuras indígenas no lugar de

heróis ao invés de reis e príncipes. Consideramos que o muralismo foi muito importante

para essa arte ideológica e de vanguarda que Frida iria integrar mais tarde, contudo, não

adentraremos com mais profundidade no movimento, visto não ser este o objetivo deste

estudo.

2.1 Cultura: uma fôrma híbrida e grávida de ideologias

A palavra “cultura” é uma das mais complexas da nossa língua. Seu

significado bebe, por vezes, em conceitos etimológicos distintos, que vão do conceito de

“natureza” até o de “comportamento ético”. Para melhor compreendermos essa noção

teórica e conceitual, resolvemos dialogar com a voz do pesquisador e professor de

Literatura Inglesa, da Universidade de Oxford, Terry Eagleton. Partindo de um amplo

panorama conceitual, ele mergulha na crise moderna a respeito da ideia de cultura e

aprofunda a discussão a respeito dos choques culturais. Adentra na altercação dialética

entre cultura e natureza, pondo em tensão dialógica as vozes de Marx, Freud e

Nietzsche. Além disso, busca se desvencilhar dos conceitos fundamentais da sociologia

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mergulhando em alguns contextos com a intenção de extrair algo novo do ponto de vista

teórico-metodológico.

Nessas camadas conceituais perscrutadas por Eagleton (2005), são

destacadas as investigações do Raymond Williams, quando este distingue três sentidos

modernos e principais para a palavra “cultura”. Em primeiro lugar, a noção equipara-se

semanticamente à “civilização”, isso por causa de suas raízes etimológicas no trabalho

rural. Um incentivo ao cultivo individual. Mas tal conceito vai se desconstruindo por

volta da virada do século XIX, que é quando os aspectos normativos e descritivos da

palavra “civilização” começam a se separar. Uma nova virada é contornada por

Eagleton (2005, p. 23):

A civilização era abstrata, alienada fragmentada, mecanicista,

utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material; a

cultura era holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável. O

conflito entre cultura e civilização, assim, fazia parte de uma intensa

querela entre tradição e modernidade. Mas também era, até certo

ponto, uma guerra fingida. O oposto de cultura, para Matthew Arnold

e seus discípulos, era uma anarquia engendrada pela própria

civilização.

É nessa virada, em que a cultura assume os vieses, ao mesmo tempo,

aristocrata e populista, que reside o segundo sentido listado por Williams apud Eagleton

(2005). Com base no idealismo alemão, a cultura, enquanto atividade sociológica e

antropológica, adota algumas características de seu significado moderno e característico

de um modo de vida. Em outras palavras, ela assume aí uma alegoria plural,

heterogênea quebrando com as correntes de uma narrativa unilateral da humanidade em

seu todo, porém uma diversidade de formas de vida específicas.

Em terceiro lugar, em resposta à crise da cultura como civilização, Williams

apud Eagleton (2005) reduz a categoria inteira a um amontoado de obras artísticas,

descrevendo da seguinte maneira: “Cultura aqui significa um corpo de trabalhos

artísticos e intelectuais de valor reconhecido, juntamente com as instituições que o

produzem, difundem e regulam” (WILLIAMS apud EAGLETON, 2005, p. 36). Com

base, pois, no percurso traçado por Eagleton, utilizaremos essa noção para melhor

definir aquilo que, de alguma forma, servia de parâmetro para Frida Kahlo e a tornava

bandeira de uma nação em plena construção identitária. Desse modo, trazemos, para dar

um contorno teórico, a voz eagletoniana, que nos oferece uma alternativa conceitual:

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Nossa própria noção de cultura baseia-se, assim, em uma alienação

peculiarmente moderna do social em relação ao econômico, o que

significa em relação à vida material. Só numa sociedade cuja

existência cotidiana parece desprovida de valor podia a ‘cultura’ vir a

excluir a reprodução material; porém, só desse modo podia o conceito

tornar-se uma crítica dessa vida. Como comenta Raymond Williams, a

cultura emerge como uma noção a partir do ‘reconhecimento da

separação prática de certas atividades morais e intelectuais do ímpeto

condizente a um novo tipo de sociedade’. Essa noção se torna, então,

‘um tribunal de recursos humanos, a ser colocada acima dos processos

de julgamento social prático... como uma alternativa mitigante e

arregimentadora’. A cultura é, assim, sintomática de uma divisão que

ela se oferece para superar. Como observou o cético a respeito da

psicanálise, é ela própria a doença para a qual propõe uma cura.

(EAGLETON, 2005, p. 49-50)

Assim sendo, por acreditarmos que não se pode falar de Frida Kahlo sem

antes considerar o diálogo intrínseco entre o eixo da cultura popular mexicana, sua

produção artística, suas vestimentas e a batalha política que ela encabeçava ao lado de

Diego Rivera, é que dissertamos, neste capítulo, a respeito de cultura, mais

especificamente cultura mexicana. Sinteticamente, diríamos que nosso pensamento

sobre as questões culturais que cercavam a pintora mexicana podem estar, aqui,

ancoradas em princípios teóricos e metodológicos que orientam nossa compreensão da

natureza fluida e contingente das relações sociais humanas. Tais relações,

materializadas semioticamente e circulantes no mundo da vida, (des)velam as nuances

de uma interculturalidade que não é ingênua, muito pelo contrário, ela é implicada nos

confrontos, nas trocas, no entrelaçamento de posicionamento.

Consideramos, ainda, a pintora como um ser constitutivamente dialógico.

Frida é construída nas relações humanas em que a linguagem tem um papel central, e

com as quais e por meio das quais se estabelecem, também, algumas relações de poder.

Tudo isso nesse espaço-tempo, em que ela, enquanto criadora e eticamente responsiva,

constrói imagens de si mesma. É seguindo as pistas estilísticas, demarcadas na

materialidade linguística, que tentaremos dar formas e cores às imagens socioestilísticas

do universo fridiano.

Assim, convivendo com revolucionários, artistas e líderes comunistas,

alguns companheiros e também amantes, como Trotsky, Frida ia construindo a imagem

de mulher engajada e voltada para os valores de sua terra e para ideais de uma

revolução. Uma mulher que se construía através de uma teatralidade que lhe era, por

demais, útil – indumentárias indígenas e muito coloridas, brincos, anéis e colares

chamativos, além de um discurso contornado por palavrões, ironias, gargalhadas

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hiperbólicas (carcajadas). É de irreverência e de quem deseja ser vista, ser olhada e

admirada por gestos, discurso e vestes, enfim, por uma imagem de si que afiançasse sua

luta pela insubmissão, desafio ao preconceito, liberdade dela e do México. Todos esses

traços comprovam muitas qualidades que marcaram Frida Kahlo. Herrera (2011, p. 9)

ressalta:

[...] como pessoa e como pintora: sua bravura e indomável alegria em

face do sofrimento físico; a insistência na surpresa e na especificidade;

seu amor peculiar pelo espetáculo como máscara para preservar a

privacidade e a dignidade pessoal.

Tamanho universo, da vida e obra de Frida, tem sua concretude tecida no

social, na cultura e no mundo da vida. Não poderíamos deixar de tocar nesse conceito

filosófico e antropológico que tem servido de terreno para os estudos culturais – a

própria cultura – tendo em vista que Frida traz claramente, em todos seus modos de agir

e interagir com seus interlocutores, uma demarcação e influência cultural que a torna, na

atualidade, um dos símbolos contemporâneos da cultura do povo mexicano e, mais

especificamente, indígena do México híbrido.

Buscamos, ainda, subsídios para discutir as práticas de construção

identitária na perspectiva sócio-cultural encabeçada por vozes teóricas que colocamos

em diálogo e, ao mesmo tempo, amparados pela área na qual esta pesquisa se insere –

Linguística Aplicada –, derrubamos os limites teóricos impostos, muitas vezes, na

construção do conhecimento. Dito de outro modo, precisaremos dos palimpsestos dos

estudos culturais para aqui discutir: “Cultura”; “Ideologia”; “Hibridismo”; “Liquidez”;

“Identidade”; e “Descolecionamento”.

Inicialmente, para falar sobre uma noção de cultura, mais especificamente

um olhar latino-americano e híbrido desde sua gênese, trazemos o livro: “las categorías

de la cultura mexicana”, de Elsa Cecilia Frost (2009).

Frost, ao trazer ideias iniciais sobre a filosofia da cultura, afirma:

Es un hecho innegable que el hombre es un ser creador que, como tal,

ha tenido siempre consciencia de su obra, es decir, ha conocido que

frente al mundo de la naturaleza existe otro, el de lo creado o

transformado por él, el mundo de la cultura. Pero es también un hecho

que al enfrentarse a su obra el hombre tiene la sensación de que la

cultura no es algo dado y obvio, sino que constituye una especie de

portento que necesita ser explicado. Y puede afirmarse que la filosofía

de la cultura nace de este asombro del hombre frente a su propia obra.

(FROST, 2009, p. 27).

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Frost (2009), conforme exposto, afirma que a noção de cultura nasce no

encontro do homem com sua própria obra, aquilo que a autora vai chamar de

“asombro”, uma espécie de susto, choque ideológico e de identidade. Por conseguinte,

para Frost (2009), a noção de cultura nasce junto com a de filosofia e está impregnada

nos registros históricos de toda humanidade. Dessa maneira, não poderia ser muito

diferente com a latino-américa. Na verdade, existem discordâncias entre os pensadores

quanto à origem do conceito ou da própria noção de cultura. Alguns pensadores

franceses adotam, em geral, a teoria naturalista, entretanto, os alemães defendem que

esse é um problema de espírito, o que não se pode negar é que a fé no progresso e no

poder esclarecedor da cultura é unânime entre eles.

A pesquisadora mexicana, ao abordar o conceito de cultura, diz que

“Cultura es así sinónimo de tradición, educación, formación, es decir, um concepto em

el que encerramos multitud de cosas” (FROST, 2009, p. 63). Mais tarde, ao desenvolver

sua argumentação, ela ainda estabelece uma relação de sinonímia “cultura e

civilização”, pois a palavra civilização, etimologicamente falando, denota a vida civil e

política, a evolução humana que esta vida em sociedade implica.

Consideramos, portanto, a fôrma híbrida e cultural constituída e constituinte

das/nas relações interpessoais e dialógicas primordial para nossa pesquisa. Esta, por sua

vez, vai servir de mote para nos ajudar a caracterizar as influências culturais que

ajuizaram algumas práticas sociais de Frida e que, na atualidade, melhor representa e

resguarda a cultura das origens mexicanas. Para melhor alicerçar o que alvitramos a

despeito desse eixo cultural de nossa pesquisa, invocamos algumas palavras de Frost

(2009, p. 68-69):

Esta doble relación entre el hombre y la cultura que hemos descrito en

pocas palabras tardó mucho tempo en ser reconocida. Aun cuando se

aceptara que la cultura que es producto humano (en las mitologías

primitivas la cultura es siempre un regalo de los dioses) no se advertía

que este producto se convierte en una nueva sección de la realidad; y

más tarde, al aceptarse la independencia de la obra frente al creador,

se cayó en el extremo contrario, suponiendo que la cultura está más

allá del control humano y que opera según sus propias leyes. En

realidad, es imposible sostener este ‘determinismo cultural’ que hace

de la cultura una estructura supe orgánica fuera del dominio humano,

pues como hemos visto, el hombre y la cultura son realidades

interdependientes que no existen por sí solas.

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Ao afunilar suas investigações sobre as categorias da cultura mexicana,

Frost aponta para os eixos de natureza sociológica e de valoração diante dos fenômenos

culturais, atrelando-os às atividades da vida humana:

Esta ciencia parte del hecho de la naturaleza social de la vida humana

y analiza su contenido tanto descriptiva como casualmente, tratando

de establecer las leyes que lo rigen. Pero, a pesar de plantearse el de

la evolución, propagación y modificación de estas formas (dinámica

sociológica), lo que la distingue de toda filosofía de la cultura es su

actitud libre de toda valoración frente al fenómeno cultural (FROST,

2009, p.55)

Néstor Garcia Canclini, estudioso argentino, é outro teórico que traz

discussões que se coadunam com o nosso entendimento sobre cultura. Ao propor um

caminho de reflexão sobre o que denomina “hibridação” cultural nos países latino-

americanos, Canclini parece atingir aquilo que acreditamos ser a representação cultural

mexicana chamada Frida Kahlo e sua obra. A cultura, na América Latina, é pensada em

“Culturas Híbridas” considerando a vasta complexidade das relações que a configuram

na atualidade. Para a discussão que empreende, Canclini (2013, p. 284) apresenta seus

objetivos:

A fim de avançar na análise da hibridação intercultural, ampliarei o

debate sobre os modos de nomeá-la e os estilos com que é

representada. [...] pretendo ocupar-me de três processos fundamentais

para explicar a hibridação, a quebra e a mescla das coleções

organizadas pelos sistemas culturais, a desterritorialização dos

processos simbólicos e a expansão dos gêneros impuros. Através

dessas análises, procuraremos precisar as articulações entre

modernidade e pós-modernidade, entre cultura e poder.

A própria delimitação dos objetivos já outorga nossa adesão no que diz

respeito às noções de “hibridação” e “quebra e mescla das coleções organizadas” como

conceitos teóricos que se prestam ao nosso estudo. Nesse caso, compreendemos que há

a necessidade de entendermos a formação cultural de Frida, justamente, nesses campos

limítrofes entre culturas e, hipoteticamente, conjecturar que há, em toda sua história,

uma opção que parte do próprio sujeito encarnado (Frida Kahlo) nesse movimento

constitutivo de “descolecionar” e de “hibridizar”. Essas relações culturais, também, vão

dando tom, cor e forma a uma imagem ideologicamente valorada da pintora mexicana

que vai se tornando, em todo seu processo iconográfico, um símbolo de uma cultura e

de um povo, o baluarte que fará com que a história do México indígena e também

colonizado se perpetue: um país híbrido e cheio de culturas.

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Assim sendo, ao ignorar o modismo artístico de sua época que visava

retratar o México como uma cópia da França, Frida descoleciona e coloca a si mesma e

os elementos que estão em seu entorno (frutas, vestimentas, etc.) como pano de fundo

de seus quadros. Além disso, carrega seus quadros com elementos da cultura indígena

mexicana como: índias, símbolos Maias, Incas e Astecas, Máscaras nativas, etc.

Pensamos, com isso, que a escolha engajada – porque esse também era um

posicionamento político – de Frida mostra certa concordância com aquilo que Canclini

(2013) vai chamar de hibridização e descolecionamento.

Por conseguinte, quando o estudioso volta seu olhar para as representações

monumentais (estátuas, murais, símbolos, etc.), levanta-se, portanto, uma inquietação a

respeito da luta entre a memória histórica e os conflitos urbanos. Canclini (2013)

questiona a pretensão do dizer desses monumentos dentro de uma determinada

simbologia urbana contemporânea. Durante a discussão sobre a cultura urbana, o autor

constata:

Em processos revolucionários com ampla participação popular, os

ritos multitudinários e as construções monumentais expressam o

impulso histórico de movimentos de massa. São parte da disputa por

uma nova cultura visual em meio à obstinada persistência de signos da

velha ordem, tal como aconteceu com o primeiro muralismo pós-

revolucionário mexicano, com a arte gráfica russa dos anos 20 e

cubana dos anos 60 (CANCLINI, 2013, p. 291).

No entanto, quando a organização sociocultural se estabiliza, há ritos

culturais, transladados nessas figuras monumentais, que se esclerosam. Há, portanto,

fios invisíveis de tensões que se instauram entre aquilo que Canclini (2013) vai chamar

de “memória histórica” e a “trama visual das cidades modernas”. No que concerne ao

escopo pragmático desta pesquisa, buscamos confirmar a hipótese de que, por sua

constituição inteiramente dialógica, Frida, pintada verbalmente em suas cartas, ensaia

uma espécie de “descolecionamento” cultural. Essa constituição híbrida faz uma ponte

entre a tradição indígena, a modernidade e a pós-modernidade. Quanto a esse processo

“desterritorializante”, o autor pondera que essa mistura não permite a utilização de um

sistema arquitetônico homogêneo. Em uma cidade, por exemplo, os perfis que

diferenciam os bairros se perdem diante da falta de regulamentação urbanística. Há,

segundo Canclini (2013, p. 304), uma “hibridez cultural de construtores e usuários” e

“entremesclam em uma mesma rua estilos de várias épocas”.

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Ainda sobre essa perspectiva descolecionizante dos poderes oblíquos, ele

afirma:

A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem

as classificações que distingam o culto do popular e ambos do

massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e

portanto desaparece a possibilidade de ser culto conhecendo o

repertório das ‘grandes obras’, ou ser popular porque se domina o

sentido dos objetos mensagens produzidos por uma comunidade mais

ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe) (CANCLINI,

2013, p. 304)

No que tange à noção geográfica, ao abordarmos um conceito de cultura

que, de alguma maneira, estaria atrelado a uma dimensão espacial e territorial (um

lugar, uma raça, uma colonização), não podemos deixar de considerar alguns aspectos

que fomentam as discussões nas terras científicas da cultura. É preciso, então, pensar em

uma concepção de dimensão cultural para além do conceito tradicional e centrado

somente num tipo único de civilização ou urbanidade. Esse é o pensar que nos é muito

caro, pois nasce com ele o processo de modernização nos países da América Latina.

Não obstante, essa perspectiva, que considera uma multiplicidade de vozes

modernas e pós-modernas, para melhor compreender os fenômenos culturais, leva em

consideração os fatores de complexidade cultural, de multiplicidade das lógicas de

desenvolvimento em um contingente tão heterogêneo que se espalha durante o processo

de construção dos países Latinos. Diante da iminente crise da modernidade ocidental,

Canclini aponta para um viés que busca, em suas palavras, “desterritorializar-se”.

Para elucidar e embasar a discussão aqui levantada com o intuito de melhor

compreendermos o contexto social e as influências culturais que formaram o sujeito

histórico Frida Kahlo, trazemos um excerto em que o autor reitera:

As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo

da modernidade são as dos que assumem as tensões entre

desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois

processos: a perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios

geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações

territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas

(CANCLINI, 2013, p. 309).

Nessa tônica, buscamos enxergar as influências culturais que permeiam a

obra escrita de Frida e toda sua constituição histórica, como sujeito socialmente

constituído e dialógico, através de um viés “desterritorializante”. Na verdade, há em

suas cartas, um todo semântico que se mistura culturalmente e que, a partir de suas

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escolhas lexicais, vão remontando uma cultura híbrida e cheia de alcances realocados.

Ela bebe em todas as suas experiências ao longo de sua vida. Há uma Frida que

representa um povo indígena, mexicano, latino etc., e também uma mulher singular que

fazia de suas dores temáticas para as situações em que a linguagem desempenha um

papel central.

A seguir, tomamos, para a construção desse tecido estrutural, uma noção de

ideologia que nos ajudará a compreender as interferências sociais na formação desse

sujeito histórico e inacabado sobre o qual nos debruçamos.

2.2 Ideologia: os roteiros socialmente valorados

Os contextos ideológicos que marcam a nossa trajetória de construção

identitária vão contornando axiologicamente os moldes nos quais, de maneira

imperceptível, tentamos nos encaixar. Essa tentativa, ainda que forçada por fios sociais

invisíveis, pode dizer muito de nossa construção ideológica e daquilo que acreditamos

estar correto ou errado. Acreditamos, ainda, que há uma possibilidade tangível desses

roteiros sociais se fazerem presentes em tudo que nos engessa ou define, como por

exemplo: a noção de masculino e feminino, de raça, de supervalorização cultural, etc.

Com isso, escolhemos tratar de ideologia como algo presente nas

conjunturas culturais de todo ser de linguagem, com o fito de justificar as influências

ideológicas presentes nos posicionamentos e enquadramentos de vozes que Frida Kahlo

fazia em suas cartas. Esses roteiros socioculturais vão deixando rastros e pistas

ideológicas que vão desde as escolhas lexicais até as aparições em público com seus

trajes típicos.

Contudo, antes de sopesarmos sobre tais fenômenos, marcados na

materialidade linguística das cartas pessoais da pintora, demarcaremos o terreno teórico

que nos orientou. Também se faz necessário pontuar que não é nosso objetivo aqui

aprofundar-nos nos estudos teóricos sobre a ideologia. Tão somente pretendemos, com

isso, encorpar o rejunte de vozes que trazemos para melhor ligar a unilateralidade que,

outrora, estava separada pelas fronteiras de metodologias positivistas.

Inicialmente, tentaremos seguir o fio condutor traçado pelo crítico marxista

de cultura Terry Eagleton, em um livro intitulado “Ideologia”, publicado em 1997. Em

algumas palavras iniciais, o autor ressalta a grande dificuldade em trabalhar com

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definições do conceito de maneira global, apontado para diversas frentes de

possibilidade. Vejamos:

A palavra ‘ideologia’ é, por assim dizer, um texto, tecido com uma

trama inteira de diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes

históricas, e mais importante, provavelmente, do que forçar essas

linguagens a reunir-se em alguma Grande Teoria Global é determinar

o que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser descartado.

(EAGLETON, 1997, p. 15)

Ademais, Eagleton (1997) lista algumas definições do termo – Ideologia –

em circulação. São elas:

a) o processo de produção de significados, signos e valores na vida

social; b) um corpo de ideias característico de um determinado grupo

social; [...] d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político

dominante; [...] j) a conjuntura de discurso e poder; k) o veículo pelo

qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo; [...] n) oclusão

semiótica; o) o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações

com uma estrutura social; p) o processo pelo qual a vida social é

convertida em uma realidade natural (EAGLETON, 1997, p. 16).

De modo geral, o autor, no caminhar da discussão, adverte-nos de que seria

de fundamental importância observar que algumas dessas definições entram em

contradição no modus operandi dos fluxos ideológicos defendidos por elas, ou seja, não

são compatíveis na forma como encaram tal conceito. Assim, uma objeção à assertiva

de que a ideologia consiste em “um conjunto particularmente rígido de ideias”

(EAGLETON, 1997, p. 16) está na constatação pragmática de que nem todo conjunto

rígido de ideias é ideológico. Pensado assim, podemos ter persuasões bem mais

plásticas no que diz respeito ao modo como escolhemos nossas roupas, por exemplo.

Contudo, podemos afirmar, baseados nos construtos eagletonianos sobre ideologia, que

o termo parece-nos fazer referência não somente a sistemas de crença, mas a demandas

que envolvem relações de poder, arrolamentos de axiologia.

Em suma, Eagleton (1997), depois de demonstrar algumas vertentes teóricas

que pensam o conceito de ideologia e discordar de maneira ferrenha da maioria deles,

aponta seis maneiras, que ele chama de “enfoque progressivamente mais nítido”, das

quais se pode falar de ideologia. Para a nossa intenção, servirá a primeira que o teórico

registra.

[...] Em primeiro lugar, podemos nos referir a ela como processo

material geral de produção de ideias, crenças e valores na vida social.

Tal definição é política e epistemologicamente neutra, e assemelha-se

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ao significado mais amplo do termo ‘cultura’. A ideologia, ou cultura,

denotaria aqui todo o complexo de práticas significantes e processos

simbólicos em uma sociedade particular; aludiria ao modo como os

indivíduos ‘vivenciaram’ suas práticas sociais, mais do que às próprias

práticas, que seriam o âmbito da política, da economia, da teoria da

afinidade etc. [...]

Essa acepção mais geral de ideologia enfatiza a determinação social

do pensamento, oferecendo assim um antídoto valioso ao idealismo;

em outros aspectos, porém, poderia parecer impraticavelmente ampla

e guardar suspeitoso silêncio sobre a questão do conflito político.

Ideologia significa mais do que meramente, digamos, as práticas

significantes que uma sociedade associa ao alimento; envolve as

relações entre esses signos e os processos do poder político. Não é

coextensiva ao campo geral da ‘cultura’, mas elucida esse campo

de um ângulo específico (EAGLETON, 1997, p. 38-39, grifos

nossos).

Assim, nos é caro o conceito de ideologia que Eagleton traz como solução

primeira. Inicialmente, porque ele está diretamente ligado às práticas sociais e suas

esferas de produção do conhecimento. Em segundo lugar, no que tange ao nosso

interesse, é coerente dizer que as práticas sociais que envolvem linguagem e valor,

sobretudo, as materializadas nos enunciados produzidos por Frida, receberão o nosso

olhar atravessado por lentes teóricas eagletoneanas também.

Por fim, essa “elucidação”, em certo ângulo, do conceito de ideologia ao

campo da cultura servirá para melhor compreender como as influências culturais que

cercam o mundo da vida de Frida estão povoadas por arenas ideológicas e por roteiros

sociais que ela afirma ou renega o tempo todo. Esse mundo cultural mexicano e

indígena, que ela faz questão de estandardizar e servir de baluarte, é construído a partir

de questões que envolvem preceitos ideológicos e processos simbólicos de uma

sociedade em particular, ou, como diria Eagleton (1997), essa noção “ofereceria um

antídoto valioso ao idealismo”.

2.2.1 A Ideologia na Análise Dialógica dos Discursos (ADD)7

7 Esse termo vai ser citado pela primeira vez pela Profa. Dra. Beth Brait, no livro “Bakhtin: dialogismo e

polifonia”. Em um ensaio no qual apresenta um breve panorama dos estudos bakhtinianos pelo mundo, desde sua origem, com o próprio Bakhtin, já no fim do capítulo, Brait (2009, p.55) assume esse termo com algo mais moderno associado às noções que se espalham por toda obra do filósofo russo, vejamos: “Isso fica patente em vários momentos desse primeiro capítulo, mas especialmente no trecho em que Bakhtin se refere às relações dialógicas, fenômeno que, em outro capítulo, será tratado como o objeto da Translinguística, ou do que hoje se poderia chamar de Análise Dialógica do Discurso”(p.55)

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Para Bakhtin, as questões que envolvem a ideologia passam, também, pela

grande metáfora eu-outro. Ideologia se constrói em todas as esferas das interações

sociais, ou seja, ela é um fenômeno social que envolve os signos linguísticos, a

linguagem humana. Para o pensamento bakhtiniano, a ideologia não pode derivar da

consciência, como diziam o idealismo e o positivismo psicologista de sua época. Pois,

de acordo com Bakhtin (2009), a consciência adquire forma de existência nos signos

criados por determinados grupos sociais. Esses grupos organizam os signos no curso de

suas relações sociais.

Ainda nessa tônica, Bakhtin/Volochínov asseveram:

Para começar, as bases de uma teoria marxista da criação ideológica –

as dos estudos sobre o conhecimento científico, a literatura, a religião,

a moral, etc. – estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia

da linguagem. Um produto ideológico faz parte de uma realidade

(natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção

ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e

refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico

possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em

outro termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe

ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e

coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se

trata de ideologia. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 31)

Dessa maneira, para reforçar esse entendimento, ideologia poderia

caracterizar-se, nessa perspectiva, como a expressão, a organização e a regulação das

relações histórico-materiais dos seres de linguagem. Podemos também compreender

ideologia, seguindo a linha bakhtiniana de raciocínio, como uma representação. Isso

porque ela se dá na/pela linguagem. Precisa dela para poder representar-se, manifestar-

se e é caracterizadamente representativa, simbólica e constituída por signos ideológicos.

Bakhtin/Volochínov, ao tentarem construir um paralelo entre esses signos e

os instrumentos de produção, com a intenção de melhor explicar os signos ideológicos e

suas representações, utilizam um exemplo que muito elucida essa questão.

Consideramos a explicação do filósofo russo primorosa e, por isso, resolvemos trazê-la

para discutirmos um pouco mais sobre tal questão. Observemos:

Em si mesmo, um instrumento não possui um sentido preciso, mas

apenas uma função: desempenhar este ou aquele papel na produção. E

ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra

coisa. Todavia, um instrumento pode ser convertido em signo

ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como

emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um

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sentido puramente ideológico. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.

33).

Isso significa dizer que esses signos não só denominam um ser no mundo,

mas também fazem referência a uma outra realidade fora da imediata. A foice e o

martelo adquirem sentido quando entram no campo em que está sendo travado o embate

entre o eu e o outro. É a relação dialógica que vai pintando papéis sociais e roteiros

nesses instrumentos e os transforma em signos pertencentes às mais variadas esferas de

produção.

Assim, por ser ideológico, para Bakhtin e o Círculo,

o signo comporta as crenças, os sonhos, as opiniões, as visões de

mundo, as interpretações da realidade, etc. se o signo não fosse

ideológico nada disso poderia ser identificado nele. Ele é, portanto,

duplamente orientado. Carrega, em sua constituição, numa face, uma

oficialidade que o faz pertencer a determinado sistema ideológico e,

na outra, uma necessidade de reorganização a partir do seu contato nas

relações cotidianas travadas pelos sujeitos. (GEGe, 2009, p.59)

Em outras palavras, a ideologia bakhtiniana é duplamente orientada. Ela faz

com que o signo se mantenha na história, mas também se transforme na interação

verbal. Por outro lado, não podemos afirmar que o instrumento de produção, assim

tratado, torna-se um signo ideológico. Por exemplo, as inúmeras imagens de Frida

ganharam, na contemporaneidade, uma forma artística que assegura uma relação

harmônica entre objetos de consumo e a representação simbólica dela enquanto

bandeira de lutas sociais – feministas, por exemplo. Contudo, o produto de consumo

não é um signo ideológico.

Aqui, produzimos uma aproximação entre o signo linguístico e o produto de

consumo. O produto de consumo, assim como o instrumento de produção, pode ser

associado ao signo ideológico, mas, de acordo com Bakhtin/Volochínov (2009, p. 35),

“essa associação não apaga a linha de demarcação existente entre eles”. Nesse sentido, o

filósofo da linguagem aponta para os domínios do ideológico e do signo. Segundo

Bakhtin, estes são mutuamente correspondentes. Ou seja, onde se encontra o signo,

também se encontra o ideológico.

Podemos, então, definir ideologia, para Bakhtin e o círculo, como um

conjunto de valores e de ideias que se constitui e se interpenetra através da interação

verbal de diferentes sujeitos pertencentes a diferentes grupos socialmente organizados

na história concreta.

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2.3 Ser líquido: a responsividade fridiana diante do prenúncio de tempos pós-coloniais

Diante das questões que se entrecruzam para dar cor e forma ao caminho

que ora resolvemos percorrer, na intenção de melhor compreender o sujeito8 Frida,

situado sócio-historicamente, compreendemos que é necessário identificar as práticas

discursivas da pintora como marcas de uma constituição e construção modernas e, como

diria Bauman, “leve e líquida”. Essa característica, indicada nos posicionamentos

revelados nas práticas epistolares da artista, alinha-se à desconstrução dos processos

“modernos e pós-modernos” (BAUMAN, 2001, p.11).

Para melhor esclarecer nossas afirmações, recorremos à voz baumaniana ao

apontar para o momento em que há uma ruptura com uma tradição colonial e tal

processo surge com uma guinada da modernidade. Vejamos na afirmação a seguir:

Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava

determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta”

de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os

sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse

no tempo e fosse intenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa

intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo

repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da

“tradição” – isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente;

clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças

e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação”.

(BAUMAN, 2001, p. 9)

Esse estado de “liquefação” que o teórico pontua é o momento em que a

metáfora da liquidez se torna mais clara e adquire um sentido que nos é muito caro: a

“fluidez”. Muitos irão dizer que ser “líquido” e ser “fluido” podem assumir posições

sinonímicas ou iguais. No entanto, por acreditamos que não existe sinonímia neutra, que

uma escolha lexical em detrimento de outra revela uma posição axiológica, é que

usamos, aqui, a “fluidez” baumaniana com um sentido mais amplo e que nos atende de

prontidão. Essa fluidez representa um escoamento, um estado de constante

movimentação, plasticidade. Não é algo estanque encapsulado em aquários ou potes,

mas um conceito de eterna construção e desconstrução. Fica mais claro o que

almejamos com isso na fala de Bauman (2001, p. 8):

8 Tratamos aqui da noção de sujeito segundo a concepção bakhtiniana, a qual compreende os seres de

linguagem em suas práticas sociais situadas em um espaço e um tempo bem definidos (BAKHTIN, 2003).

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Os fluidos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-

se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”,

“pingam”; são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos,

não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem

outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com os

sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se

permanecem sólidos, são alterados – ficam molhados ou encharcados.

A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de

“leveza”. Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico,

são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-

los como mais leves, menos “pesados” que qualquer sólido.

Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à

inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos,

com maior facilidade e rapidez nos movemos (BAUMAN, 2001, p. 8).

Vemos, portanto, na assertiva de Bauman, posições férteis e que corroboram

nosso pensar sobre o ser híbrido e fluido que era Frida Kahlo. Pensamos que essa

característica “líquida”, que também coloca a artista em um lugar amparado pelas

bênçãos e maldições da modernidade, é complementada pela característica da “fluidez”,

uma vez que a compreendemos como movediça, plástica, em constante movimentação.

É um ser que vislumbrava relampejos de um futuro em que a identidade de seu povo

contaria com suas contribuições.

Engajada nas lutas políticas, junto a Diego e suas convicções socialistas,

Frida, ao passo que lutava pela dissolução de tradições sólidas e arcaicas, construía uma

arte de vanguarda em que representava uma identidade mexicana intrinsecamente ligada

aos costumes culturais, às vestes, às cores, à fauna e à flora do México. Em sua

trajetória, ela foi “derretendo os sólidos”, desvencilhando os costumes e as “obrigações

irrelevantes” que amarravam os pés e as mãos de uma nova ordem moderna. Essa era

uma necessidade que Bauman (2001, p. 15) vai apontar:

Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar

eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações

que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as

iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem

(verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do entulho

com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. “Derreter os

sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações

“irrelevantes” que impediam a via do cálculo racional dos efeitos;

como dizia Max Weber, libertar a empresa de negócios dos grilhões

dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das obrigações

éticas; ou, como preferia Thomas Carlyle, dentre os vários laços

subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar

somente o “nexo dinheiro”. Por isso mesmo, essa forma de “derreter

os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar –

nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às

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regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos

negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles.

Em outras palavras, como aponta Weber apud Bauman (2001), o

“derretimento dos sólidos” inicia sua revolução no campo da economia, livrando-a dos

embaraços políticos que, tradicionalmente, a cegavam, mas transborda até o campo

“micro” da ética e da cultura. Essa nova ordem não é, por assim dizer, livre de fôrmas.

Ela também tem seus estratagemas que definem motes. No entanto, o que a diferencia

da ordem tradicional é que os padrões da modernidade não são estanques. Eles se

chocam entre si e se contradizem nos seus comandos conflitantes, de tal forma que não

possuem mais, de acordo com Bauman (2001, p. 16), “boa parte de seus poderes de

coercitivamente compelir e restringir”.

Seguindo o pensamento baumaniano é que propomos sopesar a construção

sociocultural, que respondia ao “mundo da vida” de Frida, como uma espécie de paleta

embebida pelos tons cromo fórmicos repletos de ideologias e valores, imbricados na

dinâmica social do México e de outros países em que ela viveu.

Por conseguinte, ao versar sobre tais conceitos, Bauman (2001), ainda fala

sobre o movimento de migração que os padrões sociais tomaram para além da vida

política e ideológica. Eles foram “reclassificados” e seguiram os itens e roteiros do

inventário das tarefas individuais. O sociólogo polonês, além disso, aponta:

Em vez de preceder a política-vida e emoldurar seu curso futuro, eles

devem segui-la (derivar dela), para serem formados e reformados por

suas flexões e torções. Os poderes que liquefazem passaram do

‘sistema’ para a ‘sociedade’, da ‘política’ para as ‘políticas da vida’ –

ou desceram do nível ‘macro’ para o nível ‘micro’ do convívio social.

(BAUMAN, 2001, p. 14)

Essa é uma realidade, do ponto de vista sociológico, na qual o conceito de

cultura e modernidade, aqui defendido por nós, circunscreve-se. Ademais, Bauman

(2001, p. 14), a respeito do fenômeno da modernidade líquida, complementa:

A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada

da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade

pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos.

Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação.

Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não

experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os

fluidos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é

mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre.

Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância

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constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é

tudo menos inevitável.

A interação presente em toda prática discursiva que envolvia Frida e sua

produção epistolar é, por sua vez, uma fragmentação de suas várias faces. Frida esforça-

se para manter toda fluidez do seu ser, construído nas aspirações da pós-modernidade,

em formas que a serviam muito bem e as quais ela sabia manipular muito bem. Esse

esforço vai se revelar nos momentos de dor e tristeza que, normalmente, cercavam a

pintora. Contudo, em todo momento, percebemos que ela dá vazão para essa liquefação

dos conceitos sólidos que buscavam lhe engessar e, ao mesmo tempo, lutava pelas

formas que diziam muito mais sobre ela mesma.

Para além das contribuições que tais afirmativas baumanianas têm dado ao

nosso trabalho, utilizaremos, agora, a contribuição para construção humanizadora da

visão de “modernidade líquida” diante dos “sólidos” preceitos tradicionais. Aqui,

afirmamos que, com base nessas considerações, nos alinharemos a tais noções para

compreender melhor, nas narrativas epistolares fridianas, a “profunda mudança que o

advento da modernidade líquida produziu em sua condição” de ser humano e um ser de

linguagem.

Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança

que o advento da ‘modernidade fluida’ produziu na condição humana.

O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado

ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da política-

vida, muda aquela condição de modo radical e requer que repensemos

os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como

zumbis, esses conceitos são hoje mortos vivos. A questão prática

consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou

encarnação, é possível; ou – se não for – como fazer com que eles

tenham um enterro decente e eficaz (BAUMAN, 2001, p. 15).

Finalmente, e não considerando que, aqui, será o final desta discussão,

almejamos esclarecer a construção histórica, cultural, política, artística e afetiva que

constituiu o sujeito Frida Kahlo. A relevância que tais noções teóricas têm para nossa

pesquisa é incomensurável, tendo em vista que todo diálogo presente na teoria basilar

deste estudo – Bakhtin e o Círculo (ADD) – se volta para uma construção histórica e

social na noção de sujeito. Ademais, os estudos transculturais têm dado o tom

conceitual tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático. Enxergar

Frida e suas práticas discursivas pelo olhar dessas teorias tem nos dado uma luz sob o

fenômeno cultural e antropológico que cercava suas lutas e embates, pessoais e sociais.

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2.4 O gênero discursivo carta pessoal: um trajeto epistolar

Sob a orientação teórica e metodológica exposta, temos como objetivo, nesta

seção, apontar, de forma panorâmica, algumas referências no movimento dos gêneros

epistolares, considerando os mais variados lugares e contextos sociais em que esses

gêneros – em nosso caso focaremos na carta pessoal – circulam e/ou circularam.

Seguimos nessa linha de raciocínio, pois almejamos explicitar e reiterar as

afirmações teóricas da ADD sobre os gêneros do discurso, especificamente, aqui, a carta

pessoal, quando asseveram que essas ferramentas culturais não surgem sozinhas ou do

nada; elas são criadas e desenvolvem-se, assim como se transformam, nas práticas

discursivas, que envolvem atividades ideológicas, históricas e culturais.

Assim, nossa intenção neste tópico é traçar uma visão histórica e panorâmica da

carta pessoal, como também tentar distingui-la dos demais gêneros pertencentes ao

leque epistolar. Sombrear e destacar as características prototípicas do gênero em análise

é o nosso intento, pois acreditamos que isso nos ajudará a salientar os efeitos de seu

estilo, de sua macroestrutura e de seu conteúdo temático.

Passemos, agora, a uma breve explanação sobre a noção de prática discursiva e

que foi adotada nesta pesquisa, a qual, até o momento, vem sendo por nós utilizada.

2.4.1 Práticas discursivas

A noção de práticas discursivas bebe em um princípio, centro da discussão

empírica da Linguística Aplicada, toda e qualquer atividade social cujo pano de fundo

envolva linguagem. Essas práticas envolvem fenômenos históricos, profundamente

vinculados à vida cultural e social. Assim, como lembra Bakhtin, (2003, p. 309) “[...]por

trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema corresponde no texto o

que é repetido e reproduzido [...]”. É nessa afirmação que nos embasamos para traçar

um perfil das práticas discursivas de maneira geral.

Sob a égide do olhar bakhtiniano, podemos dizer que a linguagem presente em

um determinado gênero discursivo – em nosso caso a carta pessoal – explicita a maneira

pela qual os seres de linguagem, interativamente, agem em suas práticas discursivas no

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mundo da vida, tanto como enunciadores quanto como coenunciadores. Essas práticas,

refletindo e refratando as demandas de cada contexto social, histórico, cultural, etc.

Portanto, não há dúvida de que as práticas discursivas, sejam da

contemporaneidade ou não, sempre irão exigir a interação face a face. Em outras

palavras, uma aliança discursiva entre as manifestações sociais e as individuais de cada

sujeito cujo uso da linguagem se dá nas esferas sociais de circulação e produção dos

gêneros do discurso. Entendendo-se esfera como os espaços sociais nos quais essas

práticas discursivas são desenvolvidas.

Como insistia Bakhtin (2003) e outros tantos estudiosos vêm reiterando, a

produção de gêneros do discurso faz com que nós – seres de linguagem –

sedimentemos, na ação discursiva de cada gênero, essas práticas discursivas variadas.

Dessa forma, podemos salientar, também, que para cada esfera e, por conseguinte, cada

prática existirão determinados gêneros exclusivos (podemos citar como exemplo a

esfera jurídica com as audiências, as petições, os processos, etc.). Ao passo que a

evolução tecnológica e a variação linguística vão interferindo nessas esferas, as práticas

discursivas vão se atualizando e elegendo modos de articulação e organização distintos.

Trouxemos todas essas afirmações para realçar o fato de essas práticas sociais, que

envolvem a produção com a linguagem, estarem implicadas no processo de interação

verbal. Desse modo, elas elegem um suporte, um modo de circulação, preveem a

recepção e escolhem do modo de produção de cada gênero do discurso. A esse respeito

Bakhtin (2003, p. 364) assevera:

Os gêneros têm um significado particularmente importante. Ao longo

de séculos de sua vida, os gêneros (da literatura e do discurso)

acumulam formas de visão e assimilação de determinados aspectos do

mundo. Para o escritor-artesão, os gêneros servem como chavão

externo, já o grande artista desperta neles as potencialidades de

sentido jacentes.

Dessa forma, por estarmos traçando um panorama histórico e cultural a respeito

do Mexicanismo e das fôrmas culturais e ideológicas que cercavam o sujeito de nossa

pesquisa é que enxergamos a necessidade de delinear um caminho pelo qual passou o

gênero discursivo em questão – a carta pessoal.

Portanto, é o que faremos na seção seguinte, na tentativa de entrecruzar tudo o

que fora posto até agora e essas emergências valorativas nas cartas pessoais de Frida

Kahlo.

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2.4.2 A emergência das práticas discursivas da carta

No longo histórico dos processos interativos da existência humana, os quais são

orientados pela escrita, existiram alguns gêneros responsáveis pela construção

comunicativa que promoviam a comunicação a grandes distâncias. Um desses foi a

carta. E é do percurso desse gênero que falaremos a partir de agora. Cabe ainda pontuar

que a carta pessoal, como aqui é concebida, possui uma função comunicativa que, na

atualidade pode ser, mais rapidamente, atingida com outros gêneros. No entanto, não

podemos negar que no hall dos escritos epistolares, ela desempenha um papel social

que, muito provavelmente, criou um alicerce forte para as práticas discursivas nas quais

estão implicados os gêneros epistolares.

Durante mais de dois mil anos, escrever cartas foi o principal meio de

comunicação a distância. Da arte de escrever cartas muitos já falaram. Existem tratados

de epistolografia espalhados pelo mundo inteiro, tratados que o tempo nos legou. Tais

bibliografias tratam de características e evolução histórica do gênero em questão. Essas

características abordam desde tratados retóricos até regras mais autônomas.

Nossa investigação terá suas bases em uma obra organizada por Emerson Tin

(2005), intitulada “A arte de escrever cartas”, que traz as aspirações do Anônimo de

Bolonha, do Erasmo de Rotterdam e do Justo Lípsio. A partir dela, tentaremos traçar um

perfil desse gênero em um eixo temporal não muito longo, apesar de nosso objetivo,

com esse adendo, ser situar uma tradição epistolar no tempo e no espaço, sócio-

historicamente, não temos como intenção principal fazer um percurso muito longo, pois

corremos o risco de nos afastarmos do ponto central desta pesquisa.

A respeito da definição geral de algumas características do gênero carta, Tin

(2005, p. 18) inicia sua discussão falando de um período que cobre cerca de cinco

séculos – I a.C. até o séc. IV d.C., pontua ele. Desse momento, o autor cita menções a

epistolografia nas obras de “Demétrio, Filóstrato de Lemnos e Caio Júlio Victor, além

das dispersas nas epístolas de Cícero, de Sêneca e de Gregório Nazianzeno” (p.18). De

acordo com ele, ainda, “o interesse dessas referências é patente, uma vez que são as

primeiras teorizações sobre epistolografia de que se tem notícia e documentação”

(p.18).

Dessa maneira, Tin define:

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Alguns traços comuns parecem unir todas as concepções epistolares

da Antiguidade: a carta é definida como um diálogo entre amigos e,

como tal, deve ser breve e clara, adaptando-se aos seus destinatários e

empregando o estilo mais apropriado. (TIN, 2005, p. 19).

No que diz respeito a esse aspecto, interessa-nos pontuar que, em uma tradição

ocidental da arte de escrever cartas há uma variedade de práticas discursivas com

finalidades específicas. Como forma de exemplo, trazemos as cartas de Cícero e as de

Sêneca, citadas por Tin (2005, p. 20) como “modelos da literatura epistolar”, as

chamadas cartas familiares, mais conhecidas como um gênero literário-filosófico. Elas

foram escritas não somente para parentes, mas também a todos os amigos, e possuíam

intenções comunicativas diversas, que iam desde recrear para o entendimento até

queixar-se de algo ou alguém. Embora elas trouxessem, em sua materialidade

linguística, o nome para quem se dirigiam, eram escritas para a leitura de um público

amplo o que permitia a difusão e socialização de ideias. Em resumo, essa prática

discursiva epistolar tinha sempre em seu horizonte ora o deleite, ora o ensino; ora

reflexões acerca das ações humanas de modo geral, ora reflexões subjetivas e

individuais.

Falemos agora de cada autor que citamos nos parágrafos anteriores. Demétrio,

de acordo com a explanação de Tin (2005), foi o autor do tratado IIԑί έµɳvԑίαϛ, em latim

De elocutione. Em seu tratado, ele aborda o estilo simples que será associado ao vício

da aridez, também propõe a aplicação desse estilo na escrita de cartas. Segundo Tin

(2005, p.19), Demétrio tem como base de suas ideias um juízo de Artemón, “que teria

compilado as cartas de Aristoteles”. Sobre a noção de escrever cartas cunhada por

Demétrio, o autor afirma:

[...] a carta deve ser algo mais elaborado que o diálogo, pois, enquanto

o diálogo imita alguém que improvisa, a carta, de outra forma, é

escrita e enviada a alguém, como se fosse um presente. Ainda assim,

deve-se adotar na carta um estilo simples, pedestre, de maneira que

mais se aproxime de uma conversa entre amigos do que da

demonstração pública de um orador.

E prossegue:

[...] comparando a carta ao diálogo: deve ser ela rica na descrição dos

caracteres, pois pode-se dizer que cada um escreve a carta como

retrato de seu próprio ânimo, sendo ela a forma de composição

literária em que mais se pode ver o caráter do escritor desse texto.

(TIN, 2005, p. 20).

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Em sua conclusão, Demétrio apud Tin (2005, p. 22) mostra que, quanto ao modo

de elocução, a carta deve misturar “os estilos gracioso e simples”, encabeçando uma das

partes do diálogo. É importante lembrar que, em um corredor histórico das influências

das epístolas em períodos históricos específicos, a discussão presente no tratado de

Demétrio refletiu a função da literatura epistolar, seja ela da esfera privada ou da

pública, em um período conhecido como helenístico.

No entanto, as práticas discursivas que envolvem as cartas citadas por Demétrio

não são equivalentes às cartas pessoais que conhecemos hoje, aquelas produzidas e lidas

em espaço de privacidade. Na realidade, elas eram escritas pensando em espaços em

que fossem publicizadas. As cartas que conhecemos hoje, de uma esfera mais intimista,

surgem no século XVII e compõem o cotidiano comunicativo das pessoas na esfera

privada. Nesse sentido, elas assumem outras intenções de comunicação, como por

exemplo: dar notícias a quem estava longe e ausente há bastante tempo, manter um

diálogo para fomentar um relacionamento à distância, etc. Esse tipo de prática

discursiva epistolar, muito mais comum na esfera familiar, se aproxima do arremate que

é dado ao gênero, segundo Tin (2005), por Marco Túlio Cícero (106-43 a. C.).

Ao contrário de Demétrio, Cícero não escreveu nenhum tratado epistolar. O que

existem são diversos conceitos a respeito daquilo que ele vai chamar, em suas cartas, de

“A arte epistolográfica”. Tais conceitos nos levam a pressupor que ele possuía muitos

conhecimentos a respeito da teoria grega epistolar. Essa sucessão de cartas é chamada

de Epistular ad actticum. E nelas, Cícero vê a carta como uma conversação por meio da

escrita.

Nada teria para escrever. Nenhuma nova ouvi, e a todas as tuas cartas

respondi ontem. Mas, como a aflição não só me priva do sono, mas

também não me permite manter-me acordado sem uma imensa dor,

por isso comecei a escrever-te sem assunto definido, pois assim

contigo quase falo, e é a única coisa que me acalma. (CÍCERO apud

TIN, 2005, p. 25)

Nesse sentido, ele não se afastaria de Demétrio. Mas sua série de cartas traz

conceitos diferentes, aos quais Demétrio não faz referência alguma. Como, por

exemplo, o fato de a carta, para Cícero, manifestar o caráter de quem escreve. Assim

como uma subdivisão que ele faz adotando estilos diferentes entre as cartas da litterae

publicae e as da litterae privatae. Para o filósofo grego, as cartas, ainda, deveriam

adaptar-se às circunstâncias comunicacionais assim como ao comportamento de seus

coenunciadores. Nesse sentido, as cartas, ainda, poderiam se utilizar das conversas

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cotidianas, desde que modalizassem a utilização de gracejos e atentassem para a

disposição ordenada da temática.

Dando uma adiantada no fio cronológico, voltamos nosso olhar, agora, para as

Rationes dictandi, de um autor que Tin (2005) chama de Anônimo de Bolonha. Cartas

datadas de 1135. Nesse escopo, o autor informa que depois de terem definido a carta

como “um arranjo adequado de palavras, colocadas na intenção de expressar o sentido

pretendido” e, até mesmo, como “um discurso composto de partes ao mesmo tempo

distintas e coerentes, significando plenamente os sentimentos de seu remetente” (p. 38),

ocorre uma segmentação do gênero em cinco partes: salutatio, captatio benevolentiae,

narratio, petitio e conclusio. Sendo essas, de acordo com Tin (2005, p. 38/42),

respectivamente:

[...] uma expressão de cortesia que transmite um sentimento amistoso

compatível com a ordem social das pessoas envolvidas [...] Ressalta-se, em

seguida, os epítetos, que devem ser selecionados a fim de que eles apontem

algum aspecto do renome e do bom caráter do destinatário;

[...] uma certa ordenação das palavras para influir com eficácia na mente do

destinatário, o que pode ser assegurado por cinco modos: o remetente[...], o

destinatário [...], por ambos, pelas circunstâncias [...] e pela matéria [...];

uma enumeração ordenada dos fatos sob discussão, ou melhor, uma

apresentação dos fatos de um modo que parecem eles próprios se apresentar;

uma parte na qual se tenta pedir alguma coisa, havendo nove espécies:

suplicatória [...], didática [...], cominativa [...], exortativa [...], incitativa [...],

admonitória [...], conselho autorizado [...], reprovativa [...] e direta [...]; e

uma passagem pela qual uma carta é terminada. Na conclusão, é costumeiro

referir-se ao motivo pelo qual a questão é vantajosa ou não segundo os assuntos

tratados na carta.

Vale salientar que, para esse tratado, tais partes não são exigidas com rigor nas

cartas. Pode haver, sem maiores problemas, cartas compostas sem algumas dessas

características.

Em seguida, depois de mais um salto temporal feito por nós, Tin (2005) explicita

as ideias presentes nos tratados de Desidério Erasmo (c. 1469 – 1536), mais conhecido

como Erasmo de Rotterdan. Ao todo, de acordo com Tin, Erasmo escreveu três tratados

sobre a escrita de cartas. Sendo estes: Breuissima maximeque compendiaria

conficiendarum epistolarum formula (1520); Libellus de conscribendis epistolis (1521);

e Opus de conscribendis epistolis (1522). Apesar das proximidades de cada publicação,

entende-se que os tratados foram produzidos bem antes.

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De maneira geral, Tin (2005) afirma que, para Erasmo, o estilo da carta não pode

ser comparado ao estilo de quem grita no teatro, mas ao de quem sussurra num canto

com algum amigo. “O escritor de cartas deve aspirar, dentro dos limites do sermo e sob

a contentio da oração, pela agudeza, dicção apropriada, inteligência, humor, encanto e

brevidade” (TIN, 2005, p. 53). Nesses tratados ainda podemos encontrar partes

dedicadas aos mestres e abordagem de exercícios e imitações, ou à maneira de ensinar a

arte epistolar. O que os torna bastante didáticos à época.

Por fim, Erasmo de Rotterdan dedica um longo espaço de seus tratados à ordem

nas cartas, atribuindo conselhos para cada um de seus tipos, distinguindo cartas com

assunto único e cartas com assunto múltiplo. Mesmo enquadrando o gênero epistolar em

modelos, ele ainda afirma: “a liberdade da carta é tal que ela pode tomar seu ponto de

partida não importa de onde” (ERASMO apud TIN, 2005, p. 60). Ele ainda faz uma

diferenciação entre carta e discurso, muito embora afirme que a carta é um gênero

oratório, fazendo uma alusão aos tratados de retórica.

Prosseguindo, consideramos importante destacar a aparição de um humanista

flamengo chamado Justo Lípsio (1547-1606). Tanto por seu grau de importância para a

literatura epistolográfica, quanto por ser ele revisitado na obra de Emerson Tin (2005).

Lípsio escreveu a Epistolica institutio. Um livro, dividido em treze capítulos, no

qual ele trata, do primeiro ao último capítulo, da arte de escrever cartas. Tin (2005), na

tentativa de dar conta dessa importante obra epistolar, tenta resumir de maneira bem

didática o conteúdo de cada parte do compêndio de Lípso. Seus desdobramentos

destacam desde a explicação etimológica – “dos vários nomes da carta: e da sua forma

entre os Antigos” (TIN, 2005, p. 62) – até a abordagem que se assemelha, não

totalmente, mas apenas em alguns aspectos, àquilo que as teorias da enunciação vão

chamar de cena enunciativa – “quem deve ler, quando se deve ler, o que e de quem se

deve selecionar, o que se deve imitar e o que evitar, quais modelos seguir com a

indicação dos escritores prototípicos” (TIN, 2005, p. 66).

Por conseguinte, podemos observar que à época desses filósofos e bem antes

dela, a carta era um gênero que buscava atingir algumas exigências que se configuravam

por causa das atividades do Estado. Na Grécia e Roma antigas, por exemplo, ordens,

leis, proclamações, pronunciamentos, comandos militares, documentos administrativos

e negócios políticos do Estado eram emitidos na forma de carta, os chamados

documentos legais ou oficiais. Encontram-se, talvez, nesse ponto o início de uma

sociedade que passou a se organizar através de práticas discursivas, tornando-se assim

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burocratizada. Nessa mesma tônica, podemos elucidar nossas aspirações a respeito da

epistolografia com os exemplos da Igreja Católica, que, num amplo processo de

expansão de suas fronteiras, tanto na antiga Roma quanto no período medievo, utilizou

a arte epistolar para evangelizar e até mesmo impor seus preceitos com gêneros

discursivos como: cartas apostólicas, cartas pastorais e as homilias (que versavam de

assuntos políticos e buscavam reafirmar os dogmas da igreja). Com isso, a poderosa

mãe do cristianismo ortodoxo inventou um sistema complexo em rede, que tinha por

intenção comunicativa administrar, controlar e pacificar as sociedades do reino da fé

cristã.

Não obstante, precisamos apontar também as demandas mais contemporâneas

atreladas aos setores administrativos da sociedade moderna. Nela há uma nova realidade

tecnológica e fatores que contribuem para o surgimento de novas práticas discursivas e

a remodelagem da carta e seus derivados. Essas novas tecnologias da informação

também contribuíram para que os gêneros epistolares se hibridizassem, se

transformassem e até para o surgimento de novos gêneros: como é o caso do e-mail.

Diante disso, importa, para nós, evidenciar o movimento das cartas pessoais e

íntimas, pois é com esse gênero que trabalharemos nesta pesquisa. Importa também

ressaltar que compreendemos as cartas pessoais de Frida Kahlo, esse gênero do

discurso, como primárias, pois as práticas discursivas que envolvem a produção delas

circunscrevem-se em um contexto privado, intimista, sendo, portanto, despojadas de

formalidades, as quais outrora eram impostas por relações burocratizantes. Em relação a

isso, Bakhtin (2003, p. 281) assevera:

Os gêneros discursivos secundários [...] surgem nas condições de um

convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido

e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico,

sociopolítico, etc. no processo de sua formação eles incorporam e

reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas

condições da comunicação discursiva imediata.

E continua:

Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se

transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo

imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios: por

exemplo, a réplica do diálogo cotidiano ou da carta no romance, ao

manterem a sua forma e o significado cotidiano apenas no plano do

conteúdo romanesco, integram a realidade concreta apenas através do

conjunto do romance [...] (BAKHTIN, 2003, p. 263-264).

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Aqui, na voz de Bakhtin (2003), gostaríamos de contornar, sob forma de

destaque, que a inserção desse gênero do discurso (carta pessoal) nas obras da literatura

mundial e, até mesmo, a construção de uma literatura através da epistolografia reflete e

refrata graus dialógicos presentes na dinâmica das práticas discursivas nas quais esse

gênero é produzido. No contexto histórico e cultural da sociedade humana, a carta

pessoal é um fenômeno discursivo com uma carga ideológica que atravessa eixos de

tempo e espaço e é interpenetrada por esses eixos tornando-se completamente variável,

mutável e adaptável.

Por fim, deve-se observar que a carta pessoal e os demais gêneros são formas de

produção de linguagem, criadas socialmente para responderem às necessidades

comunicativas de uma sociedade e são contextualmente situadas. Nessa linha de

argumentos, pode-se assinalar que os gêneros expressam as formas como as pessoas

atuam e participam discursivamente nas práticas de linguagem de uma sociedade. Nesse

sentido, entendemos que os gêneros representam um sistema de ações e interações que

têm locações e funções sociais específicas bem como valor ou função repetidos ou

recorrentes.

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3 CORES TEÓRICAS QUE DELINEARAM NOSSA PESQUISA:

CAMINHANDO SOB O LASTRO DE OUTRAS VOZES

Figura 5 – Autorretrato de pelona (1940), óleo sobre lienzo 40 x 28 cm.

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Fonte: Site da Revista Pausa9

O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é

totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas suas

contínuas re-criações por meio da cocriação dos contempladores, e

não requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário

dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela

9 Disponível em: <http://www.artenadas.com/2011/12/frida-pinturas-obras-vida-cuadros.html > Acesso

em: 20 nov. 2014.

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participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base

econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras

formas de comunicação.

(Bakhtin/Voloshínov)

As epígrafes que trazemos para abrir este capítulo dialogam com o

arcabouço teórico que pensamos para esta pesquisa e no qual nos inscrevemos enquanto

pesquisadores que pensam/falam de um lugar. Neste caso, da área de conhecimento da

Linguística Aplicada, um campo de saber transgressor e heterogêneo. Essa construção

de um alicerce de vozes teóricas, arquitetadas em uma alvenaria dialógica, não é o

levante de barreiras para limitar o alcance de nossas formas arquitetônicas, ou a nossa

concepção sobre nosso objeto de estudo como objeto estético.

Assim, por acreditarmos que esta dissertação nasce, principalmente, no

ponto em que se entrecruzam as vozes teóricas com as quais nos afinamos, é que

podemos afirmar que há uma seleção de vozes por uma questão de orientação e

necessidade desta pesquisa. Colocamo-nos no lugar desse outro que pretende dialogar e

dar acabamento estético à imagem valorada de Frida Kahlo. Pretendemos, portanto, ser,

com o olhar do pesquisador das ciências humanas, mais precisamente do linguista

aplicado, esse outro que “participa do fluxo unitário da vida social, [...] que se envolve

em interação e troca” (VOLOCHÍNOV, 2013, p.35) com a forma de interação que Frida

elegeu como sua. Ou seja, suas cartas pessoais.

Se nos atentarmos para a obra que aqui aparece (Autorretrato de pelona,

1940), veremos que ela representa a artista numa fase da sua vida na qual, por algum

tempo, não esteve acamada no hospital ou presa à uma cadeira de rodas. Apresenta-se

sentada numa sala tristemente vazia, vestida com um facto masculino escuro e olhando

para o observador, não só com intensa calma, mas também com orgulho e uma ponta de

desafio. É uma tela contextualizada. Meses antes, a artista tinha-se divorciado de Diogo

Rivera (a sua grande paixão) após um casamento feito de traições, de ambas as partes, e

tumultos vários. Essa paixão a fez sofrer até o desespero.

Na mão direita segura uma tesoura, com o qual acabou de cortar o

seu magnífico cabelo, conhecido de muitas outras pinturas. Há por todo o lado restos de

cabelo e de tranças. Na parte superior da pintura a artista oferece-nos um desafio

amargamente literal sob a forma de letra de uma conhecida canção mexicana: “Olha,

quanto te amava, era pelo teu cabelo; agora que estás careca não te amo mais”

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(tradução nossa). É uma canção de amor, cantada do ponto de vista de um homem

acerca do abandono de uma mulher, e a situação de tristeza e desprezo que daí resulta.

Normalmente, tanto o ser abandonado quanto o cortar do cabelo significam humilhação.

Enxergamos nessa tela um processo de desconstrução de uma Frida Kahlo

que vai dar vazão a mais uma face desse sujeito fridiano, que é tão complexo e ativo em

todas as suas atitudes responsivas. E é sob essa égide de desconstrução que a artista vai

se reconstruindo e se ressignificando.

Desta feita, elegemos essa pintura de Frida e esse pensamento de Bakhtin

como epígrafes introdutórias do capítulo teórico porque pretendemos desconstruir e

ressignificar, por meio de lentes teóricas que resenharemos aqui, as imagens de Frida

Kahlo construídas verbalmente. E, tamanha ousadia só seria possível partindo desse

ponto de vista, se nos colocássemos no lugar desse outro bakhtiniano com quem o

objeto de estudos irá dialogar.

Para tanto, compreendemos que “O acontecimento da vida do texto, isto é, a

sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de

dois sujeitos.” (BAKHTIN, 2003, p. 311). Isso reforça a nossa inquietação discursiva de

querer ouvir várias vozes em todos os momentos desta pesquisa, selecionando aquelas

que melhor servirem ao nosso propósito comunicativo.

Nesse sentido, subsidiamos esta pesquisa nas considerações do Círculo de

Bakhtin para a criação de um todo integrado (arquitetônica) a respeito das cartas

apaixonadas de Frida Kahlo, em que poderemos compreender suas práticas discursivas

através de estudos nos quais as categorias serão, sempre, construídas em diálogo com o

nosso corpus.

3.1 Uma concepção dialógica de linguagem

Para situar o contexto desta pesquisa assim como o objeto, demarcaremos a

concepção de linguagem em que nos apoiamos. Trata-se de uma concepção sócio-

histórica situada e construída nas bases sociais do discurso, uma concepção dialógica de

linguagem. Portanto, vemos a linguagem como interação social e discursiva,

“constitutivamente dialógica” que é construída pelo sujeito e que o constrói.

Em “Para uma filosofia do Ato Responsável” (BAKHTIN, 2010d) – livro

que data do início da década de vinte do século passado – a inquietação de Bakhtin com

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a linguagem aparece subordinada às suas reflexões sobre ética e filosofia. Observamos

que, nesse texto, o filósofo da linguagem já a compreende como atividade, concreta,

vinculada à dimensão da vida e entendida, portanto, como concreta. Ela carrega

expressividade, atitudes valorativas dos sujeitos em relação ao seu objeto discursivo.

Quando partimos para “Estética da criação verbal” (BAKHTIN, 2003), mais

precisamente no capítulo sobre os gêneros do discurso, encontramos uma reafirmação

dessa concepção de linguagem. Ou seja, para Bakhtin, não dá para deixar o mundo da

vida de lado, pois, aqui, ele compreende os gêneros discursivos como “correias de

transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN, 2003,

p. 268).

Partindo disso, podemos afirmar que, baseados nessa perspectiva teórica,

pensamos a linguagem constituindo o mundo social e os sujeitos que vivem nesse

mundo, em relação a outros tantos sujeitos e em relação a si mesmos. Desse modo, foi

preciso, para compreender essa difícil relação (sujeito & mundo), nos remeter à

discussão que BAKHTIN/VOLOCHÍNOV (2006) fazem a respeito de linguagem,

infraestrutura e superestrutura; assim como as determinações ideológicas e as atitudes

responsivas desses sujeitos implicados em infraestruturas e em atividades da base

econômica social.

Portanto, temos:

Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois socialmente

organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser

substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence

o locutor. [...] Essa orientação da palavra em função do interlocutor

tem uma importância muito grande. Na realidade, toda palavra

comporta duas faces. [...] Ela constitui justamente o produto da

interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a

um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao

outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.”

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 73).

Dessa maneira, e vendo por esse prisma, pretendemos contornar, dar cores

discursivas a essa autora-criadora, com a finalidade de traçar o ethos desta mulher que

foi martirizada pelas traições de seu esposo, mulher do profano e levou uma vida regada

pelas revoluções, artes e figuras significativas da sociedade mexicana e mundial da

época. Em outras palavras, Frida é o outro a quem pretendemos definir rastreando as

escolhas lexicais que a autora fez e, posteriormente, seremos definidos e revelados

também pelas palavras que direcionaremos, que escreveremos e, até mesmo, que

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construiremos. Tudo isso em função da busca incansável pela imagem valorada de uma

mulher que, até a atualidade, é referência de vida e luta política.

Por conseguinte, intentamos, aqui, problematizar a linguagem em

enunciados construídos nas cartas pessoais da pintora, nas relações de Frida com seus

outros. Sendo estes circulantes das esferas discursivas do “mundo da vida” da própria

autora, que se posiciona em defesa de ideologias diversas.

3.1.1 Gêneros discursivos: uma abordagem na perspectiva bakhtiniana

Esta pesquisa tem, em suas bases de sustentação, as construções teóricas de

Bakhtin e do Círculo. As postulações bakhtinianas são, na contemporaneidade,

indicações adotadas pelos documentos oficiais que regem o sistema educacional do

Brasil, ou pelo menos deveriam reger.

Interessa-nos, especialmente, a concepção de gêneros do discurso da ADD

como um elemento norteador que entrecruzará todas as outras noções teóricas com as

quais trabalharemos. A despeito dessa concepção, o filósofo russo assevera:

Os gêneros do discurso, comparados às formas da língua, são bem

mais mutáveis, flexíveis e plásticos; entretanto, para o indivíduo

falante eles têm significado normativo, não são criados por ele, mas

dados a ele (BAKHTIN, 2003, p. 285).

Esse caráter plástico, mutável, flexível do gênero discursivo permite que o

coloquemos em diálogo constante com o nosso arcabouço teórico. As noções que

discutimos neste capítulo serão todas amparadas pela construção teórica do gênero

discursivo. É através do gênero que o sujeito Frida Kahlo irá se posicionar e travar todas

as suas relações sociais no mundo da vida.

Assim sendo, compreendemos que o ser humano é um ser de língua(gem).

Essa característica, construída social, cultural e historicamente, nos diferencia de outros

animais. É por meio desse sistema de signos que atuamos socialmente no “mundo da

vida”, como bem afirma Bakhtin (2003).

Em outras palavras, essa teia dialógica – e aqui nos referimos à noção

teórica de dialogismo encontrada nas formulações da Análise Dialógica do Discurso

(ADD) – permite-nos alcançar os projetos discursivos que surgem diante da interação

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com um mundo que é semiotizado, carregado de valores e ideologias. Tais projetos

ganharam sentido naquilo que Bakhtin vai chamar de “enunciado”.

Diante disso, e parafraseando Bakhtin, compreendemos que esses

enunciados são corporificados em arcabouços culturais, através dos quais,

pragmaticamente, bebemos, namoramos, resenhamos a vida alheia, compramos,

brigamos, rimos, opinamos, ou seja, atuamos e fazemos nossa marca estilística circular

por esferas sociais distintas. A esse “corpo enunciativo” Bakhtin nomeia como “gênero

do discurso”.

Portanto, recorremos à concepção bakhtiniana de gêneros discursivos como

construção sócio-histórica de sujeitos em interação, para melhor embasar nossa

dissertação. Ao definir o conceito, Bakhtin (2003, p. 261) enfatiza que: “o emprego da

língua efetua-se em forma de enunciados”, e tais enunciados estão se realizando o

tempo todo nos diversos campos da atividade humana, evidentemente, cada campo vai

produzir seus “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 262),

que vão ser os gêneros do discurso conforme a concepção bakhtiniana.

Segundo o teórico, toda atividade humana está atrelada à utilização da

linguagem, e tais atividades são multiformes, ou seja, as formas “típicas de enunciados”

(BAKHTIN, 2003) são totalmente variáveis aos campos de atuação, o que não contradiz

a unidade nacional de uma língua.

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque

são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e

porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de

gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se

desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN,

2003, p. 262).

Posto isso, devemos colocar em evidência a grandiosa heterogeneidade dos

gêneros do discurso, sejam eles orais ou escritos, nos quais estão incluídos rápidos

diálogos do cotidiano até o romance com inúmeras páginas. Aparentemente, essa

imensa heterogeneidade impossibilita um único plano de estudo para si, já que esse

plano se apresenta com fracas marcas de heterogeneidade. Mas o que nos interessa é

que, para Bakhtin (2003), esses enunciados refletem e refratam as condições específicas

e as finalidades de cada campo e, principalmente, por sua construção composicional e

também, mas não mais importante por seu conteúdo – em outros termos, um tema

específico e recorrente em dada esfera – e estilos de linguagem, ou seja, as escolhas dos

recursos lexicais, dos recursos fraseológicos e gramaticais.

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Bakhtin/Volochínov (2009) também afirma que “o discurso escrito é de certa

maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a

alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura

apoio, etc.” (p. 128). Sendo assim, é preciso que haja, em qualquer atividade que

envolva gênero do discurso do ponto de vista bakhtiniano, assim como a exposição de

ideias e posicionamentos de maneira satisfatória, atingindo o objetivo esperado pelo

autor e alcançando o seu leitor/interlocutor, um trabalho de elaboração permanente

fazendo com que o texto, no fim de todo processo se constitua em um ato de dizer que

se dirige a um outro. Nas cartas de Frida percebemos esse processo no que diz respeito

às escolhas lexicais que variam de acordo com o interlocutor.

Nessa perspectiva, estamos compreendendo a carta pessoal como gênero

discursivo, que surge em uma relação de convívio cultural e pertence à esfera do

convívio social da época que, em seu processo de formação, utiliza e reelabora uma

diversidade de gêneros primários, ou seja, gêneros mais simples, para integrarem a sua

composição. Nesse sentido, os gêneros que vão compor os secundários (complexos)

transformam-se, ganhando assim um caráter específico, como afirma Bakhtin (2003, p.

319): “perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais

alheios”.

Ainda no campo do discurso, Bakhtin (2003) nos chama atenção por colocar

que o ser humano é um ser do discurso, formado ideologicamente pelo discurso e se

expressando em “enunciados” que são nomeados também pelo filósofo russo como

“gêneros discursivos”, assim podemos afirmar que o gênero discursivo carta pessoal,

neste momento, organiza e expressa o discurso de Frida Kahlo de maneira tal que nos

permite resgatar os seus posicionamentos axiológicos e mapear, por meio desse estilo

particular de escrever da autora, uma imagem que ela pinta dessa vez com palavras.

Vejamos a citação de Bakhtin:

As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os

gêneros do discurso chegam a nossa experiência e à nossa consciência

em conjunto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar significa

aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não

por orações isoladas). Os gêneros do discurso organizam o nosso

discurso quase da mesma forma que organizam as formas gramaticais

(sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em forma de

gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu

gênero pelas primeiras palavras [...] (BAKHTIN, 2003, p. 283).

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Assim, todos os textos e enunciados estão materializados em algum gênero

do discurso, que, como já dissemos, não pode ser visto como tipos estáveis, mas

relativamente estáveis. Essa ressalva é importante, pois, quando se pensa que um gênero

fixou seus elementos caracterizadores, os sujeitos reorganizam as características de

acordo com seu horizonte social, ou seja, com as situações imediatas de enunciação

como também as situações mais amplas.

3.2 O sujeito bakhtiniano: considerando as influências histórico-culturais

Conforme temos discutido em seções anteriores, interessa-nos a visão de

sujeito que seja balizada na construção social, histórica e cultural, seguindo o Círculo de

Bakhtin – atual ADD. Não se pode pensar em sujeito desprendido de seu círculo social,

desconsiderando sua história e as influências externas ao próprio sujeito. Muito menos,

aviltar a possibilidade de um sujeito acabado, pleno de sentido, sem espaços para os

inacabamentos que são inerentes aos seres de linguagem. O sujeito bakhtiniano é

inacabado. Ele estará, sempre, no limiar do acabamento que o outro lhe dará. Em outras

palavras, é o outro quem me define, me acaba esteticamente, e esse acabamento pode se

modificar ao passo que esse outro, também, é modificado e acabado por seus

interlocutores.

Por conseguinte, existem correntes filosóficas defendendo que, para o

sujeito ser de verdade, tem de ver seu reflexo em algum lugar, tem de ouvir seus

diferentes ecos, tem de atingir seus limites e comprovar que se move, tem de nomear e

ser nomeado, tem de saber se imaginar, saber ser desejado. Se o espelho é o referente

mais primário e o desejo – o olhar do outro – mais complexo, há entre ambos inúmeras

maneiras pelas quais o corpo obtém notícia de si e encontra sua razão e seu sentido,

como afirma Bakhtin (2003):

Contemplar a mim mesmo no espelho é um caso inteiramente

específico de visão da minha imagem externa. Tudo indica que neste

caso vemos a nós mesmos de forma imediata. Mas não é assim;

permanecemos dentro de nós mesmos e vemos apenas o nosso reflexo,

que não pode tornar-se elemento imediato da nossa visão e

vivenciamento do mundo: vemos o reflexo de nossa imagem externa

mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa

não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho; o

espelho só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais

um material não genuíno. De fato, nossa situação diante do espelho

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sempre é meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós

mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro

possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição

axiológica em relação a nós mesmos; também aqui tentamos vivificar

e enformar a nós mesmos a partir do outro. Daí a expressão original e

antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na

vida (BAKHTIN, 2003, p. 30).

Assim acontece nas mais variadas esferas do mundo da vida e nas mais

variadas atividades humanas que envolvam interação face a face. Seja nas habilidades

de brincadeira e do trabalho ou nas nimiedades do ócio; no esporte e no espetáculo,

praticados ou apenas assistidos; na roupa e nos detalhes infinitos do cuidado pessoal; no

que se come e no que se excreta; nas reviravoltas do sexo; na coleção de fotos que o

tempo vai juntando em uma caixa de sapatos; na literatura e na filosofia, na psicanálise,

no conhecimento científico, ou na arte. Em todo e qualquer campo em que os

enunciados concretos circulem socialmente, seremos refletidos e refratados pelo

acabamento que o outro nos dá.

Assim sendo, nos filiamos à noção de sujeito de Bakhtin e seu Círculo. Em

que, para compreender esse “ser de verdade”, é preciso observar sua construção social, a

partir da interação verbal na relação com o outro. Ou seja, o sujeito bakhtiniano é ativo

na constituição da língua e é constituído por ela. Obviamente, toda essa construção só

pode acontecer a partir da interação verbal com o outro que lhe dará acabamento

estético.

Acompanhada dessa noção de sujeito, associamos nossa pesquisa, também,

ao conceito de alteridade que, assim como a concepção anterior, é discutida ao longo de

toda obra de Bakhtin. Compreende-se, portanto, a alteridade como essa necessidade

estética e, provavelmente, absoluta que o ser de linguagem tem do outro. Nesse sentido,

o único que é capaz de criar uma imagem valorada, dar acabamento a esse sujeito é a

relação eu-outro. Em outras palavras, só o outro tem como atribuir uma personalidade

ao eu, sem esse outro essa imagem externa simplesmente não existe.

Assim sendo, Bakhtin (2003, p. 34) afirma:

De fato, só no outro indivíduo me é dado experimentar de forma viva,

estética (e eticamente), convincente a finitude humana, a

materialidade empírica limitada. O outro me é todo dado no mundo

exterior a mim como elemento deste, inteiramente, limitado em

termos espaciais; em cada momento dado eu vivencio nitidamente

todos os limites dele, abranjo-o por inteiro com o olhar e posso

abarcá-lo todo com o tato; vejo a linha que lhe contorna a cabeça

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sobre o fundo do mundo exterior, e todas as linhas do seu corpo que o

limitam no mundo;[...].

Diante disso, podemos afirmar que a maneira de vivenciarmos, como

pesquisadores, estudantes, leitores, situados em um lugar específico, o eu de Frida kahlo

se diferencia da maneira como experienciamos o nosso próprio eu. Isso, em linhas

gerais, reforça a ideia de alteridade que está diretamente relacionada com a grande

metáfora bakhtiniana: a relação interacional entre um eu e um outro.

3.3 Da noção dialógica de enunciado

Uma vez que o sujeito bakhtiniano se expressa por meio de enunciados reais

e concretos, precisamos situar teoricamente o que entendemos por enunciado. Para esta

pesquisa, pois, as cartas que compõem o corpus desta dissertação serão compreendidas

como enunciados na perspectiva aqui assumida.

Sendo assim, acreditamos que:

Todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. É a

posição ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do

sentido. Por isso cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por um

determinado conteúdo semântico-objetal. A escolha dos meios

linguísticos e dos gêneros de discurso é determinada, antes de tudo,

pelas tarefas (pela ideia) do sujeito do discurso (ou autor) centrados no

objeto e no sentido. É o primeiro momento do enunciado que

determina as suas peculiaridades estilístico-composicionais

(BAKHTIN, 2003, p. 289).

Essa natureza dialógica de todo enunciado, o qual se configura pelas

escolhas do sujeito produtor com as quais visa atender ao seu projeto de dizer, leva-nos

a olhar para as cartas de Frida buscando, nesses elos da cadeia dialógica de

comunicação, as pistas de estilo que atravessam os conteúdos semântico-objetais.

Seguindo nossa linha de pensamento, podemos observar que, para a teoria

bakhtiniana, no todo do enunciado existem alguns planos discursivos a serem

observados. De acordo com o que Bakhtin afirma, é imprescindível que estejamos

atentos às escolhas do sujeito. A esse respeito, ele complementa:

Quando escolhemos as palavras no processo de construção de um

enunciado, nem de longe as tomamos sempre do sistema da língua em

sua forma neutra, lexicográfica. Costumamos tirá-las de outros

enunciados e antes de tudo de enunciados congêneres com o nosso,

isto é, pelo tema, pela composição, pelo estilo; consequentemente,

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selecionamos as palavras segundo a sua especificação de gênero. O

gênero do discurso não é uma forma da língua mas uma forma típica

do enunciado; como tal forma, o gênero inclui certa expressão típica.

(BAKHTIN, 2003, p. 293).

Assim, pensando nas interrelações entre as escolhas fridianas e as imagens

valoradas que buscarmos perscrutar, optamos pelas cartas, pois conseguimos enxergar a

construção de alguns elos discursivos que serão propiciados pelo gênero. Por isso se

fazia necessária uma explanação sobre esse construto teórico, tendo em vista que ele

será fundamental para o alcance de nossos objetivos.

Seguindo com a discussão, em “Marxismo e filosofia da linguagem”, a

palavra enunciação é utilizada muitas vezes como ato de fala. A enunciação concreta é

a realização exterior da atividade mental guiada por uma orientação social mais ampla,

uma mais imediata e, também, a interação com interlocutores concretos. Vejamos o que

afirma Bakhtin/Volochínov:

[...] os problemas de sintaxe são da maior importância para a

compreensão da língua e de sua evolução, considerando-se que de

todas as formas da língua, as formas sintáticas são as que mais se

aproximam das formas concretas da enunciação, dos atos de fala.

Todas as análises sintáticas do discurso constituem análises do corpo

vivo da enunciação; portanto, é ainda mais difícil trazê-las a um

sistema abstrato da língua. As formas sintáticas são mais concretas

que as formas morfológicas ou fonéticas e são mais estreitamente

ligadas às condições reais de fala. É por isso que, na nossa reflexão

sobre os fatos vivos da língua, demos justamente prioridade às formas

sintáticas sobre as formas morfológicas ou fonéticas. Mas, como

também já deixamos claro, um estudo fecundo das formas sintáticas

só é possível no quadro da elaboração de uma teoria da enunciação.

Enquanto a enunciação como um todo permanecer terra incógnita

para o linguista, está fora de questão falar de uma compreensão real,

concreta, não escolástica das formas sintáticas. (BAKHTIN/

VOLOCHÍNOV, 2009, p. 146).

Assim, apoiamo-nos nas palavras de Bakhtin/Volochínov para reiterar que

nosso olhar se debruçará sobre as naturezas sintática e semântica do escopo de nosso

objeto de estudo. Compreendemos, portanto, a necessidade de também refletir diante

dos “fatos vivos da língua” – nesse caso, língua espanhola – que cercavam as

enunciações fridianas.

De tal modo, justificando o tratamento que daremos às cartas enquanto

enunciados concretos e para deixar mais claro o nosso entendimento, concordamos que:

Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de

cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo seu

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estilo de linguagem, ou seja, seja pela seleção dos recursos lexicais,

fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua

construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo

temático, o estilo, a construção composicional – estão

indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente

determinados pela especificidade de um determinado campo da

comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual,

mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos

relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros

do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 261-262).

A partir do excerto acima, assim como de todo o capítulo – Os gêneros do

discurso –, podemos concluir que Bakhtin define o enunciado como a unidade real da

comunicação discursiva, diferenciando essa unidade (real) das unidades da língua, como

palavras e orações. Nesse texto, Bakhtin (2003) discute as três principais peculiaridades

do enunciado: alternância dos sujeitos falantes; conclusibilidade; escolha de um gênero

discursivo.

Desta feita, buscamos considerar essas peculiaridades ao estruturar nossa

análise das cartas pessoais de Frida Kahlo como enunciados. Essa perspectiva nos

permite dar acabamento, através de nosso olhar exotópico, às imagens que a autora vai

construindo dentro do texto verbal. Posto isso,

Estamos convencidos do fato de que a linguagem humana é um

fenômeno de duas faces: cada enunciação pressupõe, para realizar-se,

a existência não só de um falante, mas também de um ouvinte. Cada

expressão linguística das impressões do mundo externo, quer sejam

imediatas quer sejam aquelas que se vão formando nas entranhas de

nossa consciência e receberam conotações ideológicas mais fixas e

estáveis, é sempre orientada para o outro, até um ouvinte, inclusive

quando este não existe como pessoa real (VOLOCHÍNOV, 2013, p.

157).

Tudo isso nos possibilitou pensar a linguagem inerente ao ser humano assim

como os enunciados “relativamente estáveis” como ponte comunicativa entre os sujeitos

sociais.

Tendo em vista que “a língua não é algo imóvel, dada de uma vez para

sempre e rigidamente fixada em ‘regras’ e ‘exceções’ gramaticais, [...] não é de modo

algum um produto morto, petrificado, da vida social [...]” (VOLOCHÍNOV, 2013,

p.155), e observando o seu movimento progressista dentro das relações verbais, dos

intercâmbios comunicativos, é que chegamos à conclusão de considerar a enunciação

fridiana, nas cartas pessoais, objeto de estudo e análise.

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Cabe ainda colocar que não nos interessa pensar as formas ligadas aos

estudos que classificam a artista como surrealista ou, até mesmo, que se restringem a

formas ou tipos de vida econômicos que cercavam seus quadros e sua biografia. Nesta

dissertação, dedicamos atenção particular, precisamente, às imagens axiológicas que a

autora pinta de si mesma em suas cartas pessoais. Para isso, foi preciso ler o gênero

dentro de uma cena comunicativa e de um determinado intercâmbio comunicativo

artístico.

É necessário, neste ponto, lembrar que a concepção de enunciado, como

uma característica própria da ADD, não se encontra aqui “acabada”. Consequentemente,

não pretendemos dar a última palavra sobre essa concepção teórica ou até mesmo sobre

as cartas de Frida. No entanto, os sentidos e as particularidades, inatas à nossa

subjetividade, vão sendo construídos a partir do momento em que colocamos nossa voz

em constante diálogo com as vozes dos autores trazidos para esta arena.

Tomando de empréstimo as palavras de Brait (2010, p. 67), na perspectiva

bakhtiniana,

o enunciado e as particularidades de enunciação configuram,

necessariamente, o processo interativo, ou seja, o verbal e o não verbal

que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de um

contexto maior histórico, tanto no que diz respeito a aspectos

(enunciados, discurso, sujeitos etc.) que antecedem esse enunciado

específico quanto ao que ele projeta adiante [...].

Ou seja, o enunciado nasce, vive e morre no processo de interação social,

nas cenas comunicativas, entre os participantes da enunciação. Não por acaso, o

enunciado é marcado pela presença de sujeito e de história na vida de “enunciado

concreto” (BAKHTIN, 2003), indicando que este é constitutivamente social, histórico e

cultural. Liga-se a enunciados anteriores e gera enunciados posteriores, sendo elos na

cadeia discursiva.

Em consonância com isso, Brait (2010, p. 71) afirma: “o enunciado deve ser

enfrentado na sua historicidade, na sua concretude, para deixar ver mais do que a

dimensão exclusivamente linguística e/ou sua fragmentação.” Assim sendo,

pretendemos, aliados às práticas sociais, culturais e afetivas de Frida, encarar essas

cartas como enunciados concretos, voltados para coenunciadores pré-estabelecidos,

dando vazão à construção de possíveis imagens que pretendemos perseguir.

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3.4 Estilo e ethos discursivo: as categorias basilares da pesquisa

Nossa pesquisa, como já explicitado, procura chão firme no

entrecruzamento do ethos discursivo e do estilo individual. Nós colocamos em pauta as

escolhas estilísticas de Frida Kahlo, em um contexto concreto, específico e delimitado

historicamente, na tentativa de problematizar: primeiro, as escolhas; segundo, onde, na

materialidade linguística, estão situadas; terceiro, em que elas se diferem de outras

escolhas feitas, também, pela autora-criadora; e quarto, quais são os motivos que nos

levam, através dessas escolhas, a gerar imagens axiológicas que perduram até os dias

atuais.

Na tentativa de sustentarmos a investigação, resolvemos utilizar um cabedal

teórico que parecia se afinar melhor com nossos objetivos. Ou seja, ao colocarmos, no

bojo de nossa análise, os enunciados concretos, produzidos em situações reais no

mundo da vida, e seus enunciadores, temos a intenção de nos apoiar na teoria

bakhtiniana e em outras teorias que permitam uma abordagem enunciativa, assim como

teorias que contemplem ethos discursivo e estilo individual, pois essas, como já

falamos, serão as categorias basilares desta dissertação.

Nesse sentido, e nos encontrando nas palavras de Palhano (2011, p. 31),

podemos afirmar que:

Interessou-nos, assim, utilizar uma compreensão dessas categorias

como constituintes da enunciação. Por esse motivo, optamos por

utilizar duas visões teóricas: a proposta por Bakhtin (2003; 2009;

2010), em que o estilo é focalizado como traço inerente ao enunciado

e ao sujeito; e a proposta por Maingueneau (2006, 2008), em que o

ethos é, também, focalizado como um traço inerente ao enunciado e

ao sujeito.

Assim, contemplados pela fala de Palhano (2011), vemos que essas teorias

entendem tanto o estilo individual quanto o ethos discursivo como estando no centro de

análise das correntes enunciativo-pragmáticas. Cabe a nós, aqui, acrescentar o

desdobramento que é dado por Amossy (2005), no que diz respeito ao ethos discursivo,

e que também se aglutinou ao nosso quadro teórico para nos ajudar na compreensão dos

fenômenos enunciativos que compuseram nosso corpus.

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Consideramos importante, ainda, ressaltar que concentramos a maior parte

do leque teórico que forma esta pesquisa na Análise Dialógica do Discurso (ADD),

corrente que tem como teórico principal Bakhtin.

3.4.1 A respeito do estilo

Para esta dissertação a categoria estilo é deveras importante. Sem ela não

teríamos condições de desenvolver este trabalho. Por isso, gostaríamos de dar o enfoque

devido a essa categoria, pois ela está em um eixo teórico estruturante de nossa pesquisa.

Sem ela não teríamos como traçar o ethos discursivo, tendo em vista que ele é

estruturado por indícios estilísticos, e serão esses indícios que embasarão nossos

pensamentos a respeito das imagens ideológicas de Frida Kahlo nas cartas.

Desta feita, resolvemos privilegiar tendências estilísticas que bebem em

teorias enunciativas. Com isso, afirmarmos que, embora existam perspectivas distintas

do ponto de vista estilístico – a vertente estruturalista, a psicologista e, até mesmo, a

enunciativa – e, em alguns momentos, aproximadas, nos filiamos a uma abordagem que

atenda da melhor forma nosso cabedal teórico.

Por conseguinte, sabemos que na contemporaneidade é comum associar

estilo a sujeito, falante, autor, enunciador, etc., o que nem sempre foi algo comum. Essa

categoria, retirada da retórica greco-latina, dentre tantas outras, perde forças com o

apagamento, e até mesmo o desaparecimento, do sujeito histórico nas teorias sobre a

linguagem. Só depois, quando a Linguística começa a extrapolar a abordagem

saussuriana, é que esses elementos voltam para a cena nas discussões teóricas,

principalmente, com as postulações enunciativas da linguagem.

No entanto, não traçaremos um percurso cronológico do estilo na história da

construção do pensamento e das ciências linguísticas por não haver tempo suficiente

para desenvolver tamanha pesquisa.

Cabe, apenas, dizermos que nos afastaremos das proposições de Bally,

Vossler e Spitzer por não considerarmos interessante essa perspectiva para os nossos

objetivos. Sabemos que há certo afastamento entre os estudiosos da estilística e algumas

correntes teóricas da Linguística, mas a confluência, em pontos que consideramos

fulcrais para a nossa pesquisa, nos afasta dessa noção embora não neguemos suas

influências para a estilística contemporânea.

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Interessa-nos, primordialmente, a subjetividade bastante discutida na

perspectiva enunciativa, que redimensiona toda discussão sobre estilo e nos faz ancorar

no porto bakhtiniano. Pois, é Bakhtin quem melhor nos auxilia com a categoria estilo. O

filósofo da linguagem tem, do ponto de vista teórico, a melhor definição de estilo para a

nossa pesquisa, e ela se aglutina a outras noções que colocamos anteriormente: sujeito,

gênero discursivo, exotopia, autoria, enunciado, etc. Como, em sua obra, todos os

conceitos estão interligados, Bakhtin explica as características que compõem o estilo em

detrimento das explicitações de outras categorias. Por isso é que ele formula uma teoria

que, na atualidade, é chamada de Análise Dialógica dos Discursos (ADD). Em outras

palavras, uma teoria da enunciação.

Nesse dimensionamento, Bakhtin adota o estilo como característica do

homem enquanto ser de linguagem, ser histórico, ser que se constrói na relação eu e o

outro. Assim, para Volochínov (2013):

A palavra é uma espécie de “cenário” de certo acontecimento. A

compreensão autêntica de um sentido global deve reproduzir este

acontecimento da relação recíproca dos falantes, “representar-lhe”

outra vez, e o que compreende adota o papel de ouvinte. Porém para

cumprir com este papel deve compreender claramente também as

posições de outros participantes. (VOLOCHÍNOV, 2013, p.87).

Em toda sua obra, Bakhtin discute a noção de estilo. Tal arcabouço teórico

nos dá suporte para compreender estilo como acabamento estético. Portanto, o estilo,

para a teoria bakhtiniana, está intimamente ligado à composição e ao tema de um texto,

haja vista que é no estudo das formas e das categorias que encontramos o estilo.

Assim sendo, por se tratar de uma categoria essencialmente interlocutiva e

dialógica, o estilo de um determinado texto, e a maneira singular com que um

enunciador faz uso dessa categoria, a qual, para Bakhtin, nunca esteve divorciada de

definições ideológicas, possibilita, ao sujeito produtor, deixar as marcas de

subjetividade em todo plano da materialidade linguística. Dessa forma, o estilo traz

consigo a avaliação do enunciador e uma concordância valorativa com o coenunciador.

Em outras palavras, podemos afirmar que, para Bakhtin, a noção teórica de

estilo está relacionada a um querer dizer do enunciador, que ganha forma, que define

seus limites sob as condições de interlocução. Trata-se, portanto, de um acabamento que

é estético e transitório, sempre aberto a novos sentidos por estar submetido às condições

sócio-históricas.

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Ademais, para elucidar essa questão, trazemos a voz teórica do próprio

Bakhtin. Não recorrendo, agora, a nenhuma afirmação parafraseada. Chamamos atenção

para a definição do estilo para o autor. Nesse sentido, ele assevera:

A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela

nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou

funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são

outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da

atividade humana e da comunicação. (BAKHTIN, 2003, p.266).

E complementa:

Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial,

cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva,

específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é,

determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e

composicionais relativamente estáveis. O estilo é indissociável de

determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância –

de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de

construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos da

relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva

– com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O

estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento.

Isto não significa, evidentemente, que o estilo de linguagem não possa

se tornar objeto de um estudo especial independente. (BAKHTIN,

2003, p.266).

No que diz respeito a essa vinculação do estilo e do gênero, podemos

afirmar que não há estilo fora de um gênero ou de um enunciado. É preciso, no entanto,

levar em conta, para um estudo amparado pelas vozes bakhtinianas que versam sobre

estilo, que as condições de interlocução incluem, também, as definições de estilo

individual e estilo de gênero, que impõe certas construções ao querer dizer do

enunciador e à forma como esse querer dizer se manifesta. Sobre o conceito de estilo,

Brait (2010, p. 80) afirma:

Focalizado sob uma dimensão bastante especial, diferenciada,

coerente com a ‘teoria dialógica’ como um todo, estilo se apresenta

como um dos conceitos centrais para se perceber, a contrapelo, o que

significa, no conjunto das reflexões bakhtinianas, dialogismo, ou seja,

esse elemento constitutivo da linguagem, esse princípio que rege a

produção e a compreensão dos sentidos, essa fronteira em que

eu/outro se interdefinem, se interpenetram, sem se fundirem ou se

confundirem.

Dessa forma, nossa dissertação escolhe a teoria bakhtiniana para amparar as

análises no que diz respeito ao estilo porque acreditamos que as escolhas não são feitas

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de modo aleatório pelos sujeitos produtores. Elas, na realidade, respondem eticamente

às formações culturais, familiares, religiosas, acadêmicas, etc. que esses sujeitos vão

recebendo ao longo de suas vidas. Com Frida não seria diferente. Escolhemos essa

noção de estilo porque não enxergamos, nas cartas da pintora mexicana, apenas

lexemas, ou classes gramaticais espalhadas em um papel. As palavras selecionadas por

Frida surgem recobertas por unidades melódicas e axiológicas que vão revelando suas

intenções e construindo seu ethos. E, como afirma Volochínov (2013, p. 88):

Acima de tudo, as valorações determinam a seleção das palavras pelo

autor e a percepção desta seleção (co-eleição) pelo ouvinte. Porque o

poeta não escolhe suas palavras de um dicionário, mas do contexto da

vida no qual as palavras se sedimentam e se impregnam de valorações.

Deste modo, escolhe as valorações relacionadas com as palavras, e,

além disso, desde o ponto de vista dos portadores encarnados destas

valorações. Pode-se dizer que o poeta trabalha todo tempo com a

aprovação ou desaprovação, ou a discordância do ouvinte. Ademais, a

valoração é ativa também com relação ao objeto da enunciação, que é

o herói (protagonista).

Em outras palavras, esse estilo individual representa a expressividade própria

dos sujeitos no jogo dialógico. Portanto, se o enunciado é reflexo da individualidade de

quem o produz – seja oral, verbal ou verbo-visual –, as marcas do estilo desses sujeitos

estarão sempre presentes e revelando posicionamentos ideológicos.

Nesse entendimento, encontraremos enunciados que são respostas impregnadas

axiologicamente, multifacetados, cheios de pontos de vista distintos e valorados.

Enunciados construídos por Frida Kahlo e penetrados por seu estilo individual a partir

de escolhas que ecoam socialmente e que passam por vários filtros.

Por fim, para melhor elucidar nossa escolha para entender estilo em uma

perspectiva bakhtiniana, podemos dizer que nos utilizaremos de um aporte teórico em

que a gramática e a estilística se ajudam para melhor compreensão dos fenômenos

linguísticos no todo do enunciado. Muito embora, existam fenômenos que alguns

estudiosos somente observarão pelo campo da gramática e outros pelo campo da

estilística. Bakhtin (2003, p. 270) traz como exemplo o sintagma. No entanto, ao falar

da contribuição de um campo para o outro ele reitera:

Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em

qualquer fenômeno concreto de linguagem: se o examinarmos apenas

no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas

se examinarmos no conjunto do enunciado individual ou do gênero

discursivo já se trata de fenômeno estilístico. Porque a própria escolha

de uma determinada forma gramatical pelo falante é um ato estilístico.

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E continua:

Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenômeno concreto da

língua não devem ser mutuamente impenetráveis nem simplesmente

substituir mecanicamente um ao outro, devendo, porém, combinar-se

organicamente (na sua mais precisa distinção metodológica) com base

na unidade real do fenômeno da língua. Só uma concepção profunda

da natureza do enunciado e das peculiaridades dos gêneros discursivos

pode assegurar a solução correta dessa complexa questão

metodológica. (BAKHTIN, 2003, p.269).

Portanto, é nessa abordagem que mergulharemos para melhor compreender a

questão do estilo nas cartas de Frida Kahlo.

3.4.2 A respeito do ethos

Esse construto teórico da análise do discurso, diferente do estilo, manteve suas

bases na retórica grega clássica. Embora esse enfoque clássico não faça parte de nosso

cabedal teórico, faremos uma breve apresentação.

No cenário da retórica aristotélica, o ethos destaca-se no triângulo retórico

criado (ethos, pathos e logos) para explicar um discurso eficaz. São pilares considerados

imprescindíveis para o sucesso com a persuasão. Nessa sistemática, o ethos seria a

atitude que o orador deveria assumir visando ganhar a confiança do auditório. O pathos

seria a paixão, a emoção e os sentimentos que o orador teria de despertar no auditório

com seu discurso. Finalmente, porém não menos importante, o logos são fatos lógicos, o

lado mais racional do discurso; em outras palavras, as provas que o orador apresenta,

por exemplo.

Em palavras mais contemporâneas, Roland Barthes vê o ethos como parte

constituinte dos “[...] traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco

importando sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito [...]. O orador

enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou aquilo”. (BARTHES

apud AMOSSY, 2005). Amossy ao escrever sobre o tema ainda diz: “O modo como as

ciências da linguagem resgatam a retórica, mas às vezes também a abandonam, aparece

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nas reformulações e debates nos quais surge a noção de ethos.” (AMOSSY, 2005, p.

15). A construção da imagem de si, como denomina Amossy, é engrenagem principal

que faz funcionar a máquina da retórica e, consequentemente, está ligada a toda e

qualquer enunciação seja oral ou escrita.

Chegamos, portanto, a uma conclusão simples sobre as aspirações greco-latinas

(aristotélicas), as afirmações de Barthes e o acabamento dado por Amossy (2005) ao

ethos como categoria teórica: é preciso agir e argumentar estrategicamente para poder

atingir a moral do debate. O ethos, constituído por alguns elementos essenciais ao

procedimento retórico, objetiva dois movimentos no jogo argumentativo: persuadir e

promover adesão às teses pelo discurso.

Amossy ainda vai colocar essa categoria como um “princípio transcendental

concreto e contrafactivo” (AMOSSY, 2005, p. 45), isso significa dizer que todo orador,

do ponto de vista retórico, deve apresentar essa imagem ao seu auditório e buscar

defendê-la de maneira eficaz. Vejamos as palavras da autora:

Compreendemos por que a noção de ethos é retomada nos manuais de

retórica da idade clássica sob a denominação de “caracteres oratórios”,

esclarecida por estudos como os de Aron Kibédi-Vaga e de Michel Le

Guern. A questão da autoridade moral ligada à pessoa do orador se

recoloca: em um primeiro sentido, trata-se realmente dos seus

caracteres reais. Assim, Bourdaloue afirma que “1. o orador

convencerá por argumentos, se, para, bem dizer, ele começar por

pensar bem. 2. Ele agradará pelos seus modos, se, para, pensar bem,

Maingueneauele começar por bem viver”. Bernard Lamy fala das

qualidades que devem possuir aqueles que querem ganhar os espíritos.

(AMOSSY, 2005, p.18).

Assim, nas palavras em destaque nesse trecho – destaques da própria Amossy –

podemos observar que a categoria do ethos vai se encaminhando, cada vez mais, para

essa imagem que o enunciador busca construir, em relação ao seu público-alvo, na

intenção de provocar a adesão dos espíritos, ou seja, criar certa legitimidade durante a

enunciação. Observemos que, para os estudos do discurso, essa noção se torna

fundamental, pois a elaboração de um construto teórico desses ajuda a mostrar, na

maneira de dizer, se cada discurso pode assumir uma função pré-estabelecida e

ideológica.

Sobre o ethos na análise do discurso, Amossy (2005) aponta para os trabalhos de

Dominique Maingueneau. E elucida a importância do ethos para essa área de pesquisa:

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A elaboração dessa noção como construção de uma imagem de si no

discurso é pesquisada nos trabalhos de pragmática e de análise do

discurso de Dominique Maingueneau. Em Genèses du discourse foi

inicialmente apresentada uma “semântica global” que tenta inserir em

um modelo integrativo as diversas dimensões do discurso[...] Na

verdade, o enunciador deve se conferir, e conferir a seu destinatário,

um certo status para legitimar seu dizer: ele se outorga no discurso

uma posição institucional e marca sua relação com um saber.

(AMOSSY, 2005, p. 16).

Ainda falando dessa noção para Maingueneau e concebendo-o como um dos

teóricos que discute a incidência dessas imagens nos textos escritos e traz a categoria do

ethos para a análise dos discursos, e que tem publicações nessa área, nos associamos à

sua afirmação de que: “a questão essencial é que o ethos – traduzido em português, mais

frequentemente, de maneira bastante infeliz, por “caráter” – está ligado à enunciação,

não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador”. (MAINGUENEAU, 2008, p. 265).

Em seus estudos, o teórico ainda chama a atenção para a construção de uma imagem

prévia a que ele denomina de “ethos pré-discursivo (ou prévio)” que nada mais é do que

a construção da figura do enunciador antes mesmo dele falar, ou no nosso caso escrever.

A distinção pré-discursivo/discursivo deve, contudo, levar em conta a

diversidade de tipos, de gêneros do discurso e de posicionamentos,

não podendo ter pertinência em algum plano absoluto. De qualquer

modo, mesmo que o destinatário nada saiba antes do ethos do locutor,

o simples fato de um texto estar ligado a um dado gênero do discurso

ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas no

tocante ao ethos. (MAINGUENEAU, 2008, p. 269).

Assim se dá com a autora-criadora em análise nesta dissertação: nós

reconstruímos, por meio do percurso histórico da protagonista em questão, o

envolvimento dela com movimentos revolucionários, sua nacionalidade cheia de

influências da cultura indígena e a beleza exterior a algumas imagens que se

dissociaram através de suas telas, sendo estas verdadeiras ou não. Não queremos dizer,

com isso, que as imagens a que pretendemos dar acabamento aqui sejam incontestáveis

e únicas. No entanto, elas são carregadas de valor expressivo, discursivo e ideológico.

Por isso, o mapeamento que nos propomos a fazer é tão importante, pois ele é

essencialmente analisado partindo da materialidade linguística e se encaixa na

abordagem maingueneauniana que renova o padrão retórico do ethos e o inscreve nas

teorias enunciativas, uma vez que traz para o plano do texto essa categoria outrora vista

somente na oralidade e permite-nos utilizá-lo para uma caracterização do corpo

enunciador.

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Para embasar essa afirmação, eis as contribuições de Maingueneau:

[...] optamos por uma concepção primordialmente “encarnada” do

ethos, que, dessa perspectiva, abrange não apenas a dimensão verbal,

mas igualmente o conjunto de determinações físicas e psíquicas

vinculadas ao “fiador” pelas representações coletivas. Este vê

atribuídos a si um caráter e uma corporalidade cujo grau de precisão

varia de acordo com o texto. (MAINGUENEAU, 2006, p. 271).

Diante das assertivas maingueneaunianas, não podemos deixar de compreender

o ethos como o resultado da mistura de duas imagens – a que vem do que se ouve dizer,

e a que nasce do processo de interação verbal, em outras palavras, da relação eu e o

outro – que desembocam em uma única imagem axiológica a que chamamos de ethos.

Como ele mesmo afirma, o enunciador ganha atribuições de caráter moral e uma

corporalidade carnal.

Portanto, nosso trabalho utilizará a noção de Maingueneau para ethos, pois ele

consegue desassociar essa noção da abordagem clássica grega e potencializa sua

estrutura na cadeia discursiva dos enunciados. Nessa perspectiva, Maingueneau

assevera:

Fui levado a trabalhar essa noção de ethos no quadro de análise do

discurso e sobre corpora de gêneros “instituídos”, que oponho aos

gêneros “conversacionais”. A perspectiva que defendo ultrapassa em

muito o domínio da argumentação. Para além da persuasão por meio

de argumentos, essa noção de ethos permite refletir sobre o processo

mais geral de adesão dos sujeitos a um certo discurso.

E continua:

Fenômeno particularmente evidente quando se trata de discursos como

a publicidade, a filosofia, a política etc., que – diferentemente dos

discursos que revelam de gêneros “funcionais”, como os formulários

administrativos e os manuais de instrução – devem ganhar um público

que está no direito de ignorá-los ou recusá-los. (MAINGUENEAU,

2008, p. 20).

Por conseguinte, e também nessa mesma tônica, Charaudeau (2006) afirma que

o ethos também faz parte de um imaginário social, ou seja, a identidade do sujeito

passeia por representações sociais que nada mais é do que a realidade permitida por

relações que circulam em determinados grupos sociais em volta do sujeito “fiador” e

que Charaudeau também chama de “imaginários sociodiscursivos”, pois

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[...] a visão que uma sociedade tem do corpo depende dos imaginários

coletivos que ela constrói para si. Diremos que o ethos apóia-se em

um duplo corporal e moral ou que é um imaginário que, aqui, se

“corporifica”. [...] Na medida em que o ethos está relacionado à

percepção das representações sociais que tendem a essencializar essa

visão, ele pode dizer respeito tanto a indivíduos quanto a grupos.

(CHARAUDEAU, 2006, p.117).

Vale salientar que a imagem construída do enunciador por seus coenunciadores

não é necessariamente espontânea e que por muitas das vezes pode não coincidir com

aquilo que o enunciador pensa e até mesmo formula para si. Em sua grande maioria o

ethos é construído e reconstruído por causa dessas pessoas que oscilam na cena

enunciativa, sendo assim o enunciador pode sim construir uma “imagem de si” que não

era pretendida por este. A respeito disso Charaudeau (2006, p. 120) alerta: “[...] o ethos

não é totalmente voluntário [...], tampouco necessariamente coincidente com o que o

destinatário percebe”.

Diante de tal implicatura nos cabe pontuar que não trataremos como verdade

absoluta as imagens que o discurso, presente nas Cartas de Frida Kahlo, constrói, mas

que é por esse rastro escrito deixado pela autora que mapearemos os ethé passionais que

este recorte nos possibilitar.

Ainda versando sobre a categoria teórica da análise do discurso – o ethos –

achamos pertinente colocar ainda que essa camada discursiva está situada dentro de um

paradoxo gerado pela filosofia contemporânea e que Charaudeau explica muito bem

quando afirma:

O ethos encontra-se no centro desse paradoxo que sustenta a filosofia

contemporânea, que, mesmo sabendo que o sujeito não é um

(Nietzsche), que ele é dividido (Lacan), quer fazer como se fosse de

fato um todo. Trata-se de uma concepção idealizada da existência do

sujeito, que pode ser aplicada ao sujeito do discurso e que (é a nossa

hipótese) guia a comunicação social na qual se constrói o ethos.

(CHARAUDEAU, 2006, p. 116).

Assim, buscamos, ao utilizar a categoria teórica ethos, as marcas que poderiam

nos auxiliar em sua investigação. Inúmeras são as saídas que poderíamos tomar diante

dessa necessidade, dentre elas podemos citar os tipos de comportamentos dos sujeitos –

que enxergamos no tom do dizer, nos gestos e nas maneiras de falar – e o conteúdo de

seus horizontes discursivos, suas propostas comunicativas. A esse respeito, Charaudeau

(2006, p. 118) assegura:

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Não se pode separar o ethos das ideias, pois a maneira de apresentá-

las tem o poder de construir imagens. Desse ponto de vista, [...] às

vezes, os atores políticos, para explicar a derrota eleitoral de seu líder,

dizem: “Suas ideias são boas, mas o personagem não tem carisma

suficiente”. Separar as ideias do ethos é sempre um álibi que impede

de ver que, em política, aquelas não valem senão pelo sujeito que as

divulga, as exprime e as aplica.

Aqui, especificamente, o teórico esboça sua ideia analisando o discurso político

na modalidade oral. Em nosso caso, trabalharemos com enunciados escritos, mas uma

modalidade não neutraliza a outra, pelo menos não do ponto de vista enunciativo. São

apenas modalidades que se realizam de maneiras distintas, mas que permitem essa

investigação.

Dessa forma, por encabeçarmos uma pesquisa que se instaura nos terrenos de

teorias enunciativas, e mais especificamente bakhtiniana, é que optamos por aliar ao

ethos a noção de estilo individual. Na busca por acompadrar a noção teórica de ethos ao

estilo individual, concepção alicerçada em Bakhtin (2003), é que focaremos em alguns

aspectos como: o registro linguístico, a macroestrutura do gênero, o planejamento

discursivo, as modalizações do dizer, o estilo, entre outras. São essas características que

nos darão as pistas para perseguimos o ethos nas cartas de Frida Kahlo.

Por outro lado, a interpretação dessas pistas podem, em alguns casos, não

agradar o enunciador. Elas podem não atender aos interesses de quem enuncia. Não

devemos esquecer jamais que essa imagem social – consciente ou inconsciente,

voluntária ou involuntária –, por ser de adesão, favorece o status e o papel atribuídos ao

enunciador no jogo dialógico da enunciação.

Assim, vai nos preocupar, nesta pesquisa, observar e elucidar a relação entre

essas marcas do estilo individual e o ethos discursivo, que ganha vida nas definições do

coenunciador e pode ser mostrado no texto, nesse caso, escrito. Preocupa-nos, também,

destacar que perscrutar o estilo individual, para a ADD, é investigar também os

diferentes ethé que se manifestam nessas cartas pessoais. Em outras palavras, é a

maneira como Frida organiza esses enunciados, o modo que ela escolhe para falar

estabelece relações dialógicas com a materialidade linguística. Dessa forma, tanto o

ethos quanto o estilo individual estão fundidos em cada enunciado.

Assim sendo, essas duas categorias discursivas terminam criando imagens diante

da sociedade, e desembocando em imagens que transitam nas rodas sociais. Essas

imagens, que são singulares por causa da carga ideológica que as rodeia, são construídas

através do estilo individual e confirmadas pelo ethos discursivo, sendo, por fim, guiadas

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pelo sujeito produtor, ou, como chama Bakhtin (2003), o autor-criador. Em nosso caso,

autora-criadora.

Para finalizar, gostaríamos de trazer a voz de Bakhtin (2003, p. 366), quando

este afirma:

A grande causa para a compreensão é a distância do indivíduo que

compreende – no tempo, no espaço, na cultura – em relação àquilo

que ele pretende compreender de forma criativa. Isso porque o próprio

homem não consegue perceber de verdade e assimilar integralmente

nem a sua própria imagem externa, nenhum espelho ou foto o

ajudarão; sua autêntica imagem externa pode ser vista e entendida

apenas por outras pessoas, graças à distância espacial e ao fato de

serem outras.

Pretendemos, aqui, amparados pelas vozes de Bakhtin, Maingueneau,

Charaudeau, Amossy, Paz, Bauman, e tantos outros sujeitos que pensam o

funcionamento social através da linguagem, dar acabamento estético às imagens verbo-

axiológicas de Frida Kahlo. No entrecruzamento do estilo individual e ethos discursivo

é que buscaremos as respostas para nossas indagações epistêmicas. Não pretendemos

apontar para a única imagem valorada, mas esperamos encontrar, ao menos, um ethos

discursivo, colorido pelas escolhas estilísticas, que tenha sustentação na materialidade

linguística – no nosso caso nas cartas pessoais.

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4 EM BUSCA DOS ETHÉ DE FRIDA: A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS

VERBOAXIOLÓGICAS DIANTE DOS SEUS AMORES

Figura 6 – Foto do acervo pessoal de Frida, publicada no livro Frida Kahlo: suas fotos10

10

Disponível em: <http://mais20min.com.br/tag/curitiba/ >. Acesso em: 2 dez. 2014.

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Neste capítulo trataremos da noção de enunciado embasados pela teoria

bakhtiniana e explicaremos, de uma maneira mais detalhada, como fizemos as escolhas

que resultaram no corpus dessa dissertação.

4.1 Os enunciados/cartas vistos à luz da teoria bakhtiniana

No vé el color. Tiene el color.

Hago la forma. No la mira.

No dá la vida que tienne.

Tiene la vida.

Tibia y blanca es su voz.

Se quedó sin llegar nunca.

Me voy.

Primeira página do Diário de Frida Kahlo

As primeiras páginas do Diário de Frida Kahlo cumprem certa função

poética, que advém tanto do significado das palavras como de sua sucessão impiedosa,

crua e hipnótica ao longo da página. Lê-las, em voz alta, em qualquer idioma, nos

remete, necessariamente, ao mundo da artista mexicana, um lugar em que predominam

o intuitivo e o inconsciente, de acordo com sua classificação surrealista. Em todo caso

existe uma inquietante incongruência entre o aspecto cuidadoso da escritura e o

conteúdo do texto.

Porém, diante da escolha de nosso arcabouço teórico, nos sentimos à

vontade para dizer que as palavras exaltam os sentidos, em um estilo de escritura

automática que invoca cores vivas, objetos múltiplos, e pelo qual se esvaíam frases

curtas e descritivas carentes de verbo. Frida, nessa epígrafe, que escolhemos para

compor o início deste capítulo, não estabelece hierarquias. Ela justapõe o profano e o

sagrado, o natural e o tecnológico, o literal e o ideal, o belo e o desagradável, o íntimo e

o público.

Nas análises que faremos a partir de agora, consideramos as cartas de Frida

como enunciados concretos e irrepetíveis, de acordo com o pensamento bakhtiniano que

os concebem envolvidos e influenciados por um cenário histórico, cultural e individual

no qual se inserem. Tal pensamento sobre o evento único e particular do enunciado

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mostra que, no momento em que são criadas, algumas afirmações axiológicas extraídas

de determinado texto, representam determinadas verdades para o sujeito que o produz.

No entanto, uma verdade passível de mudança, uma vez que esse enunciado caracteriza

um determinado momento histórico-social em que o sujeito se encontra, e que pode ser

revertido em outros enunciados, com opiniões diferentes, acréscimos, modalizações,

etc., se construindo em um momento diferente.

A ideia bakhtiniana, obviamente, não tem seus fundamentos em verdades

únicas e absolutas. Uma vez que os sujeitos estão e promovem processos de constantes

mudanças, é mais que natural que seus enunciados, ao longo de suas vidas, reflitam e

refratem essas mudanças também. Ao passo que esses sujeitos vão experienciando o

mundo da vida, eles mantêm contato com leituras diferentes, ideologias distintas, que

podem fazer com que eles retornem a suas verdades antigas com a intenção de

modificá-las.

Com isso, colocamos que: embora os enunciados escolhidos aqui para

análise estabeleçam relações dialógicas com o “já dito”, ocupam um lugar único e

singular, o que nos leva a tratá-los como um evento particular dentro de um

determinado fenômeno social, mesmo que outras vozes que os anteciparam já tenham

trazido informações e valorações neles contidas.

Para amparar nosso discurso, trazemos Bakhtin, quando este assevera:

Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma

outra pessoa jamais esteve no tempo singular de um existir único. E é

ao redor deste ponto singular que se dispõe todo o existir singular e

irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser

feito por ninguém mais, nunca. (BAKHTIN, 2010b, p. 96).

Dessa forma, chamamos enunciado toda produção, nesse caso, verbal

(materialidade linguística) de Frida. Ou seja, para esta pesquisa, as cartas que

selecionamos, incluindo todas as partes que as constituem.

Uma informação importante é que optamos por digitar as cartas, no original,

ou seja, em língua espanhola, para facilitar a leitura de possíveis leitores deste trabalho,

já que as tentativas de digitalizações não se mostraram bem sucedidas e consideramos

muito mais produtivo se digitássemos cada carta (enunciado) que compõe o escopo de

nosso corpus.

Outra informação que consideramos importante apresentar, concentra-se no

fato de ser impossível perscrutarmos uma imagem valorada, ou um ethos, de Frida a

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partir das traduções de suas cartas. Esse foi o principal motivo que nos levou a trabalhar

com as cartas na língua mãe de Frida. As traduções passam por um processo de

acabamento das palavras da pintora que sofrem interferências alheias (os acabamentos

dos tradutores). Sendo assim, seria muito difícil construirmos uma imagem verbal de

Frida sem olhar para o nosso corpus no idioma materno de sua produtora, pois as pistas

estilísticas deixadas por ela poderiam sofrer mudanças ideológicas a depender da

interpretação que o tradutor do texto fizesse.

Outro ponto que necessita ser apontado, antes de adentrarmos na análise,

seria aquilo que Bakhtin (2010c) vai chamar de “forma arquitetônica” do enunciado. Ao

longo das análises, será possível entender que todo arranjo formal do gênero, do estilo

individual e estilo do próprio gênero (carta pessoal), na urdidura fridiana no percurso de

construção de sua imagem – no jogo comunicativo –, está a favor dos vários ethé que se

constroem com auxílio dessas formas arquitetônicas. Isso quer dizer que, as escolhas

lexicais, as adjetivações, as rupturas com as formas do gênero não aparecem no

enunciado aleatoriamente, mas refletem uma lógica de ordenação que, muitas vezes,

podem não ser percebidas quando todos esses elementos estão juntos e combinados.

Em relação ao entendimento da forma como elemento constituinte das

escolhas do sujeito produtor, e que interfere diretamente na intenção comunicativa e no

posicionamento ideológico deste, Bakhtin indaga:

[...] como a forma, sendo inteiramente realizada no material, torna-se,

no entanto, a forma de um conteúdo e relaciona-se axiologicamente

com ele? Ou, em outras palavras, como a forma composicional – a

organização do material – realiza uma forma arquitetônica – a

unificação e a organização dos valores cognitivos e éticos?

(BAKHTIN, 2010c, p. 57).

É partindo dessas questões, colocadas pelo próprio Bakhtin, que também

pretendemos, em nossas análises, considerar a forma, assim como as escolhas lexicais

que a compõem, um elemento importante para a defesa de um posicionamento e da

imagem axiológica que Frida tenta construir de si. Afinal, compreendemos que todo e

qualquer movimento discursivo que rejeita e até mesmo nega os ethé – imagens

valoradas – que Frida busca construir é, por ela, evitado, pois não se relaciona com seu

posicionamento. Isso só reitera o fato de que a escolha da forma, do modo e das

próprias palavras possui um caráter subjetivo e direcionado para determinadas intenções

de comunicação.

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A seguir apresentaremos as categorias que elegemos diante das recorrências

apresentadas pelo corpus e suas subdivisões dentro do padrão de análise que adotamos.

4.1.1 Emergências valorativas: o que dizem os enunciados a respeito das imagens de

Frida

Iniciamos esta seção retomando alguns pontos que problematizamos no

capítulo teórico sobre as relações dialógicas dentro dos enunciados e sobre a construção

de imagens valoradas ideologicamente ou, como nomeia a análise do discurso de base

francesa, o ethos para alcançar um projeto discursivo. Como observamos, a construção

de um enunciado se dá no embate de vozes e de posicionamentos. Em outras palavras,

ela é a construção de um diálogo entre vozes do discurso. Muitas dessas vozes e/ou

imagens só podem ser apreendidas se observarmos o enunciado de modo mais

cuidadoso, pois nem sempre elas podem ser percebidas explicitamente dentro dos

enunciados.

No instante em que entramos em contato com as cartas selecionadas para

esta pesquisa, percebemos a presença de rastros de estilo ou escolhas lexicais que darão

o tom, a forma e o modo com os quais, na arquitetônica dos enunciados/cartas, Frida irá

construir uma imagem de si. Mesmo que essa imagem axiológica não corresponda

àquilo que realmente ela pretendia. Não é esse o caso que move esta pesquisa. Trata-se,

portanto, do ethos que ela, ao fazer determinadas escolhas, constrói. Verdadeiro ou não,

correspondente à realidade ou não.

Sendo assim, subdividimos as categorias que obtivemos diante da

observação do corpus e, após submeter às cartas/enunciados ao crivo de nosso olhar

exotópico, obtivemos as categorias que elencamos no quadro e que agora colocamos

para deixar bem claro: Vocativos: o enquadramento que Frida dá ao outro; perguntas

retóricas: apenas do jogo interlocutivo? Uma Frida que pede para ser amada; as

adjetivações de si; as metáforas; assinaturas e/ou despedidas: o enquadramento que

Frida dá a si.

Diante desse panorama, é importante ressaltar que outras recorrências

também surgiram durante a investigação que fizemos. As pistas estilísticas apontam

para várias imagens fridianas ao longo dos enunciados/cartas. Porém, optamos pelas

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recorrências que nos ajudaram a compor essas imagens com graus de passionalidades

distintas por uma questão metodológica e espaço-temporal. Não teríamos condições de

dar conta de todos esses acabamentos axiológicos que são dados à Frida Kahlo. Nosso

foco aqui será somente nos recortes categóricos que apontamos nos parágrafos

anteriores e na seção metodológica.

Passemos agora ao quadro de recorrências que decidimos montar a partir do

que emergiu do corpus em análise. Abaixo, veremos, mais claramente, como a divisão

feita por nós se apresentará durante a análise e que categorias nos fala da composição

imagética de Frida neste recorte epistolar:

Cartas apaixonadas de Frida Kahlo

Vocativos: o enquadramento

que Frida dá ao outro

Perguntas retóricas: apenas

do jogo interlocutivo? Uma

Frida que pede para ser

amada

As adjetivações de si

As metáforas

Assinaturas e/ou despedidas:

o enquadramento que Frida

dá a si

Vocativos: o enquadramento

que Frida dá ao outro

Perguntas retóricas: apenas

do jogo interlocutivo? Uma

Frida que pede para ser

amada

As adjetivações de si

As metáforas

Assinaturas e/ou despedidas:

o enquadramento que Frida

dá a si

Vocativos: o enquadramento

que Frida dá ao outro

Perguntas retóricas: apenas

do jogo interlocutivo? Uma

Frida que pede para ser

amada

As adjetivações de si

As metáforas

Assinaturas e/ou despedidas:

o enquadramento que Frida

dá a si

Cartas a Alejandro Cartas a Diego Cartas a Muray

Ethé de passionalidades distintas

Quadro de categorias

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4.3 Análises dos enunciados/cartas: as cores passionais na paleta diversificada de

Frida

Procederemos à análise do primeiro bloco de enunciados e, inicialmente,

teceremos alguns comentários e considerações que abarcam a forma composicional, a

forma do conteúdo e a forma do material.

4.3.1 Os enunciados rosas-chás: os indícios juvenis de um ser amante11

Nesse primeiro bloco trabalharemos com as duas cartas, destinadas a

Alejandro Gómez Arias (primeiro namorado de Frida), que selecionamos. Para

traçarmos melhor um perfil desse interlocutor inicial de Frida recorremos à voz de

Herrera (2011), que escreveu a biografia de Frida Kahlo. A respeito de Alejandro, o

biografista afirma:

[...] Conhecido como orador brilhante e carismático, divertido

contador de histórias, estudante erudito e bom atleta, Alejandro era

também bonito: testa alta, olhos pretos e de expressão suave, nariz

aristocrático e lábios de formas delicadas. Suas maneiras eram

sofisticadas e um pouco dégagé. Quando falava, fosse sobre política,

Proust, pintura ou sobre as fofocas da escola, suas ideias fluíam com a

mesma facilidade da água corrente; contudo, para Alejandro a

conversação era uma arte, e ele orquestrava cuidadosamente seus

silêncios, sempre mantendo a plateia extasiada e absorta. [...] ele sabia

brincar com as palavras como um malabarista, mas o afiado tridente

de sua sátira era devastador. A voz melíflua do jovem orador, seus

braços graciosos desenhando arcos no espaço e cruzados sobre o

peito, os olhos cheios de paixão, olhando para o alto em busca de

inspiração, eram cativantes. (HERRERA, 2011, p. 53).

Durante esse período, como já havíamos falado antes, Frida estudava na Escola

preparatória nacional do México. Secretamente, ela mantinha um relacionamento com

Alejandro (seu interlocutor nos dois primeiros enunciados), pois o namoro não fora

11

Nesse caso queremos esclarecer que afastamos o sentido “negativo” do termo (pessoa que tem relações

sexuais extraconjugais). A opção pelo adjetivo “amante” se deu para dar destaque ao ser que ama. Na

definição 1 do Dicionário Houaiss: que(m) ama; apaixonado.

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aprovado pelos pais de Frida. O jovem casal se encontrava clandestinamente. Muitas

vezes Frida chegou a mentir para sua mãe, pois voltara tarde da escola.

Na ocasião em que Frida produziu os dois primeiros enunciados que

passaremos a analisar (doravante Enunciado 1 ou E1 e Enunciado 2 ou E2), ela

trabalhava com o pai em seu estúdio fotográfico. Esses escritos têm um tom mais

sexual, pois, a essa altura da vida, Frida já havia tido experiências sexuais. E o próprio

Alejandro, em entrevista a Hayden Herrera, relembra: “Frida era sexualmente precoce.

Para ela, o sexo era uma forma de desfrutar a vida. Um tipo de impulso vital”

(HERRERA, 2011, p.59).

Ainda sobre os planos de Frida no momento que escrevia E1 e E2,

observamos que havia um sonho de fugir com o namorado para os Estados Unidos;

contudo eles não possuíam recursos financeiros para tal aventura e, talvez por isso, ela

dizia juntar os trocados que ganhava com pai. Falaremos um pouco mais sobre esse

sonho quando formos analisar o Enunciado 2.

Passemos agora aos Enunciados 1e 2:

Enunciado 1

Jueves, 25 de diciembre de 1924 1

Mi Alex: 2

Desde que te vi te amé. ¿Qué dice usted? (?) Como probablemente van a 3

ser varios los días que no nos vamos a ver, te voy a suplicar que no te vayas a 4

olvidar de tu mujercita linda, ¿eh?... a veces en las noches tengo mucho miedo y 5

yo quisiera que tú estuvieras conmigo para que no me dejaras ser tan miedosa y 6

para que me dijeras que me quieres igual que antes, igual que el otro diciembre, 7

aunque sea yo una “cosa fácil” ¿verdad Alex? Te tienen que ir gustando las cosas 8

fáciles… Yo quisiera ser todavía más fácil, una cosita chiquita que nada más 9

trajeras en la bolsa siempre, siempre… Alex, escríbeme seguido y aunque no sea 10

cierto dime que me quieres mucho y que no puedes vivir sin mí… 11

Tu chamaca, escuincla o lo que tú quieras. 12

13

FRIEDA 14

15

El sábado te llevaré tu suéter y tus libros y muchas violetas, porque hay 16

cantidades en la 17

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Enunciado 2

1 de enero de 1925 1

Contésta-me contésta-me contésta-me contésta-me contésta-me 2

“ “ “ “ “ 3

“ “ “ “ “ 4

“ “ “ “ “ 5

“ “ “ “ “ 6

¿Sabe usted la noticia? 7

Mi Alex: A las once recogí tu carta, pero no te contesté ahora mismo porque 8

como tú comprenderás no se puede no se puede escribir ni hacer nada cuando está uno 9

rodeado de manada, pero ahorita que son las 10 de la noche, que me encuentro sola y mi 10

alma es el momento más apropiado para contarte lo que pienso… Acerca de lo que me 11

dices de Anita Reyna, naturalmente ni de chiste me enojaría, en primer lugar, porque 12

no dices más que la verdad, que es y será siempre muy guapa y muy chula y, en segundo 13

lugar, que yo quiero a todas las gentes que tu quieres o has querido (?) por la 14

sencillísima razón de que tú las quieres. Sin embargo, eso de las caricias no me gustó 15

mucho, porque a pesar de que comprendo que es muy cierto que es chulísima, siento algo 16

así… vaya, cómo te diré, como envidia ¿sabes?, pero eso sólo es natural. El día que 17

quieras acariciarla, aunque sea como recuerdo, acaricias a mí y te haces las ilusiones de 18

que es ella ¿eh? ¿Mi Alex?... Oye, hermanito, ahora en 1925 nos vamos a querer mucho, 19

¿eh? *(Dispensa que repita mucho la palabra “querer”, cinco veces de a tiro, pero es que 20

soy un poco maje.) No te parece que vayamos en diciembre de este año, hay mucho 21

tiempo para arreglar todos los asuntos, ¿no crees? Dime todo lo que le encuentres de 22

malo y de bueno y si de veras te puedes ir, es bueno que hagamos algo en la vida ¿no te 23

parece? Cómo nos vamos a estar nada más de majes toda la vida en México; como para 24

no hay cosa más linda que viajar, es un verdadero sufrimiento el pensar que no tengo la 25

suficiente fuerza de voluntad para hacer lo que te digo, tú dirás que nada más se 26

necesita fuerza de voluntad, sino antes que nada la fuerza de la moneda o (moscota), 27

pero se junta eso trabajando un año y ya los demás pues es más fácil ¿verdad? Pero 28

como yo la mera verdad no sé muy bien de estas cosas, es bueno que tú me digas qué 29

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tiene de ventajas y qué desventajas y si de veras son muy desgraciados los gringos. 30

Porque tienes que ver que de todo esto que te escribo desde la crucecita hasta this 31

renglón, mucho hay de castillos al aire y es bueno que me desengañe de una vez… 32

A las 12 de la noche pensé en ti mi Alex ¿y tú? Yo creo que también porque me 33

sonó el oído izquierdo. Bueno, como ya sabes que “Año Nuevo vida nueva”, tu 34

mujercita va a ser este año no peladilla de a 7 pe, kilo, sino lo más dulce y bueno que 35

hasta ahora se haya conocido para que te la comas enterita a puros besos. 36

37

Te adora tu chamaca 38

FRIDUCHITA 39

(Un Año Nuevo muy feliz para tu mamá y hermana) 40

Inicialmente, consideremos as escolhas que fazem parte da forma

composicional de cada enunciado. Em E1 Frida não rompe, tão bruscamente, com a

forma canônica do gênero em questão (carta pessoal). A autora-criadora responde aos

moldes, que são exigidos pelo contexto histórico e cultural, para a construção de sua

cara/enunciado: dia da semana e a data (linha 1 de E1 – optamos por, a partir de agora,

usar a forma abreviada para identificar as linhas em cada enunciado. Ex.: L1); vocativo

na L2; despedida na L12; assinatura na L14; e uma espécie de Post-scriptum nas L16 e

17. Da forma canônica, sentimos falta apenas do local que, comumente, apresenta-se ao

lado da datação. Essa é uma ruptura que se apresentará em todas as cartas que Frida

escreveu.

No que diz respeito ao corpo do texto, observemos que há uma diferença

muito grande entre E1 e E2. Em E1, Frida apresenta um texto mais curto, com pouca

extensão, enquanto que no E2 identificamos um prolongamento no tamanho do texto.

Apesar de os dois enunciados serem construídos em apenas dois parágrafos – o que gera

certa desconfiança de nossa parte, pois ambos são cheios de supressões feitas, muito

provavelmente, pela pessoa que trabalhou com os textos no original12

– há uma

diferença marcante na forma de construção dos primeiros parágrafos de cada enunciado

(E1 e E2). Ou seja, o primeiro parágrafo do Enunciado 1 é bem maior que o primeiro

parágrafo do Enunciado 2. Observemos também a diferença de extensão textual entre

os segundos parágrafos de ambos.

12

Não foi possível trabalharmos com os documentos originais, pois tratava-se de uma questão legal. Esse

fator, aliado ao fato de que desconfiávamos das supressões feitas nas cartas de Frida, talvez tenha nos

levado a uma análise de recortes restritos. Porém, não temos dúvida de que, diante do corpus em análise,

pudemos levantar características de Frida Kahlo através das pistas estilísticas com as quais dialogamos.

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No entanto, essas diferenças parecem-nos responder a um padrão

paralelístico que Frida seguia no início de seus escritos a Alejandro. Basta olharmos,

estruturalmente, para cada Enunciado e veremos que há uma semelhança na forma

como ela constrói essas duas cartas. Em um movimento de “solavanco”, como quem

fala tudo de em uma única tacada, sem gerar expectativas – como se temesse não ter

tempo para falar tudo o que queria, ou, até mesmo, como se não soubesse esperar para

falar.

Outro movimento da forma que pode se unir às informações do parágrafo

anterior para fortalecer nossa opinião é a presença de frases curtas e com poucas

intercaladas e explicativas.

Essas escolhas no conteúdo da forma vão revelando uma pressa e uma

imaturidade em lidar com a linguagem epistolar. Não gerar expectativas, ir direto ao

assunto de maneira abrupta e incisiva nos revela, diante das recorrentes escolhas, uma

menina adolescente “afobada”, imatura, deslumbrada com a possibilidade de amar pela

primeira vez. Por exemplo, na L3 de E1 [...] Desde que te vi te amé[...] Frida não espera

para falar que ama Alejandro desde a primeira vez que o viu, não há “floreios”, rodeios,

muito menos longas frases carregadas de adjetivos ou metáforas para expressar o

sentimento que a envolve naquele momento.

Ao observarmos uma primeira ação enunciativa da autora-criadora, ou seja,

os vocativos – categoria que resolvemos chamar de: o enquadramento que Frida dá ao

outro – podemos constatar que, no que tange ao acabamento estético dado por Frida a

Alejandro, o primeiro interlocutor do conjunto de cartas deste corpus, há um sentimento

de posse que se revelará nos pronomes possesivos recorrentes nas duas

cartas/enunciados que se dirigem a Alejandro Gómez Arias. Consideremos como

exemplo os excertos abaixo:

E1, L2: Mi Alex

E2, L10: Mi Alex

Em ambos, o uso, não aleatório, dessa palavra e na posição em que se

encontra (precedendo o nome e não ao contrário) nos revela um acabamento estético

dado por um ser que via o jogo amoroso como uma questão de conquista, de batalha. E,

como ela “ganhara o direito” de tê-lo como amante (um ser que é amado), sentia-se

muito à vontade para tratá-lo como algo que lhe pertencia. Não um pertencimento do

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amor insano, mas um pertencimento de quem acreditava que não havia prazo de

validade para o amor, de quem acreditava que o amaria para sempre e gostaria muito de

ser correspondida.

Por outro lado, o uso dessa palavra de maneira tão enfática, pois será

recorrentemente utilizada, principalmente, nos vocativos, nesse bloco de enunciados,

revela que Frida enxergava em Alex (essa era a forma como Frida o chamava) um bem

preciosíssimo e fazia questão de lembrá-lo disso, assim como lembrar que ele pertencia

a ela, pelo menos como objeto de desejo, ao qual ela oferecia todo seu amor juvenil.

Em se tratando das formas que a autora escolhe para tratar com seus pares,

nesse caso Alejandro, e da construção dessa imagem passional inocente, encaixamos no

bloco dos vocativos apenas essa recorrência, que se apresentará, também, em outros

blocos de enunciados, em que Frida escolhe, para evocar a presença do interlocutor na

cena enunciativa, um diminutivo do substantivo hermano (irmão). Ex.: E2 L19 Oye,

hermanito […]. Para nós, essa escolha revela um tom fraternal, que revela ainda mais a

imaturidade fridiana para tratar, nessa fase de sua vida, seus amores.

No âmbito da construção da imagem de Frida, por meio da observação de

suas escolhas lexicais, nos indagamos: haveria pensamento mais ingênuo e inocente,

típico de fases imaturas da vida humana, do que a conclusão desse sentimento de

pertencimento do outro, simplesmente por ele nos mover para o amor, ou nos fazer amar

pela primeira vez? Como fora a primeira vez que nos apaixonamos? Teria Frida sido

enganada por sua falta de experiência com relacionamentos amorosos?

Consideramos tais questionamentos muito ousados e caminhos que podem

nos desviar do foco principal de nossa pesquisa. Eles, para nós, apontam na direção de

uma menina, essa figura pueril que Frida veste para com Alex e que, desde muito cedo,

já lida de maneira muito intensa com o amor, ou por que não dizer de maneira muito

passional.

Falando ainda das quebras vocativas que Frida faz ao optar por maneiras

pouco convencionais ao tecer seus enunciados/cartas, voltaremos nosso par de óculos,

agora, para o E2 e a abertura poética que inicia na L2 e se estende até a L6. Vejamos o

excerto do qual falamos:

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Nesse rompimento com a forma canônica da abertura de cartas, Frida foge

totalmente às estruturas do parágrafo – para o caso do texto em prosa – e constrói uma

estrofe de cinco versos e nesta, imperativamente, pede que Alex responda à sua carta.

Essa ruptura revela uma imagem de um sujeito que brinca com a linguagem e que não

se restringe ao que é colocado como norma, não há medo de más interpretações ou

contestações advindas de seu público-alvo.

Podemos, diante dessa recorrência, afirmar que este é um caso claro onde

dois gêneros se misturam. Há aqui a presença de duas linguagens, pois, sob forma de

poema, inserido no lugar da saudação inicial (lugar específico no gênero discursivo

carta pessoal), Frida suplica em uma espécie de mantra amoroso que seu interlocutor lhe

responda. Suplica e ao mesmo tempo ordena.

Sobre esse fenômeno plástico dos gêneros discursivos, Bakhtin (2003, p.

262) chama a nossa atenção para a extrema heterogeneidade desse arcabouço cultural:

“A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis

as possibilidades da multiforme atividade humana [...]”. Quanto ao fenômeno da

intergenericidade – termo que amadureceu nos estudos da ADD – no enunciado,

enquanto elemento que compõe o jogo dialógico, Bakhtin (2003, p. 284) assevera:

A maioria desses gêneros se presta a uma reformulação livre e

criadora (à semelhança dos gêneros artísticos, e alguns talvez até em

maior grau), no entanto o uso criativamente livre não é uma nova

criação de gênero – é preciso dominar bem os gêneros para empregá-

los livremente.

E costura:

Os gêneros do discurso, comparados às formas da língua, são bem

mais mutáveis, flexíveis e plásticos [...] Cada enunciado é pleno de

ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado

pela identidade da esfera de comunicação discursiva. (BAKHTIN,

2003, p. 285-297).

con

tésta-m

e

con

tésta-m

e

con

tésta-m

e

con

tésta-m

e

L2

con

tésta-

me

L3

L4

L5

L6

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Dessa forma, atravessados pela compreensão do filósofo russo, a ADD

nomeia a mescla de gêneros (situação em que um gênero assume a função de outro)

como diálogo entre gêneros. Em outras palavras, um fenômeno segundo o qual um

gênero pode assumir a forma de outro gênero tendo em vista o propósito comunicativo.

Destarte, acreditamos que o interlocutor também colabora para essa

liberdade expressiva e lírica presente no excerto acima. Não é por acaso que fizemos tal

recorte empírico. Frida brinca nessa abertura porque seu projeto de dizer e a cena

enunciativa na qual se insere permite a construção dessa imagem lúdica e jovem.

Numa outra vertente, a escolha verbal e a disposição rítmica nos versos nos

leva a crer que existe nesse trecho do E2 uma tentativa desesperada por obter

correspondência afetiva. As reiteradas ordens ou pedidos (contésta-me contésta-me

contésta-me...) hiperbolizam a vontade e a sede que a autora tinha por um regalo

enunciativo. Uma resposta positiva ao amor tão intenso que esta sentia, ainda que fosse

algo sem grandes exageros como a abertura de sua carta (E2). Teremos aqui, portanto,

mais uma prova dessa falta de paciência, dessa inaptidão em esperar, que é tipicamente

juvenil e que demonstra uma Frida com atitudes muito passionais com relação ao ser

amado.

Dessa maneira podemos avaliar: o que Frida estabelece, nesse momento de

sua vida, com a construção de vocativos singulares e estilizados, são critérios de uma

enunciação individual, uma forma peculiar que ornava seus enunciados de acordo com

seu estilo.

No âmbito das recorrências perscrutadas por nós, passemos agora às

indagações que aparecem à exaustão em todos os seis enunciados que analisaremos

neste capítulo. A este ponto resolvemos nomear de Perguntas retóricas: apenas o jogo

interlocutivo? Uma Frida que pede para ser amada.

Nosso interesse com esse ponto é demonstrar que, ao longo dos seis

enunciados, Frida vai sempre questionando seus amores a respeito de seus sentimentos e

atitudes. Perguntas que assumem a ordem direta do discurso e que, em sua grande

maioria, colocam o interlocutor em uma situação com poucas escolhas de resposta. Isso

quando a autora não pergunta já afirmando o que gostaria de ouvir.

Em dado momento, pensávamos que a aparição de perguntas e

questionamentos estaria dentro dos moldes que o gênero discursivo aciona. No entanto,

acreditamos que tamanhas recorrências não estão aí somente pelo jogo interlocutivo,

mas sim por uma questão valorativa, axiológica. Esses questionamentos fazem parte das

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escolhas lexicais que Frida faz e são bastante recorrentes. Esse percurso de indagações

retóricas inicia em E1 já na L3 e apresenta recorrências, ainda, na L8. No E2, as

perguntas aparecem nas Linhas 8, 19, 21, 22, 24, 25, 26, 30 e 35. Vejamos os exemplos

que se espalham pelos dois primeiros enunciados, nas cartas direcionadas a Alejandro:

E1

L3 Desde que te vi te amé. ¿Qué dice usted? […]

L5 […] te voy a suplicar que no te vayas a olvidar de tu mujercita linda, ¿eh?

L8 ¿verdad Alex? Te tienen que ir gustando las cosas fáciles […]

E2

L7 ¿Sabe usted la noticia?

L17 vaya, cómo te diré, como envidia ¿sabes?, pero eso sólo es natural. El día que

L18 quieras acariciarla, aunque sea como recuerdo, acaricias a mí y te haces las

ilusiones de

L19 que es ella ¿eh? ¿Mi Alex?... Oye, hermanito, ahora en 1925 nos vamos a querer

mucho

L20 ¿eh?

L21 […] No te parece que vayamos en diciembre de este año, hay mucho tiempo para

L22 arreglar todos los asuntos, ¿no crees? Dime todo lo que le encuentres de

L23 malo y de bueno y si de veras te puedes ir, es bueno que hagamos algo en la vida

¿no te parece?

L28 pero se junta eso trabajando un año y ya los demás pues es más fácil ¿verdad?

L33 A las 12 de la noche pensé en ti mi Alex ¿y tú?

Nesses blocos de enunciados, apresentamos todas as perguntas retóricas que

aparecem em E1 e E2. Algumas, realmente, nos leva à confirmação de que fazem parte

de um movimento de interlocução que é constitutivo das cartas pessoais. Por exemplo,

na L5 do E1; em E2, nas L20, L22 e L28. Porém, outras indagações nos parecem muito

mais valoradas e com um propósito que vai além do jogo de interlocução presente nos

Enunciados/cartas. Em E1 L3, Frida, logo depois de declarar que ama Alex, é incisiva e

rápida ao questionar o seu amado sobre o que ele vai lhe dizer sobre esse sentimento, ou

o que ele acha daquilo. Tal indagação demonstra certa insegurança com relação ao amor

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do outro. Em uma tentativa de exorcizar seus fantasmas de dúvida, a jovem Frida

questiona na esperança de ouvir uma resposta positiva.

Isso pode ser confirmado na L33 de E2. Aqui Frida confessa para Alejandro

que pensou nele às 12h da noite para, em seguida, lançar o questionamento que o

“obriga” a fazer o mesmo. Muito embora, plasmada na pergunta retórica da L33 esteja a

dúvida que sempre iria acompanhar Frida Kahlo: ser amada ou não?

Para proporcionar mais fixidez a essa arquitetônica de um ethos passional,

tingido por imaturidades e dúvidas, trazemos o próximo tópico enunciativo dessa

análise: as adjetivações de si e as metáforas. Optamos por unir, em todos os casos,

essas duas categorias por entendermos que, na maioria das recorrências, elas aparecem

muito próximas e completando o sentido uma da outra.

Observemos, então, os trechos em que essas recorrências aparecem:

E1

L4 [...] te voy a suplicar que no te vayas a

L5 olvidar de tu mujercita linda,[...]

L8 […] Te tienen que ir gustando las cosas

L9 fáciles… Yo quisiera ser todavía más fácil, una cosita chiquita que nada más

L10 trajeras en la bolsa siempre, siempre…

E2

L34 […] Bueno, como ya sabes que “Año Nuevo vida nueva”, tu mujercita va a

L35 ser este año no peladilla de a 7 pe, kilo, sino lo más dulce y bueno que

L36 hasta ahora se haya conocido para que te la comas enterita a puros besos

Como podemos observar, as metáforas que aparecem nos dois excertos que

recortamos estão diretamente associadas à figura de Frida. Assim, quando olhamos de

maneira mais cuidadosa detectamos que na composição estilística das metáforas há

presença de lexemas adjetivais que dão o tom valorativo à metáfora que, por sua vez,

valoram axiologicamente Frida. Temos, então, as escolhas: E1 L5 mujercita linda; E1

L9 Yo quisiera ser todavía más fácil, una cosita chiquita; e E2 L34 L35 tu mujercita va

a ser este año no peladilla de a 7 pe, kilo.

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É notório que, nessa fase da vida, no momento em que Frida se volta para si,

ela se coloca sempre como uma figura pequena – mujercita. Essa característica

discursiva apequena a Frida adolescente que estudava em uma das melhores instituições

de ensino da Cidade do México. As metáforas e as adjetivações desse bloco

singularizam a autora-criadora e pintam verbalmente uma menina que sonha com o

amor, uma figura que se vê pequena diante da grandeza de seu amante/namorado.

Por fim, Frida promete se transformar para atender a possíveis exigências –

que talvez só existissem na cabeça dela – feitas por Alex, ou para atender às suas

preferências. Legitimando sua vontade, ela lança mão de uma metáfora belíssima que

mistura cultura, culinária e delicadeza. Dessa forma, Frida assimila características de

um objeto/comida ao seu modo de ser e agir.

Quando usa a metáfora da “peladilla de a 7 pe” (E2 L35), Frida, ao falar de

si, e de seu comportamento, obviamente, faz um trocadilho com aquilo que, no contexto

espaço-temporal do México, chamam de peladilla e que significa: “Mulher vulgar ou

insolente”. Esse tom criativo da autora traz para suas cartas um posicionamento

revelador, pelo menos nesse momento, de um ethos que cria imagens, que brinca com as

atividades de linguagem, que rompe com as cartas tradicionais nas quais somente se

questionava sobre o bem estar dos interlocutores e as novidades que o cercavam.

Sendo assim, Frida inova com seus traços de escrita marcante e passional,

de certo modo, porém criativa, inventiva e brincalhona. Essa metáfora ainda pinta em si

a imagem de uma mulher desapegada dos valores sociais de uma época ainda repressora

para a classe feminina e revela uma imagem da mulher libidinosamente sensual e sem

pudores puritanos, mas isso é algo que discutiremos em outro momento, por enquanto

vamos ficar na “criatividade” marcada em seus escritos e nas ações que demarcaram,

para esse bloco, um perfil discursivo cheio de uma passionalidade pueril.

Passemos agora às assinaturas de despedidas. Nos interessa, nesse recorte, o

acabamento estético que Frida dá a si própria. Quando se nomeia, se entrega, ou até

mesmo se resguarda, ela constrói para nós uma imagem de menina travessa.

Vejamos:

E1

L12 Tu chamaca, escuincla o lo que tú quieras.

L13

L14 FRIEDA

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E2

L38 Te adora tu chamaca

L39 FRIDUCHITA

Aqui, tanto em E1 quanto em E2, Frida continua a construir a máscara da

menina que experiencia suas primeiras aventuras amorosas. No México, o termo

escuincla significa “menina” assim como chamaca. O que vai diferenciar um do outro é

que na cultura desse país escuincla recebe uma carga axiológica um pouco negativa,

significando “menina travessa”, o que equivale para nós aqui no Rio Grande do Norte à

“menina danada”. Então, Frida mistura em E1 os comportamentos com os quais Alex a

desejaria ver. Essa é uma tentativa de afirmar que ela pode ser da maneira que ele bem

ansiar. No entanto, em E2 Frida parece assumir apenas uma postura: chamaca L38. A

postura da menina inexperiente e pequena, mas que, de maneira carinhosa, se afirma

leve e delicada.

No fecho de E2, ela assina COM LETRAS GARRAFAIS: L39

FRIDUCHITA. Em português, Fridinha. A utilização do diminutivo mostra a imagem

de uma Frida adolescente, carinhosa e muito doce, assim como a amêndoa de sete pesos

que ela utiliza em sua metáfora final.

4.3.2 Os enunciados magentas: marcas de uma paixão mais intensa

A partir de agora, passaremos a analisar o segundo bloco de enunciados.

Dessa vez os enunciados/cartas estão endereçados a Diego Rivera, o marido de Frida.

Antes de adentrarmos na análise, vejamos o que diz Herrera (2011) sobre esse homem

que vai marcar profundamente a vida da pintora.

Diego tinha 41 anos quando conheceu Frida, e era o artista mais

famoso – e mais mal-afamado – do México. Sem dúvida, já tinha

pintado mais paredes do que qualquer outro muralista. Ele pintava

com tamanha fluência e velocidade que às vezes parecia tomado por

uma força telúrica. [...] Quando pintava, Rivera vivia cercado de

amigos e curiosos, a quem regalava com histórias fantasiosas – dizia,

por exemplo, ter lutado na Revolução Russa, ou jurava ter

experimentado um regime à base de carne humana. [...] Apesar das

palhaçadas, e embora a velocidade com que pintava desse a impressão

de improviso, Rivera era um profissional completo, ponderado e

experiente, que produzia pinturas desde os três anos de idade, quando

o pai, depois de ver o filho rabiscando as paredes, deu-lhe um quarto

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forrado de lousas, para que ele pudesse desenhar à vontade. [...] O

primeiro emprego de Diego na Cidade do México foi pintar o mural

intitulado Criação, no anfiteatro da Escola Nacional Preparatória.

(HERRERA, 2011, p.107)

E continua:

Em 1928, quando Frida o conheceu, Rivera estava solto no mundo.

Tinha viajado à Rússia em Setembro de 1927 como membro da

delegação de “operários e camponeses” para participar do décimo

aniversário da Revolução de Outubro e pintar um afresco no Clube do

Exército Vermelho, projeto que jamais chegou a concluir, pois sempre

parecia haver uma ou outra obstrução burocrática; em Maio de 1928, o

muralista foi chamado de volta às pressas pelo Partido Comunista do

Mexicano, aparentemente para trabalhar na campanha presidencial de

Vasconcelos [...] Embora fosse inegavelmente feio, Rivera atraía

mulheres com a facilidade natural de um ímã atraindo limalha. [...]

Diego era um príncipe sapo, um homem extraordinário, de humor

brilhante e charme e vitalidade exuberantes. Sabia ser afetuoso e era

profundamente sensual. O mais importante: era famoso, e para

algumas mulheres a fama pode ser um chamariz irresistível. Diz-se

que as mulheres caçavam Diego mais do que ele ia atrás delas. Ele era

perseguido especialmente por certas jovens turistas norte-americanas

que julgavam que ter um encontro com Rivera era “obrigatório”,

como visitar as pirâmides de Teotihuacán. (HERRERA, 2011, p.112).

A fama de Diego precedia sua vida com Frida. Ele havia se casado na

Rússia, mas se separou de sua esposa antes de retornar à Cidade do México. Não

existem registros a respeito do que Frida pensava da fama de mulherengo que

acompanhava Diego quando o conheceu. Talvez a volubilidade de Rivera a tenha

atraído; talvez ela tenha se aferrado àquela velha e enganosa esperança: eu serei a

mulher que vai cativar e prender o amor dele. Obviamente, os dois se amaram

intensamente, mas não sem conflitos.

Pelo fato de Diego ser, também, pintor e ter alcançado uma fama bem antes

que Frida, alguns jornalistas ousaram compará-los, ou até mesmo insinuar que Frida

bebera unicamente da fonte afamada do Diego Rivera. Contudo, ela fazia questão de

pontuar que nunca havia estudado com Diego. Aliás, nunca estudara com ninguém.

Apenas começou a pintar, segundo ela.

Em uma de suas entrevistas a uma jornalista do Detroit News, descrita por

Herrera (2011, p.200), Frida, jocosamente, ironiza as especulações asseverando:

“Obviamente, ele até que não é nada mal para um menino, mas eu é que sou a grande

artista.” A jornalista ainda descreve o olhar de Frida após a resposta: “Depois seus dois

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olhos negros cintilam e explodem em uma gargalhada formidável.” E assim, Frida

debochava da preocupação exacerbada da mídia da época em explicar suas obras.

Como já havíamos falado anteriormente, os enunciados/cartas que

analisaremos a partir de agora são destinados a Diego. Eles foram produzidos em

períodos distintos: Enunciado 3 em julho de 1935 e o Enunciado 4 em dezembro de

1938

No primeiro, produzido um ano antes do turbilhão de uma das maiores

crises, para não dizer a maior, que Frida enfrentaria em seu relacionamento com Diego

– a traição com sua irmã Cristina Kahlo – ela, chateada com as inúmeras traições “a céu

aberto”, escreve para o seu amado na intenção de questioná-lo e com a esperança de

mobilizar alguma resposta que a levasse a crer que ele estava preocupado em esconder

suas fugas amorosas, e, consequentemente, cuidando para que Frida não sofresse com

isso.

Na segunda carta, temos a construção de uma cena enunciativa mais

específica, pois ela é uma resposta à carta que Diego escreveu buscando dissuadir Frida

da ideia de desistir de expor na França. Para facilitar a compreensão desta aos nossos

leitores, resolvemos anexar (anexo I) a carta que Diego escreveu para Frida e que gerou

a resposta que, agora, analisaremos com enunciado/carta, na intenção de traçar um perfil

discursivo-estilístico passional diante desse interlocutor amado.

Vejamos os dois enunciados/cartas deste bloco de análise e que, a partir de

agora, chamaremos de E3 e E4:

Enunciado 3

23 de julio de 1935 1

................................................................ 2

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3

Por casualidad vi una carta en un abrigo, un derecho que pertenece al hombre, 4

una mujer que viene de lejos y sangrienta Alemania. Creo que debe ser la señora que 5

Willi Valentiner 13envió con fines “científicos”, artísticos” y “arqueológicos”… que me 6

hizo enojada y, a decir la verdad, celosa… 7

¿Por qué tengo que ser tan terca y obstinada hasta el punto de no 8

entendimiento que todas esas cartas, aventuras con mujeres, maestras de “inglés”, 9

modelos gitanas, asistentes con “buenas intenciones”, “emisarias plenipotenciarias de 10

sitios lejanos”, sólo constituyen flirteos. En el fondo, tú y yo nos queremos muchísimo? 11

¿Por lo cual soportamos un sinnúmero de aventuras, golpes sobre puertas, referencias 12

nuestras madres, imprecaciones, insultos y reclamaciones internacionales, pero siempre 13

nos amaremos? Creo que lo que está sucediendo es que soy un poco estúpida y una 14

tonta, porque todo eso sucedió y se han repetido todas estas cosas a través de los siete 15

años que llevamos viviendo juntos. Todos los corajes que he hecho sólo han servido para 16

hacerme comprender, por fin, que te quiero más que a mí propio pellejo y que tú sientes 17

algo por mí, aunque no me quieras en la misma forma. ¿No es cierto? Si esto no es 18

cierto, yo siempre tengo la esperanza de que va a ser , y esto es suficiente para mí… 19

20

Ámame un poco 21

Te amo 22

Frieda23

13

Wilhelm Valentiner nasceu em Karlsruhe (Baden), e estudou em Heidelberg sob Henry Thode, e na

Holanda com Cornelis Hofstede de Groot e com Abraham Bredius, cujo assistente estava na galeria de

Haia. Em 1905, ele foi chamado para Berlim por William Bode, com quem trabalhou no Museu Kaiser

Friedrich e Kunstgewerbe Museum. Em 1906, publicou sua dissertação sobre Rembrandt iniciada em

1904: Rembrandt auf der Lateinschule. Em 1907, foi nomeado curador do departamento de artes

decorativas no Metropolitan Museum, em Nova York, o qual sob a sua supervisão se tornou um dos mais

avançados do mundo.

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1

Enunciado 4

8 de Diciembre de 1938 1

2

Niño mío… 3

4

Son las seis de la mañana 5

y los guajolotes cantan, 6

calor de humana ternura 7

Soledad acompañada 8

Jamás en toda la vida 9

olvidaré tu presencia 10

Me acogiste destrozada 11

y me devolviste entera 12

Sobre esta pequeña tierra 13

¿dónde pondré la mirada? 14

¡Tan inmensa, tan profunda! 15

Ya no hay tiempo, ya no hay nada. 16

Distancia. Hay ya sólo realidad 17

¡Lo que fue, fue para siempre! 18

Lo que son las raíces 19

que se asoman transparentes 20

transformadas 21

En el árbol frutal eterno 22

Tus frutas dan sus aromas 23

tus flores dan su color creciendo con la alegría 24

de los vientos y la flor 25

No dejes que le dé sed 26

al árbol del que eres sol, 27

que atesoró tu semilla 28

Es “Diego” nombre de amor. 29

30

De la gran ocultadora 31

Frieda 32

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O desdobramento do Enunciado 3 está diretamente ligado ao modo como

Frida inicia esta carta. Se observarmos bem o início do E3, veremos que existe uma

pequena linha pontilhada entre a data e o primeiro parágrafo. Essa linha contínua, na

nossa perspectiva, pode indicar algumas supressões feitas ou pela própria Frida, ou

pelos compiladores das cartas. Possivelmente, algumas garatujas indecifráveis que se

tornaram traços recorrentes da escrita fridiana. Porém, são indagações que não

aviltamos responder.

Assim, é possível constatarmos que não há vocativo, nem, tampouco,

saudação inicial. Concluímos, então, que o interlocutor de Frida, aqui, é Diego pelas

várias remissões que autora faz durante a construção do enunciado ao grande amor de

sua vida, mesmo quando estas remetem aos dois – o casal – pois não há remissões tão

intensas, numa perspectiva de futuro, de querer estar com o ser amado no futuro, em

outros enunciados com um interlocutor que não seja Diego.

Vejamos:

E3

L3 […] un derecho que pertenece al hombre

L11 [...]tú y yo nos queremos muchísimo

L12 ¿Por lo cual soportamos un sin número de aventuras, golpes sobre puertas,

referencias

L13 nuestras madres, imprecaciones, insultos y reclamaciones internacionales, pero

siempre

L14 nos amaremos?

Partindo disso e recorrendo aos traços discursivos que caracterizam esse

gênero como carta pessoal, podemos afirmar que Frida rompe com o estilo funcional do

gênero e começa transgredindo a ordem no que tange à macroestrutura. O que, de cara,

já singulariza a escrita da autora e ensaia um ethos passional transgressor em E3.

Por outro lado, no Enunciado 4 vemos uma situação completamente

diferente. E é por acreditarmos na influência do conteúdo temático sobre as escolhas de

Frida em E4 que assinalamos a falta de vocativo em E3 e a presença de um vocativo em

E4. Sabemos que o motivo que levou a pintora mexicana a produzir o Enunciado 4 tem

uma carga emocional distinta do motivo pelo qual ela produz o E3.

Em E4, Frida evoca Diego da seguinte maneira:

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L3 Niño mío…

Nessa cenografia, o vocativo dá vez e voz a uma Frida que se vê diante do

maior amor de sua vida. A utilização do possessivo mío é uma marca recorrente que a

acompanha desde Alejandro. No entanto, temos a introdução de um elemento fulcral na

composição desse vocativo, que nada mais é do que o substantivo Niño servindo como

adjetivo.

Em outras palavras, há um acabamento dado a Diego que o coloca como

criança de Frida. Mais uma vez o ser amado vira objeto de pertencimento. Mas, agora,

Frida transforma o Sapo-gordo14

em um menino amado. Com esse vocativo, Frida

preenche, com o amor que sentia por Diego, a lacuna existente em seu lado materno,

pois não podia ter filhos por causa do acidente que dilacerara sua coluna e se sentia

incompleta com isso. Não é à toa que a autora o nomeia assim, especialmente em E4.

Desta feita, não nos é difícil afirmar que a intensidade que há no

comportamento passional de Frida com relação a Diego é muito maior do que com

relação aos outros interlocutores que compõem o recorte deste corpus.

Consideremos, também, ainda em E4, as escolhas estilísticas no âmbito da

organização composicional, como, por exemplo, a disposição em versos diante de um

parâmetro predefinido. Tal composição se encontra compactada em uma única estrofe

de vinte e cinco versos. Frida compõe esse enunciado/carta escolhendo versos que vão

desde hexassílabos até bárbaros. Dessa forma, podemos afirmar que Frida nunca teve a

intenção de responder aos modelos canônicos no que diz respeito à tradição lírica.

Essa forma de organizar poeticamente e de colocar o texto em verso em um

gênero prototipicamente escrito em prosa, demonstra a plasticidade dos escritos

fridianos assim como sua ousadia em transgredir. Essa é uma marca recorrente nas

construções das cartas de Frida. Muito possivelmente, assinala uma escrita que brinca

com as possibilidades da linguagem, mas esse não é o nosso objetivo de pesquisa.

Voltemo-nos, agora, para E3. Aqui, Frida inicia o enunciado escolhendo um

artifício em que buscava justificar o fato dela, supostamente, investigar os bolsos das

roupas de seu esposo: L3 Por casualidad. Seria esse marcador discursivo, comumente

utilizado para atribuir ao destino, à força do acaso as descobertas, acontecimentos,

14

Esse era um dos apelidos que Diego recebera nas rodas sociais mexicanas. Ele remetia para sua feiura e

suas formas alargadas e exageradas.

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acidentes, etc., uma tentativa de Frida mostrar que não ligava para as traições que Diego

Rivera cometia? Acreditamos que não! Muito pelo contrário, já no fim do primeiro

parágrafo a pintora mexicana esclarece seus sentimentos e toma como força valorativa o

adjetivo L7 celosa, que em uma tradução literal significa enciumada.

Porém, antes de discutirmos as metáforas e das adjetivações, enquanto

categorias de análise, gostaríamos de falar um pouco sobre as indagações retóricas e

sobre o jogo de interlocução que consideramos como marcas do conjunto de escolhas

que, aqui, são feitas pela autora-criadora. Para tanto, temos, neste bloco, apenas em E3:

L8 ¿Por qué tengo que ser tan terca y obstinada hasta el punto de no

L9 entendimiento que todas esas cartas, aventuras con mujeres, maestras de “inglés”,

L10 modelos gitanas, asistentes con “buenas intenciones”, “emisarias plenipotenciarias

de

L11 sitios lejanos”, sólo constituyen flirteos. En el fondo, tú y yo nos queremos

muchísimo? […]

L12 […] ¿Por lo cual soportamos un sinnúmero de aventuras, golpes sobre puertas,

referencias

L13 nuestras madres, imprecaciones, insultos y reclamaciones internacionales, pero

siempre

L14 nos amaremos? […]

L18 . ¿No es cierto?

Como vimos, na seção anterior, as indagações que Frida vai construindo

durante a extensão de seus enunciados/cartas são marcas estilísticas que se repetem e

chamam a nossa atenção para a presença maciça dessas escolhas que extrapolam o

simples jogo de interlocução inerente ao gênero discursivo em questão.

No bloco magenta de enunciados não poderia ser diferente. Encontramos

algumas indagações em E3 sobre as quais nos debruçamos, mais uma vez, por não

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acreditarmos na simples convenção genérica. Frida escolhe questionar Diego de uma

maneira bem própria. São perguntas que não abrem margem para uma resposta diferente

da que a autora gostaria de ouvir, pois em sua grande maioria já perguntam afirmando.

Como é o caso do exemplo na L18:

L17 y que tú sientes

L18 algo por mí, aunque no me quieras en la misma forma. ¿No es cierto?.

Já em E4 encontramos apenas um questionamento que nos parece retórico.

Nele Frida se questiona para onde olhar, ou para onde dirigir o olhar, pois sem a

presença de seu amado ela não enxergava sentido ou extensão para o seu olhar. Para ela,

a terra se apequenava diante da falta de seu amor e essa pequenez parecia sufocar Frida,

a amante hiperbólica:

L14 ¿dónde pondré la mirada?

As indagações parecem-nos desenhar certa instabilidade no que diz respeito

à certeza da correspondência vinda de seu amado Diego. Cada indagação se enche de

um pedido desesperado por amor. As expressões, destacadas mais adiante, confirmam

essa envergadura passional extrema, esse apelo ao amor do outro, essa vontade de ser

amada com a mesma intensidade com que se ama. E, ainda que fosse pouco, em

migalhas, a interessava receber esse amor. Como, mais uma vez, podemos observar: em

E3, L11 En el fondo, tú y yo nos queremos muchísimo?; L13 pero siempre nos

amaremos?; L18 algo por mí, aunque no me quieras en la misma forma. ¿No es cierto?;

e em E4, L14.

Em outras palavras, as interrogações a Diego definem a dúvida suplantada

em Frida. A dúvida de quem não acredita que é amada, não acredita no amor do outro, a

dúvida de quem implora por uma simples faísca de amor correspondido.

Voltemo-nos agora para as construções metafóricas e as adjetivações de si

que Frida faz neste bloco de Enunciados tendo Diego como interlocutor.

No início de E3, amparados também pelos recursos gráfico-visuais que a

autora utiliza em todo o texto, a utilização de aspas duplas, por exemplo, pensamos ser a

escolha da locução adverbial de modo (L3 Por casualidad) um traço linguístico que irá

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contribuir com a construção da ironia. Aliás, esse traço inicia um descarrilamento

irônico que se desenrola por toda a extensão do primeiro parágrafo do Enunciado 3.

Entendemos, portanto, que para construir a ironia a autora faz uso recorrente

de metáforas que, inicialmente, será a figura de estilo eleita por Frida para dar o tom

desejado, pelo menos no início, do Enunciado 3.

Percebemos isso, também e, principalmente, na demarcação das aspas nas

expressões substantivas e adjetivas a seguir: L6 “científicos”, artísticos” y

“arqueológicos”; e L10 “buenas intenciones”, “emisarias plenipotenciarias de sitios

lejanos”. É, especialmente, nesses pontos que encontramos uma marca irônica que

vislumbra uma crítica velada às verdadeiras intenções das mulheres que se

aproximavam de seu amado. Em tom de revolta, Frida, inconformada com tanta

indiferença, sinaliza para Diego que sabe de suas latentes traições.

Porém, apesar de todo esse ataque, embora encoberto pela navalha da ironia,

o que vai nos interessar é a passionalidade com que Frida conduz todo o resto do

embate travado com seu coenunciador mais intenso e mais amado.

Assombrada pelo fantasma da paixão, ela, já no segundo parágrafo de E3,

começa a orquestrar uma pergunta retórica que questiona todo seu posicionamento

revoltado. Ao olhar para si, no movimento retórico do questionamento valorativo,

proclama-se L8 “terca y obstinada”, e ainda afirma que essas “qualidades” a impedem

de compreender o que ela representa na vida de Diego.

Ainda sob a égide da autocensura, escolhe como adjetivo para essas traições

riverianas, que tanto maceraram seu corpo sentimental, a palavra piadas (sublinhada

pela própria autora). E vai sublinhar, mais à frente, os pronomes L11 tú y yo e o

intensificador L11 muchísimo . Tal sinalização nos parece continuar sinalizando a

presença da ironia, mas a pergunta que se formata parece-nos pedir uma resposta

positiva. Em algum momento, Kahlo espera ouvir de Diego que ela está correta. Ou

ainda, parece implorar para que ele concorde com ela. Como já havíamos observado

anteriormente.

No que diz respeito à escolha dos signos adjetivados em E3, são recorrentes

os usos valorativos de autodepreciação que faz Frida assumir um lugar de vítima e, ao

mesmo tempo, de apaixonada.

L8 […] tengo que ser tan terca y obstinada […]

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L14 […] soy un poco estúpida y una tonta, […]

Parecem-nos escolhas que estabelecem relações dialógicas com

comportamentos típicos de quem está apaixonado. Só que vivendo em plenitude severa

uma paixão que a machuca mais que a própria dor da carne.

Essa dor que evoca um comportamento de passionalidade intensa e extrema

se plasma e se confirma, no campo da materialidade linguística, quando Frida constrói a

metáfora: L17 [...]por fin, que te quiero más que a mí propio pellejo [...]. Essa metáfora

elucida para nós a intensidade do amor e das dores provocadas por Diego nesse sujeito

encarnado. Uma outra possibilidade de leitura nos leva a crer que a pintora não teria

como matar esse amor, pois, metaforicamente, seria preciso arrancar a sua “própria

pele”. Essa declaração é seguida de uma triste constatação sob forma de pergunta.

Continuando, em E4, temos uma vasta recorrência de metáforas que vão se

compondo a partir do jogo criativo que Frida, agora mulher adulta, faz com as

adjetivações.

Nesse enunciado/carta, Frida rompe com a forma composicional, com

modalidade escrita em verso e escreve uma carta/poema, ou um enunciado lírico, que dá

vazão a um ethos passional mais intenso, mais sensível e, agora, erudito. E4 é plasmado

em um registro tido como culto da modalidade escrita da língua e, convencionalmente,

poético. Mas uma poesia que se irmana muito mais da poesia marginal brasileira

(década de 1970), ou da geração de 1930 – primeira geração genuinamente modernista –

que quebrou com uma métrica parnasiana, mais fechada.

Nas construções metafóricas dotadas de adjetivações em suas estruturas

sintagmáticas destacamos os seguintes excertos:

E4

L7 calor de humana ternura

L8 Soledad acompañada

L11 Me acogiste destrozada

L12 y me devolviste entera

L15 ¡Tan inmensa, tan profunda!

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L16 Ya no hay tiempo, ya no hay nada.

L17 Distancia. Hay ya sólo realidad

L18 ¡Lo que fue, fue para siempre!

L19 Lo que son las raíces

L20 que se asoman transparentes

L21 transformadas

L22 En el árbol frutal eterno

L23 Tus frutas dan sus aromas

L24 tus flores dan su color creciendo con la alegría

L25 de los vientos y la flor

L27 al árbol del que eres sol,

L28 que atesoró tu semilla

A metáfora que se inicia em L7 faz remissão à presença do próprio Diego na

vida de Frida. O calor representa afeto e os mexicanos têm uma relação cultural muito

forte com as coisas quentes: cores; frutos; culinária; etc. No contrapeso dos dois

substantivos abstratos (calor e ternura) estabelece-se um par dicotômico que acaba

criando a metáfora em si. Frida humaniza o calor da presença marcante de seu amado.

Seguindo essa mesma ordem de inversão, teremos, logo em seguida no

verso L8, a utilização de mais uma metáfora de antagônicos (Soledad acompanhada).

Como pode existir uma solidão acompanhada? Essa construção brilhante da metáfora

fridiana remete-nos ao sentir de Frida, pois mesmo estando rodeada de amigos e boas

companhias na França, onde iria expor seus afrescos, nada preencheria o vazio e solidão

causados pela falta de Diego.

Por conseguinte, temos o xeque-mate dessa construção metafórica nos

versos L11 e L12. Pois neles Frida enaltece a importância de seu amado, uma vez que

ele fora o responsável por sua reconstrução. Muito provavelmente, Frida, quando usa o

adjetivo L11 destrozada, refere-se às sequelas deixadas pelo acidente que ela sofreu

ainda na juventude. Diego, então, teria sido o responsável pela vontade de reconstrução

que impregnara a alma de Frida.

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A terceira e última grande metáfora que Frida constrói em E4 gira em torno

da árvore, ou melhor dizendo árbol. Esta se inicia no verso L15 e se espraia até o verso

L28.

Aqui a autora-criadora usa a árvore para dialogar com o discurso bíblico da

origem do homem e o fato deste ter comido o fruto proibido na árvore da sabedoria:

L22 En el árbol frutal eterno. Esta seria a responsável pela vida e sabedoria do Éden,

por outro lado proibida no mito adâmico. Frida estabelece relações dialógicas com a

tradição bíblica sim, e acreditamos que esta é uma maneira de, metaforicamente, referir-

se a Diego como aquele que lhe dá vida, ou até mesmo o que é proibido, pecado, mas

que a seduz com forças irracionais.

No desdobramento da metáfora em questão, a autora faz uso de palavras do

mesmo campo lexical que remeterão à árvore: L19 las raíces; L23 Tus frutas dan sus

aromas; L24 tus flores dan su color; L25 la flor; L28 que atesoró tu semilla. E ainda

assevera a força e a imensidão desta árvore que representa seu amor por Diego: L15

¡Tan inmensa, tan profunda!.

Partindo agora para o último bloco de análise dos enunciados magentas,

trataremos das despedidas e/ou assinaturas dos dois enunciados/cartas que Frida

escreveu para Diego, os quais foram selecionados para nosso corpus.

Nessa perspectivação, vejamos as despedidas e as assinaturas de E3 e E4

que encerram as respectivas cartas:

E3

L21 Ámame un poco

L22 Te amo

L23 Frieda

E4

L31 De la gran ocultadora

L32 Frieda

Inicialmente, devemos acentuar a diferença entre as despedidas dos dois

enunciados. Chama a nossa atenção, também, o que Frida coloca um pouco antes de

despedir-se e assinar E3. Observemos: L18 Si esto (elemento coesivo que retoma o

questionamento em forma de apelo ao amor de Diego) no es L19 cierto, yo siempre

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tengo la esperanza de que va a ser, y esto es suficiente para mí…; e, ainda, em forma de

súplica, pede e declara, respectivamente: L21 Ámame un poco L22 Te amo.

As escolhas que a autora-criadora faz aqui, nos leva a construir, no bojo do

jogo enunciativo, a imagem de uma mulher que sofria muito por esse amor, mas que

não se enxergava sem ele; que conduzia suas decisões, enviesada por esse sentir que a

dominava. Frida prepara o terreno para a maior entrega que faria em sua vida com

Diego. Conformada, ela admite alimentar uma esperança de que tudo o que ela pensara

seria verdade, e esse simples fato já seria o bastante. Ela abaixa a sua cabeça, não para

Diego, mas para o sentimento que a toma e a consome. Essa afirmativa revela-nos um

grau de passionalidade que se distingue dos outros, em momentos em que ela veste essa

máscara passional.

Compreendemos, portanto, que no jogo interlocutivo com Diego a imagem

passional de Frida se agiganta, ganha força, emerge no plano discursivo em um grau

maior e mais intenso do que na enunciação entre ela e Alex ou entre ela e Muray. Dessa

forma, o apelo, a súplica, a passionalidade disfarçada de ironia vão delineando,

axiologicamente, uma Frida que estava sob o jugo desse amor inenarrável.

Na cenografia construída por Frida em E4, temos uma cena enunciativa

deferente, pois, como já havíamos colocado anteriormente, Frida aqui responde a uma

carta de Diego. E, nesta carta15

, existem afirmações e declarações que, muito

provavelmente, insuflam a paixão que Frida sentia pelo Sapo-gordo. Aqui temos a

presença do mesmo grau de passionalidade só que agora por um motivo diferente, ou

melhor, um motivo que agradava a pintora mexicana.

A despedida do E4 está, no plano valorativo, plasmada à assinatura. Ela

mistifica a figura feminina da pintora, empodera Frida com armas discursivas que

parecem inatas ao seu jeito de agradecer a Diego e, até mesmo, de construir uma

imagem de ocultista, aquela que também sabe esconder as coisas ou que conhece o que

está oculto, por trás da carta que ele mandara naquela ocasião.

Por outro lado, acreditamos que Frida busca denunciar, com esse

acabamento de si, o caso que ela matinha com Nickolas Muray. Na ocasião em que

Frida produziu esta possível resposta a Diego, de acordo com Herrera (2011), ela estava

em Nova York, onde assistiu à exposição de sua obra na galeria Julien Levy, e mantinha

relações amorosas com Muray. Ocultar-se, diante dessa conjuntura, se ressignifica e

15

Ver anexo A.

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ganha tons valorativos que vão além de misticismos e feitiços presentes na carga

axiológica da palavra ocultadora. De posse dessa informação, podemos afirmar que

Frida tenta dar o troco a Rivera. Assinala que existem coisas que ela esconde e que

podem feri-lo profundamente.

No entanto, não seria de sua natureza tratar o imenso amor que sentia por

Diego com tamanho desdenho. Apesar dele não fazer a mínima questão de camuflar

seus casos fora de sua relação com Frida. Ocultar Muray seria matar um pouco esse

amor devastador que a autora sentia por Diego? Talvez sim.

O que nos é possível afirmar é que Frida não era indiferente ao seu

sentimento por Diego, muito menos às traições que sofria. Ela respondia

responsivamente aos arroubos amorosos de seu amante predileto, às feridas que se

abriam e se suturavam o tempo todo, ações de um homem que considerava a fidelidade

um valor burguês e aprisionador. Frida não se escondia em falsos álibis. Ela assinava

suas ações diante do mundo da vida.

A escolha do termo la gran ocultadora não foi aleatória, nem

despretensiosa. Frida quer que Diego saiba que ocultar é uma habilidade que ela

desenvolve com bastante frequência. E que, apesar de amá-lo intensamente, ela

mantém, nessa fase de sua vida, alentos para suprir o abismo que o seu relacionamento

com Diego abrira.

Sobre a assinatura, percebemos que ela não se altera de um enunciado para

o outro. O que dá uma certa padronização e garante a presença daquele sujeito fridiano

assinando por seu discurso. Frieda é o nome da pintora de verdade. É como está em seu

registro de nascimento e era como sua família a conhecia. Ou seja, esse interlocutor era

tratado, realmente, como alguém com quem Frida compartilhava sua vida íntima ou

nutria alguma importância por ele.

Chegando ao fim deste bloco de análise, podemos constatar que há,

recorrentemente, nesses dois enunciados/cartas a presença de uma passionalidade mais

intensa e desesperada. Uma tendência por conclamação ao amor do outro e, em tons

quase jocosos, uma autocomiseração que a coloca no patamar de sofrimento dilacerante.

Abriremos, agora, o último bloco de análise deste capítulo. De agora em

diante, passaremos a analisar duas cartas escritas a Nickolas Muray. Um dos amantes

que Frida teve em uma fase mais “madura” de sua vida. Demos o nome de Vermelho-

rubro por se tratar de um movimento mais pensado, mais adulto, mais carnal e menos

sentimental.

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4.3.2 Os enunciados vermelho-rubros: um amor mais maduro e racional

Passemos agora aos Enunciados 5 e 6. As cartas que Frida escreveu a

Nickolas Muray. Sobre este amor de Frida, Herrera (2011, p. 288) aprecia:

Um pretendente bem mais sério foi Nicholas Muray. Muray chegara

aos Estados Unidos em 1913, aos 21 anos de idade, com 25 dólares no

bolso. No final da década de 1920, já era um dos mais bem-sucedidos

fotógrafos retratistas do país. Seus retratos de celebridades eram

publicados nas revistas Haper’s Bazaar e Vanity Fair – uma das

inúmeras fotos que tirou de Frida saiu na Coronet em 1939 – e ele

trabalhava assiduamente com fotografia comercial.

E continua:

Muray era um generoso benfeitor das artes, e frequentemente

comprava pinturas para ajudar algum amigo necessitado de dinheiro.

[...] Ele conservava uma simplicidade e uma bondade intocadas, uma

capacidade de ternura e intimidade que devem ter atraído Frida. Por

certo, seu rosto magro e belo e o corpo gracioso também. Ela

conhecera Nickolas no México no ano de 1938. O fotografo ajudara

Frida a planejar sua exposição, fotografando suas telas,

providenciando o transporte das pinturas e verificando o estado dos

quadros ao chegarem em Nova York.

Muray se concretizará como amante somente quando Frida já está dando os

primeiros passos, efetivos, de sua carreira artística. Apesar de sua paixão por Nick –

essa era a forma carinhosa e abreviada com que Frida tratava Muray – nem mesmo o

fotógrafo húngaro foi capaz de concorrer com Diego pela admiração e paixão de Frida.

Observemos os Enunciados do bloco vermelho-rubro:

ENUNCIADO 5

16 de febrero de 1939 1

2

Mi querido Nick, 3

Cuando llegué, los cuadros todavía estaban en la aduana, porque ese hijo de 4

perra Breton no se tomó la molestia de sacarlos. Jamás recibió las fotografías que 5

enviaste hace muchísimo tiempo, o por lo menos eso dice, no hizo nada en cuanto a los 6

preparativos para la exposición, y hace mucho que ya no tiene una galería propia. Por 7

todo eso fui obligada a pasar días y días esperando como una idiota, hasta que conocí a 8

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Marcel Duchamp, pintor maravilloso y el único que tiene los pies en la tierra entre esta 9

montón de hijos de perra lunáticos y trastornados que son los surrealistas. De 10

inmediato sacó mis cuadros y trató de encontrar una galería. Por fin una, llamada 11

<<Pierre Colle>>, aceptó la maldita exposición. Ahora Breton quiere exhibir, junto 12

con mis cuadros, catorce retratos del siglo XIX (mexicanos), así como 32 fotografías de 13

Álvarez Bravo y muchos objetos populares que compró en los mercados de México, 14

pura basura; ¡es el colmo! Se supone que la galería va a estar lista el 15 de marzo. Sin 15

embargo… hay que restaurar los catorce óleos del siglo XIX, y este maldito proceso 16

tarda un mes entero. Tuve que prestarle 200 lanas (dólares) a Breton para la 17

restauración porque no tiene ni un céntimo. (Le telegrafié a Diego describiéndole la 18

situación, y le dije que le presté ese dinero a Breton. [Diego] se puso furioso, pero ya lo 19

hice y ya no se puede hacer nada al respecto.) Todavía me resta dinero para permanecer 20

aquí hasta principios de marzo, de manera que no me preocupo mucho. 21

Bueno, cuando hace unos días, todo, más o menos estaba arreglado, como ya te 22

platiqué, Breton de repente me informó que el socio de Pierre Colle, un anciano 23

bastardo e hijo de perra, vio mis cuadros y consideró que sólo será posible exponer dos, 24

¡porque los demás son demasiado “escandalosos” para el público! Hubiera podido matar 25

a ese tipo y comerlo después, pero estoy tan harta del asunto que he decidido mandar 26

todo al diablo y largarme de eta ciudad corrompida antes de que yo también me vuelva 27

loca. 28

29

“... tu telegrama llegó esta mañana y lloré mucho, de felicidad y porque te 30

extraño, con todo mi corazón y sangre. Recebí tu carta ayer, mi cielo, es tan hermosa y 31

tan tierna que no encuentro palabras que te comuniquen la alegría que sentí. Te adoro, 32

mi amor, créeme; nunca he querido a nadie de este modo, jamás, sólo Diego está tan 33

cerca de mi corazón como tú… Extraño cada movimiento de tu ser, tu voz, tus ojos, tu 34

hermosa boca, tu risa tan clara y sincera. A ti. Te amo, mi Nick. Estoy tan feliz 35

porque te amo, por la idea de que me esperas, de que me amas. 36

Querido, dale muchos besos a Mam de mi parte. Nunca la olvidaré. También 37

besa a Aria y a Lea. Para ti, un corazón lleno de ternura y caricias, un beso especial en 38

el cuello, tu 39

40

Xóchitl”41

ENUNCIADO 6

27 de febrero de 1939 1

2

Mi amado Nick: 3

4

Esta mañana recibí tu carta, después de tantos días de espera. Sentí tal 5

felicidad que empecé a llorar antes de leerla. Mi niño, en realidad no debería quejarme 6

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de nada de lo que me pase en la vida, mientras tú me quieras y yo te quiera. [Este 7

amor] es tan real y hermoso que me hace olvidar todas las penas y los problemas, has 8

hace que olvide la distancia. A través de tus palabras estoy tan cerca de ti que puedo 9

sentir tu risa, esa risa tan limpia y franca que sólo tú tienes. Estoy contando los días 10

que faltan para mi regreso. ¡Un mes más! Entonces estaremos juntos de nuevo… 11

Me siento bastante débil después de tantos días con fiebre. La maldita colitis 12

hace que uno se sienta pésimo. El médico me dice que he de haber comido algo que no se 13

lavó bien (ensalada o fruta cruda). Me juego la cabeza a que adquirí las cochinas 14

bacterias en la casa de Breton. No tienes idea de la mugre con la que vive esa gente, ni 15

de los alimentos que comen. Es algo increíble. En la maldita vida he visto nada igual. 16

Por alguna razón que ignoro, la infección pasó de los intestinos a la vejiga y a los 17

riñones, por lo que n o pude hacer pipí durante dos días. Sentía que iba a explotar en 18

cualquier momento. Afortunadamente, todo está O.K. ahora, y lo único que debo hacer 19

es descansar y seguir una dieta especial. 20

Cariño, debo decirte que te has portado mal. ¿Por qué me mandaste ese cheque 21

de dólares? ¿Tu amigo, “Smith”, es imaginario? Fue un gesto muy bonito, pero dile a él 22

que me voy a quedar con su cheque sin tocarlo hasta que regrese a Nueva York, y ahí 23

discutiremos el asunto. Nick mío, eres la persona más tierna que jamás he conocido. 24

Pero escucha, mi amor, en realidad no necesito el dinero ahora. Tengo un poco; todavía 25

de México, además de que soy una perra muy rica, ¿lo sabías? Es suficiente para 26

quedarme un mes más. Ya cuento con el boleto de regreso. Todo está bajo control, así 27

que de veras, mi amor, no es justo que hagas gastos adicionales… De cualquier forma, 28

no te imaginas cuánto te agradezco el deseo de ayudarme. No dispongo de las palabras 29

para describirte la alegría que me cusa saber que quisiste hacerme feliz y que eres tan 30

bondadoso y adorable… Mi amante, mi cielo, mi Nick, mi vida, mi niño, te adoro. 31

Adelgacé por la enfermedad. Cuando regrese, soplarás una vez y… ¡voy para 32

arriba! Hasta el quinto piso del hotel La Salle. Oye, niño ¿todos los días tocas esa cosa 33

para incendios que cuelga en el descanso de la escalera? No olvides hacerlo todos los 34

días. Tampoco olvides dormirte en tu cojincito, porque me encanta. No beses a nadie 35

mientras lees los letreros e nombres en las calles. No lleves a nadie a pasear por nuestro 36

Parque Central. Sólo es de Nick y Xóchitl… No beses a nadie en el sofá de tu oficina. 37

Blanche Heys es la única que puede darte masaje en el cuello. Sólo puedes besar a Mam 38

todo lo que quieras. No hagas el amor con nadie, si lo puedes evitar. Hazlo únicamente 39

en el caso de encontrar una verdadera F.W. “fucking wonder”: “maravilla para coger”, 40

pero no te enamores. Juega con el tren eléctrico de cuando en cuando, se no regresas 41

demasiado cansado del trabajo. ¿Cómo está Joe Jinks? ¿Cómo está el hombre que te de 42

masaje dos veces e la semana? Lo odio un poco, porque te alejó de mi lado durante 43

muchas horas. ¿Has practicado la esgrima mucho? ¿Cómo está Georgio? 44

¿Por qué dices que sólo tuviste éxito a medias en el viaje a Hollywood? 45

Platícame acerca eso. Cariño, no trabajes tanto si lo puedes evitar, porque sólo te 46

cansas del cuello y la espalda. Dile a Mam que te cuide y que te obligue a descansar 47

cuando estés cansado. Dile que estoy mucho más enamorada de ti, que eres mi amor y 48

mi amante, y que mientras no estoy te tiene que querer más que nunca, para hacerte 49

feliz. 50

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¿Te molesta mucho el cuello? Te mando millones de besos para tu hermoso 51

cuello, para que se sienta mejor, toda mi ternura y todas mis caricias para tu cuerpo, de 52

la cabeza a los pies. Beso cada pulgada, desde lejos. 53

Toca con mucha frecuencia el disco de Maxine Sullivan en el gramófono. Estaré 54

ahí contigo, escuchando su voz. Te puedo imaginar, acostado sobre el sofá azul con tu 55

capa blanca. Te veo cómo disparas hacia la escultura que se encuentra junto a la 56

chimenea; veo claramente cómo el resorte salta al aire y oigo tu risa, la de niño, cuando 57

atinas. Oh, mi querido Nick, te adoro tanto. Te necesito tanto que me duele el 58

corazón… 59

60

Xóchitl 61

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O primeiro enunciado desse bloco (Enunciado 5) é produzido assim que

Frida chega a Paris. Ela teria ido à cidade luz para expor seus quadros em uma

exposição organizada por André Breton. Nessa carta, Frida parece irritada com o

descuido com o qual Breton trata seus quadros e outros atropelos que aconteceram

durante esse período inicial de sua estadia na França.

Já o segundo, é produzido um tempo depois de sua chegada a Paris. O

enunciado 6 é uma resposta de Frida a uma carta que ela havia recebido de Muray.

Nesse período, Frida estava muito chateada com o fato de sua exposição demorar para

acontecer e da boemia dos artistas surrealistas franceses. Frida criticava severamente o

ócio burguês dos artistas franceses e asseverava o fato de cada um desses artistas não ter

o que comer em casa por não trabalharem; viverem como parasitas de um bando de

ricaços que admiravam o gênio dos artistas.

Ainda, é importante ressaltar que Frida havia contraído uma bactéria na casa

de Breton que a deixou hospitalizada. No enunciado 6 ela relata isso ao seu

interlocutor. Essa bactéria teria provocado uma infecção terrível na pintora que, como se

não bastasse, já sofria com os traumas do acidente, de uma poliomielite de infância e

das dores amorosas provocadas por Diego Rivera.

Ao nomear seu interlocutor vocativamente, Frida não foge muito a regra que

ela cria, ainda que ingenuamente, no que diz respeito ao valor axiológico que o pronome

possessivo adquire nessa cena enunciativa. Apesar de não usar o pronome em E5,

chamamos a atenção para as recorrências e semelhanças discursivas no trato com os

interlocutores. O possessivo meu é uma escolha da autora na maioria de seus vocativos.

Pelo menos no recorte selecionado por nós.

Nesse bloco, especificamente, ela muda a forma de compor o vocativo de

um enunciado para outro: E5L3 Mi querido Nick; E6L3 Mi amado Nick. O que muda

de um para o outro é somente os adjetivos que ela escolhe para dar acabamento à

imagem de Muray. A reiteração do possessivo aponta para uma Frida passional que há

muito tempo só sabe amar assim: sentido que o outro lhe pertence.

As abreviações recorrentes do nome de Nickolas Muray apontam para o hábito

cultural norte-americano de, carinhosamente, contrair os nomes das pessoas. No entanto,

consideramos que o fato de Frida o chamar por aquilo que equivale em nossa cultura a um

apelido é que dá o tom de intimidade e parceria amorosa necessários para a construção da

imagem que a autora tem, em seu seio discursivo, de Muray. Há um tratamento mais maduro,

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por parte de Frida, nesse enquadramento inicial, tanto em E5 quanto em E6. O vocativo, no

jogo interlocutivo com o coenunciador dos Enunciados 5 e 6, bebe de maneira mais direta

nos vocativos canônicos do gênero discursivo em questão.

As remissões que Frida faz a Muray no corpo do Enunciado 6 também chamam

nossa atenção:

E6

L6 […] mi querido Nick,

L21 Cariño

L24 Nick mío

L31 Mi amante, mi cielo, mi Nick, mi vida, mi niño

L33 niño

L46 Cariño

L58 […] mi querido Nick,

Esse bloco, no qual Frida, reiteradas vezes, evoca Muray para o jogo

interlocutivo, nos mostra como ela via seu amante. Como ela dava acabamento à imagem de

seu amado. Sempre em tom passional, marcado pelos pronomes possessivos ao lado de

adjetivações do campo semântico amoroso: querido; cariño; niño.

Quanto às perguntas presentes nesses enunciados/cartas observamos que elas são

inexistentes em E5. Por outro lado, em E6 aparecem algumas vezes. Observemos:

E6

L21 ¿Por qué me mandaste ese cheque

L22 de dólares? ¿Tu amigo, “Smith”, es imaginario?

L26 ¿lo sabías?

L33 ¿todos los días tocas esa cosa

L34 para incendios que cuelga en el descanso de la escalera?

L42 ¿Cómo está Joe Jinks? ¿Cómo está el hombre

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L43 que te de masaje dos veces e la semana? Lo odio un poco, porque te alejó de mi lado

L44 durante muchas horas. ¿Has practicado la esgrima mucho? ¿Cómo está Georgio?

L45 ¿Por qué dices que sólo tuviste éxito a medias en el viaje a Hollywood?

L51 ¿Te molesta mucho el cuello?

Por acompanharmos a trajetória de Frida com as perguntas passionais – presentes

nos enunciados anteriores –, é que acreditamos que as indagações presentes no Enunciado 6

são questões apenas do jogo interlocutivo. Simples retórica. Não há a intenção de questionar o

sentimento de Nickolas, como havia nos Enunciados 1, 2, 3, e 4. Frida aqui trata somente de

incitar o seu coenunciador ao diálogo, às respostas em cartas posteriores. Ela abre os tópicos

frasais para que em outras cartas Muray tenha o que dizer.

Essa constatação nos mostra o amadurecimento da figura passional. A insegurança

parece ter se dissolvido, pelo menos em relação a este coenunciador. Ou seja, Frida não cobra,

nem duvida dessa paixão. Muito pelo contrário, ela emoldura metáforas para descrever seu

amado no corpo do texto e declarar seu amor por ele.

Passemos agora à construção metafórica presente nas escolhas fridianas.

E5

L30 tu telegrama llegó esta mañana y lloré mucho, de felicidad y porque te

L31 extraño, con todo mi corazón y sangre.

L34 Extraño cada movimiento de tu ser, tu voz, tus ojos, tu

L35 hermosa boca, tu risa tan clara y sincera.

E6

L10 esa risa tan limpia y franca que sólo tú tienes

L31 Mi amante, mi cielo, mi Nick, mi vida, mi niño, te adoro.

L58 Te necesito tanto que me duele el

L59 corazón…

Em ambas as construções metafóricas se tem o movimento da comparação. No

primeiro excerto Frida eleva Nick a um estado de prioridade máxima, àquele que muito

representa em sua vida: “Mi amante, mi cielo, mi Nick, mi vida, mi niño”. Ao colocar Nick

nesse patamar de comparações, Frida pinta verbalmente as dimensões de seu sentimento. No

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entanto, por estar em uma fase mais madura de sua vida e ações, ela frisa, no Enunciado 5,

sem receios de magoar o amado: L32 Te adoro, L33 mi amor, créeme; nunca he querido a

nadie de este modo, jamás, sólo Diego está tan L34 cerca de mi corazón como tú…

Podemos afirmar que Frida, mesmo apaixonada por Nickolas Muray, não ensaia o

medo de perdê-lo, pelo menos não nos enunciados sobre os quais nos debruçamos. O que já

aponta para uma diferença da mulher que escreve para Alejandro ou para Diego. Ela não se

preocupa em colocar para o amante que Diego é seu concorrente direto e que ocupa um lugar

especial em seu coração.

Frida também usa de metáforas comparativas ao descrever em E5, saudosamente,

a risada de Muray: tu risa tan clara y sincera. E em E6: esa risa tan limpia y franca que sólo tú

tienes. De maneira poética, ela vai contornando as lembranças que guarda da risada de seu

amado. Revelando uma imagem de uma passionalidade criativa, que brinca com a linguagem.

Quanto às adjetivações de si, encontramos apenas uma recorrência em E6 L36

además de que soy una perra muy rica. Aqui Frida brinca para não magoar seu amante, pois

ele havia enviado dinheiro para ela. Frida jocosamente se compara a uma vadia, vagabunda

(perra); na tentativa de não magoá-lo. Na realidade, a autora não aceita o dinheiro de Muray.

Acreditamos que essa escolha faz parte do cenário debochado de Frida. Uma

imagem construída a duras penas – pois era mulher e nos acordos sociais da época, uma

mulher que falava palavrões não era bem vista – e regada com muitas palavras chulas,

insultos, palavrões, etc. Nos interessa aqui o campo ideológico no qual essa palavra se insere.

Perra é sim a condição de Frida diante de Muray. Ela era sua amante. Mas a maturidade com

que Frida trata disso, sem esquecer de seu amor por Diego, revela um grau de passionalidade

mais controlado, menos intenso e mais racional.

Ante esse bloco de enunciados, nos voltaremos, agora, para as despedidas e/ou

assinaturas. No caso de E5 e E6 há uma recorrência bem específica que não se repete em

nenhum outro enunciado e com nenhum outro interlocutor. E, por isso, chamou nossa atenção.

Tanto em E5 quanto em E6, Frida não tece uma despedida em um lugar separado do corpo do

texto, isso já seria uma forma de singularizar sua escrita, pelo menos quando diz respeito a

Nickolas Muray; e assina como Xóchitl.

Vejamos:

E5

L38 Para ti, un corazón lleno de ternura y caricias, un beso especial en

L39 el cuello, tu

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L40

L41 Xóchitl

E6

L58 Oh, mi querido Nick, te adoro tanto. Te necesito tanto que me duele el

L59 corazón…

L60

L61 Xóchitl

Nas duas sentenças que ensaiam uma despedida, tanto em E5 quanto em E6, a

autora lança mão de imagens metafóricas para tratar de seu sentimento com relação àquela

paixão. Em ambas ela fala do coração. Essa escolha, não aleatória, mais uma vez aciona o

campo semântico e ideológico da paixão, do amor. A figura do coração está sempre ligada ao

campo amoroso das relações humanas. Atrelada a imagens poéticas – a que Frida recorre nas

duas cartas desse bloco – teremos uma construção que vai delineando uma imagem passional

que se revela justamente nessas escolhas lexicais.

Quanto às assinaturas é necessário que compreendamos o sentido, na cultura

mexicana, da palavra Xóchitl.

No México, essa palavra é atribuída a uma flor, espécie de brasão atualmente. É

um nome feminino de origem nahuatl16

e Azteca. Também pode fazer alusão a um mito de

uma rainha azteca que reuniu um exército de mulheres e lutou ao lado de seu marido em uma

guerra civil de seu tempo. Na região onde vivia essa rainha tinha muitas flores que,

posteriormente, receberiam seu nome. No México é um nome dado a muitas mulheres e uma

forma carinhosa de se referir a uma mulher de fibra, corajosa.

Acreditamos que essa escolha de assinatura era compartilhada pelos dois amantes

no cenário da troca dialógica. Frida aqui assina como mexicana, como latina, como índia,

como uma mulher que carrega em seu perfil discursivo todo sangue de uma cultura forte,

quente, alegre, singular.

16

El náhuatl (que deriva de nāhua-tl, «sonido claro o agradable» y tlahtōl-li, «lengua o lenguaje») es

una macrolengua uto-azteca que se habla principalmente por nahuas en México. Surgió por lo menos desde el

siglo VII. Desde la expansión de la cultura tolteca a finales del siglo X en Mesoamérica, el náhuatl comenzó su

difusión por encima de otras lenguas mesoamericanas hasta convertirse en lengua franca de buena parte de la

zona mesoamericana, en especial bajo los territorios conquistados por el imperio mexica, también

llamado imperio azteca, desde el siglo XIII hasta su caída (el 13 de agosto de 1521) en manos de los españoles,

motivo por el cual a la lengua náhuatl también se le conoce con el nombre delengua mexicana.

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Xóchitl é Frida também. E, sem dúvida, Muray a enxerga dessa maneira. O

acabamento que tanto em E5 quanto em E6 é

dado por Frida a ela mesma coloca, de forma

legítima, seus pés fincados na cultura de

sua terra mãe, de seu povo indígena, de sua

origem Azteca. Vejamos uma imagem

para ilustrarmos melhor.

Figura 7 – Desenho de Xóchitl17

Fonte: Site da Asteca Calendar

17

Disponível em: <http://www.123rf.com/photo_16434053_aztec-calendar-symbols--xochitl-or-flower-

20.html>. Acesso em: 10 mar. 2015.

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Por fim, frisamos que essa imagem passional em seus vários níveis, associada à

Frida e ratificada ao longo dos enunciados/cartas que investigamos tem sua gênese em um

cenário cultural específico – o México do século passado, da década de 20 a de 60, mais ou

menos – no embate entre as escolhas lexicais que sombreamos e um perfil ideológico fridiano

de escrever. Consideramos importante lembrar que tal imagem só se sustenta mediante as

ancoragens realizadas em um texto espaço-temporal específico, como: o contraponto com o

cânone (seja para o gênero discursivo carta pessoal, seja para as escolhas que revelam um

comportamento nada convencional ou dobrado aos acordos sociais de sua época); e o jogo

dialógico travado com embates entre Frida e seus coenunciadores prediletos.

5 SOMBREANDO ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES SOBRE FRIDA: A QUE

MÁSCARA CHEGAMOS?

Figura 8 – El abrazo de amor del universo, la tierra (México), Diego, yo y el señor Xolotl, 1949, óleo sobre tela,

69.9 X 60.3 cm.18

18

Disponível em: <http://photos1.blogger.com/x/blogger/2794/1457/1600/971227/kahlo-04.jpg>. Acesso em: 20

nov. 2014.

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Fonte: Site da Revista Pausa

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Amurallar el propio sufrimiento es arriesgarte a que te

devore desde el interior.

Frida Kahlo (1954)

Antes de sistematizarmos as respostas às questões que levantamos para esta

pesquisa, gostaríamos de colocar algumas circunscrições fundamentais.

Inicialmente, sabemos que na América Latina a sociedade está representada na

pintura desde a formação das nações. No século XIX, no período pós-independência, não

apenas no México, mas em todo o continente, já se problematizava uma identidade nacional

através das artes. Era necessário despertar um sentimento de pertencimento à nação recém-

surgida. Nesse sentido, a pintura teve muita relevância para retratar a história latino-

americana. No México, país da autora-criadora que estudamos nesta pesquisa, o governo

ditatorial de Porfírio Díaz, durante trinta e quatro anos, procurou na Europa “moderna” os

modelos culturais e econômicos a serem implantados no México, e entregaram em mãos

estrangeiras a exploração dos recursos naturais do país. A cultura mexicana nativa era

desprezada, e os indígenas que a criaram eram aviltados. Os mexicanos “sofisticados”

preferiam pinturas que emulassem os mestras espanhóis Murillo ou Zuloaga, avenidas que

copiassem a Champs-Élysées e edifícios de belas-artes que se assemelhassem a bolos de

aniversário neoclássicos franceses.

Foi preciso mais de uma década de luta para que a revolução devolvesse o México

aos mexicanos. Mais precisamente na década de 1920 foi que as conquistas da longa batalha

foram sendo consolidadas. O presidente mexicano à época era Álvaro Obregón e nomeou

como ministro da educação José Vasconcelos, um filósofo pós-científicos19

. Dentre suas

medidas, estava a contratação de pintores para decorar os muros públicos com grandes murais

que glorificassem a história e a cultura mexicanas. A arte, segundo ele, podia inspirar a

mudança social.

Frida Kahlo será, um pouco mais adiante, reverenciada como baluarte da cultura

mexicana, e seus quadros a representação fidedigna da construção de uma identidade daquele

19

Científicos foi o grupo de intelectuais que governou o México durante a ditadura de Porfirio Díaz.

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país. No entanto, ela é um dos poucos artistas que fizeram do Autorretrato um gênero próprio,

a forma de aparecer no mundo, diminuindo a distância entre ela (o ser retratado) e o mundo

externo. E esse cenário vai constituir axiologicamente o universo fridiano.

Perscrutar esses enunciados/cartas e observá-los como uma prática discursiva que

constituía a artista nos leva a pensar que: Frida Kahlo estava muito além de seu tempo e ela

funcionava para o México indígena como um estandarte que mantinha viva a cultura de

margem que outrora serviu de alicerce para fundação de um país.

Frida Kahlo, além disso, durante toda sua vida, se deparou com muitas dores que a

atormentavam. Diante de tantas dores físicas e morais, a pintora mexicana encontrou na

autorretratação uma forma de criar um “eu” alternativo que fosse capaz de suportar o seu

sofrimento e de se comunicar com o mundo através de um discurso público e velado.

Contudo, o que muitos desconhecem é a Frida que escreve proficientemente cartas pessoais e

que revela faces nunca autorretratas.

As cartas de Frida Kahlo são reveladoras de um ethos que não se pode visualizar

apenas observando seus quadros. Nelas, a revolucionária, a índia mexicana, a pintora, a

apaixonada, a brincalhona, a criativa, etc. mostra seus sentimentos mais profundos e toda sua

revolta com sua condição física, com a infidelidade de seu esposo (o famoso muralista

mexicano Diego Rivera) e com a luta por um México livre dos ditames europeus que

segregavam a cultura local. A respeito dessa investigação com enunciados, Volochínov

(2013) afirma:

Não compreendemos nunca a construção de qualquer enunciação – por

completa e independente que ela possa parecer – se não tivermos em conta o

fato de que ela é só um momento, uma gota no rio da comunicação verbal,

rio ininterrupto, assim como é ininterrupta a própria vida social, a história

mesma.

E continua:

Mesmo a comunicação verbal não passa de uma das inumeráveis formas de

desenvolvimento – “de formação” – da comunidade social na qual se realiza

a interação verbal entre pessoas que vivem uma vida social. Por isso, seria

uma tarefa desesperada tentar compreender a construção das enunciações,

que formam a comunicação verbal, sem ter presente nenhum de seus

vínculos com a efetiva situação social que as provoca. (VOLOCHÍNOV,

2013, p. 158).

Reconhecemos que esses enunciados/cartas, também, são resultados de atitudes

responsivas ativas, de denegação ou confirmação, aos dizeres dominantes de sua época sobre

os mais variados assuntos que cercavam sua vida (política, lugar da mulher na sociedade, arte,

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amores, família, etc.). Mas, diante de todo esse cabedal de interlocutores, focamos nos amores

da pintora, alguns amores com quem Frida Kahlo travou embates dialógicos recorrentes.

Como nos interessa, sobretudo, perscrutar a gênese dessas imagens passionais, colocamos, no

centro de nossa investigação as relações amorosas da pintora travadas em diferentes períodos

de sua vida.

Retomando, agora, esse contorno sistematizador, passemos à elaboração das

respostas às três questões norteadoras desta pesquisa. Para isso, resolvemos trazê-las

novamente e traçar, para cada uma delas, considerações finais, mesmo acreditando que a

investigação científica não se esgota aqui e que outros caminhos poderão ser percorridos. Em

outras palavras, esse “fim” é livre para inaugurar inúmeras possibilidades de começos.

Se existem imagens de passionalidades distintas, ligadas à pintora mexicana,

como se deu a construção dos ethé passionais nos enunciados/cartas de Frida Kahlo?

Para responder a essa questão, enumeremos duas assertivas: em primeiro lugar,

existe uma imagem, dissociada nas biografias, nos discursos da época, nos documentários

televisivos, etc. de uma Frida Kahlo que regia suas atitudes com muita intensidade, vivia de

forma intensa todas as suas relações – amorosas ou não –, e que era muito sedutora; e em

segundo lugar, há uma gama de cartas muito maior, se considerarmos a prática discursiva da

pintora, direcionadas aos seus amores e amantes. Portanto, esses indícios foram nos

direcionando para a existência desses níveis de passionalidade.

Assim, nos diversos acabamentos dados à imagem passional de Frida Kahlo, os

posicionamentos exotópicos dados, pela autora-criadora, aos seus interlocutores amados

travestiram a passionalidade em cores variadas e formas diferentes. No embate dialógico com

Alejandro Goméz Arias, seu primeiro namorado, o traço passional está associado aos

arroubos pueris que Frida Kahlo deixava esparramar em expressões avaliativas de si mesma e

nas adjetivações inocentes e, ao mesmo tempo, atrevidas que ela lançava sobre “seu Alex”.

Com Diego Rivera, temos a demonstração de maior intensidade dessa passionalidade afetiva.

Nesse recorte do corpus, Frida Kahlo trava embates com o coenunciador a quem ela mais

amou – segundo ela mesma. E, mesmo sendo dilacerada por tantas traições, a pintora não

conseguia deixar de amar seu esposo e de declarar isso de maneira veemente. Já com Nickolas

Muray, temos uma Frida Kahlo mais madura. Uma mulher que usa, agora, um tom burlesco,

brincalhão para demarcar sua passionalidade. Enxergamos aqui certa maturidade em lidar

com o sentimento amoroso e na circunscrição de demarcações que separavam seu amor por

Diego do seu amor por Muray.

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É, portanto, um jogo de imagens que convergem para um mesmo ponto de saída.

Nesse entendimento, Frida Kahlo é passional de diversas maneiras porque é desafiadora,

independente, transgressora, amante, vítima, dramática, intensa, possessiva, brincalhona e

apaixonada.

Da tessitura de possiblidades tidas como singularizadoras do estilo individual

fridiano e legitimadoras da imagem da autora-criadora, elencamos as mais recorrentes: as

adjetivações de si; as indagações amorosas; o acabamento dado aos coenunciadores através

dos vocativos; o acabamento dado a si através das assinaturas; as quebras com moldes

enrijecidos do gênero discursivo carta pessoal.

Se há marcas linguístico-discursivas que deram acabamento aos diferentes

ethé passionais nas cartas pessoais da pintora mexicana, quais foram?

Para responder a essa questão, visualizemos duas afirmações: há sim marcas

linguístico-discursivas que deram acabamento aos diferentes ethé passionais nesses

enunciados/cartas que compuseram o nosso corpus de análise; há, na materialidade linguística

dos enunciados verbais, escolhas estilísticas feitas por Frida Kahlo que ampararam esses graus

de passionalidade sobre os quais nos debruçamos.

Com relação às duas afirmativas, consideremos, por exemplo, os pronomes

possesivos utilizados nos vocativos das cartas direcionadas a Alejandro. Ou então, os

adjetivos que Frida Kahlo utilizou para qualificá-la axiologicamente nas cartas direcionadas a

Diego. Elas estão cheias de signos carregados de valorações que correspondem a estereótipos

de sua época e que demarcam toda carga dramática e, por sua vez, exageradamente passional.

Por fim, observemos também as metáforas utilizadas pela pintora para descrever sua estadia

na França para Muray. Nesse ponto de sua enunciação, Frida Kahlo colore o plano metáfora

com tons jocosos, brincalhões. Muito embora, sombreie uma imagem de vítima dos

surrealistas, ela busca divertir seu amado com sua situação e, ao mesmo tempo, de maneira

muito inteligente, chamar a atenção dele.

No que se refere às marcas linguísticas deixadas, a análise do corpus – constituído

por seis enunciados/cartas de Frida Kahlo endereçados aos seus amores – revela uma rede de

relações dialógicas travadas entre as escolhas estilísticas individuais em cada enunciado e as

forças centrípetas dos discursos tradicionalistas da época. O amor intenso que a autora-

criadora resolve colocar em suas cartas pessoais vai de encontro com os acordos sociais da

época no que diz respeito aos bons costumes, à moral, à conduta da mulher na sociedade, etc.

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Frida quebra esses paradigmas tradicionais ao desconstruir, inclusive, a fôrma canônica do

gênero discursivo carta pessoal.

Se há um acabamento estético, construído por Frida Kahlo para ela mesma,

como autora-criadora, nas cartas pessoais em que ela dialoga com seus amantes, qual

seria?

Para responder a essa questão, consideremos a seguinte colocação: a análise do

corpus revela a construção de uma arquitetônica alicerçada em escolhas estilísticas

individuais recorrentes, permitindo, dessa maneira, unidade ao estilo e fortalecendo, no jogo

sociointeracional entre os interlocutores, o enredamento de imagens – os ethé – da pintora

mexicana.

Partindo dessa compreensão, podemos dizer que Frida dá acabamento estético a

sua imagem através de uma carga axiológica que reverbera tonalidades de passionalidades

distintas. Ou seja, o acabamento que é dado, através das escolhas estilísticas que Frida Kahlo

faz, dá vazão a essa imagem passional que irá variar de nível de acordo com a mudança de

interlocutor, espaço/tempo, horizonte de interesse, etc.

Porém, não se pode deixar de considerar que Frida Kahlo, no decorrer de sua vida,

foi se enchendo e se esvaziando de imagens capazes de compor acabamentos e inacabamentos

da autora-criadora. Isso, conseguimos observar no pequeno recorte feito para nossa análise.

Todavia, os ethé discursivos associados à pintora mexicana se agigantaram em acabamentos

cada vez mais resistentes, transformando-a em ícone de luta social, de sofrimento feminino,

de representação cultural e de um determinado período artístico.

Para nós, no embate provocado pelo choque entre todas essas imagens, do sujeito

inacabado em seu devir e a do sujeito acabado por seus outros, destacou-se a imagem da

mulher passional. Ela contorna e dá cor ao que se pode observar de Frida Kahlo na relação eu

e o outro.

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APÊNDICES

Apêndice A – Cronologia sucinta da vida e da obra de Frida Kahlo20

1907

Em 6 de julho, nasce em Coyacán, México, Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón,

terceira das quatro filhas de Matilde Calderón e Guilhermo Kahlo. (Mais tarde, ela mudou a

grafia de seu nome para “Frida”).

1913

Kahlo sofre um ataque de poliomielite, que lhe afeta permanentemente o uso da perna direita.

1922

Kahlo ingressa na Escola Preparatória Nacional, onde conhece Diego Rivera, que ali está

pintando o mural Criação. Em 30 de novembro, seu poema “Recuerdo” é publicado por El

Universal Ilustrado.

1925

Em 17 de setembro, Kahlo e seu namorado, Alex, sofrem um acidente de ônibus. Kahlo sai

gravemente ferida e começa a pintar durante a convalescença.

1929

Em 21 de agosto, Kahlo se casa com Diego Rivera. Tem 22 anos; ele está com 43.

1930

Em 10 de novembro, Frida chega a San Francisco com Rivera.

1931

Em San Francisco, Frida conhece o Dr. Leo Eloesser, que se torna seu conselheiro médico da

vida inteira.

1932

Durante sua estadia em Detroit, para o trabalho de Rivera nos murais do Detroit Institute of

Arts, Frida é hospitalizada em decorrência de um aborto espontâneo.

1933

Frida e Diego voltam a Nova York. Ela pinta Meu vestido pendurado ali (Nova York),

enquanto ele pinta murais no Rockefeller Center. Em 20 de dezembro, os dois seguem de

navio de Nova York para o México.

1934

20

Em quase sua totalidade, esse apêndice foi construído a partir de dados já sistematizados por Zamora (1997).

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137

Frida e Diego moram em estúdios adjacentes, construídos para eles em San Angel por Juan

O’Gorman. Rivera inicia um romance com Cristina Kahlo, irmã de Frida.

1935

Frida e Diego se separam. Ela ocupa temporariamente um apartamento na Cidade do México

e, em julho, vai a Nova York. Na volta, o casal se reconcilia.

1937

Em 9 de Janeiro, Leon Trotsky e sua mulher, Natália Sedova, chegam ao México e passam

uma temporada com Frida e Diego na Casa Azul.

1938

André Breton – surrealista francês – visita o México e conhece Frida. De 1 a 15 de

Novembro, realiza-se a primeira exposição individual de Kahlo, na Julien Levu Gallery, em

Nova York.

1939

Frida viaja a Paris em Janeiro, para a exposição Mexique, organizada por André Breton, que

inclui quadros dela. O Louvre compra seu autorretrato A moldura. Frida volta para casa em

abril e, no outono, ela e Diego iniciam um processo de divórcio, concluído em novembro.

1940

Em janeiro, As duas Fridas e A mesa ferida são mostrados na Exposição Internacional do

Surrealismo, organizada pela Galeria de Arte Mexicana.

Em San Francisco, Frida, enquanto buscava um novo tratamento com do Dr. Eloesser, expõe

seu trabalho na San Francisco Golden Gate Exhibition.

Em 8 de dezembro, ainda em San Francisco, Frida volta a se casar com Diego.

1942

O quadro de Kahlo intitulado Autorretrato com trança é incluído na exposição Retratos do

século XX, no Museu de Arte Moderna de Nova York.

1943

A obra de Kahlo é incluída na coleção A arte mexicana hoje, no Museu e Arte de Filadélfia, e

exibida na Galeria Art of this Century, de Peggy Guggenheim, em Nova York.

Frida começa a lecionar na Escola de Pintura e Escultura La esmeralda, do Ministério de

Educação.

1946

Frida pinta O pequeno cervo e Árvore da esperança, fique firme. Vai a Nova York fazer uma

cirurgia na coluna vertebral.

1948

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138

Kahlo escreve ao presidente do México, Miguel Alemán, para protestar por terem coberto um

mural de Diego.

1950

Frida é hospitalizada por nove meses, por problemas na coluna vertebral.

1951

Kahlo pinta o Autorretrato com retrato do dr. Juan Farill, diversas naturezas-mortas e

Retrato de meu pai.

1953

De 13 a 27 de abril, a única exposição individual de Frida no México realiza-se na Galería del

Arte Contemporáneo. Em Julho, sua perna direita é amputada abaixo do joelho, em

decorrência de gangrena.

1954

Frida é hospitalizada em abril e maio. Em 2 de julho, convalescendo de uma

bronconpneumonia, participa de uma passeata em protesto contra a intervenção norte-

americana na Guatemala. Morre na madrugada de 13 de julho.

1957

Em 24 de novembro, morre Diego Rivera em seu estúdio de San Angel. É enterrado na

Rotunda dos Homens Famosos, na Cidade do México, contrariando seu desejo expresso de ser

cremado e de ter a suas cinzas misturadas às de sua amada Frida.

1958

Em 30 de julho, a Casa Azul é aberta ao público como Museu Frida Kahlo.

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ANEXOS

Anexo A – Carta de Diego para Frida, encorajando-a a seguir com sua exposição na

França.

Carta de Diego para Frida

3 de Diciembre de 1938

Mi niñita chiquitita: Estuve tantos días sin recibir noticias tuyas que ya me estaba preocupando. Me da

gusto que te sientas un poco mejor y que Eugenia te esté cuidando. Dale las gracias de mi parte y quédate con ella por lo que reta de tu estancia. También me alegro de que tengas un departamento cómodo y un lugar en dónde pintar. No te des prisa con los cuadros y los retratos. Es muy importante que salgan rete suaves, porque complementarán el éxito de tu exposición y tal vez te crean mayores posibilidades de hacer más…

¿Qué me das por las buenas noticias de las que seguramente ya te has enterado? Dolores, la maravillosa, va a pasar la Navidad en Nueva York… ¿Le has escrito a Lola? Supongo que es una pregunta tonta.

Me dio mucho gusto oír de la comisión de un retrato para el Musco Moderno. Va a ser magnífico que entres ahí a partir de tu primera exposición. Formará la culminación de tu éxito en Nueva York. Escupe en tus manitas y produce algo que haga sombra a todo lo que lo rodee y que por mí pierdas la oportunidad de ir a París. TOMA DE LA VIDA TODO LO QUE TE DE, SEA LO QUE SEA, SIEMPRE QUE TE INTERESE Y TE PUEDA DAR CIERTO PLACER. Cuando se envejece, se sabe qué significa el haber perdido lo que se ofreció cuando uno no tenía suficientes conocimientos como para aprovecharlo. Si de veras quieres hacerme feliz, debes saber que nada me puede dar más gusto que la seguridad de que tú lo eres. Y tú, mi chiquita, mereces todo… No los culpo porque les guste Frida, porque a mí también me gusta, más que cualquier otra cosa…

Tu principal sapo-Rana

Diego

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Anexo B – Tradução livre nossa do enunciado/carta 1.

Quinta-feira, 25 de dezembro de 1924

Meu Alex: desde que te vi pela primeira vez, amei você. O que me diz? (?) Já que

provavelmente vai demorar alguns dias pra gente se ver, vou implorar pra que você não se

esqueça da sua linda mulherzinha, tá?[...] às vezes à noite sinto muito medo e queria que você

estivesse comigo porque assim eu ficaria menos apavorada e aí você diria que me ama tanto

quanto antes, tanto quanto neste mês de dezembro, mesmo que eu seja uma “coisinha fácil”,

certo Alex? Você deve continuar gostando das coisinhas fáceis.

[...] Eu gostaria de ser ainda mais fácil, uma coisinha bem pequenininha que você

pudesse carregar sempre no bolso. [...] Alex, escreva o mais rápido que puder e mesmo que

não seja verdade, diga-me que me ama muito e não consegue viver sem mim. [...]

Sua chamaca, escuincla ou mulher ou o que você quiser [aqui Frida desenha três

figuras mostrando esses três diferentes tipos de mulher].

Frieda

No sábado vou levar seu suéter e os seus livros e várias violetas porque na minha casa

tem um monte. [...]

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Anexo C – Tradução livre nossa do enunciado/carta 2.

1º de janeiro de 1925

responda-me responda-me responda-me responda-me responda-me

“ “ “ “ “

“ “ “ “ “

“ “ “ “ “

Sabe a novidade? [aqui Frida desenha uma menina com cachos espiralados e uma

coroa. Em volta dela, como um véu, escreveu: “Dei fim às pelonas”.]

Meu Alex: hoje peguei sua carta às 11 horas, mas não estou respondendo agora,

porque, como você vai entender, não se pode escrever nada quando se está cercada por uma

multidão, mas agora são 10 da noite, estou sozinha e é o momento mais propício para dizer o

que estou pensando. [...] Com relação ao que você me contou sobre Anita Reyna,

naturalmente não vou ficar brava, nem de brincadeira, pra começo de conversa, porque você

está apenas dizendo a verdade, que ela é e sempre vai ser muito bonita e muito linda e, em

segundo lugar, porque amo todas as pessoas que você ama e amou (?) pela simples razão de

que você as ama. Por outro lado, não gostei muito da história da carícia, porque, apesar do

fato de entender que é verdade que ela é chulíssima, eu sinto uma coisa parecida com... bom,

como posso dizer?, parecida com inveja, sabe? Mas é natural. O dia que você quiser acariciá-

la mesmo que seja só uma lembrança, me acaricie e faça de conta que é ela, tá? Meu Alex?

[...] Escute, irmãozinho, agora em 1925 vamos nos amar bastante, né?*( Perdoe a

repetição da palavra amor, cinco vezes de uma só tacada, mas é que estou muito sentimental.

Não acha que a gente devia continuar planejando cuidadosamente nossa viagem aos Estados

Unidos, quero que você me diga o que acha de irmos em dezembro deste ano, temos tempo de

sobra para esquematizar tudo, não concorda? Diga-me todos os prós e contras e se você quer

mesmo ir, porque, veja, Alex: é bom que a gente faça alguma coisa da vida, não acha, pois

seremos uns tolos se passarmos a vida inteira no México, porque pra mim não existe nada

mais adorável do que viajar, é doloroso pensar que não temos força de vontade suficiente pra

fazer o que estou dizendo, você vai dizer não, que não é preciso apenas força de vontade e,

mas também dinheiro (grana), mas dá pra juntar trabalhando durante um ano e o resto é mais

fácil, certo? Mas a verdade é que eu não entendo muito dessas coisas, é bom que você me

diga as vantagens e as desvantagens e se realmente os gringos são muito enfadonhos. Porque

você deve ver que tudo que escrevi pra você do asterisco até esta linha está cheio de castelos

no ar e pra mim é bom que eu seja desiludida imediatamente[...]

Ontem à meia-noite pensei em você meu Alex e você? Acho que pensou em mim

também, porque minha orelha vermelha estava pegando fogo. Bom, já que você sabe que

“Ano-novo é vida nova” este ano sua mulherzinha não vai ser um filhote de passarinho

(amêndoa doce de 7 pesos) de 7 quilos, mas coisinha mais doce e melhor que você já

conheceu, pra que você possa devorá-la só com beijos.

Sua chamaca te adora

Friduchita

(um Ano-Novo muito feliz para sua mãe e sua irmã)

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Anexo D – Tradução livre nossa do enunciado/carta 3.

Carta a Diego Rivera

23 de julho de 1935

.............................

Por acaso vi uma certa carta, num certo casaco, pertencente a um certo homem, vinda

de uma certa dama da distante e maldita Alemanha. Acho que deve ser a dama que Willi

Valentiner mandou para cá para se divertir e com propósitos “científicos”, “artísticos” e

“arqueológicos”... que me deixou zangada e, para lhe dizer a verdade, enciumada...

Por que tenho que ser tão teimosa e obstinada, a ponto de não compreender que as

cartas os problemas com as saias, com as professoras de... inglês, as modelos ciganas, as

ajudantes de “boa vontade”, as discípulas interessadas na “arte de pintar” e as mulheres

plenipotenciárias, mandadas de lugares distantes, são simplesmente piadas, e que, lá no fundo,

você e eu nos amamos muito? Mesmo que vivenciemos aventuras intermináveis, rachaduras

nas portas, “referências” a nossas mães e queixas internacionais, acaso não estamos sempre

sabendo que amamos um ao outro? Acho que o que está acontecendo é que sou meio estúpida

e uma tola, porque todas essas coisas aconteceram e se repetiram nos sete anos que vivemos

juntos. Toda esta raiva simplesmente me fez compreender melhor que eu o amo mais do que a

minha própria pele, e que, embora você não me ame tanto assim, pelo menos me ama um

pouquinho – não é? Se isto não for verdade, sempre terei a esperança de que possa ser, e isto

me basta...

Ame-me um pouco Eu adoro você

Frieda

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Anexo E – Tradução livre nossa do enunciado/carta 4.

8 de Dezembro de 1938

Minha criança...

São seis da manhã

e os perus estão cantando,

calor da ternura humana

Solidão acompanhada –

Nunca me esquecerei da sua presença

por toda minha vida

Você me recolheu quando eu estava destruída

e me fez inteira de novo

Nesta pequena terra

Pra onde hei de dirigir meu olhar?

Tão imenso e profundo!

Já não há mais tempo, já não há mais nada.

distância. Só existe a realidade

O que foi, se foi pra sempre!

O que existe são raízes

que parecem transparentes

transformadas

Na eterna árvore frutífera

Suas frutas me dão seus aromas

suas flores me dão sua cor

crescendo com a alegria

dos ventos e floradas

Não pare de dar sede

à árvore da qual você é o sol, a árvore

que entesourou sua semente

“Diego” é o nome do amor.

Da grande ocultista

Frieda

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Anexo F – Tradução livre nossa do enunciado/carta 5.

16 de fevereiro de 1939

Cheguei e os quadros ainda estavam presos na alfândega, porque o filho da puta do

Breton não se deu ao trabalho de ir tirá-los de lá. As fotografias que você mandou séculos

atrás ele nunca recebeu – é o que ele diz –, ele não providenciou a galeria para a exposição, e

faz tempo que o próprio Breton não tem uma galeria. Por isso, eu tive de esperar dias e dias

como uma idiota até falar com o Marcel Duchamp (pintor maravilhoso) que é o único aqui

que tem os pés no chão em meio a esse bando de surrealistas e lunáticos filhos da puta. Ele

imediatamente cuidou da liberação das minhas pinturas e tentou encontrar uma galeria. Por

fim, havia uma, chamada “Pierre Colle”, que aceitou abrigar a maldita exposição. Agora o

Breton quer expor junto com as minhas pinturas retratos (mexicanos) do século XIX, cerca de

32 fotografias de Álvarez Bravo e objetos populares que ele comprou em mercados do

México – todo esse lixo, dá pra acreditar? A galeria deve estar pronta lá pelo dia 15 de março.

Mas [...] os 14 óleos do século XIX devem ser restaurados e a maldita restauração leva um

mês inteiro. Tive de emprestar 200 pratas (dólares) ao Breton para a restauração porque ele

não tem um centavo. (Mandei cabograma a Diego relatando a situação e dizendo que

emprestei o dinheiro – ele ficou furioso, mas agora já era e não há nada que eu possa fazer a

respeito.) Ainda tenho dinheiro pra ficar aqui até o começo de março então não preciso me

preocupar muito.

Bom, depois que as coisas estavam mais ou menos acertadas e se acalmaram um

pouco, como eu disse, dias atrás o Breton me avisou que o sócio de Pierre Colle, um velho

desgraçado e filho da puta, viu minhas pinturas e achou que apenas duas podiam ser exibidas,

porque as demais eram muito “chocantes” para o público! Eu poderia matar esse sujeito e

depois comê-lo, mas estou tão de saco cheio dessa história toda que decidi mandar tudo pro

inferno e dar no pé desta porcaria de Paris, antes que eu fique louca.

“[…] seu telegrama chegou hoje de manhã, e chorei muito – de felicidade e porque

sinto sua falta com todo meu coração e meu sangue. A sua carta, meu bem, chegou ontem, é

tão linda, tão terna que não tenho palavras para descrever a alegria que ela me deu. Eu te

adoro meu amor, acredite, como nunca amei ninguém – somente Diego estará tão junto do

meu coração quanto você – sempre. [...] Sinto saudade de cada movimento do seu ser, sua

voz, seus olhos, suas mãos, sua linda boca, sua risada tão límpida e honesta. Você. Eu te amo

muito, meu Nick. Sou tão feliz só de pensar que te amo a – pensar que você espera por mim –

pensar que você me ama.

Meu querido, mande em meu nome muitos beijos para a Mam. Eu nunca esqueço dela.

Beijos também pra Aria e Lea. Pra você, meu coração cheio de ternura e carícias. um beijo

especial no seu pescoço. sua

Xóchitl

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Anexo G – Tradução livre nossa do enunciado/carta 6.

De Fevereiro de 1939

Meu adorado Nick:

Hoje de manhã, depois de tantos dias de espera – sua carta chegou. Eu me senti tão

feliz que antes de começar a ler eu já estava chorando. Minha criança, eu realmente não devo

reclamar sobre nada que aconteça comigo na vida, já que você me ama e eu te amo. Isso é tão

real e bonito que me faz esquecer todas as minhas dores e problemas, me faz esquecer todas

as minhas dores e problemas, me faz esquecer até mesmo a distância. Suas palavras me fazem

sentir tão próxima de você que posso até sentir sua risada. Aquela gargalhada tão límpida e

honesta que só você tem. Estou contando os dias pra voltar. Mais um mês! E estaremos juntos

de novo.

Eu me sinto muito fraca depois de tantos dias com febre porque a maldita infecção dos

colibacilos faz a gente se sentir podre. O médico me disse que eu devo ter comido alguma

coisa que não estava muito limpa (salada ou frutas com casca). Aposto a minha cabeça que foi

na casa do Breton que eu peguei essa porcaria de cobacilos. Você não faz ideia da sujeira em

que essa gente vive e o tipo de comida que eles comem. É uma coisa inacreditável, nunca

tinha visto coisa parecida em minha vida. Por algum motivo que eu ignoro, a infecção passou

dos intestinos pra bexiga e pros rins, então estou há dois dias sem fazer xixi e agora sinto que

vou explodir a qualquer minuto. Felizmente tudo está bem agora, e a única coisa que me resta

a fazer é descansar e ter uma dieta especial.

Meu querido, devo dizer uma coisa, você é um menino malvado. Por que me mandou

um cheque de 400 pratas? Seu amigo “Smith” é imaginário – muito doce, de fato, mas diga

pra ele que vou ficar com o cheque dele intacto até voltar pra Nova York, e lá acertaremos as

coisas. Meu Nick, você é a pessoa mais doce que eu já conheci. Mas ouça, querido, eu

realmente não estou precisando de dinheiro agora, recebi algum do México, então agora eu

sou uma vadia rica, sabe? Tenho o suficiente pra ficar aqui mais um mês. Tenho minha

passagem de volta. Tudo está sob controle, então, realmente, meu amor, não é justo que você

gaste nenhum dinheiro extra. Em todo caso, você não pode imaginar quanto eu apreciei seu

desejo de me ajudar. Não tenho palavras pra dizer a alegria que me dá pensar que você estava

querendo me ver feliz e de saber quanto você é adorável e tem bom coração. – Meu amante,

meu mais doce de todos, mi Nick – mi vida – mi niño, te adoro.

Fiquei mais magra por causa da doença, então, quando estivermos juntos, é só você

soprar e... lá vai ela! Flutuando pelos cinco andares do Hotel La Salle. Escute, garoto, você

toca todo dia o sinal de saída de incêndio “cuméquechamaquilo” na parede no corredor da

nossa escada? Não se esqueça de fazer isso todo dia, não se esqueça também de dormir na sua

almofada, porque eu a adoro. Não beije mais ninguém enquanto estiver lendo as placas e

nomes das ruas. Não leve mais ninguém pra passear no Central Park. Ele pertence apenas ao

Nick e à Xochitl. – Não beije mais ninguém no sofá do seu escritório. Só a Blanche Heys

pode fazer massagem no seu pescoço. Só a Man você pode beijar quanto quiser. Não faça

amor com mais ninguém, se puder evitar. A não ser que encontre uma legítima G.V. [Gostosa

de Verdade], mas não a ame. Brinque com seu trenzinho elétrico de vez em quando se não

chegar muito cansado em casa. Como vai Joe Jinks? Como está o homem que faz massagens

em você duas vezes por semana? Eu o odeio um pouco, porque ele roubava você por muitas

horas. Tem praticado esgrima? Como está o Georgio?

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Por que você me diz que sua viagem a Hollywood foi bem-sucedida só pela metade?

Me conte, meu querido. Não trabalhe tanto, se puder evitar. Porque você fica cansado no

pescoço e nas costas. Diga para Man cuidar de você e pra fazer você descansar quando estiver

cansado. Diga para ela que eu sou muito apaixonada por você, que você é meu querido e meu

amante, e que enquanto eu estiver longe ela deve te amar mais do que nunca pra te fazer feliz.

O seu pescoço está te incomodando muito? Estou mandado daqui milhões de beijos

pro seu lindo pescoço, pra que ele fique melhor. Toda a minha ternura e carícias pro seu

corpo, da cabeça aos pés. Eu beijo à distância cada centímetro dele.

Ponha sempre pra tocar no gramofone o disco de Maxine Sullivan. Sempre estarei aí

com você ouvindo a voz dela. Posso ver você deitado no sofá azul com sua capa branca. Vejo

você acertando a escultura junto da lareira, eu vejo claramente, e posso ouvir sua risada – é

como a risada de uma criança, quando você faz direito. Oh, meu querido Nick, eu te amo

tanto, eu preciso tanto de você, que meu coração chega a doer.

Xóchitl