Um elástico é maior

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  • 7/30/2019 Um elstico maior

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    Um elstico maior, mesmo dormindo,que um elstico que nunca se esticou

    Carlos Alberto Rosa

    e a vida escorria por ele,desmanchante ampulheta,areia do tempo.mas nem espremendo laranja-lima no tinteiroconseguiria chorar por seu prprio naufrgio:o espetculo das borbulhas, ao afogar-se,atraa-o mais

    que a borracha das ondas, apagando o navio.mudara.ventanias batiam suas janelas de trinco quebrado.enferrujavam seus microfones, seus alto-falantes.caminhava como formiga,em passos annimos,que ultrapassavam o som do movimento explicitado.nem cebolas comia mais,

    para evitar o vedetismo do mau hlito.quando tinha algum dinheiro ia a restaurantes,mais pelo bucolismo das borboletas pretas,que pelo ineditismo do cardpio decifrado.por vezes, atravessando ruas,ficava amarelo, entre vermelho e verde.mas por segundos: logo retomava a condio urbana;e ia, como se voltasse, para a segurana

    e o anonimato das caladas.no tinha futuro: mastigava o presente,bife seco dos pequenos gestos cotidianos,e sentia-se morrer como num disco:mesmo nas faixas mais movimentadas.dormira em bancos de jardim,vivera em palcios hipotecados,em casas de pau-a-pique(como ele -terra batida e taquara seca).

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    por esse tempo tinha catedrais nos olhos-bela verdade.sabia-se perecvel, mas desejava-se eterno.no queria que o espetculo acabasse,no queria voltar para a casa vazia,para a lenta respirao do silncio.sabia que a batalhaentre homens e o silncio do mundoera injusta ~ trapaceira.no entanto seguia.dava-se em holocausto da prpria efemeridadee do verstil mimetismode que fora provida sua oficinade fachada sem fundo.estirava, espichava, desenrolavaum eterno tapete,um roxo tapete de palavras espessas, tabacow.realizava como absurda a espera do ser autogerado.sentia ser no gesto e na voz, no pensar sem fim

    que a eternidade se mostrava, uma nesga de coxa,um zumbido no corpo,uma fora empurrando as comportas da inrcia.fazendo inventava os motivos do justo.pulava o muro e, pulado, sabia do esforo e dasrazes do ato.gritava um berro mope,na escapulida paz de escutar a si mesmo;

    trazia para a ponta dos dedos o movimento de seusbecos pessoais.desenhava no alasca pautado sua nsiareencontrada,a solido compartilhada,a ressurreio da rosa e o cortejo de espinhos.fumava cigarros at o filtro

    e roubava no jogocom o donaire de quem j esteve morto

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    e no mais teme pela prpria respirao.como um padre convertido prpria catequese,escorria por canaletase no telefonava, chamando plateias.

    descobrira mrmores, cristais, estalactitese um dia acabou encontrandoo espelho, absurdo e real, quase palpvel.dependurado na parede de dentro.agora, no mais.contentava-se com afogar palavras, como moscas,no grosso vinho do silncio.

    por labirintos desenhados em seus ntimos vitrais,perambulava,como quem passeia pelas formas geomtricasde um velho cobertor.a infncia, tempo sem tempo, retornava nelee era o nico tapete que pisava com o desembaraode potro soltoem campo aberto.

    reencontrava, nos gnomos de gesso dos jardinsabandonados,a amizade silenciosa de leprenchaunsque seu pai trouxera, certa noite,dentro da pasta marro e lhe mostrara,no quintal, luz de lamparina e lua.(mas no os procura sempre, aos de gesso;

    era um convvio de soslaio,reflexos metlicos na calota de alumniode sua memria mgica)ainda percebia possvel viverdentro de um copo azule descobri-lo vasto em sua pequenez.e com isso sorria, mas sorria escondido,temendo ser preso e torturado

    por verdades to doces e indiscutveis.antes de o perder de vista,

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    recebi dele um bilhete sem data:

    eu vi a eternidade dos mendigos.foi numa praa deserta.

    eram trs e caminhavam lentos, esfarrapados,murmurejando entre si verdades marginais.

    era uma cena fora do crculo das horas.aqueles mendigos despertaram em mim

    sons longnquos,guizos de prata que eu trazia

    costurados barra do esprito- e que at ontem dormiam,

    num silncio de algodo.fiquei parado, a observ-los.

    e sem razo maior que o ter sido assim,fizeram mesuras, sorriram gernios,

    e um deles disse-me afvel:foi bom conhecer-te, eloquncia sem voz