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Carente e confuso, a preocupação de Ricardo naquela semana atribulada fora decidir se iria comprar ou adotar um cãozinho de uma raça qualquer. Ele precisava aplacar a dor e a angústia de uma solidão voluntária que havia chegado ao limite.Num dos seus passeios pela praia, Ricardo encontrou um cãozinho abandonado e resolveu adotá-lo. Tudo passou a ser alegria e esperança de dias melhores. Mas o cão tinha um dono. A Providência então cruzou os destinos, fazendo com que Ricardo conhecesse Augusto. O verdadeiro dono do filhote era um rapaz que também havia desistido de conviver em sociedade ou manter contato com um outro ser humano qualquer.Um cão foi o elo do encontro entre duas almas companheiras. Para Ricardo, era inexplicável o desejo de permanecer junto daquele homem misterioso. Mas a partir desse instante mágico nasceu o princípio de uma história de paixão, carinho, amor e sexo.Uma nova família estava sendo formada. Finalmente, era dado o início ao capítulo final de uma história que precisava realmente ser recomeçada...

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IOito da manhã. Acordei com fortes dores no peito. Mais uma vez. No banheiro,

olhando o espelho levemente embaçado por causa da forte umidade característica da ilha,meu rosto estava desfigurado, difuso, irreconhecível por causa do desespero e da torrentede lágrimas que encharcavam minha alma atribulada.

Alma ferida, atacada sem piedade pela tia Solidão, uma senhora histérica, que anda-va perdendo o controle da situação. Eu era o sobrinho mais querido, um mero joguete emsuas mãos frias.

Ela sabia que o tempo de mais uma mudança radical na minha vida havia chegado,mas eu não conseguia sentir sequer a brisa dessa mudança dentro de mim. Só sentia nova-mente aquela dor terrível pelo sétimo dia consecutivo. Uma dor que eu, ingenuamente,imaginava ter erradicado do meu ser depois que aprendi o que é perder alguém.

A dor de uma ausência. A falta de uma companhia. Uma companhia masculina. Eu sentiao imenso desejo dos toques sensuais, do cheiro, do sexo, da intensidade de um novo amor.

Quinze anos. Quinze anos de solidão voluntária. Que expressão horrenda, “solidãovoluntária”. Mas esta é a verdade. Eu simplesmente quis permanecer sozinho.

Confesso que há muito tempo deixei de apreciar o contato com outras pessoas. Válá, não sou tão radical assim; talvez eu ainda suporte o mínimo necessário, correto, civili-zado, aceitável.

Bom dia, senhor carteiro; bom dia, moça bonita do caixa. Sou educado com quemcruza meu caminho. Mas, no meu íntimo, não tenho vergonha de admitir que já não confiomais no ser humano. Daí essa minha filosofia decadente de botequim: solidão voluntária.

Viver longe do mundo em uma ilha paradisíaca é algo desejado por muitos, mas sãopoucos os que têm a coragem e a determinação necessárias para dar o segundo passo.

Eu tive. Por um lado, abandonei uma vida medíocre, sem tempero, sem tesão, semrespeito. Por outro, acabei desistindo do mundo depois que meus amores partiram.

Nasci e vivi por vinte anos em São Paulo. Minha infância foi totalmente comum.Filho de pais divorciados – fato que ocorreu quando eu tinha oito anos –, morei por muitosanos na casa da avó materna, enquanto minha mãe dava um duro danado para sustentar ofilho único, lavando e passando roupas em casas de gente abastada.

Sim, eu sei, início de história hiper clichê. Mas não sou daquele tipo de perdedorque teve uma infância difícil e cresceu revoltado contra o destino, os afortunados ou coisaque o valha.

Aprendi que todos os acontecimentos da minha vida foram opções que eu mesmoescolhi. E o caminho escolhido, árduo ou não, eu simplesmente percorro, sem me queixar.O sofrimento nada mais é do que o resultado da nossa vasta ignorância.

Mesmo não tendo, quando criança, acesso ao conforto e ao bem-estar material im-posto pela mídia, ao menos eu tinha o que considero bens mais importantes: na casa deminha avó eu tinha amor, carinho e compreensão em excesso. Minha mãe e minha avóeram santas guerreiras. Foram as únicas mulheres que amei de verdade.

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A adolescência foi meio tumultuada, um pouco incomum, pois desde que aprendi aler e a escrever, meu mundo sempre fora pontuado pelo aprofundamento na leitura e naconvivência preferencial com os adultos.

Irritava-me profundamente estar perto de gente burra, fútil e leviana. Era um suplí-cio ter que participar de turmas, grupos ou atividades em conjunto com outros colegas damesma faixa etária.

Discutir sobre All Stars cano longo ou curto, bico fino ou quadrado; ou qual o mode-lo de calça Fiorucci usar na festa da Aninha... isso era demais para mim!

De raciocínio rápido e dono de um carisma fora do comum, mesmo a contragosto,era natural eu assumir a posição de líder de qualquer coisa dentro do colégio. Por mais queeu tentasse “ficar na minha”, sempre acabava sendo escolhido para comandar os alunos.

Sendo assim, eu procurava desempenhar meus afazeres da melhor maneira possível.E perante os invejosos – muitos desprovidos de qualquer qualidade digna de nota –, aspiadas referentes à minha exuberante inteligência, além do vasto conhecimento cultural e,claro, dos meus trejeitos um tanto delicados para os padrões da época, foram detalhes queeu acostumei a aceitar e a ignorar desde sempre.

Em muitas ocasiões, estar cercado de meninas bonitas (trocando confidências sobremeninos, é claro) sempre fez com que meus inimigos se consumissem na dúvida e naconfusão mental sobre minha sexualidade. Isso me divertia.

Nunca fui santo. Lembro-me das brigas homéricas que ocorreram em bailes dançan-tes, quando eu me recusava a retirar uma moça para algo mais íntimo.

Eu preferia ficar ao lado do rapaz que dava o som ou papear com um garçom maisvelho. E no meio da festa muitas vezes eu era motivo de chacota pela turma dos machosparrudos-sem-cérebro, onde uma onda de obscenidades reverberava em meus tímpanossensíveis, provocando uma reação motora instantânea em minhas mãos fortes, que golpe-avam sem piedade aquelas faces pueris, ignorantes.

Eu era a “moça”, segundo eles. Então, como uma boa moça de família, eu defendiaminha honra e minha dignidade dando um ótimo corretivo em qualquer filho-da-puta quenão respeitasse a minha posição sexual muito bem definida, o meu espaço, os meus direi-tos. Na década de 1980, ser viado assumido era coisa para macho. Muito macho.

Abandonei o colégio na antiga Sétima Série. A escola não acompanhava meu ritmoe eu não tinha mais saco para agüentar ensinamentos ultrapassados, soníferos, insossos.

Aprendi muito mais devorando todos os livros da biblioteca pública (leio dois livrospor semana, até hoje), do que dormindo nas aulas de Física ou compondo, durante as aulascapengas de Inglês, poesias homoeróticas para um príncipe imaginário que eu sonhavaum dia encontrar.

Após deixar os estudos formais e por opção viver de bicos em trabalhos subalternos,minha “profissão” surgiu por acaso, quando completei dezenove anos.

Durante um raro encontro forçado com meu pai – coisas de minha avó, que não seconformava com a ausência paterna –, ganhei a contragosto um frio abraço, meia dúzia de

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frases moralista e a Nikon de estimação do velho. Aliás, esta foi a única coisa material queele me deu até hoje.

E com o apoio de um tio abastado e solteirão, também louco por fotografia como oirmão irresponsável, filmes e revelações nunca pesaram no meu orçamento.

Sozinho, sem a ajuda de ninguém, após destroçar avidamente, durante noites maldormidas, uma imensidade absurda de manuais e livros e revistas sobre fotografia, passeia clicar e a revelar tudo à minha volta. Em um ano e milhares de cliques depois, descobriminha vocação para fotografar objetos de arte.

Por que objetos de arte? É simples.Objetos de arte são pacientes, se expressam numa linguagem universal onde pala-

vras são desnecessárias e só precisam de uma fonte de luz adequada para manifestar todoo seu esplendor.

A arte jamais é vazia. Ela sempre tem sempre algo a nos dizer, a nos ensinar. Nãoexiste arte preconceituosa, nem arte ignorante.

Jamais importará a formação ou a moral do artista. O que vale é a sua obra, é o queele deixa para o mundo. A arte dos dementes é eterna.

Agosto, mês sagrado da loucura. Foi clicando uma exposição numa galeria furrecaenfurnada em Perdizes, que acabei conhecendo meu primeiro homem.

Gastei oito rolos fotografando quadros e esculturas alegres demais para o meu gos-to. Sinceramente, até hoje não sei o que me levou a tomar essa atitude, já que eu nemsequer havia sido convidado ou contratado para cobrir aquela exposição.

Simplesmente entrei, cliquei, sorri para a marchand com cara de tédio, elogiei asobras (que eu não havia gostado), deixei um cartão e fui embora. Esse era um daquelestípicos eventos ocasionados por um Destino bêbado, desmiolado.

Ao chegar em casa, deitado no sofá da sala que de noite se transformava no meuquarto, minha intuição trôpega implorou que eu montasse um álbum simples para presen-tear o tal artista que naquela época ainda não era uma estrela.

Dois dias depois, levei o tal álbum até a galeria e lá deixei minha humilde arte paraser entregue ao artista plástico o qual eu nem conhecia a fuça!

Três dias se passaram, quando recebi um telefonema excitado, de uma voz grave eprofunda que, aos prantos, elogiava a minha maneira espetacular de captação de luz esombras e cores e texturas etéreas. Eu havia capturado a essência daquele artista.

E naquela mesma noite, após um lauto jantar num estupidamente dispendioso res-taurante no Jardins, Lauro ficou encantado comigo, com o meu jeito ingênuo de encarar avida, e também com a minha inexistente experiência na arte do sexo. Eu era virgem. Emtodos os sentidos.

Foi numa sala que era maior do que a casa da minha avó, nu, esparramado sobre umtapete felpudo e imaculadamente branco, que meu corpo trêmulo até então intocado porum outro homem foi deflorado numa penetração profunda, onde após horas de sobre-e-desce eu pude captar o suor, os gritos do êxtase e o jorro de uma essência quente e ácida

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que inundou minhas partes baixas. Foram meus primeiros onze minutos de sexo inaugural.Eu tinha o artista dentro de mim. Eu havia capturado o seu coração e meu rabo, o seu

pinto. Foi a primeira vez de tudo. Foi meu último suspiro de liberdade.Eu era totalmente ingênuo. Não havia se passado nem uma semana que nos conhe-

cíamos e num belo e radiante sábado, pela manhã, eu estava de mochila pronta para viversob o mesmo teto do meu marido-artista-quase-famoso.

Deslumbrado com aquele homem elegante e de feições nórdicas e com aquele mun-do artístico que não era minha realidade, eu passava os dias tirando fotos de quadrosrepletos de traços escuros e cores gritantes e toda noite eu tirava a roupa e cavalgava sobreo meu homem berrante. Lauro era escandaloso no ato da meteção.

No resto do tempo, enquanto Lauro criava, pintava, negociava, expunha e viajavaaqui e ali, eu ficava trancado em meu quarto ouvindo Mozart e Depeche Mode ou folhean-do livros e revistas importadas (e caras) repletas de imagens magníficas dos grandes mes-tres da pintura ou da fotografia contemporânea.

Clicar, folhear, trepar. Aqui está um resumo da primeira parte da minha vida adulta.

IIDurante o café da manhã, tentando comer uma torrada murcha e sorver um chá frio,

ancestral, feito há dois dias atrás no auge da minha depressão, a dor continuava a golpearmeu peito, escurecer meu olhar e asfixiar minha garganta.

Eu precisava do ar puro que vinha do sul. Onde estava o ar frio do meu invernoamado?

Pela janela da cozinha eu observava as pequenas ondas quebrando nas areias finas.Fechei os olhos para ouvir o mar que mais uma vez tentava consolar a minha alma melan-cólica com sua voz serena, suave, eterna.

“Ah, meu querido e fiel amigo, dessa vez nem você vai conseguir abrandar estaminha dor”, eu dizia, em prantos, num sussurro, enquanto olhava a espuma branca lambero quintal imenso que era a minha praia exclusiva.

Então ele me disse, do seu jeito rouco: “Companhia, companhia, você precisa decompanhiaaa...”, a voz grave se perdendo ao sabor do vento sul, o bendito ar invernal quefinalmente dava as caras. Meu amado companheiro.

Sentado na frente do chalé, mantendo o olhar perdido na imensidão daquele oceano,inspirei profundamente a brisa salgada e tomei a decisão de sair no dia seguinte paraprocurar alguém para amenizar minha dor, distrair meu sofrimento.

Voltei para a cama afim de me esconder da luz matinal e retornar para o mundo dastrevas. Debaixo do lençol, chorando, eu me sentia dopado, acabado, natimorto.

Ela pairava sobre minha cabeça. Ria de mim. Fora, fora, fora! Tia Solidão, sua his-térica, a senhora vai ter que ir embora.

Eu tinha certeza de que iria encontrar alguém para ficar comigo. Eu estava conven-cido de que iria sentir a maciez dos pêlos entre meus dedos e o calor de um longo e

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demorado abraço, complementado com muitos beijos por todo o meu rosto cansado.Rolaríamos na areia ou no meu bem cuidado gramado. Ele, serelepe, pularia sobre mim.É isso mesmo, tia Solidão. Eu quero um cachorro!

IIIO calor do meio-dia não era páreo para o vento frio que vinha da Ponta da Praia.

Arrastando meus pés nas areias encharcadas, meus parcos pensamentos rodopiavam peloar revolto e minha realidade era retomada somente quando a água fria roçava meus pésdescalços.

A forte dor no peito manifestada durante uma semana inteira ainda me incomodavaum pouco. É incrível como nos acostumamos rapidamente com a dor, ainda mais quandoo sofrimento não é de origem puramente físico.

Pouco antes de sair de casa, titubeante, liguei para um dos meus poucos contatosaqui da ilha. Era uma garota apaixonada por animais, que trabalhava na prefeitura. Per-guntei a ela qual atitude eu deveria tomar em relação a possuir um cachorro.

Comprar ou adotar? Onde? Como? Qual o melhor “modelo” para o meu caso crôni-co de solidão?

Em apenas quarenta e três segundos de um discurso comovente, Márcia me conven-ceu a adotar um bichano sem raça definida.

Ao desligar o celular, acreditei que não seria difícil escolher um novo amiguinhodurante minhas caminhadas pela orla. Bastava eu prestar um pouco mais de atenção noscandidatos espalhados por ai.

Ilha Comprida era o paraíso dos cães “bufês”. São aqueles que têm um pouco detudo, numa miscelânea incalculável de cruzamentos medonhos.

No paraíso esbarra-se em cada duna com cães de todos os tipos, cores e tamanhos.Há animais macilentos que causariam a fúria de um protetor engajado. Também há exem-plares magníficos que zanzam por por todos os cantos, perdidos, tristes, confusos.

Mas quando cruzam com o nosso olhar, revelam a esperança de ser aceitos e amadosem seus olhinhos piduxos de atenção.

Eu sabia de tudo isso, mas até então havia fechado meu coração ao amor e ao afeto,seja de um homem, seja de um cão.

Caminhei por quase três horas no sentido Ponta da Praia – Boqueirão e vice-versa.Encontrei alguns pimpolhos brincando de pega-esconde entre as dunas, mas nenhum eranovinho o suficiente para que eu pudesse adotar e educar desde pequeno.

Cansado, sentando na areia molhada, deixei as ondas calmas beliscarem minhascoxas grossas e brancas que contrastavam violentamente com o mar de pêlos acobreadosque cintilavam graças aos raios luminosos de uma tarde esplêndida.

Eu brincava de desenhar formas difusas na areia enquanto ondinhas sapecas apaga-vam, sorrateiras, minhas obras de arte.

Obras de arte. Lauro. Separação. A nossa união durou onze meses. Cansado de foto-

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grafar traços e cores e mãos paranóicas rabiscando telas em branco, além de ser utilizadocomo um boneco inflável trepante e submisso toda santa noite, finalmente criei coragem,joguei tudo para o alto e numa quarta-feira triste anunciei com gritos histéricos para o meumarido – após sua devida gozada egoísta – que eu o estava deixando definitivamente.

Resumindo essa despedida sem maiores delongas, pois todos sabem como acabamos relacionamentos paranóicos entre gays, houve cenas de muito choro, muito ataque deposse, muito “você não pode me abandonar nesse momento...”, muito “você não é nadasem mim...” e outras pérolas do gênero: “sou sempre a vítima, darling (mãozinha pracima, estalo de dedos), tá boa?”

Eu não agüentava mais ficar preso naquele castelo de concreto, sem poder sair (anão ser em minha companhia), sem poder fotografar as obras de outros artistas (você émeu, exclusivamente meu, e sou eu que sustento o teu trabalho), sem poder descobriroutras formas de prazer (vire, abra as pernas, fica de quatro; eu meto, meto, meto, gozo,viro e durmo... você?, você que se levante e vá bater uma no seu banheiro!).

Lágrimas, revoltas e solidão num sem número de punhetas doloridas. Meu nome éRicardo, mas meu sobrenome era Submisso!

De um dia para o outro as pinturas de Lauro estouraram no mercado. Tudo por causade uma perua nova-rica, mulher de um empresário um tanto suspeito, que havia adquiridopor uma pequena fortuna toda uma coleção meia-boca que estava empacada na galeria,criada pelo artista num momento de crise existencial.

A decoração horrenda de um apartamento, feita por um argentino piegas, onde osquadros pouco inspirados do meu amante mereceram um destaque todo especial, saiuestampada em oito páginas de uma famosa revista de decoração de circulação nacional,onde o marido da perua publicava anúncios de páginas duplas de seus empreendimentosturísticos também um tanto suspeitos. Lava, lava, meu dinheirinho...

O telefone não parava mais de tocar. As encomendas de naturezas mortas e enterra-das explodiram. Lauro conquistou o Brasil. Lauro ficou rico. Lauro ficou poderoso. Lauroqueria mais sexo. Lauro não se contentava mais com o insosso do Ricardo. Simples assim.

Para os amigos, Lauro era sempre todo sorriso, todo atenção e todo afago. Para mim,restava o “laurinho torto, mas sempre empinado”, que eu era obrigado a por na boca e norabo todas as noites.

Fama, fama, fama. Dinheiro, jantares, viagens. E parceiros ocultos e sem identidadeem quartos de hotéis europeus, durante a primeira exposição internacional.

No dia nove de setembro de noventa e qualquer coisa ele voltou triunfante do Exte-rior. Houve uma última trepada. E um adeus. De minha parte, claro.

Para que eu não “passasse fome”, segundo as palavras do meu ex-marido, fui agra-ciado com três quadros de sua autoria e mais uma pequena coleção de esculturas dantes-cas lapidadas em pedra-sabão.

Sem pestanejar, em menos de quarenta e oito horas tudo aquilo foi repassado a umcliente da imobiliária do meu tio, fã oportunista das obras de Lauro, que era capaz de

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pagar quantias absurdas por qualquer merda que Lauro rabiscasse num pedaço de lonabarata.

Mas o que importa é que eu tinha dólares na mão, um colecionador babando defelicidade sonhando com o retorno certeiro do investimento a médio prazo e um artista-comedor sepultado no passado.

Por intermédio desse meu tio (o mesmo que me abastecia com quilos de filmes eainda bancava a revelação das minhas fotos), acabei conhecendo a famosa “ilha compri-da”, localizada no litoral sul de São Paulo, durante um fim de semana de liberdade recémadquirida.

Liberdade. A imensidão das praias límpidas e desertas encantou meus sentidos. Bati omartelo. Titio George providenciou tudo. Pirlimpimpim, eu já tinha uma casinha só pra mim.

Um chalé quarto-e-sala de frente para o mar, sem vizinhos medonhos para me inco-modar. Uma pintura nova aqui, aparar a grama ali, enfim, poucas modificações. Murosaltos e seis pinheiros frondosos rodeando o meu forte garantiam a minha total privacidade.Eu estava feliz. Muito feliz!

IVUma força imensa empurrou o restante da minha auto-estima para baixo. Lágrimas,

lágrimas, lágrimas. Eu desejava afundar o resto de mim na areia e deixar as ondas mearrastarem para as profundezas do oceano. Eu queria sorver as águas salgadas e deixá-lasqueimar minhas entranhas. Eu queria ficar louco e lamber a barba de Poseidon.

Senhor Siri, boa tarde. Pince minha pele enrugada. Rasgue minha pele branca. Corteminhas veias e misture na areia clara o meu sangue tinto.

O que estava acontecendo comigo? Por que tanto sofrimento, tanta angústia?Angústia, angústia, augusto... Augusto? Porra, de onde surgiu esse nome: Augusto!Estapeei meu rosto corado até sentir uma ponta de dor a recobrar minha sanidade.

Encharcado, devido a alta da maré, levantei-me com dificuldade, decidido a voltar paracasa sem meu novo companheiro de quatro patas.

Aquele nome masculino não me saía da cabeça. De onde veio esse nome? Jamaisconheci nenhum Aug... eu já não tinha mais certeza de nada. A voz fanhosa e afetada domeu diabinho-da-guarda não parava de sussurrar “augustos” no meu ouvido esquerdo.

Alucinado, cheguei a acreditar que a tia Solidão, querendo curtir uma com a minhacara, havia convidado a tia Demência para deturpar o mínimo de sanidade que ainda merestava. Eu podia ouvir os gritos histéricos das loucas damas e do seu capacho vermelho erabudo ecoando em estéreo na minha mente atribulada. Tapei os ouvidos.

Já de volta ao meu lar-agora-prisão, jogado embaixo do chuveiro, deixando a águamorna abrandar meu estado deplorável, pude sentir meus olhos ainda inchados por causado choro ininterrupto derramado pelo caminho. Dor, dor, dor irracional.

Olhando com dificuldade para as formas difusas que as gotas quentes criavam nosazulejos frios, imaginei ter visto um rosto a sorrir, onde minúsculos pontos translúcidos

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formavam um belo sorriso encaixado num rosto magro, esquálido, onde um olhar apagadoparecia quebrar o encanto daquele sorriso lindo.

No olhar havia tristeza, solidão, desespero. O olhar perdido naquele rosto masculinorefletia, como um espelho, o que eu havia me transformado.

Augusto, onde está você?

VDe onde vem o meu sustento e o que faço na vida? Nenhum segredo. Com os dóla-

res que ganhei na venda das artes do meu ex-marido, foi possível comprar minha humildecasinha. Adquiri também uma geladeira, um fogão de duas bocas, uma mesa de plásticocom duas cadeiras, uma cama de solteiro e uma pequena cômoda.

Eu trouxe da casa de minha avó uma tevê jurássica de quatorze polegadas e umarcaico (arcaico não... clássico!) Macintosh que ainda dá no couro, onde arquivo velhasfotos digitalizadas do meu passado.

Após treze anos sem comunicação externa, criei coragem e comprei meu primeirocelular. O uso é restrito em raras situações de emergência, pois quase nunca tive paraquem ligar.

E o restante do dinheiro foi convertido num investimento conservador, que provêpouco mais de trezentos reais por mês, quantia que salda minhas dívidas triviais de água,luz, impostos e créditos para o telefone, e ainda me sobra o mínimo para as necessidadesde higiene pessoal e da casa, além da alimentação. Eu como muito pouco.

Os traços alucinados e as cores gritantes de Lauro proporcionaram o meu confortoatual. Sou feliz com o pouco que tenho. Não preciso de mais nada. Ou quase nada.

Gasto o dia lendo muito, caminhando muito, filosofando, tentando me encontrar. Oque para muitos pode parecer um total desperdício de vida, para mim é a contemplação deum estado de liberdade total.

Já que não tenho as amarras da ambição e nem pretendo adquirir nada mais deorigem material para mim, a vida quase monástica tem sido gratificante no sentido da pazinterior que eu finalmente conquistei ao longo dos anos.

Não tenho ninguém. Por uma brincadeira macabra do idiota do Destino, minha avó,minha mãe e meu tio George se foram. Todos partiram no mesmo ano, 1993, na diferençade poucos meses. Velhice, atropelamento, latrocínio. Quase enlouqueci naquele ano. Ofim de três existências que deixarão saudades eternas.

Sobre meu pai ausente? Não sei, nunca mais o vi. Não quero mais falar sobre assun-tos de família.

Meu desejo sexual está criogenado. Quando chega a alta temporada, vejo o desfilede centenas de corpos magníficos cobertos por minúsculas sungas e nada sinto. Na intros-pecção das minhas caminhadas solitárias, muitas vezes ocorre a troca de olhares masculi-nos. Baixo a cabeça, sigo meu caminho. Sufoco meu tesão.

Na solidão escura do andar superior, manipulo meu sexo lentamente, imaginando

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corpos sem rostos a me consumir incessantemente. Termino com o ventre úmido de suor esêmen. Experimento o sabor da minha própria essência. Adormeço com a boca e o corpocobertos com a minha pureza. Solitário.

Tudo estava bem até poucos dias atrás, quando os pesadelos tortuosos e as doreslancinantes no meu peito indicavam que algo perturbador estava para acontecer.

Mas o que? Quem? Quando? Onde? Como?

VIDurante o inverno na ilha, o espetáculo proporcionado pelos céus ao entardecer é

algo único. Tons lilases se misturam aos azuis e cinzas, e esta pintura divina se estendesobre um mar verde, cristalino, onde o marulho das ondas entoa as mais belas sinfonias.

Sons mágicos que transportam nossas almas para dimensões superiores, quandoentão ficamos mais próximos das divindades que tomam conta da Natureza.

Cumprindo minha rotina, eu caminhava solitário a passos curtos, roçando meus pésfrios na areia fofa, molhada, gelada. Oito minutos de caminhada separavam minha casa deum refúgio só meu: o Quiosque Azul.

Este local ferve quando há turistas. Muito pagode, muita cerveja, muita gente histé-rica, muita porção de camarão e outros petiscos, muito barulho.

Mas na baixa temporada o local fica praticamente fechado, inoperante, deserto. E énesse pedaço de concreto e madeira próximo do Riviera que eu costumo meditar, porhoras a fio, olhando para um mar sem fim, muitas vezes apreciando as formas de umpequeno barco de pesca ou me divertindo com as travessuras das ondas, que competementre si para chamar minha atenção, mostrando suas curvas perfeitas e seus brancos maiscristalinos.

Encostei meu corpo cansado na parede fria. Recuperei a respiração normal. Tantodo meu lado direito quanto do meu lado esquerdo, nenhum ser humano a vista. Haviasomente eu, o mar, as areias, o vento, os siris e um barquinho bem distante bailando aosabor da maré. Adormeci.

VIILatidos, uivos, gritos de uma dor palpável, um pedido de socorro!Acordei de sobressalto, movendo a cabeça confusa para todas as direções. Salve-

me, salve-me, ele implorava em seu choro infantil, murmurado, sofrido.Corri embestado na direção do ser indefeso. Encontrei-o acuado atrás de uma duna,

enquanto um monstro rosnava feroz para aquela pequena vítima emboscada.Peguei um resto de bóia que encontrei perdida na areia. Atirei o pedaço de isopor na

direção do monstro-cachorrão, que saiu, protestando, em disparada.Coberto de areia até a ponta das orelhas espetadas, lá estava meu pequeno príncipe,

tremendo, confuso, assustado com a realidade do mundo ao seu redor. Em pouco tempoele descobriria que somente os mais inteligentes sobrevivem.

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Antes mesmo de envolvê-lo em meus braços, joguei em alto e bom som uma oraçãoemocionada aos céus, agradecendo a oportunidade de poder cuidar daquela doce criatura.Ambos chorando feito crianças, um de alegria e outro de pavor, apanhei meu menino comdelicadeza, trazendo-o para o calor do meu corpo macio.

Sacudi seu excesso de areia e descobri embaixo dela um tiquinho de alegria, ondeuma língua miúda lambia meus dedos com sofreguidão e um par de olhos negros, cintilan-tes, agradeciam minha ajuda num momento tão crucial daquela recente existência.

VIIIMeu pequeno príncipe beliscava com suas garrinhas a minha barriga branca e lisa.

Tínhamos dormido no chão do meu quarto, sobre o tapete. Acordei sereno e logo tratei deabrir um largo sorriso. Foi uma noite tranqüila, apesar da dor nas costas. Meus pesadelose o monstro-cachorrão foram assombrar em outra freguesia.

O príncipe estava fedido. Foi direto para o banheiro, onde ganhou carícias vigorosasdebaixo das gotas mornas e incessantes que despencavam do chuveiro.

Espuma com cheiro de erva-doce, mil bolhas, latidos de satisfação e felicidade. Elegostava de água. Abusei de um bem tão precioso, eu sei, e ficamos por quase meia horadebaixo das águas que purificavam nossas almas feridas, carentes, sensíveis.

Seca, enxuga, brinca. Enroscados numa velha toalha azul e branca estampada com osímbolo do Grêmio, meu time do coração, nos divertíamos na pequena área de serviço queficava do lado de fora da casa, encostada ao banheiro, onde o astro rei pincelava feixes deluz que faziam cintilar os pêlos cambiantes de terracota do pequenino.

Meio litro de leite-de-soja foi a recompensa da manhã. Ele estava faminto! Poucoantes do meio-dia, na falta de uma ração adequada, acabei preparando para o primeiroalmoço do meu menino um pouco de arroz branco, sem tempero.

IXEm mais um final de tarde fascinante, eu e meu pimpolho, devidamente amparado

junto ao meu tórax largo, saímos para um passeio à beira-mar. Não nos distanciamosmuito de casa.

Sentado num velho tronco de madeira trazido recentemente pelo mar, apreciando asluzes refletidas naquela imensidão de águas da cor da esmeralda, eu namorava meu meni-no, não dando nenhuma atenção ao mundo exterior. Durante as brincadeiras infantis aca-bei ignorando completamente o tempo e o espaço.

X“Aí está você, seu danado!”, uma voz roufenha surgiu logo atrás de mim, fazendo

com que eu despertasse para a realidade e trouxesse instintivamente para junto do meupeito o meu amor indefeso.

Um mendigo, com ar sério, ameaçador, retirou o cão das minhas mãos delicadamen-

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te, enquanto eu, paralisado, sustentava o meu olhar dentro do olhar sapeca do danadinho,que reconhecera de imediato o seu legítimo dono.

“Desculpe-me. Eu não sabia que...”, eu tentava dizer ao estranho, mas travei aspalavras, encantado com a cena que se desenrolava à minha frente, de um pai feliz por terreencontrado seu filho amado.

“Estrogonofe, seu safado, tu tá bonito, hein, tio!”, disse o homem malcheiroso aocachorro, abrindo um sorriso maroto de dentes inacreditavelmente brancos e perfeitos,enquanto sacudia o pequenino no ar.

“Estrogonofe?”, perguntei, confuso.“Sim... o nome desse pestinha... é Estrogonofe”, confirmou o estranho, sem olhar

para mim, segurando o cão com uma das mãos, me cumprimentando com a outra, com umdesengonçado tapinha no meu ombro esquerdo. Senti a aspereza de sua pele malcuidada.Senti o seu desdém pela minha pessoa.

“Quando eu era criança”, ele continuou, sentando-se ao meu lado, colocando suapropriedade no colo, “minha mãe adorava preparar esse prato. Todos os domingos e emtodas as ocasiões especiais, principalmente quando havia alguém importante em casa, lávinha dona Alaíde com sua travessa fumegante de estrogonofe.”

Eu comecei a rir, a princípio timidamente, mas de repente não deu mais para agüen-tar. Eu gargalhava histericamente, como há séculos não ria com tanto prazer. O coitado docãozinho tinha realmente cara de guisado de carne.

“Então”, continuou o estranho, pasmo com o meu histerismo, “quando encontreiesse porrinha lambendo uma embalagem vazia de estrogonofe pré-fabricado, não tivedúvida na escolha do seu nome.”

“E por falar em nome, o meu é Ricardo, moro próximo à Ponta da Praia”, eu disse,ainda tentando controlar o riso, pondo-me em pé, limpando minha mão direita na bermudae esticando meu braço logo em seguida para um cumprimento formal.

“Você mora aqui há muitos anos?”, ele perguntou, seco, ignorando completamenteminha apresentação pessoal.

“Quinze anos”, respondi, olhando fixamente para o mar calmo, encabulado, reco-lhendo meu cumprimento cordial.

“Nove”, ele disse. “Moro nesta ilha bendita há nove anos”, complementou, levan-tando-se e sacudindo as areias grudadas em seu moletom puído.

“Está escurecendo. Preciso voltar para casa”, o mendigo disse, nervoso, enquantofazia carícias no focinho do filhote.

Com um aceno de cabeça, me despedi a contragosto, um pouco triste por ter perdidomeu pequeno príncipe. Eu aguardava ao menos um “muito obrigado por ter cuidado domeu cão”, mas percebi que nada levaria o sujeito a se manifestar dessa maneira.

O mendigo também se despediu com um aceno tímido, segurando a patinha do fielamigo e simulando um “tchauzinho” em minha direção. Sorri sem vontade e, sem maispalavras, dei meia-volta.

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Cinco passos adiante, meu personal-diabinho sussurrou algo em meu ouvido es-querdo. Um calafrio percorreu todo meu corpo de baixo para cima, onde uma forte ponta-da atingiu em cheio o meu peito, na altura do coração.

Virei rapidamente e quase perdi o equilíbrio do corpo. Gritei asperamente, tentandosuplantar o som agudo do vento:

“Augusto?”, mal pronunciei o nome e areias movediças bailavam sob meus pés.O mendigo parou, soltando o cachorrinho na areia úmida, que contrariado, passou a

arranhar as pernas finas e compridas daquele homem estático.Balançando a cabeça, como se não tivesse escutado a pronúncia com clareza, ele olhou

para trás e mesmo na pouca luz natural, eu pude ver o espanto em seu olhar castanho.“Como você me chamou?”, ele me intimou, vindo em minha direção.“Augusto. Teu nome é Au... gusto, não é mesmo?”, eu disse, gaguejando, as pernas

tinham perdido todos os ossos.“Não pode ser verdade. Piração, cara. Nunca nos vimos, carinha, isso eu tenho

certeza. Isso não tá acontecendo. E como você sabe o meu nome?”, ele vociferou, acimado vento de rajadas, vindo ligeiramente para cima de mim. Eu comecei a chorar.

XITudo aconteceu rápido demais. Ou em câmera lenta, não sei. Fiquei confuso. Foi um

sonho aflitivo? Um resgate cármico? Uma brincadeira dos anjos nefastos? Eu pedi umcachorro e vocês me despacharam esse selvagem?

Selvagem. Que maldade. Dormindo, ele não parecia tão mau assim. Eu acariciavaseus cabelos escuros, levemente grisalhos nas têmporas. Seu corpo suado repousava, tran-qüilo, em meus braços. Não tive coragem de despertar Augusto dos seus sonhos além-mar.

Estrogonofe dormia a sono solto também. Ao lado da minha cama, repousando o seucorpinho bem embaixo dos meus pés. Éramos uma família em repouso após a tormenta.Éramos uma família estranha iniciando uma nova jornada.

XIIChega de devaneios. Você precisa saber o que realmente aconteceu.O mendigo veio em minha direção como que alucinado. Mais dois passos, eu acha-

va que aquele homem esmurraria minhas faces rúbeas, assim, sem motivo aparente.Mais um passo. Ele cambaleou na minha frente. Perdeu toda a energia. Seu mundo

se apagou. Latidos angustiados do pequeno cão, saltitando ao lado do seu mestre e senhor.Eu, paralisado, petrificado seria melhor dizer, não sabia qual atitude tomar.

Segundos eternos se passaram até que consegui novamente tomar as rédeas de mimmesmo. Por instinto, segurei e levantei aquele corpo esquálido, tão facilmente que o atosurpreendeu meus sentidos primitivos de proteção.

Meu bom senso dizia ao longe que aquele homem precisava de socorros médicos.Ignorei o comentário. Eu intuía, sem explicação lógica, que o agressivo sujeito precisavasomente de atenção e carinho. Ele precisava de um lar.

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XIIINa semi-escuridão, voltamos para o meu lar. Eu, Estrogonofe e o mendigo chamado

Augusto.Assim que entramos em casa, levei o homem para o meu quarto. Em seguida bus-

quei uma toalha na cômoda e umedeci o tecido felpudo na pia da cozinha.Subi novamente as escadas incrivelmente calmo, ponderado, feliz. Augusto não me

assustava mais. Eu não sentia qualquer aversão por aquele estranho.Posicionei meu corpo sereno no colchão duro, aprumando minhas costas largas jun-

to à parede áspera.Com delicadeza, levantei e pousei a cabeça de Augusto em meu colo, acariciando

com a toalha fria, logo em seguida, o seu rosto encovado, seu pescoço longo e seu peitoreto, onde descobri dois chumaços de pêlos negros que escondiam mamilos rosados.

Estrogonofe acompanhava aquele ritual de iniciação, num silêncio respeitoso, en-quanto minha mão direita retirava o sofrimento daquele corpo varonil.

Uma voz delicada repetia em minha mente uma frase única, incentivando-me, afir-mando que meu ato contínuo estava acalmando aquela alma atribulada. Eu sabia que a qual-quer momento um par de olhos castanhos iria surgir por debaixo daquelas pálpebras finas.

Então eu veria um olhar emocionado dizendo-me, finalmente, um “muito obriga-do”. Seria a coroação dos meus esforços samaritanos.

XIVExatamente como você e metade do mundo, eu também não sou muito fã de segun-

das-feiras.Era o fim de um feriado prolongado. Acordei com o barulho dos carros zunindo na

avenida Beira-mar, uma faixa de asfalto ou areia em alguns trechos que corta quase toda a ilha.Uma horda de veranistas corriam para aproveitar o sol a pino e ganhar as últimas

nuances de um bronzeado temporário antes de regressarem à São Paulo ou Sorocaba ouRegistro ou Sei-lá-ndia.

Eu estava de bom humor, assoviando uma canção de Darren Hayes, enquanto prepa-rava algo substancioso para os meus homens que roncavam no andar de cima.

Augusto dormiu praticamente a noite toda. Esporadicamente chegou a abrir os olhos,resmungar alguma coisa, bocejar sonoramente e roncar feito um suíno no cio.

O mais incrível é que permaneci calmo o tempo todo, mesmo consciente de teracolhido um estranho para dentro de casa. Em quinze anos, Augusto era a primeira pessoafora da família que havia ultrapassado o portão e entrado no meu refúgio.

Não mudei um milímetro da minha rotina. Varri todo o andar inferior da casa, junteias cacas do cão espalhadas no quintal e lavei algumas peças de roupa.

Saí com Estrogonofe para dar um rápido passeio pelas redondezas, e na volta aindabrincamos feito loucos, fazendo a maior algazarra, rolando no gramado do meu vasto quintal.

Eu não me preocupava com Augusto. Era como se ele fosse um amigo querido que

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estivesse curtindo o feriado prolongado na praia. A sorte é que justamente onde moro nãohá muita concentração de turistas: eles preferem o agito no Boqueirão. A paz reinava doisquilômetros antes da Ponta da Praia.

Seu sono excessivo não me incomodava. Eu pressentia que ele estava se recuperan-do de anos e anos de abstinência social, de amparo, de cuidados, de carinhos, de atenção.

O desmaio resultante na noite anterior fora fruto de uma debilidade física e princi-palmente emocional, segundo minha intuição.

Tudo ao mesmo tempo agora. Seu nome sagrado fora pronunciado por um preten-dente à vaga do seu coração. A espada retirada da rocha. O sapato de cristal calçado no pédo eleito. Abre-te Sésamo. As portas do seu destino estavam escancaradas, pois eu era odetentor da chave mestra.

Deixo-te dormir o sono dos puros. Beijarei a tua boca no momento oportuno. Fantasi-as tornando-se realidade. Beije o sapo decadente, pois ainda existem príncipes encantados.

XVJá passava das três e eu continuava realizando meus afazeres rotineiros me sentindo

leve, alegre, satisfeito. Era como se eu tivesse cumprido com honra uma tarefa bem feita.Acredito que é assim que se sentem as pessoas que praticam o bem sem julgar a quem.

Estrogonofe, já se sentindo o dono da casa, começou a rodear entre minhas pernas,exigindo seu arroz sagrado.

Satisfeito após se fartar, o pequerrucho saiu em disparada pelo quintal, caçando algopara brincar e se distrair. A vítima escolhida foi o resto de uma camiseta que servia comopano de chão, que até então repousava impassível sobre o velho tanque de concreto, ondeeu lavava e esfregava toda quinta-feira as minhas poucas peças de roupa. Um salto, umabocada, horas de diversão.

Como eu não estava acostumado a receber ninguém (acho que nunca estive!), tenteipreparar algo substancioso para dois, dentro das minhas limitações.

Foi um tanto patético eu me desdobrar na cozinha à caça do que oferecer ao meuhóspede, já que, por opção, muitos ingredientes “normais” há tempos não faziam maisparte do meu desjejum.

Encontrei um pacote de bolacha-d’água e meio pote de margarina que faz bem aocoração (segundo o rótulo). Preparei um café forte, fumegante, sem açúcar.

Havia também leite-de-soja gelado. Improvisei pão amanhecido, cortado em fatias,tostado na frigideira com um fio de azeite de oliva e salpicado com orégano.

E para completar o banquete, foram adicionados metade de um tofu, três bananas,duas maçãs verdes e um cacho de uvas.

Tudo isso colocado harmoniosamente sobre a mesa de plástico, que estava cobertacom uma toalha branca, cheia de babados multicor, limpíssima e ainda com resquícios docheiro da casa de minha adorada avó. Saudades.

Augusto desceu as escadas em passos vagarosos, olhando assustado tudo ao seu

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redor, tentando compreender onde e por qual motivo ele se encontrava num lugar quevisivelmente não se comparava à sua realidade.

Não trocamos uma só palavra. Augusto olhou fixamente para mim, apoiando o cor-po num dos pilares que sustentavam a construção, do lado da escada.

Mais uma vez, sendo guiado pela mesma voz doce e divina que havia me acompa-nhado durante a noite, enquanto eu cuidava daquele homem com minhas carícias e meupedaço de pano úmido, larguei sobre a pia os dois copos que seriam usados durante onosso café e levitei em direção daquele retrato que eu havia visto calcado nos azulejosfrios e molhados do meu banheiro apertado.

A mesma imagem. Aquele rosto macilento dono de um sorriso magnífico, que toma-va forma bem diante dos meus olhos. Augusto tentava sorrir. Ele procurava me dizer algo,agradecer os meus esforços, dar um sinal de vida, tomar qualquer tipo de atitude, não sei!

Enfim, um sorriso tímido surgiu como por encanto, dilacerando de uma vez a ima-gem do selvagem que eu mantive presa na minha retina, contra vontade, fruto do nossofatídico encontro.

O brilho dos dentes impecáveis confundiam meu discernimento. Como poderia umhomem naquelas condições físicas tão paupérrimas ter um patrimônio natural tão reluzen-te estampado na cara?

Avancei, tocando em suas mãos frias, finas, trêmulas. Não o conduzi até a mesa. Demãos dadas, deixamos a cozinha para trás. Fomos até o banheiro do lado de fora do chalé.

Estrogonofe continuava suas estripulias junto ao pano de chão agora dilacerado.Não deu a mínima atenção ao casal que passava ao seu lado.

Abri a porta. Abri o chuveiro. Abri minha consciência, aceitando algo muito maisforte do que eu podia ou desejava compreender. O silêncio fora quebrado somente pelobarulho das águas. Das águas que despencavam do chuveiro. Das águas que ao longeavançavam sobre a areia.

“Companhia. Você agora tem companhiaaaa...”, dizia o meu amigo mar, na lingua-gem que somente nós dois conseguíamos nos comunicar.

Despi Augusto ainda do lado de fora. Fiz o mesmo, desamarrando meu calção, dei-xando-o cair lentamente sobre o piso cerâmico. Dois corpos nus, frente a frente, onde ainiciativa corajosa de um lado era complementada com a passividade consciente do outro.Não havia nada para ser ocultado.

Observado sem roupa à luz do dia, até que Augusto não estava tão judiado assim.Seu corpo moreno claro era magro, sem excessos, porém firme, delgado, proporcional àaltura. O rosto, esse sim, estava maltratado, onde uma barba rala e repleta de falhas torna-va as bochechas encovadas um tanto sinistras.

Os olhos castanhos, bonitos, eram rebaixados em sua luminosidade devido às olhei-ras profundas, arroxeadas, seculares, que tornavam o rosto horripilante, assustador, triste.

Segurando sua mão esquerda, conduzi Augusto para debaixo das águas quentes.Aguardei alguns minutos para que seu corpo cansado se revitalizasse naquele calor benéfico.

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Desliguei o chuveiro. Ainda em silêncio, peguei o recipiente de sabonete líquidocom essência de erva-doce (meu único luxo), jogando em seguida uma quantia generosasobre o corpo do meu homem, massageando-o com uma esponja macia. Movimentos cir-culares no sentido anti-horário. Sempre.

O tempo parou para nós. De olhos fixos nos azulejos brancos, Augusto deixava-sesentir bem cuidado, onde minhas massagens, a espuma, a essência, o vapor, minhas atitu-des e o meu coração puro trabalhavam em perfeito equilíbrio e harmonia, reavivando aesperança de dias melhores, de um recomeço, de um resgate de coisas boas, de uma novachance final de ser feliz.

Corpo esfregado, abri novamente o chuveiro para deixar o passado descer pelo ralo.Sobre o pedaço de madeira aparafusado na parede que servia como base para guar-

dar meus objetos de higiene pessoal, apanhei um aparelho de barba descartável. Segurei-o entre os dentes, como quem segura uma rosa vermelha durante um tango.

Era chegada a hora da verdade. Eu queria arrancar aquela máscara medonha. Queriaver o verdadeiro Augusto atrás daquele disfarce que tentava esconder algo que deveria serrevelado somente para mim. Eu já sabia que aquele homem era o meu Prometido.

Abasteci minha mão com mais erva. Formei uma camada consistente de espumanaquele rosto cansado, massageando-o com delicadeza.

Feche os olhos, eu pedi em pensamento, através do meu olhar azul. Augusto nãocedeu ao meu pedido. Seu olhar castanho, profundo, acompanhava todos os meus atos.

Havia confiança e cumplicidade entre nós. Era o início de algo divino, algo escritono segundo sol, que haveria de chegar e realinhar todos os planetas, segundo a maravilho-sa poesia interpretada magnificamente pela estrela que hoje abrilhanta o firmamento comsua luz azul fulgente.

Estávamos totalmente despidos diante de nós mesmos. Não haveria espaço parasegredos e mentiras. Uma nova história. Ou a retomada da nossa própria história.

A lâmina corria e fazia o serviço. Em poucos minutos, o homem real surgiu diantede mim: lindo, luminoso, único, completo. O ruir de mais uma barreira.

O vapor etéreo, envolvente, criava o clima perfeito para nos entregarmos ao enlacedo amor, selando nossa união com o beijo dos apaixonados.

Sim, naquele exato instante, eu confirmava dentro de mim que Augusto seria o meusegundo homem, o terceiro amor da minha vida (depois de minha mãe e minha avó) e oprimeiro ser humano a completar o ciclo dessa minha existência.

Augusto era uma alma companheira a trilhar o mesmo destino, a percorrer o mesmocaminho, a preencher todo o vazio de uma vida que parecia estar fadada à demência, mas quereservava no final dos tempos toda a magia e a beleza de um amor puro, real e verdadeiro.

Infelizmente, o esperado beijo não aconteceu.

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XVIAugusto contou sua história:“Sou o filho único de um casal que já foi famoso no cenário musical. Meu pai foi um

dos melhores produtores musicais do país. Minha mãe era uma compositora de grandetalento. Acho que metade das canções populares brasileiras de maior sucesso entre osanos 1970 e 1990 teve a participação direta de um deles, quando não dos dois.

“Mesmo tendo uma casa maravilhosa em Cotia, vivi uma vida cigana, enfurnado embancos traseiros de carros enormes, entre violões, partituras, fitas cassete, quilos de maco-nha e litros de vaselina. Estudar num único colégio era algo praticamente impossível,devido à maratona de viagens imposta pelo meu pai, que costumava acompanhar seusmúsicos em tudo quanto é canto e visitar centenas de estúdios de som espalhados pelopaís. Mas nesse ponto minha mãe foi fantástica, praticamente ensinando-me a ler e aescrever. Aprendi também a valorizar a leitura, consumindo todas as revistas em quadri-nhos que eram jogadas no meu colo. Foi através das letras escuras nos balões e dos dese-nhos em preto-e-branco repletos de ação que acabei descobrindo o poder de sonhar e viverem outros mundos.

“Por incrível que pareça, mesmo convivendo com a nata da nossa MPB, me mantivedistante desse universo tupiniquim e seus personagens. Nos meus momentos de tédio eume embriagava de Pink Floyd e Genesis. Por causa desses porras aprendi a dominar oinglês, única coisa que sinto orgulho de ter conquistado sozinho.

“Cresci. Conheci o Brasil inteiro. Aos quinze anos, em Curitiba, dei os primeirospegas em garotas fáceis e em trabucos de maconha. Nenhum dos dois me deu prazer.Descobri o sabor de um cacete aos dezessete anos. E só aos vinte e dois perdi todas asvirgindades com um domador que trabalhava num circo decadente. Enquanto a tenda fi-cou armada na cidade, fui deflorado ao lado das jaulas dos leões e outras vezes penetreisem dó o rabo peludo do quarentão, enquanto os ursos aplaudiam o nosso espetáculo.

“Durante um luau com meus pais e seus amigos estranhos, numa passagem relâm-pago nesta ilha comprida, descobri que nada na minha curta existência tinha sentido. Can-sei de acompanhar o pique dos meus pais, que nessa época haviam decidido virar budistase se embrenhar em suas buscas espirituais vagando nos quatro cantos de um Tibete imagi-nário. Eles se foram. Eu fiquei.

“Noventa e nove. Fiz as contas das minhas parcas economias cedidas pelos velhos. Eupassaria a viver com menos de cem paus durante o resto da minha existência. Busquei eencontrei um lugar para dormir. Era um barraco enorme, onde havia peças de barcos espa-lhadas por todo canto. O proprietário acabou me cedendo um cômodo úmido nos fundos dasua propriedade. Um cubo de metro e meio conjugado a um banheiro menor ainda.

“Água, somente água seria consumida pelo meu corpo. E frutas, muitas frutas, so-mente frutas entrariam no meu cardápio. Desde então, nunca mais ingeri nada além disso.

“Quanto ao vestuário, eu trouxe numa mochila o mínimo do mínimo. Até hoje tenhosomente duas camisetas, duas camisas de manga longa, uma jaqueta jeans, duas bermu-

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das de tecido sintético, zero de cuecas, um par de chinelos de couro e três velhas calças demoletom, sendo que essa azul que baila no seu varal ao sabor do vento é a que eu mais gosto.”

Enrubesci, pois durante a madrugada eu havia tomado a liberdade de tirar a camisae a calça sujas de Augusto, pondo-as para lavar. Para não deixá-lo nu, vesti seu corpo comuma bermuda e uma camiseta largas, limpas e cheirosas. Augusto ria, afirmando que nãose lembrava de nada disso. Estávamos sentados na frente do chalé. Augusto mascava acasca e as sementes da segunda uva. Ele continuou seu relato:

“Com o dinheiro que ainda resta, consigo me alimentar e pagar a conta de água.Nunca houve energia elétrica no meu cafofo. Por isso não tenho televisão. Não ouço rá-dio. Apenas leio a Veja toda semana, quando visito a nossa biblioteca municipal. Sãopoucas as coisas do mundo que ainda me interessam.

“Sexo? Nem pensar. Eliminei a minha libido com uma estiletada fatal. Depois dohomem que havia me domado entre as jaulas dos animais selvagens, trepei com mais unscinco ou seis caras ao longo desses anos em que estou aqui. O último rabo que eu comi foide um turista trintão curitibano, e faz um bom tempo. Definitivamente, não pretendo meentregar a mais ninguém.”

Eu comecei a rir nessa hora. Não pude me conter.“Não ria. Eu sei que estou mentindo.”

XVIIAugusto desandou a falar durante o nosso desjejum tardio. Eu e Estrogonofe ouvía-

mos a história atentos, com os olhos esbugalhados, impressionados com a saraivada depalavras despejadas em apenas oito minutos de conversa.

Eu havia abandonado a vida social por causa de duas decepções pessoais: meu casa-mento frustrado e logo em seguida a perda total da minha família.

Morar sozinho na ilha funcionou como um bálsamo a cicatrizar quase toda minhador. O inexplicável é que Augusto também havia largado tudo para viver uma existênciacontemplativa.

O território da ilha é tão pequeno, os caminhos são tão restritos, que eu não conse-guia compreender o motivo de nunca havermos cruzado nossos destinos antes.

Ambos, desde que viemos para cá, nunca mais voltamos para o continente, nemmesmo atravessamos a ponte para um passeio rápido em Iguape e sua famosa Festa deAgosto. Nunca fomos para Cananéia ou para a bucólica Ilha do Cardoso, nem sequer noscruzamos em nossas caminhadas solitárias nos setenta e poucos quilômetros de areias emar e praias paradisíacas que cercam a nossa biosfera.

“Horários diferentes, meu amigo. Eu sou o sol da manhã. Você é a luz do luar.Enquanto você dormia, eu vagava pelas areias sem fim. E enquanto eu descansava, vocêmeditava, devaneando, sentando no piso frio de concreto do seu lindo quiosque azul.Simples assim!”, filosofou Augusto, liquidando minhas dúvidas.

Sobre as afinidades, não ligávamos para o dinheiro, não nos importávamos com o

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luxo. Ignorávamos o mundo dos homens, mas contemplávamos o paraíso de Deus.Buscávamos o entendimento de nós mesmos. Pressentíamos que o homem não pode

se realizar plenamente sem a participação do seu oposto-complemento. Todos nós busca-mos nossas almas companheiras. Todos nós.

XVIIIDesde que havia se mudado para ilha, Augusto queimou todos os seus documentos,

exceto a carteira de identidade, durante o que ele descreveu ter sido um “ritual de passa-gem”, após ter entornado a última garrafa de vinho, durante a virada de ano em 1998.

Mesmo para o japonês paranaense que lhe havia cedido o cômodo para morar, emtroca do pagamento da conta de água e de zelar pelo decadente patrimônio alheio, Augus-to jamais revelara o seu nome verdadeiro. Nada a esconder, somente a omitir um passadotedioso e errante.

Augusto afirmou com veemência que durante esses nove anos conversou com pou-quíssimas pessoas. Não tinha amigos. Ele costumava entrar no varejão da avenida Copa-cabana e escolhia, comprava e pagava suas frutas em completo silêncio. O mesmo ocorriana fila do banco, quando ia quitar a conta de água.

Sacar o dinheiro com o seu cartão magnético, todo dia doze, só se o ato fosserealizado nos caixas eletrônicos; assim não precisava mostrar o seu cartão-identidadepara ninguém.

Achei engraçado e ao mesmo tempo paranóico quando ele relatou que sempre quesacava os tais cem reais, trocava o dinheiro em notas miúdas e “doava” uma nota de umreal para a primeira pessoa que cruzasse o seu caminho durante a volta para casa. Só podiarestar noventa e nove. Essa era a promessa.

Quando perguntei como ele fazia para entregar a nota sem ter que justificar seu atodiante da pessoa em questão, suas faces enrubesceram, e fiquei sem saber qual era o tru-que barato.

Pigarreando, como que desejando mudar de assunto, ele concluiu a história dizendoque o máximo que as pessoas recebiam em troca, além da nota, era um leve sorriso tímido.Nada mais. Cada doido com a sua lucidez...

O problema era que muitos pensavam que Augusto era deficiente auditivo. Foraminúmeras as vezes em que, passando ao lado de um ignorante, ouvia chacotas cretinassobre a sua “doença”. Olha gente, lá vai o mudinho!

XIXEstrogonofe tinha aproximadamente dois meses de idade. O dito-cujo dormia pro-

fundamente sobre a esteira de Augusto, enquanto este se ausentara por alguns instantes,quando fora comprar um pouco mais de ração ao filhote esfomeado.

Vinte minutos depois, ao voltar com o quilo e meio de comida para o filhote, Augus-to tomou um grande susto quando não encontrou o pequeno descansando no centro do

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cubículo úmido. Ele então saiu em disparada pelas ruas do balneário Xandú, onde morava,tentando localizar o seu amiguinho fujão, que havia escapado sabe-se lá de que maneira.

Foram horas de buscas inúteis. O cansaço trouxe Augusto de volta para casa.Na manhã seguinte, nova investida sem sucesso. Augusto rodou meia ilha e nada.

Cansado, suado, sujo, inconsolável, deitado nas areias quentes por causa do sol do meio-dia, no balneário Porto Velho ele cochilou e teve um sonho perturbador.

Em outra dimensão, o calor envolvia seu coração, onde pontadas agudas agrediamseu peito estreito. Angústia, desespero, o que estava acontecendo? As lágrimas invadiramsua visão periférica, turvando seu equilíbrio interior.

Sentindo uma dor insuportável, Augusto entregava-se ao desespero e os soluçossacudiam toda a estrutura do seu corpo.

Ele gritava por socorro, mas era ignorado pelas gaivotas e pelos urubus que plana-vam sob seu corpo, pois os seres alados prestavam mais atenção nos restos de peixes queo mar oferecia para a refeição daquele início de tarde.

Augusto sentia-se fraco, incapaz de tocar as areias perdidas lá embaixo. Ele afunda-va as mãos finas em nuvens imaginárias, massacrando grandes porções de algodão queescorriam entre seus dedos.

Era chegada a hora de abandonar a sua existência solitária e somar uma vida comalguém especial, dizia-lhe uma voz potente pronunciada de um lugar muito distante.

O sol cegava-lhe a visão e uma mancha negra permaneceu fixa por segundos eternosem suas retinas. Ela tomava a forma de um rosto másculo de traços quadrados. Augusto viuo meu rosto no etéreo. Augusto guardou na memória os tons do meu olhar azul intenso.

Trombetas douradas foram tocadas por um casal de cupidos sem asas que levitavaao lado direito do moreno perdido. Divino, aquilo só podia ser divino!

Rapidamente, duas flechas com pontas flamejantes que provocam dores lancinantesforam atiradas em seu peito, forçando-o a despertar e tomar uma atitude extrema na procu-ra definitiva daquele que foi “o prometido” antes mesmo dele descer, nascer e cumprirsuas tarefas na vida terrena.

“Você o encontrará após seguir os rastros na areia iluminados pelo meio-sol. Vocêrecordará do perfume tão conhecido, exalado do corpo de um homem-fêmea que estaráprotegendo o teu filho. A alma companheira confirmará a tua identidade, revelando o teunome, o nome que querias sepultar no teu passado. Ela sofreu por sete dias, tentandocompreender as revelações do Destino. É chegado o fim do isolamento e o começo de umaunião repleta de momentos gloriosos, onde a energia emanada pelo novo casal harmoni-zará mentes e corações que ainda não tiveram a chance de acreditar no amor verdadeiro.Vai, Augusto, busca o que é teu.”

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XXNós escolhemos o nosso destino. Nós optamos ser o que somos. Nós somos incenti-

vados a cumprir nossas metas no planeta, porém nada pode ser completado isoladamente.A participação de um casal que se ama verdadeiramente é fundamental para o sucesso dequalquer empreitada.

A flecha, a dor, o aviso. Havia chegado o momento. Eu e Augusto sentimos a afliçãodo isolamento que cavamos para nós. Passamos pelas mesmas experiências que acabaramconduzindo o encontro de nossas almas afins.

Presos em uma ilha nos confins de São Paulo, vagamos por anos a fio sem quedescobríssemos a existência um do outro, já que nossas mentes embotadas não permitiamque nossas intuições se afinassem, atrasando o nosso derradeiro encontro.

Passamos muito tempo fechados em nós mesmos. Somente pela dor é que consegui-mos acordar para a graça do amor.

Foi por isso que Augusto sentiu a vontade reprimida ao tentar se comunicar comigoquando me viu sentado com o nosso filho no meu colo. Foi por causa da sua visão confir-mada que ele não resistiu e desmaiou quando ouviu o seu nome oculto pronunciado pormim. Foi por causa do nosso encontro definitivo que eu sofri imensamente durante setedias, tentando inutilmente compreender o que estava por vir.

Havia um motivo para estarmos juntos. E juntos descobriríamos a razão da nossa união.

XXIAugusto mascou e engoliu oito uvas pequenas enquanto contava sua história. Eu

bebi um pouco de leite vegetal e belisquei uma rodela de pão torrado. Passamos o resto dodia em silêncio. Aprisionamos as palavras. Era como se já vivêssemos debaixo do mesmoteto há anos.

Gastamos o nosso tempo em brincadeiras infantis com Estrogonofe, que, exauridono final da tarde, capotou sobre minha cama e foi levado para dar um passeio na compa-nhia do Senhor dos Sonhos.

Repentinamente sem qualquer assunto para iniciar um diálogo e sem atividades pro-gramadas, apesar da imensidade de coisas que ainda tínhamos que conversar e sentir eviver, Augusto, taciturno, cabisbaixo, apanhou suas roupas do varal, vestiu-as, deixandoantes as minhas roupas emprestadas sobre o tanque.

Ele beijou minha fronte suada, onde uma lágrima abandonando seus olho direitopousou bem na ponta do meu nariz afilado. Augusto abriu o portão e se foi, sem ao menosolhar para trás. Eu fiquei prostrado no gramado, sendo observado em silêncio pelas com-placentes estrelas que aos poucos tentavam me dar o seu “boa noite”.

A madrugada chegou e o frio fez com que eu recolhesse meu vazio cheio de inerên-cias para debaixo da coberta quente, onde repousei meu corpo inerte junto ao corpinhopulsante, cheio de vida, do meu filho recém adotado.

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XXIIAcordei por volta das dez da manhã. E só levantei da cama por causa das estripulias

de Estrogonofe, que exigia a sua cota de leite fresco.O dia estava bonito, limpo, perfeito. Cumprimentei o mar com minha saudação mística,

onde as palmas das minhas mãos unidas reverenciavam os deuses das águas cheias de vida.Preparei o leite do pimpolho. Tomei um simples copo d’água. Inspirei a brisa da

manhã. De olhos fechados, eu tentava compreender tudo o que estava acontecendo comi-go, com Augusto, com o nosso universo.

Eu deitado em meu colchão duro, aquecido durante a noite fria graças ao meu meni-no peludo e ao único cobertor que havia em casa. Ele tiritando no centro daquele cubículoúmido, com os ossos apoiados sobre uma esteira velha e gasta. Sozinho, mas certamentepensando em mim e no seu filho que estava sob minha guarda.

Por que você foi embora? Por que não abandonar a solidão e se entregar aos desígnios donosso destino? Por que não aceitar o inevitável e se unir a mim em carne e espírito e juntosvivermos aquilo que havíamos programado passar unidos mesmo antes de nascermos?

Por que, raios, o bendito filhote ficou comigo e este pai desnaturado nem ao menosse despediu da sua responsabilidade em forma canina?

Eu gritava por dentro, tentando engolir uma revolta infundada. Para tudo havia ummotivo, uma resposta. Comecei a limpar a casa. A rotina não seria quebrada novamente.

XXIIIO vento vindo do sul trouxe o perfume da alfazema e meu coração bateu mais forte.

O ranger do portão sendo aberto e o brilho de um olhar direcionado para dentro do meuespírito ansioso elevou a potência das minhas esperanças ao nível máximo.

Ele segurava um buquê de rosas brancas. Uma raridade aqui na ilha. Estava trajandouma bermuda azul de caimento perfeito e uma camiseta de mangas curtas imaculadamen-te branca, realçando a imponência de sua postura decidida. Os cabelos pretos estavampenteados para trás, cobertos por um gel, onde o brilho proporcionado pelo sol irradiavaainda mais o rosto agora corado, de rara beleza. As obras de arte só precisam de luz ade-quada para manifestarem todo o seu esplendor.

Sem palavras, Augusto prestou-me uma reverência patética, abrindo o sorriso maisradiante que um homem pode reproduzir quando está apaixonado.

Apanhei minhas flores com delicadeza, enquanto um Estrogonofe estabanado faziaa festa diante do seu pai, que o acolheu em seus braços morenos, onde os finos pêlosnegros eram alisados com a língua miúda do cão, como que a beijar o ser amado.

E finalmente ganhei o abraço, onde definitivamente selávamos o nosso noivado,com as bençãos do mar, do vento, do sol, da brisa, da pureza do nosso pimpolho e do beijosuave e profundo que trocamos a seguir, no portão de casa.

Trocamos o beijo daqueles que sabem o que é realmente o amor.“Ricardo, meu amor, eu precisava passar a última noite na companhia da solidão. Eu

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tinha que dar o passo decisivo na minha vida, escolhendo ou não viver ao lado daqueleque certamente quer o meu bem. Eu nunca esperei nada do mundo e nada mais desejo paramim, a não ser uma única chance de ser feliz ao lado de alguém assim como eu... alguémassim como você. Eu te...”, disse Augusto, chorando, apoiando nossas frontes um no ou-tro, respirando a mesma química que exalava de nossas narinas, sentindo o mesmo tremorque sacudia os nossos corpos e fazia vibrar os nossos sentidos.

Eu não disse nada. Troquei mais um beijo com o meu amado, sentindo a essênciadoce de sua língua quente, gulosa, atrevida.

Segurei sua mão direita. Subimos as escadas que davam acesso ao nosso quarto. Aosom do Lighthouse Family, despetalamos as rosas, forrando o nosso ninho com os peda-ços sedosos do amor.

Nossas roupas foram retiradas e depositadas no chão de madeira, aos pés da cama. Amúsica e o perfume das pétalas inebriavam o nosso desejo de união. Humildes, em telepa-tia, agradecemos aos Céus pela oportunidade oferecida. Nus, ainda em pé, acariciávamosos nossos corpos, numa coreografia lenta e sedutora.

Encostamos a porta para não sermos incomodados pelo filhote, que na verdade nemsequer estava disposto a presenciar nossos atos divinos, pois guerreava com o velho panode chão, seu amigo, correndo ensandecido pelo gramado, de um lado para o outro.

XXIVIgnoramos o universo. O tempo terreno inexiste quando fazemos amor. Eu perscru-

tava todos os detalhes do corpo de Augusto com as pontas macias dos meus dedos fortes.Minha língua cobria a vastidão do meu homem, sentindo o gosto de cada poro, a vibraçãode cada músculo, o calor de cada membro que minha boca serena escolhia, aleatoriamen-te, para ser degustado.

No primeiro round, na luta obsessiva por saciar todos os desejos incubados por anosde solidão, beijei, chupei, mordi cada centímetro do meu macho.

Horas de domínio completo. Eu era o mestre. Augusto, meu escravo. Viramos otabuleiro. Augusto, selvagem, mordeu toda a extensão das minhas coxas grossas, lamben-do avidamente meus contornos e dobras, deliciando-se com meus gemidos guturais, ondemeu corpo possuído debatia-se totalmente sem controle.

Ficamos no oral até o cair da noite. Nossos corpos quentes e melados sentiram oenlace do vento sul. Vamos até o Quiosque Azul, disse Augusto, mordiscado minha orelhadireita. Eu quero te possuir no teu recanto de meditação.

Levantamo-nos. Descemos as escadas de mãos dadas, nus. Sem pensar em nada,tendo em mente a vontade louca de sentirmos nossos sexos dentro e fora de nossos corposnum rodízio contínuo, abrimos o portão de madeira e saímos caminhando pelas areias soba bênção da lua, que com sua luz azul iluminava o nosso caminho.

Nus, leves, soltos, felizes. Caminhávamos arrastando nossos pés nas areias pesadas.Afundávamos nosso passado medíocre sob o peso de nosso corpos livres, deixando as

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pegadas fundas serem eliminadas pela maré alta.Caminhamos por muito tempo. Éramos os únicos na imensidão daquele paraíso na

terra. Nossos sexos, empinados como uma forquilha a procurar a fonte da juventude, apon-taram enfim para a pequena construção de madeira e concreto, parcialmente escondidadebaixo da umidade condensada de uma noite mágica, envolvente, única.

Eu segurava num dos troncos de madeira que sustentavam o telhado do quiosque.Augusto beijava minhas partes baixas, procurando molhar com sua saliva doce o centrodo meu prazer. Senti o seu sexo a me penetrar por completo. E no tremendo vai-e-vem, euchorava de prazer e alegria por ser amado por completo pela primeira vez.

O mar à frente era testemunha do meu estado de felicidade plena. Eu era Eva noParaíso. E meu Adão ora mordiscava minhas maçãs, ora penetrava meu corpo com suacobra sagrada. E Deus não nos expulsou do seu Éden, pelo contrário. Ele acarinhava osSeus mamilos divinos, enquanto bolinava em Seu báculo universal, extasiado com o amorfeito pelos seus filhos.

Augusto saiu de mim, trêmulo, ofegante, e buscou meus lábios quentes, virando omeu corpo com uma força descomunal, ensandecido de desejo, pois havia refreado seuêxtase, que desejava compartilhar comigo, ao mesmo tempo.

Encostado na parede fria, minha cintura foi agarrada com firmeza, e uma bocarraengoliu o meu membro de bom calibre, de uma só vez, onde em movimentos ritmados,num rebolado cadenciado, eu entrava e saía daquela garganta elástica.

Perdi os sentidos de tudo. Meu suor se misturava à brisa salgada. A saliva quente daboca divina de Augusto lubrificava cada vez mais o meu sexo, que a qualquer momentoexplodiria como um vulcão em plena atividade, após ter adormecido por séculos sem fim.

Com raiva, de maneira selvagem, puxei Augusto pelos cabelos e busquei seu beijoprofundo. Seguramos os nossos sexos, beijamos nossas bocas, mordemos nossas línguas,roçamos nossos corpos, trocamos nossas mãos punheteiras, mordemos nossos queixos atégritarmos de dor, onde o êxtase explodiu em demasia, e esgotados, atiramos nossos restosmortais no piso de concreto rústico.

XXVVoltamos para nossa casa pisando em nuvens. Era madrugada e algumas gaivotas

nos deram um sonoro “bom dia”, contagiadas com a nossa felicidade.Ríamos como dois bêbados vindos da farra. Nossos corpos nus tremiam descontro-

lados por causa da força do vento gelado que vinha da Ponta da Praia. Não cruzamos comnenhuma alma humana, mas no fundo torcíamos para deparar com algum grupo de pesca-dores matutinos, que certamente ficariam boquiabertos com a nossa ousadia.

Tudo é possível em Ilha Comprida.

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XXVI“E eu que achava que você era um mendigo, alguém desamparado, sem oportunida-

des.”, eu disse para Augusto, enquanto preparava um pouco de café para mim e lavavauma maçã para ele.

“Na verdade, meu amor, eu me comportei como um mendigo todos esses anos. Fuipobre na minha ignorância e na minha revolta contra um mundo que eu achava estranhodemais. Estive desamparado por mim mesmo, entregando-me ao senhor Rotina, essa bi-cha velha insuportável. Não sei se desperdicei muitas chances no meu passado. Tive o queeu merecia. Escolhi meu próprio caminho.”, disse Augusto, agarrando-me por trás, sus-surrando as palavras no meu ouvido esquerdo.

Entreguei a fruta limpa ao meu amado. E meu olhar enternecido encontrou um olhartímido, de um garoto feliz que havia voltado para o seio do seu amor.

“Augusto, eu queria te pedir pra fic...”, minhas palavras foram interrompidas comum beijo de lábios fechados.

“A resposta, Ricardo, é ´sim, eu vou ficar contigo... pra sempre!´”, confirmou Au-gusto, tentando conter as lágrimas. Lágrimas doces que acabei sorvendo, como se degustao mais puro mel.

XXVIIO inverno mostrou toda a sua força naquela terça-feira cinzenta. Eu, Augusto e

Estrogonofe estávamos na cozinha comemorando nosso segundo mês de união.Augusto levou alguns dias para se mudar definitivamente para minha casa. O mo-

tivo da demora foi a procura de alguém para ficar tomando conta do barracão-cemitériode barcos.

Descobrimos uma senhora que havia deixado a Bahia e se aventurado na ilha, ven-dendo seu artesanato de conchas. Ela procurava um local para ficar. Bastou um telefone-ma, um “sim, tudo bem” do japonês, a entrega das chaves e um “boa sorte”. Augustovoltou ao nosso lar.

Estrogonofe já estava bem crescidinho. Ganhou uma casa de madeira bem arejada eespaçosa, feita a quatro mãos e muitos latidos de felicidade.

Após nos refestelarmos com nossas porções pífias de alimento – Augusto consumiuduas laranjas. Eu, um copo enorme de suco de laranja e um pãozinho com fatias de tofu efolhas de alface crespa. Estrogonofe devorou em segundos sua ração misturada com obendito arroz branco, sem tempero –, saímos para um passeio pela praia, desafiando aforça do vento.

Encapotados debaixo dos nossos moletons, caminhávamos lentamente, observandoatentamente os passos de Estrogonofe à nossa frente, pois eu temia que o dito-cujo man-dasse goela abaixo alguma porcaria incrustada na areia.

Um vulto distante chamou a atenção do nosso filho, que saiu em disparada ao en-contro de alguém que, assim como nós, resolverá desafiar a força da natureza.

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Augusto ficou espantado ao deparar-se com a mulher que havia alugado o seu anti-go abrigo. Maravilhada, ela trazia Estrogonofe nos braços gorduchos, ambos fazendo ca-retas medonhas um para o outro.

“Olá, dona Rita. A senhora resolveu experimentar o nosso inverno e sair de casa?Que coragem!”, disse um Augusto excitado, todo pampeiro diante da nova amiga. “Esteaqui é o meu marido, Ricardo.”, ele continuou, fazendo as honras da casa.

Dona Rita entregou com delicadeza Estrogonofe a Augusto, abraçando-me caloro-samente logo em seguida.

“Que lindo casal vocês formam. Dá para ver que foram realmente moldados umpara o outro. Sinto isso na energia que envolve vocês. Ela é densa, palpável, abençoada!”

Fiquei envaidecido com o comentário. Augusto beijou meu rosto, sob os protesto deEstrogonofe, sufocado entre seus protetores.

“Meninos, eu preciso fazer uma coisa.”, disse, séria, dona Rita, assustando-nos comsua repentina mudança de humor.

Ela começou a procurar algo dentro do casaco de lã, em algum bolso secreto perdidoem seu interior felpudo. Um brilho surgiu em seu olhar, seguido de um gritinho triunfantede vitória.

Dona Rita tirou um saquinho do bolso, onde havia seis ou oito anéis dourados, feitosde algum material sem valor. Reparei na tatuagem de um delicado cogumelo que havia nopulso da mão direita.

“Vocês são aves raras no turbilhão daqueles desesperados que ainda se encontramna eterna busca de seus companheiros. Vocês são homens privilegiados, pois foram agra-ciados com o amor verdadeiro e souberam se entregar sem limites à vivência plena desseamor. Sendo assim, a partir desse momento único, eu fundamento essa união sagrada,abençoando essas alianças em nome do Senhor.”, gritou dona Rita, visivelmente emocio-nada, segurando dois anéis na mão esquerda.

Eu e Augusto ficamos embasbacados diante daquela cena. O único que estava sedivertindo a valer era Estrogonofe, que uivou ao final da sagrada oração proferida poraquela mulher fantástica.

Dona Rita caminhou até as ondas e purificou os anéis nas águas revoltosas, enquan-to pronunciava à boca pequena alguns mantras.

Ela voltou das águas segurando os dois objetos de metal reluzente com a mão direi-ta. Ao lado de Augusto, que estava visivelmente lacrimoso, dona Rita abriu a mão, indi-cando-lhe que pegasse o anel do seu lado esquerdo.

“Deus abençoa essa união.”, ela disse, num tom de voz que tentava suplantar o vento sul.Augusto colocou o anel em meu dedo trêmulo, o qual se encaixou com perfeição.

Fiz o mesmo com o outro anel e ao colocá-lo no dedo fino e frio do meu amado, repenti-namente uma leve garoa cobriu os nossos corpos gelados.

“Ele ouviu minhas preces. Ele e Seus anjos choram de alegria por vocês, meus ami-gos. Deus está presente!”, gritou dona Rita, em prantos.

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Finalizamos o ritual com um beijo discreto. A emoção, as lágrimas e a garoa cega-ram nossa visão por alguns instantes. Quando recuperamos os sentidos, dona Rita estavade braços abertos, aguardando sua recompensa destilada em forma de um longo e calorosoabraço a três.

Estrogonofe saltitava de contentamento, ao presenciar a união definitiva de seuspais adotivos. Dona Rita apanhou o pequeno, enquanto molhava uma das mãos na garoaque aos poucos se transformou em chuva mais pesada.

“Os anjos querem purificar o pequenino com suas lágrimas inefáveis. É chegada ahora do batismo.”

A mulher enviada pelos céus juntou um pouco de água pura na palma da mão, espar-ramando-a em seguida, com extremo cuidado, sobre a cabeça do nosso cão, que permane-ceu tranqüilo durante todo o ato.

“Em nome do Pai e do Filho, eu abençôo essa nova vida.”, dona Rita proferiu abenção lentamente.

Chorávamos copiosamente ao ver nosso filhote ser agraciado com o batismo divino.Dona Rita entregou Estrogonofe a Augusto. O danadinho caiu no sono imediatamente,aninhando-se nos braços ternos do pai.

“Vão, meus filhos. A felicidade do Pai estará presente em todos os momentos desuas vidas. Façam o bem, sejam prestativos e dêem sempre o melhor de si. Esta é a únicamaneira de salvar o mundo. Esse é o único caminho que leva à verdadeira Felicidade.”,orientou dona Rita, abraçando-nos mais uma vez.

XXVIIIChovia a quase uma semana, impedindo que saíssemos de casa. Augusto e eu

passávamos horas deitados juntos no tapete do nosso quarto, entretidos com nossoslivros, em silêncio.

Estrogonofe, sempre ligado no quatrocentos e vinte, subia e descia as escadas parachamar a nossa atenção e gastar um pouco de sua inesgotável energia.

Quando não estávamos lendo, namorávamos muito, descobrindo sempre novas for-mas de dar prazer um ao outro.

Também passávamos longas tardes e noites conversando, colocando todas as nossasvivências em dia. O diálogo aberto e sincero é o melhor trunfo para o sucesso duradourode uma relação íntima.

Assim, gastávamos o nosso tempo, investindo em nós mesmos, aprendendo a supe-rar nossas diferenças, a conviver com nossas limitações, a aumentar aquilo que tínhamosde positivo, transformando todos os nossos atos em pilares concretos de companheirismo,carinho e amor.

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XXIXNum sábado chuvoso e frio, eu organizava algumas coisas do meu marido numa

velha caixa de sapatos, quando encontrei uma foto levemente fora de foco, onde um Au-gusto jovem, de terno e gravata, aparentemente deixava o interior de um prédio comercialna avenida Paulista.

Ao fundo, a poucos metros do jovem executivo, vi dois homens conversando dis-traidamente. Um deles, o mais clarinho, olhava para Augusto com um olhar guloso, reple-to de desejo.

Quando Augusto voltou da caminhada com Estrogonofe, me encontrou aos prantossentado à mesa da cozinha, com a foto na mão.

Ele me abraçou, perguntando, preocupado, o que havia acontecido comigo. Deposi-tei a foto sobre a mesa, apontando para os dois homens no fundo da imagem.

Augusto riu, surpreso, dizendo-me que aquela era a única foto dele em traje de gala, nainusitada ocasião em que acompanhou o pai numa reunião de executivos de uma gravadora.

Em soluços, eu continuava apontando para o outro extremo da imagem, quandofinalmente consegui pronunciar algumas palavras:

“Meu amor, esses dois homens ao fundo, aqui do lado esquerdo, são eu e meu tioGeorge. Eu havia acabado de me separar e estava procurando uma casa para morar, daí avisita ao escritório imobiliário do meu tio, que ficava nesse prédio.”

“Sim, mas... essa foto foi tirada pelo meu pai, um eterno gozador, que queria mos-trá-la depois para minha mãe, dizendo-lhe que seu filho havia aderido ao Sistema... edaí?”, perguntou Augusto, aflito, tentando me consolar envolvendo meu corpo frio em seuabraço caloroso.

“Nesse dia, quando vi você, de costas, perdi imediatamente a firmeza do corpo e doespírito. Mesmo sem ver o teu rosto, sentir o teu olhar, algo me dizia que você um dia seriaimportante em minha vida. Tentei esquecer esse incidente. Derramei algumas lágrimasdiscretas, emocionado, ao sentir o perfume do seu corpo, quando passei por você e...”,minha boca foi tapada delicadamente, pois Augusto queria completar a minha emoção.

“... eu também senti o mesmo, apesar de também não ter visto você, apenas sentidoo teu cheiro único. O mesmo cheiro que o vento me trouxe naquela tarde, quando eu,desesperado, tentava encontrar o nosso filhote. Fiquei atônito ao relembrar tudo o quehavia acontecido recentemente, durante aquele sonho revelador. Eu vi o trecho do meupróprio filme que eu julgava ter sepultado no passado. Fiquei nervoso ao tentar compreen-der de onde eu havia sentido aquele perfume maravilhoso. A essência do teu corpo apaixo-nado. Aqui está a resposta. Nessa imagem fixa pelo tempo está a prova do início do nossoreencontro. Foi o primeiro aviso!”

Augusto ajoelhou-se à minha frente, beijando a ponta dos meus dedos de mãos trêmulas.“Tivemos que passar pelo isolamento voluntário para conquistarmos novamente a

chance de um recomeço. Trilhamos caminhos paralelos até chegarmos nesse pequenoparaíso que os Céus nos reservou com exclusividade.”, disse meu amado, enquanto Estro-

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gonofe entrava de mansinho na cozinha, assustado com a enxurrada de lágrimas que vertiado casal apaixonado.

Augusto abraçou nosso filhotão, que sentindo-se protegido, retribuiu o carinho lam-bendo o rosto do pai, alternando as lambidelas em meus joelhos desnudos.

“Tenho dois amores, o que mais posso desejar nessa existência?”, bradou Augusto.Abracei meu marido e meu cão. A luz âmbar que atravessava a janela da cozinha

transformava aquela cena comovente num retrato renascentista.Obras de arte só precisam de luz adequada para manifestar todo o seu explendor.

FIM

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O AUTOR :: MOA SIPRIANO

Nasci em Jundiaí, uma próspera cidade do interiorde São Paulo. Minha mãe é uma guerreira. Tenho duasirmãs fantásticas, dois cunhados bacanas, duas sobri-nhas fofas, algumas primas idolatradas e uma tia que éfora-de-série. Ah, também tenho um pai... ausente.

Comecei a escrever roteiros, poesias, letras de mú-sicas e outras bobiças aos 12 anos. Eu vivia anotandomeus sonhos e minhas verdades em papéis soltos queforam se perdendo pelo caminho. Sempre escrevi his-tórias que de alguma maneira retratavam a homosse-xualidade masculina.

Em 1988, após uma experiência pessoal "abalante",resolvi desabafar através de uma autoterapia forçada,escrevendo em uma noite Uma carta para Hans. Foi oprimeiro conto.

Em 2004, ao criar a primeira versão do meu siteoficial, fiquei totalmente surpreso com a polêmica, oscomentários inflamados e a repercussão positiva juntoaos leitores ao publicar meus primeiros artigos naInternet: Deus x Gays, Afeminado? Tô fora e Você éAtivo ou Passivo; além da série Poltrona 47 (cinco con-tos que retratam as experiências sexuais de um rapazdentro de um ônibus) e o conto Filipe ou Treze homense um destino (história que retrata de uma maneira po-lêmica as atitudes de um rapaz que ao saber que podeestar contaminado com o vírus da AIDS, num momentode revolta e irresponsabilidade total resolve se vingare transar com treze homens em um único dia).

Foi este incentivo que me levou a apostar no meutipo de literatura. Desde então, nunca mais parei deescrever, procurando aprender e evoluir a cada dia comoum bom contador de histórias gays.

Em 2005, por causa do sucesso do conto Filipe,busquei inspiração para desenvolver o projeto 30 dias.A história de Jägger foi realmente escrita em temporeal, conforme as datas descritas no diário do persona-gem. Foi um desafio enorme escrever trinta capítulosem exatos trinta dias e postar um capítulo diário, emformato de blog, em meu site. E mesmo não tendo di-vulgado devidamente este projeto, a repercussão foimuito promissora.

Em 2007, após editar e ampliar o conto, transfor-mando-o em um e-book e carro-chefe na divulgação domeu trabalho, resolvi disponibilizá-lo gratuitamente emmeu site.

Percebendo a boa receptividade de "30 dias", aca-bei transformando praticamente toda minha produçãoliterária nesse formato, tonando-me assim um pioneirona divulgação e distribuição no Brasil de livros digitaisgratuitos contendo literatura gay de qualidade.

Em 2008, após mais de 20 mil downloads no Brasilde todos os meus títulos publicados e também por cau-sa da grande quantidade de comentários incentivadoresdos meus leitores é que continuo me esforçando naprodução constante e divulgação permanente de umaliteratura "gay" de excelente entretenimento.

A homossexualidade, o amor verdadeiro, os confli-tos internos, a amizade e a espiritualidade são temasrecorrentes no meu trabalho literário. Espero que mi-nhas histórias e verdades proporcionem a você mo-mentos de agradável leitura e reflexão.

Se você curtiu muito o texto que acabou de ler e quisercolaborar financeiramente, apoiando o meu trabalho, faça econfirme um depósito na minha poupança (ui!) e seu nomeficará registrado em meu site – menu “colabore” – na famosalista permanente dos leitores e fãs que apoiam o fofo doMoa! (eu me acho, né! :)

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