Um Império Multicultural

11
Um Império Multicultural? Carlos Machado Em 121 d.C. o imperador Adriano deixou Roma, quatro anos após ter assumido o trono, para um longo tour ao redor de seu império. O imperador e sua corte passaram (nesta ordem) pela Gália, Germânia, Bretanha, Península Ibérica, Mesopotâmia, Ásia Menor e Grécia, retornando para Roma em 125 d.C. Três anos mais tarde, Adriano partiu em novo tour, começando pelo Norte da África e, após uma breve parada em Roma, passou pela Grécia, Ásia Menor, Capadócia, Síria, Arábia, Judéia, Líbia, Egito (onde seu amante Antínoo faleceu em circunstâncias misteriosas), e depois de volta à Síria, Grécia e Judéia. Na Judéia Adriano esteve envolvido na luta contra a revolta de Bar-Kochba, que só terminaria em 135 d.C. – o imperador, no entanto, retornou para Roma em 132, ainda no início da rebelião. As viagens de Adriano tiveram diversos propósitos: vistoriar as tropas e instalações defensivas nas fronteiras, fazer acordos diplomáticos com reis e líderes bárbaros, reformar a administração das províncias romanas, apresentar-se aos seus súditos e, tão ou mais importante, satisfazer a curiosidade de um imperador intelectualmente insaciável. Ele visitou atrações turísticas, participou de festivais famosos, e ainda encontrou tempo para embelezar muitas das cidades que visitou. Para além do fato de ser imperador, podemos nos perguntar o quão típico era o caso de Adriano. Nascido em Roma, ele era descendente de senadores originários da atual Espanha – como seu tio (em segundo grau) e predecessor no trono, Trajano – onde passou parte de sua juventude. Sua biografia, parte daquela obra misteriosa que se convencionou chamar História Augusta, nos conta que ao iniciar sua carreira pública em Roma era satirizado por falar o latim com um forte sotaque (3.1), e que seu amor pela cultura e língua grega lhe valeu o apelido de ‘pequeno grego’ (1.5). O interesse de Adriano por outras culturas é

description

Esta é uma versão preliminar de um artigo que escrevi para o catálogo de uma exposição sobre a arte romana.

Transcript of Um Império Multicultural

Page 1: Um Império Multicultural

Um Império Multicultural?Carlos Machado

Em 121 d.C. o imperador Adriano deixou Roma, quatro anos após ter assumido o trono, para um longo tour ao redor de seu império. O imperador e sua corte passaram (nesta ordem) pela Gália, Germânia, Bretanha, Península Ibérica, Mesopotâmia, Ásia Menor e Grécia, retornando para Roma em 125 d.C. Três anos mais tarde, Adriano partiu em novo tour, começando pelo Norte da África e, após uma breve parada em Roma, passou pela Grécia, Ásia Menor, Capadócia, Síria, Arábia, Judéia, Líbia, Egito (onde seu amante Antínoo faleceu em circunstâncias misteriosas), e depois de volta à Síria, Grécia e Judéia. Na Judéia Adriano esteve envolvido na luta contra a revolta de Bar-Kochba, que só terminaria em 135 d.C. – o imperador, no entanto, retornou para Roma em 132, ainda no início da rebelião. As viagens de Adriano tiveram diversos propósitos: vistoriar as tropas e instalações defensivas nas fronteiras, fazer acordos diplomáticos com reis e líderes bárbaros, reformar a administração das províncias romanas, apresentar-se aos seus súditos e, tão ou mais importante, satisfazer a curiosidade de um imperador intelectualmente insaciável. Ele visitou atrações turísticas, participou de festivais famosos, e ainda encontrou tempo para embelezar muitas das cidades que visitou.

Para além do fato de ser imperador, podemos nos perguntar o quão típico era o caso de Adriano. Nascido em Roma, ele era descendente de senadores originários da atual Espanha – como seu tio (em segundo grau) e predecessor no trono, Trajano – onde passou parte de sua juventude. Sua biografia, parte daquela obra misteriosa que se convencionou chamar História Augusta, nos conta que ao iniciar sua carreira pública em Roma era satirizado por falar o latim com um forte sotaque (3.1), e que seu amor pela cultura e língua grega lhe valeu o apelido de ‘pequeno grego’ (1.5). O interesse de Adriano por outras culturas é feito evidente pelo próprio modelo que escolheu para seus retratos – seguindo o molde dos filósofos gregos, com uma longa barba – e principalmente pela arquitetura e decoração da esplêndida villa que construiu na cidade de Tibur, a poucos quilômetros de Roma. Aí, edifícios e sua arquitetura evocam diferentes partes do império, e o mesmo é feito através de mosaicos, pinturas e escultura. O imperador Adriano talvez seja o melhor exemplo do quão cosmopolita podiam ser as classes dominantes romanas, além de uma excelente demonstração do quão rica e diversa era a vida cultural no império.

A expansão imperialista romana, processo que ocupou praticamente os sete séculos da história da cidade antes de Adriano se tornar imperador, havia colocado soldados, colonos e administradores em contato com diversos povos e culturas, ao redor de todo o mar Mediterrâneo e além. Populações locais foram obrigadas a conviver em seu dia-a-dia com o domínio romano, adaptando-se aos seus valores, costumes e instituições. A presença da estrutura imperial (juízes, governadores e soldados, entre outros), assim como a possibilidade de ascensão social foram um poderoso estímulo para a difusão das línguas latina (no Ocidente) e grega (no Oriente). Línguas locais, como o púnico no Norte da África, o copta no Egito, e o aramaico na Judéia, continuaram a ser utilizadas, principalmente pelas populações rurais e/ou com menor

Page 2: Um Império Multicultural

acesso aos órgãos do governo. Nas cidades, da Síria à Bretanha, inscrições mostram a progressiva dominância das duas línguas mais associadas ao império.

É válido perguntar até que ponto mesmo os membros das elites provinciais conheciam bem o grego ou o latim, mas é inegável que alguns deles dominavam não só a língua como também as formas de pensar e de se exprimir que identificavam as elites romanas. Provinciais como Sêneca (Hispania) e Flávio Josefo (da Judéia) tiveram acesso privilegiado à corte imperial, respectivamente de Nero (54-68) e de Tito (79-81). Apesar de em ambos os casos este acesso ter sido temporário e imperfeito, eles ao menos mostram que a integração cultural era uma forma de ascensão a ser explorada. No final do século IV, o ambicioso cristão Agostinho, posteriormente bispo de Hipona no Norte da África, ilustrou um dos mecanismos através dos quais provinciais eram incorporados ao topo da hierarquia social e cultural romana, contribuindo para o cosmopolitismo de sabor local que já era visível no primeiro século do império: nascido em Thagaste (moderna Argélia), estudou em Cartago (Tunísia), antes de se mudar para Roma e mais tarde Milão, na Itália, para aprofundar seus estudos e seguir uma carreira pública. Ao virar homem da Igreja, seus escritos tiveram um impacto profundo nos círculos intelectuais do império em suas últimas décadas.

Seria errado, no entanto, assumir que apenas membros das elites tinham acesso à língua e às literaturas greco-latina – e, por consequência, aos órgãos de governo que faziam o império funcionar. A descoberta de um papiro com uma passagem da Eneida, durante a escavação da fortaleza judaica de Massada, bem como a de uma tabuinha de madeira com um fragmento da mesma obra em Vindolanda, na Inglaterra, sugerem que soldados romanos carregavam consigo os símbolos de sua cultura – ao mesmo tempo em que a difundiam ao interagir com os povos conquistados. A maior prova da difusão da cultura imperial (greco-romana, mais do que unicamente romana), no entanto, são os milhares de papiros descobertos em diversas localidades do Egito, atestando o esforço de habitantes de aldeias muitas vezes mais antigas do que a própria cidade de Roma para ter acesso às autoridades romanas. Não apenas a língua grega, mas também os símbolos e instituições da dominação romana eram apreendidos e incorporados à vida cotidiana e às estratégias dos camponeses egípcios.

Historiadores tradicionalmente chamaram este processo de afirmação da cultura e do poderio romano entre as populações dominadas de ‘romanização’. Este termo tem sido objeto de importantes críticas, em primeiro lugar por negligenciar o importante grau de autonomia exercido pelas culturas e sociedades locais; em segundo lugar por levar estudiosos modernos ao risco de legitimar a ordem romana, tratando-a como superior às realidades provinciais. A difusão da ordem romana seria, nessa perspectiva, equivalente ao processo de civilização das populações bárbaras, uma visão que foi criticada por ser associada a ideologias evolucionistas e imperalistas do século XIX. O que estas considerações não podem nos levar a esquecer, no entanto, é que as relações entre o poder romano e as comunidades provinciais eram necessariamente assimétricas, com o fiel da balança pendendo sempre para o lado do governo imperial. Compreender a história cultural do império romano significa, assim, manter em mente que as relações entre comunidades locais e o poder imperial eram complexas e dinâmicas, e que aquelas

Page 3: Um Império Multicultural

gozavam de um grau razoável de autonomia – mas que permaneciam, sempre, subordinadas.

Um bom exemplo disso é a cidade romana de Aregenua, no Noroeste da França, a principal cidade dos Viducasses, tribo celta mencionada por Plínio o velho (H.N. 4.18). A cidade, fundada no século I d.C., era dotada de um aqueduto, termas, um teatro, além de edifícios de governo como uma basílica e uma sede para o conselho municipal (a Curia). Aí foi homenageado com uma estátua colocada em local público o magistrado Titus Sennius Solemnis, que viveu na primeira metade do século III d.C. Nós somos informados a seu respeito através de três textos em latim que foram inscritos no pedestal de sua estátua (o assim chamado mármore de Thorigny). Solemnis foi representante da cidade no conselho das três Gálias e sumo sacerdote do culto de Roma e de Augusto em Lyon. Como sacerdote, havia cumprido a função de organizar jogos gladiatoriais no Anfiteatro de Condate, onde 64 gladiadores lutaram durante quatro dias. O que fez com que ele fosse homenageado, no entanto, foi o fato de durante o seu mandato Solemnis ter defendido o governador romano Tiberius Claudius Paulinus, acusado de corrupção. Solemnis é um bom exemplo do membro de uma família provincial que soube galgar as estruturas locais de poder (inclusive religiosas), através de sua educação e suas amizades, para obter vantagens próprias. A própria forma como foi homenageado, uma estátua em local público, mostra o uso de práticas essencialmente romanas por uma comunidade de origens célticas, vivendo cerca de 1500 km distante de Roma, para evidenciar seu prestígio além da esfera local.

Cidades como Aregenua na França, Éfeso na Turquia e Pompéia na Itália exerceram um papel fundamental na difusão da cultura imperial. Instituições como o exército e mais tarde a Igreja cristã também exerceram esse papel, mas jamais de maneira tão sistemática. Assentamentos urbanos já eram comuns no Oriente grego há séculos, mas foi apenas com a imposição da ordem romana que se tornaram comuns na paisagem do Ocidente. Isso não se deu da mesma forma em todo o império, com grandes partes da Europa Ocidental (especialmente o Norte), das províncias orientais mais distantes e até mesmo a rica província do Egito mantendo-se apenas imperfeitamente urbanizadas. Mesmo em regiões de alta densidade urbana, como o Sul da Gália, a Itália e a Ásia Menor, parcelas consideráveis da população seguiram vivendo no campo. A despeito disso, a cidade tornou-se um símbolo da dominação romana, um centro a partir do qual as culturas dos governantes e as culturas locais interagiam criando sínteses originais – a partir de instituições políticas e uma linguagem arquitetônica comuns. Estátuas e templos celebravam poderosos e divindades locais e imperiais, enquanto inscrições em grego ou latim anunciavam publicamente o compromisso com a manutenção da ordem vigente. Em maior ou menor grau, cidades eram constituídas de um aparato monumental razoavelmente uniforme, como edifícios de governo, espaços de deliberação política, um forum ou ágora, além de amenidades como teatros e termas, como sugeriu o escritor Pausânias (10.4.1). Uma cidade romana era um assentamento facilmente reconhecível para quem nele adentrava pela primeira vez.

Os quatro dias de jogos gladiatoriais organizados e financiados por Solemnis, mencionados acima, são um bom exemplo de como esta função cultural era

Page 4: Um Império Multicultural

desempenhada por cidades. Por todo o império, em todo núcleo urbano com alguma pretensão à importância, membros da elite local investiam enormes somas em obras de construção, na restauração de edifícios públicos e no financiamento de festivais e jogos. Não era raro que fundações religiosas ou de caráter assistencialista fossem criadas através de cláusulas testamentárias, o que garantia a sobrevivência do nome do doador ao mesmo tempo em que provia um serviço importante para os cidadãos (o assistencialismo antigo não era voltado para os mais pobres). Os teatros e demais edifícios de entretenimento que ainda atraem milhares de visitantes todos os anos às antigas cidades do império eram ao mesmo tempo fonte de orgulho cívico e importantes espaços de convivência e de celebração de valores diretamente associados à ordem política. A execução de criminosos, a celebração da força física, a subordinação de mulheres e escravos eram alguns dos temas em exibição perantes os olhos das multidões que aí se reuniam. O poeta Marcial nos conta, em seu Sobre os Espetáculos, composto para celebrar a inauguração do anfiteatro Flávio (hoje chamado Coliseu) em Roma, que adúlteras e assassinos foram empregados em reencenações de antigos mitos, encontrando um fim terrível na arena. Leões, hipopótamos, girafas, rinocerontes e elefantes, entre outros, eram exibidos ao público, símbolo da diversidade da natureza sobre a qual reinava César. Foi no teatro de Marcelo que os cidadãos romanos viram um tigre pela primeira vez, trazido a Roma por Augusto (Plínio, H.N. 8.65). Ao mesmo tempo, através de uma distribuição de assentos estritamente hierarquizada, separando senadores de plebeus, homens de mulheres e livres de escravos, membros da audiência acabavam por se tornar parte do principal aspecto envolvido na constituição do espetáculo: a celebração da ordem imperial.

Não só gladiadores e animais eram transportados de uma parte do império a outra: roupas, perfumes, objetos de luxo e alimentos exóticos eram cobiçados pelas elites sediadas em Roma e nas grandes cidades provinciais, como forma de diferenciação social e política. Junto com bens de consumo, pessoas também cruzavam o império de Leste a Oeste e de Norte a Sul, aproveitando-se de um dos maiores benefícios trazidos pela conquista romana, a segurança para viajantes circulando sob uma mesma autoridade política. No início do século II d.C., qualquer viajante – e não somente um imperador como Adriano – passaria por estradas, portos e cidades facilmente reconhecíveis como romanos, com oficiais e regulamentos imperiais (e certamente também locais). A diversidade social e cultural encontrada não impediria esse viajante de reconhecer estar andando sempre sob a mesma autoridade imperial. Em uma larga medida, a diversidade era reconhecida como uma das características fundamentais do império.

Essa possibilidade de circular quase livremente, algo impossível tanto antes da dominação romana quanto após a queda do império, é um dos elementos que mais impressionam o leitor de textos como os Atos dos Apóstolos ou as Epístolas do apóstolo Paulo. Jerusalém, Corinto, Antioquia, Éfeso e Roma, entre outras, eram visitadas por milhares de estrangeiros procurando difundir suas crenças religiosas ou simplesmente em busca de oportunidades econômicas. Com eles circulavam também idéias e culturas locais. O filósofo e orador Dião Crisóstomo, que viveu entre o século I e o II d.C., deixou a província da Bitínia e, após um período de exílio, foi convidado a fazer

Page 5: Um Império Multicultural

discursos para platéias em lugares tão distintos quanto Nicéia, Corinto, Alexandria e Roma. Um de seus mais famosos discípulos, Favorinus, era nativo de Arles (Gália), e também fez fama percorrendo o mesmo circuito interprovincial de conferências de luxo.

As classes abastadas das cidades imperiais tinham acesso, assim, a um conjunto de saberes que reforçava a sua unidade cultural e social. Isso era reforçado pela própria educação romana, baseada na leitura e memorização de alguns textos e autores clássicos, como Virgílio e Homero, além da ênfase em algumas habilidades consideradas fundamentais para um homem educado, como a retórica e a oratória. Uma importante diferença residia no fato de que a tradição literária e filosófica grega era considerada superior à romana – mesmo no Ocidente latino. Assim, enquanto esperava-se que o membro da elite de uma cidade gaulesa ou hispânica soubesse grego o suficiente para ler os clássicos, o mesmo não era o caso de habitantes das cidades orientais com relação ao latim. Essa desigualdade, já enunciada pelo poeta Horácio na famosa linha “a Grécia capturada capturou o seu feroz conquistador’ (Ep. 2.1.156-7), tornou-se ainda mais evidente com o desenvolvimento da Segunda Sofística, um movimento intelectual que valorizou o passado grego como o verdadeiro berço da civilização e da cultura. Imperadores como os ocidentais Adriano e Marco Aurélio incorporaram essa visão de mundo, adotando princípios filosóficos gregos em seus escritos e políticas públicas.

Essa coesão cultural não teria sido possível sem a crescente integração, pelo centro romano, de membros de diversas elites locais. Adriano chamou a atenção pelo seu sotaque de espanhol, mas chegou ao trono assim mesmo (além de ter aperfeiçoado seu latim). Mas desde o reinado do imperador Cláudio (41-54 d.C.), gauleses eram aceitos no senado romano com o explícito apoio imperial; ao longo dos séculos II e III, o número de senadores de origem grega (ou seja, da parte oriental do império) cresceu continuamente. Ao mesmo tempo, membros das elites locais eram cada vez mais incorporados nos órgãos e cargos de governo imperial. Com isso, o império romano, que no início era uma estrutura de dominação da elite italiana sobre um imenso território, foi transformado em meados do século II em uma estrutura integrada e à qual diferentes elites provinciais tinham acesso. Nem todas as elites se beneficiaram nesse processo: apesar de judeus ocuparem um papel importante em diversas cidades do império, raramente recebiam a cidadania local. Além disso, em duas ocasiões a elite judaica (ou parte dela) se rebelou contra a dominação romana, em 66 e em 132 d.C., o que levou a longas e selvagens intervenções das tropas imperiais.

Apesar de imperfeita, a integração social e cultural promovida pelos séculos de dominação romana era uma realidade. Diferentes línguas, costumes e religiões podiam ser vistos e ouvidos nas ruas das maiores cidades do Mediterrâneo. Isso era particularmente verdadeiro no caso de Roma, cidade transformada em megalópole. Atletas gregos e líbios, comerciantes palmirenos e ibéricos, navegadores egípcios e gauleses, escravos trácios e germanos, senadores e prostitutas vindos dos mais diversos rincões do império: a cidade mais cosmopolita do mundo antigo era o lar de povos de diferentes culturas. Apesar de várias destas populações tenderem a se estabelecer em regiões específicas, como o Subura ou o Trastevere, elas se encontravam no espaço cívico do fórum, nos armazéns do empório e sob os pórticos do Campo de Marte.

Page 6: Um Império Multicultural

Inscrições em hebraico, palmireno e grego ocupavam o espaço urbano lado-a-lado com textos em latim, anunciando os produtos de uma loja ou os serviços de um artesão. Os ritmos da vida festiva da cidade, as cerimônias religiosas e políticas, a experiência da vida comum forçosamente aproximavam estes grupos uns dos outros, tornando-os cada vez mais romanos.

A questão que deve ser levantada, tendo isto em mente, é: até que ponto podemos chamar o império romano de um império multicultural? ‘Multiculturalismo’ é uma expressão utilizada, em nossos dias, quando nos referimos à convivência de culturas diferentes. Este conceito é produto dos processos de descolonização da África e da Ásia, e aos desafios colocados às antigas metrópoles, obrigadas a administrar contingentes expressivos de imigrantes em seus territórios. Ao invés da síntese, a expressão se refere justamente à preservação das diferenças, sejam elas baseadas em grupos étnicos, religiões ou origens geográficas distintos. Se esta convivência não implica em integração via síntese, ela também não aceita a hierarquização ou a subordinação, sejam estas promovidas por políticas governamentais, preconceito racial ou diferenças econômicas. Neste sentido, a resposta a nossa pergunta só pode ser negativa: o império romano não foi um império multicultural. Afinal, a cultura greco-romana era inquestionavelmente tida como superior, seja em Roma ou nas províncias. O processo de romanização foi uma realidade, por mais questionável que seja esse conceito. Mas, ao mesmo tempo, nota-se que ao longo do tempo os sucessivos governos imperiais se abstiveram de promover uma política cultural que visasse suprimir ou anular culturas locais. Além disso, a adoção de instituições, valores e referenciais culturais greco-romanos foram geralmente feitos a partir dos interesses das elites locais, mesmo que com o apoio das autoridades imperiais. Mais importante do que isso, a própria abertura das elites romanas para novos elementos vindos da província faria impossível definir, de maneira simples, o que seria uma ‘cultura romana’ a ser imposta de cima para baixo. Se não era multicultural, o império romano foi o mais próximo desse ideal que o mundo antigo experimentou.

O maior exemplo disso talvez seja o reinado do imperador Septímio Severo (193-211). Nascido em Leptis Magna (moderna Líbia) em 145 d.C., aproximadamente 30 anos após a criação da cidade, Severo era certamente de origem púnica. Após a morte de sua primeira esposa, uma natural de Leptis, ele se casou com Julia Domna, de Emesa na Síria, filha do sacerdote do deus Baal. Severo chegou ao poder por meio de uma guerra civil, na qual eliminou os outros pretendentes ao trono, e seu reinado é considerado um dos momentos de virada na história do império: após ele, seus sucessores assistiriam ao início de uma crise que só foi debelada no final do século III, e da qual o império saiu radicalmente transformado. Durante seu reinado, Severo combateu rebeliões e ataques persas, conduziu construções magníficas em Roma e em cidades de diversas províncias, viajou para conhecer novas regiões e realizou diversos estudos, ‘pois ele foi o tipo de pessoa que não deixava nada, seja humano ou divino, sem ser investigado’, nos dizeres de seu contemporâneo Dião Cássio (76.13). Inovador e tradicionalista, provinciano e cosmopolita, Septímio Severo pode ser considerado – como Adriano o havia sido, quase cem anos antes – uma síntese da diversidade, da riqueza e da complexidade da cultura imperial romana.