Vende-se uma Lisboa multicultural - PÚBLICO
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multicultural
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JOANA GORJÃO HENRIQUES
17/04/2016 - 07:37
Os dados do turismo crescem em Portugal, há bares
lendários a fechar para dar lugar a hotéis, lojas
centenárias em risco e um rol de protestos pelo
“tradicional”. Que filão se segue no turismo em
Lisboa? Como é que a cidade está a vender a sua
diversidade cultural?
O ponto de encontro é junto à Igreja de São Domingos, no
Rossio, em Lisboa. Uma mulher guineense vende
amendoins, e cola (espécie de castanha bem amarga que
tem propriedades antioxidantes e estimulantes e costuma
ser vendida na Guiné-Bissau). “Não se tiram fotografias a
esta senhora”, diz Filipa Bolotinha, responsável pela
Associação Renovar a Mouraria, que organiza tours no
bairro feitas por “guias locais” – hoje é Fátima Ramos,
historiadora, quem vai liderar.
Mais à frente, outra vendedora tem uma banca com cajus,
cola e piticola, cabacera, quiabos, óleo de palma. Os
“turistas” do grupo espreitam os produtos por cima dos
ombros uns dos outros. Mais uns passos e é subir as
Escadinhas da Barroca. Paragem num supermercado com
produtos africanos: bolachas típicas de Cabo Verde,tâmaras, tapetes para rezar “que não podem ter figuras de
animais, nem imagens com olhos”, diz a guia. Lá dentro há
tabaco, farinhas várias, pilões para moer grãos.
Fátima Ramos, professora, 40 anos, faz estes tours de vez
em quando há ano e meio. Quer mostrar a diversidade
cultural e “como é que neste pequeno espaço conseguemestar culturas diferentes e viver de forma pacífica”, culturas
que “representam também uma parte da própria cultura
portuguesa”. “Se formos à praça do Martim Moniz temos de
https://www.publico.pt/autor/joana-gorjao-henriques
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um lado os paquistaneses a jogarem cricket, do outro os
chineses a fazerem as suas ginásticas matinais, do outro um
muçulmano a rezar… E estão ali pacificamente no meio da
comunidade portuguesa”, assinala entusiasmada e
optimista.
Vai olhando à volta para descrever esta “babel”, que
“contraria o mito” porque aqui convivem línguas, religiões e
culturas diferentes mas “não se afastam”. “Quando há
celebrações cristãs, os muçulmanos, hindus participam. Há
cabeleireiros onde têm a imagem de nossa senhorade Fátima ao lado dos hindus”.
A tour andará muito à volta do comércio da zona, isto
porque, justifica, é a actividade a que se dedica grande fatia
da população imigrante do bairro.
David Kong, 35 anos, suíço, olha em volta com óculosescuros. Vai mandando piadas mais sarcásticas. Vive há dois
anos em Portugal e queria conhecer a Mouraria. “Não gosto
muito da gentrificação que estão a fazer, prefiro o meu
(//imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043609?tp=UH&db=IMAGENS)
Fátima Ramos, historiadora (ao centro na fotografia) serve hoje de guia pelo tour na Mouraria MIGUEL MANSO
https://imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043609?tp=UH&db=IMAGENS
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bairro, a Colina de Santana”, comenta. Acha que a guia
deveria mostrar o lado negativo, a sujidade, a prostituição,
as drogas, coisas que ele sabe que existem porque já viu
várias vezes. “Devia expor tudo e depois nós tiramos a nossa
conclusão”.
A historiadora aponta agora: está aqui apraça do Martim Moniz, para onde levou
o grupo, um lugar que já teve várias
funções, e hoje é “alusivo à fusão cultural
que existe na zona”. À frente está o
Mercado de Fusão, com quiosques de
gastronomia de várias partes do mundo.
Atravessamos o centro comercial da
Mouraria: na cave as lojas vendem coisas
de várias partes do mundo, saris
indianos, bijutaria, roupas com padrões
“étnicos”, alimentos e especiarias que só
se encontram mesmo aqui. O grupo
“entope” a entrada da mercearia de onde vem um cheirointenso. O dono gosta desta “invasão” porque em cada
visitante vê um potencial cliente. “É bom para a zona que
está a ficar um bocado morta”, comenta.
Mas esta harmonia não é dominante, como, aliás, notou
David. Não haverá o risco de passar uma imagem
demasiado idílica da diversidade cultural lisboeta,perguntamos a Fátima Ramos? “Na parte institucional,
existem muitas barreiras e dificuldades para o imigrante
poder exercer os seus direitos”, reconhece a historiadora
filha de cabo-verdianos. “Mas no terreno as pessoas
conseguem fazer essa integração de forma mais rápida e
natural”, conclui, pouco antes de apontar para as muralhas
da cidade.
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https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/Lisboa_estrangeiros1.svg
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Uma das visitantes, Joana Jacinto, 24 anos, moradora na
Mouraria há ano e meio, não dá, porém, essa imagem tão
harmoniosa do convívio. “Falo com as velhotas do prédio e
continuam a referir-se a esta multiculturalidade como os
‘monhés’. Continua a haver um bocadinho o choquecultural. Isso tem a ver com uma mudança muito rápida na
Mouraria, os filhos que se foram embora e não querem viver
aqui e estas diferentes culturas a aparecerem e a
revitalizarem as lojas”, analisa.
Não existem dados sobre a diversidade étnica e racial dos
portugueses porque não é permitido esse tipo de recolha dedados, então ela mede-se apenas pela imigração. Na
Mouraria, estima-se que existam cerca de 50
nacionalidades, correspondendo a um quarto dos
habitantes, diz o Censos 2011.
Só no concelho de Lisboa, ao contrário da tendência do resto
do país, é que a população imigrante tem crescido: em 2013
esse crescimento foi de 1,1%, perfazendo um total de quase
46 500 imigrantes, valor que aumentou para 50 mil em
(//imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043610?tp=UH&db=IMAGENS)
De uma mercearia vem um cheiro intenso. O dono gosta desta “invasão” porqueem cada visitante vê um potencial cliente MIGUEL MANSO
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2014 – para se ter uma ideia, no Porto a
população estrangeira é de 8 mil e só
Sintra se aproxima de Lisboa com quase
33 mil (dados do Serviço de Estrangeiros
e Fronteiras relativos a 2014).
Como é que Lisboa, e a área
metropolitana, estão assim a trabalhar a
sua diversidade cultural em termos
turísticos numa altura em que os
números desta área não param de
crescer? (Dados
(https://www.publico.pt/economia/noticia/do-emprego-
ao-peso-na-economia-turismo-vai-crescer-em-toda-a-linha-
1726824) do World Travel & Tourism Council para Portugal
mostram que o contributo directo do turismo para o PIB
português deverá aumentar de 11,3 mil milhões de euros -
6,4% do PIB em 2015 - para 11,7 mil milhões este ano).
Algumas mudanças na Mouraria podem servir de
barómetro. Por isso mesmo os “turistas” que hoje fazem este
percurso com Fátima Ramos interrogam-se. Joana Jacinto
quer saber o que os moradores pensam da injecção de
dinheiro nesta zona.
O bairro foi mudando, sobretudo depois do projecto da
Câmara Municipal de Lisboa de requalificação, com a
renovação de praças e edifícios e o investimento em
(https://static.publico.pt/infografia/2016/po
https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/Lisboa_estrangeiros2.svghttps://www.publico.pt/economia/noticia/do-emprego-ao-peso-na-economia-turismo-vai-crescer-em-toda-a-linha-1726824
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percursos turísticos. Houve a mudança (2011) do gabinete
do então presidente da Câmara, António Costa, hoje
primeiro-ministro, para o Largo do Intendente. Daí tornou-
se pólo de atracção turística, não só para lisboetas como
para restantes portugueses e estrangeiros.
“As pessoas mais novas se calhar vêem aqui oportunidadesde negócio, talvez os mais velhos sintam que há mais
barulho”, por exemplo – responde a guia. “Mas a injecção
para quebrar a exclusão social faz todo o sentido”, sublinha.
CARLA ROSADO
Filipa Bolotinha, que vive e trabalha na Mouraria, intervém
para dizer que “não se deve diabolizar o que está a
acontecer” porque até agora as “pessoas estão contentescom o que aconteceu no seu bairro”. Reconhece que se
chegou a “um ponto em que é possível vir a ser necessária
uma segunda intervenção que tem a ver com a questão do
turismo e dos apartamentos”. Ela própria nota que o grande
problema hoje é que quem quer ir para lá viver não
consegue, “não há apartamentos para alugar”, desabafa para
o grupo. “Conheço muita gente que está à procura e não
encontra”. É verdade que talvez o preço das casas tenha que
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subir, “porque estamos no centro de Lisboa”, mas a questão
é que a escassez se deve ao facto de “toda a gente querer
alugar a turistas”, pois “ganha muito mais dinheiro”.
Independentemente disso, as visitas organizadas na
Mouraria têm como objectivo mudar a maneira de pensar
da população portuguesa sobre as questões damulticulturalidade, diz Filipa Bolotinha, também
responsável pelo projecto Migrantour, uma rede europeia
em que guias locais fazem passeios “interculturais” no qual
este se integra. A ideia é quebrar os estigmas e ideias pré-
concebidas e, ao mesmo tempo, “contribuir para a
integração das comunidades migrantes no seu território, e
da sua apropriação desse território”.
“Já te tinha dito para ires
embora!”
em sempre a convivialidade é pacífica na Mouraria.Dia de semana à tarde e, num passeio pelas ruas
estreitas do bairro que fica numa colina, vêem-se
alguns turistas, poucos moradores. Numa esquina
há um restaurante que já veio em guias turísticos. O dono do
espaço há 30 anos confessa que nem toda essa diversidade é
aceite com bom grado. “A população vai embora, os
‘monhés’ vêm para aqui. Acha que nós gostamos deles?!Pedem 350 euros por uma casa que ninguém dá mas os
‘monhés’ metem-se lá oito e dão…”
Um dos clientes, um jovem com boné e fato de treino, sai de
dentro do restaurante e desata à pancada a um homem de
etnia cigana que está a vender pastilhas elásticas e outros
produtos. “Já te tinha dito para ires embora!”, gritaenquanto lhe bate. O saco preto fica espalhado na rua,
ouvem-se berros. “O homem entra aqui 80 vezes a oferecer
coisas às pessoas, as pessoas dizem que não e ele volta…”,
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justifica o dono do restaurante, desculpabilizando o cliente.
Mas neste bairro há respeito, defende, e “há mais bandidos
fora do que dentro”. Turistas são bem-vindos, e estrangeiros
que queiram investir também.
A florista Fernanda, que vive na
Mouraria há 40 anos, conta que umaagência imobiliária lhe chegou a oferecer
o dobro pelo seu apartamento - não
aceitou. A proliferação de hostels está a
descaracterizar o bairro, acusa. As
mudanças foram muito grandes: “Havia
bairrismo e essa tradição está a acabar”,
lamenta. “Toda esta imigração conseguiuencaixar na Mouraria. Antigamente as
pessoas tinham a sua porta aberta, roupa
estendida e agora vêem-se muitos
chineses, paquistaneses, indianos, que se
infiltram dentro de uma casa, duas ou
três famílias. O bairro começa a não ser
lisboeta. A tradição de fazer o fogareiro à
porta, assar sardinhas e convidar os
vizinhos está-se a perder”.
Timóteo Macedo recebe-nos na sede da
Associação Solidariedade Imigrante, que
tem 26 600 associados de mais de 97
nacionalidades. É um espaço em plena Baixa, num prédio
junto ao Terreiro do Paço. Lá dentro, a mesa tem vários
homens com papéis à frente, ajudados por um dos
funcionários da associação. Atendem dezenas de pessoas
por dia. “O que acontece neste momento é que de repente
transforma-se o Martim Moniz no ‘mercado de fusão’. E
quem frequentava antes? Eram muitos imigrantes que
moravam nas imediações, os seus filhos que iam jogar à
20 14
2013
Setúbal
Faro
Lisboa
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https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/Lisboa_estrangeiros3.svg
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bola. Eram espaços de partilha. Há o fenómeno de
centrifugação e as pessoas são cada vez mais afastadas para
mais longe”, critica.
Timóteo Macedo nem sequer considera positivo para a
imigração a afluência de turistas e a revitalização com a
organização de eventos em lugares como o Mouraria eIntendente. “Ali estigmatiza-se a própria imigração”, critica.
“Faz-se folclore”.
Mouraria, Intendente, Martim Moniz são zonas com muitosimigrantes. Chamam-se turistas para “ver o exótico”. “Não
podemos alimentar estas políticas. Não é de exotismos que a
cidade de Lisboa tem que viver. Acantonam ali a imigração e
muitas vezes a ‘imigração indesejável’: são paquistaneses,
chineses, do Bangladesh e de outras origens. Muitos não
estão documentados, estão em fase de transição, à procura
de se documentarem.”
(//imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043613?tp=UH&db=IMAGENS)
Mouraria, Intendente, Martim Moniz são zonas com muitos imigrantes. Chamam-se turistas para “ver o exótico” MIGUEL MANSO
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A Solidariedade Imigrante organiza eventos, como o Festival
ImigrArte – debates, exposições, teatro e dança – com
várias organizações de imigrantes. O que gostava era de ver
as comunidades fazerem actividades com as suas próprias
dinâmicas, e não algo que é imposto “de cima para baixo”.
Quer o quê?
anuela Júdice está à frente do gabinete da câmara
Lisboa Encruzilhada de Mundos desde 2008 que,
entre outras coisas, organiza o Festival Todos - a
política é promover a interculturalidade e de três
em três anos mudam a zona da cidade onde estão
implementados.
Em 2009, o primeiro Todos “ocupou” a zona da Mouraria e
Intendente, abrindo-a ao turismo, define. Porque “havia
medo de entrar”. Foram depois para São Bento/Poço dos
Negros/zona perto da Assembleia da República, onde houve
muita imigração cabo-verdiana há várias décadas, mas queagora desapareceu - encontraram muitos estudantes
Erasmus. Desde 2015 que o Todos se mudou para o Campo
Santana.
“Queremos passar a imagem de que Lisboa só tem a ganhar
com a incorporação das várias culturas. A diversidade é uma
vantagem que tem sobre muitas outras cidades”, diz, nogabinete em plena Baixa.
A ex-vereadora considera que é positivo ter pessoas de fora,
mesmo nos bairros como a Mouraria, a tirar fotografias, a
visitar. “Nunca mais me esqueço que na primeira edição
convidámos um fotógrafo francês, Georges Dussaud e o
cartaz desse ano foi este ‘quer frô’ [nome pejorativo que sedá aos vendedores de flores de origem sul asiática] numa
festa da Senhora da Saúde na Mouraria [mostra o cartaz
com a fotografia de um senhor com um ramo de flores]. O
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facto de ele ter sido olhado e fotografado por um estrangeiro
e o facto de poder mostrar foi tão, tão importante para a
auto-estima…Agarrou-se a nós e disse: ‘muito obrigado,
vivemos escondidos e só saímos à noite para vender as
flores’.”
MIGUEL MANSO
Perguntamos à responsável por um gabinete que tem comolinha de acção a diversidade se tem noção de que acabou de
usar uma expressão discriminatória - “quer frô”. “Para mim
não é de todo pejorativa ou racista, é ternurenta. O facto de
estar a vender flores - foi a expressão que usei”.
Além do Todos, o gabinete organiza a semana da harmonia
inter-religiosa e o dia internacional da língua materna, masestes eventos não são propriamente pensados como atracção
turística – não há um gabinete camarário focado no turismo
da diversidade cultural.
Há uns tempos, uma jornalista francesa questionou a
também secretária-geral da Casa da América Latina sobre
porque é que em Lisboa não havia nenhum monumento,
mural ou museu dedicado à escravatura – nada, quando
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Portugal foi um dos principais actores do comércio de
escravos transatlântico. Não consegue encontrar nenhuma
razão. “E eu nunca tinha pensado nisso”, confessa.
Neste momento, o Museu Judaico
(https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/patrao-da-
altice-apoia-construcao-do-museu-judaico-de-lisboa-1725493) tem inauguração planeada para 2017 – foi a
câmara que teve que ir procurar o financiamento, diz,
apesar do apoio da fundação do patrão da Altice, Patrick
Drahi, dono da Portugal Telecom.
As memórias apagadase facto, mesmo no circuito comercial é mais fácil
encontrar passeios ligados à cultura judaica do que
africana, por exemplo.
A Lisbon Walker é uma das empresas de animação turística
que fazem os dois tipos de passeios. O historiador José
Antunes vai hoje fazer para o PÚBLICO um condensado de
um percurso que dura umas três horas. Costuma avisar:
“Não vão ver nada, eu vou-vos contar histórias, não há
nada”. Trabalha com a imaginação: além de ter existido
Inquisição durante séculos que eliminou elementos da
cultura judaica, houve o terramoto de 1755. José Antunes
percorre as ruas de Alfama onde foi identificada umasinagoga e aquela que ainda hoje tem o nome de Rua da
Judiaria (bairro judeu). “Não há nada de palpável”, repete.
A única sinagoga que existe em Lisboa, construída no início
do século XX, não tem fachada para a rua porque os templos
não católicos não podiam estar visíveis e fica na Rua
Alexandre Herculano.
A judiaria de Alfama era pequena, com uma comunidade
“supostamente mais pobre”, sublinha. A grande judiaria era
na baixa, próximo da Praça do Município (havia ainda outra
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/patrao-da-altice-apoia-construcao-do-museu-judaico-de-lisboa-1725493
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junto ao Convento do Carmo).
Costuma passar pela Praça do Comércio para falar das
origens da presença judaica, ponto que fica próximo das três judiarias em Lisboa - e aqui chegaram a acontecer autos de
fé, nota. Na Casa dos Bicos refere a forma como se
organizava a vida e negócios dos judeus. Perto da Sé há um
painel de Padre António Vieira onde fala dos “filossemitas”,
amigos de judeus. Na Mouraria faz o contraponto entre as
duas comunidades, os mouros e os judeus. Na Praça da
Figueira descreve o Hospital de Todos os Santos, construído
com “muita pedraria trazida dos cemitérios dos mouros e
judeus, saqueados”. Termina no Rossio, com o massacre dos
judeus - não vai à Sinagoga de Lisboa porque é preciso
marcar, há fortes restrições por causa da segurança e a
fachada está escondida. Mas dá números sobre a
actualidade: o último Censos identificou 5 mil judeus.
A tour é procurada por americanos, israelitas, ingleses,
holandeses, belgas. É o terceiro passeio para o qual têm
mais pedidos - os dois primeiros são genéricos.
(//imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043620?tp=UH&db=IMAGENS)
No percurso da Lisboa judaica o historiador José Antunes avisa: "Não vão vernada, eu vou-vos contar histórias, não há nada." Na fotografia, memorial aomassacre dos judeus em 1506 MIGUEL MANSO
https://imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043620?tp=UH&db=IMAGENS
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Paramos, em Alfama, junto ao Chafariz d’El Rei, local
simbólico da presença judaica - D. Manuel, em sequência do
massacre dos judeus em 1506, tinha feito saber que as bicas
no chafariz seriam usadas, cada uma, por marinheiros,
escravos, mouros, cristãos novos, segundo José Antunes.
Este é também um marco da presença africana em Lisboa,
até por causa do quadro de um anónimo do século XVI onde
aparece uma grande quantidade de população africana.
“Com certeza que o que o autor fez foi concentrar na mesma
imagem muito do que viu em Lisboa”, interpreta.
José Antunes é dos poucos a fazerem a tour da Presença Africana, e isto surpreende já que é bem antiga. Fazendo
uma busca na Internet não se encontram referências a
circuitos com este tema noutras agências.
O próprio José Antunes faz muito menos este tour do que o
da Presença Judaica (tem uma média de um pedido
semanal). Estima que, por ano, a tour da Presença Africana,desenhada há uns cinco anos, seja feita umas “quatro ou
cinco vezes”. E é procurado sobretudo por americanos e
portugueses. “Diz-se que Portugal é uma nação de tráfico de
escravos, mas em sítio algum me lembro de terem dito que
em Lisboa havia 15% de africanos no século XVI - o que
mostra uma presença muito mais forte do que a que aparece
nos livros.”
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José não vê qual seja o entrave em mostrar a História como
ela foi. “Era uma obrigação ter um Museu da Escravatura, e
isso pode trazer vantagens. A parte da História não é tão
agradável, continuamos a pensar nos Descobrimentos como
‘Portugal deu novos mundos ao mundo’.”
Até mesmo a nível turístico, “não podemos ter paninhos
quentes”, salienta. “Não vamos assumir que Portugal era um
país escravocrata porquê!?”
A tour passa sobretudo nos lugares da história da
escravatura e normalmente a pé: Largo de São Domingos,
Praça do Comércio, Chafariz, Poço dos Negros, Mouraria,
Cais do Sodré, Madragoa - o antigo Mocambo
(https://www.publico.pt/portugal/noticia/mocambo-o-
bairro-mais-africano-da-cidade-1662175) (lugar de refúgio
em umbundo, língua angolana). Gosta de combinar com a
comida africana na Baixa, terminando com a presença
africana actual - fala também da casa dos estudantes do
império como marco da negritude, do facto de existirtrabalho forçado em São Tomé e Príncipe, por exemplo, até
ao século XX, ou da ausência de negros em lugares de
destaque na sociedade portuguesa actual.
(//imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043623?tp=UH&db=IMAGENS)
https://imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043623?tp=UH&db=IMAGENShttps://www.publico.pt/portugal/noticia/mocambo-o-bairro-mais-africano-da-cidade-1662175
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É em Lisboa, Cidade Africana — Percursos e Lugares de
Memória da Presença Africana, Séculos XV-XXI , de Isabel
Castro Henriques e Pedro Pereira Leite (disponível, aliás, na
Internet) que se encontra a presença da escravatura na
cidade. E é essencialmente nela que se baseia outra tour do
género feita por Naky Gaglo, imigrante do Togo (o circuito é
anunciado no site trip4real.com (http://trip4real.com/)).
Sarah e Elisha James, casados, são dois afro-americanos de
Nova Iorque que estão de visita a Lisboa. Ela é a segunda
vez que vem, depois de ter vivido em Espanha e de ter
visitado a capital lisboeta há uns anos. Na altura ficou
surpreendida pelo facto de haver tanta gente negra na rua
quando em Espanha “está escondida”. “Não é assim tãocomum encontrar tours onde se aprende sobre cultura
africana”, diz Sarah.
Naky Gaglo, que estuda Geografia, faz este percurso há dois
anos – ao todo, umas 14 vezes desde então, sobretudo com
turistas afro-americanos. Começa pela Praça do Comércio
para se falar da relação com o Rio Tejo e a partida e chegada
(//imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043639?tp=UH&db=IMAGENS)
O casal afro-americano Sarah e Elisha James vieram de Nova Iorque e estão devisita a Lisboa. Participam num tour pela capital naquilo que tem para mostrar deraízes africanas. O guia é Naky Gaglo, imigrante do Togo MIGUEL MANSO
https://imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043639?tp=UH&db=IMAGENShttp://trip4real.com/
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de navios negreiros no século XV. Sarah e Elisha vão
fazendo várias perguntas para as quais o guia não tem
respostas prontas. Qual era a diferença entre a escravatura
em África e na Europa, como eram tratadas as mulheres e
crianças, há escravos que a determinada altura se libertam,
como é a convivência hoje entre os negros e os brancos em
Portugal?
A chuva que cai neste dia de Março é forte, é preciso ir para
debaixo de um telheiro. Para-se agora em frente à estátua do
Marquês Sá da Bandeira, na Praça D. Luís I, junto ao
Mercado da Ribeira. Ali se vê a homenagem ao homem que
publicou os decretos que iriam abolir o comércio de
escravos (1836) e a escravatura (1869) em todo o territórioportuguês. Aos pés do marquês uma figura que representa
uma mulher, supostamente Fernanda do Vale, uma
escritora e toureira mestiça, conhecida por ‘Preta Fernanda’,
segundo Isabel Castro Henriques.
Sarah James gosta deste tipo de turismo onde se ganha
outra perspectiva da cidade que está a visitar, e se tem aoportunidade “de ver mais profundamente a história de um
país”. A tour tem muita história mas à medida que se avança
repara que há muita coisa do passado que ainda está
presente diz, enquanto sobe as escadinhas longas e
íngremes da Bica. "O que é que as pessoas negras em
Portugal sabem desta história e quanto é ensinado nas
escolas?”, quer saber.
Iremos parar na Rua das Gáveas, no Bairro Alto, onde
viveram vários africanos; na Igreja de Santa Catarina, onde
há uma pintura com um casal de africanos; em Cruz de Pau,
onde se infligiam os castigos aos escravos; e logo a seguir no
Poço dos Negros onde “em 1515 D. Manuel I mandou
construir (o poço) para que aí fossem lançados os ‘escravos
que falecem nessa cidade’”, como se lê no guia de
Henriques.
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O
Antes de terminar a visita mais de cinco horas depois numa
tasca angolana no Martim Moniz, Naky Gaglo ainda pára no
Largo de São Domingos para mostrar a Igreja - que abriu as
portas à confraria de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, protectora dos africanos.
“Levou-nos a muitos sítios onde se consegue perceber a
história”, comenta Elisha James no final. “Foi muito cool, e
estou contente de ter trazido ténis porque andámos
imenso!”
Desconstruir estereótipos
grupo de quase 30 pessoas que hoje visita a Cova da
Moura, na Amadora, tem um interesse específico -
são do núcleo de Acção Social do Instituto Superior
de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). O estudante
Afonso, 20 anos, presidente do núcleo, explica que querem
ver de perto realidades diferentes e acha este tipo de visitas
essenciais para “desconstruir estereótipos”.
Por isso quiseram conhecer o projecto desenvolvido pela
Associação Moinho da Juventude, que apoia a comunidade
em diversas frentes desde que foi fundada em meados dos
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anos 1980 (oficialmente em 1987) por uma belga, Godelieve
Meersschaert, e o seu marido Eduardo Pontes. O bairro, que
nasceu nos anos 1960, foi ganhando população
essencialmente vinda do Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa.
Estamos em frente a um dos grandes graffitis que seespalham pelas ruas da Cova da Moura. Olhamos para o
topo da colina e ali está Amílcar Cabral, herói das
independências e uma das grandes referências da negritude.
A sua boina e os óculos são inconfundíveis – é o símbolo de
um bairro que tem na sua maioria habitantes de origem
cabo-verdiana.
Bino, ou Silvino Furtado, faz as visitas do Sabura, como se
chama o projecto de “tour” pelo bairro, há “cerca de 10
anos”. Criado em 2004, o Sabura quer quebrar os estigmas
ligados a um bairro que está na mira da polícia e de alguns
media pelos piores motivos (droga, violência). “Como
moradores essa não é a nossa percepção, e quisemos criar
algo para as pessoas conhecerem melhor o trabalho daassociação e o quotidiano do bairro, mostrar que é como
outro qualquer.”
Outra das ideias foi criar parcerias com a economia informal
como os restaurantes, mercearias, cabeleireiros e inseri-los
no projecto -há a hipótese de se fazer a marcação para jantar
ou almoçar por 7,5 euros, menu completo. Recebemportugueses mas também estrangeiros.
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Os moradores já estão habituados, conta Bino, 33 anos,
auxiliar de educação e animador cultural. “Para o bairro
também é bom, abre para fora e é uma oportunidade para
travarem relações com outras pessoas. Se não houvesse as
visitas muita gente nunca viria aqui.”
As visitas variam consoante o grupo - a padrão passa pelas
várias valências do Moinho da Juventude, mas se se quiser
focar, por exemplo, nos cabeleireiros, ele também o faz.
Paragem agora no Espaço Jovem, onde funciona um estúdio
de gravação, para Bino fazer a introdução. Sobem-se depois
umas escadas que vão dar ao Espaço Polivalente, e onde de
uma cozinha sai o cheiro a almoço. Aqui funciona a cantina
social, onde dão assistência a famílias mais carenciadas. O
espaço é luminoso e tem nas paredes alguns quadros. Serve
para ensaios de grupos como o de batuques Finca Pé. Vê-se
material que costuma ir nas Festas de Kola San Jon, a festa
tradicional de São Vicente e Santo Antão celebrada aqui há
anos.
(//imagens1.publico.pt/imagens.aspx/1043641?tp=UH&db=IMAGENS)
As visitas pelo bairo da Cova da Moura, na Amadora, existem há já dez anos DR
https://imagens1.publico.pt/imagens.aspx/1043641?tp=UH&db=IMAGENS
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Visitam-se outros espaços, percorrendo as ruas íngremes,
enquanto nos cruzamos com moradores: o Centro de
Actividades de Tempos Livres, que abre às 7h30 - é Bino
quem vai buscar os meninos à creche, onde alguns chegam
às 6h; o Gabinete de Inserção Profissional, onde se
desenvolvem projectos de empreendorismo; o Ninho dos
Jovens onde as crianças e bebés estão a fazer ginástica –aqui à tarde trabalha-se com o “pessoal mais velho” a quem
se ensina a ler e escrever; a Biblioteca e centro de
documentação, que era uma antiga garagem e foi adquirido
com um donativo da fundadora do Moinho com o dinheiro
do prémio Mulher Activa 2005.
Álvaro, 29 anos, é de Moçambique e estáem Portugal há seis meses para estudar
no primeiro ano do curso de Acção Social
- já é funcionário no Instituto Nacional
de Segurança Social. Visto de fora,
parece-lhe que o próprio bairro fica
motivado com estas visitas, mas é
importante que não se passe aos
habitantes a sensação de que estão a ser
objecto de uma pesquisa ou de auditoria.
Uma hora e meia de visita depois, as estudantes Sara
Ramos, 20 anos, e Eurídice Maurício, 22, não têm dúvidas
de que já mudaram a ideia que tinham da Cova da Moura.
“Quando aparece nas notícias é sempre de forma negativa, e
as pessoas constroem rótulos sobre quem vive aqui: é tudo
bandido”, diz Eurídice Maurício. “E não é assim. Vi pessoas
que se conhecem bem e um trabalho em equipa para mudar
a realidade de quem está excluído.”
Sara Ramos defende que este tipo de visitas deveria existir
em todos os bairros sociais.
Para o bairro também é
bom, abre para fora e é
uma oportunidade para
travarem relações com
outras pessoas. Se não
houvesse as visitas muita
gente nunca viria aqui.”
Silvino Furtado, animador cultural
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O
A visita ajuda a desconstruir estereótipos - mas convence a
ir lá morar, por exemplo? “Se tivesse que ser”, responde
Eurídice. “Acho que nem as pessoas que vivem aqui
gostariam. Porque é uma forma de exclusão social - o facto
de estarem aqui é exclusão.” Sara completa: “Por mais que
as pessoas queiram mudar a imagem, o pensamento vai
sempre para aquele lado.” Mariana Castelo completa: “Sãoprecisos muitos anos para mudar uma coisa que aconteceu
em cinco minutos. Até podem acontecer noutro lado, mas só
o facto de ser aqui…”.
À saída, uma moradora, Isabel Andrade, que é ama há 12
anos, diz-nos que gosta de ver gente de fora a visitar a Cova
da Moura: é importante sentir que as pessoas não têm medode entrar.
A suspensão da realidade
ideal era que as entradas e saídas destes territórios
como a Cova da Moura ou a Mouraria fossem
naturais, que as pessoas pudessem cruzar as várias
esferas - a comunal do bairro e a mais pública,
analisa António Brito Guterres, investigador de Estudos
Urbanos no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa (ISCTE). “Sabemos que a cidade está construída de
tal forma segmentada que é quase impossível transpor essas
barreiras”, continua, sentado num espaço comunitário da
Curraleira, um dos vários bairros sociais onde já trabalhou.
No entra e sai de jovens e crianças, toda a gente o
cumprimenta, com afecto.
“Lisboa é uma cidade sobre a qual existe o discurso de que
há ainda muito por explorar em termos turísticos mas tem
um problema: o conteúdo desse turismo tem sido o espaço
territorial de 500 mil pessoas (o centro do concelho) quando
a escala de Lisboa é muito maior”, continua.
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Brito Guterres problematiza a questão dos percursos “pelos
ditos bairros problemáticos”. “A que é que isso responde? E
a quem responde? O que desenvolvem?”
O posicionamento, mesmo dentro dos
próprios bairros, é naturalmente
diferente de pessoa para pessoa. Haveráquem ganha com as visitas, haverá quem
não gosta. Mas de qualquer forma há
sempre diferenças entre os circuitos na
Cova da Moura e da Mouraria, nota: no
primeiro, o envolvimento comunitário
que permite o apoio entre os moradores
fica exposto quando as pessoas lá vãoporque o espaço público é mais uma
extensão do espaço privado; já no
Martim Moniz essa invasão não será tão
forte porque “o espaço é público per si ”.
Por outro lado, alerta: “Há uma romantização à volta de
percursos de vida que não são bons, de pessoas que saem às5h para trabalhar….”
Acontece também uma contradição: o empreendedor que
aparece para dinamizar o bairro ser uma pessoa de fora e no
bairro desenvolverem-se actividades de economia paralela
em que não se pode fazer uma cachupa em casa para vender
aos visitantes por causa da ASAE. Ou seja, “mitiga-se umdeterminado tipo de vida à volta desses circuitos, ao mesmo
tempo que as políticas públicas censuram o que vem de uma
economia doméstica.”
Na Quinta da Fonte é relativamente larga a avenida
principal pela qual se distribuem os prédios pintados de
uma cor amarelada, blocos de habitação social e outros de
cooperativa onde vivem mais de 2500 pessoas, muitos de
origem africana e cigana.
Lisboa é uma cidade sobre
a qual existe o discurso deque há ainda muito por
explorar em termos
turísticos mas tem um
problema: o conteúdo
desse turismo tem sido o
espaço do centro, quando a
escala de Lisboa é muito
maior”
António Brito Guterres, investigador
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É de manhã, e há jovens, em grupos, sentados em muros a
conversar.
A “receber” os visitantes está uma enorme fachada com
graffiti, fruto do festival O Bairro i o Mundo, uma
colaboração entre o Teatro Ibisco (que é mais do que um
teatro, tem projecto de emprego, por exemplo) e a CâmaraMunicipal de Loures, com apoio do programa Escolhas do
Alto Comissariado para Migrações. Hoje organizam visitas a
esta galeria de arte pública.
Eunice Rocha, produtora do Ibisco, vai contando a história
do festival que começou em 2013 neste lugar e que no ano
seguinte foi para a Quinta do Mocho, também em Loures.
Os dois bairros são conhecidos como sendo rivais e o
trabalho do teatro em várias actividades tem conseguido
quebrar algumas barreiras. “As pessoas temiam entrar aqui,
não se sentiam confortáveis”.
(//imagens4.publico.pt/imagens.aspx/1043644?tp=UH&db=IMAGENS)
Na Quinta da Fonte os visitantes são recebidos por fachadas com graffiti, fruto dofestival O Bairro i o Mundo RUI GAUDÊNCIO
https://imagens4.publico.pt/imagens.aspx/1043644?tp=UH&db=IMAGENS
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O bairro hoje aparece nos media por bons motivos, mas
normalmente era pela “má fama”, rixas e violência. Verdade
que muita gente nunca sai do bairro, nem tem noção do que
se passa lá fora, admite Carlos, morador. Mas vir gente de
fora entrar com mais confiança anima, defende. Eunice
complementa: “Só podemos estar aqui se a comunidade nos
der essa confiança, porque se houver alguma coisa que nãoseja do agrado rapidamente somos corridos.”
Estamos em frente de uma parede de um prédio em que há
quatro rostos pintados a graffiti, rostos de diferentes
“heróis”, entre eles Salgueiro Maia e Che Guevara,
desenhados a negro. Houve gruas, pessoas a ajudar e a
aproximarem-se, debate, algumas lutas sobre quem colocarali e negociações. “A equipa de produção escolheu Salgueiro
Maia”. Eles queriam Amílcar Cabral. “O Salgueiro Maia não
lhes dizia nada”, comenta Eunice Rocha.
Em baixo, noutra fachada, o rosto de Nelson Mandela a
preto e branco impõe-se, com algumas citações do líder sul-
africano. Atrás de nós há um relvado enorme que circundaeste bairro. Há outros graffitis cheios de cor. David Luís, 34
anos, que tem uma empresa de remoção de graffitis,
intervém: “Ao princípio muitos deles ficaram desconfiados,
é normal. Há cinco anos vocês não podiam estar aqui a tirar
fotos, eram assaltados. Hoje não. Há muitos jovens que não
saem do seu local de conforto, mas quando saírem vão
sentir-se incomodados porque pararam no tempo. Vão à
procura de quem esteve a dar formação para irem para fora.
Mas também queremos pessoas que venham cá para dentro:
pessoas, empresas e tudo mais porque o bairro continua a
precisar de ajuda, de manutenção, e até de manutenção
psicológica.”
A poucos minutos de carro da Quinta da Fonte está a Quinta
do Mocho, com uma maioria de população angolana, cerca
de mil famílias. O guia agora é Edilson Nunes, 31 anos - ou
Deidei.
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O impacto dos 50 murais nas fachadas
dos prédios é poderoso. O título galeria
de arte pública faz jus ao nome: é
exactamente essa a sensação que se tem
enquanto se circula nas pequenas ruas do
bairro: estamos a caminhar numa galeriaa céu aberto.
A maioria dos artistas é de fora do bairro
e reconhecidos. Deidei mostra-os
orgulhoso, passa por murais de artistas como Utopia,
Tamara: Vhils é o mais conhecido e desenhou o rosto de um
DJ do bairro, Nervoso, causando polémica já que não éfigura consensual.
Podemos ver o rosto de Amílcar Cabral, feito por António
Alves; a figura de alguém a usar uma máscara,
representando o gesto do que era entrar e sair do bairro
onde era problemático dizer que se vivia. “Às vezes as
pessoas escondem-se quando vão à procura de emprego”,comenta Deidei. Antes o bairro tinha assaltos e “coisas do
género”, continua, e isso “era uma forma de gritaria para
chamar a atenção da sociedade e dizer que também
existíamos”. “Hoje temos pessoas que trabalham para o
positivismo. Somos conhecidos pelo que fazemos, pela
música.”
Vamos passeando entre a galeria, há até murais com a
chanceler alemã Angela Merkel. Deidei vai contando as
histórias à volta da pintura de determinados murais - sabe
de cor os nomes dos artistas. Os moradores olham
indiferentes a nossa passagem. A estender roupa, Gilberto
diz-nos que é indiferente abrir a janela e ver a parede da
frente pintada com um grande mural. Sentadas junto a uma
árvore, duas jovens moradoras, Mariana e Leo, respondem
que gostam de ver as pinturas mas uma delas comenta: “Já
tem muitos desenhos, depois acaba por ficar esquisito. Não
Queremos pessoas que
venham cá para dentro:
pessoas, empresas e tudo
mais porque o bairro
continua a precisar de
ajuda, de manutenção, e até
de manutenção
psicológica.”
David Luís
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tem graça ficar em todos os prédios.” As visitas ao bairro de
turistas é “bom” para “não dar aquela fama”. “Não é um
bairro pior que os outros. É normal. Antigamente era mais
coiso, agora não se vê tanta confusão.”
A obra de arte número 50 é da mexicana Eva, uma das
artistas mais jovens, com 23 anos. A maioria dos artistas sãode fora do bairro e fora do país - não são remunerados. “No
bairro até existiam artistas mas de tal categoria não”,
justifica Deidei. Começaram por 10 artistas, sem nunca
pensar que as candidaturas podiam crescer tanto - e a partir
daí foram-se oferecendo cada vez mais artistas. Hoje há uma
lista de 30 à espera de trepar as paredes dos prédios da
Quinta do Mocho.
As intervenções e esta abertura ajudaram o bairro a superar
alguns dos problemas. Mas como diz Eunice Rocha: “Não
podemos ser demasiado românticos. Estamos a falar de
coisas bonitas mas é óbvio que há problemas diários e
estamos aqui para ajudar a solucionar esses problemas:
como em todo o lado, a pequena criminalidade continua.”
Regressamos à Curraleira, onde por enquanto não há nada
de turístico para mostrar, aparentemente. Com o
crescimento do turismo em Portugal e em Lisboa o mais
natural é que se comecem a explorar cada vez mais os
circuitos da diversidade em termos comerciais, prevê António Brito Guterres: a Lisboa do pós-colonialismo, a
Lisboa cigana, a Lisboa africana, do bairro excêntrico onde
ainda há barracas... “Lisboa é tão segmentada que isso vai
ser explorado de certeza. Quem vai ganhar? E como se vai
lidar com a incoerência de se ir à procura de um tema e
forma de estar, que depois as políticas públicas castigam?”
O paradoxo, continua, é que de repente há uma série de
fronteiras que podem ser pacotes turísticos numa cidade
que não circula, que tem várias diversidades que não se dão
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entre si. “A existência desse circuito turístico quase é uma
demonstração de que há uma cidade que exclui, que está
segmentada.”
Na verdade, os circuitos turísticos acabam por assinalar
ainda mais as diferenças: aqui estamos nós, ali estão eles.
“Sempre que fazemos um tour desses há uma suspensão da
realidade, há muita mediação no meio portanto acabamos
por ter uma análise estética, pré-concebida e não
aprofundada. Continua a ser um consumo e não é muito
diferente de ir ver um espectáculo em que não me relaciono
mas consumo.”
COMENTÁRIOS
17/04/2016 12:48
Camila Pohlmann
Rio de Janeiro, Brazil - Lisbon, Portugal
Ótimo artigo. A respeito do comentário sobre por que não se falanos escravos eu também já me perguntei o mesmo. E a respostaque encontrei é que o português médio não acha que teveenvolvimento na escravatura. Já ouvi, mais de uma vez: "todos ospaíses usavam mão de obra escrava e o português ia lá na Africae não pegava ninguém, já os recebia das tribos e 'só' o que faziaera levar a quem queria comprar". Acho uma visão, no mínimo,ingênua, mas já a escutei mais de uma vez.
17/04/2016 19:46
Maraf
Não sei como classifica o "português médio".Talvez se esteja a referir às gerações mais velhaseducadas durante o tempo da ditadura, comquem terá dito oportunidade de conversardurante alguma estadia em Portugal. Dificilmenteencontrará alguém de 30 anos ,que tenhaterminado o Ensino Secundário a dizer que osportugueses não tiveram envolvimento naescravatura. Agora duvido que um brasileiro de30 anos saiba que após a independência doBrasil os heróis brasileiros, "lutadores contra oopressor colonial português" (como é aprendidonas escolas brasileiras) decidiram manter aescravatura por mais 70 anos. Muitoconveniente...infelizmente a história tem sido
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usada para construir sentimentos nacionalistas.Reveja o que aprendeu na escola à luz desteprincípio e surpreenda-se.
17/04/2016 20:19
Suave
Não foi assim que aprendi na escola. Este
contexto “opressor colonial português” é umcontexto africano. No Brasil não foi destamaneira. O que aprendemos foi o seguinte:Quando Dom João abandonou Portugal a sortedos franceses de Napoleão, fugiu com todo oseu séquito para o Brasil de forma a criar umnovo Portugal no Brasil já que nem por sombrasacreditava que o povo português, liderado pormilitares ingleses, poderia rechaçar as tropasfrancesas. Após a improvável vitória do povoportuguês, o Rei voltou a Portugal com apromessa de que o Brasil deixaria de ser umacolónia e passaria para o estatuto de um EstadoPortuguês.
17/04/2016 20:19
Suave
Quando chegou a Portugal, quebrou a promessae o nosso Imperador Dom Pedro I declarou a
independência as margens do Rio Ipiranga faceas novas exigências de remessas do Brasil paraPortugal. Portanto, não foi uma independênciagerada pelo ódio mas pela estupidez e burricedo Rei daquela época.
17/04/2016 20:19
Suave
Por outro lado, percebo o ponto de vista de
Camila. A escravatura é ainda um assunto tabuem Portugal. Assim como a descolonização de África. Alias, há um artigo espetacular do Públicoa expor os problemas e perseguiçõesacadémicas toda vez que alguém tenta levantaresta dado histórico de forma a encarar osfantasmas do passado. Já no Brasil, podemosdizer que não é um assunto tabu. Basta ver aquantidade de filmes e novelas a esmiuçar estatriste passagem da história do Brasil. Portugal
hoje sabe mais acerca da escravatura de séculospassados no Brasil por causa do Brasil noentanto sabe muito pouco da escravatura vividaaté a década de 70 das antigas colóniasafricanas.
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17/04/2016 11:47
Nuno Pessoa
Bom artigo. Parabéns!