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EROS, PHILIA E ÁGAPE EM KIERKEGAARD Gilmar Zampieri Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, ó Deus do amor, de quem provém todo o amor no céu e na terra: Tu, que nada poupaste, mas tudo entregaste em amor; Tu que és amor, de modo que o que ama só é aquilo que é por permanecer em Ti! Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Tu que revelaste o que é o amor; Tu, nosso salvador e reconciliador, que deste a Ti mesmo para libertar a todos! Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido! (S. Kierkegaard) Resumo: O artigo reconstroi o argumento de Kierkegaard na defesa do amor cristão em constante relação com outras formas de tratamento do amor, seja em relação ao eros platônico, seja em relação a philia aristotélia, seja em relação ao amor romântico cantado pelos poetas. A novidade cristã no tratamento do amor é pensada filosoficamente sem nunca perder o horizonte do qual parte, qual seja, a perspectiva da fé teológica. Como resultado da argumentação, advém uma ética da alteridade pré-figurada bem antes das contemporâneas filosofias do outro. Palavras-Chave: eros, philia, ágape, alteridade Abstract: The article reconstucts the argument of Kierkegaard in the defense of the Christian love in constant relation with other forms of treatment of the love, either in relation to the platonic eros, either in relation the aristotelia philia, either in relation to the romantic love sung by the poets. The Christian newness in the treatment of the love is thought filosoficaly without never losing the horizon of the which part, which is, the perspective of the theological faith. As Mestre em teologia e filosofia pela PUCRS, professor de teologia na ESTEF e de filosofia no Centro Universitário La Salle (Unilasalle), Canoas, RS.

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EROS, PHILIA E ÁGAPE EM KIERKEGAARD

Gilmar Zampieri

Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, ó Deus do amor, de quem provém todo o amor no céu e na terra:Tu, que nada poupaste, mas tudo entregaste em amor;Tu que és amor, de modo que o que ama só é aquilo que é por permanecer em Ti! Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Tu que revelaste o que é o amor; Tu, nosso salvador e reconciliador, que deste a Ti mesmo para libertar a todos!Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido!(S. Kierkegaard)

Resumo: O artigo reconstroi o argumento de Kierkegaard na defesa do amor cristão em constante relação com outras formas de tratamento do amor, seja em relação ao eros platônico, seja em relação a philia aristotélia, seja em relação ao amor romântico cantado pelos poetas. A novidade cristã no tratamento do amor é pensada filosoficamente sem nunca perder o horizonte do qual parte, qual seja, a perspectiva da fé teológica. Como resultado da argumentação, advém uma ética da alteridade pré-figurada bem antes das contemporâneas filosofias do outro.Palavras-Chave: eros, philia, ágape, alteridadeAbstract: The article reconstucts the argument of Kierkegaard in the defense of the Christian love in constant relation with other forms of treatment of the love, either in relation to the platonic eros, either in relation the aristotelia philia, either in relation to the romantic love sung by the poets. The Christian newness in the treatment of the love is thought filosoficaly without never losing the horizon of the which part, which is, the perspective of the theological faith. As result of the argument, they an ethics of the other before the contemporaries philosophies of the other.Keywords: eros, philia, ágape, other

Platão imortalizou Sócrates em seus diálogos. Dos diálogos, dois são decisivos: o

Fédon apresenta Sócrates na morte; o Banquete apresenta Sócrates na vida. O Banquete é um

elogio ao amor. Mas é também um elogio a Sócrates, feito por Platão através da boca de

Alcibíades. O elogio a Sócrates é um elogio contraditório tecido por fios ora de repulsa, ora

de atração, ora de queixa, ora de defesa apaixonada. Sócrates, o amante que se confunde com

o amor, com o amado, confunde Alcibíades, que não consegue distinguir a sutileza socrática

que, ao mesmo tempo que seduz os belos jovens, espera destes que fiquem seduzidos pela

Mestre em teologia e filosofia pela PUCRS, professor de teologia na ESTEF e de filosofia no Centro Universitário La Salle (Unilasalle), Canoas, RS.

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filosofia. Um irônico, esse Sócrates. Como todo irônico, difícil de ser pego. Mas não para

Kierkegaard, que bem domina a arte da ironia. Kierkegaard conhece bem o calcanhar de

Sócrates. E lhe acerta um flecha venenosa no ponto fraco. E qual o ponto fraco? A sua

concepção de amor. Pelo menos na comparação com outra concepção, a concepção cristã. O

amor platônico, cuja modelo é o próprio Sócrates, é o amor idealizado, por assim dizer,

abstrato. Abstrato porque não se retém no particular concreto – Alcibíades é prova disso em

todas as investidas frustradas de ter Sócrates como amante – mas alça vôo sem retorno, como

fica patente na escalada do amor onde há um evidente abrir mão do objeto concreto em

direção a um objeto metafísico do desejo, o bem e o belo em si que estão muito além de

qualquer corpo belo real. Além do que, o amor platônico se define por uma carência, uma

falta, pois amor é igual a desejo e desejo é desejo de algo que não se tem. O amor é, assim,

uma carência, um desejo. Bem diferente é o amor cristão que é o amor ao próximo, o primeiro

e concreto tu, fruto não de uma carência essencial, mas de um transbordamento de ser

essencial. Tão diferentes são os dois amores!

Se um dos melhores elogios feito ao amor é o de Sócrates, no Banquete de Platão,

tanto que até hoje desperta admiradores naquilo que ficou conhecido como sendo o amor

platônico ou o amor idealizado, o melhor elogio feito ao amor cristão, ou um dos melhores,

encontra-se numa obra de Kierkegaard intitulada As Obras do Amor. Nela Kierkegaard

demarca as fronteiras entre o amor (éros) platônico e o amor (ágape) cristão.

Kierkegaard opõe o amor cristão, o amor ao próximo como a si mesmo, não só ao

amor platônico, que abre mão do concreto em direção ao ideal, mas também ao amor de

amizade (philía) aristotélico e ao amor romântico e apaixonado cantado pelos poetas,

sobretudo em Shakespeare. A philía aristotélica supõe semelhança e reciprocidade. Sou amigo

de quem me agrada ou é útil, que é, por sua vez, meu amigo pelos mesmos motivos.

Aristóteles diz também que somos amigos, na sua melhor forma, pela virtude que o outro

porta em si. Amo o outro pelo bem encontrado nele e por isso o respeito, o admiro, o quero

como amigo e sou seu amigo. Nessa forma, os amigos são amigos porque são bons uns para

os outros. Nesse caso, o amigo é uma espécie de “outro eu”, um espelho de si. Para todos os

casos, a amizade necessita de correspondência, proximidade física, convívio. Bem diferente é

o amor cristão, segundo Kierkegaard, que não deve esperar nada em troca, nenhum interesse,

nenhuma reciprocidade e nenhuma seleção, pois se deve amar incondicionalmente a todos,

inclusive os inimigos e os mortos. O que se pode esperar como retorno e reciprocidade dos

inimigos e dos mortos? Contudo, esse é o critério definitivo do amor cristão.

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É recorrente também a alusão aos poetas. Os poetas louvam o amor natural como uma

forma de entrega absoluta a um único outro, prometendo-lhe amor eterno enquanto durar.

Mas, o amor que os poetas louvam é desesperado porque não pode alcançar o infinito e o

eterno. O amor eterno e infinito só pode ser fruto de um dever que vem do além, e isso os

poetas não podem alcançar e não podem admitir.

Toma-se isso como síntese daquilo que se desdobrará em vários momentos no

percurso proposto por Kierkegaard no elogio do amor cristão. O percurso se inicia com uma

sutil dialética entre o crer e amar.

1 A fé no amor como pressuposto

Kierkegaard é um pensador cristão que se posiciona criticamente contra o método

cartesiano que tem na dúvida o começo da investigação e do conhecimento. No começo não

está a dúvida, mas um ato de fé. Dizer que se deve duvidar de tudo merece uma ironia. Ora,

deveríamos duvidar da dúvida? Para o autor, a dúvida como princípio leva à autocontradição

ou à má infinitude (2003, p. 84). A dúvida não pode se constituir em começo de investigação,

nem mesmo a metódica, no sentido que através dela se chega ao ponto indubitável.

Kierkegaard, o sutil, percebe nessa forma de procedimento um desvio desnecessário, além de

equivocado. No começo e no fim está a fé e, se a fé não estiver no começo, não aparecerá no

fim como resultado demonstrado pela força dos argumentos. A fé não é fruto de um

argumento demonstrado, mas um salto, o salto da fé. É salto porque a fé não é uma prova,

mas uma decisão existencial. E, quanto maior a indemonstrabilidade, maior a fé. Disso

Kierkegaard não abre mão nem mesmo, e sobretudo, no tratamento do amor.

O início e fundamento do amor, pelo menos do amor cristão, só pode ser a fé no amor.

Isto porque o amor é uma daquelas realidades indemonstráveis: ou se crê ou não se crê nele.

Mas, o fato de ser indemonstrável não significa que não exista e não seja verdadeiro.

Ademais, se auto-enganaria quem não aceitasse essa verdade que une o tempo à eternidade.

Este é o caso daquele que só acredita vendo com seus olhos sensíveis, típicos do empirismo,

que Kierkegaard qualifica de “racionalismo insolente”. O amor é aquela verdade que existe

antes de tudo e permanece depois que tudo acabou. Os que não se apercebem disso, se auto-

enganam. Estes não se apercebem e não crêem na verdade. Mas se auto-enganam também, diz

Kierkegaard, aqueles que tomam uma inverdade por verdade, tomam a verdade por sua

aparência. Da mesma forma, aqueles que confundem o amor, com o amor de si mesmo.

Ambos os amores são conhecidos pelos seus frutos. Sim, o amor se conhece por seus frutos. O

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amor humano se conhece por seu fruto. O amor de Deus também. O amor, no limite do

humano, se conhece pela sua efemeridade e transitoridade melancólica. O amor humano, que

o poeta canta, reduz-se à eternidade do enquanto dura. O amor de Deus, o amor cristão, se

conhece pela verdade da eternidade liberta da incapacidade de renunciar ao amor sensual de

si. Aquele, o amor de si, é cantado; este, o amor a Deus, é crido e vivido.

O amor se conhece pelos seus frutos. Ora, se o amor se conhece pelos frutos, tal como

a árvore, então pode-se ter a impressão de que não precisa ser crido. É verdade que o amor se

conhece pelos frutos, e isso é uma prova contra o “racionalismo insolente” que simplesmente

nega a existência do amor. Pelo fruto se conhece a árvore; o amor da mesma forma. Mas, para

Kierkegaard, dizer que o amor se conhece pelos frutos é dizer duas coisas: que ele se deixa

conhecer e ao mesmo tempo se retrai, morando no oculto, deixando-se conhecer nos frutos

que o revelam (2005, p. 22). O amor mora no oculto e se revela nos frutos. No oculto do

coração e no oculto da fonte onde brota o manancial do amor: o amor de Deus. No fundo do

coração e na fonte do amor, Deus, o amor se oculta. Por isso a imperiosa necessidade de crer

no amor.

Contudo, insiste Kierkegaard, a árvore se conhece pelos frutos. É bem verdade que a

árvore também pode ser conhecida pelas folhas, mas, se a árvore não produz fruto, então as

folhas podem ter enganado, passando-se pelo que não são. É assim que se dá também com a

cognoscibilidade do amor. O amor pode também se dar a conhecer pelas palavras do amante,

mas é um sinal incerto. Isso não significa que se deva reter a palavra, ocultando o amor e a

emoção visível. Diz Kierkegaard: “Teu amigo, tua amada, tua criança, ou qualquer pessoa que

seja objeto de teu amor tem um direito a que tu o exprimas também com palavras, quando o

amor te comove realmente em teu interior” (2005, p. 26). E isto porque a emoção não é

propriedade de quem a tem; ela pertence ao outro, a quem sua expressão cabe por direito,

dado que, a emoção pertence a quem se comove, pertence ao outro. Isso tudo é uma

manifestação do amor. Contudo, não é pelas palavras que se conhece o amor, mas pelos

frutos. O amor que só se reconhece pelas palavras é ainda um amor imaturo e falso, se esses

forem seus únicos frutos. Insistindo: o amor se conhece pelos frutos.

Mas, serão os frutos, as obras, sinal irrefutável do amor? O sutil dialético Kierkegaard

não deixa dúvidas: não. Nenhuma palavra e nenhuma obra é sinal irrefutável do amor. Ambas

necessárias, ambas insuficiente. Senão vejamos: “Não há nenhuma obra, nem uma única, nem

a melhor, da qual ousássemos dizer: quem faz isso demonstra incondicionalmente com isso o

amor. Depende de como a obra é realizada” (2005, p. 26). Nisso volta a tese de que o amor

está oculto no coração e depende do como a obra é realizada. Nas obras de caridade, mais

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especiais, como dar esmola, visitar o enfermo, vestir o nu, ainda não está demonstrado ou

reconhecido o amor, “pois podem se fazer obras de amor de maneira desamorosa, sim até

mesmo egoísta, e nesse caso a obra de caridade não é uma obra do amor” (2005, p. 28).

Kierkegaard exemplifica e tipifica algumas intenções e motivações excusas que podem estar

escondidas, no coração, nos atos de caridade:

[...] talvez perturbado por uma impressão casual, talvez com uma predileção fruto de um capricho, talvez para se livrar, talvez olhando para o lado, não no sentido bíblico; talvez sem que deixasse a mão esquerda saber o ocorria – mas por irreflexão; talvez pensando na sua própria tristeza – mas não na do pobre; talvez procurando seu alívio no fato de dar uma esmola – em vez de querer aliviar a miséria: de modo que a obra de caridade não teria sido afinal, no sentido mais alto, uma obra do amor (2005, p. 28).

Portanto, a intenção e a maneira como o ato é realizado determinam o amor e seu

reconhecimento. Contudo, mesmo isso não é suficiente para demonstrar incondicionalmente a

existência ou a ausência do amor. Até pelo contrário, pois a intenção sempre estará oculta e,

como tal, em nada ajuda na demonstrabilidade do amor. Resta um único caminho

incondicional: crer no amor. Crer no amor contra o “racionalismo insolente”; crer no amor

para além daquele que exige ver os frutos do amor. Contra o “racionalismo insolente” é

preciso crer no amor, do contrário sequer se perceberá que está presente. Contra os que

exigem ver os frutos é preciso crer no amor para ver nos frutos algo ainda mais belo do que

são. Assim como a desconfiança pode perceber uma coisa menor do que é, também o amor

confiante pode ver algo como maior do que é. Por isso, o ponto de partida só pode ser um:

crer no amor. Esse é o pressuposto de todo e qualquer elogio ao amor. É sobre esse

pressuposto que Kierkegaard avança no seu elogio ao amor cristão.

2 O amor cristão é um escândalo: tu deves amar

O amor cristão é um escândalo. O amor cristão é um escândalo porque, no limite do

humano, cantado pelos poetas, seus baluartes, fazer do amor um dever é uma contradição.

Afinal, amar não é um ato livre somente possível se for totalmente livre do dever? Contudo o

cristianismo manda: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39). Deixemos de lado,

por enquanto, a pergunta por quem é o próximo e o como a ti mesmo e nos concentremos na

idéia de que o amor cristão é um dever e quais os frutos que se colhe desse dever.

O amor cristão é um escândalo porque é um dever. Diz o mandamento: “amarás o teu

próximo como a ti mesmo”. Que o amar seja um dever é o escândalo ou, como diz

Kierkegaard, eis a aparente contradição (2005, p. 40). E, de fato, é uma contradição, um

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escândalo, visto desde a lógica do amor natural e espontâneo. Um escândalo e uma

contradição, ou um paradoxo, só possível de ser aceito no âmbito da fé. Sim, pois o

mandamento do amor é uma ultrapassagem do limite humano, irrompido pela revelação

divina e só compreendido na dinâmica da fé. Esse mandamento não poderia brotar do coração

humano e, por isso, no limite do humano, é uma contradição, um paradoxo, um escândalo. Se

no limite do humano é um escândalo, na dinâmica da revelação divina é uma novidade, não

no sentido de novidadeiro, mas no sentido de que a partir dele tudo se tornou novo. A partir

dele a eternidade entra na temporalidade e a revoluciona. Nada será como antes. Força

tamanha só poderia vir de fora do humano; só poderia ser sobre-natural. O mandamento que

porta a novidade precisa ser pensado para não deixá-lo cair no esquecimento, típico das coisas

que se tornam aceitas de geração em geração e, por força do hábito, perdem seu poder de

tornar tudo novo. Engana-se quem achar que este mandamento já faz parte do ser do cristão.

Isto seria real se, de fato, o cristão fosse cristão, ou se vivesse de fato o crístico. Mas, o

próprio cristão necessita tornar-se cristão: ser cristão é viver essa novidade. Será o cristão,

cristão? Achar que é automaticamente, diz Kierkegaard, é um auto-engano. Não basta dizer

que é; é preciso ser efetivamente e, nesse sentido, o mandamento não pode ficar na

indiferença, pois através dele tudo se tornou novo. Para Kierkegaard, a novidade precisa ser

assumida por cada um que entra na dinâmica do cristianismo, para não deixar que o bem

supremo caia numa espécie de coletividade indiferente, na negligência de um hábito rotineiro

(2005, p. 43).

Tu deves amar. Kierkegard se pergunta e pergunta ao seu leitor: alguma vez ocorreu

de alguém ler isso nos filósofos e poetas que tanto exaltaram o amor e a amizade? E não

ocorreu alguma vez de pensar que as descrições que os poetas e filósofos fazem do amor e da

amizade são muito superiores ao “tu deves amar”? Tão pobre parece o mandamento em

relação aos elogios que poetas e filósofos fizeram ao amor e à amizade. Mas, que ilusão, que

auto-engano, essa impressão imediata. Na verdade, nada é superior ao “tu deves amar”. Sua

superioridade, que só pode vir de Deus e que arranca o homem do limite humano e temporal,

manifesta-se e comprova-se pelos dons que esse dever assegura: a continuidade, a

independência e a proteção contra o desespero.

A continuidade. O amor natural e espontâneo, cujos porta-vozes são os poetas, é uma

promessa de um amor, por isso o juramento feito um ao outro. O poeta só pode abençoar um

amor que seja uma promessa, mesmo que enquanto durar. Tem que ser eterno enquanto

durar, senão o poeta não será seu porta-voz. O poeta, esse sacerdote do amor natural e

espontâneo, toma o juramento recíproco do amantes e dos amigos. Porém, do amor e da

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amizade natural o poeta não diz e exige que sejam eternos; exige que jurem ser fiés um ao

outro. Juram o amor por algo que é maior do que eles? Não, diz Kierkegaard. Juram

reciprocidade no amor e que o amor assim jurado perdure, tenha duração eterna. Aqui,

precisamente aqui, diz Kierkegaard se apresenta a ambiguidade do amor e da amizade

naturais e espontâneos. Qual a ambiguidade? A ambiguidade está em que o poeta exige que o

juramento de amor recíproco seja eterno, contudo se constitui sobre algo efêmero e, por isso,

exige juramento. Para que essa ambiguidade desapareça e que o eterno seja de fato o mais

elevado, é preciso jurar pelo “dever de amar”. Mas isso o poeta não admite e não pode

suportar. O juramento não pode ser feito por um dever acima da reciprocidade dos amantes.

Com isso, diz Kierkegaard, o amor natural é uma ilusão, pois não está conscientemente

fundado sobre o eterno e por conta disso está sempre sujeito a alterar-se e a mudar. Está

sujeito à mudança e à alteração porque não está fundado sobre o “dever de amar”. Só o “dever

de amar”, só quando o amar é dever, só então o amor está eternamente assegurado e com isso

livre da melancolia e da angústia “pois não é evidente que aquilo que dure neste instante

também venha a durar no próximo instante” (2005, p. 49).

Essa insegurança só pode ser ultrapassada se o amor for um dever que irrompe da

eternidade transformando o tempo em continuidade eterna, além da duração, posto que é

chama. Quando o amor é um dever, não há mais porque querer pôr os amantes e os amigos à

prova. É exatamente isso o que acontece com o amor natural e espontâneo, constantemente

passível de se alterar. O pôr à prova é uma expressão de segurança frente à insegurança que o

caracteriza, pois segundo Kierkegaard, “aquilo que apenas se mantém, nós o provamos, nós

pomos à prova. Mas quando há o dever de amar, aí não é necessária nenhuma prova, nem o

atrevimento que a insulta ao querer provar; aí o amor é superior a qualquer prova” (2005, p.

50). Exige-se prova quando se relaciona a uma possibilidade e a possibilidade está no nível do

pode ser, como também do pode não ser. Só se requer pôr à prova aquilo que pode alterar-se,

típico do amor natural e espontâneo não fundado no “dever de amar”. A alteração pode ser de

tal magnitude que o amor pode resultar no seu contrário, o ódio. O amor que se tornou um

dever, por sua vez, não se altera, simplesmente ama e jamais odeia a pessoa amada. Quem é

superior e mais forte? O amor que pode virar ódio ou o amor que simplesmente ama?

Kierkegaard responde isso em forma de pergunta sem contudo deixar de ter uma posição

clara: “E quem é mais forte: aquele que diz ‘se nao me amares entao eu te odiarei’, ou aquele

que diz ‘mesmo se me odiares eu continuarei a te amar”? (2005, p. 52).

Kierkegaard, continuando a fenomenologia do amor imediato, natural e espontâneo,

que não está no domínio eterno do “deves amar”, diz que o amor cantado pelo poeta enfrenta

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duas possibilidades de alteração às quais o amor do tu “deves amar” está imune: o ciúme e o

hábito. O amor espontâneo e natural pode transformar-se, alterar-se e passar da suprema

felicidade para o supremo tormento no ciúme. O ciúme é “uma doença do zelo” que

atormenta o amante pela possibilidade de não ser correspondido no seu amor. O ciúme é uma

doença porque o amante não vive na entrega simples e pura do amor; está preso às

comparações entre seu modo de amar e o amor retribuído. O ciumento não ousa confiar

totalmente na pessoa amada e nem se entrega totalmente. A fim de não dar demais, vive o

tormento da dispersão e acaba por não amar na simplicidade. O hábito rotineiro é uma forma

de alteração do amor imediato, o mais sutil e pérfido, pois se infiltra sorrateiramente e torna

os amantes aborrecidos, desalentados e tristes. Contudo, se o amor se submeter à

transformação da eternidade, tornando-se um dever, não conhecerá o hábito, isto porque o

eterno jamais envelhece e jamais se torna um hábito rotineiro (2005, p. 55).

A independência. Somente quando for “dever de amar” o amor está eternamente

libertado, em feliz independência. Kierkegaard trata aqui de um paradoxo. A liberdade é fruto

de um dever, o “dever de amar”. O amor natural reclama para si a conquista da liberdade e

não pode aceitar que um dever seja a fonte da liberdade. O cristianismo, contudo, diz o

contrário, o “dever de amar” é o único que liberta. Frequentemente se diz que a lei amarra a

liberdade, mas, para o cristão, diz Kiekeggard, ocorre o contrário, só a lei pode dar a

liberdade. “Sem a lei a liberdade pura e simplesmente nao existe, e é a lei que dá a liberdade”

(2005, p. 56). Estamos aqui diante de um paradoxo. Como pode a lei, o dever, ser a fonte da

liberdade? Eis o escândalo para o amor natural, mas a verdade mais genuína do cristianismo.

Essa verdade é assim formulada por Kierkegaard: o amor natural necessita do outro para amar

e ser amado. O amor natural exige reciprocidade. Se o outro lhe falta e diz: não posso mais

continuar a te amar, então a liberdade nesse nível será também poder responder: então eu

também posso parar de te amar. Mas isso não é a verdadeira independência, pois se deve ou

não continuar a amar depende de o outro querer amá-lo ou não. Ao passo que quem tiver

passado pela transformação da eternidade e tornado o amor um dever, a negativa do outro não

redunda em uma negativa do amante; pelo contrário, resulta na afirmativa: então eu devo

continuar a te amar. Alguém que não necessite da anuência do outro para continuar amando

não estará na verdadeira liberdade e independência? Só quem está na dinâmica do “dever de

amar” pode alcançar a liberdade e a independência.

Assegurado contra o desespero. O amor imediato, natural, funda-se no desespero.

Quando ocorre o infortúnio, então o que acontece nada mais é do que a manifestação daquilo

que está desde sempre na sua base: o desespero. Quando o amor imediato vive feliz, então o

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desespero apenas se oculta, esperando o momento certo do seu retorno. O que faz o amor

imediato estar fundado no desespero é o fato de, por carecer do eterno, querer fazer da paixão

imediata uma paixão infinita. Mas, como o imediato e o infinito não podem ser sintetizados,

então o amor imediato não tem outra lógica senão a do desespero. Diz Kierkegaard a esse

respeito: “Desespero consiste em carecer do eterno; desespero consiste em não ter se

submetido à transformação da eternidade pelo ‘tu deves’ do dever. O desespero pois, não

consiste na perda da pessoa amada, isso é infelicidade, dor, sofrimento; mas desepero consiste

na falta do eterno” (2005, p. 59). O desespero consiste na falta do eterno. Não há amor natural

que alcance o eterno. Por isso, sempre que se disser que se ama o outro ser humano mais do

que a si mesmo e mais do que a Deus, ama-se com a força do desespero. Só o amor que passa

pela transformação do “tu deves” pode alcançar o eterno e se proteger do desespero. O amor

fica proibido? De forma alguma. O amor que passa pela transformação do eterno não proibe;

pelo contrário, obriga a amar, visto ser um imperativo. O que fica proibido é amar daquela

maneira que não é ordenada, amar querendo possuir o outro ser humano, pois quando este lhe

falta então advém o desespero. Para sair do desespero só amando segundo o mandamento que

vem da eternidade: só assim o amor é eterno. Nenhum consolo pode ser subtituto do “tu

deves” para livrar o amor do desespero. Para quem ama segundo o “tu deves” não há morte ou

separação que faça cair no desespero. Segundo o autor: “Aquele amor que passou pela

transformação da eternidade, em se tornando dever, não está libertado dos infortúnios, mas

está salvo do desespero; no infortúnio e na boa fortuna igualmente a salvo do desespero”

(2005, p. 61). O amor que passou pela transformação da eternidade não elimina a dor e

continua se entristecendo diante das dores e perdas das pessoas amadas, mas não busca

refúgio em consolos fáceis, pois esses refúgios não são seguros e levam ao desespero. Em

qualquer situação, é preciso preservar o amor e, para isso, só amando segundo a dinâmica do

“tu deves”. Só o “tu deves amar” remove tudo o que há de mal e conserva o saudável para a

eternidade. Só o “tu deves amar” é salvífico e purificador. Qualquer outro consolo advindo da

sagacidade e da experiência será falso e, mais cedo ou mais tarde, recai no desespero. Não há

outra forma de sair do desespero senão passando pela transformação do amor que vem da

eternidade.

3 O dever de amar o próximo

O cerne do amor cristão está no dever de amar o próximo. É a grande novidade do

cristianismo e não pode ser encontrado em outro lugar, sobretudo, não pode ser encontrado

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nos poetas e nos filósofos. Há um abismo instransponível entre o amor cantado pelo poetas e

louvado pelos filósofos e o amor realizado por dever no cristianismo. Esse abismo não está

em que o amor cristão oponha carne e espírito no sentido de que o carnal seja o corporal, o

físico. Esse dualismo, diz Kierkegaard, é um mal entendido. Quando o apóstolo Paulo opõe o

carnal ao espiritual o faz no horizonte do amor de si em oposição ao amor ao próximo. O

carnal é sinônimo de egoístico. O espiritual é sinônimo de abnegação. O dualismo corpo e

alma é um mal entendido.

Agora, diz Kierkegaard, o amor de si, egoísta, e o amor natural e a amizade, são

diferentes só aparentemente. No fundo são a mesma coisa, pois o amor natural e a amizade

são formas do amor de si. Por que são amor de si? Porque tomam o outro como um outro eu,

um outro si. O contraponto a esse amor natural e a amizade cantados pelo poetas e louvado

pelos filósofos é justamente o amor cristão, o amor ao próximo, sem predileção e preferência,

amor abnegado.

O que acontece no amor de si, que se volta sobre si mesmo, que se fecha em si mesmo,

também acontece no amor natural e na amizade que se dobram sobre si mesmos pela paixão

preferencial e pela amizade de predileção. O mecanismo é mais sutil, mas é o mesmo. No

amor de paixão natural e na amizade o outro ou aparece como um outro eu, um outro si, ou

como um intruso do qual a manifestação do ciúme é exemplar. Sobre isso Kierkegaard é

provocativo: “Experimente: colaca entre o amante e a pessoa amada, como determinação

intermediária, o próximo, que se deve amar, coloca entre o amigo e seu amigo, como

determinação intermediária, o próximo, que se deve amar: e tu instantaneamente verás o

ciúme” (2005, p. 74). Ora, o verdadeiro outro, o próximo, o primeiro tu, como Kierkegaard

gosta de chamar, é justamente a determinação intermediária da abnegação que se introduz

entre o eu e o eu do amor de si, ou o eu e o outro eu do amor natural e da amizade. Se essa

determinação intermediária aparece na forma de ciúme, então tanto o amor natural quanto a

amizade são formas de egoísmo, mesmo que sutil. E isso só o cristianismo pode perceber,

pois parte de uma outra perspectiva: o dever de amar o próximo.

Mas isso não é tudo e nem é o fundamental na caracterização do amor natural e da

amizade como formas de egoísmo. Kierkegaard diz que a preferência e a predileção do amor

natural e da amizade requerem que o amado e o amigo sejam admirados. A admiração é um

elemento essencial para que o amor natural e a amizade se constituam. Não há preferência e

predileção se não houver admiração. Essa é a dinâmica do amor natural e da amizade. Com o

próximo, contudo, isso não acontece, pois, no dizer de Kierkegaard, o “próximo jamais foi

representado como objeto de admiração, o Cristianismo jamais ensinou que se deva admirar o

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próximo – devemos amá-lo” (2005, p. 74). Não é este, pura e simplesmente, o perigo do amor

de si: que tenhamos como objeto de amor alguém que admiramos? Amar os que nos amam e

nos querem bem, não é isso o que fazem também os pagãos? E não é exatamente aí que o

dever de amar o próximo se distingue do paganismo? E mais, ser amado por alguém admirado

não se contituirá numa relação que, em última análise, cai no egoístico?

Freud, que não é poeta nem filósofo e que nasceu quando Kirkegaard já estava morto

e, portanto, não era interlocutor deste, sintetizou de forma paradigmática a lógica do amor

natural e da amizade. Pelo que representa no esclarecimento do que Kierkegaard chama de

amor natural e amizade, em oposição ao amor ao próximo, veja-se o que diz Freud, que não

poderia ser mais claro: “Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu

próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem todos os homens

são dignos de amor” (2002, p. 57). Amar a todos ilimitadamente e indiscriminadamente,

segundo Freud, é cometer uma injustiça com o amado, pois no amor o que interessa é a

justiça. Dizer que seria uma injustiça significa dizer que o outro tem que merecer o amor que

lhe devoto. Nessa lógica, nem todos merecem ser amados. Supõe-se que alguns merecem

desprezo por não serem dignos de serem amados. Certamente, segundo a lógica de Freud, que

é em última análise a lógica do amor natural e da amizade, o filho mais novo da parábola do

filho pródigo não mereceria mais o afeto do pai e, nesse caso, o filho mais velho estaria certo

em repreender o pai por lhe ofertar um banquete no retorno. E o que dizer de Pedro, que nega

três vezes a Jesus? Certamente não era mais digno do seu amor. Bem se vê que é outra a

lógica escandalosa do amor cristão, do dever de amar o próximo.

Em contrapartida ao amor natural e à amizade, o amor ao próximo é o amor da

abnegação que expulsa tanto o amor de si quanto o amor de predileção. No dever de amar o

próximo não há lugar para a predileção e a preferência do objeto único. O amor de abnegação

também tem um só e único objeto, o próximo. Só que esse único não é um único ser humano,

como no amor preferencial, pois o próximo são todos os homens. O que é cantado e louvado

pelo poeta como sendo o máximo do amor natural – amar infinitamente uma única pessoa ao

ponto de querer morrer por ela, ou ter um punhado de amigos bons, admirados e fiéis – é

expulso no louvor cristão através do dever de amar ao próximo ilimitadamente, inclusive, para

escândalo completo, o inimigo. O amor de abnegação só é possível pelo dever e, por isso, o

mandamento ordena: ame o teu próximo como a ti mesmo.

Mas, quem é o próximo de que fala o mandamento? Kierkegaard esclarece esse ponto

em vários lugares de seu texto As obras do amor, mas particularmente num lugar ele é

definitivo. Diz:

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Quem é então o meu próximo? A palavra é manifestamente formada a partir de ‘estar próximo’, portanto, o próximo é aquele que está mais próximo de ti do que todos os outros, contudo não no sentido de uma predileção; pois amar aquele que no sentido da predileção está mais próximo de mim do que todos os outros é amor de si próprio ‘não fazem também o mesmo os pagãos?’. O próximo está então mais próximo de ti do que todos os outros. Mas ele está também mais próximo de ti do que tu mesmo para ti? Não, ele não o está, mas ele está justamente, ou deve estar justamente tão próximo como tu mesmo. O conceito do ‘próximo’ é propriamente a reduplicação da tua própria identidade, ‘o próximo’ é o que os pensadores chamariam de o outro, aquele no qual o egoístico do amor de si é posto à prova (2005, p. 36).

O que os pensadores chamam de o outro, este é o próximo. O próximo não é o outro

eu, mas o primeiro tu. Esse primeiro tu é, em si, uma multiplicidade, pois o próximo significa

todos os homens. Contudo, diz Kierkegaard, em outro sentido, basta um único homem para

que tu possas praticar a lei. “‘O próximo’ ameaça assim o amor de si tanto quanto possível; se

há apenas dois homens, o segundo homem é o próximo, se há milhões, cada um deles é o

próximo” (2005, p. 37).

O próximo, o primeiro tu, é merecedor de amor incondicional por uma única razão: é

igual a ti diante de Deus. Por nenhuma outra razão ele deve ser amado, nem por sua cultura,

pobreza, humildade etc. A igualdade diante de Deus não tem nada a ver com a igualdade da

reciprocidade, correspondência e admiração requerida no amor natural e no amor de amizade.

Só pela igualdade diante de Deus é teu próximo e essa igualdade é incondicional. Diz

Kierkegaard:

O próximo não é a pessoa amada, pela qual tu tens a predileção da paixão, e nem mesmo teu amigo, por quem tu tens a predileçao da paixão. O próximo não é, de jeito nenhum, se tu és alguém culto, a pessoa culta, com quem tu compartilhas a igualdade da cultura – pois com o próximo tu compartilhas a igualdade dos homens diante de Deus. O próximo não é, de jeito nenhum, alguém que é mais distinto do que tu, isto é, ele não é o próximo na medida em que é mais distinto do que tu, pois amá-lo por ser ele mais distinto pode bem facilmente ser uma preferência, e nesse sentido amor de si mesmo. De maneira alguma o próximo é alguém que é mais humilde do que tu, isto é, na medida em que ele é mais humilde do que tu ele não é o próximo, pois amar alguém porque ele é mais pobre do que tu bem pode ser condescendência da preferência, e nesse sentido amor de si mesmo. Não, amar ao próximo é igualdade (2005, p. 81).

Esse próximo, o primeiro tu, pode parecer ainda indeterminado e abstrato, mas

Kierkegaard não permite que se faça uma leitura abstrata do outro, do próximo. O outro, o

próximo, o primeiro tu, é o individual concreto, de carne e osso. O outro é o individual

concreto com todas as suas mazelas, suas virtudes e seus defeitos. O outro é o outro que se vê.

Não como gostaríamos que fosse, com as qualidades da beleza, inteligência e graça – que

levariam a recair no amor preferencial –, mas como ele de fato é. O dever de amar, ao mesmo

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tempo que universaliza, pois o dever recai sobre todos os homens, também individualiza e

materializa, na medida em que se deve amar o outro que vemos, assim mesmo como ele é.

Kierkegaard afasta-se definitivamente de Platão e de Aristóteles através do critério do dever

amar o outro que se vê. Não abre mão do particular concreto, do que se vê, como faz Platão

em direção ao bom e belo, em direção às qualidades ideais que abrem mão do empírico

concreto e nem fica no limite do amor de amizade por prazer, interesse ou virtude, como faz

Aristóteles. A novidade do amor cristão é sem precedentes. Nisso fica demarcada

definitivamente a diferença entre o eros platônico e a philia aristotélica em relação ao ágape

cristão. Sem falar da diferença substancial com o amor cantado pelos poetas pelas razões já

vistas.

Uma palavra sobre o amor a uma pessoa falecida. Para Kierkegaard, o amor a uma

pessoa falecida é o que há de mais desinteressado e, como tal, afigura-se como um paradigma

para compreender o amor cristão. Kierkegaard dedica um capítulo inteiro ao tema no seu texto

As obras do amor. O título do capítulo é A obra do amor que consiste em recordar uma

pessoa falecida. A tese é simples e por demais clara. Se o amor verdadeiro, o amor cristão, é

um amor desinteressado, um amor de abnegação, então o amor que consiste em recordar uma

pessoa falecida é, entre as obras desse amor, a mais desinteressada. Se o amor a uma pessoa

falecida permanece fiel, aí encontramos o modelo do amor desprendido, pois não há por parte

do falecido nenhuma possibilidade de retribuição.

A retribuição no amor manifesta-se em vários sentidos: através de um ganho ou

vantagem; do amor correspondido; da gratidão; da devoção etc. Aquele, porém, que está

morto não retribui em sentido algum. Há no amor a uma pessoa falecida um paralelo com o

amor dos pais com os filhos. Os pais amam os filhos antes mesmo de virem à existência e

bem antes de serem conscientes de si, isto é, quando ainda são “não-entes”. Ora, o amor a um

falecido é uma amor a um “não-ente”, a um “ninguém”, como diz Kierkegaard. Contudo esse

parelelo não é absoluto. Os pais amam um filho que ainda não veio à existência ou ainda não

é consciente de si porque depositam nele uma reconfortante expectativa de que um dia possa

lhes retribuir todo o amor a ele devotado. Segundo Kierkegaard, no inconsciente dos pais

ressoa uma esperança: “‘Nossa criancinha tem pela frente bastante tempo, longos anos; mas

durante esse tempo todo, ela nos proporciona também alegrias, e sobretudo, temos a

esperança de que ela um dia recompensará nosso amor e, se não fizer nada mais, além disso,

pelo menos tornará fefliz nossa velhice’” (2005, p. 391).

O morto, ao contrário, não traz nenhuma retribuição. Diferentemente de uma criança,

não há porque esperar pelo crescimento futuro de uma pessoa falecida, pois o seu futuro é

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cada vez mais um distanciamento e um nada. Uma pessoa falecida não alegra quem a recorda,

como a criança alegra a mãe quando esta lhe pergunta quem ela mais ama e a criança

responde: a mamãe. O morto não retribui. O morto é indiferente. O morto é um ninguém , um

não-ente, dele não se pode esperar nada e, portanto, recordar dele é o amar mais

desinteressado possível. Em qualquer relação entre vivos sempre pode haver algum tipo de

esperança, espectativa de um para com o outro, mas em relação a um falecido, essa

espectativa é nula. Por isso, Kierkegaard diz que “a obra de amor que consiste em recordar

uma pessoa falecida é uma obra do amor mais livre que há” (2005, p. 392). O falecido não

impõe qualquer tipo de coação. A criança grita, o pobre mendiga, a viúva importuna, a

miséria violenta etc. Mas o falecido não tem armas, não tem meios, não tem forças, não tem

coação. O falecido não se introduz na recordação como a criança no seu grito e nem

constrange e reclama uma ação como a miséria visível. Se mesmo assim o falecido é amado e

recordado, essa será a prova do amor mais livre possível.O amor a uma pessoa falecida é o

amor mais livre e desinteressado possível.

Por fim, o amor a uma pessoa falecida só é verdadeiramente amor se for fiel

eternamente. A fidelidade não se expressa no choro enquanto o corpo do cadáver ainda estiver

aquecido. Isso pode ser cena de despedida. Não. O amor verdadeiro para com um falecido só

pode ser avaliado se não alterar a intensidade do amante, pois o amado não mais se alterará e

não envelhecerá. Para Kierkegaard, “A obra de amor que consiste em recordar um falecido é,

pois, uma obra do amor desinteressdo, mais livre e mais fiel. Vai então e exerce-a; recorda o

falecido e aprende justamente assim a amar as pessoas vivas de modo desinteressado, livre,

fiel” (2005, p. 399).

4 Para uma ética da alteridade

Kierkegaard ficou estigmatizado como sendo um filósofo ensimesmado, um

melancólico incapaz de sair de si e autor de uma filosofia marcadamente intimista, beirando

ao individualismo e ao solipsismo. Não percorremos o todo da filosofia de Kierkegaard e de

seus intérpretes para demostrar ou desconstruir essa concepção. Apenas indicamos um

caminho possível de leitura de As Obras do amor que aponta para uma ética positiva que aqui

chamamos de ética da alteridade. Ética da alteridade? Sim, ética da alteridade. Bem antes de

Levinas, encontramos em Kierkegaard a formulação explícita de uma étida da alteridade, do

outro. Uma ética formulada pelo princípio do “tu deves amar o próximo como a ti mesmo”.

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Mas, o amor é do campo da ética ou da estética? Nas mãos de Kierkegaard o amor é

do campo da ética porque é um dever. A estética está no campo do prazer, do belo; a ética está

no campo do dever. O que eu devo fazer, não do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista

da ação prática, é a pergunta que orienta a ética. Ora, o “tu deves amar o próximo como a ti

mesmo” diz respeito ao campo da ação prática e, portanto, é uma questão ética. O amor

cristão é mais que um sentimento, pois é elevado à categoria de um dever. E diante de um

dever estamos no campo ético.

Poder-se-ia objetar que Deus e a Bíblia já não servem de argumentos de autoridade em

filosofia e que portanto uma ética fundada no dever de amar por um mandamento divino,

depois de Kant, já não é possível de ser aceita racionalmente, pois parte do pressuposto da

heteronomia e, para Kant, a ética só pode ser ética da autonomia – dar a si mesma a própria

lei. Certamente é uma objeção poderosa e assumida quase que unanimamente pelos filósofo

modernos e contemporâneos. Não pretendemos enfrentar essa objeção que, a nosso ver, não

se aplica a Kierkegaard, porque desde sempre assumiu a postura clara de que está falando a

partir do horizonte cristão e, portanto, desde a perspectiva da fé. O fundamento da ética da

alteridade em Kierkegaard é, nesse aspecto, marcadamente teológico, sobrenatural, sem

contudo abdicar do argumento racional marcadamente filosófico. Não é uma ética

irracionalista, mas uma ética argumentada, sob um pressuposto da fé. Sobre esse debate

remetemos a um texto esclarecedor de Álvaro Luiz Montenegro Valls intitulado Sobre o dever

de amar (2000, p. 105ss).

Importa esclarecer em que sentido a ética cristã fundada no mandamento do amor é

uma ética da alteridade. O raciocínio de Kierkegaard a esse respeito é banstante esclarecedor.

Parte do mandamento “tu deves amar o próximo como a ti mesmo”. O próximo é ao outro, ao

“primeiro tu” e não um “segundo eu”. O próximo é o que se deve amar. E de que forma? O

mandamento diz: “como a ti mesmo”. Pressupõe-se o amor a si mesmo. É natural que cada

um se ame a si mesmo, para isso não há necessidade de um mandamento. Mas, sobre esse

pressuposto do amor natural a si mesmo, levanta-se o mandamento do amor ao próximo. O

mandamento, o sobrenatural que vem de Deus, é o dever de amar o próximo. Como? Como a

si mesmo. O mandamento não diz que se deve amar a si mesmo. É natural que cada um ame a

si mesmo. O que não é natural, e é um dever sobrenatural, é o amar ao próximo, ao outro. Ora,

o acento do mandamento está todo no próximo. Essa insistência para com o amor ao próximo

é genuinamente uma insistência ética, por ser um dever, e a ética que aí se afigura é a ética da

alteridade.

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O amor ao próximo, ao “primeiro tu”, ao outro, não é um amor abstrato, idealizado. O

amor ao próximo é concreto, sensorial, sob o critério do próximo que se vê. Não se trata de

um amor estético ou erótico, mas ético, pois não se deve amar o outro belo, charmoso, de boa

aparência etc. Trata-se de amar o outro assim mesmo como é. Não importando como é.

Kierkegaard lembra, a esse propósito, a parábola do bom samaritano dizendo que se trata de

amar o que está aí, necessitado, ultrajado, humilhado, sem beleza estética. Kierkegaard

gostava de brincar com a máxima de Sócrates que dizia que devemos amar as mulheres feias.

Sim, as feias devem ser amadas, as belas dispensam o dever. O próximo, nesse sentido, é o

feio.

O amor cristão não é platônico, porque não é idealizado, mas é amor concreto ao tu

que se vê; nem é aristotélico, porque este requer reciprocidade; nem poético, porque vem do

infinito; nem é freudiano, porque não tem preferência. O amor cristão é o amor ao próximo,

ao tu, ao outro, incondicionalmente, sem espererar dele qualquer retribuição senão seria um

amor de si, um amor natural, que para tanto não necessitaria de mandamento. O mandamento

do amar é escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. O verdadeiramente cristão tem

pois como critério ético o amor ao próximo e só quem ama ao outro que vê pode amar a Deus

que não vê. Dito de outra forma, quem não ama o próximo que vê, não pode amar a Deus que

não vê.

Referências bibliográficas

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

KIERKEGAARD, Soren A. É preciso duvidar de tudo. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. As obras do amor. Petrópolis: Vozes, 2005.

VALLS, Álvaro. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.