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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS DA TERRA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS E
MATEMÁTICA
UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO
DE FÍSICA:
A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA
ASTRONOMIA DE GALILEU
JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA
NATAL – RN
2020
JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA
UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA:
A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências e Matemática
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito para obtenção do Título de Mestre
em Ensino de Ciências e Matemática.
Orientador: Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins.
NATAL – RN
2020
JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA
UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA:
A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Ciências e Matemática
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito para obtenção do Título de Mestre
em Ensino de Ciências e Matemática.
Aprovada em 29 de Setembro de 2020.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins – Orientador
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________________
Prof. Dr. José Claudio Reis – Examinador Externo (Titular)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Flávia Polati Ferreira – Examinadora Interna (Titular)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Cibelle Celestino Silva – Examinadora Externa (Suplente)
Universidade de São Paulo - São Carlos
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Milton Thiago Schivani Alves – Examinador Interno (Suplente)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e de pesquisa, desde que citada a fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede
Silva, José Ricardo Pereira da.
Um olhar da filosofia da ciência no ensino de física:
a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu /
José Ricardo Pereira da Silva. - 2020.
166f.: il.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Centro de Ciências Exatas da Terra,
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e
Matemática , Natal, 2020.
Orientador: Dr. André Ferrer Pinto Martins.
1. Ensino de Física - Dissertação. 2. Filosofia da
Ciência - Dissertação. 3. Paul Feyerabend - Dissertação.
4. Astronomia - Dissertação. 5. Galileu Galilei -
Dissertação. I. Martins, André Ferrer Pinto. II. Título.
RN/UF/BCZM CDU
51:37.016
Elaborado por Raimundo Muniz de Oliveira - CRB-15/429
Ao meu pai Severino Ramos, a minha mãe Maria Silvana,
e a todos que caminharam comigo durante este tempo solitário.
Espero eu que, assim como disse certo filósofo da ciência, vocês também possam dizer:
Adeus à razão.
AGRADECIMENTOS
Ao professor André Ferrer Pinto Martins pela oportunidade e pela excelente orientação
fornecida durante a elaboração deste trabalho;
A minha amiga e companheira de graduação, encontros de discussão, caronas e festas
aleatórias Laura Dell Orto pelas sugestões, livros e desabafos;
Aos professores e colegas da pós-graduação pelos desafios, debates e conquistas;
A Escola Estadual Professor Pedro Alexandrino e ao Clube de Astronomia São Pedro
pelos céus limpos e estrelados;
E por fim, mas não menos importante, a minha namorada e amigos “maravilhosos” pelo
comprometimento.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend 30
Figura 2 – Foto da Torre Inclinada de Pisa, na Itália, presente no catálogo da Detroit
Publishing Company de 1905
65
Figura 3 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633 67
Figura 4 – Galileu e o telescópio 68
Figura 5 – As luas de Júpiter no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos,
Pádua, Itália, 1610
69
Figura 6 – Ilustração de Galileu Galilei publicada no livro Saggiatore (O Ensaísta),
dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623
70
Figura 7 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu 71
Figura 8 – Equante, epiciclos e excêntrico adotados pela astronomia grega 72
Figura 9 – Representação dos epiciclos de Copérnico, publicada em sua obra De
Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543
73
Figura 10 – Representação do sistema heliocêntrico de Copérnico, publicada em sua obra
De Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543
75
Figura 11 – Rascunhos do movimento circular no manuscrito de Galileu sobre os Planetas
Medicianos, Pádua, Itália, 1610
82
Figura 12 – Representação contendo a explicação do movimento aparente dos planetas a
partir da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de Galileu sobre os Planetas
Medicianos, Pádua, Itália, 1610
84
Figura 13 – Retrato de São Roberto Bellarmino, óleo sobre tela, feita em 1923 por G.
Francisi, Roma, Palácio do Santo Ofício, sala de recepção, lado norte
87
Figura 14 – Quadro de Galileu perante o Santo Ofício, pintado pelo francês Joseph Fleury
no século XIX
91
Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano do Campanário de São
Marcos em 1609, quadro de Giuseppe Bertini, Varese, Itália, 1858
95
Figura 16 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do telescópio, publicado no
livro Saggiatore (O Ensaísta), dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623
97
Figura 17 – Representação das fases de Vênus nos dois sistemas de mundo 99
Figura 18 – Desenho da Lua vista por Galileu através do telescópio, publicado no livro
Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), Veneza, 1610
100
Figura 19 – Desenho da Lua feito por Thomas Harriot em 1609 100
Figura 20 – Galileu apresenta o telescópio ao público 102
Figura 21 – Galileo, pintura a óleo de Jean-Leon Huens 103
Figura 22 – Rascunhos das distâncias dos planetas durante a revolução anual no manuscrito
de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610
105
RESUMO
Este trabalho relaciona a área da História e Filosofia da Ciência às suas implicações para
o ensino de ciências, evidenciando a importância e a potencialidade pedagógica dessa área.
Partimos da análise da epistemologia do filósofo da ciência Paul Feyerabend para propormos a
utilização da abordagem histórico-filosófica como estratégia didática para o ensino de física,
especificamente, nos conteúdos de astronomia que envolvem o personagem histórico Galileu
Galilei. Para isso, foram identificados três temas de astronomia que tradicionalmente são
ensinados pelos professores de física do primeiro ano do Ensino Médio e que, de forma
articulada, compõem um quadro dos trabalhos de Galileu e possuem grande relevância histórica
para as críticas epistemológicas de Feyerabend. Fazemos, em seguida, uma releitura
feyerabendiana da astronomia de Galileu com vistas à sua utilização no ensino de física. E, por
fim, propomos uma unidade didática composta por três momentos – um encontro de observação
astronômica, uma atividade de construção teórica e uma aula júri simulado – como subsídio
para se trabalhar os sistemas de mundo de Galileu Galilei nas aulas de física do Ensino Médio.
Palavras-chave: ensino de física; Filosofia da Ciência; Paul Feyerabend; astronomia;
Galileu Galilei.
ABSTRACT
This paper connects the field of History and Philosophy of Science to its implications to the
teaching of sciences, pointing the importance and pedagogical potentiality of this field. We base
it on the analysis of the epistemology of the philosopher of science Paul Feyerabend to propose
the historical-philosophical approach as a didactic strategy for the teaching of physics,
specifically, astronomy topics involving the historic figure Galileo Galilei. In order to do that,
we identified some astronomy topics traditionally taught by physics teachers on the first year
of High School and, in an articulated fashion, compose a picture of Galileo’s works and hold
great historic relevance to Feyerabend epistemological criticism. Afterwards, we have a
feyerabendian reread of Galileo’s astronomy aiming for its use in the teaching of physics. At
last, we propose a didactic unit composed of three moments – a meeting for astronomic
observation, a theoretical construction activity and a mock trial class – as basis to the work with
Galileo Galilei’s world systems in high school physics classes.
Key-words: physics teaching; philosophy of science; Paul Feyerabend; astronomy; Galileo
Galilei.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 12
2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA 18
3. O ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICO DE PAUL FEYERABEND 30
4. O ENSINO DA ASTRONOMIA DE GALILEU NUMA PERSPECTIVA
FEYERABENDIANA
57
5. GALILEU GALILEI: OS SISTEMAS DE MUNDO GEOCÊNTRICO E
HELIOCÊNTRICO
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS 124
REFERÊNCIAS 126
APÊNDICE 130
12
1. INTRODUÇÃO
A física, como área do conhecimento científico, é de crucial importância para os alunos
da Educação Básica. O entendimento dos fenômenos físicos, tanto terrestres, quanto celestes1,
o conhecimento por trás da utilização dos aparelhos eletroeletrônicos, a criticidade quanto ao
uso das tecnologias, em suma, a formação científica proporcionada pela escola, faz parte dos
conhecimentos necessários para o desenvolvimento integral do educando, incorporado à cultura
da vida em sociedade. A julgar tal importância, acreditamos que esforços precisam ser
realizados a fim de vencer os desafios da sua prática pedagógica. A partir dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN e PCN+)2 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) de 20 de dezembro de 1996,
espera-se que o ensino de Física, na escola média, contribua para a formação
de uma cultura científica efetiva, que permita ao indivíduo a interpretação dos
fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação
do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em
transformação. Para tanto, é essencial que o conhecimento físico seja
explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e
associado às outras formas de expressão e produção humanas. É necessário
também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de
equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano
doméstico, social e profissional (BRASIL, 2000, p. 22).
Além disso, a astronomia, que comumente desperta fascínio e curiosidade em públicos
de todas as idades (MARQUES, 2014, p. 83), tem um valor cultural importante em nosso
cotidiano: o dia e a noite, os intervalos de tempo que duram as semanas, os meses e os anos, a
cor do céu, o brilho das estrelas, o calor do Sol, as fases da Lua, a maré alta, a passagem de um
cometa, o riscar de uma “estrela cadente”, a comunicação por satélite, as viagens espaciais, a
possibilidade de vida extraterrestre... Entretanto, é comum em uma noite de Lua cheia, nos
depararmos com pessoas encantadas com a beleza do luar. A maior parte delas não
1 Esses termos também são citados como uma analogia a dicotomia terrestre/celeste das físicas sublunar e
supralunar, que foram predominantes até o século XVII.
2 Esta é uma justificativa histórica importante para área de pesquisa em ensino de ciências. Apesar disso, a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) não dá destaque à importância dos processos históricos
para o ensino de ciências, como veremos no próximo capítulo.
13
acompanharam as fases da Lua (e nem a celebraram3 como o espírito sagrado da Avó Lua
Cheia), mas foram pegas de surpresa ao saírem de casa e perceberem aquele acontecimento
magnífico. Da mesma forma, estamos tão acostumados com a regularidade dos dias e das noites
que, geralmente, não nos questionamos sobre como isso acontece e nem notamos como muda
a posição do nascer e do pôr do Sol durante o ano.
É nesse sentido que os PCNs, ao apresentarem o desenvolvimento das competências e
habilidades em física, apontando Universo, Terra e Vida como tema estruturador para o ensino
de física, afirmam:
Será indispensável uma compreensão de natureza cosmológica, permitindo ao
jovem refletir sobre sua presença e seu “lugar” na história do universo, tanto
no tempo como no espaço, do ponto de vista da ciência. Espera-se que ele, ao
final da educação básica, adquira uma compreensão atualizada das hipóteses,
modelos e formas de investigação sobre a origem e evolução do Universo em
que vive, com que sonha e que pretende transformar (BRASIL, 2002, p. 19).
Além do mais, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao se referir à etapa do
Ensino Fundamental, aponta, dentre outras coisas, na unidade temática Terra e Universo, a
compreensão das características dos astros, suas dimensões, localizações e movimentos, além
de “salientar que a construção dos conhecimentos sobre a Terra e o céu se deu de diferentes
formas e em distintas culturas ao longo da história da humanidade”, de modo também a
“fundamentar a compreensão da controvérsia histórica entre as visões geocêntrica e
heliocêntrica”, de forma que os estudantes “possam refletir sobre a posição da Terra e da espécie
humana no Universo” (BRASIL, 2018, p. 328). No que diz respeito à etapa do Ensino Médio,
a segunda competência específica de Ciências da Natureza propõe
Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do
Cosmo para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e
a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar e defender decisões
éticas e responsáveis (ibidem, p. 553).
3 Em todas as noites de Lua Cheia as aldeias e as pequenas comunidades indígenas urbanas do Rio Grande do
Norte celebram o Ritual Sagrado da Avó Lua Cheia com cânticos, danças e orações à Lua.
14
Afirma, ainda, que os estudantes devem ter a “oportunidade de elaborar reflexões que
situem a humanidade e o planeta Terra na história do Universo, bem como inteirar-se da
evolução histórica dos conceitos e das diferentes interpretações e controvérsias envolvidas
nessa construção” (BRASIL, 2018, p. 556). Para isso, a Base indica a “história e a filosofia da
ciência” como um dos conhecimentos conceituais que podem ser relacionados a essa
competência específica.
Dessa maneira, o ensino de física (e de astronomia) pode: promover o melhor
entendimento dos conceitos físicos envolvidos; apresentar o conteúdo de física de forma
integrada com seu desenvolvimento histórico-filosófico (VALADARES, 2012, p. 33); e
compreender a física como parte da cultura humana (ZANETIC, 1989).
Para isso, defendemos a utilização da abordagem da História e Filosofia da Ciência
(HFC)4 no ensino de física. Utilizando essa estratégia, os processos pedagógicos possibilitarão
que os estudantes não só aprendam algumas concepções científicas, mas, também, construam
uma ideia menos caricata e a-histórica acerca do desenvolvimento científico (VALADARES,
2012, p. 92).
Ao discutir sobre as tentativas de aproximação das áreas da história e da filosofia da
ciência com a área de Ensino de Ciências, Matthews (1995), ao se referir a outro trabalho de
sua autoria, de 1988, afirma que essas iniciativas são essenciais, uma vez que consideramos a,
já bem conhecida, crise na educação científica, acentuada pelo desinteresse de professores e
alunos nas matérias científicas, e pelos altíssimos índices de analfabetismo em ciências no
Brasil.
Nas últimas décadas, a pesquisa em ensino de ciências tem discutido sobre o papel
pedagógico da HFC e recomendado sua utilização no ensino e aprendizagem das ciências
(MARTINS, 2007, p. 114).
Há um número grande de artigos publicados em revistas especializadas da área
que, nos eventos e congressos, destina espaços específicos para essa temática.
(...) Do ponto de vista mais prático e aplicado, a HFC pode ser pensada tanto
como conteúdo (em si) das disciplinas científicas quanto como estratégia
didática facilitadora na compreensão de conceitos, modelos e teorias.
Diversos autores convergem nessa direção, defendendo e expondo razões para
a presença da HFC nas salas de aula dos diversos níveis de ensino (p. ex:
4 Por tradição na área, vamos utilizar o termo História e Filosofia da Ciência (HFC), entretanto, mais recentemente,
há um grande número de publicações que apresentam as discussões sociológicas da ciência. Assim, poderíamos
utilizar também o termo História, Filosofia e Sociologia da Ciência (HFSC).
15
ZANETIC, 1989; GIL-PÉREZ, 1993; MATTHEWS, 1994; VANNUCCHI,
1996; PEDUZZI, 2001; EL-HANI, 2006; MARTINS, 2006) (MARTINS,
2007, p. 115, grifos do autor).
Entretanto, a importância do caráter histórico-filosófico da ciência na formação de
professores, nos livros didáticos e nos documentos oficiais, não garante que ele será utilizado
em sala de aula, e nem que as abordagens histórica e filosófica da ciência serão ensinadas com
qualidade (MARTINS, 2007, p. 115).
É nesse sentido que aponta esta pesquisa. Ao relacionar a área da Filosofia da Ciência
às implicações didáticas no ensino, o nosso objetivo é analisar a epistemologia do filósofo da
ciência Paul Feyerabend (1924-1994) para propor a utilização da abordagem histórico-
filosófica no ensino de física a partir desse referencial. Para isso, foram identificados três temas
de astronomia que, de forma articulada, compõem um quadro dos trabalhos de Galileu (que
denominamos de astronomia de Galileu) e possuem grande relevância histórica para as críticas
epistemológicas de Feyerabend. Assim, na busca por um recorte, propomos o seguinte
problema de investigação: Como a abordagem da Filosofia da Ciência, numa perspectiva
feyerabendiana, pode contribuir para o ensino de física, ao ser utilizada como estratégia
didática nas aulas de física do Ensino Médio, nos conteúdos que envolvem as discussões da
astronomia de Galileu?
Somos convidados, então, a mergulhar no ensino de física sob o olhar da história e da
filosofia. E, para irmos cada vez mais fundo, vamos refletir sobre a abordagem didática da HFC
no ensino de ciências, dialogando, no capítulo 2, com diversos educadores, historiadores e
filósofos da ciência. Vamos defender a utilização pedagógica da HFC, apontando suas
potencialidades e limitações, com objetivo de construir uma base teórica para intervenções
didáticas com seu uso nas aulas de física do Ensino Médio.
No capítulo 3, voltamos o nosso olhar à Filosofia da Ciência ao apresentarmos o filósofo
da ciência Paul Feyerabend e as suas principais contribuições no que chamamos de uma
concepção anarquista do desenvolvimento científico, ideia esta, que também pode ser traduzida
pelo pluralismo metodológico com que o cientista deve proceder, ou seja, uma oposição radical
a um princípio único, imutável e absolutamente obrigatório, capaz de envolver os eventos e
processos científicos numa estrutura comum. A escolha desse autor não foi por um acaso – me
identifiquei, particularmente, por sua defesa ao anarquismo científico e seu ataque à Razão e à
16
Racionalidade, além de apreciar sua linguagem irônica e suas provocações, onde, por vezes,
tenho alguns ataques momentâneos de risos, o que me levou, inevitavelmente, a sorrir bastante
ao escrever minha pesquisa. Além disso, compartilho com Feyerabend o interesse no período
histórico, entre o final do século XVI e início do século XVII, que representa um recorte da
chamada Revolução Copernicana, onde o personagem Galileu Galilei aparece como um dos
protagonistas desse processo. Discutimos, neste capítulo, alguns bordões que envolvem este
autor: o anarquismo epistemológico, a afirmação de que tudo vale, a questão da
incomensurabilidade, a relação da ciência com a sociedade e com outras formas de
conhecimento e os títulos das suas principais obras5: Contra o Método (FEYERABEND, 1977;
2011b), Adeus à razão (FEYERABEND, 2010) e A Ciência em uma sociedade livre
(FEYERABEND, 2011a).
Já no capítulo 4, intitulado O ensino da astronomia de Galileu numa perspectiva
feyerabendiana, apresentamos as contribuições de Feyerabend para o ensino de ciências, e
utilizamos os seus escritos para inserir recortes da história da ciência que envolvem o
personagem histórico Galileu Galilei, propondo subsídio teórico para que professores de física
possam utilizar a Filosofia da Ciência como estratégia didática em situações reais de ensino.
Tratamos, especificamente, de três temas de astronomia que são normalmente adotados pelos
professores de física no primeiro ano do Ensino Médio e que, de forma articulada, compõem
um quadro do trabalho de Galileu e que possuem grande relevância histórica para as críticas de
Paul Feyerabend: i) Corpos em queda livre; ii) Geocentrismo x Heliocentrismo; e iii) O
telescópio como prova definitiva do céu. Juntos, esses temas formam a base para as discussões
feitas por Galileu Galilei, no início do século XVII, a respeito da relação entre sua física
terrestre e celeste. Esses temas, entretanto, não foram escolhidos arbitrariamente – minha
formação em Licenciatura em Física com foco em astronomia e minha prática como astrônomo
amador na criação de Clubes de Astronomia Escolares e na promoção de eventos de divulgação
científica em astronomia, me fizeram sustentar uma imagem caricata do desenvolvimento
científico, sobretudo em astronomia, que foi sendo criticada durante minha formação acadêmica
através das disciplinas específicas de HFC na graduação e no início da pós-graduação,
5 A primeira edição de Contra o Método foi publicada no ano de 1975 com o título original Against Method (com
versão traduzida para português em 1977). A Ciência em uma sociedade livre (Science in a Free Society) foi
publicada em 1978 e a obra Adeus à razão teve sua primeira edição no ano de 1987 com o título original Farewell
to Reason e reúne diversos ensaios que tratam da diversidade e da mudança na cultura, incluindo o famoso
capítulo de Galileu e a tirania da verdade. Estas obras de Feyerabend, em suas traduções para o português e em
suas versões mais recentes, serão as fontes primárias que utilizaremos em nossa pesquisa.
17
principalmente pela apresentação de diversos filósofos da ciência, em especial, Paul
Feyerabend. Em suas obras, esse autor apresenta uma visão, baseada na História e na Filosofia
da Ciência, que permite a transmutação6 desses três temas já citados em: i) A interpretação
contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos; ii) A Palavra de Deus como
argumento contra a frágil teoria copernicana; e iii) O telescópio fornece um retrato verdadeiro
do céu?
No capítulo 5, fazemos uma releitura feyerabendiana da astronomia de Galileu, com
vistas a sua utilização no ensino de física. Após uma ampla pesquisa bibliográfica nos
periódicos da área de Ensino de Ciências, constatamos que, apesar de haver muitos trabalhos
referentes ao personagem histórico Galileu Galilei, outros com diversas contribuições
pedagógicas para a educação em astronomia, e outros, ainda, discutindo a possível contribuição
de Feyerabend para o ensino, poucos são os trabalhos da literatura que tratam, especificamente,
das discussões da astronomia de Galileu usadas como estratégia didática a partir de uma leitura
feyerabendiana. Assim, dentro dessa problemática, propomos uma unidade didática composta
por três momentos – um encontro de observação astronômica, uma atividade de construção
teórica e uma aula júri simulado – como subsídio para se trabalhar os sistemas de mundo de
Galileu Galilei nas aulas de física do Ensino Médio.
Após isso, chegamos às considerações finais de nossa dissertação, recomendando a
utilização da abordagem histórico-filosófica da ciência e, em especial, a epistemologia
feyerabendiana, como estratégia didática no ensino de física. Além disso, destacamos que essa
proposta deve ser refinada e ampliada, objetivando uma educação de qualidade e uma
construção crítica do saber científico por nossos estudantes. Finalmente, apresentamos o
Apêndice como uma das etapas da unidade didática proposta na pesquisa. Trata-se de um texto
didático a respeito das discussões feitas por Galileu sobre os sistemas de mundo, a partir da
análise das obras de Feyerabend, e que tem por objetivo contribuir para aprendizagem do
conteúdo curricular de mecânica, sendo dedicado, preferencialmente, aos alunos de física do 1°
ano do Ensino Médio.
6 O termo transmutação não foi empregado casualmente. Esses temas sofrem uma mudança tão radical, após
serem analisados numa perspectiva da HFC, que se pode até dizer que eles têm sentidos opostos.
18
2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA
No que diz respeito ao ensino de ciências, defendemos que o conhecimento a ser
ensinado abranja não apenas os produtos científicos (como leis, teorias e aplicações), mas,
também, os processos que envolvem a Ciência (seus métodos, estruturas e mecanismos de
transformação), e a inclusão da HFC no ensino apresenta-se como um bom caminho a ser
percorrido (VANNUCCHI, 1996, p. 14).
Segundo Matthews (1995, p. 165), a aproximação entre os campos da História e
Filosofia da Ciência com o ensino de ciências se deve, principalmente, à inclusão dos elementos
históricos e filosóficos nos currículos nacionais de vários países, como, por exemplo, na
Inglaterra, no País de Gales e nos EUA, além de conferências europeias (Pávia – 1983; Murique
– 1986; Paris – 1988; Cambridge – 1990), britânicas (Oxford – 1987) e internacionais (Flórida
– 1989), sobre História, Filosofia, Sociologia e o Ensino de Ciências. O autor afirma que os
episódios da história da ciência e os aspectos da filosofia da ciência devem ser parte integrante
dos currículos escolares (MATTHEWS, 1995, p. 189).
Aqui no Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio,
desde o final da década de 90, indicam a inserção de elementos histórico-filosóficos no ensino
das matérias científicas, contemplados através da categoria contextualização sócio-cultural da
ciência e da tecnologia (BRASIL, 2000, p. 11), como uma dimensão das competências e
habilidades a serem desenvolvidas no ensino-aprendizagem de ciências. Seguem alguns trechos
deste documento oficial:
Reconhecer o sentido histórico da ciência e da tecnologia, percebendo seu
papel na vida humana em diferentes épocas; (...) compreender as ciências
como construções humanas, entendendo como elas se desenvolveram por
acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas (ibidem, p. 13).
Reconhecer a Biologia como um fazer humano e, portanto, histórico, fruto da
conjunção de fatores sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos e
tecnológicos (ibidem, p. 21).
A Física percebida enquanto construção histórica, como atividade social
humana, emerge da cultura e leva à compreensão de que modelos explicativos
não são únicos nem finais. (...) O surgimento de teorias físicas mantém uma
relação complexa com o contexto social em que ocorreram (ibidem, p. 27).
19
Reconhecer as relações entre o desenvolvimento científico e tecnológico da
Química e aspectos sócio-político-culturais (ibidem, p. 39).
Nessa medida, a história das Ciências é um importante recurso (...) tem uma
relevância para o aprendizado que transcende a relação social, pois ilustra
também o desenvolvimento e a evolução dos conceitos a serem aprendidos
(ibidem, p. 54).
Os PCN+ também reforçam essa dimensão sócio-cultural e histórica ao destacar como
uma competência geral a compreensão do “conhecimento científico e o tecnológico como
resultados de uma construção humana, inseridos em um processo histórico e social” (BRASIL,
2002, p. 32).
Entretanto, mais recentemente, o Brasil enfrenta um cenário de disputas político-
econômicas que vem causando instabilidade institucional e influenciando diretamente alguns
aspectos da educação nacional (MARTINS, 2019, p. 254). A chamada Base Nacional Comum
Curricular7 (BNCC), ao organizar as matérias científicas de modo integrado (isto é, sem
discriminar as disciplinas de química, física e biologia), introduz na Área de Ciências da
Natureza e suas Tecnologias que
a contextualização histórica não [deve] se ocupa[r] apenas da menção a nomes
de cientistas e a datas da história da Ciência, mas de apresentar os
conhecimentos científicos como construções socialmente produzidas, com
seus impasses e contradições, influenciando e sendo influenciadas por
condições políticas, econômicas, tecnológicas, ambientais e sociais de cada
local, época e cultura. (...) Propõe-se, por exemplo, a comparação de distintas
explicações científicas propostas em diferentes épocas e culturas e o
reconhecimento dos limites explicativos das ciências, criando oportunidade
para que os estudantes compreendam a dinâmica da construção do
conhecimento científico (BRASIL, 2018, p. 550).
E aponta, na primeira habilidade da competência específica 2, que o ensino de ciências
deve
analisar e discutir modelos, teorias e leis propostos em diferentes épocas e
culturas para comparar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução
7 Martins (2019, p. 256-261) constrói uma análise a respeito das mudanças nas versões da BNCC e desenvolve
uma crítica sobre esse processo.
20
da Vida, da Terra e do Universo com as teorias científicas aceitas atualmente
(BRASIL, 2018, p. 557).
Apesar disso, a BNCC não apresenta a dimensão histórico-filosófica em suas
competências específicas para o ensino médio, o que caracteriza, segundo Martins (2019, p.
260), uma diminuição da relevância da perspectiva histórico-filosófica na versão final deste
documento.
Podemos, ainda, apontar diversos autores que defendem a utilização didática da HFC
com base nos seguintes argumentos: ela humaniza o conhecimento científico evidenciando os
interesses pessoais, além das questões éticas, culturais e políticas que o envolvem; motiva e
atrai os estudantes, podendo construir o pensamento crítico a partir de aulas científicas mais
desafiadoras e reflexivas; contribui para um melhor entendimento dos conceitos científicos,
visto que, nas salas de aula de ciências, fórmulas, conceitos e equações são memorizadas mas
geralmente não são compreendidas; auxilia na formação de professores8 ao construir um
conteúdo científico baseado no seu desenvolvimento histórico e filosófico, evidenciando que a
ciência é mutável e que, por isso, as teorias contemporâneas estão sujeitas a transformações;
permite uma melhor compreensão dos métodos científicos e demonstra como ocorrem as
mudanças na metodologia vigente (MATTHEWS, 1995, p. 165, 172); abraça não apenas as
concepções científicas do mundo físico, mas também como elas surgiram, evoluíram e até onde
são válidas, e como se relacionam com outras partes da cultura e da sociedade (VALADARES,
2012, p. 96); melhora a compreensão dos conteúdos científicos e favorece a apropriação de
atitudes e valores que estão presentes na ciência, por parte dos educandos (BASTOS FILHO,
2012, p. 65); pode oferecer exemplos de casos históricos de investigação e experimentação
científica, bem como de hipóteses inesperadas ou contra-indutivas, e como ocorreram a
consolidação e a substituição de teorias e modelos na ciência (VANNUCCHI, 1996, p. 14); e
8 Matthews (1995), ao citar o trabalho de Harre (1983), afirma que “Michael Polanyi defendeu o ponto de vista
óbvio de que HFS deveria ser parte da educação em ciências tanto quanto a crítica literária e musical fazem parte
da educação literária e musical. Seria, no mínimo, esquisito imaginar um bom professor de literatura que não
tivesse conhecimento dos elementos da crítica literária: a tradição que discute o que tem, ou não, valor literário,
como a literatura se relaciona com a sociedade, a história dos gêneros literários, etc. Da mesma forma, também
deve ser estranho imaginar um bom professor de ciências que não tenha um conhecimento razoavelmente sólido
da terminologia de sua própria disciplina (...) ou nenhum conhecimento dos objetivos muitas vezes conflitantes de
sua própria disciplina” (MATTHEWS, 1995, p. 188).
21
promove uma compreensão da ciência como parte da cultura e da sociedade (ZANETIC, 1989,
p. 24).
Martins (2019, p. 249-250), ao dialogar com Zanetic (1989, p. 126-127) e com
Vannucchi (1996, p. 19-22), manifesta algumas razões para utilização da HFC no ensino:
proporciona a interação entre tópicos e disciplinas, permitindo a construção de uma abordagem
interdisciplinar; relaciona as dificuldades de aprendizagem dos estudantes a concepções
científicas controversas que historicamente estiveram em confronto; possui uma importância
em si mesmo, uma vez que a ciência é patrimônio cultural da humanidade; concede significado
às fórmulas e equações científicas; auxilia na compreensão da natureza da atividade científica,
evidenciando seu processo de construção; colabora com a formação integral do cidadão
contemporâneo; promove uma visão da ciência que também traz os insucessos históricos e que
desmistifica e humaniza a prática científica; dentre outras.
Delizoicov (1996, p. 182), ao discutir sobre o conhecimento científico e criticar o que
chama de uma produção de conhecimento linear e cumulativa, que é obtido através de um
método único e bem definido, afirma que, utilizando a Filosofia da Ciência, o “status do
conhecimento científico passa a ser percebido como uma verdade histórica e não mais como a
verdade extraída dos fatos”, desmitificando, assim, a visão consolidada e imutável que a ciência
recebeu recentemente. Afirma ainda que, “a apropriação de conhecimentos científicos pelos
alunos não ocorre por simples transmissão de conceitos, modelos e teorias”, mas a partir de
uma construção alicerçada nas “interações não neutras com [os] objetos de conhecimento”
(ibidem, p. 183, grifos do autor).
Segundo Fonseca (2015, p. 7, 11), o ensino de ciências deve ser apresentado como um
processo de construção histórica e não como o resultado acabado de anos de desenvolvimento,
ou ainda, reproduções matemáticas e resoluções algébricas de problemas que não se articulam
com a conjuntura do estudante. Ele deve, então, proporcionar uma formação que correlacione
o conhecimento às especificidades sociais, culturais, políticas, econômicas, etc., em que se
inserem, evidenciando os processos complexos do qual surge e se desenvolve a ciência.
Forato et al. (2012, p. 126) afirmam que
um olhar atento pode identificar discrepâncias entre uma concepção de ciência
como uma construção humana, social, influenciada por fatores culturais, e um
relato histórico que traz, implicitamente, uma ciência puramente empírica e
neutra, produtora de verdades absolutas que desconsidera debates,
controvérsias e rupturas em sua história. Desse modo, é importante confrontar
22
os objetivos formativos e epistemológicos que se buscam, com as visões
transmitidas pelas narrativas históricas utilizadas (grifo do autor).
Bastos Filho (2012, p. 65) afirma, ainda, que a incorporação e o entrelaçamento da
história e da filosofia com o Ensino de Ciências há algumas décadas é recomendado, dado seu
rico potencial, pela maioria dos educadores e professores das disciplinas científicas. Fazemos,
então, o seguinte questionamento: se o emprego da HFC como estratégia didática /
metodológica é amplamente recomendado pelos especialistas da área, por que, geralmente, não
a vemos sendo utilizada em salas de aula? “A resposta é, certamente, simples: não é fácil fazer.
(...) Dados reforçam a ideia de que há um abismo entre o valor atribuído à História e Filosofia
da Ciência e a sua utilização com qualidade como conteúdo e estratégia didática nas salas de
aula do nível médio” (MARTINS, 2007, p. 127).
Segundo Valadares (2012, p. 18),
são vários os argumentos em favor do uso da HFC no ensino. (...) Por outro
lado, há poucos trabalhos que fornecem corroboração empírica para esses
argumentos. (...) Portanto, essa área de pesquisa deve estar alerta para a
necessidade de que sejam feitos maiores esforços para a realização de
intervenções didáticas com uso de HFC no Ensino de Ciências e que tais
intervenções sejam objetos de investigação, a fim de que se possa
compreender melhor em situações reais de sala de aula qual a real contribuição
que a HFC pode oferecer ao ensino e aprendizagem das ciências.
Entretanto, Teixeira et al. (2012, p. 9) realizam uma revisão das pesquisas publicadas
no Brasil desde a década de 1980 a meados de 2011 que fazem uso da HFC no ensino, e apontam
que ainda há poucos trabalhos que analisam o uso da HFC como estratégia didática. Fonseca
(2015), ao se referir a este mesmo trabalho, afirma que “apesar de haverem currículos que já
contemplam elementos de HFC e [um] aumento significativo de publicações sobre o uso dessa
abordagem, poucas são as revisões sobre a potencialidade de seu uso” (FONSECA, 2015, p.
2484). Assim, em meio às dificuldades no ensino-aprendizagem de ciências, e em especial o de
física, “é bastante relevante a preocupação voltada para as narrativas históricas, presentes no
ambiente escolar, e as visões que elas podem promover sobre os processos de construção da
ciência” (VALADARES, 2012, p. 47).
23
Além disso, no ponto de vista didático, a HFC geralmente é apresentada como algo
periférico e ilustrativo, que é mostrado nos livros e citado no início das aulas como uma
introdução aos conteúdos que realmente importam, limitando-se ao aspecto motivacional, que
visa despertar o interesse dos alunos e contextualizar o conteúdo que será ensinado. Mas, dessa
forma, “sabemos que ela dificilmente cumpre o seu papel” (MARTINS, 2007, p. 128).
Vannucchi (1996, p.19) disserta a respeito das contribuições da HFC para a educação
científica. A autora afirma que essa aproximação apresenta contribuições significativas para o
ensino e aprendizado de ciências, apontando diversos autores da área que defendem essa
aproximação e outros, inclusive, que fazem oposição. A partir da década de 1970, muitos
debates foram travados na área a respeito dos problemas nas reconstruções históricas. É nesse
sentido que Rozentalski (2018, p. 38-39) nos questiona sobre qual perspectiva historiográfica
da ciência deve ser levada ao ensino. Ele cita a necessidade da formação histórica/filosófica dos
professores que desejam levar essas abordagens para a sala de aula e aponta razões contrárias à
utilização da história da ciência: de maneira anacrônica, da quasi-história9 (apresentação da
história em termos lógicos e ordenados) e da pseudo-história10 (uma reconstrução parcial
negligenciando aspectos importantes, romantizando o cientista e apresentando-o como um
herói, ao enfatizar suas virtudes e ocultar seus erros). Assim, ele defende o que chama de
interpretação do passado em termos diacrônicos, de forma que tais eventos sejam avaliados de
acordo com o contexto de sua própria época.
É isso que já defendia Lilian Martins (2005), ao discutir sobre os objetos, métodos e
problemas da área da historiografia da ciência, apontando alguns questionamentos ao se
trabalhar narrativas históricas. Segundo ela, “a história da ciência é feita por seres humanos e
se constitui em uma reconstrução de fatos e contribuições científicas que ocorreram, muitas
vezes, em épocas distantes da nossa, [por isso,] é comum encontrarmos alguns problemas nessas
reconstruções” (ibidem, p. 314). Um deles é uma história puramente descritiva, caracterizada
por datas e acontecimentos que não tem relevância e que, geralmente, apresenta a figura de um
grande cientista (homem, velho e, por vezes, louco), estereotipado como um gênio isolado, que
foi responsável por uma grande descoberta que mudou o mundo em sua época ao concluir algo
que ninguém havia tido capacidade de pensar – Galileu, Newton, Darwin, Lavoisier, Einstein,
são alguns desses exemplos. Outro problema é a interpretação whig da história – ou seja, uma
9 Rozentalski (2018, p. 39) faz referência aos trabalhos de Whitaker (1979a, 1979b).
10 Citando o trabalho de Allchin (2004).
24
história da ciência anacrônica. O anacronismo consiste em “procurar no passado somente o que
se aceita atualmente, ignorando completamente o contexto da época” (ibidem, p. 314),
buscando precursores de uma determinada teoria ou conceito que só foram desenvolvidos
posteriormente. A autora defende a importância de familiarizar-se com o que chama de
atmosfera da época em que se está estudando, mantendo sempre a atenção ao que se produziu
posteriormente, tentando entender quais foram os motivos11 que levaram determinadas teorias
a ascensão e outras a serem descartadas. Um terceiro problema é a utilização da história da
ciência de forma ideológica, privilegiando um determinado grupo social (de forma nacionalista,
étnica, política, religiosa, etc.) em detrimento de outros, cujo conhecimento, valores ou ações
seriam inferiores. A autora ainda chama atenção para que os recortes da história sejam feitos
de forma fiel, sem omitir aspectos importantes ou ideias e fatos que entrem em conflito com o
ponto de vista do historiador, gerando assim uma narração falsa da história da ciência
(MARTINS, L., 2005, p. 314-315).
Roberto Martins (2006, p. xxxi) chama a atenção para alguns equívocos a respeito do
uso didático da história da ciência: a redução a nomes, datas e anedotas, baseado em concepções
falsas a respeito da história da ciência (a ciência é feita por grandes personagens, que de forma
isolada realizam “descobertas” numa determinada data); concepções errôneas sobre o método
científico (a crença de que os cientistas usaram o método indutivista de investigação para
“provar” as descobertas científicas); e o uso de argumentos de autoridade para justificar a
aceitação dos conhecimentos científicos (ao afirmar que a ciência provou a teoria e, por isso,
ela não pode ser questionada – o que, obviamente, não é verdade – gerando assim uma crença
na ciência, um tipo de superstição moderna).
Estas discussões a respeito das áreas da História e da Filosofia da Ciência são de crucial
importância para o ensino, mesmo que nem sempre (quase nunca!) os filósofos e historiadores
da ciência estejam diretamente preocupados com o ensino de ciências. Segundo Martins (2012,
p. 261), a relação entre concepção epistemológica e processo de ensino-aprendizagem não é
trivial e requer um olhar especial sobre como ensinar ciências, cabendo, então, aos professores
11 Nem sempre esses motivos são racionais ou objetivos. Há diversos exemplos na História da Ciência (como
veremos nos próximos capítulos) que teorias melhor formuladas e consensualmente comprovadas foram
abandonadas porque suas rivais (novas teorias) estavam melhor adaptadas ao contexto da época (influências
religiosas, sociais, políticas, econômicas, propaganda, etc.) ou porque estavam de acordo com novas observações
empíricas, mesmo baseando-se em suposições contra indutivas ou em afirmações refutadas.
25
de ciências construírem essa ponte com a área da HFC, edificando, assim, novas metodologias
educacionais.
Isso se dá não apenas por uma questão de conteúdo (...) mas também,
principalmente, porque existem paralelos entre a evolução das ideias
científicas e o desenvolvimento cognitivo dos alunos. Dessa forma, o aprender
e ensinar ciência tem muito a ganhar com a epistemologia, que não precisa
fornecer o modelo ou paradigma a partir do qual o processo de ensino-
aprendizagem deva ser pensado, mas pode, sem dúvida, informar esse
processo, dialogar com ele (MARTINS, 2012, p. 261, grifo do autor).
Diante disso, a aproximação entre epistemologia12 e o ensino de ciências poderia
desenvolver nos professores e alunos uma reflexão mais profunda sobre os conteúdos
científicos que estão estudando. Dessa forma, o conteúdo da disciplina não seria mostrado,
exibido, mas, surgiria como uma resposta a uma determinada situação-problema, que fora
discutida em uma determinada época, evidenciando os métodos utilizados pelos cientistas, que
foram influenciados por fatores sociais, econômicos, políticos e até religiosos, dentre outros.
Assim, os estudantes se deparariam com uma ciência mais humana e mais real (no sentido de
uma visão menos distorcida dos procedimentos científicos), levando-os, inclusive, a se
perceberem como agentes participantes desse processo, com capacidade efetiva (e afetiva) de
ser tornarem grandes cientistas, construindo, assim, um novo sentido ao processo de ensino-
aprendizagem.
A vasta literatura da área apresenta uma grande discussão a respeito da Natureza da
Ciência13, que tem sobreposição com o que aqui discutimos. Entretanto, não temos por intenção
desenvolver essa discussão, visto que esta é uma subárea de pesquisa bastante ampla e
consolidada e, por razões de tempo e espaço, o nosso objetivo não é discutir esse tema com
12 “O termo epistemologia abrange discussões em torno de teorias do conhecimento [não necessariamente
científicas] e sua justificação, de modo que o conhecimento científico é um de seus objetos – o que muitas vezes
é especificado pelo termo epistemologia da ciência [ou Filosofia da Ciência, como, particularmente, preferimos].
(...) Assim, a epistemologia distingue-se da Filosofia da Ciência por sua amplitude. Contudo, na França, [por
exemplo,] o termo epistémologie tradicionalmente se referiu ao que compreendemos como Filosofia da Ciência.
Assim, dependendo de sua formação, um autor pode estar se referindo às discussões da Filosofia da Ciência quando
emprega o termo epistemologia” (DUTRA, 2010 apud ROZENTALSKI, 2018, p. 59, grifos do autor).
13 Não há consenso na tentativa de estabelecer (por definitivo) uma caracterização da ciência e do desenvolvimento
científico. Moura & Guerra (2016, p. 726) apresentam uma discussão sobre os que defendem e os que criticam
esse modelo. Rozentalski (2018, p. 129-152) tece críticas à abordagem consensual, contra-argumentos, e ainda
apresenta algumas abordagens alternativas.
26
profundidade, mas apenas relacioná-lo com o Ensino de Ciências, a fim de propor uma mudança
na imagem empírico-indutivista, carregada de linguagem matemática e caracterizada por um
método bem estabelecido, ainda predominante no âmbito escolar.
Mas qual Filosofia da Ciência ensinar?
Uma ciência neutra, linear e progressiva, feita por grandes gênios isolados, através de
um método bem definido, é a visão de senso comum da ciência. Rozentalski (2018, p. 54), ao
citar Hodson (1985), afirma que a ausência de uma Filosofia da Ciência evidente e respaldada
nos currículos, na formação de professores e nas aulas de ciências do ensino médio, podem
resultar nas seguintes compreensões sobre a ciência: (i) a prática científica permite uma
compreensão da Verdade e da Realidade; (ii) o conhecimento científico é derivado de
observações imparciais dos fenômenos da natureza; (iii) os experimentos desenvolvidos pelos
cientistas são confiáveis e tem finalidade de testar racionalmente suas teorias; e (iv) a ciência é
um conhecimento objetivo, livre de valores e preconceitos, e não é (e nem deve ser)
influenciada por fatores subjetivos como questões sociais, históricas, religiosas ou econômicas.
Essas características da ciência, por vezes chamada de ideologia cientificista, estão,
geralmente14, presentes em diversas partes da sociedade: na mídia, no comércio, nas praças, nos
livros didáticos e nas aulas de ciências do Ensino Médio e até mesmo no Ensino Superior,
gerando uma visão distorcida dos processos que envolvem a ciência.
De maneira oposta, Silveira (1992), afirma que
a observação e a experimentação por si sós não produzem conhecimento. O
“método indutivo” é um mito; o conhecimento científico é uma construção
humana que tem como objetivo compreender, explicar e também agir sobre a
realidade. Não podendo ser dado como indubitavelmente verdadeiro, é
provisório e sujeito a reconstruções; na construção de novos conhecimentos
participam a imaginação, a intuição, a criação e a razão. A inspiração para
produzir um novo conhecimento pode vir inclusive da metafísica; a aquisição
de um novo conhecimento é sempre difícil e problemática. Os cientistas são
relutantes em abandonar as teorias de suas preferências mesmo quando
parecem conflitar com a realidade. O abandono de uma teoria implica em
reconhecer outra como melhor (SILVEIRA, 1992, p. 38).
Assim, analisando esses temas, notamos uma discrepância entre os elementos da ciência
do senso comum e a Ciência que é legitimada pela HFC.
14 Apesar de não ser habitual, hoje já é possível encontrar diversas sequências didáticas, artigos e até mesmo livros
didáticos, que fazem uso, com qualidade, da HFC no ensino.
27
Segundo Roberto Martins (2006), estudar de maneira adequada os episódios históricos
pode contribuir para que os alunos percebam
o processo social (coletivo) e gradativo de construção do conhecimento,
permitindo formar uma visão mais concreta e correta da real natureza da
ciência, seus procedimentos e suas limitações – o que contribui para a
formação de um espírito crítico e desmitificação do conhecimento científico,
sem no entanto negar seu valor. A ciência não brota pronta, na cabeça de
“grandes gênios”. Muitas vezes, as teorias que aceitamos hoje foram propostas
de forma confusa, com muitas falhas, sem possuir uma base observacional e
experimental. Apenas gradualmente as ideias vão sendo aperfeiçoadas,
através de debates e críticas, que muitas vezes transformam totalmente os
conceitos iniciais (MARTINS, R., 2006, p. xxii).
Além disso, esse estudo evidencia que a ciência não surge de um método científico que
leva a um acesso à verdade por trás da natureza, mas que os cientistas trazem consigo ideias
pré-concebidas, que muitas vezes formulam hipóteses sem fundamento ou análise
experimental, explicações contraditórias ou consideradas irracionais, fazendo da ciência uma
construção extremamente complexa que não possui nenhuma fórmula infalível (MARTINS, R.,
2006, p. xxiii).
De forma que, considerando a epistemologia fundamental para a formação científica
dos estudantes, Forato et al. (2012, p. 123-124) chamam atenção para as dificuldades existentes
ao tentar produzir materiais didáticos e metodologias educacionais adequadas que fazem uso
da HFC, uma vez que os professores das ciências (química, física, biologia) já enfrentam os
desafios específicos de suas disciplinas científicas. Como estes poderiam fazer uso, com
qualidade, da HFC em sua prática pedagógica, sem comprometer os conteúdos científicos?
Eles, então, discutem sobre “o enfrentamento de dificuldades e obstáculos para a inserção de
conteúdos selecionados de HFC na escola básica” (ibidem, p. 124). Segundo os autores, não
basta inserir esses conteúdos, é necessário perceber que as concepções que os professores15 têm
a respeito da ciência refletem na sua prática educativa em sala de aula. Além do mais, a
15 “Gil Perez e colaboradores (2001) analisaram as visões sobre a natureza da ciência em um grande grupo de
professores e encontraram concepções dissonantes com essas recomendadas pela literatura. (...) Eles relatam
concepções empírico-indutivistas e ateóricas, a-históricas, dogmáticas, elitistas, exclusivamente analíticas,
acumulativas e lineares dos processos de construção do conhecimento científico, em geral protagonizadas por
insights individuais de grandes pensadores. Os autores discutem como o Ensino de Ciências vem reforçando e
propagando tais concepções indesejadas sobre a construção da ciência” (FORATO et al., 2012, p.125-126).
28
transformação das narrativas históricas em conteúdos adequados à escola básica requer uma
mudança de nicho epistemológico (ibidem, p. 125, 127). Assim,
tais obras devem ser interpretadas à luz de seu tempo, (...) mediante um olhar
contextualizado para os conteúdos científicos. Desse modo, é importante
entender tais conceitos a partir de sua formulação original (fontes primárias),
confrontando-as com narrativas especializadas (fontes secundárias), e
considerando perspectivas sociais e culturais na construção da ciência. É
necessário, portanto, transitar em diferentes campos do saber. Mais do que
isso, é necessário construir conhecimentos que inscrevem em si próprios
aspectos de diversas especialidades (FORATO et al., 2012, p.127).
Os autores desenvolveram uma pesquisa empírica e analisaram dezessete obstáculos
(propostos), objetivando a construção dos saberes da HFC no ensino-aprendizagem de ciências.
Dentre eles, destacamos a seleção dos aspectos histórico-filosóficos a serem enfatizados em
cada episódio; o nível de detalhamento/aprofundamento; quando e como se utilizar trechos de
fontes primárias; a superação de concepções ingênuas sobre história e epistemologia da
ciência; a falta de preparo do professor, de textos especializados e pré-requisitos dos alunos
(em relação ao conhecimento matemático, físico, histórico, filosófico); e a quantidade de
informações na forma de textos que são apresentados.
Monteiro (2014), por sua vez, ao realizar uma pesquisa que analisa os obstáculos
enfrentados por professores de ciências na elaboração e aplicação de materiais didáticos que
fazem uso da HFC no ensino de física, a fim de propor uma mudança em sua forma já
consolidada, em que “prevalece o formalismo geométrico, a matematização, a ausência de
significado e, consequentemente, os índices de baixo desempenho” (ibidem, p. 46), apresenta
as estratégias didáticas que mais foram utilizadas a fim de evitar a mera transmissão oral de
conteúdos (ver gráfico 1). Além disso, o autor salienta a importância da utilização de fontes
primárias e secundárias na elaboração de textos e materiais didáticos com enfoques histórico-
filosóficos.
Gráfico 1 – Estratégias didáticas utilizadas para alcançar os objetivos propostos.
29
Fonte: MONTEIRO, 2014, p. 46.
Para estendermos a discussão do que compete à Filosofia da Ciência em estabelecer um
olhar a respeito do empreendimento humano chamado ciência, procurando entender a natureza
desse conhecimento e sua contribuição para o ensino, vamos, no próximo capítulo, discutir
sobre o desenvolvimento científico na perspectiva do filósofo da ciência Paul Feyerabend e as
suas consequências na sociedade. Mais adiante, iremos apresentar o caso histórico da
astronomia de Galileu à luz da perspectiva feyerabendiana. Tal perspectiva pode servir como
subsídio teórico para que professores das matérias científicas possam fazer uso da HFC, a fim
de que reflitam sobre o desenvolvimento científico e as características que são próprias do fazer
ciência, promovendo, assim, a inserção de conteúdos do campo do saber da Filosofia e da
História da Ciência para o ensino.
30
3. O ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICO DE PAUL FEYERABEND
A área da Filosofia da Ciência é construída por diversos autores que discutem acerca
desse empreendimento humano chamado ciência, tentando estabelecer suas fronteiras,
metodologias, práticas cotidianas, limites e valores intrínsecos e fundamentais do
desenvolvimento científico. As ideias de um deles, em especial, nos chamam a atenção.
Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend.
Fonte: Medium Brasil. Disponível em: <medium.com/brasil/carta-a-paul-feyerabend-18f8da84eb76>.
Acesso em: 29 out. 2019.
O austríaco Paul Karl Feyerabend nasceu em Viena em 13 de janeiro de 1924 e faleceu
em sua casa em Zurique, em 11 de fevereiro de 1994, vítima de um tumor cerebral. Filósofo,
com doutorado em física pela Universidade de Viena, especialização em teatro e doutor honoris
causa em letras e humanidades pela Universidade de Chicago, Feyerabend desenvolveu uma
filosofia da ciência bastante peculiar. Em suas reflexões epistemológicas, sempre deixou
evidente sua postura radical a respeito da natureza da ciência e foi julgado como terrorista
epistemológico e, mais recentemente, chamado de o pior inimigo da ciência por aqueles que
31
pareceram se ofender com suas críticas e provocações. Ele participou de diversos debates na
área, como o grupo da London School of Economics, liderado por Karl Popper nos anos 50; o
wittgensteineanos; o grupo de Herbert Feigl nos EUA; e de discussões com Imre Lakatos e
Thomas Kuhn, dentre outros, além de ter lecionado na Universidade da Califórnia e no Instituto
Federal de Tecnologia de Zurich (REGNER, 1996, p. 231-232).
Chalmers (1993, p. 173) cita que um dos relatos do desenvolvimento científico “mais
estimulantes e provocadores é aquele que foi pitorescamente apresentado e defendido por Paul
Feyerabend; nenhuma avaliação da natureza e do status da ciência estaria completa sem alguma
tentativa de entrar em acordo com ele” (grifo do autor).
Neste capítulo, fazemos uso de suas principais obras: a primeira e a segunda edição de
Contra o método (FEYERABEND, 1977; 2011b) – que se diferenciam nos prefácios,
introduções e em alguns de seus últimos capítulos – onde Feyerabend desenvolve suas
principais ideias a respeito do anarquismo científico e sua crítica à Razão e à Racionalidade;
sua obra Adeus à razão (FEYERABEND, 2010), onde focaremos nas discussões a respeito da
expansão do “progresso científico” e do desenvolvimento tecnológico no Ocidente, em que
Feyerabend critica a premissa de que existe uma maneira certa de se viver que requer
intervenção; e A Ciência em uma sociedade livre (FEYERABEND, 2011a), onde o status da
superioridade científica é questionado e a ciência é colocada lado a lado com outras formas de
conhecimento, inclusive os mitos, a feitiçaria e o vodu. Além disso, reunimos no próximo
capítulo as discussões feitas por Feyerabend nessas obras, para tratarmos de Galileu Galilei no
recorte histórico de um amplo período que ficou conhecido como Revolução Copernicana.
Feyerabend apresenta uma epistemologia anárquica, em contraste com os
procedimentos racionalistas: “a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o
anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas
alternativas que apregoam lei e ordem” (FEYERABEND, 2011b, p. 31). Ele critica o
empirismo16 e o racionalismo17 por serem inadequados para elucidar o desenvolvimento
16 Feyerabend (1977, p. 39) afirma que a essência do empirismo é a regra segundo a qual o êxito das teorias
científicas se deve aos fatos ou resultados experimentais estarem de acordo com o conhecimento teórico.
17 “Feyerabend (2010) identifica o racionalismo com uma tradição que nasceu na Grécia e inicialmente ‘substituiu
os conceitos ricos e dependentes da situação (...) por umas poucas ideias abstratas e independentes da situação’,
gerando, numa segunda etapa, ‘estórias especiais, logo chamadas de provas ou argumentos’. (...) Desenvolveu-se,
assim, igualmente, a ideia de que ‘são as próprias coisas que produzem a estória e a dizem objetivamente, isto é,
independentemente das opiniões e das compulsões históricas’” (REGNER, 1996, p. 234, grifo nosso). Surgindo,
assim, o critério de que o conhecimento científico é único, verdadeiro e objetivo.
32
científico e, destaca ainda, que não há fatos experimentais neutros e que as observações dos
fenômenos naturais dependem de nossas pré-concepções.
De maneira geral, ele afirma que nenhuma das explicações propostas até agora pelos
epistemólogos são totalmente bem-sucedidas em fornecer regras adequadas para orientar as
atividades dos cientistas, e que todas as regras apresentadas até agora foram violadas em algum
momento da história:
A ideia de um método que contenha princípios firmes, imutáveis e
absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência depara com
consideráveis dificuldades quando confrontada com os resultados da pesquisa
histórica. Descobrimos, então, que não há uma regra única, ainda que
plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não seja violada em
algum momento. (...) A invenção do atomismo na Antiguidade, a Revolução
Copernicana, o surgimento do atomismo moderno [e] a emergência gradual
da teoria ondulatória da luz, ocorreram apenas porque alguns pensadores
decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas “óbvias”, ou
porque as violaram inadvertidamente. (...) Dada qualquer regra, não importa
quão “fundamental” ou “racional”, sempre há circunstância em que é
aconselhável não apenas ignorá-la, mas adotar a regra oposta. Por exemplo,
há circunstâncias em que é aconselhável introduzir, elaborar e defender
hipóteses ad hoc, ou hipóteses que contradizem resultados experimentais bem
estabelecidos e em geral aceitos, ou hipóteses inconsistentes. (...) Há mesmos
circunstâncias em que a argumentação perde seu aspecto antecipador e torna-
se um obstáculo ao progresso (FEYERABEND, 2011b, p. 37-38, grifo do
autor).
Feyerabend construiu suas “ideias estranhas” dialogando com diversos filósofos da
ciência, dentre eles, seu amigo e companheiro anarquista, Imre Lakatos18. Este desenvolveu
uma epistemologia que situava a prática científica dentro de um programa de pesquisa, o que
foi chamado por Feyerabend de anarquismo disfarçado, pois serviria de “Cavalo de Tróia,
capaz de infiltrar o anarquismo real, direto, ‘honesto’ nos espíritos de nossos mais encarniçados
racionalistas” (FEYERABEND, 1977, p. 305). Eles concordam que a metodologia científica
deve permitir um espaço livre para que as ideias dos cientistas possam ser exploradas sem
impedimentos. E, também, que os padrões das metodologias não são permanentes, mas podem,
a partir de um exame de dados históricos, serem substituídos por padrões melhores (ibidem, p.
18 Cita Feyerabend (2011b, p. 7): “Em 1970, durante uma festa, Imre Lakatos, um dos melhores amigos que já
tive, colocou-me contra a parede. ‘Paul’, disse ele, ‘você tem umas ideias tão estranhas. Por que não as põe por
escrito? Eu escrevo uma réplica, publicamos a coisa toda, e eu prometo a você – vamos nos divertir muito’”.
33
287). Dessa forma, “a metodologia dos programas de pesquisa fornecem padrões que ajudam o
cientista a avaliar a situação histórica em que ele toma suas decisões; não contém regras que
lhe digam o que fazer” diferindo radicalmente de outras filosofias, como o indutivismo e o
falseamentismo científico (ibidem, p. 289).
Ele ataca, sobretudo, a ideia de que a ciência possui um Método (com “M” maiúsculo)
único capaz de envolver os eventos e processos científicos numa estrutura comum; e que há
elementos intrínsecos às investigações científicas que estão ausentes em outros lugares:
o sucesso científico não pode ser explicado de maneira simples. Não podemos
dizer: “a estrutura do núcleo atômico foi descoberta porque as pessoas fizeram
A, B, C ...”, em que A, B e C são procedimentos que podem ser compreendidos
independentemente de seu uso na física nuclear. Tudo o que podemos fazer é
dar uma explicação histórica dos detalhes, incluindo circunstâncias sociais,
acidentes e idiossincrasias pessoais. (...) A pesquisa bem-sucedida não
obedece a padrões gerais; depende, em um momento, de certo truque e, em
outro, de outro; os procedimentos que a fazem progredir e os padrões que
definem o que conta como progresso nem sempre são conhecidos por aqueles
que aplicam tais procedimentos. Mudanças de perspectiva de longo alcance,
como assim chamadas “Revolução Copernicana” ou “Revolução
Darwiniana”, afetam diferentes áreas de pesquisa de maneiras distintas e
recebem delas impulsos diferentes. Uma teoria da ciência que delineia padrões
e elementos estruturais para todas as atividades científicas e os autoriza por
referência à “Razão” ou “Racionalidade” pode impressionar os observadores
externos – mas é um instrumento grosseiro demais para as pessoas envolvidas,
isto é, para os cientistas enfrentando algum problema de pesquisa concreto
(FEYERABEND, 2011b, p. 19-20, grifo do autor).
Para Feyerabend, a pesquisa científica não deve ser limitada por regras metodológicas.
Ele não nega que haja rigor científico, mas afirma que não há nenhuma regra que tenha sido
sempre seguida historicamente. Além disso, a atribuição das regras, por si só, para consolidar
o status científico se depara com problemas, quando comparada com o rico e complexo
conjunto de regras que os pajés utilizam para desenvolver seus rituais de cura e de orientação
e com os padrões rígidos e os juízos de valor empregados pela medicina astrológica – o que
seria rapidamente descartado por qualquer racionalista sério (FEYERABEND, 1977, p. 310).
De forma que, segundo o autor, a única regra que pode ser defendida é o princípio de que tudo
vale, uma vez que a ciência é muito complexa para ser explicada com base em um conjunto de
passos metódicos simples. Assim, o anarquismo epistemológico pode ser traduzido pelo
34
pluralismo metodológico (ou talvez pela liberdade metodológica) em que o cientista pode
proceder.
Etimologicamente, anarquismo tem raiz na palavra grega anarkhia, (sem topo, sem
poder) e representa uma filosofia política que defende os elementos da inexistência de qualquer
forma de hierarquia e dominação, seja ela política de governo, econômica, social ou cultural,
tendo como princípios a liberdade individual e coletiva, a igualdade e a solidariedade. Para nós,
utilizada em seu termo epistemológico,
significa, antes, oposição a um princípio único, absoluto, imutável de ordem,
do que oposição a toda e qualquer organização. (...) Não significa, portanto,
ser contra todo e qualquer procedimento metodológico, mas contra a
instituição de um conjunto único, fixo, restrito de regras que se pretenda
universalmente válido, para toda e qualquer situação – ou seja, contra algo que
se pretenda erigir como “o” método, como “a” característica distintiva,
demarcadora do que seja ciência (REGNER, 1996, p. 233).
Na introdução de sua obra Contra o método, Feyerabend (2011b, p. 31) afirma estar
convicto “de que o anarquismo, ainda que talvez não seja a mais atraente filosofia política, é,
com certeza, um excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência” (grifos
do autor). Para ele, a história da ciência está cheia de interações complexas de eventos –
acidentes, interesses, etc. – e tentar explicar essas circunstâncias peculiares por meio de regras
metodológicas ingênuas e simplórias só seria conveniente para um oportunista impiedoso.
Assim, ainda segundo Feyerabend, a história da ciência não se fundamenta somente em fatos e
conclusões extraída de fatos, mas também está sujeita a “ideias, interpretações de fatos,
problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante” (ibidem, p 33).
Pode-se dizer então que, em nenhuma circunstância, a ciência conhece fatos nus ou fatos
objetivos, mas que todos os dados, percepções sensoriais e resultados, que são extraídos de uma
observação científica, são essencialmente ideacionais. Feyerabend (ibidem, p. 13-14) cita que
termos como “experimentação” e “observação” abrangem complexos
processos contendo muitos elementos. “Fatos” surgem de negociações entre
grupos diferentes, e o produto final – o relatório publicado – é influenciado
por eventos físicos, processadores de dados, soluções conciliatórias, exaustão,
falta de dinheiro, orgulho nacional e assim por diante. (...) Estamos bem longe
da velha ideia (platônica) de ciência como um sistema de enunciados
desenvolvendo-se por meio de experimentação e observação e mantido em
ordem por padrões racionais duradouros.
35
Sendo assim, “a história da ciência será tão complexa, caótica, repleta de enganos e
interesses quanto às ideias que encerra, e essas ideias serão tão complexas, caóticas, repletas de
enganos e interesses quanto a mente daqueles que as inventaram” (FEYERABEND, 2011b, p.
33). Dessa forma, o anarquista epistemológico não sente receio em apoiar ou refutar o mais
banal ou o mais afrontoso enunciado, pois não tem lealdade perante qualquer instituição (como
os anarquistas religiosos), nem permanente aversão contra ele (como os anarquistas políticos).
Não há método algum visto como indispensável e nem concepções absurdas ou imorais que o
anarquista epistemológico se recuse a examinar. Comportam-se de maneira contrária aos que
defendem os “padrões universais, as leis universais, as ideias universais, como ‘Verdade’,
‘Razão’, ‘Justiça’, ‘Amor’, e o comportamento que essas ideias acarretam” (FEYERABEND,
1977, p. 292-293).
Feyerabend, paulatinamente, faz uso da história da ciência. Ele trata, dentre outras
coisas, da controvérsia acerca da Revolução Copernicana e da física de Galileu, evidenciando
uma ciência fruto de uma construção histórica, com pressão social, interesses, propagandas,
influência religiosa, ideológica, e até mesmo a busca por felicidade. Afirma que Galileu, no
início do século XVII, agiu de forma anarquista quando passou a conhecer a obra principal de
Copérnico (a respeito do Heliocentrismo) e estudou o potencial ideológico de sua doutrina, em
dissonância com o ideal de estabilidade que inspirava o ponto de vista aristotélico (aceito por
grandes grupos da população e defendido pela Igreja) e os experimentos de queda-livre (o
argumento da torre), usados pelos aristotélicos para refutar o suposto movimento da Terra. Parte
do que estava em jogo era a paz social do povo comum, coisa que Galileu pareceu não se
preocupar. O cardeal Bellarmino temia que as pessoas perdessem a fé, caso descobrissem que
a Terra não estava em repouso, mas se movia a uma velocidade de 29 quilômetros por segundo
ao redor do Sol. Galileu, com uma atitude que Feyerabend chama de esnobe e precipitada,
exigia que todos aceitassem um ponto de vista que poderia perturbar a fé dos simples, o que
deu direito ao cardeal a exigir alguma prova (científica) mais concreta, uma vez que as luas de
Júpiter, as fases de Vênus e as manchas do Sol ainda se acomodavam ao sistema de Tycho
Brahe, permitindo que a Terra continuasse imóvel no centro do Universo (FEYERABEND,
1977, p. 295-296).
36
O chamando argumento da torre19 estava baseado na interpretação natural, afirmada
pelos nossos sentidos, de que quando corpos massivos são abandonados eles caem, de cima
para baixo, em direção ao chão. Esse movimento, caso o corpo não tenha sido empurrado para
uma direção privilegiada ou levado pelo vento, será, inevitavelmente, uma linha reta e
perpendicular à superfície da Terra. Feyerabend (2011b, p. 88) afirma que essa sugestão é tão
forte que baseou sistemas inteiros de crenças e rituais, além de moldar a base de nossa vivência
cotidiana desde as experiências de queda que começam na infância. E que Galileu desenvolveu
uma discussão crítica a respeito de quais interpretações naturais deveriam ser substituídas para
acomodar a ideia de Copérnico a respeito da mobilidade da Terra.
Assim, se a Terra estivesse em movimento e uma pedra fosse abandonada do alto de
uma torre, ela deveria afasta-se da torre ao cair, uma vez que a torre estaria junto à Terra em
movimento, mas a pedra não (GALILEI, 2011, p. 208). Esse argumento envolve interpretações
naturais de que a realidade sempre nos fornece informações confiáveis que nos levam a
interpretações diretas da natureza, logo, o movimento da pedra é sempre notado por nossos
sentidos. Galileu, entretanto, “identifica as interpretações naturais inconsistentes com a teoria
de Copérnico (...) – ideias tão estreitamente ligadas a observação que é necessário um esforço
especial para perceber sua existência e determinar seu conteúdo” (FEYERABEND, 2011b, p.
85) – e as substituem por outras interpretações contra-indutivas e altamente abstratas.
Assim, podemos notar que não estavam em jogo apenas as questões racionais e que os
métodos utilizados por Galileu muitas vezes envolveram propaganda20 e um forte apelo social
para sustentar uma teoria que, como veremos mais adiante, estava em contradição com aquilo
que era visto e evidenciado pelo conhecimento científico da época.
Para Feyerabend, ignorar os processos históricos donde surge e se desenvolve uma
teoria
reflete na natureza dos “fatos” científicos, experienciados como
independentes de opinião, crença e formação cultural. É possível assim, criar
uma tradição que é mantida coesa por regras estreitas e, até certo ponto, que
também é bem-sucedida. Mas será que é desejável dar apoio a tal tradição a
ponto de excluir tudo o mais? (...) Será que os cientistas invariavelmente
permanecem nos limites das tradições que definiram dessa maneira estreita?
19 Daremos ênfase a essa discussão no próximo capítulo.
20 O termo propaganda foi acentuado por Feyerabend – interpretação que, inclusive, concordamos e a
defenderemos mais adiante – entretanto, não é consensual, entre os filósofos e historiadores da ciência, que Galileu
tenha utilizado, propositalmente, uma tática propagandista.
37
(...) [A] minha resposta a essas perguntas, [é] um firme e sonoro NÃO. (...) Os
anarquistas profissionais opõem-se a qualquer tipo de restrição e exigem que
ao indivíduo seja permitido desenvolver-se livremente, não estorvado por leis,
deveres ou obrigações (FEYERABEND, 2011b, p. 34-35, grifo do autor).
A ausência de restrições epistemológicas faz Feyerabend entoar que tudo vale quando
são analisados, de forma séria, os eventos que aconteceram na história da ciência, e essa é, com
toda certeza, uma de suas declarações mais polêmicas e conflitantes21. Na história da
humanidade, o conhecimento foi construído das mais diversas formas possíveis, e não há
nenhuma “categoria metodológica”, no qual, podemos caracterizar quais os elementos são,
necessariamente, intrínsecos à ciência. Além do mais, quando tentamos caracterizar o
desenvolvimento científico em regras metodológicas, nos é demonstrado, “tanto por um exame
de episódios históricos quanto por uma análise abstrata da relação entre ideia e ação, [que] o
único princípio que não inibe o progresso” é o mesmo princípio que sobrevive às limitações
epistemológicas da história da ciência: o princípio que tudo vale (FEYERABEND, 2011b, p.
37).
Se quiséssemos encontrar um método que fosse capaz de explicar todos os
conhecimentos construídos pela ciência, teríamos como resultado a afirmação de Feyerabend
de que tudo é válido, pois não seria possível extrair um múltiplo comum entre todos os métodos
que foram utilizados na história do conhecimento, “sendo a única saída determinar, então, que
tudo vale, que nada mais é do que a consideração de uma categoria virtual, digamos, a única
que daria conta da diversidade metodológica da ciência” (LOPES, 2016, p. 26, grifos do autor).
Está claro, então, que a ideia de um método fixo ou de uma teoria fixa da
racionalidade baseia-se em uma concepção demasiado ingênua do homem e
de suas circunstâncias sociais. Para os que examinam o rico material fornecido
pela história22 e não têm a intenção de empobrecê-lo a fim de agradar a seus
baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza,
21 O termo tudo vale também aparece na literatura como vale tudo. A diferença semântica é que o primeiro termo
pode ser destrinchado como “tudo é válido”, o que significa dizer também que “tudo tem valor”. Já o segundo dá
a ideia de que “vale qualquer coisa” de forma que “qualquer coisa serve”. Logo, no sentido epistemológico,
proposto por Feyerabend, o termo correto é, de fato, tudo vale.
22 Para exemplificar, Feyerabend (2011b, p. 108) afirma que a física clássica adota uma filosofia que contém os
princípios pelos quais recorre a uma experiência fluida e mutável, que não insistem num “julgamento assimétrico
das teorias pela experiência. (...) pelo menos procedem dessa maneira seus grandes e independentes pensadores,
como Newton, Faraday e Boltzmann. Sua doutrina oficial, contudo, ainda agarra-se à ideia de uma base firme e
imutável. O conflito entre essa doutrina e o procedimento real é ocultado por uma apresentação tendenciosa dos
resultados da pesquisa que esconde sua origem” (grifos do autor).
38
precisão, “objetividade” e “verdade”, ficará claro que há apenas um princípio
que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do
desenvolvimento humano. É o princípio de que tudo vale (FEYERABEND,
2011b, p. 42, grifo do autor)23.
Mas será que poderíamos encontrar algum caso da história da ciência que não seria
totalmente explicado por um Método que se apresente como racional, objetivo ou universal?
Se encontrássemos, provaríamos a falibilidade do Método? Então façamos algo melhor: existe
algum caso que seja absolutamente explicado por esse Método? Ou seja, na história da
humanidade, alguma vez, em algum lugar, o desenvolvimento científico pôde ser explicado
pelo que Feyerabend (2011b, p. 37) chamou de “um método que contenha princípios firmes,
imutáveis e absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência”?
A resposta para essa última pergunta é: provavelmente não. Entretanto, podemos
proceder com a negação do método: a contrarregra, que corresponde a elaborar e introduzir
hipóteses contraditórias com as teorias aceitas e/ou fatos bem estabelecidos, mas que façam
avançar a ciência, o que nos levaria a proceder contraindutivamente. Feyerabend (ibidem, p.
44) afirma que, quando um cientista deseja sustentar uma concepção,
ele precisa comparar ideias antes com outras ideias do que com a
“experiência” e tem de tentar aperfeiçoar, em vez de descartar, as concepções
que fracassaram nessa competição. (...) Concebido dessa maneira, o
conhecimento não é uma série de teorias autoconsistentes que convergem para
uma concepção ideal; não é uma aproximação gradual à verdade. É, antes, um
sempre crescente oceano de alternativas mutuamente incompatíveis, no qual
cada teoria, cada conto de fadas e cada mito que faz parte da coleção força os
outros a uma articulação maior, todos contribuindo, mediante esse processo
de competição, para o desenvolvimento de nossa consciência. [Assim,]
nenhuma concepção pode jamais ser omitida de uma explicação abrangente
(grifo do autor).
Ademais, segundo Feyerabend (ibidem, p. 67) não existe teoria alguma que concorde
com todos os fatos conhecidos que estão em seu domínio:
23 Ao citar a transição das teorias de Ptolomeu/Aristóteles para Copérnico/Galileu, Feyerabend (2011a, p. 58-62)
analisa as explicações epistemológicas, do empirismo ingênuo aos programas de pesquisa, e as criticam, a partir
de suas premissas, por não corresponderem à realidade histórica, deixando claro a sua posição de que tudo vale.
39
De acordo com nossos resultados atuais, praticamente nenhuma teoria é
consistente com os fatos. A exigência de admitir apenas as teorias que sejam
consistentes com os fatos disponíveis e aceitos deixa-nos, mais uma vez, sem
teoria alguma. (Repito: sem teoria alguma, pois não há uma única teoria que
não se encontre em algum tipo de dificuldade.) (ibidem, p. 80, grifos do autor).
“A questão, portanto, não é se teorias contraindutivas deveriam ser admitidas na ciência;
a questão é, antes, se as discrepâncias existentes entre teoria e fato devem ser aumentadas ou
diminuídas” (FEYERABEND, 2011b, p. 45, grifos de do autor). Entretanto, ele chama atenção
que não está recomendando que uma nova metodologia (a contraindução) substitua a indução
e “utilize uma multiplicidade de teorias, concepções metafísicas e contos de fadas em vez do
costumeiro par teoria/observação, (...) [substituindo] um conjunto de regras gerais por outro
conjunto da mesma espécie” (ibidem, p. 46-47). Ao contrário, sua intenção é mostrar que todas
as metodologias têm os seus limites.
Outro ponto importante da análise de Paul Feyerabend é a questão da
incomensurabilidade. Ele defende a incomensurabilidade24 entre teorias rivais, sem negar,
contudo, que haja possibilidade de discutir ambas as visões, cada qual em seus próprios termos.
Para ele, as mecânicas de Aristóteles e Newton, bem como a Física Clássica e a Relatividade
são exemplos de teorias incomensuráveis. Como as teorias não compartilham dos mesmos
princípios universais, não se pode expressar os enunciados de uma nos termos da outra, sem
modificar, fundamentalmente, o que a teoria representa. Em suas palavras:
É certo que esquemas incomensuráveis e conceitos incomensuráveis podem
apresentar muitas similaridades estruturais – isso, porém, não afasta o fato de
que os princípios universais, próprios de um esquema, são sustados pelo outro.
É esse o fato que define a incomensurabilidade, a despeito de todas as
similaridades que seja possível descobrir (FEYERABEND, 1977, p. 404-405,
grifo do autor).
Chalmers (1993), ao dialogar com Feyerabend e relacionar o conceito de
incomensurabilidade à dependência que a observação tem da teoria, destaca que, na Física
Clássica, a forma, a massa e o volume são propriedades intrínsecas aos objetos físicos, que só
24 Etimologicamente, incomensurabilidade pode ser definida como a característica ou condição daquilo que não
se pode e nem se consegue medir; cuja medida não pode ser comparada.
40
podem ser modificadas por interferências físicas. Mas, na Relatividade, essas propriedades
podem ser modificadas sem interação física nenhuma, mudando-se apenas o quadro de
referência. Assim essas teorias são incomensuráveis, uma vez que se referir “a objetos físicos
dentro da mecânica clássica terá um sentido diferente de uma referência semelhante na teoria
da relatividade” (ibidem, p. 177-178). E cita ainda que
em alguns casos, os princípios fundamentais de duas teorias rivais são tão
radicalmente diferentes que não é nem mesmo possível formular os conceitos
básicos de uma teoria nos termos da outra, com a consequência que as duas
rivais não compartilham das preposições de observação. [Assim,] não será
possível deduzir logicamente algumas das consequências de uma teoria dos
princípios de sua rival para propósito de comparação. [Logo,] as duas teorias
são incomensuráveis e não podem ser comparadas através de suas
consequências lógicas (CHALMERS, 1993, p. 176-178).
Feyerabend (1977, p. 351-354) destaca que a incomensurabilidade ocorre já no domínio
da percepção. Segundo ele, imagens que são usadas para explicar objetos materiais dependem
das imagens que surgem na mente dos que as veem, e estão ausentes na mente daqueles que
ainda não os reconhecem, assim, o campo de percepção jamais contém, ao mesmo tempo, um
mesmo tipo de base observacional.
Essa discussão feita por Feyerabend a respeito da incomensurabilidade dialoga, até certo
ponto, com o seu contemporâneo Thomas Kuhn. O filósofo da ciência estadunidense,
entretanto, ao construir sua análise científica a partir da estrutura das revoluções científicas,
caracteriza a incomensurabilidade como vinculada as “razões pelas quais os proponentes de
paradigmas competidores fracassam necessariamente na tentativa de estabelecer um contato
completo entre seus pontos de vista divergentes” (KUHN, 1998, p. 188). Segundo o autor, isso
acontece por três motivos: primeiro, os proponentes de paradigmas rivais discordam quanto à
lista de problemas que devem resolver; seus padrões ou definições de ciência podem ser
equivalentes, mas não são os mesmos; e os proponentes dos paradigmas rivais praticam seus
ofícios em mundos diferentes. Assim, os dois grupos de cientistas veem coisas diferentes
quando olham para um mesmo fenômeno (ibidem, p. 189-190).
Consideremos, por exemplo, aqueles que chamaram Copérnico de louco
porque este proclamou que a Terra se movia. Não estavam, nem pouco, nem
completamente errados. Parte do que entendiam pela expressão “Terra”
referia-se a uma posição fixa. Pelo menos, tal terra não podia mover-se. Do
41
mesmo modo, a inovação de Copérnico não consistiu simplesmente em
movimentar a Terra. Era antes uma maneira completamente nova de encarar
os problemas da Física e da Astronomia, que necessariamente modificava o
sentido das expressões “Terra” e “movimento”. Sem tais modificações, o
conceito de Terra em movimento era, [de fato,] uma loucura (KUHN, 1998, p.
189-190, grifo nosso).
Regner (1996) nos chama a atenção sobre a (falsa) alegação que a tese da
incomensurabilidade poderia impedir a escolha entre teorias científicas por razões empíricas.
Ao dialogar com Feyerabend, ela cita que a comparação entre teorias incomensuráveis obedece
a leis e padrões específicos, e que “há comparação, mesmo comparação objetiva, mas que essa
comparação é um procedimento muito mais complexo e delicado do que os racionalistas
supõem” (REGNER, 1996, p. 244, grifo da autora). De forma que, se pretendemos escolher
entre duas (ou mais) teorias incomensuráveis, devemos analisá-las através de seus próprios
termos, em seus respectivos tipos de experiências e contradições internas. Não podemos,
entretanto, comparar os seus conteúdos e nem formular juízo de verossimilitude entra elas. O
que fica, então, após retirarmos os fatores internos, são “os juízos estéticos, os juízos de gosto,
os preconceitos metafísicos, as aspirações religiosas; em suma, o que resta são nossos desejos
subjetivos” (FEYERABEND, 1977, p. 411-412, grifo do autor).
Feyerabend também tece relações entre ciência, sociedade e outras formas de
conhecimento. Ele defende a separação ciência-Estado, assim como hoje é defendido a
separação religião-Estado; afirma que a ciência é apenas uma das muitas formas de
conhecimento, mas não é, necessariamente, a melhor; e que “a ciência aproxima-se do mito,
muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir” (FEYERABEND, 1977, p.
447). Ele afirma que devemos “reexaminar nossa atitude em face do mito, da religião, da magia,
da feitiçaria e em face de todas aquelas ideias que os racionalistas gostariam de ver para sempre
afastadas da superfície da Terra” (ibidem, p. 453). Assim, apesar de um cidadão poder escolher
a religião de seu agrado, “não lhe é permitido pedir que, na escola, seus filhos aprendam mágica
e não a ciência. Existe separação entre Estado e Igreja, [mas] não existe separação entre Estado
e ciência” (ibidem, p. 453).
Feyerabend (ibidem, p. 457) mostra que o tratamento especial recebido pela ciência se
deve ao nosso pequeno conto de fadas de crermos que a ciência é regida por um método
ideologicamente neutro que produz teorias verdadeiras e úteis, sendo a ciência uma medida
objetiva acima de todas as ideologias.
42
Contudo, a ciência não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma
de vida. Seus objetivos não são, por certo, mais importantes que os propósitos
orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma tribo que se mantém
unida graças a um mito. De qualquer modo, não há por que esses objetivos
possam restringir as vidas, os pensamentos, a educação dos integrantes de uma
sociedade livre, onde cada qual deve ter a possibilidade de decidir por si
próprio e de viver de acordo com as crenças sociais que tenha por mais
aceitáveis. A separação entre Estado e Igreja deve, portanto, ser
complementada pela separação entre Estado e ciência (ibidem, p. 454).
Além disso, ele afirma que o conto de fadas é falso, e cita dois argumentos principais.
O primeiro deles se refere ao fato de não haver um método especial que garanta o êxito
do empreendimento científico. Os cientistas resolvem problemas porque os estudam com
profundidade, embora cometam diversos erros. Frequentemente, os cientistas (especialmente
os médicos) chegam a resultados (objetivos) diferentes a respeito da enfermidade de uma pessoa
(mas isso também pode ser aplicado à utilização de um agrotóxico25 ou de um supercondutor,
por exemplo). Como, então, decidir qual o procedimento que será adotado pelos médicos?
“Nenhum cientista admitirá que votar tenha sentido [nessa decisão]. Só os fatos, a lógica e a
metodologia decidem – é o que nos diz o conto de fadas” (FEYERABEND, 1977, p. 458, grifo
nosso). Na prática, o que seria chamado de erro médico, por exemplo, ao se referir a não
capacidade de se chegar a um resultado objetivo único – no que se refere a uma decisão entre
cientistas – abre as portas para as influências não-científicas: dogmatismo religioso, ideologia
política, influência metafísica, interesse econômico, etc. Esse é o ponto “em que o conto de
fadas do método especial assume sua função decisiva. [Ocultando] a liberdade de decisão que
os cientistas criadores e o público em geral têm (...) antepondo-lhes a repetição dos critérios
objetivos” (ibidem, p. 458-459, grifos do autor). Assim, os cidadãos sucumbem às pressões que
foram expostos (desde o processo de educação escolar) e agora estão
firmemente convencidos da verdade do conto de fadas. Dessa maneira os
cientistas se iludiram a si próprios e aos demais com respeito à tarefa a que se
dedicam, sem, contudo, [vir] a sofrer qualquer real desvantagem: dispõem de
mais dinheiro, mais autoridade e exercem maior atração do que merecem – e
os mais estúpidos processos e mais risíveis resultados que alcançam em sua
esfera de atuação vêm rodeados de uma aura de excelência. É tempo de reduzi-
25 Abreu et al. (2015) apresentam um estudo de caso no ensino de ciências sobre o uso ou não de agrotóxicos, que
ilustra essa afirmação.
43
los às devidas proporções e de atribuir-lhes [a] mais modesta posição na
sociedade (ibidem, p. 459).
Um segundo argumento de Feyerabend (ibidem, p. 455) diz respeito à imagem que a
ciência do século XX adquiriu, em decorrência dos “milagres tecnológicos, tais como a
televisão em cores, as viagens à Lua, o forno a raios infravermelhos e, [ironiza Feyerabend,] de
informações vagas mas nem por isso de menor força – algo como histórias fantasiosas – a
propósito de como surgem tais milagres”.
Ao adquirimos uma enfermidade grave, é certo que logo iremos procurar um médico ao
invés de um leigo ou um feiticeiro. É certo também que a medicina moderna nos livrou de
diversas epidemias e pragas e que a física, a química, a computação e a engenharia nos serviram
de numerosos artefatos quase mágicos – a tecnologia – que praticamente não vivemos mais sem
eles. Sem contar, é claro, com o nosso entendimento cosmológico, nossas viagens a Lua e
demais viagens interplanetárias (com sondas espaciais) e até intergalácticas (através das
imagens dos telescópios espaciais). Nesse contexto, é de se esperar que determinadas pessoas
se perguntem: como não acreditar no poder da ciência moderna? Como não ter absoluta certeza
que ela é superior a (todas as) outras formas de conhecimento? Como se atrever a colocar a
ciência no mesmo patamar que a religião, a mágica, o vodu ou a feitiçaria? Segundo Feyerabend
(ibidem, p. 459), esses são alguns dos ataques feitos a quem ousa criticar a especial posição das
ciências no mundo moderno.
Feyerabend (1977, p. 460-461), entretanto, cita que nenhum dos grandes resultados
científicos surgiram sem interferência e recursos de elementos não-científicos.
Ainda hoje, a ciência pode tirar vantagem da consideração de elementos não-
científicos. Exemplo [disso] é a revivescência da medicina tradicional na
China comunista. Quando os comunistas, na década de 1950, forçaram os
hospitais e escolas de medicina a transmitir as ideias e métodos registrados no
Manual de Medicina interna do imperador Amarelo e a aplicá-las no
tratamento dos pacientes, muitos especialistas ocidentais (entre eles, Eccles,
um dos ‘Cavaleiros de Popper’) se horrorizaram e predisseram a derrocada da
medicina chinesa. Ocorreu exatamente o oposto. A acupuntura, a moxa, o
diagnóstico pelo pulso conduziram a novas percepções, novos métodos de
tratamento e colocaram novos problemas, tanto para o médico ocidental
quanto para o chinês (grifos do autor).
44
Além disso, o conhecimento de ervas medicinais usadas por pajés, feiticeiros e
curandeiros; a psicologia, o conhecimento dos boticários; o estudo do movimento celeste pelos
astrólogos e o amor pelos círculos perfeitos da Platão; a necessidade econômico-social para a
construção de instrumentos de localização nas grandes navegações (e nas viagens espaciais); as
tentativas de Copérnico de adaptar as ideias antediluvianas de Filolau26 às necessidades de
predições astronômicas; a influência teológica para uma cosmologia de criação (Big Bang); e
até mesmo o desenvolvimento tecnológico das ciências e engenharias espaciais (a corrida
espacial) que se deve muito (se não tudo) à necessidade de poder político na segunda metade
do século XX (a Guerra Fria), são alguns dos exemplos citados por Feyerabend que enfatizam
essa afirmação. De forma que, métodos, resultados e processos essenciais que fazem parte da
construção e do fortalecimento da ciência por toda parte, foram silenciosamente suspensos ou
evitados como procedimentos não-científicos (FEYERABEND, 2011a, p. 131).
A asserção de que não há conhecimento fora da ciência – extra scientiam nulla
salus – nada mais é que outro e convenientíssimo conto de fadas. As tribos
primitivas faziam classificações de animais e plantas mais minuciosas que as
da zoologia e da botânica de nosso tempo; conheciam remédios cuja eficácia
espanta os médicos (e a indústria farmacêutica já aqui fareja uma nova fonte
de lucros); dispunham de meios de influir sobre os membros do grupo que a
ciência por longo tempo considerou inexistentes (vodu); resolviam difíceis
problemas por meios ainda não perfeitamente entendidos (construção de
pirâmides, viagem dos polinésios); [e] havia, [ainda] na Idade da Pedra, uma
astronomia altamente desenvolvida e internacionalmente conhecida,
astronomia que era factualmente adequada e emocionalmente satisfatória,
dando solução a problemas tanto sociais quanto físicos (o [que] não se pode
dizer a respeito da astronomia moderna) (FEYERABEND, 1977, p. 462,
grifos do autor).
Assim, segundo o autor, a ciência moderna muito se beneficiou com os métodos e
resultados não-científicos. Esses processos essenciais, entretanto, foram abandonados ou
26 “Filolau não era um cientista preocupado com a precisão; era um pitagórico desorientado e as consequências de
suas doutrinas foram consideradas ‘incrivelmente ridículas’ por um astrônomo profissional como Ptolomeu.
Mesmo Galileu, que se defrontou com a aperfeiçoada versão copernicana da doutrina de Filolau, diz: ‘Não tem
limites meu espanto quanto percebo que Aristarco e Copérnico foram capazes de fazer com que a razão dominasse
os sentidos, de sorte que, em detrimento destes, a razão se tornasse a orientadora de suas convicções’ (Dialogue,
328). ‘Sentidos’, aqui, refere-se às experiências a que recorreram Aristóteles e outros, para mostrar que a Terra se
encontrava em repouso. A ‘razão’, oposta por Copérnico a tais argumentos, é a mística razão de Filolau, associada
a uma fé igualmente mística (‘mística’ do ponto de vista dos racionalistas de hoje) no caráter fundamental do
movimento circular” (ibidem, p. 460).
45
contornados a fim de extrair deles todos os elementos subjetivos e rodeá-los com uma aura de
excelência que emana um método correto, resultados objetivos e uma ideologia neutra, o que,
como diria Feyerabend, não passa de um lindo conto de fadas (FEYERABEND, 1977, p. 459,
461).
Combinando esses dois argumentos, Feyerabend (ibidem, p. 462) chega à conclusão que
“a separação entre ciência e não-ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço
do saber”. Ele diz que se desejamos compreender verdadeiramente a natureza “devemos
recorrer a todas as ideias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles” (ibidem, p.
462, grifos do autor). Dessa forma livraremos “a sociedade do aperto estrangulador de uma
ciência ideologicamente petrificada, assim como nossos ancestrais nos livraram do aperto
estrangulador da Religião Verdadeira e Única” (ibidem, p. 464).
Feyerabend (ibidem, p. 464-465) afirma que, numa sociedade livre, um cidadão maduro
não é uma pessoa que foi profundamente instruída em uma ideologia especial, mas é um homem
ou uma mulher que entendeu como se toma uma decisão e decidiu em favor daquilo que
considerou ser melhor para si, que estudou a ciência como um fenômeno histórico (e não como
a única forma correta de resolver um problema) e que, com sorte, possui discernimento para se
chegar a uma decisão livre. Admitindo que a decisão seja em favor da ciência, esta será muito
mais racional do que as decisões que geralmente são tomadas.
Em uma sociedade democrática, instituições, programas de pesquisa e
sugestões têm, portanto, de estar sujeitos ao controle público; é preciso que
haja separação entre Estado e ciência da mesma forma que há uma separação
entre Estado e instituições religiosas, e a ciência deveria ser ensinada como
uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a
realidade (FEYERABEND, 2011b, p. 8, grifo nosso).
Ademais, parece-me injusto que a comparação entre a ciência e outras formas de
conhecimento (“não comensuráveis com ela”27) seja feita apenas sob o olhar da própria ciência.
Para exemplificar, podemos notar que, na Idade Média, um religioso exercia uma posição social
muito superior a de um filósofo natural e, consequentemente, o conhecimento que estava a sua
27 “À luz de sua tese sobre a incomensurabilidade, ele [Feyerabend] rejeita a ideia de que poderá existir um
argumento decisivo a favor da ciência sobre outras formas de conhecimento não comensuráveis com ela. Caso
queira comprar, será necessário investigar a natureza, objetivos e métodos da ciência e dessas outras formas de
conhecimento, cada qual a luz do respectivo conhecimento” (CHALMERS, 1993, p. 180-181).
46
disposição (e sob sua conduta) era muito melhor ou mais importante. E ainda que, à época, a
explicação de Aristóteles (do Lugar Natural) sobre a queda dos corpos fazia muito mais sentido
que um movimento acelerado inversamente proporcional à distância ao quadrado do objeto ao
centro da Terra (como proposto por Newton). E, se ainda não estivermos convencidos, mesmo
levando em consideração o aspecto da incomensurabilidade, vamos citar dois últimos
exemplos. É sabido que a mecânica newtoniana é superior28 à mecânica aristotélica. Da mesma
forma, a mecânica relativística é igualmente superior à mecânica newtoniana. Se cada uma
dessas mecânicas representou, em sua época, a descrição fiel da Realidade, e se, ao passar do
tempo, essa descrição foi melhorada, podemos concluir duas coisas: a primeira é que a
Realidade mudou (algo que, a priori, não faz sentido); e a segunda é que a nossa descrição da
Realidade mudou, e logo, chegaremos à conclusão de que ela não descreve a Realidade, mas,
no máximo (e talvez) alguns aspectos dela. Além disso, quando pretendemos analisar a
velocidade média ou o consumo do combustível numa viagem para outra cidade, ou quando
desejamos calcular o tempo e a posição da queda de uma telha solta do telhado, ou, ainda,
quando almejamos determinar o movimento da Lua para prever um eclipse, somos levados a
crer que a descrição da mecânica relativística não nos é útil, e que a mecânica newtoniana,
apesar de ser dito inferior, nos serve com excelência. Em suma, não julgamos uma teoria
científica (e mesmo a ciência em si) por ser melhor ou superior, mas sim por ser mais útil29 para
determinada situação histórica, cultural, social, etc.
Feyerabend (2011b, p. 20) argumenta que procedimentos não científicos não podem ser
excluídos por argumentação. “Dizer ‘o procedimento que você usou não é científico, portanto
não podemos confiar em seus resultados nem lhe dar dinheiro para pesquisa’ pressupõe que a
‘ciência’ seja bem-sucedida e é bem-sucedida por que usa procedimentos uniformes” (grifo
nosso). Segundo ele,
a primeira parte da asserção (“a ciência é sempre bem-sucedida”) não é
verdadeira, caso por “ciência” queiramos nos referir a coisas feitas pelos
cientistas – há também muitos fracassos. A segunda parte – que os sucessos
devem-se a procedimentos uniformes – não é verdadeira, porque não há tais
procedimentos. (...) [Assim,] as realizações científicas podem ser avaliadas
apenas depois de o evento ter ocorrido, e se não há uma forma abstrata de
garantir de antemão o êxito, então também não existe nenhuma maneira
28 Os termos superior/inferior estão ironicamente sendo utilizados no sentido racionalista.
29 Sendo esse – a utilidade das teorias científicas – apenas um critério de julgamento, dentre muitos outros
possíveis.
47
especial de sopesar promessas científicas – os cientistas não são melhores que
ninguém nesses assuntos, eles apenas conhecem mais detalhes. Isso significa
que o público pode participar das discussões [científicas]. (...) Nos casos em
que o trabalho dos cientistas afeta o público, este até teria obrigação de
participar: primeiro, porque é parte interessada (muitas decisões científicas
afetam a vida pública); segundo, porque tal participação é a melhor educação
científica que o público pode obter – uma democratização completa da ciência
não está em conflito com a ciência. Está em conflito com uma filosofia, com
frequência denominada “racionalismo”, que usa uma imagem congelada da
ciência para aterrorizar as pessoas não familiarizadas com sua prática
(FEYERABEND, 2011b, p. 20-21, grifo do autor).
Chalmers (1993, p. 182-184) afirma que Feyerabend defende uma atitude humanitária,
segundo a qual, os seres humanos devem ser livres, num sentido de promover a remoção de
todas as restrições metodológicas, de forma a encorajar que os indivíduos possam escolher entre
a ciência ou outras formas do conhecimento. Assim, a institucionalização da ciência em nossa
sociedade é contraditória com essa atitude humanitária. De forma que, para Feyerabend, em
uma sociedade verdadeiramente livre, a ciência não terá prioridade sobre outros conhecimentos
ou tradições, mas será estudada igualmente como uma tradição histórica.
Feyerabend trilha um caminho na contramão dos pesados vagões filosóficos. Tem como
norte a qualidade de vida das pessoas. Ele deixa claro que sua “preocupação não é nem a
racionalidade, nem a ciência, nem a liberdade – [pois] abstrações como essas causam mais mal
do que bem – e sim a qualidade das vidas dos indivíduos” (FEYERABEND, 2010, p. 25, grifo
nosso). Ele discute sobre a fragmentação em que se encontra a cultura contemporânea (já no
final do século XX) – as crises, as doenças, as contradições profundas, os conflitos entre as
ciências e as humanidades – e sobre a expansão constante do progresso e do desenvolvimento
no Ocidente, que, em suas palavras, “corresponde à disseminação do comércio, da ciência e da
tecnologia ocidentais” (ibidem, p. 8). Cita ainda que “esse é um fenômeno internacional: ele
caracteriza tanto sociedades capitalistas quanto as socialistas; ele é independente das diferenças
ideológicas, raciais e políticas e influencia um número cada vez maior de povos e culturas”
(ibidem, p. 8). Mas será mesmo que o “progresso” e o desenvolvimento tornam melhor a vida
das pessoas? Agora que sabemos mais, aprendemos mais e conhecemos mais, nos tornamos
pessoas melhores, que cuidam melhor dos nossos semelhantes, de nossa sociedade e de nosso
planeta? Não acredito que haja repostas simples a essas perguntas. Mas esse incômodo que nos
dá ao tentarmos respondê-las já coloca em xeque as nossas certezas.
48
Hoje, formas de vida ocidentais já são encontradas nos cantos mais remotos
do mundo, mudando os hábitos de pessoas que há umas poucas décadas não
estavam sequer cientes de sua existência. As diferenças culturais desaparecem
e artesanatos, costumes e instituições nativas vão sendo substituídos por
objetos, costumes e formas organizacionais ocidentais (FEYERABEND,
2010, p. 9).
Os problemas ecológicos, chamados por Feyerabend (ibidem, p. 10) de problemas do
Terceiro Mundo, são, segundo ele, uma marca do progresso e do desenvolvimento: a poluição30
dos rios e oceanos, dos reservatórios de água potável, do ar; o desmatamento das reservas
naturais, da Floresta Amazônica (mas também de diversas outras áreas de reservas indígenas);
a extinção de espécies animais e vegetais; a redução da camada de ozônio; a fome (mas também
a “solução” para resolvê-la: os agrotóxicos); as doenças físicas e psicológicas (obesidade,
depressão, ansiedade, diabetes, câncer, etc.); parecem ter sido causados pelo avanço constante
da Civilização Ocidental31. Sem contar com o menos óbvio, mas não menos doloroso, impacto
espiritual suportado por muitas sociedades que sofreram imposição de conhecimentos objetivos
desconectados com a vida em sociedade, com os problemas locais, e características ambientais,
místicas, etc., aqui, ainda segundo Feyerabend (ibidem, p. 11), o Ocidente abriu o seu caminho.
Feyerabend é um pensador controverso. Como ele mesmo assume em seus
escritos, ele busca ser algo como um provocador, de forma que suas
colocações possibilitem tomadas de decisões. (...) É nesse sentido que [ele]
problematiza acerca de dar adeus à razão, por considerar que concepções de
natureza extremamente objetiva têm se mostrado como edificadoras de
monstros (LOPES, 2016, p. 59-60, grifo nosso).
Sua crítica atinge as duas ideias que desempenham um papel importante na expansão
intelectual ocidental: as ideias da Objetividade e da Razão:
Dizer que um procedimento ou um ponto de vista é objetivo (ou objetivamente
verdadeiro) é afirmar que ele é válido independentemente das expectativas,
30 Destacamos a utilização de metais pesados (como o mercúrio) na prática do garimpo nos rios da América do Sul
e da África; os casos recentes de baleias encontradas mortas nas praias do Brasil, com dezenas de quilos de
plásticos no estômago; e a redução drástica e a mudança de coloração dos corais (por todo o mundo) devido ao
aumento das temperaturas globais.
31 Não julgamos, entretanto, que estes problemas sejam inerentes à existência material ou conceitual dos artefatos
científicos/tecnológicos, mas sim à forma pelo qual estes são impostos/utilizados em nossa sociedade.
49
ideias, atitudes e desejos humanos. Essa é uma das reivindicações básicas que
os cientistas e intelectuais de hoje fazem a respeito de seu trabalho
(FEYERABEND, 2010, p. 12). À medida que a ciência progrediu e produziu
um depósito de informações que ia aumentando constantemente, as noções
formais de objetividade foram usadas não só para criar conhecimento, mas
também para legitimá-lo, isto é, para mostrar a validade objetiva dos corpos
de informação já existentes (ibidem, p. 16, grifos do autor).
Entretanto, como não existe um conjunto finito de regras bem definidas que delimite o
trabalho dos cientistas e “seja compatível com todos os eventos que levaram à ascensão e ao
progresso da ciência moderna, descobriu-se que exigências formais defendidas por cientistas e
filósofos estavam em conflito” com seu próprio desenvolvimento. Assim, “para solucionar o
conflito, as exigências foram gradativamente enfraquecidas, até que evaporaram totalmente”
(FEYERABEND, 2010, p. 16). A história da ciência está repleta de casos32 onde cientistas
ignoraram completamente os princípios universais da pesquisa (a Objetividade), mostrando
que
a ideia de uma ciência que caminha graças à argumentação logicamente
rigorosa nada mais é que um sonho. É claro que há rigor em todos esses
procedimentos, (...) mas é um rigor que se encaixa na situação, que é
complexo, que muda e difere muito do rigor “objetivo” de nossos lógicos
epistemólogos menos talentosos (ibidem, p. 17).
Feyerabend (ibidem, p. 17) também critica a ideia da Razão (com “R” maiúsculo), que
há certo tempo empreende a defesa da cultura contemporânea ocidental. Segundo ele,
essa ideia tem uma variante material e uma formal. Ser racional no sentido
material significa evitar certas ideias e aceitar outras. (...) Ser racional no
sentido formal significa seguir certo procedimento. Empiristas renitentes
acham que manter ideias plenamente em conflito com o experimento é
irracional, enquanto que teóricos empedernidos sorriem com a irracionalidade
daqueles que reveem princípios básicos a cada tremor momentâneo da
evidência. Esses exemplos já demonstraram que não seria lá muito produtivo
deixar que afirmações tais como “isso é racional” ou “isso é irracional”
influenciassem a pesquisa. As noções são ambíguas e nunca explicadas
32 Os estudos fisiológicos de Maturana e Varela; a noção estranha e teológica de Eddington e Hoyle de um começo
do Universo (Big Bang), mais tarde descoberto pelos cálculos de Friedmann e pelas observações de Hubble; a
verificação de poucos efeitos (a Teoria da Relatividade Geral) de Einstein, observada alguns anos depois por
Eddington e Dyson; a teoria quântica antiga; ou o estudo que precedeu a descoberta da estrutura de dupla hélice
do DNA, dentre muitos outros (ibidem, p. 17).
50
claramente, e tentar segui-las ao pé da letra seria contraproducente:
procedimentos “irracionais” muitas vezes levam ao sucesso (no sentido
daqueles que os chamam de “irracional”) enquanto [que] procedimentos
“racionais” podem causar problemas terríveis. Rigorosamente falando, temos
aqui duas palavras, “Razão” e “Racionalidade”, que podem ser conectadas
com quase qualquer ideia de procedimento e depois rodeá-las com uma aura
de excelência (ibidem, p. 18, grifo do autor).
A premissa, segundo Feyerabend (ibidem, p. 18), de que há valores, conhecimentos e
ações universalmente válidas vai além do debate epistemológico, mas está associada à crença
de que existe uma maneira certa de viver: valores morais, princípios religiosos, organização
social, política, etc. Essa crença, segundo ele, edificou o Império Romano; as conquistas
muçulmanas; acompanhou os cruzados em suas batalhas sangrentas; orientou os descobridores
de novos continentes; lubrificou a guilhotina e agora promove debates sem fim dos defensores
da liberdade – a ideia de que há um conteúdo que justifique a intervenção, sempre fundamentou
o motivo pelo qual coisas absurdas podem ser feitas. Além disso, podemos admitir que a Razão
esteja rodeada
pela mesma aura que rodeava deuses, reis, [faraós, conquistadores,] tiranos e
suas leis impiedosas. O conteúdo evaporou-se; a aura permanece e faz com
que os poderes sobrevivam. A ausência de conteúdo é uma tremenda
vantagem; ela permite que grupos especiais se denominem “racionalistas”,
afirmem que sucessos amplamente conhecidos foram obra da Razão e usem a
força assim obtida para suprimir desenvolvimentos contrários a seus interesses
(ibidem, p. 18-19).
Feyerabend (ibidem, p. 19) ironiza afirmando que “há, e sempre houve, razão (com “r”
minúsculo) para termos esperança. Sempre existem pessoas que lutam contra a uniformidade e
defendem o direito que indivíduos têm de viver, pensar e agir como lhes pareça conveniente”.
Cita que “sociedades inteiras, dentre elas tribos ‘primitivas’, ensinaram-nos que o progresso da
Razão não é inevitável, que ele pode ser atrasado e que as coisas podem melhorar como
resultado disso” (FEYERABEND, 2010, p. 19-20). E ainda que
os insights obtidos pelos cientistas que estudam as conquistas materiais e
espirituais dos povos nativos, [apontam] que não há nada na natureza da
ciência que exclua a variedade cultural. A variedade cultural não está em
conflito com a ciência vista como uma investigação livre e irrestrita; ela está
51
em conflito com filosofias como o “racionalismo” ou o “humanismo
científico” e com uma força, às vezes chamada de Razão, que usa uma imagem
congelada e distorcida da ciência para obter aceitação para suas próprias
crenças antediluvianas (ibidem, p. 20, grifo do autor).
“É hora de desprender a Razão desse impulso e, como ela já ficou totalmente
comprometida pela associação, dar-lhes adeus” (ibidem, p. 21). Feyerabend afirma que tudo
isso é apenas parte da história, que muitas coisas foram feitas apesar da Razão e não por causa
dela. Segundo ele, o outro lado da história é que a Razão realmente deixou sua marca – as
mesmas que estabelecem o senso comum (a respeito da ciência); que respaldam os discursos
(políticos) de poder; e que legitimam as ideias inventadas pelos autores33 cientistas – “ela
deformou as conquistas, esticou-as além de seus limites e é, portanto, pelo menos em parte,
responsável pelos excessos que estão sendo propagados sob seu nome”. Por fim, Feyerabend
destaca que a Razão (com “R” maiúsculo) “foi um grade sucesso entre filósofos que não gostam
de complexidade e entre políticos (tecnólogos, banqueiros, etc.) que não se importaram em
acrescentar um pouco de classe a sua luta pela dominação do mundo”, entretanto ela – a Razão
– “é um desastre para o resto, isto é, para praticamente todos nós. É hora de lhe dizer adeus”!
(ibidem, p. 25-26, grifo nosso).
Apesar disso, ser Contra o método ou dar Adeus à razão pode ser uma “faca de dois
gumes” quando sonhamos com A Ciência em uma sociedade livre. O trocadilho foi proposital,
mas ficar conhecido como “o pior inimigo da ciência”34 provavelmente não.
As críticas a Feyerabend são extensas. Muitas delas foram consideradas frutos de más
interpretações de sua epistemologia, o que Feyerabend chamou de incompetência
profissionalizada. Por isso, alguns autores
buscam desconstruir alguns mitos que são repetidos. Entre estas
desconstruções estão a de que o anarquismo epistemológico leva ao caos na
ciência, que a tese central da epistemologia de Feyerabend é o vale tudo, que
a defesa da irracionalidade na ciência descaracteriza o empreendimento
científico e de que o relativismo não explica o progresso na ciência
(DAMASIO & PEDUZZI, 2017, p. 330).
33 Autor aqui, tem o sentido medieval de autoridade utilizado por Stengers (2002, p. 112).
34 Expressão usada pelos autores Theocharis e Psimopoulos no artigo Where science was gone wrong, publicado
na revista Nature em 1987 (DAMASIO & PEDUZZI, 2017, p. 330).
52
Para Roberto Martins (1999), por exemplo, Feyerabend é um relativista extremo ao
negar uma demarcação entre ciência e não-ciência, e não fazer uma distinção entre astronomia
e astrologia ou entre medicina e curandeirismo. Ele afirma que “é possível dispor de uma
concepção de ciência que não estabeleça um critério de demarcação, mas que permita orientar
e avaliar a pesquisa” (ibidem, p. 15).
Lopes (2016), entretanto, ao analisar as críticas de Roberto Martins afirma que ele está
equivocado ao considerar que Feyerabend trata esses conhecimentos da mesma forma:
O que ele defende é que essas produções humanas, conhecimentos validados
por comunidades para quem esses entendimentos fazem sentido e funcionam,
comportam sempre uma certa ambiguidade e inter-relações. Isso é muito
diferente de dizer que todos os conhecimentos são iguais. E, além disso, se a
ciência também está repleta de saberes de cunho simbólico e de base não
racional desde a sua estruturação até às teorias e posições mais recentes, por
que não oportunizar outras formas de conhecimento? Ou, ainda, se a ciência
se constrói mediante saberes de outros conhecimentos que não são ciência,
como se pode separar ciência do que não é ciência, como pretende Martins?
(LOPES, 2016, p. 80).
Nós concordamos com Lopes (2016) e consideramos que os contrapontos à filosofia
feyerabendiana reúne o que muitas vezes é interpretado erroneamente como um ataque à
ciência, como citado por Stengers (2002, p. 48):
Em sua obra Contra o método, Feyerabend feriu os sentimentos estabelecidos
ao comparar a atividade científica à astrologia, ao vudu, ou mesmo à máfia, e
ele pagou o preço por essa estratégia: aqueles a quem feriu reduziram o
problema que ele punha a esta comparação escandalosa. Ora, o alvo da posição
“relativista” de Feyerabend não era assemelhar Einstein a um astrólogo, ou
Galileu a um mafioso. Ele procurava demonstrar que (...) um cientista não
pode se ater àquilo que os filósofos consideram “objetivo”, [que] a construção
da objetividade não tem nada de objetivo: ela envolve uma maneira singular,
mas não exemplar de se relacionar com as coisas e com outros, como a
atividade mafiosa. O que não quer dizer que ela se origine do mesmo tipo de
envolvimento que a atividade mafiosa. A tese de Feyerabend não é, portanto,
dirigida contra a prática científica, mas contra a identificação da objetividade
com o produto de uma conduta objetiva.
53
Apesar disso, Stengers (2002) disserta uma crítica a respeito do relativismo de
Feyerabend, comparando-o a um racionalista, quando ele afirma que a ciência é somente uma
tradição histórica entre muitas tradições, e que as únicas diferenças dizem respeito a fatos
externos a ciência:
Nada se deve às próprias ciências? Não seria o relativista Feyerabend ainda
demasiado racionalista quando apresenta “uma competição imparcial e
controlada” como a única arena onde as ciências poderiam fazer valer o papel
apropriado que desempenharam no triunfo sobre outras tradições? Em outras
palavras, a tese segundo a qual a ciência constitui uma tradição histórica entre
outras tradições é vulnerável com relação à sua expressão reducionista: a
ciência é somente uma tradição histórica entre outras, as únicas “verdadeiras”
diferenças dizem respeito a fatores externos, políticos, militares, econômicos
(STENGERS, 2002, p. 50).
Terra (2002, p. 209) também desenvolve uma análise a respeito das críticas à
Feyerabend. Segundo ele, as ideias do filósofo austríaco causam “sensível desconforto aos
admiradores e defensores da ciência, [havendo] a tendência de considerar suas ideias como
desprovidas de relação com a realidade, e até mesmo, como perigosas”.
Um dos receios dos adversários do anarquismo epistemológico é o de que ele
favoreça os movimentos anti-racionalistas. Tal temor, no entanto, é totalmente
injustificável. Se os anarquistas epistemológicos amam, acima de tudo, a
liberdade e trabalham pela autonomia do indivíduo, não irão se agregar aos
inimigos da liberdade. Ora, onde impera o irracionalismo desaparecem as
condições para o desenvolvimento do pensamento, e por isso, o anarquista
epistemológico, na sua luta pela liberdade intelectual, acabará sempre se
aliando aos racionalistas (TERRA, 2002, p. 215).
Todavia, quando analisamos o contexto atual do Brasil e nos defrontamos com o Novo
Ensino Médio, com o movimento denominado de “Escola Sem Partido”, com a expansão das
ideias do terraplanismo, antievolucionismo, antivacinas, etc., além da crescente incorporação
das ideias cristãs nos meios sócio-políticos (sim, em 2020!), concordamos com Martins (2019,
p. 268) a respeito de defendermos a ciências como cultura, mais do que nunca! E é, exatamente
aí, que o anarquista epistemológico pode se encontrar em maus lençóis ao utilizar a filosofia
feyerabendiana. Essas ideias, vistas de maneira isolada e sem a devida discussão
epistemológica, provavelmente serão utilizadas para respaldar ideias consideradas
54
anticientíficas, como a não-validade da ciência [“a asserção a ciência é sempre bem-sucedida
não é verdadeira” (FEYERABEND, 2011b, p. 20)]; a negação de sua autoridade [“a ciência
não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma de vida. Seus objetivos não são, por
certo, mais importantes que os propósitos orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma
tribo que se mantém unida graças a um mito” (FEYERABEND, 1977, p. 454)]; a equivalência
entre a ciência e a mágica [“não lhe é permitido pedir que, na escola, seus filhos aprendam
mágica e não a ciência (FEYERABEND, 1977, p. 453)]; e o terraplanismo, por exemplo [“não
dizemos: algumas pessoas acreditam que a Terra gira ao redor do Sol, enquanto outros acham
que a Terra é uma esfera oca que contém o Sol, os planetas e as estrelas fixas. Dizemos: a Terra
gira ao redor do Sol – [e] dizer qualquer outra coisa é absurdo” (FEYERABEND, 2011a, p.
93)].
Defendemos as ideias de Feyerabend aqui apresentadas, inclusive sua alegação de que
um cidadão não pode escolher que seus filhos aprendam mágica (e não a ciência) na escola35.
Entretanto, destacamos: será que estamos preparados para esse grau de liberdade? Será que essa
posição anarco-epistemológica não pode reforçar o anticientificismo radical? Até que ponto as
ideias feyerabendianas estão num terreno abstrato e até onde elas podem ser aplicadas,
sobretudo numa realidade do Brasil contemporâneo?
Por falar em realidade, a partir de janeiro de 2020, o mundo vem enfrentando um
inimigo em comum – a doença causada pelo novo coronavírus – a COVID 19. Até agosto, já
haviam sido confirmados mais de 23,5 milhões de infectados e mais de 810 mil mortes em todo
o mundo36. Apesar de, nem de longe, se comparar com a Peste Bubônica ou com a Gripe
Espanhola, a COVID 19 já mostra uma realidade assustadora e dolorosa, e isso em um mundo
apenas sem uma vacina.
O que fazer, por exemplo, se os apoiadores dos movimentos antivacinas37, por motivos
religiosos, ideológicos ou qualquer outro, utilizarem-se das ideias de Feyerabend para respaldar
35 Silva (2016, p. 88) destaca que “a concepção epistemológica de Feyerabend não propõe a desvalorização da
ciência, mas, ao contrário, que a possibilidade de julgar e escolher entre as tradições nativas de um povo (ou uma
metafísica particular) e o conhecimento científico seja concedida aos sujeitos em questão e não impostas
dogmaticamente através da educação básica, pelo Estado”.
36 Informação referente ao dia 25 de agosto de 2020, extraída do site oficial da Organização Pan-Americana da
Saúde – OPAS, em 26 de agosto de 2020.
37 Destacamos as alegações religiosas como motivo para não se vacinar, o que pode ocasionar a volta de doenças
praticamente erradicadas, como o sarampo, por exemplo (Como o fundamentalismo religioso contra vacinas trouxe
o sarampo de volta aos EUA, 2020; Nova York proíbe uso de religião como motivo para não se vacinar, 2020).
55
epistemologicamente as suas decisões de não se vacinarem, colocando em risco, inclusive, a
saúde de outras pessoas? E se, por qualquer razão que seja, um cidadão escolher levar seu filho
recém-nascido apenas a uma benzedeira para lhe trazer sorte e livrar de todas as doenças futuras,
ao invés de receber as vacinas determinadas pelo Ministério da Saúde? Ou, ainda, se uma mãe
ou um filho manifestar uma leucemia, a família optará por qual tratamento médico: pelo rito de
cura da Medicina Sagrada de um pajé ou pela sessão de quimioterapia oferecida pela medicina
científica?
Engana-se quem acredita que Feyerabend afirma que todas as formas de conhecimento
são essencialmente iguais. O que ele faz, todavia, é propor uma equivalência política entre elas:
a ciência não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma de vida; (...)
não há por que esses objetivos possam restringir as vidas, os pensamentos, a
educação dos integrantes de uma sociedade livre; (...) cada qual deve ter a
possibilidade de decidir por si próprio e de viver de acordo com as crenças
sociais que tenha por mais aceitáveis (FEYERABEND, 1977, p. 454).
Assim, segundo Feyerabend, em uma sociedade livre, o cidadão deve conhecer a
linguagem da ciência como um fenômeno histórico (oferecida pela escola por questões
socioculturais, e mesmo democráticas); esta linguagem deve ser ensinada como “uma
concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade”
(FEYERABEND, 2011b, p. 8); e este deve ter a liberdade de escolher entre a ciência e outras
formas de conhecimento. De forma que, se a decisão tomada for em favor da ciência, esta “será
muito mais ‘racional’ do que é, hoje, qualquer decisão em favor da ciência” (FEYERABEND,
1977, p. 465).
Entretanto, voltando à pergunta que nos levou a essa esteira argumentativa – será que
estamos preparados para esse grau de liberdade? – afirmamos que mesmo o anarquismo
epistemológico tem seus limites. Existem diversas condições de contorno (ou seja, “alertas”,
sobretudo para um leitor que não tenha formação na área) que Feyerabend não destaca em seus
escritos e que, ao nosso ver, são fundamentais para que suas ideias sejam realmente aplicáveis
e que não reforcem o anticientificismo radical.
A primeira delas consiste em entender as consequências de nossas escolhas. Ora, se
alguém decidir-se por não se vacinar (ou não vacinar seus filhos, ou ainda quaisquer outras
questões equivalentes) mesmo conhecendo as consequências de suas escolhas, o estado deve
56
permitir se, e somente se, isso não gerar riscos a outras pessoas. Ou seja, caso a família queira
viver (até literalmente) “isolada em uma ilha” ela pode fazê-lo, tendo, inclusive, uma penalidade
por descumprimento ao gerar riscos a terceiros, cuja escolha foi diferente da sua, uma vez que
a individualidade não pode estar acima do coletivo. E isso nos leva à segunda condição: a nossa
vida em sociedade é decidida por regras socialmente escolhidas que visam o bem-estar da
própria sociedade. Logo, as minhas escolhas religiosas, ideológicas, anticientíficas, etc., podem
ser exploradas contanto que elas não interfiram em questões gerais da sociedade
democraticamente acordadas (como uma ideia religiosa ou ideológica que pode levar a cometer
um crime: racismo ou extorsão, por exemplo). Por fim, destacamos que, sobretudo no campo
da ciência médica, o Estado toma algumas decisões que, em forma de regras ou até mesmo leis,
balizam algumas ações de nossa sociedade – como a adequação de fuso-horários, exploração
de energias renováveis, controle de qualidade da água potável, etc. e, em especial, as vacinas.
Faz-se necessário, então, certo cuidado ao utilizar as ideias feyerabendianas. Apesar de
defendermos sua epistemologia anarquista e concordarmos que sua análise é fundamental para
a construção de uma ciência como parte da cultura humana, suas ideias devem ser bem
explicadas e trazer consigo o rico material que a História da Ciência nos concede. Para isso,
dedicamos os próximos capítulos a um recorte histórico que envolve o personagem Galileu
Galilei e sua astronomia, a fim de propormos questões que podem ser levadas para a Educação
Básica a partir de uma leitura feyerabendiana.
57
4. O ENSINO DA ASTRONOMIA DE GALILEU NUMA PERSPECTIVA
FEYERABENDIANA
Não foi intenção de Feyerabend fazer um exame completo sobre as consequências de
sua filosofia científica para o ensino de ciências. Entretanto, cabe a nós, professores instruídos
de sua análise, buscar tais elementos e encontrar as pistas que ele deixou para que os educadores
científicos possam percorrer esse caminho.
Lopes (2016) afirma que a visão social da ciência, enfatizada por Feyerabend, precisa
ser difundida aos educadores e estudantes, pois
a crença de que a ciência possui um método único e de que as teorias (...) são
algo desconectado do contexto do qual emergem, serve à estruturação da
ciência enquanto forma hegemônica, contribuindo, inclusive, para subjugar as
demais formas de conhecimento. Embora algo nesse sentido venha sendo feito
já há um tempo por estudiosos em educação e educação científica, muito
pouco tem chegado aos manuais, aos livros textos e à sala de aula
propriamente dita (ibidem, p. 24).
A visão de Feyerabend – de que no processo educacional de uma sociedade livre a
ciência não deve ter preferência em relação à astrologia, a magia, as lendas ou o vodu – parece-
nos dizer, em um primeiro momento, que a ciência, a astrologia, a magia, as lendas e o vodu
são (ou deveriam ser) igualmente importantes em nossa sociedade e que deveriam ter espaços
iguais nos processos educacionais. Entretanto, quando analisamos com cuidado o rico material
por ele deixado, sem termos a pretensão de nos armarmos para defender uma ciência
racionalista, vemos que sua intenção é mostrar que a ciência moderna exerce o mesmo papel
opressor que a religião exerceu outrora (suas teorias podendo, inclusive, serem tratadas
igualmente como dogmas). De forma que, qualquer ensinamento que fuja da racionalidade
científica e de seus métodos (ou seja, sua doutrina) é considerado um absurdo pagão.
Em uma sociedade livre [deveria existir] espaço para muitas crenças,
doutrinas e instituições estranhas. Mas a premissa da superioridade inerente a
Ciência foi além da própria Ciência e passou a ser um artigo de fé para quase
todo mundo. Além disso, a Ciência já não é uma instituição particular; ela
agora é parte do tecido básico da sociedade. É claro, a Igreja e o Estado agora
58
estão cuidadosamente separados38. O Estado e a Ciência, no entanto,
trabalham rigorosamente juntos (FEYERABEND, 2011a, p. 92).
Feyerabend (ibidem, p. 92) cita ainda que enquanto os pais podem escolher qual a
educação religiosa que os seus filhos devam ter na escola; ou escolher que os filhos não tenham
educação religiosa; ou ainda optar por colocá-los numa escola religiosa que siga estritamente
uma religião; eles não têm a liberdade de exigir que seus filhos aprendam astrologia ao invés
de astronomia ou pelo menos que a astronomia seja apresentada como um fato histórico.
A preocupação de Feyerabend por uma educação científica livre está associada à livre
escolha feita pela educação científica. Essa escolha só poderá ser concretizada se a ciência não
for, desde os primeiros anos do processo educacional, caracterizada como absolutamente
verdadeira, livre de erros e detentora da única forma de acessar a Realidade (com “R”
maiúsculo).
Separar estado e ciência significa regular a exagerada ênfase dada ao
conhecimento científico e abandonar o mito da racionalidade científica como
medida de todas as coisas e, portanto, possibilitar que o ser humano se
desenvolva plenamente, sem a imposição de uma única forma de se apreciar
o real. Assim, o indivíduo, em sua plenitude, poderá adotar uma única
ideologia para interpretar o real manifesto (seja ela a metafísica, a religião, a
ciência, etc.) ou poderá adotar várias ideologias como possíveis formas de
apreciar as manifestações do real, mesmo que incomensuráveis entre si ou
contraditórias segundo a lógica e a razão habituais (SILVA, 2016, p. 89).
Assim, os professores de ciências devem apresentá-la como uma construção histórica
de fatos e princípios (FEYERABEND, 2011a, p. 93), como uma tradição entre muitas possíveis
tradições, e não deve colocá-la a cima de outras formas de conhecimento, mas sim, dialogar
com elas, reconhecendo a importância e os limites de cada uma (FEYERABEND, 2011a, p.
14), sobretudo porque a ciência as deve muito39.
38 A afirmação de Feyerabend de que a Igreja e o Estado agora estão cuidadosamente separados, dita no contexto
europeu da década de 1970, é uma realidade que começa a ser mudada no cenário sócio-político brasileiro. Há um
número cada vez maior de políticos que se elegem em nome de Deus e intensificam as influências cristãs, sobretudo
pentecostais evangélicas, no cenário político do Brasil, apesar da Constituição de 1988 enfatizar a laicidade do
Estado.
39 A construção das teorias científicas deve-se muito a outras formas de conhecimento, como já discutido no
capítulo anterior.
59
Entretanto, os nossos educadores,
ano após ano, são jogados sobre a geração mais jovem para enchê-la de
“conhecimento” sem consideração pelo passado e pelo contexto dos alunos.
Culturas inteiras foram mortas, seus sistemas imunológicos destruídos, seu
conhecimento passou a ser uma raridade – e tudo isso em nome do progresso
(e do dinheiro, é claro) (FEYERABEND, 2010, p. 369).
Um bom exemplo disso são as comunidades indígenas que desenvolveram (e ainda
desenvolvem) sua própria forma40 de entender a natureza, de buscar alimentos e remédios, de
estudar o movimento dos céus, o significado da vida e de construir sua espiritualidade ancestral
sem a necessidade da fórmula mágica da científica.
Alguns tipos de medicina tribal, por exemplo, podem ter melhores meios de
diagnosticar e tratar doenças (mentais e físicas) que a medicina científica
atual, e algumas cosmologias primitivas podem nos ajudar a ver, em
perspectiva, as ideias predominantes. Portanto, dar igualdade às tradições não
é apenas correto, mas também extremamente útil (FEYERABEND, 2011a, p.
14, grifos do autor).
Não que estejamos defendendo que o conhecimento dos povos tradicionais é superior
(ou inferior) à ciência, mas que este conhecimento é muito mais importante para eles do que a
ciência moderna ocidental, e que esta última deve ser apresentada como uma possível visão, e
não como a única (e verdadeira). Dessa forma, os professores de ciências devem apresentá-la
“em pé de igualdade” com outras formas de conhecimento, buscando dialogar com elas e citar
a importância que elas tiveram (e ainda têm) em outros contextos históricos, étnicos, culturais,
etc., deixando claro os motivos pelos quais a Ciência (com “C” maiúsculo) desenvolveu (e
como desenvolveu41) o papel que hoje tem em nossa sociedade.
40 “Pesquisas mais recentes na Antropologia (...) demonstram que nossos ancestrais e contemporâneos ‘primitivos’
tinham cosmologias, teorias médicas e doutrinas biológicas altamente desenvolvidas, que muitas vezes são mais
adequadas e têm resultados melhores que os de seus rivais ocidentais” (FEYERABEND, 2011a, p. 128-129).
41 “Há o antigo argumento de que as tradições não-científicas já tiveram sua chance, que elas não sobreviveram à
confrontação com a ciência e com o racionalismo e que tentativas de revivê-las são, por tanto, irracionais e
desnecessárias. Aqui a pergunta óbvia é: elas foram eliminadas por justificativas racionais, deixando que
competissem com a ciência de uma maneira imparcial e controlada, ou seu desaparecimento foi resultado de
pressões militares (políticas, econômicas, etc.)? E a resposta é quase sempre: a última. Nunca pediram aos índios
americanos que apresentassem suas ideias, eles foram primeiro cristianizados, depois forçados a sair de suas terras,
60
No que diz respeito às apropriações da epistemologia feyerabendiana pela área de
Ensino de Ciências no Brasil, Silva (2016, p. 66) afirma que apenas “alguns poucos
pesquisadores brasileiros (...) propuseram relações entre o anarquismo epistemológico e o
ensino de ciências, a saber: Regner (1996)42, Laburú & Carvalho (2001), Terra (2002), Laburú
et al. (2003) e Siqueira-Batista et al. (2005)”, e que, apesar de numericamente escassas,
sublinham o potencial de suas reflexões para o ensino de ciências.
De forma que, reconhecendo a complexidade das situações reais de ensino-
aprendizagem, o que esses autores têm em comum é recomendar uma estratégia pluralista para
o ensino de ciências, inspirada no pensamento feyerabendiano. Assim,
nessa perspectiva, um mestre pluralista não se limitaria em escolher
dogmaticamente uma única proposta pedagógica, ao contrário, estaria
disposto a experimentar diversas metodologias, pois sua meta e seu
comprometimento é com a aprendizagem dos alunos e não com uma
fidelidade pedagógica (SILVA, 2016, p. 68).
Laburú et al. (2003) afirmam que os sentimentos, motivações e preferências ao modo
de aprender variam de estudante para estudante. Além disso, fatores como: habilidades mentais,
ritmos de aprendizagem, níveis de motivação e interesse, experiências vividas, etc., certamente
influenciam a aprendizagem e, consequentemente, a estratégia metodológica. “Portanto”,
destaca o autor, “é questionável uma ação educacional baseada num único estilo didático, que
só daria conta das necessidades de um tipo particular de aluno ou alunos e não de outros”
(LABURÚ et al., 2003, p. 251). De modo que, o professor, a partir das situações reais que o
contexto exige, “poderá valer-se de qualquer outra metodologia ou de uma inter-relação de
muitas, poderá adaptá-las, distorcê-las desde que se satisfaça as complexas exigências da
situação real de trabalho” (SILVA, 2016, p. 70).
Logo, tendo vista a educação sob a lógica de Feyerabend,
e finalmente arrebanhados em reservas no meio de uma cultura científico-tecnológica em crescimento. Os
remédios dos índios (que eram usados normalmente pelos praticantes da medicina do século XIX) não foram
testados para compará-los com os novos produtos farmacêuticos que invadiram o mercado, foram simplesmente
proibidos, como se pertencessem a uma era antediluviana em termos de cura. E assim por diante”
(FEYERABEND, 2010, p. 360).
42 “O primeiro artigo publicado em revistas brasileiras especializadas da área de educação em/ensino de ciências,
que carregam em seu bojo a representação feyerabendiana, data de 1996 e foi escrito pela filósofa Anna Regner.
O artigo em questão discute os elementos fundamentais da crítica empreendida por Feyerabend ao racionalismo,
tendo como referência para a reflexão o livro Contra o Método” (SILVA, 2016, p. 66).
61
apenas um pluralismo de concepções poderia oferecer a possibilidade de
formar cidadãos bem desenvolvidos, capazes de escolher, dentre uma gama
de representações a que acreditar a maneira de ver o mundo e de nele atuar.
(...) Assim, a imposição ideológica da ciência seria substituída pelo
encorajamento dos alunos a aprenderem “o jogo” da ciência sem, porém,
perderem de vista a possibilidade de jogar outros jogos. Após essa etapa, a da
educação básica, o jovem poderá escolher a profissão de seu gosto e, assim,
assumir os compromissos dessa comunidade particular, submetendo-se
voluntaria e conscientemente às respectivas imposições institucionais e
ideológicas da mesma (SILVA, 2016, p. 91-92).
Segundo Terra (2002, p. 208),
todas as filosofias da ciência têm implicações pedagógicas com reflexos
importantes nos procedimentos de ensino de ciências. O professor de ciências
adepto ao anarquismo epistemológico43, proposto por Paul Karl Feyerabend,
também adotará estratégias próprias. Guiar-se-á, primeiramente, pelo preceito
de que as decisões dos alunos devem ser autônomas; abdicará, pois, de impor
a visão científica aos alunos. Apresentará a ciência como sendo formada por
uma comunidade na qual se discutem ideias antagônicas e a adesão a uma
delas se faz por convencimento, após livre exame das argumentações
apresentadas.
Dessa forma, o professor anarquista epistemológico deve oferecer as circunstâncias
necessárias para que os seus alunos consigam chegar a uma decisão livre, sem excluir, inclusive,
as visões não científicas e até mesmo as anticientíficas (TERRA, 2002).
Mas, o que temer de um professor anarquista-epistemológico? “Certamente”, responde
Terra (2002),
que ele não adote alguns enfoques habituais, como, por exemplo, o de
apresentar Galileu Galilei como o mocinho da ciência contra os bandidos da
Inquisição. Se o professor resolver falar aos seus alunos sobre o insigne
matemático, físico e filósofo toscano, nos termos propostos por Feyerabend,
não o apresentará como herói puro da racionalidade, mas como hábil
polemista, mestre na arte de tergiversar, que usou, com rara e exemplar
competência, técnicas de persuasão e propaganda, recursos que muitos
43 “As ideias anarquistas sobre educação têm em comum o fato de postularem a total desvinculação entre o ensino
e as formas de poder, sobretudo a separação entre escola e estado, e escola e religião. A educação orientada pelos
princípios anarquistas visa, também, conduzir o estudante à plena autonomia, incentivando-o a torna-se o principal
responsável por sua própria formação” (TERRA, 2002, p. 210).
62
defensores da ciência consideram inadmissíveis na prática científica. (...) Tal
imagem de Galileu é difícil de se apresentar, pois requer, pelo menos, muito
tempo, e pode antipatizar muito com o grande cientista e filósofo – narrativa
(...) mais fácil de ser contada e entendida (ibidem, p. 216).
Entretanto, como cita Martins (2019, p. 266), ainda nos dias atuais, os conteúdos
científicos são ensinados de forma objetiva: leis, regras, informações, dados comprovados,
datas dos acontecimentos e nomes dos grandes cientistas, o que ele chama de “uma visão de
ciência neutra, objetiva, metódica, enfim, uma visão de senso comum da ciência e de seu
desenvolvimento (...) uma ideologia conhecida como cientificismo” (ibidem, p. 267, grifo do
autor), o que diverge, claramente, de uma epistemologia anarquista.
E isso nos leva ao ensino sobre ciências e seu valor epistemológico, uma vez que a
abordagem racionalista da História da Ciência, com seu método universal, não
irá promover um cidadão consciente e atuante (...). É exatamente neste sentido
que uma abordagem do ensino sobre ciência, à luz da epistemologia
feyerabendiana, pode trazer contribuições significativas para a sala de aula.
Ao reconhecer a limitação de toda e qualquer regra, método, ao valorizar as
circunstâncias e principalmente todas as formas de conhecimento44, pode-se
criar um ambiente mais propício para a formação de pessoas críticas, ativas,
flexíveis, [inovadoras, tolerantes] e sujeitas a mudanças (DAMASIO &
PEDUZZI, 2015, p. 123-124).
Assim, dentre muitas possibilidades de recortes, das diversas áreas da ciência ao longo
do tempo e dos numerosos referenciais teóricos, nosso interesse reside nas discussões que giram
em torno da figura de Galileu Galilei e das concepções astronômicas presentes no século XVII,
a partir da perspectiva do filósofo da ciência Paul Feyerabend. Entretanto, este é só um exemplo
de muitos outros recortes que podem e devem ser feitos por professores das matérias científicas
que pesquisam na área da História, Filosofia e Sociologia da Ciência e que têm a intenção de
propor subsídio teórico para que essa estratégia didática seja utilizada nas salas de aula do
Ensino Médio.
44 “Em nome da ‘racionalidade’ científica, o educando é obrigado a despojar-se do senso comum, da intuição, de
suas crenças mais profundas, de sua visão de mundo, das múltiplas possibilidades de apreciar o real em troca de
uma visão unilateral do mundo, a científica” (SILVA, 2016, p. 89).
63
Diante disso, vamos utilizar três temas envolvendo o que chamamos de astronomia de
Galileu e que, geralmente, fazem parte dos conteúdos que são tradicionalmente45 ensinados na
disciplina de física no Ensino Médio e que, ao mesmo tempo, tem relevância histórica nos
trabalhos de Galileu e nas análises epistemológicas de Paul Feyerabend. Apesar de aparecerem
com diferentes níveis de aprofundamento nos materiais didáticos, esses três temas juntos
promovem as discussões a respeito da física terrestre e celeste de Galileu46, sendo parte
essencial do período, do final do século XVI e início do século XVII, que representa um recorte
de um período mais amplo de mudança de pensamento cosmológico, que ficou conhecido como
Revolução Copernicana.
Inicialmente vamos apresentá-los em suas versões47 de caráter ahistórico, onde Galileu
é tradicionalmente mostrado de forma caricata, e, em seguida, vamos utilizar a Filosofia da
Ciência, a partir de uma perspectiva feyerabendiana, e a obra de Galileu Galilei – Diálogo sobre
os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano48, para mostrar uma visão menos
distorcida do desenvolvimento científico que pode e deve ser suscitada na sala de aula, na
comunidade escolar e, por consequência, na sociedade como um todo.
Ademais, uma pesquisa publicada recentemente por Schivani et al. (2020), a respeito da
escolha dos livros didáticos nas escolas do Brasil (e em especial os de física), chama a atenção
que a coleção mais adotada (Bonjorno, Casemiro, Clinton e Prado – Editora FTD) em vinte e
um estados brasileiros para o triênio 2018-2020, com mais de 1,5 milhões de exemplares, possui
um enfoque tradicional com ênfase no formalismo matemático e é, inclusive, pobre em
45 O ensino de astronomia aos poucos vem sendo inserido nos conteúdos de física do ensino básico. Entretanto,
ainda predomina nas salas de aula uma ciência apresentada de forma linear e objetiva, com ênfase na reprodução
sistemática de resoluções algébricas, no protagonismo de nomes tradicionalmente difundidos na comunidade
científica, na ausência dos conflitos históricos e nos métodos científicos universais (FONSECA, 2015, p. 1).
46 Vale destacar que essa diferenciação entre as físicas “terrestre” e “celeste” de Galileu (se referindo as tentativas
de descrever e explicar os fenômenos físicos) é feita a posteriori. Na época, não seria possível fazer tal separação.
47 Como exemplo, iremos utilizar fontes do cotidiano dos professores e alunos da rede pública estadual: o livro
“Conexões com a Física” (MARTINI et al., 2016) disponível para escolha no Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD) entre 2018 a 2020, e as páginas da internet “Brasil Escola” (SANTOS, 2018; FERNANDES, 2018) e
“Mundo Educação” (HELERBROCK, 2018; CERQUEIRA, 2018), que disponibilizam informação educacional e
que foram comumente visitadas nos sites de busca entre 2018 e 2019. Vale ressaltar que essas fontes foram
escolhidas como exemplos e que elas não correspondem à totalidade dos materiais didáticos disponível no PNLD
e na internet. O livro citado foi o material fornecido para mim e para os outros professores das matérias científicas
da escola em que leciono durante o período em que essa dissertação foi escrita, e as páginas de internet
correspondem às fontes mais buscadas pelos nossos alunos quando foram solicitados trabalhos de pesquisas,
durante este mesmo período.
48 Em sua obra mais famosa, publicada na Itália em 1632, Galileu utiliza três personagens – Salviati, Simplício e
Sagredo – que debatem a respeito dos sistemas de mundo, em defesa do Heliocentrismo. Nesta pesquisa, utilizamos
a tradução para o português de 2011.
64
discussões de HFC. Os autores citam que, no próprio Guia do Livro Didático de 2018, a coleção
de Bonjorno e colaboradores apresenta que,
dentre todo o rol de atividades propostas, a principal ênfase está atribuída aos
exercícios quantitativos (...) [e que] questões socioambientais e de
sustentabilidade não ocupam lugar de destaque na coleção, já que são escassas
as propostas voltadas a discussões sociocientíficas. Essa característica limita
a exploração das relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio
Ambiente, principalmente quanto ao desenvolvimento do posicionamento
crítico dos estudantes e suas ações socioambientais (BRASIL, 2017, p. 76, 79
apud SCHIVANI et al., 2020, p. 8).
Assim, sendo o livro didático um dos principais recursos utilizados na Educação Básica,
fica-nos evidente o déficit provocado pela ausência das discussões da HFC na sala de aula.
Corpos em queda livre
O tema da queda livre é usualmente discutido no primeiro ano do Ensino Médio como
parte do conteúdo de mecânica. Apesar de se referir à física terrestre, ele está intimamente
ligado às discussões astronômicas, uma vez que, para o Heliocentrismo, era necessário construir
uma física terrestre compatível com uma Terra em movimento. Assim, é geralmente
apresentado nos livros didáticos, que a análise do movimento de corpos abandonados é uma
evidência da força gravitacional da Terra:
Todos os corpos próximos à superfície da Terra são atraídos por ela e, se nada
os impedir, cairão em sua direção. Dizemos que é a atração gravitacional da
Terra que “puxa” toda a matéria em direção ao centro do planeta (MARTINI
et al., 2016, p. 53).
Muitas vezes, também, o professor é instruído a fazer o seguinte experimento:
abandonar, ao mesmo tempo, uma borracha e uma folha de papel de uma mesma altura, e
questionar os alunos sobre quem chegou primeiro ao chão. Posteriormente, amassar bem a folha
de papel e repetir o experimento, questionando novamente os alunos sobre a diferença no tempo
entre as quedas dos dois objetos.
65
A partir disso, é apresentado o filósofo grego Aristóteles e o seu estudo pioneiro a
respeito da queda dos corpos:
Por volta de 300 anos antes de Cristo, existiu um filósofo grego chamado
Aristóteles que acreditava que se abandonássemos dois corpos de massas
diferentes, de uma mesma altura, o corpo mais pesado tocaria o solo primeiro,
ou seja, o tempo de queda desses corpos seriam diferentes. Essa crença
perdurou por muitos anos sem que ninguém procurasse verificar se realmente
o que o filósofo dizia era mesmo verdade (SANTOS, 2018).
Figura 2 – Foto da Torre Inclinada de Pisa, na Itália, presente no catálogo da Detroit
Publishing Company de 1905.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4240/>. Acesso em: 29 out. 19.
Entretanto, no
66
século XVII, o físico Galileu Galilei, ao introduzir o método experimental,
chegou à conclusão de que quando dois corpos de massas diferentes,
desprezando a resistência do ar, são abandonados da mesma altura, ambos
alcançam o solo no mesmo instante. Conta a história que Galileu foi até o topo
da Torre de Pisa, na Itália, e de lá realizou experimentos para comprovar sua
afirmativa sobre o movimento de queda dos corpos. Ele abandonou várias
esferas de massas diferentes e percebeu que elas atingiam o solo no mesmo
instante. Mesmo após as evidências de suas experiências, muitos dos
seguidores de Aristóteles não se convenceram, e Galileu foi alvo de
perseguições em razão de suas ideias revolucionárias (SANTOS, 2018).
A conclusão que fica evidente é que Galileu lançou a hipótese de que o ar exerce grande
influência sobre a queda de corpos, e, não havendo essa resistência, todos os corpos levariam o
mesmo tempo para atingir o solo, uma vez que o tempo de queda não dependeria da massa ou
do volume, mas, unicamente, da altura de onde foram abandonados os objetos
(HELERBROCK, 2018).
Além disso, também é apresentada uma prova empírica:
Séculos mais tarde, em 1971, quando a missão norte-americana Apollo 15
chegou à Lua, um dos astronautas foi filmado soltando um martelo de uma
das mãos e uma pena da outra, para que todos, pela televisão, pudessem
acompanhar a verificação da teoria de Galileu sobre a queda dos corpos
(MARTINI et al., 2016, p. 54).
Alguns materiais didáticos, entretanto, destacam que os experimentos de queda-livre
não foram, de fato, realizados por Galileu no alto da Torre de Pisa, e que se tratava apenas de
um “argumento”, uma vez que ele sabia que os corpos em queda sofriam influência da
resistência do ar (SILVEIRA, 2015).
Geocentrismo x Heliocentrismo
Outro tema, ligeiramente menos trabalhado que o primeiro, discute a controvérsia
histórica entre as visões geocêntrica e heliocêntrica do Universo.
O Geocentrismo é apresentado como sendo o modelo base para a maioria das
concepções de Universo criadas na Antiguidade, representando a Terra imóvel no centro do
67
Universo e esferas celestes que delimitavam as órbitas dos astros que giravam em torno dela
(MARTINI et al., 2016, p. 147).
A discussão principal reside na defesa desse modelo pela Igreja Católica, por mais de
1.400 anos, por se basear em aspectos de passagens bíblicas, quando, no século XVI, um
diácono chamado Nicolau Copérnico sistematiza uma nova teoria que se contrapunha ao
modelo geocêntrico:
Nicolau Copérnico (1473 - 1543), considerado o fundador da astronomia
moderna, (...) afirmava que a Terra e os demais planetas se moviam ao redor
de um ponto vizinho ao Sol, sendo, este, o verdadeiro centro do Sistema Solar.
A alternância entre dias e noites é uma consequência do movimento que a
Terra realiza sobre seu próprio eixo, denominado movimento de rotação.
Rapidamente, a Igreja Católica se opôs à teoria heliocêntrica, e Copérnico só
autorizou a divulgação de seus dados matemáticos que comprovavam a teoria
após sua morte, pois temia ser condenado por heresia pela Igreja Católica
(CERQUEIRA, 2018).
Figura 3 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633.
Fonte: Blog Pensar Refletir e Sentir. Disponível em:
<pensarreflectiresentir.blogspot.com/2016/06/efemerides.html>. Acesso em: 29 out. 19.
68
A Igreja, então, é tomada (equivocadamente, como veremos) como vilã, como símbolo
da autoridade da época que exerce opressão contra os cientistas que trazem a Verdade. E, assim,
outro personagem surge para contrariá-la:
Posteriormente, Galileu Galilei, durante o século XVII, reforçou a teoria
heliocêntrica através de observações com lunetas holandesas. Como
consequência de seu “atrevimento”, Galileu foi julgado pelo tribunal da
Inquisição, tendo como opção negar sua teoria ou ser queimado na fogueira
da Inquisição. Sem muitas alternativas, sua teoria foi negada (CERQUEIRA,
2018).
O telescópio como prova definitiva do céu
O terceiro e último tema de nossa análise não é um conteúdo disposto no currículo de
física, mas uma afirmação implícita neles que supostamente levou Galileu à vitória.
É bastante comum encontramos nos livros didáticos que, ao fazer uma viagem a Veneza,
Galileu conheceu um instrumento óptico que possuía o poder de aproximar objetos que estavam
distantes e o utilizou para observar o céu, o que levou a uma verdadeira revolução científica e
cosmológica:
Figura 4 – Galileu e o telescópio
Fonte: Made for minds. Disponível em: <dw.com/pt-br/nascido-h%C3%A1-450-anos-galileu-galilei-
transformou-o-conceito-de-mundo/a-17438676>. Acesso em: 29 out. 19.
69
Ele pôde observar características dos planetas que nunca haviam sido vistas.
Galileu percebeu que havia satélites girando em torno de Júpiter, tal qual a
Lua em torno da Terra. Verificou também que Vênus apresentava fases em
razão dos seus movimentos, supondo que esse planeta girava ao redor do Sol.
Observou que a superfície da Lua era cheia de buracos, planícies, vales e
montanhas, mostrando que os corpos celestes não eram esferas perfeitas, como
supunha Aristóteles; enfim, trouxe grandes contribuições aos conhecimentos
astronômicos da época, apesar da oposição da Igreja Católica, que passou a
persegui-lo (MARTINI et al., 2016, p. 148-149).
Figura 5 – As luas de Júpiter no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos,
Pádua, Itália, 1610.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.
E, ainda, há nessas discussões uma premissa supostamente verdadeira – a veracidade
das imagens produzidas pelo telescópio:
70
Essas e outras constatações só foram possíveis em virtude do uso que Galileu
fez do telescópio (...). [Estes objetos] revolucionaram a ciência porque
possibilitaram potencializar a observação do olho humano. Os primeiros
resultados das pesquisas de Galileu com o uso do telescópio foram publicados
já em 1610 com o título de “O mensageiro estelar”. Em 1613, ele publicou a
“Carta sobre manchas solares”, onde deixou explícitas as primeiras
considerações propriamente científicas a favor da teoria heliocêntrica de
Copérnico. Além disso, um ponto importante a ser notado é que, com o uso
do telescópio por Galileu, a ciência também passou a existir intimamente
conectada com a “técnica”, isto é, com a capacidade do ser humano de ampliar
os seus sentidos por meio de inventos, de instrumentos e, com eles, descrever
e intervir na natureza (FERNANDES, 2018).
Figura 6 – Ilustração de Galileu Galilei publicada no livro Saggiatore (O Ensaísta), dedicado
ao papa Urbano VIII, Roma, 1623.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4184/>. Acesso em: 29 out. 19.
O italiano Galileu Galilei é provavelmente o astrônomo mais famoso de todos os
tempos. Suas “descobertas” são associadas principalmente à defesa de um sistema cosmológico
71
heliocêntrico, à liberdade de pensamento em contraposição ao domínio social (e científico) da
Igreja e à utilização do telescópio como ferramenta de “comprovação” científico-astronômica.
Como vimos anteriormente, os embates entre Galileu e seus adversários geralmente
representaram a luta de um “pensamento revolucionário de um gênio” contra o “pensamento
conservador dos ignorantes membros da Igreja”. Mas será que a chamada Revolução
Copernicana pode ser resumida de forma tão simplória? E será que a concepção milenar da
Terra como centro do Universo (o Geocentrismo) não tinha bons argumentos em seu favor?
(SILVA, 2006, p. 20).
Para Paul Feyerabend (2011a, p. 52-53), a Revolução Copernicana é uma sequência de
eventos complexos que não envolvem apenas Galileu, mas a situação na Cosmologia, na Física,
na Astronomia, nas leis, na Óptica e na Teologia. Em suas palavras:
(...) Muitas diferentes personalidades, profissões e grupos guiados por crenças
diferentes e sujeitos a restrições diferentes contribuíram para o processo que
está agora sendo descrito, um tanto sumariamente, como a “Revolução
Copernicana” (FEYERABEND, 2011b, p. 182).
Figura 7 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu.
Fonte: Essas e Outras. Disponível em: <essaseoutras.com.br/geocentrismo-heliocentrismo-e-big-bang-teorias-
sobre-o-universo/>. Acesso em: 25 mai. 2020.
72
Segundo o Geocentrismo, uma visão de mundo predominante na Antiguidade que foi
defendida pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), o Universo era dividido em duas
partes: o mundo sublunar (do centro da Terra até antes da órbita da Lua) e o mundo supralunar
(que envolvia a Lua e tudo que havia após ela). A Terra estava no centro de tudo, imóvel, e
rodeada pelas esferas celestes, incluindo as estrelas fixas. Essas duas partes do Universo eram
regidas por leis diferentes: a primeira era composta pelos elementos terra, água, ar e fogo (nessa
ordem), local de mudança, pecado, destruição e morte; e a segunda parte era uma região perfeita
e eterna, delimitada pelas estrelas fixas, donde giravam os planetas (incluindo a Lua e o Sol),
além da qual não havia nada, nem lugar, nem vazio, movida pelo motor primário que criou tudo
que existe e gerou o movimento circular e uniforme de todos os astros49. Esse movimento
aproxima-se do deslocamento aparente dos astros. As estrelas parecem
transitar uniformemente em círculos ao redor da Terra. O Sol também possui
uma trajetória circular, embora sua translação não seja uniforme. O trânsito
dos planetas é cíclico, porém mais complexo. Para contornar essas
“anomalias”, os astrônomos antigos conceberam uma solução engenhosa:
decompor os movimentos complexos, observados no céu, em movimentos
mais simples, de natureza circular e uniforme. Nasceram assim os sistemas de
ciclos e epiciclos [de Hiparco de Nicéia (190-120 a.C.) e de Ptolomeu (90-168
d.C.)] (SILVA, 2006, p. 22-23).
Figura 8 – Equante, epiciclos e excêntrico adotados pela astronomia grega
Fonte: DAMASIO, 2011, p. 3602-3.
49 “A origem dessa concepção é atribuída a Platão. Para ele os corpos celestes e seus movimentos eram perfeitos.
E só o movimento circular uniforme teria o atributo da perfeição, uma vez que é sempre igual a si mesmo, fechado
sobre si mesmo, sem início nem fim” (SILVA, 2006, p. 22).
73
No século XVI, o presbítero polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) propôs um modelo que
retirava a Terra do centro do Universo e a substituía pelo Sol. Em seu livro De Revolutionibus
Orbium Coelestium (Sobre as Revoluções das Esferas Celestes), publicado no ano de sua morte,
Copérnico elaborou uma teoria matemática que tentava resolver as anomalias da cosmovisão
aristotélica, afirmando que apesar dos movimentos dos astros serem circulares, uniformes e
eternos, eles não giram em torno da Terra, mas em relação a um ponto próximo ao Sol; que a
Terra possuía um movimento de rotação diária (responsável por causar os dias e as noites) e um
movimento de translação anual.
Copérnico fazia uma distinção entre movimento aparente e movimento real e, para ele,
a função da astronomia era explicar o movimento real a partir do movimento aparente. Ele
acreditava que o movimento celestial real era um movimento circular uniforme ao redor de um
centro. Inicialmente, ele tentou explicar essas desigualdades (entre os movimentos aparente e
real) eliminando excêntricos e equantes, e os substituindo por dois epiciclos para cada planeta
(Figura 8). Faltava a ele, então, explicar a anomalia sinódica (das estações do ano e do
movimento retrógrado planetário). Ao tentar fazer isso, Copérnico percebeu que essa anomalia
sempre concordava com a posição do Sol e poderia ser eliminada caso fosse o Sol, e não a
Terra, o centro do Universo (FEYERABEND, 2011a, p. 62-64).
Figura 9 – Representação dos epiciclos de Copérnico, publicada em sua obra De
Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/3164/>. Acesso em: 29 out. 19.
74
“Copérnico era um cristão fiel e um bom aristotélico; tentou restaurar o movimento
circular centrado à proeminência que certa vez tinha tido, postulou uma Terra em movimento,
rearranjou as órbitas planetárias e deu valores absolutos para seus diâmetros” (FEYERABEND,
2011b, p. 181). Ele caracterizou o movimento retrógrado dos planetas (que se moviam para
frente e então invertiam a sua direção) como um movimento aparente, e “auxiliado pelo fato
de que [isso estava] em concordância com a posição do Sol”, interpretou que esse movimento
aparente era “criado por um movimento real (e, é claro, circular) por parte da Terra” (ibidem,
p. 187).
Assim, ele afirma o movimento da Terra mesmo
em conflito com a Cosmologia, com a Física e com a Teologia. (...) Eliminava
o conflito com a Teologia por meio de um artifício familiar: a palavra da
Escritura nem sempre é entendida literalmente. [E] com a Física, ele
solucionava o conflito, propondo sua própria teoria do movimento. (...) [Seu]
argumento é rodeado de referências a crenças antigas, tais como o Hermetismo
e a ideia do papel excepcional do Sol, (...) ele é convincente apenas para
aqueles que preferem a harmonia matemática a um acordo com os aspectos
qualitativos da natureza, ou [seja, para] aqueles que tendem mais para uma
interpretação platônica do que para uma interpretação aristotélica da natureza.
(...) E como essas expectativas variam de um grupo para o outro, o argumento
inteiro estava engastado de um contexto que só pode ser chamado de
“subjetivo” (FEYERABEND, 2011a, p. 64-65).
Apesar de belo, pela simplicidade50, o modelo heliocêntrico era contraditório com a
teoria aristotélica dos movimentos naturais do universo, pois não explicava o movimento dos
corpos aqui na Terra, contrariando, inclusive, os experimentos de queda-livre (o argumento da
torre), o que era satisfatoriamente51 explicado pela teoria do lugar natural (SILVA, 2006, p.
50 Feyerabend (2011a, p. 60-61), ao discutir sobre as teorias do conhecimento que dialogam sobre a transição de
Ptolomeu/Aristóteles para Copérnico/Galileu, afirma que o argumento da simplicidade nem foi importante na
época e nem é, na prática, também hoje em dia: “(...) apenas poucas pessoas aceitariam uma teoria em conflito
com a conservação de energia apenas por sua simplicidade. Por que os astrônomos do século XVI aceitariam uma
teoria física e teologicamente impossível apenas em virtude de sua simplicidade?”.
51 Oliveira (2011, p. 45), baseado no que disse Feyerabend (2011b, p. 108-109), enfatiza que: “Tradicionalmente,
o comportamento da pedra em relação à torre, tal como é observado, era para [os] geostáticos uma prova da
imobilidade da Terra. A explicação geostática estava baseada na ideia de que a pedra se comportava do modo dito
por dois princípios básicos: o pressuposto epistemológico do movimento absoluto, no qual o movimento é sempre
percebido; e o princípio dinâmico aristotélico de que objetos que não sofrem interferência assumem seu
movimento natural e, assim, buscam seu lugar de origem (...) [como] uma pedra que após ter sido laçada para
cima, busca retornar para o centro da Terra. Desta maneira, (...) é correto afirmar que [a pedra], ao iniciar seu
movimento de descida (após o lançamento), tem uma propensão natural a ir para baixo, mas não tem a mesma
propensão para mover-se circularmente em volta da Terra” (grifos do autor).
75
23); e ainda assemelhava a Terra aos outros planetas (causando tanto um problema físico quanto
antropocêntrico).
Figura 10 – Representação do sistema heliocêntrico de Copérnico, publicada em sua obra De
Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/3164/>. Acesso em: 29 out. 19.
Feyerabend (2011a, p. 58) discute sobre os três principais argumentos contrários ao
movimento da Terra: i) o argumento da torre, baseado na teoria do movimento aristotélico, foi
confirmado pela experiência de queda livre; ii) a paralaxe, proposta por Aristóteles, afirmava
que se a Terra girasse ao redor do Sol haveria vestígios desse movimento pelas estrelas,
entretanto nunca foi encontrado nada; e iii) o movimento da Terra estava em conflito com o que
era interpretado pela Sagrada Escritura.
Entretanto, a partir do final do século XVI, as certezas acerca do universo supralunar
começaram a ser questionadas pelas observações astronômicas. Nesse período, vários
cometas52 puderam ser vistos no céu. Os aristotélicos acreditavam que se tratava de um
52 Silva (2006) apresenta uma discussão completa a respeito da importância da observação dos cometas nesse
período. Ela explica, com uma grande riqueza de detalhes históricos, como Galileu, sem realizar qualquer
observação astronômica, se opôs as “provas científicas” que afirmavam a natureza supralunar dos cometas, se
mantendo fiel a ideia aristotélica da perfeição do movimento circular.
76
fenômeno atmosférico (sublunar), uma vez que os cometas apareciam, aumentavam, diminuíam
de tamanho e depois desapareciam do céu. Vários astrônomos tentaram entender a natureza
desses astros, buscando determinar a distância entre eles e a Terra, dentre eles o dinamarquês
Tycho Brahe (1546-1601), que projetou vários instrumentos para calcular com precisão as
órbitas planetárias e concluiu (utilizando as medidas da paralaxe dos cometas e comparando-as
com as da Lua) que os cometas provavelmente se movimentavam pelo universo supralunar
(SILVA, 2006, p. 25).
Além disso, o século XVI envolveu a todos (da Europa) com a magnífica recente
descoberta das Américas. Essa descoberta colocou em xeque as fronteiras da cosmologia e da
teologia, e “fez suspeitar da existência também de uma América do conhecimento e eles
interpretaram cada dificuldade como evidência para esse novo continente” (FEYERABEND,
2011a, p. 66, grifo nosso), sobretudo com a descoberta de Tycho Brahe de uma nova estrela em
1572, e do movimento dos cometas “através das esferas celestiais, [que] ganhou uma
importância que não teria tido se isso não tivesse ocorrido” (ibidem, p. 67).
Assim, como fruto dessa grande revolução (no sentido literal da palavra), surge o
personagem histórico Galileu Galilei...
A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos
Os sentidos nos mostram que
corpos pesados caem do alto para baixo por uma linha reta e perpendicular à
superfície da Terra; argumento considerado incontestável de que a Terra esteja
imóvel: porque, quando ela tivesse a rotação diurna [como proposto por
Copérnico no século XVI], uma torre, de cujo cimo se deixasse cair uma
pedra, sendo transportada pela rotação da Terra, no tempo em que a pedra
gasta para a sua descida, afastar-se-ia muitas centenas de braças para o oriente,
e por tanto espaço deveria a pedra percutir na Terra afastada da base da torre
(GALILEI, 2011, p. 208).
Segundo Feyerabend (2011b, p. 86, 90), Galileu desarmou este argumento afirmando
que os sentidos isolados, sem o auxílio da razão, podem não nos dar uma descrição verdadeira
da natureza:
77
Salviati – (...) acerca daquilo que nos é primeiramente representado pelos
[nossos] sentidos, que nos podem facilmente enganar; (...) esse movimento
dos graves descendentes é simplesmente reto e não de outro tipo, (...) porque,
desse modo, dá sinal de acreditar que aqueles que dizem que tal movimento
não é de outro modo reto mas, ao contrário, circular, parecem ver
sensivelmente aquela pedra mover-se em arco, já que ele convida mais seus
sentidos que sua razão para elucidar esse efeito; o que não é verdade, Sr.
Simplício, porque, assim como eu, (...) jamais vi, nem me aconteceu de ver,
cair aquela pedra de outro modo que perpendicularmente, assim também
acredito que, aos olhos de todos os outros, se represente o mesmo. Será
melhor, portanto, que, deixada de lado a aparência, com a qual todos estamos
de acordo, esforcemo-nos com o raciocínio, ou para confirmar a realidade
daquela, ou para descobrir a sua falácia (GALILEI, 2011, p. 335).
A ideia de Galileu consiste em substituir a verdade apreciada pelos sentidos53 por uma
nova linguagem observacional, altamente abstrata e contra-indutiva54, e, até então,
parcialmente não natural:
É [também] verdadeiro que estando em movimento a Terra, o movimento da
pedra, ao cair, terá sido realmente um traço comprido com muitas centenas e
até mesmo com muitos milhares de braças, e se tivesse podido traçar numa
área estável ou outra superfície o traço do seu curso, teria deixado uma linha
transversal compridíssima; mas aquela parte de todo esse movimento, que é
comum à pedra, à torre e a nós, fica para nós insensível e como se não fosse,
e somente é observável aquela parte da qual nem a torre nem nós somos
partícipes, que é afinal aquele movimento com o qual a pedra, caindo, mede
a torre (GALILEI, 2011, p. 253, grifo nosso).
53 “(...) de acordo com o pensamento da época, a imobilidade terrestre conseguia corroboração e força por meio
de: o argumento da torre e o deslocamento da pedra; ou então do visível deslocamento do Sol; ou até mesmo
porque as pessoas não saíam voando da superfície terrestre em direção ao espaço como consequência de qualquer
movimento rotatório que, no caso de que existisse, acarretaria” (OLIVEIRA, 2011, p. 47-48).
54 Apesar de aparentar num primeiro momento, “Feyerabend não critica Galileu por este usar a contra-indução.
Critica-o, no entanto, por este, segundo ele, ter escolhido tal procedimento contra indutivo e ainda considerar suas
concepções como verdade absoluta” (LOPES, 2016, p. 32); Feyerabend “está preocupado (...) em expor as falhas
do racionalismo e suas consequências para a ciência; está preocupado em mostrar o papel da história no processo
concreto da atividade científica e, portanto, [evidenciar] uma metodologia que não desconsidere a importância da
contra-indução enquanto uma necessidade ao progresso da ciência e do conhecimento” (OLIVEIRA, 2011, p. 52).
Nas palavras do próprio Feyerabend (2010, p. 339): “Deixe-me repetir que não critico os procedimentos de Galileu
(...), mas sim aquelas teorias filosóficas que, se aplicadas com um melhor conhecimento da história, teriam que
rejeitar esses procedimentos como ‘irracionais’. Galileu era irracional em termos dessas teorias – mas foi também
um dos maiores cientistas-filósofos que já existiu” (grifo nosso).
78
Feyerabend cita que a concepção copernicana não estava
de acordo com “os fatos”. Do ponto de vista desses “fatos”, a ideia do
movimento da Terra é bizarra, absurda e obviamente falsa, para mencionar
apenas algumas das expressões que foram frequentemente usadas na época e
as quais ainda são ouvidas sempre que profissionais retrógrados se defrontam
com uma teoria nova e contrária aos fatos (FEYERABEND, 2011b, p. 93).
Uma vez que os argumentos de Galileu podem não ser suficientes, ele faz uso da
propaganda e de truques psicológicos (com sucesso!) para convencer a todos do movimento
da Terra55. “A experiência na qual Galileu deseja fundamentar a concepção copernicana não
passa do resultado de sua própria imaginação fértil: ela foi inventada” (FEYERABEND, 2011b,
p. 99, grifo do autor). Galileu, entretanto, anseia que essas ideias sejam “admitid[a]s por todos
e que precisam apenas ser trazid[a]s à nossa atenção para que apareçam como a mais óbvia
expressão da verdade” (ibidem, p. 99).
Notemos como Galileu argumenta a respeito das ilusões fornecidas pelos nossos
sentidos:
Salviati – Imaginai agora estar num navio e ter fixado o olho na ponta do
mastro: acreditais que, porque o navio se movesse também velocissimamente,
ser-vos-ia necessário mover o olho para manter a vista sempre na ponta do
mastro e seguir o seu movimento?
Simplício – Tenho certeza de que não seria preciso fazer nenhuma mudança,
e que não somente a vista, mas, quando eu tivesse ajustado a mira de um
arcabuz, qualquer que fosse o movimento do navio, jamais seria preciso movê-
la um só fio de cabelo para mantê-la ajustada.
Salviati – E isso acontece porque o movimento que o navio confere ao mastro
confere-o também a vós e a vosso olho, de modo que não vos convém movê-
lo para olhar a ponta do mastro; e, consequentemente, ela aparece-vos
imóvel56 (GALILEI, 2011, p. 328-329).
(...) outros podem facilmente enganar-se com a simples aparência, ou
queremos dizer, representação dos sentidos. E o fenômeno é o de dar a
55 “Segundo a epistemologia feyerabendiana, a cosmologia e razão aristotélicas estavam intactas, conseguiam
explicar perfeitamente o mundo. A defesa da cosmologia copernicana era desarrazoada, pois se defrontava
diretamente com uma gama de fatos bem estabelecidos, provenientes da razão vigente. A revolução copernicana
só ocorreu devido à persistência e paixão de Galileu pelo copernicanismo e devido aos incansáveis esforços
empreendidos por ele, através da propaganda, em defendê-lo” (SILVA, 2016, p. 42-43).
56 A inspiração de Galileu para o que hoje chamamos de argumento da torre provavelmente surgiu da observação
do mastro dos navios. Entretanto, não se sabe se esses experimentos foram realmente feitos por Galileu ou seus
contemporâneos, tanto o do mastro quanto o da torre (GALILEI, 2011, p. 643, nota 77).
79
impressão àqueles que de noite caminham por uma estrada de estarem sendo
seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a veem rasar as ponteiras dos
telhados sobre os quais ela lhes aparece, exatamente daquela maneira que faria
uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se mantivesse atrás
deles: aparência de que, quando não interviesse o raciocínio, muito
manifestamente enganar-se-ia a visão (ibidem, p. 336).
Como diria Feyerabend (2011b, p. 102): “Isso é, de fato, uma forte persuasão”.
Galileu argumentava que, tanto do ponto de vista aristotélico quanto do copernicano, a
pedra poderia ser vista cair ao pé da torre, de forma que a experiência observacional, confirmada
pelos nossos sentidos, por si só, não demonstrava nada (OLIVEIRA, 2011, p. 44). Logo, fica
claro que “o problema não se presta facilmente a uma solução experimental. Experimentos
foram realizados, mas ficaram longe de ser concludentes” (FEYERABEND, 1977, p. 137).
Essa explicação, a respeito da percepção do movimento, baseia-se na afirmação de que
os “nossos sentidos só notam o movimento relativo57 e são insensíveis a um movimento que os
objetos tenham em comum” (FEYERABEND, 2011b, p. 108, grifo do autor). Assim,
argumenta Salviati:
Fechai-vos com algum amigo no maior compartimento existente sob a coberta
de algum grande navio, e fazei que aí existam moscas, borboletas e
semelhantes animaizinhos voadores; seja também colocado aí um grande
recipiente com água, contendo pequenos peixes; suspenda-se ainda um balde,
que gota a gota verse água em outro recipiente de boca estreita, que esteja
colocado por baixo: e, estando em repouso o navio, observai diligentemente
como aqueles animaizinhos voadores com igual velocidade vão para todas as
partes do ambiente; ver-se-ão os peixes nadar indiferentemente para todos os
lados; as gotas cadentes entrarem todas no vaso posto embaixo; e vós,
lançando alguma coisa para o amigo, não a deveis lançar com mais força para
esta que para aquela parte, quando as distâncias sejam iguais. [Então,] fazei
mover o navio com quanta velocidade (uniforme) desejardes: não
reconhecereis uma mínima mudança em todos os mencionados efeitos, nem
de nenhum deles podereis compreender se o navio caminha ou está parado:
(...) jogando alguma coisa ao companheiro, não será necessário atirá-la com
mais força para alcançá-lo, se ele estiver para a proa e vós para a popa, que se
estivésseis colocados ao contrário; e as gotas continuarão a cair como antes
no recipiente inferior, sem que nenhuma caia em direção à popa, ainda que,
enquanto a gota está no ar, o navio navegue muitos palmos; os peixes na sua
água nadarão sem maior esforço tanto para a parte precedente quanto para a
parte subsequente do vaso, e com a mesma facilidade chegarão ao alimento
colocado em qualquer lugar da borda do recipiente; e finalmente as borboletas
e as moscas continuarão seus voos indiferentemente para todas as partes, e
57 Para Feyerabend (2011b, p. 103), o princípio da relatividade do movimento é a essência do artifício de Galileu.
80
nunca acontecerá que se concentrem na parte endereçada para a popa, como
se estivessem cansadas de acompanhar o curso veloz do navio, do qual seriam
separadas, por manterem-se no ar por longo tempo; e se queimando alguma
lágrima de incenso produzísseis um pouco de fumaça, veríeis que ela se eleva
para o alto e como uma pequena nuvem aí se mantém, movendo-se
indiferentemente não mais para esta que para aquela parte (GALILEI, 2011,
p. 267-268).
Resta a ele, então, explicar por que a pedra acompanha a torre e não é deixada para
trás.
Desde a época de Aristóteles, acreditava-se que os corpos que não sofriam interação
física permaneceriam em repouso, isto é, manteriam sua posição. Assim, seria necessário
empurrar um objeto para que ele pudesse se mover. Dessa forma, o fato da pedra tocar o solo
na base da torre (sem ter sofrido interferência durante a queda) significava/provava que a Terra
não estava em movimento (FEYERABEND, 2011b, p. 109).
Então, era necessário supor algo contra-indutivo que não se baseasse exclusivamente
em nossos sentidos, mas também, e principalmente, na razão,
de maneira tal que o movimento da Terra possa continuar a ser afirmado. (...)
O princípio na inércia circular fornece a solução requerida: um objeto que se
move ao redor do centro da Terra com certa velocidade angular em uma esfera
livre de atrito continuará a mover-se para sempre com essa mesma velocidade
angular (FEYERABEND, 2011b, p. 109, grifo do autor).
Logo, tanto a pedra quanto a torre estão se movendo junto com a Terra, e ela, a pedra,
chegará ao solo sem se deslocar da torre.
Simplício – Por meio dos sentidos, que nos asseguram que aquela torre é reta
e perpendicular e mostram que aquela pedra, ao cair, vem rasando a torre, sem
inclinar-se um só cabelo para esta ou para aquela parte, e bater exatamente ao
pé do lugar de onde foi largada.
Salviati – Mas se por acaso o globo terrestre se movesse circularmente, e,
consequentemente, levasse consigo também a torre, e que, de qualquer modo,
se visse a pedra ao cair vir rasando o fio da torre, qual deveria ser o seu
movimento?
Simplício – Seria preciso dizer nesse caso antes “os seus movimentos”; porque
um seria aquele com o qual viria do alto para baixo, e deveria possuir um outro
para acompanhar o curso da torre.
Salviati – Seu movimento seria, portanto, composto de dois, ou seja, daquele
com o qual ela mede a torre, e do outro com o qual ela a segue: (movimento)
81
composto do qual resultaria que a pedra não mais descreveria aquela simples
linha reta e perpendicular, mas uma transversal, e talvez não reta (GALILEI,
2011, p. 221).
Feyerabend (FEYERABEND, 2011b, p. 106, 109) afirma que o movimento aparente da
pedra em queda-livre, combinado com o princípio da relatividade e com o princípio da inércia
circular transforma o argumento que contradiz Copérnico em argumento que o confirma:
A explicação de Galileu do movimento transforma o argumento da torre de
uma refutação de Copérnico em um exemplo confirmador. (...) A teoria do
movimento de Aristóteles é coerente e foi confirmada em alto grau. [E] o que
foi que Galileu fez? Ele substituiu essa teoria complexa e sofisticada, que já
continha a distinção entre as leis da inércia (elas descrevem o que ocorre
quando nenhuma força está atuando) e as leis das forças (elas descrevem como
as forças influenciam o movimento) por sua própria lei da inércia, à qual
faltava [apenas] corroboração (FEYERABEND, 2010, p. 339-341).
Nas palavras do próprio Galileu:
O mesmo experimento que, à primeira vista, parecia mostrar uma coisa, ao ser
examinado mais cuidadosamente, assegura-nos do contrário (GALILEI, 1958,
p. 164 apud FEYERABEND, 2011b, p. 103, nota 2).
Sua principal alegação consiste na defesa de Salviati do argumento pelo qual uma pedra
abandonada do alto do mastro de um navio, que se move com velocidade constante, não ficaria
para trás (como acreditara Simplício), mas tocaria o chão do barco junto ao pé do mastro, da
mesma forma que o faria caso o navio estivesse parado:
Salviati – (…) Afirma, portanto, Aristóteles, que um argumento certíssimo da
imobilidade da Terra é vermos os projécteis subirem perpendicularmente e
retornarem, pela mesma linha, ao mesmo lugar de onde foram atirados, e isso,
ainda que o movimento fosse altíssimo; o que não poderia acontecer quando
a Terra se movesse, porque no tempo em que o projéctil se movesse para cima
e para baixo, separado da Terra, o lugar onde teve início o movimento do
projéctil afastar-se-ia, devido à rotação da Terra (GALILEI, 2011, p. 220).
Simplício – [Assim,] existe a experiência tão apropriada da pedra que se deixa
cair do alto do mastro do navio, a qual, quando o navio está parado, cai ao pé
do mastro, mas, quando o navio se move, cai tão longe desse mesmo término,
82
quanto é o espaço que o navio percorreu durante o tempo da queda da pedra;
o que não são poucas braças, se o movimento do navio é veloz (ibidem, p.
223).
Salviati – Pois é evidentíssimo que o movimento do navio, assim como não é
o seu movimento natural, assim também é acidental para todas as coisas que
estão nele, pelo que não causa espanto que aquela pedra, que era mantida no
cimo do mastro, deixada em liberdade, caia para baixo [junto ao pé do mastro.
Além do mais,] a rotação diurna é posta como movimento próprio e natural
do globo terrestre e, consequentemente, de todas as suas partes; (...) e, por
isso, aquela pedra que está no alto da torre tem, como um instinto primário,
de girar em torno do centro de seu todo em vinte e quatro horas, e este talento
natural ela o exercita eternamente, em qualquer estado em que esteja posta
(ibidem, p. 223-224).
Figura 11 – Rascunhos do movimento circular no manuscrito de Galileu sobre os Planetas
Medicianos, Pádua, Itália, 1610.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.
Galileu generaliza suas ideias contra-indutivas, a respeito da queda dos corpos, tanto
para assuntos terrestres quanto para os celestes, a fim de confirmar o movimento da Terra.
Apesar disso, a sua dinâmica não se ajustava aos epiciclos, que ainda ocorriam na teoria de
83
Copérnico, e nem às elipses propostas por Kepler58. Mas, segundo Feyerabend (2011b, p. 113,
nota 1), é refutada pelas duas teorias. Ademais, “Galileu considera essa lei um ingrediente
essencial do ponto de vista copernicano e tenta remover do espaço interplanetário corpos como
cometas, cujo movimento, obviamente, não é circular”.
Simplício – Então, não fizestes cem provas e nem mesmo uma, e afirmais tão
francamente que ela é certa? Retorno à minha incredulidade e à mesma certeza
de que a experiência tenha sido feita pelos principais autores que dela se
servem, e que ela mostre o que eles afirmam.
Salviati – Eu, sem experiência, estou certo de que o efeito seguir-se-á como
vos digo, porque assim é necessário que siga; e acrescento que vós mesmos
sabeis muito bem que não pode acontecer diferentemente, ainda que finjais,
ou simuleis fingir não o saber (GALILEI, 2011, p. 226, grifo nosso).
Assim, Galileu introduz o princípio da inércia circular não por referência a um
experimento ou uma observação, mas por uma afirmação muito mais especulativa, e é por meio
disso que é alcançada a transição de uma cosmologia geostática para o ponto de vista
copernicano (FEYERABEND, 2011b, p. 110-111).
A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana
Segundo Galileu,
todos os fenômenos terrenos, pelos quais se mantêm comumente a
estabilidade da Terra e a mobilidade do Sol e do firmamento, devem aparecer-
nos feitos sob as mesmas aparências, quando se supõe a mobilidade da Terra
e a estabilidade daqueles (GALILEI, 2011, p. 493).
58 Kepler tentava justificar as incompreensões sob o plano científico de Galileu, no tocante à astronomia, as razões
defensivas e polêmicas a respeito de seu livro, o Saggiarore, pelo fato de que Galileu precisava se defender a
qualquer custo de seus adversários. Para Kepler, independente das fraquezas e dos argumentos, a importância de
sua obra estava em novos raciocínios e experiências, a respeito do movimento dos corpos, inclusive dos cometas.
Galileu se envolve na polêmica sobre a natureza e o movimento dos cometas por uma boa razão: o movimento
não-circular dos cometas desacreditaria Copérnico. “Um corpo celeste dotado de movimento não circular era uma
ameaça para o sistema copernicano, uma hipótese não prevista e por demais perigosa. Assim, sem observações e
sem cálculos” – Galileu não vira os cometas – ele sustenta uma teoria alternativa (a de que os cometas eram
fenômenos atmosféricos, negando sua realidade física e comparando-os aos arco-íris ou reflexos de um pôr-do-sol
sobre a superfície do mar) daquela teoria mais moderna e sofisticada de Tycho Brahe e do padre Grassi (jesuíta e
matemático do Colégio Romano) (REDONDI, 1991, p. 38-39).
84
Desde a época de Platão (aproximadamente 400 anos a.C.) já havia expectativa que as
estrelas seriam divinas e, assim, deveriam se comportar de maneira ordenada59 no céu
(FEYERABEND, 2011b, p. 200). No entanto, no final do século XVI, embasados com o
Heliocentrismo, astrônomos descobriram “que os cometas se movimentavam livremente
através do espaço anteriormente reservado às estrelas e planetas imutáveis” (KUHN, 1998, p.
151-152). A teoria copernicana não era a única e nem a mais geral visão cosmológica de sua
época, seu sucesso e coerência não significavam, por si só, uma correspondência à realidade
(FEYERABEND, 2010, p. 299).
Figura 12 – Representação contendo a explicação do movimento aparente dos planetas a partir
da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos,
Pádua, Itália, 1610.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.
59 “Por outro [lado], não se encontra nenhuma regularidade facilmente discernível. Os planetas, para todos os
efeitos, movem-se de maneira bastante caótica” (FEYERABEND, 2011b, p. 200-201).
85
Isso fica claro quando analisamos os escritos de Galileu, e ele mesmo afirma que os
argumentos a respeito da imobilidade da Terra são muito coerentes e eficazes, enquanto que,
os argumentos contrários, e com poucos adeptos, não estão de acordo com os sentidos:
Salviati – (...) Mas o meu espanto, Sr. Sagredo, é muito diferente do vosso:
vós vos espantais que tão poucos sejam seguidores da opinião dos pitagóricos
[a respeito do movimento da Terra]; e eu fico estupefato de que se tenha até
aqui encontrado quem a tenha abraçado e seguido, nem posso admirar
suficientemente a eminência do engenho daqueles que a receberam e a
consideraram verdadeira, e com a vivacidade de seu intelecto fizeram tal força
aos próprios sentidos, que tenham podido antepor o que lhes ditava o discurso
ao que lhes mostravam as experiências sensíveis abertamente contrárias. Que
as razões contra a revolução diurna da Terra, já examinadas por vós, tenham
grandíssima aparência, já o vimos, e terem sido consideradas como
concludentíssimas pelos ptolomaicos, aristotélicos e todos os seus seguidores,
é um argumento muito forte de sua eficácia (GALILEI, 2011, p. 410).
Apesar disso, Galileu
exigia que as ideias dos astrônomos fizessem parte do conhecimento público.
(...) Galileu não pedia simplesmente a liberdade para publicar seus resultados;
ele queria impô-los aos demais60. (...) [pois] presumia que os métodos
especiais e muito restritos dos astrônomos (...) eram a maneira correta de
acessar a Verdade e a Realidade (FEYERABEND, 2010, p. 297).
Feyerabend argumenta que, nesse período e até o século XIX, os cientistas utilizavam a
bíblia para respaldar as ideias científicas:
No século XVI, a concordância com a palavra de Deus como estava contida
na Escritura Sagrada era uma condição-limite importante e aceita
universalmente da pesquisa física. Era um padrão comparável com o padrão
“moderno” da precisão experimental (FEYERABEND, 2011a, p. 57).
Esse pressuposto, defendido por grandes cientistas como Copérnico, Kepler e Newton,
é baseado no fato das Escrituras serem “uma importante condição delimitadora da existência
60 O argumento de Feyerabend (2010, p. 297) segue afirmando que nesse aspecto Galileu “era tão atrevido e
totalitário quanto muitos dos profetas modernos da ciência – e tão desinformado quanto eles”.
86
humana e, por tanto, da pesquisa” (FEYERABEND, 2011b, p. 174). Segundo Isaac Newton,
por exemplo, a pesquisa científica deve se basear em duas fontes: as Obras de Deus (o
magnífico Universo) e a Palavra de Deus (a Bíblia). Como acontece até os dias de hoje, a Igreja
tem a Palavra de Deus como fonte para as discussões dos interesses humanos, e faz dela uma
condição-limite da Realidade e da Verdade (FEYERABEND, 2010, p. 302-303).
Em resposta ao monge carmelita Paolo Foscarini, o Cardeal Roberto Bellarmino, do
Colégio Romano, discute sobre a ideia hipotética de Galileu:
Parece-me que Vossa Reverendíssima e o Senhor Galileu agem com prudência
quando se satisfazem em falar hipotética e não absolutamente... Dizer que, na
suposição do movimento da Terra e da quiescência do Sol, todas as aparências
celestiais são mais bem explicadas que pela teoria dos excêntricos e epiciclos
é falar com um excelente bom-senso e não correr qualquer risco. Essa maneira
de falar é suficiente para um matemático. Mas querer afirmar que o Sol,
verdadeiramente, está no centro do universo e só gira em torno de seu próprio
eixo sem ir do leste para o oeste é uma atitude muito perigosa e calculada não
só para provocar todos os filósofos e teólogos escolásticos como também para
ferir nossa fé sagrada ao contradizer as Escrituras (FEYERABEND, 2010, p.
298).
A posição da Igreja era de que o conhecimento astronômico servia apenas para explicar
e prever, mas não poderia ser relacionado com a realidade, ou seja, o fato de um modelo
funcionar dentro de um campo estrito não mostrava, necessariamente, que ele tinha acesso à
verdade61 (ibidem, p. 298). Além disso, a Igreja também usava a Bíblia para impor medidas
administrativas: em sua carta enviada a Galileu, o cardeal Bellarmino enfatiza esta condição:
“Como vocês estão cientes, o Concílio de Trento proíbe a interpretação das Escrituras de uma
maneira contrária à opinião comum dos papas” (ibidem, p. 303, grifo nosso).
A Igreja Católica Romana (...) afirmava ter os direitos exclusivos de
exploração, interpretação e aplicação das Sagradas Escrituras. Os leigos, de
61 “Para usar os termos modernos: os astrônomos [e demais cientistas] estão totalmente seguros quando dizem que
um modelo tem vantagens preditivas sobre outro modelo, mas se complicam quando afirmam que essa é, portanto,
uma imagem fiel da realidade. (...) Essa ideia sensata é um ingrediente elementar da prática científica. (...)
Tomemos as melhores teorias da física moderna: a relatividade geral em sua forma mais recente e a mecânica
quântica geral. Até aqui ficou provado que seria impossível fundi-las em um todo coerente – uma das teorias faz
afirmações que são terminantemente contraditas pela outra. Podemos ainda assim afirmar que obteremos uma
descrição correta da realidade de alguma delas? É claro que não. Podemos [apenas] dizer que ambas as teorias são
aproximações úteis, mas que não temos a menor ideia de como é a realidade da qual elas se aproximam”
(FEYERABEND, 2010, p. 298-299).
87
acordo com os ensinamentos da Igreja, não tinham nem o conhecimento nem
a autoridade para mexer com as Escrituras e eram proibidos de fazê-lo. [Isso]
não deveria causar surpresa a ninguém familiarizado com os hábitos de
instituições poderosas. A atitude da Associação Médica Americana [por
exemplo,] com relação a praticantes leigos é tão rígida como o era a atitude
da Igreja para com intérpretes leigos – e tem as bênçãos da lei. Especialistas,
ou ignorantes que tenham adquirido as insígnias formais de uma
especialidade, sempre tentaram – e com frequência tiveram êxito nisso –
assegurar para si mesmos direitos exclusivos em domínios especiais. Qualquer
crítica da rigidez da Igreja Católica Romana também aplica-se a seus
sucessores modernos, tanto científico quanto ligados à ciência
(FEYERABEND, 2011b, p. 175).
Figura 13 – Retrato de São Roberto Bellarmino, óleo sobre tela, feito em 1923 por G.
Francisi, Roma, Palácio do Santo Ofício, sala de recepção, lado norte.
Fonte: REDONDI, 1991, p. 152.
88
Ciente das consequências, Galileu foi instruído a ensinar a teoria copernicana como uma
hipótese, sendo proibido62, portanto, de ensiná-la como uma verdade. Além disso, Segundo
Feyerabend (2011b, p. 177), a Igreja, “era muito mais modesta que isso”,
não dizia: aquilo que contradiga a Bíblia tal como por nós interpretada deve
desaparecer, não importa quão fortes sejam as razões científicas a seu favor.
Uma verdade apoiada por argumentação científica não era posta de lado. Era
usada para revisar a interpretação de passagens da Bíblia aparentemente
inconsistentes com ela. Há muitas passagens na Bíblia que parecem sugerir
uma Terra plana. Ainda assim, a doutrina da Igreja aceitava a Terra esférica,
[flutuando no espaço,] como coisa evidente. No entanto, a Igreja não estava
disposta a mudar somente porque alguém havia produzido algumas
conjecturas vagas. Queria prova – uma prova científica em assuntos
científicos63. (...) Mas não havia ainda nenhuma prova convincente da doutrina
copernicana (grifo do autor).
Os especialistas da Igreja concluíram que a teoria de Galileu, a respeito da mobilidade
da Terra, era “insensata e absurda em sua filosofia”, o que, segundo Feyerabend, equivaleria
dizer nos dias de hoje, que a teoria não era científica. Essa análise “foi feita sem referência à fé
ou à doutrina da Igreja, sendo baseada exclusivamente na situação científica da época” (ibidem,
p. 173). Tycho Brahe64 e outros cientistas concordavam com a opinião da Igreja, uma vez que
ela estava baseada com os fatos e padrões da época. Além disso, os especialistas da Igreja
pronunciaram que a doutrina copernicana era “formalmente herética”, no que diz respeito às
implicações éticas/sociais. Assim, ao ser associada à Realidade, ela contradizia a Palavra de
Deus, e não era feita de maneira inadvertida, mas com plena consciência da situação (ibidem,
p. 174).
62 Redondi (1991, p. 39) afirma que Galileu tinha “muitas observações e ideias novas a favor do copernicanismo
e do movimento da Terra, mas disso não poderia falar porque em 1616 o cardeal Bellarmino o prevenira de que
deveria abster-se para o futuro. A única coisa que podia fazer, então, era defender o copernicanismo de seus
possíveis adversários: destruir a astronomia e a cosmologia não copernicanas. Em outras palavras, não podendo
demonstrar o sistema copernicano [como uma correspondência da verdade], Galileu tinha como única escolha
eliminar as possíveis desvirtuações”.
63 “Aqui, ela não atuava de maneira diferente de muitas instituições científicas modernas: universidades, escolas e
mesmo institutos de pesquisa em vários países usualmente esperam por um longo tempo antes de incorporar novas
ideias em seus currículos” (FEYERABEND, 2011b, p. 177).
64 Tycho Brahe, segundo Feyerabend (ibidem, p. 181), “foi um astrônomo notável; suas observações contribuíram
para a queda de concepções geralmente aceitas. Ele notou a importância da cosmologia de Copérnico – contudo,
manteve a Terra imóvel, por razões tanto físicas quanto teológicas”.
89
As descobertas de Galileu Galilei sobre as manchas solares, as fases de Vênus,
as luas de Júpiter e a modificação do tamanho de Marte ao longo de seu
movimento anual, que começaram a ser divulgadas no início do século XVII,
principalmente por meio de trocas de cartas, confirmavam a doutrina
copernicana, que afirmava que o Sol ocupava o centro do universo. Tais ideias
não eram bem aceitas, principalmente pelos teólogos da época, que tinham a
justificativa (...) de ser uma concepção contrária aos escritos bíblicos (LINO,
2020, p. 220).
O suposto movimento da Terra defendido por Galileu, sem sombra de dúvidas,
contradizia a Palavra de Deus, uma vez que no capítulo 10, versículo 12, do livro de Josué
(Antigo Testamento) ele ordena “Sol, pare sobre Gibeom!” e “o Sol parou no meio do céu e por
quase um dia inteiro não se pôs”. Ora, se o Sol parou, então é ele quem se movimenta e,
consequentemente, a Terra se encontra em repouso (tal qual podemos perceber com nossos
sentidos).
Há, ainda, outras passagens com referências astronômicas na Bíblia, como, por
exemplo, o salmo 93, 1 “O mundo jamais será movido”; e o salmo 19, 1-6, “Os céus declaram
a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. (...) Nos céus ele armou uma
tenda para o sol, que é como um noivo que sai de seu aposento e se lança em sua carreira com
a alegria de um herói. Sai de uma extremidade dos céus e faz o seu trajeto até a outra”.
Essas linhas são enunciados claros das crenças astronômicas dos antigos. Mas
seriam elas suficientes para fazer Copérnico hesitar e para criar toda espécie
de problemas para Galileu? Não em nossa época, mas, nos séculos XV e XVI,
com toda a certeza (HELLMAN, 1991, p. 27).
Galileu, entretanto, reivindicava a liberdade e autonomia da pesquisa no domínio da
natureza. Sua crítica não era contra a Bíblia, mas contra a interpretação literal dela. Ele defende
“a justificativa de que não existe contradição entre o texto sagrado e as leis da natureza”, mas
que as pessoas erram em fazer interpretações literais. Suas ideias, logo começam “a ganhar
repercussão e, aos olhos da maioria dos teólogos, se torna[m] uma ameaça às suas doutrinas”
(LINO, 2020, p. 223).
Segundo Redondi (1991, p. 46), o Santo Ofício se ocupava em questões de ortodoxia
católica e não de astronomia. Entretanto, a tentativa de um manifesto político-intelectual de
Galileu fez a Igreja examinar as expressões geocêntricas da Bíblia. A reinterpretação de Galileu
90
da Escritura com novas interpretações naturais obrigou o Santo Ofício a intervir65. Não havia
provas do Heliocentrismo – apesar dos pedidos irônicos do cardeal Bellarmino por elas. Os
especialistas da Igreja demonstraram que a imobilidade da Terra estava de acordo com as leis
do movimento de Aristóteles e se, por uma hipótese absurda, a Terra estivesse em movimento,
isso seria contraditório com a experiência.
Feyerabend (2011b, p. 178) afirma que a igreja exigiu de Galileu, tanto por razões
científicas quanto éticas, que ele aceitasse a interpretação da hipótese. Isso não aconteceu e ele
foi julgado por reinterpretar a Bíblia sem a autorização da Igreja.
Além do mais, levando em conta as dificuldades com que o modelo copernicano “se
defrontava quando considerado uma descrição da realidade, temos de admitir que ‘a lógica
estava do lado de... Bellarmino e não do lado de Galileu’, como o historiador da ciência e físico-
químico Pierre Duhem escreveu (ibidem, p. 178-179).
O primeiro julgamento de Galileu ocorreu em 1616, após a doutrina copernicana ser
analisada e criticada. Galileu não foi preso e nem condenado, porém recebeu ordens proibindo-
o de ensinar Copérnico como uma verdade. Entre 1632 e 1633 ele foi julgado novamente66,
mas, dessa vez, foi considerada a não obediência de Galileu a respeito da ordem dada no
primeiro julgamento, pelo fato dele ter “enganado os inquisidores, fazendo-os acreditar que a
ordem nunca tinha sido dada” (ibidem, p. 172).
Lino (2020), ao apresentar a famosa carta que Galileu envio a seu discípulo Benedetto
Castelli em 1613, e as discussões a respeito da recentemente descoberta da versão modificada
desta carta pelo historiador Salvatore Ricciardo, aponta que foi o próprio Galileu quem alterou,
65 “No início de dezembro de 1615 Galileu vai à Roma com a esperança de se autodefender melhor das acusações
que lhe vinham sendo impostas, no entanto, sem muito sucesso. Esse insucesso certamente foi ocasionado pela
repercussão que o conflito adquiriu, os teólogos não poderiam simplesmente retirar as acusações contra Galileu;
aos olhos dos fiéis isso seria um ponto negativo em relação à força que os processos de inquisição tinham naquela
época” (LINO, 2020, p. 227).
66 A segunda condenação de Galileu parece ter tido outros motivos, além de sua defesa pelo Heliocentrismo. Citam
Damasio & Peduzzi (2018, p. 11) que a abordagem de seu segundo julgamento “inicia com os conflitos entre ele
e os jesuítas, que oferecem denúncias ao estudioso italiano que foram aceitas e culminaram no julgamento de 1633.
No entanto, o teor das denúncias não se tornou público, e apenas uma comissão nomeada pelo papa (aliado e
defensor de Galileu) soube de seu conteúdo. Da comissão, surgiram instruções rígidas, no sentido de que o tribunal
deveria julgar Galileu por desobediência, além de determinar que o corpo de delito fosse o Diálogo. No entanto,
Pietro Redondi encontrou documentos que permitem interpretar de maneira diferente este episódio. Segundo o
entendimento deste renomado historiador, as acusações feitas pelos jesuítas eram muito mais graves e foram
abafadas pelo papa para proteger Galileu. Os documentos, que sustentam a tese de Redondi, referem-se à denúncia
como tendo corpo de delito II Saggiatore, e a acusação era a defesa do atomismo – filosofia incompatível com o
dogma da transubstanciação da Eucaristia. Neste último caso, tratava-se de heresia doutrinal, muito mais grave na
época que a inquisitorial, que foi a acusação oferecida a Galileu pelo comitê instituído pelo papa”.
91
deliberadamente, o texto da carta, na tentativa de amenizar as suas duras críticas aos teólogos
da época que eram contra o Heliocentrismo. Até essa recente descoberta, os historiadores
acreditavam que haviam sido alguns clérigos rivais a Galileu quem teriam adulterado a carta, a
fim de que ele fosse mais facilmente acusado pelo Tribunal da Inquisição. Entretanto, a
descoberta sugere que, após ter sido acusado, “Galileu tentou espalhar uma nova versão
atenuada de suas afirmações”, na tentativa de desmentir a versão que foi entregue ao Santo
Ofício, carta que, de fato, Galileu escrevera (LINO, 2020, p. 229).
Figura 14 – Quadro de Galileu perante o Santo Ofício, pintado pelo francês Joseph Fleury no
século XIX.
Fonte: Josse / Leemage Getty Images. Disponível em: <quo.es/ser-humano/a26301943/juicios-importantes-
proces/>. Acesso em: 29 out. 19.
Em 1623, um cardeal florentino de 55 anos chamado Maffeo Barberini foi eleito Papa
Urbano VIII. Assim como Galileu, ele havia nascido e se criado em Florença e frequentado a
Universidade de Pisa, onde Galileu estudara medicina e Urbano, direito. Urbano havia,
inclusive, intercedido em favor de Galileu durante seu primeiro julgamento, e advertido Galileu
que sua defesa do Universo heliocêntrico poderia lhe trazer problemas – e que não deveria
apresentá-la como uma realidade, nem mesmo em pensamento. O Papa se considerava amigo e
admirador de Galileu, que teve o privilégio de ser recebido em seis audiências papais, cada uma
durando mais de uma hora. Essa relação, quase íntima, com o Papa, fez Galileu pensar que
poderia escrever o Diálogo com segurança – e assim o fez. Em sua obra de 1632, Galileu
92
apresenta um diálogo entre três participantes: Salviati, Sagredo e Simplício. Os dois primeiros
homenageiam amigos falecidos de Galileu, sendo Salviati seu porta-voz e Sagredo um
moderador inteligente e imparcial, uma pessoa de alta classe e homem do mundo. Já Simplício
representa uma mistura dos argumentos de todos os oponentes que Galileu havia enfrentado na
construção de suas ideias (HELLMAN, 1991, p. 23, 32-33).
Para tornar seus argumentos sólidos e eficientes, Galileu usa os argumentos “tolos” de
Simplício como contraste. E isso funciona bem, mas, ao final de sua obra, “ele faz Simplício
resumir a posição da Igreja Católica acerca da impossibilidade de se obter genuíno
conhecimento do mundo físico”, ao passo de que seria “uma ousadia extravagante para qualquer
um limitar e confinar o poder e sabedoria divinos a uma particular conjetura pessoal” (ibidem,
p. 36), se referindo ao sistema copernicano. Este argumento de Simplício fora originalmente
entoado pelo próprio Papa, e os inimigos de Galileu conseguiram convencer Urbano que o seu
objetivo era de ridicularizar a Igreja, e pior, ridicularizar e humilhar o Papa em pessoa. Urbano
ficou furioso quando viu o resultado. Tanto é que, mesmo após a morte de Galileu em 1642, ele
recusou-se a permitir que o grão-duque de Toscana realizasse um funeral adequado para Galileu
e construísse um monumento sobre sua tumba na Igreja da Santa Cruz, em Florença (ibidem,
p. 36).
Foi, então, que,
No dia 22 de junho de 1633, Galileu Galilei foi levado a julgamento no quartel
general da Inquisição em Roma. Todo o magnificente poderio da Igreja
Católica Romana tinha sido aparentemente perfilado contra ele (...). Sob
ameaça de tortura, encarceramento e mesmo morte na fogueira, ele foi
forçado, de joelhos, a "abjurar, amaldiçoar e detestar" toda uma vida de
brilhante e devotado labor intelectual. Confrontado com uma "veemente
suspeita de heresia", ele teve de renunciar, "com um coração sincero e fé
genuína" à sua crença de que o Sol, e não a Terra, é o centro do universo, e
que a Terra move-se em torno do Sol, e não vice-versa67. Como Galileu
concordou com tudo isso - pelo menos verbalmente -, as ameaças mais sérias
de Urbano não precisaram ir adiante. Como uma de suas punições, por
exemplo, ele deveria recitar os sete salmos penitenciais uma vez por semana
durante três anos. Mas foi também posto em prisão domiciliar pelo resto de
sua vida. E, finalmente, seu livro Diálogo sobre os dois máximos sistemas do
mundo ptolomaico e copernicano (1632), que tinha estado no centro do
julgamento, foi proibido. Isto é, foi acrescentado à lista de livros banidos, o
67 BAIARDI et al. (2012, p. 202) afirmam que Galileu foi humilhado, ameaçado de ser torturado e terminou por
ceder, representando, teatralmente, o papel que o Santo Ofício lhe propôs. E, em seguida, os autores apresentam
as traduções dos textos da sua Sentença e Abjuração.
93
Index librorum prohibitorum, mantido pela Inquisição da Igreja Católica
(HELLMAN, 1999, p. 21, grifos do autor).
Suponha, agora, que um Galileu moderno usasse alguns argumentos contra-indutivos,
sem provas, e sem conformidade com o pensamento científico atual: o que aconteceria se ele
quisesse testar medicamentos alternativos usando um grupo de voluntários sem autorização
legal? É bastante provável que ele receberia a visita da polícia, da mídia e do Ministério Público,
exatamente como aconteceu (FEYERABEND, 2010, p. 303).
É bem verdade que o controle não é tão rígido quando era à época de Galileu
e [nem] tão universal, mas isso é resultado de uma atitude mais tolerante com
relação a certos crimes (os ladrões, por exemplo, já não são mais enforcados
ou mutilados), e não de uma mudança de atitude quanto à natureza dos
próprios crimes (ibidem, p. 304).
Esse procedimento68 “mais direto, mais honesto e certamente mais racional” da Igreja
não era imutável. Foi isso que disse o cardeal Bellarmino:
Se houvesse alguma prova real que o Sol está no centro do Universo e de que
a Terra está no terceiro céu girando ao redor do Sol, então teríamos de agir
com grande prudência ao explicar as passagens da Escritura que parecem
ensinar o contrário e de preferência admitir que não as tínhamos entendido em
vez de declarar como falsa uma opinião comprovadamente verdadeira. (...)
quanto a mim, não acreditarei que essas provas existem até que elas me sejam
mostradas. Tampouco é uma prova dizer que, se supusermos que o Sol está no
centro do Universo e a Terra no terceiro céu, tudo funciona da mesma maneira
como se tudo fosse o inverso. No caso de dúvida não devemos abandonar a
interpretação do texto sagrado como dada pelos Papas (FEYERABEND,
2010, p. 305, grifo nosso).
“A doutrina da Igreja, diz Bellarmino aqui, é uma condição-limite para a interpretação
de resultados científicos. Mas não é uma condição-limite absoluta. A pesquisa pode
movimentá-la” (ibidem, p. 305, grifo nosso).
68 As restrições administrativas feitas a um cientista moderno são certamente comparáveis àquelas em vigor na
época de Galileu. Mas, enquanto aquelas restrições antigas que eram emitidas pela Igreja estavam disponíveis na
forma de regras explícitas, tais como as regras do Concílio Tridentino, as restrições modernas muitas vezes são
implícitas, e não explicadas detalhadamente (ibidem, p. 304).
94
É provável que muitos de nós tivéssemos apoiado a decisão69 da Igreja e concordado
com o cardeal Bellarmino a respeito da fragilidade do ponto de vista copernicano. Seu
argumento mais poderoso era a harmonia criada pelo ponto de vista heliocêntrico, ou seja,
“pela primeira vez havia um sistema astronômico, e não apenas um conjunto de instrumentos
de cálculo” (ibidem, p. 306-307).
O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu?
A harmonia copernicana é refutada por meio da observação. O argumento da torre é
invertido e as interpretações naturais são substituídas por interpretações contra-indutivas.
Propagandas e truques psicológicos substituem argumentos empíricos70. Hipóteses ad hoc são
inseridas para afirmar o movimento da Terra e hipóteses auxiliares adversárias são excluídas
por não concordarem com a nova teoria. Até então, nenhuma evidência independente surge em
defesa da nova cosmologia. Os argumentos contrários a ela são cientificamente e
teologicamente corretos. Há uma tentativa de substituir uma teoria muito abrangente por outra
restrita que possui, inclusive, elementos especulativos. Não é apontada nenhuma prova do
movimento da Terra e não há nada que refutaria o ponto de vista geocêntrico, mas que seria
explicado pelo ponto de vista copernicano (FEYERABEND, 2011b, p. 113-117, 163). Galileu
tenta construir uma visão de mundo inteiramente nova, mas não consegue fazê-lo só, ele precisa
do auxílio de um sentido superior e mais eficaz.
Além das interpretações naturais, Galileu altera também as sensações que
parecem ameaçar a teoria de Copérnico. Ele admite que haja tais sensações,
louva Copérnico por tê-las ignorado e afirma tê-las eliminado com o auxílio
do telescópio. Contudo, não oferece razões teóricas pelas quais se deveria
esperar que o telescópio fornecesse um retrato verdadeiro do céu (ibidem, p.
113).
69 “A avaliação dos peritos da Igreja estava cientificamente correta e tinha a intenção social certa, a saber, proteger
as pessoas das maquinações dos especialistas (...) [e] preservar importantes valores humanos e sobre-humanos.
(...) Desejava proteger as pessoas de serem corrompidas por uma ideologia estreita que podia funcionar em
domínios restritos, mas [que] era incapaz de sustentar uma vida harmoniosa” (FEYERABEND, 2011b, p. 179).
70 Redondi (1991, p. 40) afirma que Galileu não apresenta nem observações e nem teses originais para a
astronomia, mas “somente argumentos polêmicos geniais, tão geniais quanto eram paradoxais, destinados mais a
desacreditar, com uma lógica irreprochável e provocatória, a segurança dos raciocínios de seus adversários”.
95
Feyerabend (ibidem, p. 118) argumenta que Galileu faz uso do telescópio (refrator) para
transformar seu argumento contra-indutivo em uma indução baseada em uma experiência
melhor. Entretanto, afirma que o conhecimento de Galileu sobre a teoria da refração não é
correto e nem é suficiente: “(...) há sérias dúvidas quanto ao conhecimento de Galileu daquelas
partes da óptica física de sua época que eram relevantes para o entendimento de fenômenos
telescópicos”.
Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano do Campanário de São
Marcos em 1609, quadro de Giuseppe Bertini, Varese, Itália, 1858.
Fonte: Gabriele Vanin. Disponível em: <gabrielevanin.it/S.%20Marco%201609.htm>. Acesso em: 29 out. 19.
Há vários relatos da época71, inclusive do próprio Galileu, evidenciando a importância
e os benefícios desse novo instrumento quando usado em terra ou mar. “Sua aplicação às
71 Galileu reconstrói uma versão melhor da luneta holandesa e afirma em seus escritos que isso se deu por meio de
cálculos matemáticos. Entretanto, não há cálculos em seus relatórios, mas um esboço que mais se assemelha à
tentativa e erro. “(...) foi a experiência e não a matemática que levou Galileu a uma fé serena na confiabilidade de
seu aparelho” (GEYMONAT, 1965, p. 39 apud FEYERABEND, 2011b, p. 120).
96
estrelas, contudo, era uma questão inteiramente distinta” (FEYERABEND, 2011b, p. 121, grifo
do autor).
“As primeiras observações telescópicas do céu são indistintas, indeterminadas,
contraditórias e entram em conflito com o que qualquer pessoa pode ver a olho nu” (ibidem, p.
123). É sabido que as observações telescópicas terrestres indicavam, até certo ponto,
propriedades estáveis e objetivas das coisas vistas. Como os nossos sentidos estão
familiarizados com a aparência dos objetos terrestres, fica fácil distinguir o que é verdadeiro e
o que é distorcido ou desfigurado por franjas coloridas, e até mesmo outros elementos como
plano de fundo, superposição, tamanho relativo, etc. Entretanto, não conhecemos de perto as
estrelas e os planetas. Até mesmo a aparência da Lua nos dá uma ideia falsa de sua distância e
seu tamanho. Logo, não podemos usar a nossa memória para separar o que provêm do próprio
objeto (celeste) das contribuições do telescópio (ibidem, p. 123-124).
O telescópio produz fenômenos estranhos e novos, alguns dos quais podem
ser revelados como ilusórios por meio da observação a olho nu, alguns
contraditórios, alguns tento até a aparência de ilusórios ao passo que a única
teoria que poderia ter posto ordem nesse caos, a teoria da visão devida a
Kepler, é refutada por evidência da mais clara espécie possível (ibidem, p.
141).
O conhecimento óptico de Galileu é descrito por Feyerabend como superficial. É bem
verdade que o telescópio produzia resultados fantásticos na Terra, entretanto, ele se deparava
com dificuldades quando utilizado para observações celestes. “O telescópio produziu
fenômenos espúrios e contraditórios, e alguns de seus resultados podiam ser refutados por um
simples olhar a olho desarmado. Apenas uma nova teoria da visão telescópica podia trazer
ordem ao caos (...) e separar aparência de realidade” (FEYERABEND, 2011b, p. 138).
Segundo a teoria de Kepler, a imagem de um objeto é recebida pelos nossos olhos
através das leis de reflexão e refração (tal como ainda hoje é ensinado na escola), pela
intersecção retrógrada da trajetória dos raios que emergem/refletem do objeto até nossos olhos,
cabendo à mente do observador utilizar somente a parte final dessa luz. Essa ideia, que até certo
ponto está correta, não é válida para lentes (como as do telescópio) e nem leva em consideração
os efeitos atmosféricos. Assim, a teoria kepleriana da visão, que é refutada pelo telescópio (ou
97
que o refuta), obviamente, não pode ser utilizada como argumento por Galileu, e a visão
telescópica do céu permanece um mistério72 (ibidem, p.138-139).
Figura 16 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do telescópio, publicado no
livro II Saggiatore (O Ensaísta), dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623.
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4184/>. Acesso em: 29 out. 19.
A ausência de observações satisfatórias mostravam dois objetos acompanhantes de
Saturno (foi assim que os anéis foram vistos na época); duplicação de imagens dos astros;
mudança da posição lateral da imagem de acordo com a posição do olho; franjas coloridas;
presença ou ausência das estrelas que acompanham Júpiter (suas quatro luas, hoje chamadas de
“luas galileanas”); uma Lua repleta “de montanhas na parte interna, mas perfeitamente lisa na
periferia, e isso a despeito do fato de que a periferia” da Lua mudava com a sua rotação; além
de algumas crateras que não existem e a observação de uma atmosfera lunar; o que revela a
72 Apenas um século depois, em 1704, a teoria óptica do telescópio pôde ser explicada pelo inglês Isaac Newton
(1642-1727).
98
pobreza73 do que poderia ser visualizado pelo telescópio, agravado ainda pela velocidade com
que novos fenômenos foram descobertos e divulgados (FEYERABEND, 2011b, p. 125-130).
“As observações telescópicas de Galileu (...) se contradiziam, nem todas as pessoas
podiam repeti-las, aqueles que as repetiam (Kepler) conseguiram resultados confusos e não
existia qualquer teoria para separar ‘fantasmas’ de fenômenos verídicos” (FEYERABEND,
2010, p. 341).
Sagredo – Portanto, devemos ainda esperar outras objeções vigorosas contra
este movimento anual [da Terra]?
Salviati – Sim; e tão evidentes e sensíveis que, se um sentido superior e mais
excelente que os comuns e naturais não estivesse acompanhado da razão,
duvido grandemente de que eu mesmo não tivesse sido ainda mais reticente
acerca do sistema copernicano, do que o sou, depois de ter sido iluminado por
uma luz mais clara que a habitual.
Sagredo – Agora, portanto, Sr. Salviati, vamos, como se diz, direto ao ponto,
porque cada palavra que se gasta em outro argumento parece-me
desperdiçada.
Salviati – Aqui estou para servir-vos (GALILEI, 2011, p. 410-411, grifos
nosso).
Apesar das objeções, Galileu utiliza seu instrumento como “prova” de seus argumentos:
em resposta aos escolásticos que afirmavam que um corpo não poderia ter dois movimentos ao
mesmo tempo, ele exibiu os satélites de Júpiter (que orbitavam o planeta enquanto ele fazia sua
revolução anual); quanto à tradicional alegação de que os corpos celestes seriam perfeitos, ele
utiliza o telescópio para afirmar que o Sol tem manchas e que a Lua não e perfeitamente lisa.
Quanto à objeção de que a teoria copernicana requereria que Vênus exibisse fases (o que não
poderia ser detectada a olho nu), Galileu as confirmou com as observações telescópicas das
fases de Vênus (HELLMAN, 1999, p. 29).
Figura 17 – Representação das fases de Vênus nos dois sistemas de mundo
73 Apesar disso, o dispositivo aperfeiçoado por Galileu era considerado moderno, e provavelmente o melhor de
sua época (1609). Inicialmente, seu interesse estava voltado para as questões militares e não astronômicas. Quando
Galileu ouviu falar nas lunetas holandesas, apressou-se para estudá-las e melhorá-las, a fim de obter vantagem
para Veneza sobre os turcos, podendo observar os navios inimigos cerca de duas horas antes de serem vistos a
olho nu (VANNUCCHI, 1996, p. 48).
99
Fonte: Instituto de Física - UFRGS. Disponível em: <if.ufrgs.br/fis02001/aulas/aula_tykega.htm>. Acesso em:
30 mai. 20.
Além disso, ao olhar Júpiter pelo telescópio, podia-se ver uma espécie de sistema solar
em miniatura. Suas luas recém-descobertas inspiram um certo desconforto, uma vez que elas
contrariavam o argumento geocêntrico de que a Terra não poderia orbitar o Sol sem perder a
Lua. Segundo Vannucchi (1996, p. 56-57), isso tornava a concepção copernicana do sistema
solar cada vez mais plausível, e que, talvez por isso, muitos preferiram não rever tal argumento,
mas, simplesmente, desconsiderar a possibilidade da existência dos satélites de Júpiter.
Figura 18 – Desenho da Lua vista por Galileu através do telescópio, publicado no livro
Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), Veneza, 1610.
100
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em:
<wdl.org/pt/item/4170/#q=Sidereus+nuncius+Veneza+1610>. Acesso em: 29 out. 19.
Figura 19 – Desenho da Lua feito por Thomas Harriot em 160974.
Fonte: The Galileo Project. Disponível em: <galileo.rice.edu/sci/harriot_moon1610_717.gif>. Acesso em: 02
jan. 20.
74 O desenho da Lua feito pelo contemporâneo de Galileu, Thomas Harriot, evidencia que a ferramenta astronômica
que Galileu possuía era, de fato, considerada mais moderna e mais eficaz para a época. Ao melhorar seu telescópio
(refrator), Galileu conseguia uma ampliação de quase dez vezes (o que é bem abaixo se comparado aos telescópios
comuns de hoje – cuja ampliação é de 90 a 120 vezes para os refratores e de 200 a 250 vezes para os refletores).
Apesar disso, ao olhar pelo telescópio, as pessoas viam coisas diferentes e tiravam conclusões diferentes a respeito
do que era visto, ainda que utilizassem o mesmo instrumento.
101
Assim, certo que pode convencer seus adversários a desfrutarem do sentido superior e
mais eficaz do telescópio, Galileu se reúne com eles para mostrar seu aparelho:
Por meio desse instrumento, vimos tão distintamente o palácio do ilustríssimo
duque Altemps, nas Colinas Toscanas, que facilmente contamos todas as suas
janelas, mesmo as menores; e a distância é de 16 milhas italianas (apud
FEYERABEND, 2011b, p. 120-121)75.
Na quinta-feira à noite, na propriedade de monsignor Malvasia, do lado de
fora do portão de São Pancrácio, lugar alto e aberto, foi-lhe oferecido um
banquete por Frederico Cesi, o marquês de Monticelli. (...) Na reunião76
estiveram Galileu, [cardeais, professores da universidade, matemáticos, e
outras pessoas cultas]. Alguns deles foram até lá expressamente para realizar
essa observação (de “quatro outras estrelas, ou planetas, que são satélites de
Júpiter ... bem como dois acompanhantes de Saturno”); porém, mesmo tendo
permanecido até uma hora da manhã, não chegaram a um acordo em suas
opiniões (ROSEN, 1947, p. 31 apud FEYERABEND, 2011b, p. 121 (nota 12),
125).
Não dormi nada nos dias 24 e 25 de abril, nem de dia nem de noite, mas testei
de mil maneiras o instrumento de Galileu, tanto em coisas aqui de baixo
quanto naquelas lá em cima. Aqui embaixo, ele funciona maravilhosamente;
nos céus, ele nos engana, pois algumas estrelas fixas são vistas
duplicadamente. Tenho como testemunhas homens eminentes e nobres
doutores ... e todos admitiram que o instrumento engana. Isso silenciou
Galileu e, no dia 26, ele partiu tristemente, de manhã cedo ... nem mesmo
tendo agradecido a Magini por seu esplêndido banquete (GALILEI, Opere, X,
p. 342 apud FEYERABEND, 2011b, p. 125, grifo nosso)77.
Os relatos acima, citados por Feyerabend, dispostos em diferentes épocas e com
diferentes pessoas, evidenciam que a tarefa de Galileu não foi fácil e estava longe de ser
cumprida. A doutrina copernicana precisaria de “certo tempo para reunir fatos em favor de uma
nova cosmologia. Com efeito, o que se faz necessária é uma nova dinâmica que explique tanto
os movimentos terrestres quanto os celestes (...) mas todas essas ciências estão ainda ocultas no
futuro” (ibidem, p. 113).
75 Rosen (1947, p. 54) cita a descrição de Julius Caesar Lagalla (1612, p. 8), professor de filosofia em Roma, da
reunião realizada na cidade de Espirito Santo, em 16 de abril de 1611.
76 “É preciso levar em conta que a ocasião estava formada por membros da Igreja Católica e por cientistas
adversários e que, ademais, muitos desses homens se recusaram inclusive a olhar no telescópio. Porém, a confiança
de Galileu em seu telescópio acerca de assuntos celestes era muito alta, tanto que aceitou o convite para expor o
funcionamento de seu instrumento em situações não-familiares (assuntos celestes) para pessoas que muito
possivelmente seriam contra” (OLIVEIRA, 2011, p. 56, nota 130).
77 Escrito por Horky, discípulo de Kepler, em 1610, na cidade romana de Bolonha.
102
Figura 20 – Galileu apresenta o telescópio ao público.
Fonte: GETTY IMAGES / PHOTOS.COM / THINKSTOCK. Disponível em:
<vix.com/es/btg/curiosidades/2011/09/26/vida-de-galileo-galilei-un-genio-reprimido>. Acesso em: 29 out. 19.
E, como disse Henrique et al. (2010, p. 26), as críticas contra Galileu não se deram
porque seus rivais eram teimosos e relutavam em aceitar os dados experimentais, mas do
contrário, eram bem embasadas na sua visão de mundo. Restava, então, convencê-los de que as
observações telescópicas eram confiáveis e que poderiam comprovar aquilo que a observação
olho nu era incapaz.
Ele não alcançou nada, pois mais de vinte homens cultos estavam presentes e,
contudo, ninguém viu distintamente os novos planetas (...); ele dificilmente
será capaz de continuar afirmando sua existência (GALILEI, Opere, III apud
FEYERABEND, 2011b, p. 125)78.
78 Magini escreve carta a Kepler em 26 de maio de 1610.
103
Figura 21 – Galileo, pintura a óleo de Jean-Leon Huens.
Fonte: Christie's. Disponível em: <christies.com/lotfinder/Lot/jean-leon-huens-1981-1984-galileo-5636151-
details.aspx>. Acesso em: 29 out. 19.
Galileu, entretanto, não desistiu.
[Ele] acreditara por anos na verdade do copernicanismo, mas nunca tinha sido
capaz de demonstrá-lo a despeito de suas declarações excessivamente
otimistas a amigos e colegas. Deveria a prova direta ser, afinal, buscada aí?
Quanto mais essa convicção afirmou raízes em sua mente, mais clara tornou-
se para ele a importância do novo instrumento. Na mente do próprio Galileu,
a confiança na fidedignidade do telescópio e o reconhecimento de sua
importância não eram dois atos separados; ao contrário, eram dois aspectos do
mesmo processo (GEYMONAT, 1965, p. 38 apud FEYERABEND, 2011b, p.
142).
As medidas da variação do brilho aparente de Vênus e Marte, vistos à olho nu,
contradizem a teoria copernicana no que diz respeito ao suposto movimento de translação da
104
Terra. De fato, no caso da Terra estar no centro do sistema planetário, pouca deveria ser a
mudança, vista no brilho desses planetas, ao realizarem suas órbitas ao redor da Terra, bem
como era visto e comprovado por muitos astrônomos da época, inclusive o próprio Galileu.
“Em contrapartida”, afirma Feyerabend (FEYERABEND, 2011b, p. 141),
há alguns fenômenos telescópicos que são claramente copernicanos: (...) a
variação telescópica no brilho dos planetas [está] mais estreitamente de acordo
com Copérnico do que com os resultados da observação a olho nu. Visto
através do telescópio, Marte [e Vênus] de fato muda[m] como deveria[m]
mudar segundo a perspectiva copernicana (grifo nosso).
Ou seja, visto através do telescópio, os brilhos de Vênus e Marte mudavam bastante,
como de fato deveriam mudar, de acordo com o modelo heliocêntrico. Note que, durante a
revolução anual da Terra (e dos demais planetas), há um determinado momento em que ela
estará mais próxima de Vênus e/ou de Marte79; e há, no outro extremo, um momento
caracterizado pela maior distância possível desses planetas. De forma que, numa perspectiva
heliocêntrica, quando os planetas estivessem mais próximos à Terra o brilho deles seria maior,
e quando estivessem mais distantes da Terra (ou seja, do outro lado do Sol), o brilho seria
menor. E isso era, de fato, o visto pelo telescópio.
Sagredo – Oh! Nicolau Copérnico, que prazer terias sentido ao ver confirmada
com experiências tão evidentes esta parte do teu sistema!
Salviati – Sim; (...) [o vemos ter] continuado a afirmar, guiado pelas razões,
aquilo que as experiências sensíveis mostravam o contrário: porque eu não
posso deixar de surpreender-me que ele tenha constantemente persistido em
dizer que Vênus gira em torno do Sol e está afastado de nós mais de seis vezes
num caso que noutro, embora se mostre igual a si mesmo, quando deveria
mostrar-se quarenta vezes maior.
Sagredo – Acredito que em Júpiter, Saturno e Mercúrio devem ver-se também
as diferenças de seus tamanhos aparentes corresponderem exatamente às
variações de suas distâncias (GALILEI, 2011, p. 421).
Figura 22 – Rascunhos das distâncias dos planetas durante a revolução anual no manuscrito
de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610.
79 Como pode ser notado no tradicional alinhamento dos planetas.
105
Fonte: Biblioteca Digital Mundial. Disponível em: <wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>. Acesso em: 29 out. 19.
Assim, o distanciamento desses planetas à Terra, devido à translação dos mesmos ao
redor do Sol, causariam, como de fato causam, uma grande mudança em seus brilhos, vistos
através do telescópio.
Galileu introduz esses fenômenos como evidência independente80 para
Copérnico, embora a situação seja antes a de uma concepção refutada (...) – a
ideia de que fenômenos telescópicos são retratos fiéis do céu. (...) Mas essa
mudança está em harmonia com as predições de Copérnico. É essa harmonia
e não um profundo conhecimento de cosmologia e óptica que, para Galileu,
comprova Copérnico e a veracidade do telescópio em assuntos terrestres tanto
quanto em assuntos celestes. E é sobre essa harmonia que ele constrói uma
concepção inteiramente nova do universo (FEYERABEND, 2011b, p. 141-
142, grifos do autor).
80 “A tática usada por Galileu, aponta Feyerabend, foi a de apresentar essas observações telescópicas como
evidência independente em favor da teoria copernicana, ao mesmo tempo em que (...) sustentava a confiabilidade
do telescópio para as observações celestes. Assim, ao utilizar, de forma conjunta, uma teoria refutada
empiricamente e um instrumento sem confiabilidade, Galileu conseguiu aumentar a credibilidade tanto da teoria
quanto do instrumento” (ZYLBERSZTAJN, 1988, p. 45).
106
5. GALILEU GALILEI: OS SISTEMAS DE MUNDO GEOCÊNTRICO E
HELIOCÊNTRICO
Após dissertarmos sobre a importância da HFC para o ensino de ciências e construirmos
a base epistemológica da leitura feyerabendiana dos conteúdos que chamamos de astronomia
de Galileu, vamos, neste capítulo, produzir uma unidade didática que pode ser levada para a
Educação Básica, contendo material didático para o aluno e orientação para o professor a partir
de uma leitura feyerabendiana da astronomia de Galileu.
Converter estratégias pedagógicas, ferramentas educacionais e projetos de currículos em
realidade nas salas de aula do Ensino Médio “requer novas orientações para a prática e a
avaliação, novos materiais didáticos e, acima de tudo, a inclusão de cursos adequados” sobre
História, Filosofia e Sociologia da Ciência no ensino (MATTHEWS, 1995, p. 168).
E a perspectiva feyerabendiana tem um papel central em nossa construção. As ideias do
filósofo austríaco hora aparecem de forma explícita, hora nos concede uma ferramenta de
análise, ou ainda influenciam a nossa visão a respeito dos processos de construção da ciência
moderna, sobretudo quando analisamos o caso de Galileu Galilei.
Assim, com vistas às possíveis implicações didáticas, esse material é composto por três
momentos: um encontro de observação astronômica, uma atividade de construção teórica e uma
aula júri simulado, trazendo como título “Galileu Galilei: os sistemas de mundo geocêntrico e
heliocêntrico”.
Apesar disso, essa construção é apenas um olhar, dentre muitos possíveis olhares. O
professor deve ter clareza que esta unidade didática é uma proposta que pode (e deve!) ser
adaptada ao seu contexto escolar, ou seja, a ordem dos momentos pode ser trocada, pode-se
adicionar ou excluir elementos, ferramentas computacionais ou dinâmicas de grupo podem ser
inseridas, e assim por diante.
Encontro de observação astronômica
Na primeira seção, apresentamos a proposta (ao professor) de uma aula de campo onde
os alunos farão uma observação sistemática dos céus (o exercício que os astrônomos costumam
107
chamar de redescoberta); discutirão as concepções acerca dos sistemas de mundo de forma
prática; serão apresentadas a eles algumas indagações histórico-filosóficas (propostas por
Feyerabend) da Revolução Copernicana; e, provavelmente, terão o primeiro contato com o
telescópio. Assim, nosso objetivo é levantar questões e oferecer ferramentas práticas para
reconstruir algumas das discussões da física terrestre e celeste em que Galileu esteve envolvido
no início do século XVII.
A fim de que seja alcançado esse objetivo, propomos uma aula (dupla) de campo noturna
em um espaço aberto, alto e seguro (o mais distante possível da poluição luminosa)81, sob um
céu estrelado (sem nuvens) com planetas visíveis e, preferencialmente, uma Lua Crescente.
Existe uma noção clara entre os astrônomos amadores de que nós não controlamos a natureza
quando se refere a questões ambientais para uma observação astronômica. Quase sempre se faz
necessária uma consulta meteorológica para tentar prever fenômenos atmosféricos,
especialmente a chuva. Às vezes, é necessário, ainda, um plano alternativo, como o
cancelamento repentino da aula de campo e a mudança da data. Destacamos, também, que o
conhecimento do céu noturno pode ser um grande aliado do professor. Nem sempre a Lua e os
planetas estão visíveis no início da noite. No que diz respeito ao nosso satélite, o brilho intenso
da Lua Cheia pode ofuscar os outros astros, em outra circunstância, a Lua Minguante só será
visível no final da noite e a Lua Nova não será visível. Por este motivo, aconselhamos que a
aula de campo seja feita em uma noite de Lua Crescente (informação que pode ser facilmente
encontrada ao analisar um calendário ou através de uma consulta à internet). A observação dos
planetas requer um olhar mais treinado. Para os menos familiarizados com a astronomia
amadora, nem sempre é possível identificar os planetas e saber se esses estarão visíveis no
horário que a aula de campo será marcada. Por esse motivo, aconselhamos a consulta às
81 Em meio aos problemas de violência enfrentados em nossas cidades, sobretudo nos centros urbanos, se faz
necessário certo cuidado ao desenvolver uma aula de campo como esta. A proposta deve ser levada à equipe
gestora da escola e precisa do seu apoio para evitar complicações. Como citado, um local aberto, alto e distante da
poluição luminosa quase sempre será um local perigoso para ir com dezenas de alunos. A carência do controle no
fluxo de alunos; os convites (por parte dos alunos) sem autorização a terceiros; o deslocamento (da ida, mas
também – e principalmente – o da volta) até o local da aula de campo; as condições ambientais adversas, como
chuva, frio, animais, etc.; e as poucas ferramentas de organização da turma, são alguns exemplos dos problemas
que uma aula de campo, como tal, pode acarretar. Isso, entretanto, não deve ser empecilho para não a fazer.
Propomos algumas dicas ao professor: solicitar a equipe gestora ao menos um coordenador para acompanhar;
enviar ofício pedindo policiamento ou apoio dos bombeiros, selecionar monitores (dentre os alunos) para delegar
funções de apoio, solicitar autorização dos pais/responsáveis, etc.
108
ferramentas digitais de astronomia, como, por exemplo, o Stellarium ou Carta Celeste (Star
Chart)82.
Outro fator primordial será o uso do telescópio. Apesar dessa ferramenta astronômica
ter diversas formas e características, nos deteremos a apresentar as mais importantes. Existem
três tipos de telescópio: os refratores, também conhecidos como lunetas (possuem duas lentes
– a objetiva por onde a luz entra e a ocular por onde se olha – como o de Galileu); os refletores
ou newtonianos (cujo principal elemento óptico é um espelho côncavo); e os catadióptricos
(que possuem uma combinação de lentes e espelhos e concilia as melhores características dos
dois primeiros). A abertura de um telescópio (geralmente apresentada em milímetros) é o fator
que mais influencia na quantidade de luz captada e na nitidez da imagem. Os telescópios
refratores são ideais para observação da Lua e dos planetas visíveis, praticamente não precisam
de manutenção e tem um custo relativamente baixo. Entretanto, normalmente apresentam
aberrações cromáticas e, caso tenham uma grande objetiva (ou seja, uma maior abertura para
alcançar maior nitidez), serão muito compridos, pesados e bem mais caros. Os refletores, por
outro lado, ideais para observação do céu profundo, de galáxias, nebulosas e aglomerados
estelares, possuem maior nitidez e são bem mais leves, porém, necessitam de mais cuidado e
algumas manutenções, possuindo um preço intermediário. Por fim, os catadióptricos são
menores, mais leves, possuem maior abertura e nitidez. Eles têm baixa manutenção e servem
para qualquer tipo de observação astronômica, sendo, com toda certeza, a melhor opção entre
os telescópios modernos. Entretanto, o seu preço é bem mais elevado, chegando a custar de
cinco a dez vezes o valor dos primeiros.
Levando em consideração a realidade de nossas escolas, sabemos que poucas têm
laboratórios de ciências e menos ainda telescópios. Aquelas que possuem, ou cujos professores
de ciências tenham acesso, geralmente serão do tipo refratores. Entretanto, para os nossos fins,
isso não será problema, pois esse é, exatamente, o tipo de instrumento utilizado por Galileu há
quatro séculos atrás83.
82 Esse recurso (que pode ser acessado pelo Play Store dos smartphones) aumenta o repertório didático do
professor, uma vez que cada aluno pode baixar os programas com antecedência e fazer uso deles até mesmo durante
a aula.
83 Apesar disso, as lunetas modernas são bem mais eficientes que as produzidas por Galileu. Vannucchi (1996, p.
93) afirma que “embora os telescópios de Galileu fossem os melhores existentes na época, tratavam-se ainda de
instrumentos rudimentares, sem montagem fixa, e com campo visual [extremamente] pequeno”.
109
Mas, se as condições forem oportunas, sugerimos um processo bastante didático e que
trará, na prática, a perspectiva histórica vivenciada por Galileu Galilei: o desenvolvimento de
uma prática de construção de lunetas de baixo custo pelos próprios estudantes – instrumento
que eles utilizarão para observar o céu durante a aula de campo84. Neste caso, propomos que
seja realizada uma aula extra, anteriormente ao encontro de observação astronômica, e que o
professor utilize o procedimento “Simplificando a luneta com lente de óculos”, desenvolvido
por Nogueira (2009, p. 193-202)85.
O professor, então, tomando as medidas de precauções necessárias, poderá utilizar o
quadro abaixo (Tabela 1) para desenvolver o encontro de observação astronômica. Cabe
ressaltar que esta sequência é sugestiva, e o professor deve ficar à vontade para alterá-la ou
mesmo retirar ou incluir elementos86.
84 Apesar disso, a visualização através das lunetas fabricadas pelos estudantes terá melhor eficiência para
observação lunar. Assim, caso o professor tenha acesso a um telescópio profissional, sugerimos que ele o utilize
posteriormente às lunetas, o que pode, inclusive, enriquecer as discussões sobre a qualidade das imagens
telescópicas visualizadas por Galileu.
85 Sugerimos, ainda, uma pequena alteração da proposta de Nogueira (2009): substituir as lentes de óculos por
lupas (importadas) e o monóculo de fotografia pela lente (removível) das pequenas lanternas táticas Led Cree,
ambas dispostas no mercado com preços acessíveis, o que trará uma melhora significativa na nitidez das imagens.
86 Reiteramos que, caso o professor não tenha oportunidade de aplicar toda a unidade didática, ele pode fazer uso
de suas partes isoladas ao decorrer das aulas; pode desenvolver mais de um encontro de observação astronômica,
por exemplo; ou ainda, caso haja impossibilidade para tal, pode incluir uma prática com realidade virtual através
de vídeos em 360° (utilizando a plataforma do YouTube e digitando "astronomia 360° view”) ou do simulador de
gravidade interativo Universe Sandbox (cuja primeira versão pode ser baixada gratuitamente pelo site
<pt.freedownloadmanager.org/Windows-PC/Universe-Sandbox.html> ou, a segunda versão, comprada no site
oficial <universesandbox.com/>).
110
Tabela 1 – Etapas do encontro de observação astronômica.
Objetivo Procedimento Elementos histórico-filosóficos
• Desenvolver o processo de
redescoberta do céu;
• Perceber, a partir de uma
perspectiva geocêntrica, que os
astros completam uma volta ao
redor da Terra em 24 horas
(movimento diurno);
• E situar a Terra em uma
posição privilegiada – o centro
do Universo – caracterizando-a
como estática.
• Convidar os alunos a observarem o céu por alguns
minutos em silêncio; e pedir que eles comentem sobre
os sentimentos que brotam dessa contemplação;
• Solicitar que identifiquem (apontem no céu) a Lua,
planetas e constelações;
• Perguntar se alguém sabe o que são os pontos
cardeais e como localizá-los;
• Questioná-los sobre o movimento dos astros (onde
nascem, onde se põem, quanto tempo dura esse
movimento, etc.);
• Perguntar onde está o Sol e relacionar sua posição à
fase da Lua;
• Solicitar que alguém explique, a partir do que foi
aprendido até o momento, como é a posição da Terra
no Universo observável e quais as características dela
comparadas com “o todo” (tamanho, posição,
movimento, etc.).
Essas ideias estavam fixas nos sistemas mentais das pessoas do
passado. Historicamente, a ideia de uma Terra em movimento era
(e ainda é) contrária à percepção dos sentidos (Feyerabend87 cita
que a ideia do movimento da Terra é “bizarra, absurda e
obviamente falsa”, mencionando algumas expressões que foram
frequentemente usadas nos séculos passados e que ainda são
ouvidas sempre que cientistas retrógrados se defrontam com uma
teoria nova e contrária aos fatos). De forma que, é possível notar
como culturas inteiras da antiguidade se organizaram em torno de
modelos geocêntricos do Universo. Um desses modelos foi
defendido pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), e nele o
Universo era dividido em duas partes: o mundo sublunar (do
centro da Terra até antes da órbita da Lua) e o mundo supralunar
(que envolvia a Lua e tudo que havia após ela). A Terra estava no
centro de tudo, imóvel, e rodeada pelas esferas celestes, incluindo
a esfera das estrelas fixas. Essas duas partes do Universo eram
regidas por leis diferentes: a primeira era composta pelos
elementos terra, água, ar e fogo (nessa ordem), local de mudança,
pecado, destruição e morte; e a segunda parte era uma região
perfeita e eterna, delimitada pelas estrelas fixas, donde giravam
os planetas (incluindo a Lua e o Sol), além da qual não havia nada,
nem lugar, nem vazio, movida pelo motor primário que criou tudo
que existe e gerou o movimento circular e uniforme de todos os
astros.
87 FEYERABEND, 2011b, p. 93.
111
• Reconhecer diferentes mitos
cosmogônicos (modelos que
explicam a origem do Universo
em determinada cultura),
sobretudo os indígenas e
africanos;
• Relacioná-los uns com os
outros, buscando elementos
semelhantes e distintos;
• E refletir sobre suas possíveis
influências nas explicações
tradicionais.
• Solicitar aos alunos que contem (resumidamente)
diferentes mitos que explicam a criação das coisas do
céu ou a origem do Universo;
• Colaborar, ao término de suas falas, contando-lhes
outros mitos cosmogônicos88;
• E, por fim, instigá-los a discutir sobre a relação entre
esses mitos e a refletir sobre as suas possíveis
influências nas explicações tradicionais (sobretudo a
cristã).
Podemos estender as críticas que Paul Feyerabend faz à ciência
(que é geralmente vista como uma ideologia neutra, objetiva,
racional, acima de outras formas de conhecimento, etc.) às
explicações míticas unilaterais da criação das coisas do céu e da
origem do Universo. Ele deixa claro que defende a separação
religião-Estado; que um cidadão deve poder escolher a religião
que é de seu agrado; e que, em uma sociedade livre, um cidadão
maduro não é uma pessoa que foi profundamente instruída em
uma ideologia especial, mas aquele que conheceu as
possibilidades e decidiu em favor daquilo que considerou ser
melhor para si89. Além disso, compreendendo a ciência como
fruto de uma construção histórica, que se aproxima dos mitos,
muito mais do que se pode admitir90, e reconhecendo a
importância que os métodos e elementos não-científicos tiveram
nos grandes resultados da ciência moderna91, Feyerabend afirma
que devemos reexaminar nossa atitude em face do mito, da
religião, da magia e da feitiçaria92; e que, para termos esperança,
sempre existem pessoas que lutam contra a uniformidade e
defendem o direito que indivíduos têm de viver, pensar e agir
como lhes pareça conveniente93.
88 Indicamos alguns materiais que podem aumentar o repertório cosmogônico do professor: o trabalho de Roberto Martins O Universo – Teorias sobre sua origem e
evolução, de 1994, disponível no site <ghtc.usp.br/Universo/>; o vídeo “3 mitos de criação Cristão, Tupi Guarani e Yorubá”, disponível no YouTube pelo site
<youtube.com/watch?v=ctACniyQKjU>; o conto indígena da lenda do dia e da noite <youtube.com/watch?v=v4LERka3bOY>; “a criação do Mundo Iorubá” (mitologia
africana) <youtube.com/watch?v=xqrxAA_OKFk> e outros vídeos que podem ser acessados buscando por “mitos cosmogônicos” na plataforma online.
89 FEYERABEND, 1977, p. 464.
90 Ibidem, p. 447.
91 Ibidem, p. 460.
92 Ibidem, p. 453.
93 FEYERABEND, 2010, p. 19.
112
• Desenvolver as discussões
referentes à queda dos corpos e o
suposto movimento de rotação
da Terra;
• Compreender o chamado
“argumento da torre”;
• E relacionar o argumento da
torre a um helicóptero.
• Discutir com os alunos a respeito de uma teoria do
século XVI (o Heliocentrismo), que afirmava que a
Terra supostamente se movia em torno de seu próprio
eixo e realizava uma translação ao redor do Sol;
• Questioná-los se é possível notar tais movimentos;
• Apresentar o argumento da torre como “prova” da
imobilidade da Terra (evidência do modelo
geocêntrico);
• E questioná-los sobre o que deveria acontecer a um
helicóptero, ao levantar voo e ficar parado a alguns
centímetros do chão, caso a Terra estivesse realizando
um movimento de rotação.
O modelo heliocêntrico de Nicolau Copérnico (1473-1543)
apresentava uma solução para o movimento retrógrado dos
planetas, entretanto, ele era contraditório com a teoria aristotélica
dos movimentos naturais do universo; não explicava o movimento
dos corpos aqui na Terra; era contrário àquilo que mostravam os
nossos sentidos (o visível deslocamento do Sol); não se via nada
saindo da Terra como consequência de seu rodopio; retirava a
Terra de uma posição privilegiada do Universo; e poderia ser
facilmente refutado pelos experimentos de queda-livre (o
argumento da torre). Apesar disso, Copérnico postula uma Terra
em movimento e caracteriza os epiciclos planetários (que se
moviam para frente e então invertiam a sua direção) como um
movimento aparente e, auxiliado pelo fato de que isso estava em
concordância com a posição do Sol, interpreta esse movimento
aparente como sendo criado por um movimento real e circular por
parte da Terra94.
• Perceber, a partir de uma
perspectiva geocêntrica, como o
brilho dos planetas deve
permanecer constante pelo
período em que eles orbitam a
Terra;
• E discutir sobre como, de fato,
podemos notar a uniformidade
do brilho planetário, ao observá-
los a olho nu, como fizeram os
estudiosos do céu até o final do
século XVI.
• Convidar os alunos a olhar mais atentamente para os
planetas visíveis e perguntar se costumam contemplá-
los durante o ano;
• Questionar se é possível notar uma grande mudança
no brilho desses planetas (ou seja, se ao decorrer do
ano eles passam a brilhar mais ou menos em
determinados meses);
• Concluir que, estando a Terra no centro do sistema
planetário, pouca deveria ser a mudança vista no
brilho anual desses planetas;
• Afirmar que, de fato, olhando os planetas ao decorrer
do ano, praticamente não se pode notar mudança em
seus brilhos (evidência do modelo geocêntrico).
Outro argumento em defesa da Terra estacionária é a
uniformidade do brilho planetário. De fato, estando a Terra no
centro do Universo e os planetas girando-a em círculos
concêntricos, pouca deveria ser a mudança vista no brilho desses
planetas ao realizarem suas órbitas ao redor da Terra, bem como
pode ser comprovado através da observação a olho nu.
94 FEYERABEND, 2011b, p. 181, 187.
113
• Ter contato com o telescópio;
• Utilizá-lo para observar objetos
(terrestres) distantes;
• Perceber como a imagem
obtida pelo instrumento óptico
“aproxima” os objetos distantes
e revela características antes
invisíveis;
• Notar algumas distorções
produzidas pelo telescópio ao se
observar objetos conhecidos;
• E refletir sobre a confiabilidade
das observações telescópicas,
sobretudo quando se trata de
objetos desconhecidos.
• Apresentar o instrumento óptico aos alunos: origem,
tipos/modelos, as partes que o compõe, o
funcionamento e os cuidados com o manuseio;
• Apontar o telescópio para uma árvore, prédio ou torre
distante e solicitar aos alunos que possam, um a um,
olhar através do instrumento;
• Perguntar aos alunos sobre como parecem ser os
objetos visualizados, questionando-os sobre as
diferenças entre o objeto real e a imagem obtida pelo
telescópio;
• Perguntá-los se há algum tipo de distorção na
imagem: manchas coloridas, borrões, ausência de
foco, duplicação do objeto, etc., ou até se a imagem
não pode ser vista;
• Construir uma conclusão a respeito da confiabilidade
das imagens produzidas pelo instrumento óptico.
Na época de Galileu, não existia nenhuma teoria que explicasse a
formação das imagens produzidas pelo telescópio95. Na maioria
das vezes, essas imagens possuíam aberrações e distorções que
podiam ser identificadas ao observar objetos (terrestres)
conhecidos. Feyerabend afirma que o conhecimento de Galileu
sobre a teoria óptica da refração não é correto e nem é suficiente
para o entendimento de fenômenos telescópicos96, e que ele
reconstrói uma versão melhor da luneta holandesa e afirma em
seus escritos que isso se deu por meio de cálculos matemáticos.
Entretanto, não há cálculos em seus relatórios, mas um esboço que
mais se assemelha à tentativa e erro (ou seja, à experiência)97.
Apesar disso, o dispositivo aperfeiçoado por Galileu era
considerado moderno, e provavelmente o melhor de sua época.
Inicialmente, seu interesse estava voltado para as questões
militares e não astronômicas. Quando Galileu ouviu falar nas
lunetas holandesas, apressou-se para estudá-las e melhorá-las, a
fim de obter vantagem para Veneza sobre os turcos, podendo
observar os navios inimigos cerca de duas horas antes de serem
vistos a olho nu98. Há vários relatos da época, inclusive do próprio
Galileu, evidenciando a importância e os benefícios desse novo
instrumento quando usado em terra ou mar. Sua aplicação às
estrelas, contudo, era uma questão inteiramente distinta99.
95 HENRIQUE, 2010, p. 26.
96 FEYERABEND, 2011b, p. 118.
97 FEYERABEND, 2011b, p. 120.
98 VANNUCCHI, 1996, p. 48.
99 FEYERABEND, 2011b, p. 121.
114
• Utilizar o telescópio para
visualizar a Lua, as fases de
Vênus, os satélites de Júpiter e os
anéis de Saturno;
• Notar o poder de ampliação do
telescópio;
• Perceber a discordância sobre o
que é visualizado (pelos alunos);
• Buscar elementos que refutem
o Geocentrismo e,
consequentemente, apoiem o
Heliocentrismo.
• Convidar os alunos a observarem os astros pelo
telescópio: as crateras e montanhas da Lua; a fase em
que Vênus se encontra, as quatro outras estrelas que
são satélites de Júpiter; e os dois acompanhantes de
Saturno (evidências do modelo heliocêntrico);
• Perguntá-los sobre o que pode ser visualizado com o
auxílio do instrumento óptico;
• Destacar a percepção das irregularidades geográficas
da Lua: montanhas, vales, crateras, manchas, etc.;
• Destacar a percepção da fase de Vênus e ampliar a
discussão para as outras fases ao longo de seu período
de translação;
• Destacar a percepção dos satélites de Júpiter (e
refletir sobre como objetos podem orbitar outros astros
que não a Terra);
• Destacar a percepção dos anéis de Saturno (como
objetos estranhos – “orelhas” – que parecem
acompanhar o planeta);
• Questionar os alunos se essas características
contribuem para refutar o Geocentrismo e,
consequentemente, apoiar o modelo heliocêntrico de
Nicolau Copérnico;
• Discutir sobre como Galileu utilizou esses
argumentos para defender o Heliocentrismo, mesmo
partindo da falsa premissa de que o telescópio
produzia um retrato verdadeiro do céu.
Além das interpretações naturais, Galileu altera as sensações que
ameaçam a teoria de Copérnico. Ele admite que haja tais
sensações, louva Copérnico por tê-las ignorado e afirma tê-las
eliminado com o auxílio do telescópio. Contudo, não oferece
razões teóricas pelas quais se deveria esperar que o telescópio
fornecesse um retrato verdadeiro do céu100. É bem verdade que o
telescópio produzia resultados fantásticos na Terra, entretanto, ele
se deparava com dificuldades quando utilizado para observações
celestes, onde as imagens eram indistintas, indeterminadas,
contraditórias e entravam em conflito com o que qualquer pessoa
pudesse ver a olho nu. Assim, cita Feyerabend, apenas uma nova
teoria da visão telescópica podia trazer ordem ao caos e separar
aparência de realidade101. É sabido que as observações
telescópicas terrestres indicavam, até certo ponto, propriedades
estáveis e objetivas das coisas vistas. Como os nossos sentidos
estão familiarizados com a aparência dos objetos, fica fácil
distinguir o que é verdadeiro e o que é distorcido pelo
instrumento. Entretanto, não conhecemos de perto as estrelas e os
planetas. Até mesmo a aparência da Lua nos dá uma ideia falsa de
sua distância e seu tamanho. Logo, não podemos usar a nossa
memória para separar o que provêm do próprio objeto (celeste)
das contribuições do telescópio102. A ausência de observações
satisfatórias mostravam dois objetos acompanhantes de Saturno;
duplicação de imagens dos astros; mudança da posição lateral da
imagem de acordo com a posição do olho; franjas coloridas;
presença ou ausência das estrelas que acompanham Júpiter; uma
Lua repleta de montanhas na parte interna, mas perfeitamente
lisa na periferia, e isso a despeito do fato de que a periferia da
Lua mudava com a sua rotação; além de algumas crateras que não
existem e a observação de uma atmosfera lunar; o que revela a
100 FEYERABEND, 2011b, p. 113.
101 Ibidem, p. 123, 138.
102 Ibidem, p. 124.
115
pobreza do que poderia ser visualizado pelo telescópio. Mas
Galileu confiava em seu instrumento. Por diversas vezes
apresentou seu telescópio em público, inclusive a membros da
Igreja e cientistas adversários, que, ademais, muitos desses
homens se recusaram inclusive a olhar no telescópio103. Após um
desses encontros, um de seus contemporâneos relata: Galileu não
alcançou nada, pois mais de vinte homens cultos estavam
presentes e, contudo, ninguém viu distintamente os novos
planetas; ele dificilmente será capaz de continuar afirmando sua
existência104. Mesmo assim, apesar das objeções, Galileu utiliza
seu instrumento como “prova” de seus argumentos: em resposta
aos escolásticos que afirmavam que um corpo não poderia ter dois
movimentos ao mesmo tempo, ele exibiu os satélites de Júpiter
(que orbitavam o planeta enquanto ele fazia sua revolução anual);
quanto à tradicional alegação de que os corpos celestes seriam
perfeitos, ele utiliza o telescópio para afirmar que o Sol tem
manchas e que a Lua não é perfeitamente lisa. Quanto à objeção
de que a teoria copernicana requereria que Vênus exibisse fases
(o que não poderia ser detectada a olho nu), Galileu as confirmou
com as observações telescópicas das fases de Vênus105.
• Perceber, a partir de uma
perspectiva heliocêntrica, como o
brilho dos planetas varia pelo
período em que eles orbitam o
Sol, estando hora mais próximos
• Convidar os alunos a olhar mais atentamente para os
planetas Vênus e Marte pelo telescópio;
• Discutir com eles que, estando o Sol no centro do
Universo, hora esses planetas estariam mais próximos
da Terra (perigeu) – como pode ser visualizado no
tradicional alinhamento dos planetas – e hora estariam
mais distantes (apogeu), o que configuraria uma
Galileu, entretanto, não desistiu. As medidas da variação do brilho
aparente de Vênus e Marte, vistos à olho nu, contradizem a teoria
copernicana no que diz respeito ao suposto movimento de
translação da Terra. De fato, no caso da Terra estar no centro do
sistema planetário, pouca deveria ser a mudança vista no brilho
desses planetas ao realizarem suas órbitas ao redor da Terra, bem
como era visto e comprovado por muitos astrônomos da época,
inclusive o próprio Galileu. Em contrapartida, afirma Feyerabend,
103 OLIVEIRA, 2011, p. 56, nota 130.
104 GALILEI, Opere, III apud FEYERABEND, 2011b, p. 125.
105 HELLMAN, 1999, p. 29.
116
da Terra (perigeu) e hora mais
distantes (apogeu);
• Discutir sobre como, de fato,
podemos notar a variação do
brilho planetário, ao observar
Vênus e Marte pelo telescópio,
como fizera Galileu no início do
século XVII.
grande mudança no brilho desses planetas
(diferentemente do que poderia ser percebido a olho
nu);
• Afirmar que, de fato, olhando os planetas ao decorrer
do ano pelo telescópio, pode-se notar uma mudança
significativa em seus brilhos (evidência do modelo
heliocêntrico).
há alguns fenômenos telescópicos que são claramente
copernicanos: a variação telescópica no brilho dos planetas está
mais estreitamente de acordo com Copérnico do que com os
resultados da observação a olho nu. Visto através do telescópio,
Marte e Vênus de fato mudam como deveriam mudar segundo a
perspectiva copernicana106. Assim, os distanciamentos desses
planetas à Terra, devido à translação dos mesmos ao redor do Sol,
causariam, como de fato causam, uma grande mudança em seus
brilhos, vistos através do telescópio. Galileu introduz esses
fenômenos como evidência independente para Copérnico,
embora a situação seja antes a de uma concepção refutada (...) –
a ideia de que fenômenos telescópicos são retratos fiéis do céu.
(...) Mas essa mudança está em harmonia com as predições de
Copérnico. É essa harmonia e não um profundo conhecimento de
cosmologia e óptica que, para Galileu, comprova Copérnico e a
veracidade do telescópio em assuntos terrestres tanto quanto em
assuntos celestes. E é sobre essa harmonia que ele constrói uma
concepção inteiramente nova do universo107.
106 FEYERABEND, 2011b, p. 141.
107 Ibidem, p. 141-142.
117
O professor deve seguir a coluna de procedimentos tendo em vista os objetivos
propostos. Destacamos que, nesse momento, não será necessário tratar das questões histórico-
filosóficas de maneira independente (elas estão dispostas, sobretudo, para colaborar com o
professor); mas que tais elementos aparecerão, naturalmente, nas etapas do encontro e,
posteriormente, nos momentos que se seguem.
Por fim, esperamos que questões da astronomia de Galileu venham à tona e sejam
discutidas pelos alunos – sem, necessariamente, serem respondidas pelo professor – e
sugerimos que a avaliação deste primeiro momento se dê pela participação dos alunos no
encontro.
Atividade de construção teórica
Posteriormente ao encontro de observação astronômica, sugerimos uma roda de
conversa entre os alunos, para que seja feita uma discussão em sala de aula a respeito das
observações realizadas anteriormente; o professor poderá, ainda, apresentar imagens e
simuladores computacionais de astronomia; passando, por fim, como tarefa para casa, uma
atividade de construção teórica.
Após a aula de campo, as cadeiras da sala de aula podem estar dispostas em círculo para
facilitar a dinâmica de grupo, em que os alunos discutirão a respeito das observações feitas
anteriormente. O professor deve deixá-los à vontade para fazer comentários pessoais, juízos de
valor, declarações sobre aquilo que foi visualizado no céu a olho nu e pelo telescópio, externar
sentimentos que surgiram com as observações astronômicas e fazer críticas construtivas a
respeito do encontro de observação.
Quando o professor achar conveniente, poderá enriquecer a discussão com vídeos e
imagens108, a respeito das observações que foram feitas e dos comentários que surgiram a partir
delas. Além disso, os alunos poderão fazer uso do simulador computacional Stellarium109 para
observar e “controlar” o movimento dos planetas, inclusive movendo o tempo para simular o
céu que estava visível durante a aula de campo.
108 Como exemplo, pode-se utilizar as imagens disponíveis nesta pesquisa, que podem ser impressas ou
apresentadas em slides.
109 O Stellarium é um software livre de astronomia para visualização do céu, que pode ser acessado e baixado pelo
site www.stellarium.org.
118
Após isso, o professor passará como tarefa para casa um material textual, a ser lido,
respondido, e entregue ao término da aula júri simulado. Apresentada no Apêndice desta
dissertação, a atividade de construção teórica terá por título: “Galileu Galilei: os sistemas de
mundo geocêntrico e heliocêntrico”, e pode ser impressa e entregue aos alunos ou
disponibilizada em uma plataforma digital a que eles tenham acesso. Trata-se de uma
construção que terá por base a leitura feyerabendiana da astronomia de Galileu e que buscará
as características do desenvolvimento científico evidenciadas por Paul Feyerabend. A leitura
contará com questionamentos e perguntas que orientarão os estudantes a construírem os
respectivos argumentos e contra-argumentos que irão utilizar na última etapa desta unidade
didática – a aula júri simulado. A avaliação pedagógica, por parte do professor, será feita ao
acessar o material respondido pelos alunos e contará com a participação dos mesmos na roda
de conversa.
Por fim, o professor apresentará aos alunos a proposta do júri simulado (que será descrita
na próxima seção), marcará o dia da aula e discutirá com eles as “regras do jogo”, podendo,
inclusive, pedir sugestões sobre a dinâmica.
Aula júri simulado
Após a construção teórica dos argumentos e contra-argumentos dos sistemas de mundo
de Galileu, a partir de uma leitura feyerabendiana, a unidade didática tem desfecho com a
estratégia de ensino-aprendizagem do júri simulado.
O júri simulado é uma ferramenta didática que possibilita a interpretação de papéis ao
simular um tribunal judiciário, onde os estudantes exercem funções de argumentação, contra-
argumentação e julgamento de uma determinada questão. Segundo Anastasiou & Alves (2005,
p. 92):
A estratégia de um júri simulado leva em consideração a possibilidade da
realização de inúmeras operações de pensamento, como: defesa de ideias,
argumentação, julgamento, tomada de decisão, etc. Sua preparação é de
intensa mobilização, pois, além de ativar a busca do conteúdo em si, (...)
oportunizam um envolvimento de todos para além da sala de aula. A estratégia
pode ainda ser regrada de espírito de dramaturgia, o que deixa a atividade
interessante para todos, independentes da função que irão desenvolver na
apresentação final. Essa estratégia envolve todos os momentos de construção
119
do conhecimento, da mobilização à síntese, pela sua característica de
possibilitar o envolvimento de um número elevado de estudantes.
Ainda segundo os autores, as operações de pensamento predominantes na estratégia do
júri simulado, são: imaginação, interpretação, crítica, comparação, análise, levantamento de
hipóteses, busca de suposições e decisão; quanto a avaliação da atividade pedagógica – por
parte do professor – este deve considerar a apresentação concisa e lógica das ideias, a
profundidade dos conhecimentos e a argumentação desenvolvida pelos estudantes a respeito da
questão proposta (ANASTASIOU & ALVES, 2005, p. 92).
Silva & Martins (2009), ao discutirem sobre a estrutura e a prática do júri simulado nas
aulas de física do ensino médio, afirmam que a dinâmica necessita de um tema problematizador
que envolva polêmicas e divergência de opiniões entre o grupo. Segundo os autores, esta é uma
“ótima estratégia didática para investigar a pertinência e as contribuições de uma abordagem
que priorize as dimensões históricas e filosóficas da ciência”, bem como a construção dos
conceitos científicos envolvidos (ibidem, p. 18).
Caberá ao professor – e em especial o de física – preparar essa ferramenta didática desde
seu plano de ensino. Entretanto, esta não será uma tarefa difícil. Segue uma descrição detalhada
de uma proposta (que, naturalmente, pode – e deve – conter mudanças de acordo com a
realidade local) sobre como o professor pode proceder.
Inicialmente, orientamos que o professor possa fazer a leitura do capítulo 4 desta
pesquisa: o ensino da astronomia de Galileu numa perspectiva feyerabendiana; pois sabemos
que nem sempre a nossa formação acadêmica propicia a inclusão de elementos da HFC em
nossas práticas pedagógicas, além do mais, se faz necessário que o professor tenha domínio do
conteúdo tratado.
A temática do júri simulado será: Galileu Galilei: os sistemas de mundo geocêntrico e
heliocêntrico. O objetivo do professor será promover uma grande discussão (assumindo o papel
de mediador e se isentando da interpretação de papéis) a respeito dos temas110 da astronomia
de Galileu, a partir de uma perspectiva feyerabendiana. Ele dividirá a turma em três grupos: os
defensores do sistema de mundo geocêntrico, os defensores do sistema de mundo heliocêntrico
110 Temas supracitados no capítulo anterior: a interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos
corpos; a Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana; o telescópio fornece um retrato
verdadeiro do céu?
120
e os juízes. A divisão dos alunos pode ser feita de livre escolha pelos mesmos, deixando quatro
vagas para os juízes e o restante sendo divididas igualmente entre os defensores, que formarão
os dois grupos maiores e que vão, cada qual, defender o seu sistema de mundo. É interessante
destacar que o que os alunos acreditam “ser verdade” pouco importa nesse processo. O
professor deve instigá-los a assumir o papel no qual escolheram e construir uma argumentação
a respeito dele.
A aula em questão deverá ser composta por uma aula dupla (ou seja, duas aulas de 50
minutos). O professor poderá, ainda, dividir o espaço físico da sala111 da seguinte maneira: os
juízes ficarão em um dos cantos da sala e os dois grupos maiores serão divididos um de cada
lado do espaço dedicado aos juízes, ficando um grupo de frente para o outro.
Tabela 2 – Quadro com a divisão dos alunos.
Função Quantidade de alunos
presentes
Simulação com 30
alunos (por exemplo)
Juízes 4 4
Defensores do sistema de
mundo geocêntrico
A metade dos alunos (sem
incluir os juízes)
13
Defensores do sistema de
mundo heliocêntrico
A outra metade dos alunos
(sem incluir o juízes)
13
No início da aula, o professor irá explicar como acontecerá o júri simulado, enfatizando
que os alunos devem interpretar os papéis ao qual estão divididos e que devem se envolver no
espírito da dramaturgia. Após isso, ele irá tirar as dúvidas sobre a dinâmica e informará o seu
papel de mediador, não se envolvendo, por tanto, no debate (nem mesmo para tirar dúvidas
sobre os conteúdos). O professor, então, fará a divisão da sala e dará um tempo de 15 minutos
para que cada grupo possa se reunir e discutir sobre os respectivos argumentos e contra-
111 Caso a escola possua estrutura, o professor pode usar a criatividade para enriquecer o ambiente com roupas,
mobília, etc., ou até se deslocando para outro espaço físico que julgue mais apropriado. Entretanto, se não for
possível, as próprias cadeiras dos estudantes serão suficientes para promover uma divisão na sala de aula. Deve-
se, também, delimitar o espaço onde haverá a arguição (um para cada grupo, numa posição à frente dos seus
companheiros, e de frente para o júri).
121
argumentos (material que fora produzido pelos alunos na atividade de construção teórica) que
eles irão utilizar para convencer os juízes acerca do sistema de mundo que defendem.
Enquanto isso, o professor se reunirá com os juízes para explicar como estes devem
conduzir a dinâmica do júri simulado: os juízes serão as autoridades e coordenarão a discussão,
dando direito a fala (intercalada) dos grupos, sendo responsáveis, inclusive, pela organização
da sala de aula. Eles anotarão as falas que acharem interessante e, individualmente, poderão
fazer algumas perguntas aos defensores dos argumentos e dos contra-argumentos dos dois
grupos (vale lembrar que estas perguntas não devem ser para confrontar os defensores, mas
apenas para conduzi-los a argumentação). Espera-se que todos os defensores possam atuar ao
menos uma vez, indo a frente e defendendo seu ponto de vista aos juízes e demais colegas. O
outro grupo deve argumentar sobre o ponto de vista contrário e, inclusive contra-argumentar
o ponto de vista adversário (neste último caso, o defensor poderá construir um contra-
argumento que confronte um ou mais de seus adversários). Quando todas as arguições forem
feitas, cada juiz decidirá sobre qual sistema de mundo foi melhor explicado e qual deles deve
corresponder a realidade (de acordo com a argumentação dos grupos). Entretanto, antes do
veredito, os juízes coordenarão uma votação para que todos os defensores possam decidir por
um sistema de mundo (vale ressaltar que esta decisão não deve, necessariamente, se prender ao
grupo do qual o estudante faz parte, a ideia é, realmente, que eles possam mudar livremente de
opinião, assumindo ter sido convencido pelos seus adversários). Neste momento, cada grupo
deve escolher um representante para fazer uma última arguição, mas aqui haverá uma surpresa:
de última hora o professor informará que eles devem trocar de papéis, ou seja, eles terão que
argumentar contra o sistema de mundo que estavam defendendo e tentar convencer os demais
a respeito do sistema de mundo que, outrora, estavam atacando. Isso, provavelmente, causará
um pouco de confusão, mas, afinal, é necessário conhecer os argumentos de seus adversários
para se fazer uma boa defesa.
Tabela 3 – Quadro com a organização do tempo da aula júri simulado.
Cronograma
Tempo total 100 minutos
Tempo para explicação do
professor, dúvidas e divisão física
da sala
10 minutos
122
Tempo para os alunos se reunirem
para discutir os argumentos e
contra-argumentos do seu sistema
de mundo
15 minutos
Tempo para as arguições
(intercalada) dos defensores
30 minutos
Tempo para as últimas arguições e
votação dos defensores
10 minutos
Tempo total de fala para os juízes 15 minutos
Tempo para os questionamentos,
discussões e conclusões do professor
20 minutos
O professor, então, entregará um pequeno pedaço de papel a todos os defensores. Estes
votarão (em segredo) por um sistema de mundo e depositarão a resposta em uma urna (uma
caixa de papelão pequena, por exemplo). Após isso, cada um dos quatro juízes terá um momento
de fala e tomará uma decisão. Entretanto, antes que eles revelem a decisão final do júri, farão a
contagem da votação dos defensores na urna e dirão o resultado (este resultado irá mostrar que
algumas pessoas mudaram de concepção durante o processo argumentativo e servirá para
desempatar a decisão do júri, caso aconteça). Por fim, os juízes darão o veredito final em favor
de um dos sistemas de mundo, encerrando o júri simulado.
“Na sua essência,” cita Silva & Martins (2009, p. 19),
a prática apresentada objetiva a realização de reflexões em torno do fazer
científico, ao colocar em confronto [teses] distintas (...). Espera-se, assim, que
os alunos possam perceber a pluralidade de ideias existentes na formação dos
conceitos, descaracterizando a visão de uma ciência “linear” e ideia do
“gênio”, muito difundidas nas práticas mais tradicionais. Ainda nessa direção,
o júri simulado poderá dar um maior significado ao estudo da física, (...) pois
os alunos terão a possibilidade de vivenciar as dificuldades encontradas pelos
cientistas na formulação e defesa dos modelos, diante de colegas defensores
de outro ponto de vista. Neste cenário, a capacidade de argumentação por parte
dos alunos torna-se fundamental, devido à própria natureza da atividade, em
que o trabalho com hipóteses e a explicação são habilidades importantes na
defesa de cada uma das teses.
123
Assim, esperamos que este júri simulado favoreça, por parte dos alunos, as operações
de pensamento citadas por Anastasiou & Alves (2005), principalmente a argumentação e a
tomada de decisão, e dê ao professor uma ferramenta e um aporte teórico para que este possa
desenvolver uma aula de física estimulante, diferenciada, interdisciplinar, e que, sobretudo,
contribua para vencer os desafios de sua prática pedagógica.
Finalmente, tendo desenvolvido as três etapas da unidade didática, o professor deverá
dedicar a aula seguinte para questionamentos, discussões e conclusões a respeito do que foi
realizado: questionará os alunos a respeito da dinâmica do júri (como foi a interpretação do
papel, como foi a defesa de um modelo que não acreditava, se houve mudança de concepção
durante ou após a dinâmica, etc.); construirá as conclusões a respeito dos temas da astronomia
de Galileu; formulará algumas questões que servirão de síntese para os conteúdos disciplinares;
e discutirá sobre os aspectos sócio-histórico-filosóficos do desenvolvimento científico que
chamaram a atenção dos alunos. O objetivo desse último momento será desenvolver questões
sobre o saber científico. Para dinamizar, o professor pode recortar as perguntas que seguem
(Tabela 4) em pedaços de papel e sortear os alunos que irão respondê-las, antes de abrir a
discussão para os demais.
Tabela 4 – Quadro com exemplos de questões aos alunos sobre o saber científico.
O que você aprendeu nessas aulas está de acordo com o que já tinha ouvido falar do personagem
Galileu Galilei?
É correto dizer que Galileu comprovou a teoria copernicana?
Como você julga a posição da Igreja, à época, em exigir de Galileu evidências mais concretas
do Heliocentrismo?
O que você aprendeu sobre o funcionamento da ciência com toda essa discussão?
O telescópio de Galileu foi, realmente, um argumento decisivo para refutar o Geocentrismo?
Argumentos contra-indutivos, propagandas e truques psicológicos foram alguns dos artifícios
utilizados por Galileu para convencer a todos a respeito do copernicanismo. Você acha que esses
elementos fazem parte da ciência?
Existem elementos da cultura e da sociedade que podem influenciar na construção das teorias
científicas? Se sim, quais?
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou relacionar a área da História e Filosofia da Ciência às suas
contribuições pedagógicas, sobretudo no ensino de física. Dada a importância da educação
científica em nossa sociedade, evidenciamos os aspectos sobre ciência, embasados nas
discussões de diversos historiadores e filósofos da ciência, apresentando suas potencialidades
e limitações.
É nesse sentido que foi destacada a análise do filósofo da ciência Paul Feyerabend –
suas ideias anarquistas que vão de encontro às concepções racionalistas do desenvolvimento
científico. De modo que a ciência é caracterizada como uma forma de produção de
conhecimento humano equivalente a outras formas de conhecimento. Além disso, concordamos
com o autor que a premissa da superioridade científica foi além do debate epistemológico e
passou a ser artigo de fé, fazendo parte do tecido básico da própria sociedade, sendo associada
à crença de que existe uma maneira certa de se viver, o que é prejudicial para a qualidade de
vidas das pessoas em uma sociedade livre.
A partir disso, recomendamos a utilização da epistemologia feyerabendiana no ensino
de física, nos conteúdos temáticos que envolvem um famoso personagem da história da ciência:
Galileu Galilei. O homem que agiu de forma anarquista (e pagou o preço por sua rebeldia e
subversão) ao romper com os padrões do pensamento filosófico, científico e teológico de sua
época, utilizando procedimentos contra-indutivos e irracionais, argumentos contraditórios com
a experiência, propagandas e truques psicológicos, para propor uma nova interpretação do
Universo, se tornando, assim, um dos maiores cientistas que já existiu e deixando seu legado
para a história da humanidade.
Ao relacionar o contexto histórico-filosófico em que surgem as teorias científicas ao
processo de ensino-aprendizagem dos estudantes, buscamos contribuir para uma compreensão
mais elaborada dos modelos científicos e evidenciamos as circunstâncias em que eles surgem e
se desenvolvem. Para isso, defendemos uma releitura feyerabendiana do caso histórico de
Galileu, com vistas à sua utilização no ensino de física, por professores e estudantes do nível
médio, fazendo um contraponto à forma pela qual tais conteúdos são tradicionalmente
ensinados.
125
A unidade didática desenvolvida pela pesquisa buscou propor um subsídio didático para
se discutir os conteúdos de mecânica e de astronomia, a partir do olhar da filosofia da ciência
evidenciado por Feyerabend. As orientações ao professor incluem o trabalho de diversos
autores da área e a nossa prática cotidiana como uma proposta para as aulas de física do primeiro
ano do Ensino Médio. Finalmente, o Apêndice representa uma transposição didática das obras
de Paul Feyerabend e do Diálogo de Galileu Galilei, trazendo, inclusive, imagens e citações
diretas contidas nas fontes primárias. Entretanto, este é apenas um olhar, dentre muitos, para
buscarmos uma educação de qualidade e uma construção do saber científico por nossos
estudantes. Mas ainda há muito a ser feito. Outras perspectivas e metodologias podem (e
devem!) refinar e integrar essa abordagem, de forma, ainda, a aplicar e avaliar tais propostas
pedagógicas.
Sonhando em dar adeus à razão, nossa compreensão caminha numa estrada sem fim em
busca de uma ciência que também é cultura. E como bem disse, certa vez, Galileu Galilei: “a
verdade é filha do tempo, (...) mas a dúvida é o começo da sabedoria”.
126
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APÊNDICE
GALILEU GALILEI:
OS SISTEMAS DE
MUNDO
GEOCÊNTRICO E
HELIOCÊNTRICO
Por: JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA
NATAL – RN
2020
APRESENTAÇÃO
Este material compõe uma das etapas da Unidade Didática proposta pela
pesquisa de dissertação de mestrado do professor José Ricardo Pereira da
Silva, intitulada: Um olhar da Filosofia da Ciência no ensino de física:
a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu.
Tal atividade é dedicada aos alunos da disciplina de física do 1° ano do
Ensino Médio, e tem por objetivo contribuir para aprendizagem do
conteúdo curricular de mecânica.
Com o título: Galileu Galilei: os sistemas de mundo geocêntrico e
heliocêntrico, este material didático contém um estudo histórico e
filosófico de um conhecido personagem do mundo da ciência – Galileu
Galilei – o filósofo natural, comumente chamado de “astrônomo” ou
“físico”, que contribuiu, de forma significativa, para a mudança na
percepção de nossa posição no Universo entre os séculos XVI e XVII.
Para essa construção histórica utilizamos os escritos do austríaco Paul Karl
Feyerabend (1924-1994). Filósofo, com doutorado em física pela
Universidade de Viena, especialização em teatro e doutor honoris causa
em letras e humanidades pela Universidade de Chicago, Feyerabend foi
um grande crítico da ciência e um profundo admirador de Galileu. Em suas
obras, ele apresenta uma visão anarquista do desenvolvimento científico
e promove uma ampla discussão a respeito da física terrestre e celeste de
Galileu, sendo parte essencial do período de mudança de pensamento
cosmológico que ficou conhecido como Revolução Copernicana.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática – CCET
Dissertação de Mestrado – Um olhar da Filosofia da Ciência no ensino de física:
a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu.
Unidade Didática (apêndice), sob orientação do Prof. Dr. André F. P. Martins.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 04
UNIDADE I – A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da
queda dos corpos
09
UNIDADE II – A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria
copernicana
16
UNIDADE III – O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu? 24
4
INTRODUÇÃO
Esse material textual a ser lido, respondido e entregue ao professor, como parte
fundamental dessa Unidade Didática, possui as reflexões sobre o desenvolvimento
científico, a partir da perspectiva do filósofo da Ciência Paul Feyerabend.
Feyerabend volta o seu olhar para o período
histórico entre o final do século XVI e início do século
XVII, que representa um recorte de um período mais
amplo de mudança de pensamento cosmológico,
conhecido como Revolução Copernicana, onde o
personagem Galileu Galilei aparece como um dos
protagonistas desse processo.
Em vista disso, foram identificados três temas de
astronomia que, de forma articulada, compõem um
quadro dos trabalhos de Galileu, da relação entre sua
física terrestre e celeste e que, ao mesmo tempo,
possuem grande relevância histórica para as críticas
epistemológicas112 de Paul Feyerabend:
A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos
A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana
O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu?
Esses temas juntos formam o que chamamos de astronomia de Galileu.
Então, serão utilizadas as principais obras de Feyerabend e o famoso livro de Galileu
Galilei – Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano113 –
na construção que se segue.
112 Do grego episteme (conhecimento, ciência) + logos (discurso, estudo), a epistemologia é o ramo da
filosofia que se dedica ao estudo do conhecimento humano. Ela abrange discussões em torno de teorias do
conhecimento e sua justificação, de modo que o conhecimento científico é um de seus objetos, o que muitas
vezes é chamado de Epistemologia da Ciência ou Filosofia da Ciência [2].
113 Em sua obra mais famosa, publicada na Itália em 1632, Galileu utiliza três personagens – Salviati,
Simplício e Sagredo – que debatem a respeito dos sistemas de mundo, em defesa do Heliocentrismo [3].
Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend [1].
5
Figura 2 – Ilustração de Galileu Galilei, 1623 [4]. O italiano Galileu Galilei é
provavelmente o astrônomo mais famoso de
todos os tempos. Suas “descobertas” são
associadas principalmente à defesa de um
sistema cosmológico heliocêntrico, à
liberdade de pensamento em contraposição
ao domínio social e científico da Igreja e à
utilização do telescópio como ferramenta de
“comprovação” científica e astronômica. Os
embates entre ele e seus adversários
geralmente representaram a luta de um
“pensamento revolucionário de um gênio”
contra o “pensamento conservador dos
ignorantes membros da Igreja”. Mas será
que a Revolução Copernicana pode ser
resumida de forma tão simplória? E será que a concepção milenar da Terra como centro do
Universo (o Geocentrismo) não tinha bons argumentos em seu favor? [5]
Agora uma pequena pausa na leitura!
1 – Antes dessas aulas, você já tinha ouvido falar em Galileu Galilei? Comente um pouco...
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2 – Quais foram as principais “descobertas” desse importante personagem histórico? Quais foram as
suas maiores dificuldades?
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6
A chamada Revolução Copernicana é uma sequência de eventos complexos que não
envolvem apenas Galileu, mas a situação na Cosmologia, na Física, na Astronomia, nas leis,
na Óptica e na Teologia.
Segundo o Geocentrismo, a
visão de mundo predominante na
Antiguidade que foi defendida pelo
filósofo grego Aristóteles (384-322
a.C.) e pelo matemático grego
Ptolomeu (90-168 d.C.), o Universo era
dividido em duas partes: o mundo
sublunar (do centro da Terra até antes
da órbita da Lua) e o mundo
supralunar (que envolvia a Lua e tudo
que havia após ela).
A Terra estava no centro de
tudo, imóvel, e rodeada pelas esferas celestes, incluindo a esfera das estrelas fixas. Essas
duas partes do Universo eram regidas por leis diferentes: a primeira era composta pelos
elementos terra, água, ar e fogo, local de mudança, pecado, destruição e morte; e a segunda
parte era uma região perfeita e eterna, delimitada pelas estrelas fixas, donde giravam os
planetas (incluindo a Lua e o Sol), além da qual não havia nada, nem lugar, nem vazio,
movida pelo motor primário que criou tudo que existe e gerou o movimento circular e
uniforme de todos os astros.
Esse é o movimento que os astros aparentam fazer no céu. As estrelas, o Sol e a Lua
parecem orbitar em círculos ao redor da Terra, mas os planetas (“estrelas errantes”)
executam um movimento um pouco mais complexo: fazem laçadas no céu, movem-se para
frente e então invertem sua direção. Para explicar essas anomalias, os astrônomos Hiparco
de Nicéia (190-120 a.C.) e Ptolomeu conceberam uma solução engenhosa: decompor os
movimentos complexos, observados no céu, por um movimento onde os planetas giravam
ao redor de um círculo – o epiciclo – e o centro desse círculo girava ao redor de um ponto
próximo a Terra – o equante [8].
Figura 3 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu [7].
7
Entretanto, no século
XVI, um diácono polonês
chamado Nicolau Copérnico
(1473-1543) propôs um
modelo que retirava a Terra do
centro do Universo e a
substituía pelo Sol. Em seu
livro De Revolutionibus
Orbium Coelestium114,
publicado no ano de sua morte,
ele elaborou uma teoria
matemática que tentava
resolver as anomalias da cosmovisão aristotélica, afirmando que, apesar dos movimentos
dos astros serem circulares, uniformes e eternos, eles não giram em torno da Terra, mas sim
em torno do Sol; e afirmava também que a Terra possuía um movimento de rotação diária
(responsável por causar os dias e as noites) e um movimento de translação anual (que gera
as estações do ano).
Copérnico era um cristão fiel e
chegou a defender as ideias
aristotélicas. Apesar disso, ele
postulou uma Terra em movimento e
caracterizou os epiciclos planetários
como um movimento aparente e,
auxiliado pelo fato de que isso estava
em concordância com a posição do
Sol, interpretou esse movimento
aparente como sendo criado por um
movimento real, e circular, por parte
da Terra [10].
114 Do latim: Sobre as Revoluções das Esferas Celestes.
Figura 4 – Epiciclos adotados pela astronomia grega [9].
Figura 5 – Sistema heliocêntrico de Copérnico, De
Revolutionibus Orbium Coelestium, 1543 [11].
8
Apesar de belo pela simplicidade, o modelo heliocêntrico era incompatível com a
teoria aristotélica dos movimentos naturais, pois não explicava o movimento dos corpos aqui
na Terra; contrariava àquilo que mostravam os nossos sentidos (o visível deslocamento do
Sol); não explicava o porquê não víamos as consequências do suposto movimento da Terra;
e, além disso, estava em conflito com a Teologia, pois era contraditório com o que era
interpretado pelas Sagradas Escrituras.
Contudo, as certezas sobre o universo supralunar começaram a ser questionadas
pelas observações astronômicas a partir do final do século XVI. Nesse período vários
cometas puderam ser vistos no céu e diversos astrônomos, dentre eles, o dinamarquês Tycho
Brahe (1546-1601), concluíram que os cometas provavelmente se movimentavam pelo
universo supralunar [12].
Além disso, o século XVI envolveu a todos (da Europa) com a magnífica descoberta
das Américas. Essa descoberta colocou em xeque as fronteiras da cosmologia e da teologia
e, fez suspeitar da existência também de uma “américa do conhecimento” e eles
interpretaram cada dificuldade como evidência para esse novo continente, o que ganhou uma
importância que não teria tido se isso não tivesse ocorrido [13].
Assim, como fruto dessa grande revolução (no sentido literal da palavra), surge o
personagem histórico Galileu Galilei...
Antes de continuar, reflita e anote.
3 – Quais as principais características do modelo geocêntrico do Universo apresentado por Aristóteles
e Ptolomeu?
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4 – Explique quais são os movimentos que os astros aparentam realizar pelo céu.
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9
UNIDADE I
A interpretação contra-indutiva de Galileu a
respeito da queda dos corpos
Segundo Galileu,
os sentidos nos mostram que corpos pesados caem do alto para baixo por uma linha
reta e perpendicular à superfície da Terra. Argumento considerado incontestável de
que a Terra esteja imóvel: porque, se ela tivesse a rotação diurna, como proposto por
Nicolau Copérnico, uma torre, sendo transportada pela rotação da Terra, que de
cima deixasse cair uma pedra, afastar-se-ia muitas centenas de braças para o oriente
no tempo em que a pedra gastaria para a sua descida, e por tanto espaço deveria a
pedra afastar-se da base da torre [14].
De acordo com o pensamento da época, a
imobilidade da Terra era provada principalmente
por esta ideia, chamada de “argumento da torre”.
Mas ela também conseguia corroboração pelo
visível deslocamento do Sol, ou porque as pessoas
não saíam por aí, voando em direção ao espaço,
como consequência de um rodopio da Terra [16].
Galileu desarma esse argumento,
afirmando que os nossos sentidos isolados, sem o
auxílio da razão, podem nos dar uma descrição
falsa da natureza:
Figura 6 – Torre Inclinada de Pisa, Itália [15].
10
Salviati – Aquilo que é primeiramente representado pelos nossos sentidos pode
facilmente nos enganar; esse movimento dos graves descendentes é reto e não de
outro tipo. Porque, desse modo, dá sinal de acreditar que aqueles que dizem que tal
movimento é circular, parecem ver sensivelmente aquela pedra mover-se em arco, já que
ele convida mais seus sentidos que sua razão para elucidar esse efeito; o que não é
verdade, Sr. Simplício, porque, assim como eu, jamais vi, nem espero ver, cair àquela
pedra de outro modo que não reta. Será melhor, portanto, que, deixada de lado a
aparência, com a qual todos estamos de acordo, esforcemo-nos com o raciocínio para
confirmar a realidade [18].
Ou seja, a ideia de Galileu consiste em substituir a verdade apreciada pelos sentidos
por uma nova linguagem observacional, altamente abstrata e contra-indutiva:
É também verdadeiro que estando em movimento a Terra, o movimento da pedra, ao
cair, terá sido realmente um traço transversal compridíssimo com muitas centenas de
braças; mas aquela parte de todo esse movimento, que é comum à pedra, à torre e a
nós, fica para nós insensível e como se não existisse, e somente é observável aquela
parte da qual nem a torre nem nós somos participantes, que é, afinal, aquele movimento
com o qual a pedra, caindo, mede a torre [19].
Entretanto, a concepção copernicana defendida por Galileu não estava de acordo com
os fatos:
Do ponto de vista desses “fatos”, a ideia do movimento da Terra é bizarra, absurda
e obviamente falsa, para mencionar algumas das expressões que foram
frequentemente usadas na época e as quais ainda são ouvidas sempre que cientistas
retrógrados se defrontam com uma teoria nova e contrária aos fatos. A experiência na
qual Galileu deseja fundamentar a concepção copernicana não passa do resultado de sua
própria imaginação fértil: ela foi inventada! [20].
Uma vez que os argumentos de Galileu não são suficientes, ele faz uso da propaganda
e de truques psicológicos (com sucesso!) para convencer a todos do movimento da Terra.
Note como Galileu especula a respeito das ilusões fornecidas pelos nossos sentidos:
11
Outros podem facilmente enganar-se com a simples aparência ou representação dos
sentidos. E o fenômeno é o de dar a impressão àqueles que de noite caminham por
uma estrada de estarem sendo seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a
veem rasar as ponteiras dos telhados sobre os quais ela lhes aparece, exatamente da
mesma maneira que faria uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se
mantivesse atrás deles: aparência de que, quando não interviesse o raciocínio,
enganar-se-ia a visão.
Salviati – Imaginai agora estar num navio e ter fixado o olho na ponta do mastro:
acreditais que, porque o navio se movesse velocissimamente, ser-vos-ia necessário
mover o olho para manter a vista sempre na ponta do mastro e seguir o seu movimento?
Simplício – Tenho certeza de que não seria preciso fazer nenhuma mudança, e que
não somente a vista, mas, quando eu tivesse ajustado a mira de um arcabuz, qualquer
que fosse o movimento do navio, jamais seria preciso movê-la um só fio de cabelo para
mantê-la ajustada.
Salviati – E isso acontece porque o movimento que o navio confere ao mastro
confere-o também a vós e a vosso olho, de modo que não vos convém movê-lo para
olhar a ponta do mastro; e, consequentemente, ela aparece-vos imóvel [21].
Fica claro que isso é, de fato, uma forte persuasão.
Galileu argumentava que, tanto do ponto de vista aristotélico quanto do copernicano,
a pedra poderia ser vista cair ao pé da torre, de forma que a experiência observacional,
confirmada pelos nossos sentidos por si só não demonstrava nada [22].
A essência do artifício de Galileu é o chamado princípio da relatividade do
movimento. Essa explicação, a respeito da percepção do movimento, baseia-se na afirmação
de que os nossos sentidos só notam o movimento relativo e são insensíveis a um movimento
que os objetos tenham em comum [23]. Ou seja, nós não notamos o movimento circular da
pedra, enquanto ela cai do alto da torre, porque tanto nós, quanto a torre e a pedra estamos
girando juntamente com a Terra. Como todos esses movimentos são comuns, eles não são
percebidos por nossos sentidos. O único movimento que percebemos é aquele movimento
que não é comum a Terra, a torre e a nós mesmos – que é o movimento que a pedra mede a
torre – caindo do alto até sua base.
Explicado o porquê de não percebemos o movimento circular da pedra, resta a Galileu
explicar por que a pedra acompanha a torre e não é deixada para trás.
12
Desde a época de Aristóteles, acreditava-se que os corpos que não sofriam interação
física permaneceriam em repouso, isto é, manteriam sua posição. Assim, seria necessário
empurrar um objeto para que ele pudesse se mover. Dessa forma, o fato da pedra tocar o
solo na base da torre significava/provava que a Terra não estava em movimento [24].
Então era necessário supor algo contra-indutivo que não se baseasse exclusivamente
em nossos sentidos, mas também, e principalmente, na razão, de maneira tal que o
movimento da Terra possa continuar a ser afirmado.
Para explicar o motivo da pedra acompanhar a torre, Galileu cria (inventa!) o
chamado princípio na inércia circular:
Um objeto que se move ao redor do centro da Terra com certa velocidade angular,
em uma esfera livre de atrito, continuará a mover-se para sempre com essa mesma
velocidade angular [24].
Argumente...
5 – Pelo que estudamos até aqui, quais são os principais argumentos em favor do modelo geocêntrico
e da imobilidade da Terra? Você concorda com eles? Comente.
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13
Logo, tanto a pedra quanto a torre estão se
movendo junto com a Terra, e ela, a pedra, chegará
ao solo sem se deslocar da torre. Ou seja, o
movimento aparente da pedra em queda-livre,
combinado com o princípio da relatividade e com o
princípio da inércia circular transforma o
argumento que contradiz Copérnico em argumento
que o confirma!
Assim, Galileu substitui a complexa e
sofisticada teoria do movimento de Aristóteles por
sua própria lei da inércia, à qual faltava apenas
corroboração [26]. Sua principal alegação consiste
na defesa de Salviati do argumento pelo qual uma
pedra abandonada do alto do mastro de um navio,
que move-se com velocidade constante, não ficaria
para trás (como acreditara Simplício), mas tocaria o
chão do barco junto ao pé do mastro, da mesma
forma que o faria, caso o navio estivesse parado:
Salviati – Afirma, portanto,
Aristóteles, que um argumento
certíssimo da imobilidade da Terra é
vermos os projéteis subirem e
retornarem, pela mesma linha, ao mesmo
lugar de onde foram atirados, e isso,
ainda que o movimento fosse altíssimo; o
que não poderia acontecer quando a
Terra se movesse, porque no tempo em
que o projétil se movesse para cima e
para baixo, separado da Terra, o lugar
onde teve início o movimento do projétil
afastar-se-ia, devido à rotação da
Terra.
Indução & Contra-Indução
Para a filosofia, indução é o
raciocínio lógico que, após
considerar um número suficiente
de casos particulares da
experiência percebida por nossos
sentidos, conclui-se uma verdade
geral. A contra-indução é,
portanto, o oposto: considerar
poucas ou nenhuma experiência
sensível, e contradizer hipóteses
ou experimentos bem
estabelecidas.
Apesar de aparentar, não
criticamos Galileu por usar a
contra-indução. Criticamos por
considerar suas concepções como
verdade absoluta, mesmo tendo
escolhido tal procedimento
contra-indutivo [27].
14
Simplício – Assim, existe a experiência tão apropriada da pedra que se deixa cair do
alto do mastro do navio, a qual, quando o navio está parado, cai ao pé do mastro, mas,
quando o navio se move, cai tão longe quanto o espaço que o navio percorreu durante
o tempo da queda da pedra; o que não são poucas braças, se o movimento do navio é
veloz.
Salviati – Pois é evidentíssimo que o movimento do navio é acidental, bem como para
todas as coisas que estão nele, pelo que não causa espanto que aquela pedra, que
era mantida no cimo do mastro, deixada em liberdade, caia para baixo junto ao pé do
mastro115. Além do mais, a rotação diurna é posta como movimento próprio e natural
do globo terrestre e, consequentemente, de todas as suas partes; e, por isso, aquela
pedra que está no alto da torre tem, como um instinto primário, de girar em torno do
centro da Terra em vinte e quatro horas, e este talento natural ela o exercita
eternamente, em qualquer estado em que esteja posta [30].
Galileu generaliza suas ideias contra-
indutivas, a respeito da queda dos corpos,
tanto para assuntos terrestres quanto para os
celestes, a fim de confirmar o movimento da
Terra.
Simplício – Então, não fizestes cem
provas e nem mesmo uma, e afirmais tão
francamente que ela é certa?
Salviati – Eu, sem experiência, estou certo de que o efeito seguir-se-á como vos digo, porque assim é necessário que siga; e acrescento que vós mesmos sabeis
muito bem que não pode acontecer
diferentemente, ainda que finjais, ou
simuleis fingir não o saber [32].
115 A inspiração de Galileu para o que hoje chamamos de argumento da torre provavelmente surgiu da
observação do mastro dos navios. Entretanto, acredita-se que esses experimentos (tanto o do navio, quanto o
da Torre de Pisa) não foram, de fato, realizados por Galileu ou seus contemporâneos, uma vez que se tratava
apenas de um “argumento” teórico [33].
Figura 7 – Rascunhos do movimento circular no
manuscrito de Galileu, Itália, 1610 [31].
15
Assim, Galileu introduz o princípio da inércia circular não por referência a um
experimento ou uma observação, mas por uma afirmação muito mais especulativa, e é por
meio disso que é alcançada a transição de uma cosmologia geostática para o ponto de vista
copernicano [34].
Questione e conclua...
6 – Quais foram os procedimentos contra-indutivos que Galileu utilizou na defesa do sistema
copernicano?
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7 – Olhando para o passado e analisando os argumentos a favor e contra o Heliocentrismo, quem você
julga que estava com a razão: Galileu ou os que utilizavam dos sentidos para negar que a Terra se movia?
Comente.
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16
UNIDADE II
A Palavra de Deus como argumento contra
a frágil teoria copernicana
Segundo Galileu,
todos os fenômenos terrestres, pelos quais se mantêm a estabilidade da Terra e a
mobilidade do Sol e do firmamento, devem aparecer-nos sob as mesmas aparências,
quando se supõe a mobilidade da Terra e a estabilidade do Sol [35].
Desde alguns séculos antes de Cristo, já havia a expectativa que as estrelas seriam
divinas e, assim, deveriam se comportar de maneira ordenada no céu [36]. No entanto, a
teoria copernicana não era a única e nem a mais geral visão cosmológica de sua época, seu
sucesso e coerência não significavam, por si só, uma correspondência à realidade [37]. Isso
fica claro quando analisamos os escritos de Galileu, e ele mesmo afirma que os argumentos
a respeito da imobilidade da Terra são muito coerentes e eficazes, enquanto que os
argumentos contrários, e com poucos adeptos, não estão de acordo com os sentidos:
Salviati – Mas o meu espanto, Sr. Sagredo, é muito diferente do vosso: vós vos
espantais que tão poucos sejam seguidores da opinião a respeito do movimento da
Terra; e eu fico estupefato de que se tenha até aqui encontrado quem a tenha
abraçado e seguido, nem posso admirar suficientemente a eminência do engenho
daqueles que a receberam e a consideraram verdadeira, e com a vivacidade de seu
intelecto fizeram tal força aos próprios sentidos, que tenham podido antepor o que
lhes mostravam as experiências sensíveis abertamente contrárias. Que as razões
contra a revolução diurna da Terra, já examinadas por vós, tenham grandíssima
aparência, já o vimos, e terem sido consideradas como concludentíssimas pelos
ptolomaicos, aristotélicos e todos os seus seguidores, é um argumento muito forte de
sua eficácia [38].
17
Apesar disso, Galileu exigia
que as ideias dos astrônomos
fizessem parte do conhecimento
público. Ele não pedia
simplesmente a liberdade para
publicar seus resultados; ele queria
impô-los aos demais, pois presumia
que os métodos restritos dos
astrônomos eram a maneira correta
de acessar a Realidade [39].
Nesse período, e até o século
XIX, os cientistas utilizavam a
bíblia para respaldar as ideias
científicas. A concordância com a
palavra de Deus, como estava
contida na Escritura Sagrada, era
uma condição-limite importante e aceita universalmente da pesquisa física. Era um padrão
comparável com o padrão “moderno” da precisão experimental [41].
Tal pressuposto, defendido por grandes cientistas como Copérnico, Kepler e Newton,
é baseado no fato das Escrituras serem uma importante condição delimitadora da existência
humana e, por tanto, da pesquisa [42]. Segundo Isaac Newton, por exemplo, a pesquisa
científica deve se basear em duas fontes: as Obras de Deus (o magnífico Universo) e a
Palavra de Deus (a Bíblia). Como acontece até os dias de hoje, a Igreja tem a Palavra de
Deus como fonte para as discussões dos interesses humanos, e faz dela uma condição-limite
da Realidade e da Verdade [43].
Em resposta ao monge carmelita Paolo Foscarini, o Cardeal Roberto Bellarmino, do
Colégio Romano, discute sobre a ideia hipotética de Galileu:
Figura 8 – Explicação do movimento aparente dos planetas a
partir da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de
Galileu, Itália, 1610 [40].
18
Parece-me que Vossa Reverendíssima e o
Senhor Galileu agem com prudência quando se
satisfazem em falar hipotética e não
absolutamente... Dizer que, na suposição do
movimento da Terra e da quiescência do Sol,
todas as aparências celestiais são mais bem
explicadas que pela teoria dos excêntricos e
epiciclos é falar com um excelente bom-senso e
não correr qualquer risco. Essa maneira de falar
é suficiente para um matemático. Mas querer
afirmar que o Sol, verdadeiramente, está no
centro do universo e só gira em torno de seu
próprio eixo sem ir do leste para o oeste é uma
atitude muito perigosa e calculada não só para
provocar todos os filósofos e teólogos
escolásticos como também para ferir nossa fé
sagrada ao contradizer as Escrituras [45].
A posição da Igreja era de que o conhecimento astronômico servia apenas para
explicar e prever, mas não poderia ser relacionado com a realidade, ou seja, o fato de um
modelo funcionar dentro de um campo estrito não mostrava, necessariamente, que ele tinha
acesso à verdade [46]. Além disso, a Igreja também usava a Bíblia para impor medidas
administrativas: em sua carta enviada a Galileu, o cardeal Bellarmino enfatiza esta condição:
“Como vocês estão cientes, o Concílio de Trento proíbe a interpretação das Escrituras de
uma maneira contrária à opinião comum dos papas” [47].
A Igreja Católica Romana afirmava ter os direitos exclusivos de exploração,
interpretação e aplicação das Sagradas Escrituras. Os leigos, de acordo com os
ensinamentos da Igreja, não tinham nem o conhecimento nem a autoridade para mexer
com as Escrituras e eram proibidos de fazê-lo. Isso não deveria causar surpresa a
ninguém familiarizado com os hábitos de instituições poderosas. A atitude da
Associação Médica Americana, por exemplo, com relação a praticantes leigos é tão
rígida como o era a atitude da Igreja para com intérpretes leigos – e tem as bênçãos
da lei. Especialistas, ou ignorantes que tenham adquirido as insígnias formais de uma
especialidade, sempre tentaram – e com frequência tiveram êxito nisso – assegurar
para si mesmos direitos exclusivos em domínios especiais. Qualquer crítica da rigidez
da Igreja Católica Romana também aplica-se a seus sucessores modernos, tanto
científico quanto ligados à ciência [48].
Figura 9 – Retrato de São Roberto Bellarmino,
óleo sobre tela, 1923, Roma, Palácio do Santo
Ofício, sala de recepção, lado norte [44].
19
Galileu, ciente das consequências, foi instruído a ensinar a teoria copernicana como
uma hipótese, sendo proibido, portanto, de ensiná-la como uma verdade. Pois a Igreja não
estava disposta a mudar somente porque alguém havia produzido alguns argumentos vagos.
Queria prova – uma prova científica em assuntos científicos. Mas ainda não havia nenhuma
prova da doutrina copernicana [49].
Os especialistas da Igreja concluíram que a teoria de Galileu, a respeito da mobilidade
da Terra, era “insensata e absurda em sua filosofia”, o que nos dias de hoje equivaleria dizer
que a teoria não era científica. Essa análise foi feita sem referência à fé ou à doutrina da
Igreja, sendo baseada exclusivamente na situação científica da época. Tycho Brahe e outros
cientistas concordavam com a opinião da Igreja, uma vez que ela estava baseada com os
fatos e padrões da época. Além disso, os especialistas da Igreja pronunciaram que a doutrina
copernicana era “formalmente herética”, no que diz respeito às implicações éticas/sociais.
Assim, ao ser associada à Realidade, ela contradizia a Palavra de Deus, e não era feita de
maneira inadvertida, mas com plena consciência da situação [50].
O suposto movimento da Terra defendido por Galileu, sem sombra de dúvidas,
contradizia a Palavra de Deus, uma vez que no capítulo 10 versículo 12 do livro de Josué
(Antigo Testamento) este ordena “Sol, pare sobre Gibeom!” e “o Sol parou no meio do céu
Questione e comente...
8 – Nessa época, vários cientistas utilizavam a bíblia e os ensinamentos da Igreja para estruturarem suas
ideias. Galileu, apesar de ser um cristão devoto, contraria tudo isso, e mais: inventa uma nova mecânica
terrestre e celeste contraditória com os “fatos”. Para você, o que representa um fato científico? Tais fatos
são fixos / absolutos ou podem mudar em determinada época ou em diferentes contextos sociais?
Comente.
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20
e por quase um dia inteiro não se pôs”. Ora, se o Sol parou, então é ele quem se movimenta
e, consequentemente, a Terra se encontra em repouso (tal qual podemos perceber com
nossos sentidos).
Entretanto, Galileu reivindicava a liberdade e autonomia da pesquisa no domínio da
natureza. Sua crítica não era contra a bíblia, mas contra a interpretação literal dela. Ele
defende a justificativa de que não existe contradição entre o texto sagrado e as leis da
natureza, mas que as pessoas erram em fazer interpretações literais. Suas ideias, logo
começam a ganhar repercussão e, aos olhos da maioria dos teólogos, se tornam uma ameaça
às suas doutrinas [51].
A igreja exigiu de Galileu, tanto por razões científicas quanto éticas, que ele aceitasse
a interpretação da hipótese. Isso não aconteceu e ele foi julgado por reinterpretar a Bíblia
sem a autorização da Igreja. Considerando as dificuldades com que o modelo copernicano
se defrontava quando considerado uma descrição da realidade, temos de admitir que a lógica
estava do lado de... Bellarmino e não do lado de Galileu [52].
O primeiro julgamento de Galileu ocorreu em 1616, após a doutrina copernicana ser
analisada e criticada. Galileu não foi preso e nem condenado, porém recebeu ordens
proibindo-o de ensinar a doutrina de Copérnico como uma verdade. Entre 1632 e 1633 ele
foi julgado novamente, mas, dessa vez, foi considerada a não obediência de Galileu a
respeito da ordem dada no primeiro julgamento, pelo fato dele ter enganado os inquisidores,
fazendo-os acreditar que a ordem nunca tinha sido dada [53].
Figura 10 – Galileu perante o Santo Ofício [54].
21
Sete anos após o primeiro julgamento (em 1623), o cardeal italiano de 55 anos
chamado Maffeo Barberini foi eleito o Papa Urbano VIII. Assim como Galileu, ele havia
nascido e se criado em Florença e frequentado a Universidade de Pisa, onde Galileu estudara
medicina e Urbano, direito. Urbano havia, inclusive, intercedido em favor de Galileu durante
seu primeiro julgamento, e advertido Galileu que sua defesa ao Universo heliocêntrico
poderia lhe trazer problemas – e que não deveria apresentá-la como uma realidade, nem
mesmo em pensamento. O papa se considerava amigo e admirador de Galileu. Este teve o
privilégio de ser recebido em seis audiências papais, cada uma durando mais de uma hora.
Essa relação quase íntima com o papa fez Galileu pensar que poderia escrever o Diálogo
com segurança – e assim o fez. Em sua obra de 1632, Galileu apresenta um diálogo entre
três participantes: Salviati, Sagredo e Simplício. Os dois primeiros homenageiam amigos
falecidos de Galileu, sendo Salviati seu porta-voz e Sagredo um moderador inteligente e
imparcial, uma pessoa de alta classe e homem do mundo. Já Simplício representa uma
mistura dos argumentos de todos os oponentes que Galileu havia enfrentado na construção
de suas ideias [55].
Para tornar seus argumentos sólidos e eficientes, Galileu usa os argumentos “tolos”
de Simplício como contraste. E isso funciona bem, mas ao final de sua obra ele faz Simplício
resumir a posição da Igreja Católica acerca da impossibilidade de se obter genuíno
conhecimento do mundo físico, ao passo de que seria uma ousadia extravagante para
qualquer um limitar e confinar o poder e sabedoria divinos a uma particular conjetura
pessoal (se referindo ao sistema copernicano) [56].
Esse argumento de Simplício fora originalmente entoado pelo próprio papa, e os
inimigos de Galileu conseguiram convencer Urbano que o seu objetivo era de ridicularizar
a Igreja, e pior, ridicularizar e humilhar o próprio papa. Urbano ficou furioso quando viu o
resultado. Tanto é que, mesmo após a morte de Galileu em 1642, ele recusou-se a permitir
que o grão-duque de Toscana realizasse um funeral adequado para Galileu e construísse um
monumento sobre sua tumba na Igreja da Santa Cruz em Florença. Foi, então, que
No dia 22 de junho de 1633, Galileu Galilei foi levado a julgamento no quartel
general da Inquisição em Roma. Todo o magnificente poderio da Igreja Católica
Romana tinha sido aparentemente perfilado contra ele. Sob ameaça de tortura,
encarceramento e mesmo morte na fogueira, ele foi forçado, de joelhos, a "abjurar,
amaldiçoar e detestar" toda uma vida de brilhante e devotado labor intelectual.
22
Confrontado com uma "veemente suspeita de heresia", ele teve de renunciar, "com um
coração sincero e fé genuína" à sua crença de que o Sol, e não a Terra, é o centro
do universo, e que a Terra move-se em torno do Sol, e não vice-versa. Como Galileu
concordou com tudo isso - pelo menos verbalmente - as ameaças de Urbano não
precisaram ir adiante. Como uma de suas punições, por exemplo, ele deveria recitar
os sete salmos penitenciais uma vez por semana durante três anos. Mas foi também
posto em prisão domiciliar pelo resto de sua vida. E, finalmente, seu livro Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano (1632), que tinha
estado no centro do julgamento, foi proibido. Isto é, foi acrescentado à lista de livros
banidos, o Index librorum prohibitorum, mantido pela Inquisição da Igreja Católica
[56].
Esse procedimento mais direto e racional da Igreja não era imutável. Foi isso que
disse o cardeal Bellarmino:
Se houvesse alguma prova real que o Sol está no centro do Universo e de que a
Terra está no terceiro céu girando ao redor do Sol, então teríamos de agir com
grande prudência ao explicar as passagens da Escritura que parecem ensinar o
contrário e de preferência admitir que não as tínhamos entendido em vez de declarar
Figura 11 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633 [57].
23
como falsa uma opinião comprovadamente verdadeira. Quanto a mim, não acreditarei
que essas provas existem até que elas me sejam mostradas. Tampouco é uma prova
dizer que, se supusermos que o Sol está no centro do Universo e a Terra no terceiro
céu, tudo funciona da mesma maneira como se tudo fosse o inverso. No caso de
dúvida não devemos abandonar a interpretação do texto sagrado como dada pelos
Papas.
A doutrina da Igreja, diz Bellarmino aqui, é uma condição-limite para a interpretação
de resultados científicos. Mas não é uma condição-limite absoluta. A pesquisa pode
movimentá-la [58].
É provável que muitos de nós tivéssemos apoiado a decisão da Igreja e concordado
com o cardeal Bellarmino a respeito da fragilidade do ponto de vista copernicano, cujo
argumento mais poderoso era a harmonia criada pelo ponto de vista heliocêntrico, ou seja,
pela primeira vez havia um sistema astronômico, e não apenas um conjunto de instrumentos
de cálculo [59].
Argumente...
9 – Como você julga a posição da Igreja, à época, envolvendo a discussão sobre os sistemas de mundo?
Comente.
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24
UNIDADE III
O telescópio fornece um retrato verdadeiro
do céu?
A harmonia copernicana é refutada por meio da observação. O argumento da torre é
invertido e as interpretações naturais são substituídas por interpretações contra-indutivas.
Propagandas e truques psicológicos substituem argumentos frutos da experiência. Hipóteses
auxiliares são inseridas para afirmar o movimento da Terra. Até então, nenhuma evidência
independente surge em defesa da nova cosmologia. Os argumentos contrários a ela são
cientificamente e teologicamente corretos. Há uma tentativa de substituir uma teoria muito
abrangente por outra restrita que possui, inclusive, elementos especulativos. Não é apontada
nenhuma prova do movimento da Terra e não há nada que refutaria o ponto de vista
geocêntrico, mas que seria explicado pelo ponto de vista copernicano [60]. Galileu tenta
construir uma visão de mundo inteiramente nova, mas não consegue fazê-lo só, ele precisa
do auxílio de um “sentido superior e mais eficaz”.
Além das interpretações naturais, Galileu altera também as sensações que parecem
ameaçar a teoria de Copérnico. Ele admite que haja tais sensações, louva Copérnico
por tê-las ignorado e afirma tê-las eliminado com o auxílio do telescópio. Contudo,
não oferece razões teóricas pelas quais se deveria esperar que o telescópio
fornecesse um retrato verdadeiro do céu [61].
25
Há vários relatos da época, inclusive do próprio Galileu, evidenciando a importância
e os benefícios desse instrumento quando usado em terra ou mar. Sua aplicação às estrelas,
contudo, era uma questão inteiramente distinta [62]
As primeiras observações telescópicas do céu são indistintas, indeterminadas,
contraditórias e entram em conflito com o que qualquer pessoa pode ver a olho nu. É sabido
que as observações telescópicas terrestres indicavam, até certo ponto, propriedades estáveis
e objetivas das coisas vistas. Como os nossos sentidos estão familiarizados com a aparência
dos objetos terrestres, fica fácil distinguir o que é verdadeiro e o que é distorcido ou
desfigurado por franjas coloridas, e até mesmo outros elementos como plano de fundo,
superposição, tamanho relativo, etc. Entretanto, não conhecemos de perto as estrelas e os
planetas. Até mesmo a aparência da Lua nos dá uma ideia falsa de sua distância e seu
tamanho. Logo, não podemos usar a nossa memória para separar o que provêm do próprio
objeto (celeste) das contribuições do telescópio [64].
É bem verdade que o telescópio produzia resultados fantásticos na Terra, entretanto,
ele se deparava com dificuldades quando utilizado para observações celestes. Ele exibia
fenômenos hipotéticos e contraditórios, e alguns de seus resultados podiam ser refutados por
um simples olhar a olho nu. Apenas uma nova teoria da visão telescópica podia trazer ordem
ao caos e separar aparência de realidade [65].
Figura 12 – Galileu e o telescópio [63].
26
De acordo com a teoria óptica predominante na época, proposta pelo alemão Johannes
Kepler (1571-1630), a imagem de um objeto é recebida pelos nossos olhos através das leis
de reflexão e refração, pela intersecção retrógrada da trajetória dos raios que
emergem/refletem do objeto até nossos olhos, cabendo à mente do observador utilizar
somente a parte final dessa luz. Essa ideia, que até certo ponto está correta, não é válida para
lentes (como as do telescópio) e nem leva em consideração os efeitos atmosféricos. Assim,
a teoria kepleriana da visão, que é refutada pelo telescópio (ou que o refuta), não pode ser
utilizada como argumento por Galileu, e a visão telescópica do céu permanece um mistério
[66].
Agora uma pequena pausa na leitura!
10 – Quais características das imagens telescópicas você conseguiu perceber quando olhou para os
objetos aqui na Terra? Existiam defeitos, manchas ou aberrações nessas imagens? E para os objetos no
céu?
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11 – Ao apontar o telescópio para o céu, Galileu percebeu imagens contraditórias com o que era visto a
olho nu e que não correspondiam as explicações teóricas de sua época. Você acha que ele agiu
corretamente ao confiar nesse instrumento confuso? Você acha que isso acontece ainda hoje com os
cientistas? Comente.
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A ausência de
observações satisfatórias
mostravam dois objetos
acompanhantes de
Saturno (foi assim que os
anéis foram vistos na
época); duplicação de
imagens dos astros;
mudança da posição
lateral da imagem de
acordo com a posição do
olho; franjas coloridas;
presença ou ausência das
estrelas que acompanham Júpiter (suas quatro luas, hoje chamadas de “luas galileanas”);
uma Lua repleta de montanhas na parte interna, mas perfeitamente lisa na periferia, e isso a
despeito do fato de que a periferia da Lua mudava com a sua rotação; além de algumas
crateras que não existem e a observação de uma atmosfera lunar; o que revela a pobreza do
que poderia ser visualizado pelo telescópio, agravado ainda pela velocidade com que novos
fenômenos foram descobertos e divulgados [68].
Entretanto, o dispositivo aperfeiçoado
por Galileu era considerado moderno, e
provavelmente o melhor de sua época
(1610)116. Inicialmente, seu interesse estava
voltado para as questões militares e não
astronômicas. Quando Galileu ouviu falar
nas lunetas holandesas, apressou-se para
estudá-las e melhorá-las, a fim de obter
vantagem para Veneza sobre os turcos,
podendo observar os navios inimigos cerca
116 Vale destacar que o instrumento óptico de Galileu e as imagens telescópicas celestes não surgiram após
as construções teóricas do Heliocentrismo feitas por ele, mas tiveram uma construção simultânea.
Figura 13 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do
telescópio, Roma, 1623 [67].
Figura 14 – Desenho da Lua vista por Galileu
através do telescópio, 1610 [69].
28
de duas horas antes de serem vistos a olho nu [70]. Ao melhorar seu telescópio (refrator),
Galileu conseguia uma ampliação de quase dez vezes117. Apesar disso, ao olhar pelo
instrumento óptico, as pessoas viam coisas diferentes e tiravam conclusões diferentes a
respeito do que era visto, ainda que utilizassem o mesmo telescópio.
As observações telescópicas de Galileu se contradiziam, nem todas as pessoas
podiam repeti-las, aqueles que as repetiam (como Kepler, por exemplo) conseguiram
resultados confusos e não existia qualquer teoria para separar “fantasmas” de fenômenos
verdadeiros [71].
Sagredo – Portanto, devemos
ainda esperar outras objeções
vigorosas contra o movimento
anual da Terra?
Salviati – Sim; e tão evidentes e
sensíveis que, se um sentido superior e mais excelente que os
comuns e naturais não estivesse
acompanhado da razão, duvido
grandemente de que eu mesmo não
tivesse sido ainda mais reticente
acerca do sistema copernicano, do
que o sou, depois de ter sido
iluminado por uma luz mais clara que a habitual.
Sagredo – Agora, portanto, Sr.
Salviati, vamos, como se diz, direto
ao ponto, porque cada palavra que
se gasta em outro argumento
parece-me desperdiçada.
Salviati – Aqui estou para servir-
vos [73].
117 O que é bem abaixo se comparado aos telescópios comuns de hoje – cuja ampliação é de 90 a 120 vezes
para os refratores e de 200 a 250 vezes para os refletores.
Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano
em 1609 [72].
29
Apesar das objeções, Galileu utiliza seu instrumento como “prova” de seus
argumentos: em resposta aos escolásticos que afirmavam que um corpo não poderia ter dois
movimentos ao mesmo tempo, ele exibiu os satélites de Júpiter (que orbitavam o planeta
enquanto ele fazia sua revolução anual); quanto à tradicional alegação de que os corpos
celestes seriam perfeitos, ele utiliza o telescópio para afirmar que o Sol tem manchas e que
a Lua não é perfeitamente lisa. Quanto à objeção de que a teoria copernicana requereria que
Vênus exibisse fases (o que não poderia ser detectada a olho nu), Galileu as confirmou com
as observações telescópicas das fases de Vênus [74].
Além disso, ao olhar
Júpiter pelo telescópio, podia-se
ver uma espécie de sistema solar
em miniatura. Suas luas recém-
descobertas inspiram um certo
desconforto aos aristotélicos,
uma vez que elas contrariavam
um argumento geocêntrico de
que a Terra não poderia orbitar
o Sol sem perder a Lua.
Assim, essa descoberta tornava a
concepção copernicana cada vez mais
plausível, e, talvez por isso, muitos preferiram
não rever tal argumento, mas, simplesmente,
desconsideraram a possibilidade da existência
dos satélites de Júpiter [76].
Figura 16 – Esquema das fases de Vênus nos sistemas de mundo [75].
Figura 17 – As luas de Júpiter no manuscrito de
Galileu, Itália, 1610 [77].
30
Galileu, então, certo de poder convencer seus adversários a desfrutarem do sentido
superior e mais eficaz do telescópio, se reúne com eles para mostrar seu aparelho:
Por meio desse instrumento, vimos tão distintamente o palácio do ilustríssimo duque
Altemps, nas Colinas Toscanas, que facilmente contamos todas as suas janelas,
mesmo as menores; e a distância é de 16 milhas118.
Na quinta-feira à noite, na propriedade do monsenhor Malvasia, do lado de fora do
portão, lugar alto e aberto, foi-lhe oferecido um banquete por Frederico Cesi, o
marquês de Monticelli. Na reunião estiveram Galileu, cardeais da igreja, professores
da universidade, matemáticos, e outras pessoas cultas. Alguns deles foram até lá
expressamente para realizar essa observação de “quatro outras estrelas, ou planetas,
que são satélites de Júpiter”, bem como “dois acompanhantes de Saturno”; porém,
mesmo tendo permanecido até uma hora da manhã, não chegaram a um acordo em suas
opiniões [79].
Não dormi nada nos dias 24 e 25 de abril, nem de dia nem de noite, mas testei de mil
maneiras o instrumento de Galileu, tanto em coisas aqui de baixo quanto naquelas lá
118 Descrição de Julius Caesar Lagalla, professor de filosofia em Roma, da reunião realizada na cidade de Espirito Santo,
em 16 de abril de 1611 [78].
Reflita e anote.
12 – Galileu confiava em seu instrumento e utilizou-o para investigar assuntos desconhecidos: as coisas
do céu. Quais foram as características dos astros, percebidas pelas imagens telescópicas, que Galileu
utilizou para refutar o Geocentrismo e, consequentemente, apoiar o modelo heliocêntrico de Nicolau
Copérnico?
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em cima. Aqui embaixo, ele funciona maravilhosamente; nos céus, ele nos engana, pois
algumas estrelas fixas são vistas duplicadamente. Tenho como testemunhas homens
eminentes e nobres doutores, e todos admitiram que o instrumento engana. Isso
silenciou Galileu e, no dia 26, ele partiu tristemente, de manhã cedo, nem mesmo tendo
agradecido a Magini por seu esplêndido banquete119.
Dispostos em diferentes épocas e com diferentes pessoas, os relatos acima
evidenciam que a tarefa de Galileu não foi fácil e estava longe de ser cumprida. A doutrina
copernicana precisaria de certo tempo para reunir fatos em favor de uma nova cosmologia,
o que se fazia necessária era uma nova dinâmica que explicasse tanto os movimentos
terrestres quanto os celestes... mas todas essas ciências ainda estavam ocultas no futuro [80].
Ele não alcançou nada, pois mais de vinte homens cultos estavam presentes e,
contudo, ninguém viu distintamente os novos planetas; ele dificilmente será capaz de
continuar afirmando sua existência120.
119 Escrito por Horky, discípulo de Kepler, em 1610, na cidade romana de Bolonha [82].
120 Magini escreve carta a Kepler em 26 de maio de 1610 [83].
Figura 18 – Galileu apresenta o telescópio ao público [81].
32
Galileu, entretanto, não desistiu.
As medidas da variação do
brilho aparente de Vênus e Marte,
vistos à olho nu, contradizem a
teoria copernicana no que diz
respeito ao suposto movimento de
translação da Terra. De fato, no
caso da Terra estar no centro do
sistema planetário, pouca deveria
ser a mudança vista no brilho
desses planetas ao realizarem suas
órbitas ao redor da Terra. Bem
como era visto e comprovado por
muitos astrônomos da época,
inclusive o próprio Galileu.
Figura 19 – Galileo, pintura a óleo, Jean Huens, 1984 [84].
Reflita e argumente.
13 – Se o telescópio poderia não produzir um retrato verdadeiro do céu, e se as pessoas discordavam
daquilo que era visualizado por ele, por que será que Galileu insistia em utilizá-lo em favor do
Heliocentrismo? Você considera que essa atitude de Galileu é própria de um cientista?
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Em contrapartida, há alguns fenômenos telescópicos que são claramente
copernicanos: a variação telescópica no brilho dos planetas está mais estreitamente de
acordo com Copérnico do que com os resultados da observação a olho nu. Visto através do
telescópio, Marte e Vênus de fato mudam como deveriam mudar segundo a perspectiva
copernicana [85].
Ou seja, visto através do
telescópio, os brilhos de Vênus e Marte
mudavam bastante, como de fato
deveriam mudar, de acordo com o modelo
heliocêntrico. Note que, durante a
revolução anual da Terra, há um
determinado momento em que ela estará
mais próxima de Vênus e/ou de Marte
(como pode ser notado no tradicional
alinhamento dos planetas); e há, no outro
extremo, um momento caracterizado pela
maior distância possível desses planetas.
De forma que, numa perspectiva
heliocêntrica, quando o planeta estivesse
mais próximo à Terra, o seu brilho seria maior, e quando estivesse mais distante (ou seja, do
outro lado do Sol), seu brilho seria menor. E isso era, de fato, o visto pelo telescópio.
Sagredo – Oh! Nicolau Copérnico, que prazer terias sentido ao ver confirmada com
experiências tão evidentes esta parte do teu sistema!
Salviati – Sim, o vemos ter continuado a afirmar, guiado pela razão, aquilo que as
experiências sensíveis mostravam o contrário: porque eu não posso deixar de
surpreender-me que ele tenha constantemente persistido em dizer que Vênus gira em
torno do Sol e está afastado de nós mais de seis vezes num caso que noutro, embora
se mostre igual a si mesmo, quando deveria mostrar-se quarenta vezes maior.
Sagredo – Acredito que em Júpiter, Saturno e Mercúrio devemos ver também as
diferenças de seus tamanhos aparentes corresponderem exatamente às variações de
suas distâncias [87].
Figura 20 – Rascunhos das distâncias dos planetas
durante a revolução anual no manuscrito de Galileu,
Itália, 1610 [86].
34
Assim, os distanciamentos desses planetas à Terra, devido à translação dos mesmos
ao redor do Sol, causariam, como de fato causam, uma grande mudança em seus brilhos
vistos através do telescópio.
Deste modo, a tática de Galileu é apresentar as observações telescópicas em favor da
teoria copernicana para sustentar a confiabilidade de seu instrumento. Ao utilizar, de forma
conjunta, uma teoria refutada pela experiência e um instrumento sem confiabilidade, Galileu
consegue aumentar a credibilidade tanto da teoria quanto do instrumento [88].
Galileu introduz esses fenômenos como evidência independente para Copérnico,
embora a situação seja antes a de uma concepção refutada – a ideia de que
fenômenos telescópicos são retratos fiéis do céu. Mas essa mudança está em
harmonia com as predições de Copérnico. É essa harmonia e não um profundo
conhecimento de cosmologia e óptica que, para Galileu, comprova Copérnico e a veracidade do telescópio em assuntos terrestres tanto quanto em assuntos celestes.
E é sobre essa harmonia que ele constrói uma concepção inteiramente nova do
Universo [89].
Conclua e desenhe...
14 – Com base num esquema, explique como a variação do brilho planetário pode ser relacionada com
as distâncias dos planetas à Terra, a partir dos dois sistemas de mundo.
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Sistema geocêntrico Sistema heliocêntrico
35
O estudo do personagem histórico Galileu Galilei buscou analisar as características
do desenvolvimento científico evidenciadas pelo filósofo da ciência Paul Feyerabend.
Notamos como Galileu, em sua busca por uma nova interpretação do Universo, age de forma
anarquista ao romper com os padrões do pensamento filosófico, científico e teológico de sua
época.
Utilizando a contra-indução, procedimentos irracionais, argumentos contraditórios
com a experiência, propagandas e truques psicológicos, Galileu cria uma nova cosmologia
e se torna um dos maiores cientistas que já existiu. Ele também paga o preço por sua rebeldia
e subversão, mas deixa o seu legado para a história da humanidade.
Assim, nossa compreensão caminha numa estrada sem fim, buscando uma ciência
que também é cultura. E como bem disse Galileu: “A verdade é filha do tempo, mas a dúvida
é o começo da sabedoria”.
15 – A partir do estudo do caso histórico de Galileu, construa uma reflexão pessoal sobre o papel da
ciência diante da natureza e as suas consequências para a sociedade.
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REFERÊNCIAS
[1] Fonte: Medium Brasil
<medium.com/brasil/carta-a-paul-
feyerabend-18f8da84eb76>.
[2] DUTRA, 2010 apud ROZENTALSKI,
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[3] HELLMAN, Hal. Grandes debates da
ciência. Dez das maiores contendas de
todos os tempos. SP, Editora UNESP,
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[4] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
<wdl.org/pt/item/4184/>.
[5] SILVA, Cibelle Celestino. A natureza
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[6] FEYERABEND, Paul K. A Ciência em
uma sociedade livre. São Paulo: UNESP,
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[7] Fonte: Essas e Outras – O modelo
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heliocentrismo-e-big-bang-teorias-sobre-o-
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[8] SILVA, 2006, p. 22-23.
[9] DAMASIO, Felipe. O início da
revolução científica. Revista Brasileira de
Ensino de Física, v. 33, n. 3, p. 3602-3,
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[10] FEYERABEND, Paul K. Contra o
método. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2011b
(p. 181, 187).
[11] Fonte: Biblioteca Digital Mundial.
Disponível em: <wdl.org/pt/item/3164/>.
[12] SILVA, 2006, p. 25.
[13] FEYERABEND, 2011a, p. 66-67.
[14] GALILEI, Galileu. Diálogo sobre os
dois máximos sistemas do mundo
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[15] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
<wdl.org/pt/item/4240/>.
[16] OLIVEIRA, D. G. S. A filosofia de
Feyerabend: nem relativista, nem
anarquista. Dissertação. Salvador, 2011 (p.
47-48).
[17] FEYERABEND, 2011b, p. 86, 90.
[18] GALILEI, 2011, p. 335.
[19] GALILEI, 2011, p. 253.
[20] FEYERABEND, 2011b, p. 93, 99
[21] GALILEI, 2011, p. 328-329, 336.
[22] OLIVEIRA, 2011, p. 44.
[23] FEYERABEND, 2011b, p. 103, 108.
[24] FEYERABEND, 2011b, p. 109.
[25] FEYERABEND, 2011b, p. 106, 109.
[26] FEYERABEND, Paul K. Adeus à
razão. São Paulo: UNESP, 2010 (p. 339-
341).
[27] LOPES, Francisco Adaécio.
Figuramento e Ensino de Artes &
Ciências. Tese (Doutorado), UFRN, 2016
(p. 32).
[28] OLIVEIRA, 2011, p. 52.
[29] FEYERABEND, 2010, p. 339.
[30] GALILEI, 2011, p. 220, 223-224.
[31] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.
[32] GALILEI, 2011, p. 226.
[33] GALILEI, 2011, p. 643, nota 77.
[34] FEYERABEND, 2011b, p. 110-111.
[35] GALILEI, 2011, p. 493.
[36] FEYERABEND, 2011b, p. 200.
[37] FEYERABEND, 2010, p. 299.
[38] GALILEI, 2011, p. 410.
[39] FEYERABEND, 2010, p. 297.
[40] Fonte: Digital Mundial
<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.
[41] FEYERABEND, 2011a, p. 57.
[42] FEYERABEND, 2011b, p. 174.
[43] FEYERABEND, 2010, p. 302-303.
[44] REDONDI, Pietro. Galileu Herético.
Tradução: Júlia Mainardi. São Paulo:
Companhia Das Letras, 1991 (p. 152).
[45] FEYERABEND, 2010, p. 298.
[46] FEYERABEND, 2010, p. 298.
[47] FEYERABEND, 2010, p. 303.
[48] FEYERABEND, 2011b, p. 175.
[49] FEYERABEND, 2011b, p. 177.
[50] FEYERABEND, 2011b, p. 173-174.
[51] LINO, Alex. As modificações na
carta de Galileu destinada a Benedetto
Castelli de dezembro 1613. Cad. Bras. de
Ens. de Física, v. 37, n. 1, p. 219-241,
2020 (p. 223).
[52] FEYERABEND, 2011b, p. 178-179.
[53] FEYERABEND, 2011b, p. 172.
[54] Fonte: Josse / Leemage Getty Images
<quo.es/ser-humano/a26301943/juicios-
importantes-proces/>.
[55] HELLMAN, 1991, p. 23, 32-33.
[56] HELLMAN, 1991, p. 35-36, 21.
[57] Fonte: Blog Pensar Refletir e Sentir
<pensarreflectiresentir.blogspot.com/2016/
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[58] FEYERABEND, 2010, p. 305.
[59] FEYERABEND, 2010, p. 306-307.
[60] FEYERABEND, 2011b, p. 113-117,
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[61] FEYERABEND, 2011b, p. 113.
[62] FEYERABEND, 2011b, p. 121.
[63] Fonte: Made for minds <dw.com/pt-
br/nascido-h%C3%A1-450-anos-galileu-
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[64] FEYERABEND, 2011b, p. 123-124.
[65] FEYERABEND, 2011b, p. 138.
[66] FEYERABEND, 2011b, p. 138-139.
[67] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
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[68] FEYERABEND, 2011b, p. 125-130.
[69] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
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us+Veneza+1610>.
[70] VANNUCCHI, A. I. História e
Filosofia da Ciência: da teoria para a sala
de aula. Dissertação (Mestrado em Ensino
de Ciências - modalidade Física) - Instituto
de Física e Faculdade de Educação,
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[71] FEYERABEND, 2010, p. 341.
[72] Fonte: Gabriele Vanin
<gabrielevanin.it/S.%20Marco%201609.ht
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[73] GALILEI, 2011, p. 410-411.
[74] HELLMAN, 1999, p. 29.
[75] Fonte: Instituto de Física – UFRGS
<if.ufrgs.br/fis02001/aulas/aula_tykega.ht
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[76] VANNUCCHI, 1996, p. 56-57.
[77] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.
[78] Rosen, 1947, p. 54 apud
FEYERABEND, 2011b, p. 120-121.
[79] ROSEN, 1947, p. 31 apud
FEYERABEND, 2011b, p. 121 (nota 12),
125.
[80] FEYERABEND, 2011b, p. 113.
[81] Fonte: GETTY IMAGES
<vix.com/es/btg/curiosidades/2011/09/26/
vida-de-galileo-galilei-un-genio-
reprimido>.
[82] GALILEI, Opere, X, p. 342 apud
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[83] GALILEI, Opere, III apud
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[84] Fonte: Christie's. Disponível em:
<christies.com/lotfinder/Lot/jean-leon-
huens-1981-1984-galileo-5636151-
details.aspx>.
[85] FEYERABEND, 2011b, p. 141.
[86] Fonte: Biblioteca Digital Mundial
<wdl.org/pt/item/4183/#q=galileu>.
[87] GALILEI, 2011, p. 421.
[88] ZYLBERSZTAJN, Arden. Galileu –
um cientista e várias versões. Caderno
Catarinense de Ensino de Física,
Florianópolis, v. 5, n. Especial: p. 36-48,
1988 (p. 45).
[89] FEYERABEND, 2011b, p. 141-142.
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