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    UM OLHAR DIFERENTE SOBRE NIETZSCHE

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    A partir daí, o meu mundo deixou de ser tão exíguo e se tornouamplo, porém sem mudanças em sua essência, ou seja, na verdade,ele não era de forma alguma pequeno, mas a minha época e suaflacidez sem cor fez com que ele parecesse assim, e foi a Filosofiaque fez com que eu descobrisse isso, impedindo-me de isolar-memais ainda de mim mesmo para tentar uma aproximação com osoutros, os quais, naquele momento de descoberta e de alinhamentodo eixo, se tornaram apenas e tão-somente os “outros”.

    §2. —  Minha relação com Nietzsche

    Ainda nessa época, li algumas coisas acerca de Nietzsche e fiqueicom uma péssima impressão dele: não me interessei por suafilosofia por um bom tempo. Passado alguns meses, porém, resolviler alguma coisa dele, escrito por sua própria pena, e então levei para casa um livro da coleção Os pensadores. Foi nesse momento,especificamente nesse momento, que “aprendi” a não maisacreditar em todos os intérpretes e comentaristas de quaisquerespécies: a impressão que tive de Nietzsche foi bastante diversa

    daquela que adquiri inicialmente lendo os distorciaristas  de suafilosofia.

     Numa lida rápida do livro, assim como com Schopenhauer, jáencontrei muitas idéias minhas ali escritas ou pelo menos algo parecido com elas; interessou-me bastante, e esta foi a porta que permitiu com que eu realmente me aproximasse de Nietzsche,

    vindo a comprar vários de seus livros numa época posterior, umaforismo de  Aurora, cujo título era algo como “ Do conhecimentodaquele que sofre” e onde Nietzsche expunha e sustenta a sua tese,idêntica a de Schopenhauer, de que existe uma poderosa relaçãoentre o conhecimento e o sofrimento (na época, como já havia dito,eu tinha esse mesmo pensamento, mas depois mudei). Dessemomento em diante comecei a comprar os livros de Nietzsche:adquiri primeiro  A Gaia Ciência, cujo método de exposição me

    incitou a escrever o meu primeiro livro; e recentemente, os últimos

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    livros que adquiri foram O Crepúsculo dos Ídolos e a Genealogiada Moral .

    Quando da leitura do Crepúsculo dos Ídolos, fiquei, inicialmente,alegre, e, depois, um pouco entristecido: em alguns trechos, como por exemplo no capítulo intitulado Os Quatro Grandes Erros,encontrei muitas idéias idênticas às minhas e que, inclusive, jáhavia exposto no meu livro —  a confusão do efeito com a causa; ailusão de certas causas que aparecem em nossa consciência, masque realmente não são as verdadeiras causas (quanto a isso,enquanto Nietzsche escreveu de uma forma genérica, eu escrevi

    algo parecido —  pois nossas idéias não são exatamente as mesmasacerca disso  — , porém me referindo essencialmente ao estado dedepressão). Enfim, fiquei alegre por não estar a defender tais idéiassozinho, e triste por ver que algumas de minhas idéias já tinhamsido pensadas por outro pensador (eu era pretensioso demais: agiacomo se muitos dos meus pensamentos jamais tivessem estado namente de outra pessoa; aliás, é bom que se diga: qualquer pensamento que temos, de alguma forma, já foi pensado por

    alguém em outra época ou mundo).

    Minha relação com Nietzsche, portanto e conquanto discorde deinúmeras idéias dele, tornou-se bastante próxima, isto nãoimpedindo, no entanto, que eu viesse a escrever algumas críticasdirigidas para o nosso alemão.

    §3. — 

     Minha autoridade como analista

    Uma pergunta que poderia ser feita, agora, era a seguinte: partindodo princípio de que idéias idênticas são frutos de reações idênticas,e de que estas, por sua vez, são frutos de uma personalidade e devivências idênticas, isso me daria mais autoridade para analisar Nietzsche psicologicamente? Mesmo admitindo serem verdadeirasas suposições iniciais, a resposta mais sensata a dar seria mesmo o

     Não.

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     No momento em que eu quis me admitir parecido com Nietzsche, pensei logo, quase dormindo e sem muita consciência, em duasquestões básicas: primeiro, que a sua filosofia é altamenteinterpretativa; e segundo, que sempre tendemos a interpretar aquiloque é interpretativo à nossa maneira, de uma forma que nosconvenha. Em virtude disso, não posso afirmar, por exemplo, quea teoria de Nietzsche sobre a determinação da consciência, oumelhor, sobre sua relação com a atividade instintiva tenha tido suaorigem em experiências de grande variação de humor e alternânciaentre estados depressivos e saudáveis, como foi o que aconteceucomigo: não posso afirmar porque, de certa forma, sempre temos

    um desejo profundo de encontrarmos alguém parecido conosco eque seja bem-sucedido (no caso de Nietzsche, ele é consideradoum dos maiores pensadores da história), isso me levando aimaginar que talvez eu esteja interpretando as idéias de Nietzschede uma forma bastante diversa da interpretação que ele queria quefosse dada a tais idéias e criando causas imaginárias e muito longedas reais para elas. E mesmo que isso não fosse assim e admitindonovamente a veracidade das suposições do parágrafo anterior,

    ainda eu poderia dizer que conheço muito pouco de mim mesmo eque esse pouco conhecimento que tenho, mesmo sendo pouco, éalgo duvidoso e confuso: não conhecendo a mim, como podereiconhecer um outro que é parecido comigo? Ademais, e para quasefinalizar a questão, já percebi que muitas pessoas que sãomuitíssimas diferentes de mim se consideram muitíssimo próximasde Nietzsche, o que em alguns casos é bastante ridículo  —  alguns

    odeiam um cristão ou vários cristãos, por isso mesmo não gostamdo cristianismo e então se acham próximos de Nietzsche; outrossão solitários e odeiam a sociedade, lêem as considerações de Nietzsche sobre o “animal de rebanho” e então acham que sãoiguais a ele; outros, enfim, confundem o sol com a lua só porqueos dois brilham.

    Por outro lado e a despeito de tudo, talvez tudo isso não seja outra

    coisa senão uma grande ilusão e talvez eu realmente tenha maisautoridade para analisar e criticar Nietzsche do que muitos outros

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     por aí. Não obstante, deixemos as dúvidas para trás, até porque nãosão essenciais aqui.

    §4. —  Parcialmente publicado

     Não se assustem se algum dia lerem as duas primeiras marteladasna Internet: publiquei-as lá. Aliás, quero intercalar uma outra coisaaqui: sempre que leio um filósofo, não consigo deixar de analisá-lo psicologicamente: é algo automático; com Nietzsche, desde quecomecei a ler suas obras, algumas idéias acerca de seu ser foramdesabrochando em minha mente; entretanto, sem disposição para

    escrevê-las, apenas refletia um pouco sobre e esquecia-me depois; porém um dia soube da criação de uma comunidade na Internetcom o objetivo de dar “marteladas em Nietzsche”, e foi isso queme fez perder o meu tempo escrevendo o que vocês estão prestes aler.

    E os comentários? O que comentaram na Internet sobre osescritos? O primeiro comentário foi o seguinte: “Apenas

    conjecturas e nada mais!” (depois que li isso, pensei: “Nossa! Seráque ele não tinha nada mais inútil para dizer?”); um outro disseque Nietzsche era também um poeta e que portanto criava coisas,ou seja, ele deveria ser analisado com a lógica (hahahahahah, queforma de expressão ridícula e incoerente! Que será que ele quisdizer com essas palavras engraçadas? Será que era isso: analise aidéia e não o seu motivo? Não, eu devo estar sendo tolerante e

    lendo nas entrelinhas demais); e ainda houve um últimocomentário (só foram três até o momento): dizia ser muito boa aminha análise e que ele, o que comentou, tinha idéias parecidassobre o caso, acrescentando ainda que o ódio que Nietzsche tinha pelo cristianismo e pela vida era oriundo de sua impotência frenteàs grandes tragédias que ocorreram em sua vida (perca do paimuito cedo, do irmão, etc.).

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    §5. —  O que tenho contra Nietzsche; epílogo da introdução

    Antes que queiram insinuar que sou religioso ou mesmo cristão,digo-vos logo que não tenho nada de especial contra Nietzsche eque na verdade gosto muito dele: nem por isso, todavia, esperemendeusamentos de minha parte, até porque ele, assim como todosnós, era humano, demasiado humano, e, como tal, suas idéias e sua personalidade são sempre passíveis de análise e críticas.

    10 de março de 2007

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     —  I —  

    Para uma análise psicológica de Nietzsche, primeira martelada

    E que tal fazermos com Nietzsche o que ele tanto fez com osoutros: olhá-lo e lê-lo nas entrelinhas?

    “‘Deus’, ‘imortalidade da alma’, ‘redenção’, ‘além’, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei meu tempo, nem mesmo em criança... Para mim, oateísmo não é nem uma conseqüência nem mesmo um fato novo:

    existe comigo por instinto”. (Ecce Homo, II, 1). 

    O nosso autor não parece ser muito mais sincero do que muitosdaqueles que criticou. Vejamos:

    Certa vez, li (Will Durant) que Nietzsche, de alguma forma, erareligioso quando criança, chegando mesmo a andar com a Bíblia por debaixo do braço pregando; tal fato pode parecer falácia, masse analisarmos algumas questões, veremos que não. O pai de Nietzsche era pastor protestante e, como todo filho tende a seguir o pai, seria absolutamente natural que Nietzsche seguisse, nestecampo, os passos do pai  —  o que ele fez, chegando a iniciar seusestudos em teologia, mas desistindo depois e optando por filologia.

    Ademais, mesmo prescindindo de uma leitura mais atenta,

     podemos perceber com não pouca nitidez, em muitos escritos donosso filósofo, que ele não era de forma alguma leigo em termosde conhecimento da Bíblia, e mais: para fazer análises sobre algo,sobre o cristianismo, por exemplo, faz-se necessário que se tenhaum conhecimento profundo acerca desse algo —  daqui concluímosque Nietzsche não só tinha um bom conhecimento da Bíblia, mas ponderou bastante sobre ela.

    “‘Deus’, ‘imortalidade da alma’, ‘redenção’, ‘além’, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles

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     sacrifiquei meu tempo, nem mesmo em criança...” —  tal afirmaçãonão só perde o sentido como ganha tons imprecisos, com máculas:torna-se mesmo falsa e mentirosa.

    Mas ainda não é o bastante: continuemos, pois. O que pode levaruma pessoa a estudar com profundidade algo (falo do caso em quenão sofremos imposições externas)? Será que o conhecimento que Nietzsche tinha da Bíblia foi adquirido apenas em sua idade tenra?Isso é possível; mas eis que isto não: as análises que ele faz daBíblia, da moral cristã, devido primordialmente ao seuaprofundamento e maturidade, não podem de forma alguma ter se

    concretizado na infância ou adolescência. Portanto, as pesadascríticas que Nietzsche faz ao cristianismo é algo posterior, de suafase adulta, o que corrobora mais ainda com a minha tese de que Nietzsche foi religioso em algum momento de sua vida.

    Porém, a fundamentação ainda está pouco firme: analisemosoutros fatos. É sabido que, depois que o pai de Nietzsche morreu,certa vez, ainda na infância ou pouco depois, ele teve um sonho: o

    seu pai se levantou do túmulo, entrou numa igreja e saiu delacarregando uma criança, levando-a para o túmulo consigo; poucotempo depois desse sonho, o irmão de Nietzsche morreu. Como énatural, evidentemente, isso deve ter deixado profundasimpressões em Nietzsche, certamente fazendo-o ponderar sobremuitas questões, como “Deus”, “Imortalidade da alma”, “além”, oque nos atesta muitos dos seus escritos:

    “ Nas épocas de cultura tosca e primordial, os homensacreditavam conhecer no sonho um segundo mundo real... Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo.Também a decomposição em corpo e alma se relaciona àantiqüíssima concepção do sonho... Portanto, a origem de todacrença nos espíritos... ‘Os mortos continuam vivendo, porque

    aparecem em sonhos aos vivos’: assim se raciocinava outrora...”

    (Humano, Demasiado Humano, 5).

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    “Coisas que ocorrem simultaneamente têm ligação, acredita-se.Um parente morre longe de nós, e ao mesmo tempo sonhamos comele —  portanto...” (Humano, Demasiado Humano, 255). 

    Dessa forma, vemos que Nietzsche não apenas pensou sobre taisquestões, mas esteve em constante conflito com elas. E por que umtal conflito? Por que Nietzsche procurou a todo o instante negarqualquer tipo de transcendência, de mundo mágico, de alma, deDeus? Suspeito fortemente que uma das principais razões foi esta:como Nietzsche teve uma premonição e previu que seu irmão iamorrer, talvez ele se sentisse culpado pela morte do irmão por não

    ter conseguido impedi-la: negando que aquele sonho tenha sidouma premonição, um aviso, isto é, afirmando, mesmo que porimpulsos inconscientes, que aquilo não passou de um sonho e nadamais, ou ainda e para me fazer mais claro, destruindo a religião e ametafísica, ele se eximia da culpa e de alguma forma superavaaquele trauma do passado.

    Portanto, fica-nos assim mais do que claro que, além de Nietzsche

    ter sacrificado bastante tempo com tais questões, o seu “ateísmo”de forma alguma existe com ele por “instinto”. E para fechar aquestão e não haver mais dúvidas, citarei e interpretarei mais umtrecho:

    “Seja você como for, seja sua própria fonte de experiência! Livre- se do desgosto com seu ser, perdoe a seu próprio Eu... Não

    menospreze ter sido religioso... É preciso ter amado a religião e aarte como a mãe e a nutriz...” (Humano, Demasiado Humano,292).

     Não é preciso ser psicólogo para perceber que, aqui, Nietzsche faladele mesmo. Atente-se ao “... perdoe a seu próprio Eu” (ou seja,ele está dizendo: “Senti-me culpado, mas estou tentando superarisso”) e também ao “ Não menospreze ter sido religioso...” (ou

    seja, o que ele diz é: “Eu fui religioso, de forma alguma eu souateu por instinto”). 

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     —  II —  

    Para uma análise psicológica de Nietzsche, segunda martelada

    O amor fati:

    “ Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade dascoisas: é assim que sempre serei daqueles que tornam as coisasbelas. Amor Fati (amor ao destino): seja assim, de agora emdiante, o meu amor...” (A Gaia Ciência, 276). 

    “ A minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não sedeve procurar outra diversa, quer no futuro ou no passado, nemmesmo para toda a eternidade. N ão basta ‘suportar’ o que énecessário, e muito menos desprezá-lo  —   todo idealismo é umamentira diante da necessidade; deve-se amá-lo...” (Ecce Homo, II,10).

    Que dizer do “amor ao destino” nietzscheano? Será isso possível?Será possível, não apenas suportar, mas amar o necessário? E Nietzsche: será que amou o seu destino?

     Nietzsche pode ser visto como uma espécie de discípulo deSchopenahuer: sofreu muita influência dele e muitos temas dosquais tratou são derivados de sua filosofia —  em alguns campos, émesmo possível perceber que Nietzsche reafirma muitas das idéias

    do seu “mestre”. Mas Schopenhauer era sobremodo pessimista, eraum negador, pessoa insocial e melancólica que nunca conseguiuver sentido na existência. Sendo assim, como Nietzsche, um pensador que pregou o amor fati, pôde ter sofrido tanta influênciade Schopenhauer, chegando a chamá-lo de seu mestre e oelogiando tanto em sua fase inicial como pensador e ainda, mesmodepois de negá-lo, perscrutando tanto a sua filosofia pelo resto davida? Uma resposta aparente nos é dada pelo próprio Nietzsche,

    que, em um determinado escrito, afirmou que ali, no Mundo ComoVontade e Representação, de Schopenhauer, encontrara uma

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    Mas assim como no caso de minha primeira análise, é interessanteescrutarmos a validade e sinceridade da afirmação “eu cessei deser pessimista”. Supondo que Nietzsche tivesse realmente deixadode ser pessimista, isso não ocorreu na infância e muito menos naadolescência (ou seria o contrário?): alguns dos seus escritos,datados de sua idade adulta, deixam transparecer explicitamente oseu pessimismo e desencanto em relação à vida. Portanto, se Nietzsche realmente deixou de ser pessimista, isso ocorreu em suafase adulta, ou seja, justamente naquela fase onde as mudançasconsideráveis no íntimo do homem ocorrem em menor quantidadee intensidade, e quando ocorrem (eis que já algo pesa contra

     Nietzsche). No entanto, sem sombra de dúvidas, é possível,conquanto difícil, que um homem maduro e já vivido deixe de ser pessimista. A grande questão que se nos apresenta agora é: seráque isso ocorreu com Nietzsche? Sinceramente, não acredito quetenha ocorrido.

    A questão é em muito delicada: quem lê Nietzsche, principalmenteseus escritos da fase mais madura, não consegue encará-lo como

    um pessimista: são explícitas suas idéias de superação, super-homem; vê-se críticas aos “ressentidos”  com a vida, aos pessimistas, etc. Mas eu o vejo como uma espécie de pessimista, emostrarei como podemos chegar a uma tal conclusão.

    Inicialmente, quero esclarecer um ponto: estou lendo Nietzschenas entrelinhas e analisarei se ele era pessimista, e não se os seus

    escritos o eram. Penso ser importante o esclarecimento disso, poisao afirmarmos que Nietzsche era pessimista para alguém que é, por exemplo, especialista em sua filosofia, é capaz dele rir de nós enão nos entender, justamente porque ele desconhece a nossa perspectiva, ele desconhece que estamos falando de Nietzsche enão dos seus escritos; aliás, podemos até acusá-lo de desconheceras próprias palavras de Nietzsche:

    “ Eu sou uma coisa; outra é minha obra” (Ecce Homo, III, 1). 

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    Pois bem! Vamos em frente!

    Os impulsos derivados da tristeza, da solidão, da ausência dealegria, enfim, a vontade de chorar e de se comunicar pode fazercom que um homem escreva  —  é quase um axioma para mim: asexpressões conscientes advindas da cólera, da decepção, da raiva edo desânimo são mais verdadeiras, em termos de concordânciaintrínseca com o sentimento daquele que se expressa, do queaquelas oriundas da alegria e satisfação: enquanto estes últimostêm o que conservar (sua felicidade e satisfação), os primeiros podem ser mais sinceros, pois não têm o que conservar, sua

    situação não está boa, eles não têm o que perder. Dessa forma,considero autêntica a afirmação de que, se alguns escritos de Nietzsche eram pessimistas, é porque, no momento em que eleescreveu, ele estava comunicando algo do seu íntimo, ou seja,existia uma identidade entre Nietzsche e seu escrito, ou ainda, podemos considerar aquele escrito como uma expressão do seu próprio Eu: o próprio Nietzsche, e não apenas o seu escrito, estavasendo pessimista.

    Mas os escritos de Nietzsche foram mudando, foram ganhandonovos contornos: iam deixando o desânimo de lado. Resta saber setal mudança estava ocorrendo em Nietzsche e nos seus escritos ouapenas nestes últimos. Para respondermos a isso, devemosconsiderar duas coisas: primeiro, as concepções firmes que Nietzsche tinha acerca da força, da virilidade, etc.; e segundo, em

    que se transformaram os escritos de Nietzsche.

    As concepções de Nietzsche sobre força, sobre vontade de poder, possivelmente já o acompanhavam desde a infância (segundo WillDurant, que teorizou isso a partir de certos comportamentos de Nietzsche na infância), vindo a ganhar profundidade efundamentos teóricos em sua idade adulta  —   e mesmo que Nietzsche não manifestasse uma certa fascinação pela força, pelos

    guerreiros já na infância, não seria difícil concluir que talcaracterística o acompanhava desde a idade mais tenra: em seus

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    escritos, nota-se o quanto ele valorizava isso, o quanto isso estavaarraigado nele.

    E quanto aos seus escritos? Quanto mais o tempo passava, eles setornavam mais secos e ríspidos, mais duros, mais críticos,vergonhosamente críticos: criticavam pessoas, idéias, os homens,as mulheres, os alemães, a religião, os filósofos, o mundo! E qual acausa disso: bom, alguém poderia dizer que Nietzsche, com aidade, foi ficando azedo, extremamente ressentido com a vida: erainfeliz e carregado de ódio, passando por isso mesmo à posição deataque. Esta seria uma boa explicação, mas, pelo que percebo,

    deixa de considerar um outro ponto sumamente importante: o pessimismo de Nietzsche.

    A grande crítica, o ataque audaz e exagerado, longe de serconstrutivo, trata-se de uma forma de negação  —  é uma maneirade se dizer que “nada presta”, que na vida “nada vale a pena”. Acrítica densa, portanto, a crítica nietzscheana não é outra coisasenão uma espécie de pessimismo: em virtude de suas concepções

    de “força” e “fraqueza”, que afloraram fortemente em determinadaépoca de sua vida, Nietzsche tentou deixar o pessimismo para trás,mudando o teor de seus escritos e tornando-os aparentemente pouco pessimistas (apenas aparentemente); porém, ao osconsiderarmos dessa forma, isto é, como o frustrante resultado dainútil tentativa de um homem de se corrigir, de deixar de ser o queera por ter vergonha disso e por ter necessidade de se pôr em

    melhor conformidade com muitas de suas idéias que desde ainfância o acompanhava, além, claro, como um resultado do seuódio crescente contra si mesmo e contra a humanidade, podemos perceber que Nietzsche sempre foi pessimista, embora ele tenhaconseguido mascarar os seus escritos, pintando-os de tal forma aesconder a sua decepção com a vida.

    Agora, fixemos o nosso olhar com mais esmero no amor fati. É

     possível que consigamos amar o destino, qualquer destino que senos apresente? Farei a pergunta novamente: é possível um ser vivo

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    não só afirmar e admitir o necessário, mas, e sobretudo, amá-lo? Éóbvio que isso não passa de uma aspiração infantil, um delírio, porassim dizer: só poderíamos conseguir isso se tivéssemos, além deoutras coisas que não estão no nosso poder, a capacidade de amar,ao mesmo tempo, aquilo que temos ódio, e o ódio ainda precisariaser extirpado imediatamente por esse amor. Todavia, quem sabe?,talvez Nietzsche fosse diferente, fosse um super-homem, um além-homem  —   pergunto novamente: será que Nietzsche amou o seudestino? A resposta já foi dada, até porque acabei de mostrar que Nietzsche foi e sempre foi pessimista. Não obstante, só paraconfirmar, analisemos mais alguns escritos do nosso “super -

    homem”: 

    “ Deixando à parte as exigências da religião, é lícito perguntar: por que seria mais louvável para um homem envelhecido... Esperar seu lento esgotamento e dissolução, em vez de, em claraconsciência, fixar um termo para si? Neste caso, o suicídio é umaação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória darazão, deveria suscitar respeito...” (Humano, Demasiado Humano,

    80).

    “O doente é um parasita da sociedade. Quando chega a certoestado, é inconveniente viver mais tempo. A obstinação em vegetarcovardemente... Depois que já se perdeu o sentido da vida, odireito à vida, deveria inspirar à sociedade um desprezo profundo... Morrer altivamente quando já não é possível viver

    altivamente” (Crepúsculo dos Ídolos, Passatempos Inatuais, 36). 

    Seriam estas as palavras de alguém que ama o seu destino? Nãofica bastante explícito que tais escritos nos dizem que Nietzschecontemplava com certa insistência o suicídio? (o fazia de formadisfarçada, falando sobre os doentes e sobre a morte voluntária:tinha vergonha de dizer “Eu penso em me matar”, e então dizia:“Vejam: o suicídio não é tão vergonhoso assim”). E nem se

     poderia objetar a isso dizendo que na época de “Humano,Demasiado Humano”  Nietzsche estava apenas passando por uma

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    crise passageira, pois vemos o mesmo discurso no “Crepúsculodos Ídolos”, ou seja, um escrito bem posterior .

    Portanto, o amor fati não passa de um idealismo, de uma fuga darealidade —  a própria exaltação do “super -homem”, isto é, daqueleque consegue transmutar todos os valores, não passa de umaatitude infantil: nenhum ser humano pode viver em total desacordocom os regimentos éticos de uma determinada sociedade sem sesentir culpado e fracassado, nem mesmo o sociopata.

     —  III —  

    Para uma análise psicológica de Nietzsche, terceira martelada

    O Eterno Retorno:

    “ A medida da força total é determinada, não é nada de ‘infinito’... Por conseguinte, o número das situações, alterações, combinaçõese desenvolvimentos dessa força... também é determinado e nãoinfinito. O tempo, sim, em que o todo exerce sua força, é infinito,isto é, a força é eternamente igual e eternamente ativa: até esteinstante já transcorreu uma infinidade, isto é, é necessário quetodos os desenvolvimentos possíveis já tenham estado aí. Dissodecorre que o desenvolvimento deste instante tem de ser umarepetição, e também o que o gerou e o que nasce dele, e assim pordiante, para a frente e para trás!” (Texto de 1881).

    Mas, então, vejam só: o grande crítico dos sistemas, da metafísica,o anunciador da “morte de deus”, isto é, de todos os sistemasmetafísicos, também tem o seu sistema! Que pensar disso? Omartelo de Nietzsche está se movendo perigosamente por cima desua cabeça!

    Para entendermos o posicionamento de Nietzsche e a sua, por

    assim dizer e já com boa tolerância, incoerência, bastaobservarmos alguns dos seus escritos:

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    “ Do mesmo modo que o ato de nascer não influi no conjunto do processo da hereditariedade, tampouco o fato da ‘consciência’  seopõe de qualquer modo decisivo ao instinto. Quase todo pensamento consciente num filósofo é dirigido secretamente pelos seus instintos e forçado a seguir determinado caminho”  (ParaAlém do Bem e do Mal, Cap. I, 3).

    Será que o nosso filósofo está a se justificar? Bom, isso não temtanta importância assim: o que importa agora é a sentença, queserá dada pelo próprio Nietzsche:

    “O que provoca a se olhar metade dos filósofos com desconfiançae a outra metade com ironia, não é darmo-nos permanentementeconta de como são ingênuos, como erram e como se desnorteiamcom facilidade. Diria que freqüentemente não é, enfim, a suainfantilidade e ingenuidade em suma, mas a sua poucahonestidade... Todos fingem ter descoberto e alcançado as suasverdadeiras opiniões pelo desenvolvimento de uma dialética fria, pura e divinamente despreocupada —  dessa forma se distinguindo

    dos místicos de toda espécie que, mais honestos... falam em‘inspiração’. No fundo, são eles quem defendem com argumentos

     posteriores uma tese pré-adotada...” (Para Além do Bem e doMal, Cap. I, 5).

    Portanto, Nietzsche acusa-se a si mesmo de desonestidade,embora, talvez, sem muita consciência disso. Mas em relação à

     psicologia dele, o que isso tudo tem a nos dizer? Diz simplesmenteque ele era arrebatado constantemente por instintos e paixões,onde podemos incluir inclusive crises depressivas. Por exemplo,será que ele chegou à tese de que a atividade consciente não estáseparada da atividade instintiva apenas observando e lendo nasentrelinhas os outros pensadores? É evidente que não: paraqualquer pensador, a medida de quase tudo e a grande fonte deconhecimentos é o seu próprio Eu, a sua experiência interna. Dessa

    forma, devido à sua grande inconstância, às suas repentinasmudanças de humor e à própria necessidade que se lhe apresentou

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    exigindo que ele fosse desonesto (defender uma tese metafísica para manter uma idéia brilhante que teve enquanto critica todas asoutras teses metafísicas dos outros pensadores), foi que Nietzsche percebeu o quão frágil é a nossa consciência, desenvolvendo a suateoria e se justificando, ou quase isso, ao mesmo tempo.

    O martelo de Nietzsche incidiu sobre o próprio Nietzsche,esmagando-lhe.