Um quadro para ser lido - Ciência em Tela - Rede de ... · Esta irá tomando forma na medida de...

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Um quadro para ser lido... Maria Conceição Barbosa Lima Instituto de Física Armando Dias Tavares Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Resumo O texto apresentado a seguir é uma experiência de leitura que tem por objetivo unir Ciência e Arte. Este exercício, utilizando várias formas de arte, é realizado com freqüência em aulas ministradas durante a disciplina eletiva Linguagem e Ensino de Física, procurando apresentar aos futuros licenciados novas formas de apresentar a construção da Ciência; possíveis aplicações da Física, principalmente, quando há a possibilidade de entrelaça-la com a Arte e a Sociedade. Este exercício de leitura é apoiado na teoria bakhtiniana da comunicação verbal. Este trabalho mostra, como exemplo, da prática seguida na disciplina a leitura de um quadro de Remédios Varo: Três Destinos, buscando destacar os três eixos: Ciência, Arte e Sociedade e suas imbricações. Palavras-Chave: Ciência, Arte e Sociedade, experiência de leitura, teoria bakhtiniana. “Sei que a arte é irmã da ciência Ambas filhas de um deus fugaz Que faz num momento e no mesmo momento desfaz” (Gilberto Gil, 1997) Sempre que nos propomos a realizar uma leitura nunca o fazemos solitariamente. Tudo o que vivemos, que pensamos, que esperamos, enfim, todas as vozes que povoam nosso ser cultural interpretam a leitura que está sendo feita junto conosco (BAKHTIN, 1997). Quero dizer com isto, de acordo com os ensinamentos bakhtinianos, que nossa ideologia, nossas frustrações, nossas crenças, nossas emoções vividas e esperadas estarão presentes ao ato de leitura. Em outras e mais sintéticas palavras, nossa cultura estará lá, fazendo com que leiamos de acordo com o já vivido, para concordar ou discordar. Além disso, é necessário, como afirma o mestre da comunicação verbal, tomarmos consciência que o que lemos não são apenas palavras escritas, textos sob as mais variadas formas. Nós somos capazes de ler a vida. A lemos por gestos percebidos, por formas encontradas. A leitura e sua respectiva interpretação são realizadas a todo o momento em diversas e inesperadas situações. Sendo assim, desejo aqui comentar uma leitura que escolhi fazer: uma leitura especial, em que o texto é um quadro e minha interpretação, bem... Esta irá tomando forma na medida de minha escrita. Além disto, é conveniente comentar que este exercício de leitura é realizado com freqüência nas aulas da disciplina eletiva Linguagem e Ensino de Física, ministradas no para o curso de Licenciatura no Instituto de Física Armando Dias Tavares, tendo como objetivo ampliar o conceito de leitura e oferecer aos futuros licenciados outros recursos para a apresentação do conceito de ciência, como produção e intervenção humana apresentando também a própria física, suas aplicações práticas e conceitos. Retornemos agora ao texto original... Tomei como texto o quadro Três Destinos, retirado este quadro do Catalogue Raisonné de Remédios Varo, nascida em 1908 na região da Catalunha, Espanha, e morta em 1963 no México, país onde 1

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Um quadro para ser lido...

Maria Conceição Barbosa Lima Instituto de Física Armando Dias Tavares Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected]

Resumo

O texto apresentado a seguir é uma experiência de leitura que tem por objetivo unir Ciência e Arte. Este exercício, utilizando várias formas de arte, é realizado com freqüência em aulas ministradas durante a disciplina eletiva Linguagem e Ensino de Física, procurando apresentar aos futuros licenciados novas formas de apresentar a construção da Ciência; possíveis aplicações da Física, principalmente, quando há a possibilidade de entrelaça-la com a Arte e a Sociedade. Este exercício de leitura é apoiado na teoria bakhtiniana da comunicação verbal. Este trabalho mostra, como exemplo, da prática seguida na disciplina a leitura de um quadro de Remédios Varo: Três Destinos, buscando destacar os três eixos: Ciência, Arte e Sociedade e suas imbricações.

Palavras-Chave: Ciência, Arte e Sociedade, experiência de leitura, teoria bakhtiniana.

“Sei que a arte é irmã da ciência Ambas filhas de um deus fugaz Que faz num momento e no mesmo

momento desfaz” (Gilberto Gil, 1997)

Sempre que nos propomos a realizar uma leitura nunca o fazemos solitariamente. Tudo o que vivemos, que pensamos, que esperamos, enfim, todas as vozes que povoam nosso ser cultural interpretam a leitura que está sendo feita junto conosco (BAKHTIN, 1997). Quero dizer com isto, de acordo com os ensinamentos bakhtinianos, que nossa ideologia, nossas frustrações, nossas crenças, nossas emoções vividas e esperadas estarão presentes ao ato de leitura. Em outras e mais sintéticas palavras, nossa cultura estará lá, fazendo com que leiamos de acordo com o já vivido, para concordar ou discordar. Além disso, é necessário, como afirma o mestre da comunicação verbal, tomarmos consciência que o que lemos não são apenas palavras escritas, textos sob as mais variadas formas. Nós somos capazes de ler a vida. A lemos por gestos percebidos, por formas encontradas. A leitura e sua respectiva interpretação são realizadas a todo o momento em diversas e inesperadas situações. Sendo assim, desejo aqui comentar uma leitura que escolhi fazer: uma leitura especial, em que o texto é um quadro e minha interpretação, bem... Esta irá tomando forma na medida de minha escrita. Além disto, é conveniente comentar que este exercício de leitura é realizado com freqüência nas aulas da disciplina eletiva Linguagem e Ensino de Física, ministradas no para o curso de Licenciatura no Instituto de Física Armando Dias Tavares, tendo como objetivo ampliar o conceito de leitura e oferecer aos futuros licenciados outros recursos para a apresentação do conceito de ciência, como produção e intervenção humana apresentando também a própria física, suas aplicações práticas e conceitos. Retornemos agora ao texto original...

Tomei como texto o quadro Três Destinos, retirado este quadro do Catalogue Raisonné de Remédios Varo, nascida em 1908 na região da Catalunha, Espanha, e morta em 1963 no México, país onde

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desenvolveu a parte mais importante de sua arte surrealista.

Minha escolha recaiu sobre esta pintora, pouquíssimo conhecida entre nós, porque a pintora tem uma visão de ciência muito especial, seus quadros permitem idas e vindas entre a Arte e a Ciência. Muitos de seus quadros são notórias alusões à Ciência e aos cientistas, como por exemplo: Papilla Estelar, El relojero, La Ingravidad para citar apenas algumas. Mas retornemos a Três Destinos.

Este quadro, criado por Varo em 1956, sugere uma interpretação que une Ciência, Arte e Sociedade.

No quadro, encontramos três figuras humanas unidas por fios tênues que geram outra figura, uma espécie de engrenagem, colocada no centro do plano em que as personagens se encontram, de forma aparentemente eqüidistante de cada uma e que funciona por influência delas mas também é capaz de agir sobre elas. Mas esta 'engrenagem' é gerenciada por um ser acima de todos, que emana um raio que colabora com o movimento da 'engrenagem' e também é de alguma maneira influenciado por ela. Há uma espécie de colaboração entre a 'engrenagem' e o astro. Às três figuras humanas posso atribuir, a cada uma delas, características de funções ou de ofício. Partindo do homem colocado à esquerda, passando pela figura central e por fim o que está à direita, posso dizer que representam: um cientista, um pintor e um cidadão comum. Na obra de Varo, como comentado anteriormente, a imagem do cientista apresenta uma visão própria e a Ciência é uma constante: o cientista é um ordenador do Mundo, um alquimista que impõe um ritmo ao Mundo. Observando detalhadamente o quadro em tela, percebo que a janela daquele ao qual atribuí o ofício de cientista é a maior, a mais aberta, o que sugere a possibilidade de uma visão privilegiada, um ver além... A necessidade de ver, observar, meditar, para então, criar. A luz que o banha parece vir de todas as direções. No instantâneo do quadro, parece-me que o personagem reflete sobre o já observado e, agora, teoriza. Fazendo com que minha observação agora recaia sobre o elemento

central do quadro, o pintor, percebo de imediato a mudança no formato de sua janela, menor, sem proteção alguma, reta, ao contrário da do

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cientista que tem um resguardo, uma aba de telhado protegendo-o e na iluminação de sua figura, apesar de menos espalhada que aquela oferecida ao cientista, é mais vibrante, mais dirigida. O pintor não necessita observar o todo antes de criar sua obra, observação e criação são solidárias e a iluminação deve recair antes em sua tela, em sua criação do que nele próprio.

Já na imagem que representa o cidadão comum posso observar elementos existentes nas outras duas imagens. Sua janela tem alguma semelhança com a do cientista, porém é menor, menos ampla e menos comprida que a dos dois outros personagens. Ele não parece estar observando ou ter observado nada. Não teoriza. Não registra. Ele vive das observações e dos registros que fazem os outros dois. Mas tem necessidades.

Passo agora a ler as linhas que ligam estas três individualidades.

O cidadão comum está ligado a 'engrenagem' por uma linha que parte dele e retorna, por outra que parte dele até uma polia que mexe também com o cientista e com o pintor e por uma terceira que o liga diretamente ao cientista. Mas este, o cientista, também se encontra entrelaçado ao pintor através de uma linha que parte de seu corpo passando pela grande polia e que o une ao pintor, por outra que passa pela mesma polia e retorna, pelos mesmos princípios de idas e vindas dos laços tênues que observo os três são interligados pela 'engrenagem', pelo que eu poderia chamar: sociedade. Então o desenho de polias e linhas que chamei de 'engrenagem' passo a dize-la sociedade.

Numa síntese, a Ciência representada pelo cientista busca incansavelmente uma explicação para o Mundo, o segundo personagem, representante da Arte, registra esta busca, enquanto a

Sociedade é tanto o reflexo quanto o móvel desta procura, vivendo segundo as leis estabelecidas pela Ciência e pela Arte. A vivência social as realimentam num sem fim de novas formas, regidas antes de tudo pelo Tempo Social representado pelo astro que definitivamente é o motor primeiro da 'engrenagem' social, e assim como a Arte não é puramente criação, implica em descobertas de caminhos e imaginação, o cientista tampouco é mero descobridor de fenômenos e leis já postos na Natureza, ele também cria através da imaginação. Desta ligeira leitura ouso dizer que Gil tem razão, a arte é irmã da ciência posto que são filhas de um deus fugaz: o Tempo. Aquele que dirige a humanidade, que divide em épocas sociais a vida de maneira que a cada era uma Ciência e uma Arte se torne sua marca. Com o Tempo agindo sobre a sociedade é que podemos perceber que o homem da Idade Média só poderia perceber modelos científicos simples, muitos deles ainda fixados nos sentidos humanos, que seus pintores retratavam o que o período permitia, inclusive por questões religiosas. É preciso que o Tempo permita rupturas, que se mudem paradigmas (KUHN, 2007) no modo da Sociedade para que seus integrantes, seus elementos de busca e de registro realizem mudanças no modo de operação da engrenagem social. Mas não dependemos só do Tempo... Afinal, quem sabe faz a hora! Já dizia Geraldo Vandré em sua canção em tempos que não desejamos recordar (1968). A Sociedade, os conjuntos de cientistas, artistas e homens comuns interferem também diretamente em sua evolução e por isso temos hoje tanto a considerada Física e Arte Modernas e Contemporâneas nascidas quase na mesma época. Então lendo um quadro, este quadro, percebo que cientista, aquele que

faz da Ciência seu ofício e pintor o que faz da Arte seu trabalho são simples seres humanos influenciados pelo seu tempo e pela sociedade

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em que vivem.

Sobre a autora

Como afirmei no início, uma leitura nunca é feita de modo solitário

e esta em particular, além de todos os acompanhamentos que dizem

respeito a minha cultura, teve um em particular. Contei com a leitura de Roberto Moreira Xavier de Araújo e todas as suas agradáveis

companhias culturais.

E para concluir, faço ainda um convite: que o possível leitor deste texto leia o quadro, somente o quadro; acompanhado de sua história de vida, de seus repertórios de leitura, de suas crenças e imaginação.

Concordaremos? Será? Bakhtin sugere que não...

Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GIL, G. Quanta, CD Quanta, Manaus: WEA, 1997.

KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas 9ªed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

OVALLE, R., et al. Remedios Varo Catalogue Raisonné 3ª ed. México, DF: ERA, 2002.

VANDRÉ, G. Prá não dizer que não falei de flores, III Festival Internacional da Canção, Rio de Janeiro: TV Rio, 1968. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46168>. Acesso em: 27 de dez. de 2007.

Maria da Conceição Barbosa-Lima é bacharel em Física, tem mestrado e doutorado em Educação. Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e credenciada junto ao IOC / FIOCRUZ e ao CEFET-Rio para atividades de Pós-graduação. A picture to be read...

Abstract The text presented below is a reading experience that aims to connect science and art. Nowadays, using different art styles, this exercise is frequently performed in the classroom while teaching a course on Language and Teaching of Physics, looking forward to preparing future teachers for new ways of presenting the construction of Science and the possible applications of physics, especially the relationships between art and society. This reading experience is supported in Bakhtinian theory of verbal communication. This paper presents an example of an activity debeloped during the course which involved reading Remedios Varo´s picture: Three destinations, with special emphasis given to: Science, Art and Society and their implications. Keywords: science, art and society, reading experience, bakhtinian teory.

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