UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno...

157
Zésouza UM TREM PARA O NORTE (2008) 1

Transcript of UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno...

Page 1: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Zésouza

UM TREM PARA O NORTE

(2008)

1

Page 2: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Ultima semana de novembro, primavera, do ano de mil novecentos e cinqüenta; metade do século vinte. O Inspetor de Policia José atendeu ao telefone:

- Pronto; delegacia de policia... É ele mesmo... Ta... Tem calma vai dar certo...

Desligou o telefone, passou a mão no rosto, encostou a porta da delegacia e saiu para ir comprar cigarros. Meia hora depois, voltou, olhou as horas no relógio de parede, caminhou de um lado a outro, acendeu um cigarro, pegou o telefone e discou para a estação central de Porto Alegre:

- Alô... Aqui é o inspetor de policia, José... Eu quero falar com o senhor agente... Sim... Boa tarde... È que recebemos um telefonema, anônimo, aqui na delegacia avisando que no trem que parte amanhã de manhã para São Paulo, vai acontecer um crime no último vagão... Sim senhor... O senhor também... Eu vou esperar a chegada do Delegado e comunicar a ele e depois volto a entrar em contato com o senhor...

Soltou o telefone, olhou as horas, parou perto da janela olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado.

Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado chegou trazendo na mão o resultado do jogo do bicho. Inspetor José, levantou e comunicou:

2

Page 3: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Problemas... Recebi um telefonema, anônimo, avisando que vai acontecer um crime no último vagão do trem que sai amanhã para São Paulo...

Mais preocupado em conferir o resultado do jogo do bicho, o delegado gesticulou e interrompeu:

- Frescuras!... Coisas de cinema... Telefonema anônimo... Trem... Último vagão...

- Desculpe... Acontece que o Agente da estação também recebeu o tal telefonema e tem mais: a diretoria da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, também recebeu o tal telefonema...

O Delegado botou a lista de jogo do bicho no bolso, regalou os olhos e disse:

- Epa!...Tem gente graúda no meio...

- Tem... Eles já se comunicaram com o Agente da estação e o Agente já me comunicou... Ele disse: é assunto para a polícia.

O Inspetor José era o braço esquerdo, o braço direito e o cérebro daquela delegacia, que o Delegado só queria saber de correr chinas e jogatinas. O Delegado sacudiu os braços, olhou para o Inspetor e perguntou:

- O que se faz?

Inspetor José tirou um cigarro do bolso, acendeu, olhou as horas, pensou e respondeu:

3

Page 4: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Vamos a estação conversar com o Agente...

Os três de pé, no escritório do Agente o qual gesticulava e explicava:

-... É o que eu disse; no caso deste trem, o último vagão é um vagão dormitório... Viaja um cabineiro; a função dele é ser camareiro, ele ajuda os passageiros, mantém o vagão limpo... Vigia pequenos incidentes... Mas um poder de policia...

O Delegado interrompeu:

- Policiamento preventivo é com a Brigada Militar...

Inspetor José sacudiu os braços e interrompeu falando com decisão:

- A Brigada Militar do Rio Grande do Sul só atua no estado, o trem atravessa Santa Catarina, Paraná e São Paulo... São quatro horas da tarde e o trem parte amanhã de manhã... Tem um crime anunciado... Um policial civil acompanha este trem...

Delegado interrompeu:

- Difícil fazer uma escala agora...

Inspetor levantou a mão e continuou:

- Sou voluntário... Preciso de uma cabine no ultimo vagão...

Delegado sacudiu a cabeça:

4

Page 5: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- José, amanhã tu entras de férias...

- Melhor, assim não interfere na escala... O senhor Agente consegue a cabina e faz a parte burocrática, da minha viagem, junto às ferrovias e eu volto para a delegacia para fazer a nossa burocracia junto a Secretaria de Segurança.

O Delegado concordou e o Agente saiu foi à plataforma, falou com um Conferente e voltou dizendo:

- Mandei conferir com o Bilheteiro se há cabine vaga.

Alguns minutos e chegou o Bilheteiro com papel na mão avisando:

- Aqui em Porto Alegre não tem mais cabines vagas no vagão da cauda... Mas tem duas reservas para embarque em Santa Maria, que ainda não recebi a confirmação.

O Agente agradeceu ao Bilheteiro e o liberou pedindo que chamasse o Telegrafista de serviço. O Telegrafista de Fanfa, que estava de serviço em Porto Alegre substituindo um colega doente, chegou à porta do escritório no momento em que o Inspetor José saiu dizendo que ia comprar cigarros. O Telegrafista de Fanfa olhou bem para o Inspetor e depois atendeu ao Agente de Porto Alegre; que pediu:

- Passa um telegrama para Santa Maria e pede para o Bilheteiro avisar a situação das duas vagas reservadas nas cabinas do ultimo vagão do “paulista” de amanhã.

O Telegrafista de Fanfa sacudiu a cabeça e saiu, mas ainda escutou o Delegado dizer ao Agente de Porto Alegre:

5

Page 6: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- O Inspetor José, é um ótimo policial, só que agora depois de velho anda metido com uma mulher muito mais moça que ele e ainda por cima é casada...

O Telegrafista de Fanfa seguiu pela plataforma da estação sacudindo a cabeça; conhecia a mulher que era amante do Inspetor José; foi namorada dele lá em Fanfa, paixão de muitas noites sem dormir, muito bonitinha, muito safadinha; o abandonou para casar com um homem muito mais velho que ela; um fazendeiro da estação General Neto, fez o marido comprar casa para ela em Porto Alegre, onde passava a maior parte do tempo sozinha e agora andava de casos com aquele policial de cinqüenta e nove anos de idade, ou seja, trinta anos mais velho que ela.

Inspetor José voltou ao escritório no momento que o Telegrafista de Fanfa retornou e avisou ao Agente de Porto Alegre que os dois lugares reservados em Santa Maria estavam confirmados para dois passageiros procedentes de estações do sul do estado, que já estavam em viagem. O senhor Agente de Porto Alegre olhou para o Delegado e neste momento chegou o Bilheteiro, um pouco afobado, esfregando as mãos e avisando:

- Cancelaram... Tinha uma cabine, até por sinal; cabine individual, que estava reservada e até já estava confirmada, mas o passageiro telefonou cancelando...

Manobreiros e Guarda-Freios davam os últimos retoques no comboio que acabava de encostar-se à plataforma da estação central de Porto Alegre. Os primeiros passageiros chegavam à sala de espera. Abriram às bilheterias,

6

Page 7: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

carregadores se movimentavam. Seis horas da manhã de uma sexta feira. O Inspetor José chegou e logo foi para junto do último vagão, queria ver o embarque e analisar todos os passageiros do vagão. O Cabineiro do Ultimo Vagão o recebeu na plataforma, solicitou a passagem, conferiu o numero da cabine e disse:

- Porto Alegre a São Paulo, cabine um, um.

O Inspetor José entrou, abriu a cabine; cabine individual soltou a mala, fechou a cabine e voltou para a plataforma da estação.

Os primeiros passageiros começaram a ocupar os lugares do trem. O Homem Magro, alto, embarcou na primeira classe, ocupou um banco individual; sim os vagões pullmam de primeira classe ofereciam treze lugares individuais, ou seja, uma das filas de bancos, o corredor e a outra fila com bancos de dois lugares, ao todo trinta e nove lugares. O homem magro colocou a mala na porta bagagem e embaixo do banco a cesta de vime onde levava a “galinha de trem” para comer na viagem, iria passar vinte e quatro horas naquele lugar até chegar ao destino a estação de Capo-Erê. Capo-Erê onde o esperava uma velha casa de madeira; entre grandes arvores, com um pátio onde galinhas de angola ciscavam faceiras. Capo-Erê onde o esperava a velha tia com uma galinha de angola cozida no leite. Capo-Erê onde o esperava a prima e suas coxas grossas.

Aproximou-se do último vagão um passageiro com uma pequena mala, mostrou a passagem ao cabineiro, que conferiu e disse:

7

Page 8: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Porto Alegre a Irati, cabine seis, seis.

- Certo... Não vou embarcar agora... Vou esperar o carregador que foi despachar minha bagagem.

Olhou o Inspetor José, recostado no vagão, aproximou-se e perguntou:

- Viaja neste vagão?

O Inspetor José sacudiu a cabeça e respondeu:

- Sim... Se Deus quiser, vou até São Paulo.

- Eu vou até o Paraná, desço em Irati... Eu moro em Irati... Trabalho com erva mate... Sou ervateiro, planto erva mate e tenho um engenho de beneficiamento... Ando em Porto Alegre negociando burros e mulas.

O Inspetor José gostou da conversa, precisava conhecer os passageiros daquele vagão, sorriu e perguntou:

- O senhor é ervateiro, mas negocia mulas?

- É verdade, é que eu tenho dois irmãos que criam burros e mulas... Eles gostam é de trabalhar na criação, aquela coisa de selecionar éguas, escolher um bom jumento pra fazer a cruza, amansar os burros, cuidar os pastos, ou seja: gostam de criar, mas não gostam de sair à busca de negócios... Então eu os ajudo procurando negócios.

- Mas vem burros do Paraná para o Rio Grande?

- É que um dos meus irmãos é criador aqui no Rio Grande, no município de Cruz Alta, tem fazenda na estação

8

Page 9: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Belizário, vamos passar lá logo de noite... E o outro meu irmão é criador no Paraná em Castro... O senhor conhece Castro?

- Não senhor.

- Este trem passa lá sábado a tarde.

O Ervateiro de Irati calou e ficou cuidando os dois passageiros que se aproximaram do vagão da cauda; um moreno, alto, forte, terno branco, chapéu de palha e botinas o outro um loiro gordo e baixo. Mostraram as passagens ao cabineiro e embarcaram para ocupar a cabine quatro. O Ervateiro de Irati sorriu e disse:

- Os dois são vendedores de mulas, são sócios; um é de Sorocaba e o outro é de Itapetininga... Estavam participando da concorrência a que eu vim... A Secretária da Agricultura quer comprar quinhentas mulas.

Inspetor José notou que os dois vendedores de mulas não cumprimentaram o Ervateiro de Irati; perguntou:

- O senhor é amigo deles?

O Ervateiro de Irati riu e respondeu:

- Nada... Somos inimigos... No ano passado o Terceiro Exército abriu concorrência pra comprar uma tropa de mil burros... Meus dois irmãos estavam com as tropas muito boas... Tropa feita com Jumento Pêga... Jumentos trazidos de Minas Gerais, dum grande criador no município de Lagoa Santa... E todos cruzados com Éguas Crioulas... Estes dois

9

Page 10: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

que estão ai dentro do trem mais dois criadores aqui do Rio Grande do Sul e outro vendedor que era sócio destes dois, fizeram um negocio sujo... O senhor veja que safados; alugaram campos em Castro e em Cruz Alta, bem perto das fazendas dos meus irmãos e botaram, nos tais campos alugados, burros com anemia infecciosa... Avisaram aos veterinários do exercito que consideraram os dois municípios como áreas contaminadas.

- E isto prejudicou o negócio de vocês.

- Sim... Mas Deus não gosta de nada mal feito... Depois disso brigaram entre eles... Um dos criadores de mulas aqui do Rio Grande do Sul matou o outro comprador de mulas... Até vou dizer para o senhor: o assassino vai ser julgado a semana que vem em São Paulo e ele vai viajar neste vagão... Ele vai embarcar em Pinheiro Marcado... E tem mais: o outro criador de mulas, que vai testemunhar contra o assassino, também vai viajar neste vagão ele vai embarcar na estação de General Neto.

Inspetor José gostou de ouvir a história e quis melhor esclarecimento:

- O Criador de Mulas de General Neto vai testemunhar contra o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado?

- Sim... A briga aconteceu aqui em General Neto e o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado ameaçou o Comprador de Mulas de São Paulo dizendo que iria a São Paulo buscar o dinheiro no preço combinado ou mataria o

10

Page 11: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Comprador... E ele foi e matou o Comprador... A acusação quer caracterizar como crime premeditado.

Um rapaz com duas malas se aproximou do ultimo vagão e um pouco mais atrás um homem de meia idade com uma mala de madeira. Os dois mostraram as passagens ao cabineiro, que primeiro conferiu a do rapaz e disse:

- Porto Alegre a Jandira; e a cabine é a dois, dois

Depois conferiu a do homem e disse:

- A sua cabine é a mesma dele. A dois, dois

O Inspetor José esperou os dois embarcarem e perguntou ao Ervateiro de Irati:

- E estes dois; são criadores de mulas?

O Ervateiro de Irati riu, sacudiu os braços:

- Não sei... Não os conheço.

Movimento na plataforma, carregadores andando apressados, passageiros embarcando, trem cheio. O Ervateiro de Irati avisou:

- Vou ao vagão restaurante tomar um café.

Inspetor José tirou um cigarro do bolso e acendeu. O sino deu o sinal que faltavam cinco minutos para o trem partir. Um passageiro, roupa amarrotada, desalinhado, sapatos velhos, barba crescida aproximou-se tímido do ultimo vagão, mostrou a passagem:

11

Page 12: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Porto Alegre a Marcílio Dias a cabine é três, três.

Embarcou vacilante e pediu ao cabineiro:

- Ensina como é ai dentro do vagão... Sempre viajei na segunda classe.

O cabineiro o acompanhou até a cabine, abriu a porta e avisou:

- O senhor viaja neste trem até Porto União da Vitória e lá faz baldeação para seguir até a estação Marcílio Dias.

Seis e trinta; hora da partida o Agente de Porto Alegre bateu o sino, o Inspetor José embarcou, o Cabineiro do Ultimo vagão sentou no seu canto e conferiu a lista de embarque; embarcaram sete passageiros naquele vagão o resto da lotação embarcaria na viagem. O chefe de trem trilou o apito a locomotiva, uma Mikado; a quinhentas e doze apitou e o trem partiu de Porto Alegre.

Parada rápida em Navegantes para cruzamento com trem noturno procedente de Santa Maria.

Logo chegou à estação Diretor Pestana; mais passageiros embarcaram.

Um grupo de escoteiros embarcou na segunda classe.

O Engenheiro Construtor de Ferrovias embarcou na primeira classe.

O Comunista de Canoas, que estava fugindo da policia embarcou na segunda classe.

12

Page 13: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No vagão de bagagens, carregaram várias gaiolas com pombos correios.

Parada rápida que a viagem é longa.

No ultimo vagão na cabine dois, o moço deitado no leito superior perguntou ao senhor de meia idade que ia sentado no leito inferior espiando pela janela:

- O senhor vai para São Paulo?

O homem respondeu com muita calma:

- Vou não... Moço eu sou mineiro... Uai!Eu vou pra Monte Azul... O moço conhece Monte Azul?... É no fim de Minas começo da Bahia... Uai!Termina a linha da Central do Brasil e começa a linha da Leste Brasileiro... O moço já andou nos trem da Leste?

- Eu não conheço Minas... E eu viajo pouco... Estou fazendo esta viagem que eu vou escrever um livro que a estória se passa neste trem.

- A, pois, o moço é escritor.

- É, sou... E o senhor; trabalha com o que?

- Uai, pois eu sou cafezeiro.

- O senhor planta café.

O mineiro deu uma risada e explicou:

- Rapaz eu vendo é café na beira dos trens lá em Monte Azul... Eu vendo é café preto e bolo de macaxeira... Uai! Que

13

Page 14: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

no norte o povo não viaja com dinheiro pra ta comendo em restaurante... O povo compra as merenda na janela do trem; é milho assado, é café preto, é bolo de macaxeira... O moço conhece a linha de Montes Claros até Monte Azul? Tem a estação de Tocandira... Tocandira vende os biscoitos de araruta... Os melhores biscoitos de araruta do mundo; vende na estação de Tocandira... Eu vendi muito biscoito de araruta quando morei em Tocandira.

- O senhor nasceu em Tocandira?

- O moço conhece Quem-Quem?

- Quem?!

- Quem-Quem.

- Mas quem é esse Quem-Quem ?

- Quem-Quem é uma estação de trem que tem na linha de Montes Claros pra Monte Azul... Uai! Eu nasci e fui menino no Quem-Quem... Eu fiquei no Quem-Quem até meus quinze anos e ai depois eu fui pra Montes Claros... Montes Claros é cidade grande tem uma estação bonita, tem um mercado é capital do norte das Minas Gerais... Em Montes Claros eu fui guia de cego.

O “P2” chegou as sete horas e treze minutos a Vasconcelos Jardim e os vendedores de pastel o cercaram gritando.

14

Page 15: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Às sete horas e trinta minutos parou em General Luz. O Ervateiro de Irati voltou do vagão restaurante para o vagão da cauda.

Parada em Fanfa, novos vendedores de pastel, no vagão de bagagens o Bagageiro e um Guarda-Freio carregaram algumas latas de leite para a estação de General Câmara. O Telegrafista de Fanfa saltou e esperou o trem partir, olhou o vagão da cauda, sacudiu a cabeça; ia dormir que a noite ainda iria a um baile ali em Fanfa e sábado de manhã embarcaria no Noturno de Santa Maria para voltar a Porto Alegre onde iria trabalhar todo o fim de Semana.

Os Camareiros atravessavam o trem avisando:

- Chegada em General Neto... General Neto...

No ultimo vagão o Inspetor José e o Ervateiro de Irati saíram das cabines e ficaram no corredor do vagão para verem o Criador de Mulas de General Neto embarcar. Embarcou; baixo forte, cabelo branco, cortado bem curto; casaco, gravata, bombachas e botas; mostrou a passagem ao Cabineiro:

- General Neto a São Paulo e a cabine é a cinco, cinco.

O trem arrancou e o Ervateiro de Irati comentou:

- A próxima é a estação de Barreto e aí embarca o meu companheiro de cabine.

Barreto, ponto de baldeação dos passageiros procedentes de Montenegro e da linha de Caxias do Sul.

15

Page 16: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Um grupo de descendentes de italianos, barulhentos, que iam disputar um torneio de bochas em Cachoeira do Sul, invadiu o primeiro vagão de segunda classe e para passar o tempo improvisaram um jogo de mora.

O Falso Padre de Cafundó embarcou no ultimo vagão, sorriu, disse bom dia ao Cabineiro e mostrou a passagem:

- Cafundó a São Paulo, cabina seis, seis.

Batida de sino, apito do Chefe do Trem, a viagem continuou.

General Câmara do Arsenal de Guerra; desembarcou o Cabo Armeiro e um grupo de professoras.

- A chegar a Santo Amaro... Santo Amaro...

A bonita e histórica vila de Santo Amaro; da primeira classe desembarcou a bonita Professora Loira que logo foi cercada por um grupo alegre de alunos, da segunda classe saltou o grupo de escoteiros e um tagarela gritou:

- Chegamos para comer mondongo.

As nove e trinta e três passaram na estação de Pagador Martel onde embarcou na segunda classe, a mulher vestindo bombachas e fumando um palheiro.

Estação Monte Alegre, o Engenheiro Construtor de Ferrovias abriu a janela e contou o numero de carretas que estavam perto da estação: Vinte e duas carretas, carretas de duas rodas puxadas por duas ou três juntas de bois, carregadas

16

Page 17: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

com sacos de arroz que estavam sendo transferidos para os vagões de carga estacionados na terceira linha do recinto.

No primeiro vagão de segunda classe embarcou; bombachas remendadas, calçando tamancos, chapéu de palha o Carreteiro de Monte Alegre; que ia visitar uma filha em Santa Maria.

Parada rápida na estação de Porto dos Dourados onde descarregaram as gaiolas com os pombos correios da Sociedade Columbofilia de Porto Alegre e o envelope com as instruções e horário que o Agente de Porto dos Dourados devia soltar os pombos.

Dez e vinte e três a estação João Rodrigues. Embarcou a velha bonita acompanhada da moça feia.

- Ramiz Galvão... Chegar a Ramiz Galvão...

Ramiz Galvão ponto de baldeação para o ramal de Santa Cruz do Sul a capital nacional do fumo. Na plataforma uma pilha de barris de chope, pilha de rolos de fumo em corda exalando o forte cheiro.

Jogadores e torcedores do “Couto Futebol Clube” embaraçaram nos vagões de primeira classe que estavam indo a Santa Maria jogar contra o Rio Grandense.

O Chacareiro de Rincão Del Rey embarcou no primeiro vagão de segunda classe e sentou ao lado do Carreteiro de Monte Alegre.

17

Page 18: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O moço loiro, elegante, mala cheia de etiquetas de hotéis, embarcou no último vagão, disse um alegre bom dia ao Cabineiro e mostrou a passagem:

- Santa Cruz a Ijui com baldeação em Cruz Alta... A cabine é nove, nove.

O moço loiro sorriu e avisou:

- Vou deixar a mala ai e vou viajar na primeira classe tomando cerveja e olhando as gurias bonitas.

Largou a mala na cabine, trancou a porta e foi para a primeira classe. O Inspetor José que estava fumando, no corredor do vagão, e cuidando o movimento chegou perto do cabineiro e perguntou:

- Conhece o moço?

- Sim... Viaja muito com a gente, gosta muito de festas e cabarés, é o Farrista de Ijui.

O vento de primavera sopra de leste, o sol brilha nas pedras centenárias do calçamento das ruas de Rio Pardo, a tranqueira invicta; o apito da quinhentas e doze ecoa na cidade. Onze horas e vinte minutos.

As casas beira trilhos, um grupo de guris soltando pandorgas. Parada em Rio Pardo. A batida do sino. Na plataforma o som da gaita do Gaiteiro Cego e o cheiro de sonhos.

18

Page 19: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Ervateiro de Irati desembarcou e caminhou apressado entre os passageiros para comprar um pacote de sonhos.

Terno branco de linho, chapéu panamá, anel no dedo, bengala, acompanhado de um Carregador com a mala o senhor Advogado embarcou no ultimo vagão e o Cabineiro conferiu a passagem:

- Rio Pardo a São Paulo, cabine oito, oito, boa viagem senhor.

O Ervateiro de Irati embarcou o trem já em movimento, pacote de sonhos na mão. No corredor do vagão o Inspetor José fumando. O Ervateiro de Irati disse:

- Este que embarcou é o Advogado do Criador de Mulas de Pinheiro Marcado...

- Sim... O tal que vai a julgamento.

O trem corria nas várzeas do rio Jacui, no vagão restaurante os funcionários apressados davam os últimos retoques para iniciar a servir o almoço. No primeiro vagão de segunda classe o Carreteiro de Monte Alegre perguntou ao Chacareiro de Rincão Del Rey:

- Até adonde vai o vizinho?

- Pois até to indo pra Santa Maria...

- Então bamos apeiar junto, que eu também vou pra Santa Maria... Eu to vindo da estação de Monte Alegre...

19

Page 20: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Mas eu conheço Monte Alegre, que uma vez eu fui lá pra uma festa de corridas de carretas...

- I é mesmo, a gente gosta duma corrida... O senhor é daí da Ramiz Galvão?

- Não... Eu to vindo do ramal de Santa Cruz da estação Rincão Del Rey...

- Trabalha com fumo?

- Já trabalhei; agora eu cuido uma chácara dum comerciante de Santa Cruz... Ele tem a chácara pra passar os fins de semana... Ele gosta muito de tiro ao alvo... Ele tem um pombal, eu cuido os pombos, às vezes ele junta os amigos pra comer arroz com pombo...

O grupo de jogadores de bochas tomava cerveja e jogava a mora.

Os campos sendo lavrados; homens com arados puxados por juntas de bois, para plantar arroz.

Às doze horas e trinta e cinco minutos parou em Bexiga onde a professora bonita embarcou.

Apitando e batendo o sino o trem chegou a Cachoeira do Sul a bela Princesa do Jacui o município rei do arroz.

O Ervateiro de Irati bateu na cabine do Inspetor José e convidou para irem almoçar no momento que passageiro, jovem, alto, cabelos crespos, jeito atrevido entrou no vagão com passagem de Cachoeira do Sul para a estação Espalha

20

Page 21: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Brasas, o Cabineiro do Vagão da Cauda informou o numero da cabine:

- É a cabine sete, sete.

O Ervateiro de Irati bateu no ombro do Inspetor José e seguiram atravessando o trem até o vagão restaurante enquanto caminhavam o Ervateiro de Irati contou:

- Viu o passageiro que embarcou no nosso vagão?

- Vi... Também é criador de mulas?

- Não... Pistoleiro e dos bons... É nascido e criado na região de Castro no Paraná... Vivia ali entre Castro e Pirai do Sul... A mãe dele mora numa estação pequena... Um povoado chamado Espalha Brasas...

- Como é o nome?

- Espalha Brasas.

Um pistoleiro no ultimo vagão daquele trem que um telefonema tinha anunciado que haveria um morto. Preocupado o Inspetor José perguntou:

- Acredita que ele pode matar alguém neste trem?

O Ervateiro de Irati sacudiu a cabeça, sorriu, pensou:

- Nunca se sabe... Eu sei que ele trabalha pra gente que tem poder...

21

Page 22: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Sentados num dos extremos do vagão restaurante o Escritor de Jandira escutava a história do Cafezeiro de Monte Azul:

- E eu briguei com o cego e fui embora de Montes Claros... O moço conhece Bocaiúva... Cidade boa tem uma estação grande... Perto da estação tem um alambique e eu fui alambicar pinga... Uai! Tem que ter paciência pra fazer a pinga... Eu cortava a cana, esmagava a cana, botava a garapa pra fermentar e depois alambicava... O alambique é duma viúva que ainda mandava eu vender caldo de cana na estação do trem... E pagava bem pouco...

Naquele momento entraram no vagão restaurante os dois passageiros do vagão da cauda; Vendedor de Mulas de Sorocaba e o Vendedor de Mulas de Itapetininga. O Cafezeiro de Monte Azul parou de falar e ficou olhando os dois que sentaram no outro extremo do vagão, bateu no braço do Escritor de Jandira, apontou:

- Uai! Aqueles dois é gente que lida com bestas...

- Com o quê?

- Moço, lá no norte de Minas nós chama de besta as mulas e os burros que são uns bichos muito inteligentes.

- O senhor os conhece?

- É... Que eu fui da Bocaiúva pro Quem-Quem e que lá o meu Padrinho convidou eu pra trabalhar mais ele... Meu Padrinho tinha negócios de compra e vendas de cavalos, burros e jegues... Que ele negociava muito na feira de Pai

22

Page 23: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Pedro... O moço conhece Pai Pedro?...Pai Pedro é estação na linha de Montes Claros pra Monte Azul, é lugar bom... No domingo, moço, tem a Feira de Pai Pedro... Uai! A feira de Pai Pedro é feira de verdade... Vai que aqueles dois paulistas, que ta sentado ali na ponta deste vagão, foi em Pai Pedro pra comprar burros e deu negocio com meu Padrinho... Um acerto de vinte quatro mulas pra meu Padrinho mandá num vagão de trem pra Sorocaba, que quando a mulas chegava em Sorocaba eles mandava o dinheiro...Vinte quatro mulas escolhidas... Sabe o que deu? Mandaram menos dinheiro que o combinado e mandaram uma carta dizendo que as mulas chegou pesteadas e que morreu dez. Se a mula pesteou na viagem e se morreu no destino nada tava no combinado... O Padrinho é mineiro bom e ficou quieto, e esperou eles com trinta mulas, tudo mulas de lei, só bicho de encher os olhos... Eles foi e lá foi nova combinação, só que mudou que meu Padrinho quis o pagamento lá na feira e prometeu mandar as mulas no trem... Que no caso tinha que esperar um vagão que ia de Montes Claros... Os paulistas pagaram as mulas e foram embora, dois dias depois meu Padrinho carregou trinta mulas no vagão, tudo mula fora do combinado, mula magra, mula velha... Moço os paulistas voltaram em Pai Pedro só que antes tomaram o prevenimento de contratar dois Pistoleiros na cidadezinha de Janauba... O moço conhece Janauba?... Dois Pistoleiros de meia tigela... Moço, coisa feia, tremeu a feira de Pai Pedro, que o Padrinho é homem de muito prestigio naquele chão... Batemos de chicote nos paulistas e nos dois Pistoleiros e eles fugiram pra Janauba... Uai! Este povo nunca mais foi lá no norte...

23

Page 24: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O jovem Escritor de Jandira despejou cerveja nos copos, sorriu e disse:

- Estou gostando das estórias da sua terra... Talvez um dia eu escreva um livro...

Parada na estação Pertile, no recinto muitos vagões sendo carregados com arroz que ali chegava de barcos pelo rio Jacui. No primeiro vagão de segunda classe embarcou um grupo de doze homens, com bagagem simples; alguns sacos com poucas roupas, caixas de papelão com panelas e foices de mão: cortadores de foice que iam fazer a safra do trigo nas lavouras de Erechim. Sentaram juntos e logo improvisaram com as caixas uma mesa para jogarem um torneio de bisca com um baralho velho.

Os vagões de segunda classe tinham os bancos de madeira, cada banco dois lugares; e um encosto servia para dois bancos, ou seja, a metade dos passageiros viajava de frente para a outra metade, cada vagão levava cinqüenta e seis passageiros.

O trem correndo entre as estações de Pertile e Jacui, o Inspetor José no corredor do vagão da cauda fumando e conversando com o Escritor de Jandira que contava:

- Meu companheiro de cabine é Cafezeiro em Monte Azul. Monte Azul é no norte de Minas. Ele vende café nos trens. Ele conta muitas estórias engraçadas, a viagem esta boa. Eu que sou escritor estou gostando...

- Tu também és Mineiro?

24

Page 25: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Não, eu sou paulista, eu moro em Jandira... Jandira é perto de São Paulo.

Estação Jacui, nas várgeas deste rio, onde a Viação Férrea tinha a oficina dos aparelhos telegráficos. Na chegada do trem a confusão já estava feita; na segunda linha do recinto um vagão de primeira classe, dentro do vagão um caixão de defunto com um cadáver dentro, dois marmanjões, mal encarados, bombachas, botas, lenço no pescoço, chapéu de abas largas, revólver na cintura um em cada extremo do vagão tirando guarda. Vestida de preto, descabelada, uma mulher andava na volta do vagão, xingando e rogando pragas.

O Agente de Jacui avisou ao Chefe do Trem:

- Um vagão especial, com um defunto, para levar até Arroio do Só.

- Bem... Vamos engatar na cauda...

A mulher de preto chegou ao escritório da estação e disse ao Chefe do Trem:

- Eu vou naquele vagão. Os filhos do finado não querem que eu vá... Eu era a Amante do Finado, ele morreu na minha casa... Eu vou... Eles tão de olho na herança...

Os Guarda-Freios deram jeito em efetuar a manobra para engatar o vagão na cauda do trem. Na plataforma da estação a mulher de preto botou a boca no Chefe do Trem.

25

Page 26: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Vagão engatado, trem pronto para continuar a viagem, a Amante do Finado comprou passagem e embarcou na segunda classe.

O trem saiu; quatorze horas e vinte e cinco minutos; atrasou cinco minutos em Jacui e continuou até a estação de Estiva com um morto no ultimo vagão.

No corredor do vagão o Ervateiro de Irati disse ao Inspetor José:

- Meu companheiro de cabina, aquele padre, esta dormindo dês que embarcou em Barreto... Na etiqueta da mala dele diz que ele vem de Cafundó... Cafundó é uma estação que tem perto de Montenegro... Eu só espero que de noite ele não invente de ficar acordado lendo...

- É; sendo padre é provável que goste de ler a Bíblia...

- Padre?... Eu até desconfio que ele seja um falso padre...

- Testemunha, pistoleiro, falso padre... Nosso vagão vai bem...

Na segunda classe, quatro cortadores de foice que embarcaram em Pertile jogavam a bisca, outro tocava uma gaita de boca enquanto o Comunista de Canoas contava ao resto do grupo as vantagens do regime comunista.

A Amante do Finado que embarcou em Jacui sentada defronte o Chacareiro de Rincão Del Rey e o Carreteiro de

26

Page 27: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Monte Alegre se lamentava e falava mal da família do defunto.

Estação Estiva o vendedor de pastel gritando ao lado do trem. O passageiro da cabine três escutou o grito, saio ligeiro da cabine e foi para a plataforma do vagão chamar o pasteleiro. Comprou um pastel. O Cabineiro do Vagão da Cauda o informou:

- Senhor... Desculpe... O trem tem vagão restaurante... Tem refeições; café, gasosas...

O passageiro sorriu tímido, desapontado e disse:

- Eu venho com pouco dinheiro... Até chegar em Marcílio Dias é longe... Eu não tava trabalhando... Eu tava na cadeia...

- Chegando a Restinga Seca... Restinga Seca.

O grupo de guris jogando bola, as lavadeiras com trouxas de roupa na cabeça, o homem puxando uma vaca com uma corda.

Sentado na cama, Inspetor José, porta da cabine um aberta, o Cabineiro do Vagão da Cauda chegou e contou:

- O passageiro da cabine três é ex-prisioneiro...

- O que?

- Ele me disse que saiu da cadeia...

- Para onde ele vai?

27

Page 28: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Estação Marcílio Dias...

Um sujeito entrou no primeiro vagão de segunda classe e o atravessou correndo, estava totalmente nu. O Comunista de Canoas tentou segura-lo, mas não conseguiu.

Inspetor José pegou o caderno de apontamentos. É temos: pistoleiro, escritor, cafezeiro, ervateiro, ex- prisioneiro, testemunha...

Estação de Arroio do Só, na plataforma a Viúva do cadáver que vinha na cauda do trem, poucos parentes e muitos curiosos. Agente de Arroio Só nervoso.

A quinhentas e doze entrou no recinto apitando e batendo o sino, mas antes de parar já a confusão estava formada: A Viúva deu um grito e começou a bradar bobagens. Um gaiato disse uma piada. Curiosos correram para a cauda do trem. A Amante do Finado saltou da segunda classe decidida a fazer lambança.

O Vendedor de Cuias embarcou com duas malas cheias de cuias no primeiro vagão de segunda classe.

Na cauda do trem, Viúva e a Amante do Finado se encontraram e formou a confusão. As duas se pegaram a tapas.

Um Guarda-Freio desengatou o vagão com o defunto do resto da composição.

28

Page 29: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Chacareiro de Rincão Del Rey e o Carreteiro de Monte Alegre desceram do trem para assistirem a confusão. O trem seguiu viagem e os dois ficaram no meio da confusão.

- Santa Maria, saída pela porta da frente... É Santa Maria...

O apito, da locomotiva, retumbou nos morros que cercam a cidade coração do Rio Grande o centro ferroviário gaúcho. Com seis minutos de atraso o “P2” encostava-se à plataforma. Passageiros descendo, passageiros embarcando, Jornaleiro gritando:

- A Razão... É a Razão...

Carregadores dos hotéis gritando o nome dos hotéis. Agitação na plataforma. No escritório da estação o Agente de Santa Maria junto com os dois Chefes de Trem; o que chegou e o que continuaria; ali o trem trocaria sua equipe de funcionários, discutiam se seria necessário engatar mais algum vagão na composição.

O trem: um vagão para bagagens, o vagão escritório, quatro vagões de segunda classe, o vagão restaurante, cinco vagões de primeira classe e sete vagões dormitório.

No vagão de bagagens o Bagageiro carregava latas com rolos de filmes, que iria distribuir ao longo do trecho em cidades e vilas que tinham cinema.

No primeiro vagão de primeira classe, aquele engatado ao vagão restaurante, os Caixeiros Viajantes se acomodavam e marcavam lugares para os colegas que dentro de minutos

29

Page 30: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

chegariam no “Fronteira”. Nos trens os Caixeiros Viajantes procuravam viajar junto o vagão restaurante, ali iam fazer as refeições depois dos outros viajantes e a amizade com o pessoal do vagão rendia boas porções e mais tempo para ocupar os lugares tomando cerveja ou vinho, claro que o pessoal do vagão recebia amostras de remédios, brindes e bugigangas.

Primeiro na sala do telegrafo, depois no escritório do Agente, na plataforma e por fim a noticia se espalhou dentro do trem; acidente na estação de Maquinista Severo. Bá! Vai ter baldeação? Daqui até lá... Passa em “Severo” à uma da madrugada.

O Ex Oficial Nazista, com cabelo grande, loiro, farto bigode, óculos escuros, na mão esquerda uma mala, debaixo do braço direito uma grossa pasta de couro, atravessou a plataforma, embarcou no primeiro vagão de segunda classe. O Homem de Terno Cinza cuidou os seus movimentos e embarcou no mesmo vagão.

A quinhentas e doze foi desengatada do trem e se afastou; logo uma nova locomotiva foi engatada; uma Montain, a oitocentas e trinta.

No vagão restaurante preparava-se a janta.

Camareiros examinavam o interior dos vagões, Guarda-Freios examinavam os freios e lanterna sinaleira da cauda.

Um apito rouco, o bater de sinos e alguém gritou:

- Chegando o “Fronteira”.

30

Page 31: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O trem “P32” procedente de Uruguaiana com baldeação em Cacequi onde pegou passageiros das linhas: Cacequi Bagé Rio Grande e Cacequi Santana do Livramento; encostou-se à plataforma atrás do “Paulista” e despejou mais de quatrocentos passageiros. Dezessete horas. Correria, Carregadores apressados. Muita gente aguardaria o “Noturno” para Porto Alegre e muitos seguiriam no “Paulista” que em fração de segundos foi invadido.

No primeiro vagão de segunda classe o Homem de Terno Cinza, debruçou na janela e fez sinal para a Mulher Misteriosa do Cruz a qual embarcou no vagão e sentou junto ao corredor num lugar onde podia trocar sinais com Homem de Terno Cinza. O Ex Oficial Nazista trocou de lugar e também sentou junto ao corredor e cuidando os dois e por eles sendo cuidado.

No primeiro vagão de segunda classe, os Cortadores de Foice de Pertile, que já estavam no trem, se acomodaram em seus lugares, o Comunista de Canoas também se acomodou ligeiro já que o vagão foi invadido.

Terno Azul, gravata escura o Argentino, que vinha de Barra do Quarai e imaginava chegar a Recife sentou no extremo dianteiro do vagão, ou seja, de costas para a viagem e olhando todo o vagão. Na verdade vinha fugindo da Argentina por perseguição política e pretendia chegar ao Recife, onde conseguiria com um Capitão de Navio, navio que carregava açúcar, uma maneira de chegar à Espanha onde pretendia pedir exílio político.

31

Page 32: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No banco da frente do Argentino, sentaram dois Soldados da Cavalaria. Os dois viajavam de Uruguaiana a Tupanciretã, cansados; adormeceram.

O casal, ele o Tropeiro de Povinho dos Castilhos e ela a Esposa do Tropeiro de Povinho dos Castilhos se acomodaram num banco do meio do vagão, diante deles sentaram a Viúva de Umbu e Domador de Tiaraju.

Dentre outros foram ocupando o vagão: a China Gorda de Rio Grande abraçada no Marinheiro de Santos, a China Magra de Livramento, os quatro Esquiladores do Alegrete, o Degolador do Agente Gomes, o Lanceiro de Inhandui, o Futuro Sargento de Freitas Vale, a Família de Plano Alto; casal e oito filhos o último a embarcar o Andarilho que sentou ao lado do Argentino.

O Andarilho costumava andar sempre a pé no trecho de Passo Fundo a Cacequi, mas tinha uma mania; em Santa Maria ele passava de trem. Nas estações próximas de Santa Maria; Pinhal e Boca do Monte ele trabalhava, conseguia limpeza de pátio, corte de lenha, qualquer servicinho que fosse pago com uma passagem entre as duas estações, naquele dia viajava de Boca do Monte a Pinhal. No pé direito sapato no esquerdo bota, chapéu de palha, furado, calças cheias de remendo, um saco com suas bugigangas, que colocou debaixo do banco, olhou para o Argentino e sentou no lado dele. Por mi madre que pueblito!

Na Família de Plano Alto a mãe tentava acomodar os oito filhos num banco, alguns entre os bancos. As crianças não

32

Page 33: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

tiravam os olhos de um saco branco que o pai botou no porta-bagagem.

O grupo de Balseiros do Rio Uruguai, também, entrou no primeiro vagão de segunda classe e logo conseguiram lugares, seis homens que vinham de Itaqui para Marcelino Ramos.

O Contrabandista de Jaguarão, com uma grande pasta preta debaixo do braço, chegou à porta do último vagão e ficou esperando o Cabineiro. Em seguida chegou o Ceboleiro do Povo Novo e também tendo uma grande pasta preta debaixo do braço. Os dois já tinham se visto na baldeação de Cacequi e foi ódio a primeira vista. O Cabineiro do Vagão da Cauda os atendeu:

- Jaguarão a São Paulo e Povo Novo a São Paulo... Os dois viajam na mesma cabina; a dez, dez.

Os dois se olharam sérios demonstrando contrariedade. Embarcaram contrariados.

Fumando no corredor do vagão o Inspetor José notou e ficou pensativo. O Cabineiro do Vagão da Cauda chegou perto dele e disse:

- Estes dois vão se matar ai dentro...

Sonolento o Falso Padre de Cafundó saiu da cabine e perguntou a o Inspetor José:

- Tem gente no banheiro?

Na plataforma da estação ainda se moviam passageiros; dois Coronéis do Exercito, um Padre, grupos de Soldados, uma

33

Page 34: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

família de Ferroviários em férias, um Batedor de Carteiras, um Deputado Federal...

Na primeira classe dois Maquinistas da “Leste”, se acomodaram. Tinham vindo a Santa Maria para conhecerem e operarem a locomotiva “Garrat”; que tinha dois tenderes: tender do carvão e o tender da água, que a Viação Férrea do Leste Brasileiro pretendia negociar com a Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Um deles comentou:

- Maquinão; enche com a água do São Francisco, lá no Juazeiro da Bahia e vem sem beber água até Salvador...

Na segunda classe a China Magra de Livramento piscou para o Marinheiro de Santos e a China Gorda de Rio Grande não gostou. Os Esquiladores do Alegrete improvisaram uma mesa com as malas e começaram a jogar o truco. A Mulher Misteriosa do Cruz cuidava o Ex Oficial Nazista que cuidava o Homem de Terno Cinza. Os oito filhos da Família de Plano Alto cuidavam o saco branco no porta-bagagem enquanto a mãe contava para a senhora que estava no banco ao lado:

- Tive sete filhos tudo homens... Sete homens o mais moço vira lobisomem aí tive que ter mais um...

Na locomotiva o Foguista jogava carvão na fornalha e o Maquinista cuidava o manômetro.

O Revisteiro percorrendo o trem, vendendo revistas e bilhetes de loteria.

34

Page 35: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Agente de Santa Maria pegou a corda do sino e deu duas batidas; primeiro sinal, cinco minutos para o trem partir. A locomotiva respondeu com um apito.

No último vagão o Falso Padre de Cafundó disse para o Ervateiro de Irati:

- Dormi o dia todo, agora vou lá para a primeira classe conversar com os Caixeiros-Viajantes. O senhor pode dormir tranqüilo, a noite toda.

De pé dentro da cabine um o Inspetor José conferiu suas anotações, saiu e foi ao encontro do Cabineiro perguntando:

- Aquele passageiro que embarcou em Ramiz Galvão?... O tal Farrista de Ijui... Não vi mais ele...

O Cabineiro do Vagão da Cauda deu uma risada, sacudiu a mão e respondeu:

- Ta jogando canastra com os Caixeiros-Viajantes lá na primeira classe... Só vem aqui na hora do desembarque pra pegar a mala.

O Inspetor José tirou um cigarro do bolso.

Batida de sino, trilar de apito do Chefe de Trem, apito da locomotiva, bufar dos cilindros. Sino batendo a oitocentas e trinta arrancou. Partiu no horário; dezessete horas e quinze minutos. O trem trocou de prefixo, passou a ser “N2”. Passou o dia correndo de Leste para Oeste no centro do Rio Grande do Sul agora tomava o rumo Norte.

35

Page 36: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Chefe de Trem acompanhado de um Camareiro, com um bloco de anotações na mão, entrou no primeiro vagão de segunda solicitando:

- Passagens, por favor, passagens...

Conferia, picotava e dizia para o Camareiro: Freitas Vale a Três Corações... Cruz a São Paulo... Santa Maria a São Paulo... Rio Grande a Santos... Bolaxa a Passo Fundo...

A mãe da Família de Plano Alto levantou e para a alegria dos filhos, tirou o saco branco do porta-bagagem, recomendou que tivessem modos e abriu o saco; seis cabeças de ovelhas asadas, seis cabeças para oito meninos. E o trem correndo, e começou o desacerto pelas cabeças, um empurrou o outro a cabeça de ovelha rolou no corredor do vagão. A mãe pedia modos e eles se empurrando e voou uma cabeça de ovelha que bateu no peito do Argentino e deslizou pela gravata. Que pueblito!

Parada em Pinhal, dezoito horas e quatro minutos ponto de cruzamento com “P22”, o “Serra”, vendedores cercaram o trem vendendo espetinhos com lingüiça assada.

No ultimo vagão o Ex Prisioneiro de Marcílio Dias foi até a plataforma do vagão e comprou um espetinho.

Na segunda classe o Andarilho pegou o saco debaixo do banco e desembarcou. Um mulato, alto, entrou pelo outro extremo do vagão; botas sujas de esterco de gado, bombachas com um remendo na bunda, lenço branco muito encardido no pescoço, chapéu de abas largas, segurando um fardo de arreios no ombro e tinindo as esporas. Botou o fardo de

36

Page 37: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

arreios debaixo do banco, jogou o chapéu pra nuca, sentou ao lado do Argentino, pegou a guampa-cantil que carregava a meia espalda, destampou, bebeu um gole de cachaça e deu um arroto. A China Magra de Livramento disse:

- Chiqueiro porco.

Tranqüilo o Peão de Estância de Pinhal disse:

- Se tu fosse macho te cagava a coice.

A China Gorda de Rio Grande deu uma gargalhada e o Argentino se encolheu: que pueblito!

No ultimo vagão na cabine dez o Ceboleiro de Povo Novo, deitado no leito superior abraçado com a pasta preta. No leito inferior o Contrabandista de Jaguarão, também deitado e abraçado com sua pasta preta e com raiva do companheiro de cabine.

Anoitecia e o vagão restaurante ia cheio.

Na segunda classe o Peão de Estância de Pinhal, olhou o Argentino, com muita calma enfiou a mão no cano da bota e tirou uma faca, olhou a faca, olhou para o Argentino, experimentou o fio da faca, do bolso da bombacha tirou um pedaço de fumo em corda e calmamente começou a picar.

A Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos contava para a Viúva de Umbu:

- Pois bamos pra Aparecida do Norte, que eu vou pagar uma promessa pra Nossa Senhora de Aparecida e na volta à gente que fica uns dias em São Paulo, que eu tenho muita vontade

37

Page 38: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

de conhecer, diz que é uma baita cidade, diz que é cheia de arranha-céus, a eu quero comer o feijão de São Paulo...

O Domador de Tiaraju riu e interrompeu:

- Ué! O feijão de São Paulo é diferente?

- Pois sabe que é vizinho... Que lá em Povinho dos Castilhos apareceu um senhor que era de São Paulo e ele me contava que o feijão deles é feito com torresmo e engrossado com farinha de mandioca... Que ele chamava o meu feijão de feijão do Povinho dos Castilhos...

A Viúva de Umbu, perguntou:

- Como é que a vizinha faz o feijão?

- É com carne de ovelha e abobora...

- Pois o feijão do Umbu é com charque e batata doce...

O Peão de Estância de Pinhal fez um cigarro de palha, acendeu, deu uma baforada e tapou o Argentino na fumaça. Que pueblito!

Na cabine sete do último vagão, o Pistoleiro de Espalha Brasas fechou à porta a chave, pegou a mala, abriu e do meio das roupas tirou a pistola e enfiou por dentro do casaco.

Na segunda classe o Degolador de Agente Gomes, se remexia e esfregava as mãos; era a crise, era a vontade de matar, era o medo de morrer. Quando jovem entre os anos de mil novecentos e vinte três e mil novecentos e vinte e cinco, tempo da luta entre Maragatos e Chimangos, fez parte de um

38

Page 39: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

grupo de degoladores que agia na região de Pelotas no sul do Estado. Degolas políticas. Depois que o grupo se dispersou, ele, continuou ainda fazendo alguns “servicinhos” a mando dos poderosos. Depois se encostou a uma fazenda na parada Agente Gomes, onde fazia serviços na volta da sede; cortar lenha, capinar pátio, etc. Agora que estava ficando velho andava sentindo as crises, pouco dormia. Aconselharam a consultar um curandeiro em Passo Fundo.

A China Magra de Livramento se jogou para o lado do Futuro Sargento de Freitas Vale. O moço até que gostou, mas pensou; viajava com pouco dinheiro, alias o suficiente para chegar à cidade de Três Corações em Minas Gerais onde iria cursar a escola de sargentos, não ia se meter com chinas.

- A chegar a Júlio de Castilhos, é Júlio de Castilhos, por favor, saída pela porta da frente...

Júlio de Castilhos, antiga Vila Rica que adotou o nome do filho ilustre, o apito da locomotiva e o bater do sino saudando a cidade naquele anoitecer de primavera.

No último vagão o Ervateiro de Irati e o Inspetor José combinaram em ir ao vagão restaurante jantar:

- Descemos e vamos pela plataforma que é melhor que atravessar doze vagões.

Na cabine dez o Ceboleiro de Povo Novo louco de vontade de ir jantar, mas não queria andar com a pasta preta na mão e não queria deixar a pasta na cabine. Estava com fome. Dois dias viajando, saiu de Povo Novo na véspera, sem tomar café, ao passar no Capão Seco comprou um pastel de mingau que

39

Page 40: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

comeu com uma gasosa, durante o resto do dia nada comeu a noite no hotel em Bagé tomou uma canja e foi só o que comeu naqueles dois dias. Vontade de jantar.

Na cabine sete o Pistoleiro de Espalha Brasas, bateu na pistola, debaixo do casaco, da mala tirou uma toca, enfiou na cabeça e saiu para ir ao vagão restaurante.

Na segunda classe o Peão de Estância de Pinhal, largou o toco de cigarro de palha no assoalho do vagão, apagou com o salto da bota, levantou, agachou, tirou o fardo de arreios debaixo do banco e saiu tinindo esporas.

Um mulato, magrinho, baixo embarcou com um pacote debaixo do braço e sentou a o lado do Argentino.

A Viúva de Embu ensinava a Esposa do Tropeiro de Povinho dos Castilhos a fazer licor de batata-doce, enquanto o Domador de Tiaraju contava ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

- Pois sou domador, eu moro no Tiaraju é estação do município de São Gabriel... Tou indo a Passo Fundo visitar minha filha...

Parada rápida em Júlio de Castilhos, batida do sino, apito do Chefe de Trem, partiram.

O Mulato que estava sentado ao lado do Argentino abriu o pacote onde estava uma galinha de trem; galinha frita e enrolada na farinha de mandioca crua, pegou uma coxa, deu uma mordida e saltou farinha para os lados inclusive atingindo o Argentino. A China Magra de Livramento chegou

40

Page 41: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

perto de Mulato e aceitou o pedaço que ele ofereceu. Ela de pé, o Mulato sentado, os dois comendo galinha e jogando farinha no Argentino.

Charqueada São João, o maquinista apitando e pedindo passagem, que ali o “N2” não parava. No seu posto o guarda-chaves levantou o lampião amarelo. Na plataforma da pequena estação o encarregado levantou o lampião vermelho. O Maquinista puxou a alavanca do regulador de vapor e segurou a palanca do freio. Movimento no vagão escritório, o trem começou a diminuir a marcha:

- Ué ele nem para em Charqueada São João...

O comboio atravessou meio recinto, parando na frente da estação o último vagão. O Chefe de Trem saltou do vagão escritório e correu pela beira do trem. Janelas se abriram e curiosos botaram as cabeças para fora. Na plataforma da estação, o encarregado, um Cabo da “Brigada Militar”, dois soldados e deitado num colchão um ferido. O Encarregado da Parada Charqueada São João explicou ao Chefe de Trem:

- Um ferido, ladrão de gado, tiroteio com a Brigada... O Cabo quer levar para Tupanciretã...

O Chefe de Trem sacudiu os braços, até fazer a burocracia, vai me atrasar o trem...

O Cabo; da “Brigada Militar” disse:

- Botamos, ele aqui na ultima plataforma, deste vagão, e vamos embora.

41

Page 42: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Encarregado da Parada Charqueada São João concordou e o Chefe de Trem disse:

- Ligeiro...

Os soldados levantaram o colchão com o ferido e botaram na última plataforma do trem. O Chefe de Trem correu até a locomotiva para ordenar o reinicio da viagem.

O Cabineiro do Vagão da Cauda ia recostado na ultima porta do vagão olhando o ferido ali na plataforma, acompanhado dos policiais. Este trem, hoje, já carregou um defunto e agora vai levando um moribundo.

- Estação Tupanciretã... Tupanciretã...

A luz do farol da locomotiva iluminou a plataforma da estação. O apito rouco da “Oitocentos e trinta” ecoou na pequena cidade.

O Mulato largou o pacote com os ossos da galinha debaixo do banco, limpou a boca e sacudiu as mãos jogando mais farinha de mandioca no Argentino. O trem parou e ele desembarcou, a China Magra de Livramento disse:

- Esse entrou no trem só pra comer galinha...

A China Gorda de Rio Grande, jogada por cima do Marinheiro de Santos, retrucou:

- Eta língua grande...

Os dois soldados que viajavam no banco a frente do Argentino acordaram, e desembarcaram.

42

Page 43: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Inspetor José e o Ervateiro de Irati voltaram do vagão restaurante para o vagão da cauda.

Na cabine dez o Contrabandista de Jaguarão adormeceu; abraçado a pasta preta. O Ceboleiro de Povo Novo espiou o companheiro de cabine. Vontade de ir jantar, fome, mas não ia ao vagão restaurante.

Na cabine dois o Cafezeiro de Monte Azul avisou a o companheiro de cabine que não iria ao vagão restaurante; o Escritor de Jandira resolveu ir ao restaurante.

Na segunda classe, três velhas embarcaram e sentaram duas na frente e uma ao lado do Argentino. Logo botaram no chão um pequeno fogareiro a álcool, uma foi o “WC” buscar uma chaleira com água. Preparavam o mate doce.

De Tupanciretã a Cruz Alta, viagem direta; sem parar nas estações do trecho.

O Ervateiro de Irati resolveu tirar um sono, mas antes pediu ao Cabineiro do Vagão da Cauda:

- Me chama quando chegar a Cruz Alta, meu irmão esta lá me esperando...

Na segunda classe, o Lanceiro de Inhandui, um mulato, alto, magro, com oitenta anos, com sono, sacudia a cabeça de um lado ao outro e contava para o moço que viajava a seu lado:

- Foi na Revolução Federalista, eu lanceiro nas tropas de Uruguaiana... Deu o combate no dia três de maio de mil oitocentos e noventa e três. Me feriram na perna, ferimento

43

Page 44: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

feio, me levaram prum galpão de estância, até tinha outros feridos. Acredita ali eu fiquei me empreguei na estância, casei, criei filhos e até hoje eu moro na estação Inhandui... Vou ver uma neta no Passo Fundo.

Perto do Argentino as três velhas tomavam mate doce, comiam pipocas e falavam mal da vida alheia. O Argentino, cansado, já ia tonto. Dizia uma:

- Eu Deus me livre de falar mal da vida dos outros, mas aquela dona é a maior safada de Tupanciretã... Tem gente que diz que ela andou até com o padre...

- Olhe e eu nem duvido, que aquele padre é safado...

Enquanto o Tropeiro de Povinho dos Castilhos contava para o Domador de Tiaraju os trabalhos que passava tocando tropas de bois brabos do município de São Borja para a charqueada de Quarai, a esposa dele contava a estória de uma briga:

- Mas vizinha, umas carreira de cavalo, coisa pequena, que o Povinho é um lugar pequeno, e eu era noiva dele... Mas tinha, lá, uma metida que andava se bobeando e dizendo que ia roubar ele de mim... Mas foi no dia das carreiras, mas enfiei os dedos nos olhos dela...

O trem correndo, o Cabineiro do Vagão da Cauda, sentado no seu canto, tirando uma soneca, acordou assustado como vulto a sua frente:

- O colega, não te lembra mais de mim.

- O... Sim o colega de Benjamin Not.

44

Page 45: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Isto mesmo... Vou descer ai da última plataforma.

- Rapaz! Tem cuidado.

O outro sorriu e seguiu pelo corredor do vagão. Era ferroviário, trabalhava na usina de tratamento de dormentes na estação de Benjamin Not, estava voltando da casa da noiva em Tupanciretã e como aquele trem não parava em Benjamin Not, ele saltava da última plataforma.

Benjamin Not, escrito na tabuleta na beira dos trilhos, o Maquinista puxou a corda do apito. Recinto cheio de vagões carregados com dormentes, na plataforma da estação, lampião verde, Agente com o arco com a licença na mão pronto a entregar para o Maquinista. O Cabineiro do Vagão da Cauda foi para a porta do fim do corredor ver o outro saltar. Que perigo. Recinto escuro. Passou a estação e ele saltou; um vulto que correu atrás do trem. O Cabineiro respirou; aliviado.

Parada José Vargas a sete quilômetros de Cruz Alta, recinto cheio de vagões de carga: para aliviar o recinto de Cruz Alta, lampião verde na plataforma, o trem não para, Encarregado de Parada com licença no arco, um vulto na beira dos trilhos. Correu junto ao trem segurou os balaustres da última plataforma do trem e pulou para o estribo; embarcou o Clandestino de José Vargas.

Na segunda classe as Linguarudas de Tupanciretã já tinham tomado duas chaleiras de mate doce, comido uns dois quilos de pipoca, falado mal da metade da cidade e deixado o Argentino completamente tonto.

45

Page 46: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Ex Oficial Nazista ia tonto de sono, mas sabia que não podia dormir que o Homem de Terno Cinza não tirava os olhos dele.

No ultimo vagão o Inspetor José, fumando no corredor, viu o Criador de Mulas de General Neto voltando do vagão restaurante.

- É Cruz Alta saída a porta da frente... Cruz Alta... Aqui desembarcam os passageiros para o ramal de Santa Rosa... É Cruz Alta...

As luzes de Cruz Alta. Movimento dentro do trem, boa parte da carga ficaria ali.

A moderna estação de Cruz Alta. Plataforma cheia de gente, o bater do sino e ringir dos freios.

O Cabineiro do Vagão da Cauda bateu na cabine seis chamando o Ervateiro de Irati.

Apressado o Farrista de Ijui entrou no vagão pegou a mala na cabina nove, agradeceu ao Cabineiro e se despediu convidando:

- Vai lá, em Ijui pra tomar cerveja com lingüiça.

O Inspetor José saiu da cabine um desceu do trem, olhou as horas no relógio da estação: vinte duas horas e dez minutos; estavam no horário. Viu o Ervateiro de Irati abraçando o irmão.

Do primeiro vagão de segunda classe, desembarcaram os Esquiladores do Alegrete, as Linguarudas de Tupanciretã.

46

Page 47: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Na primeira classe a noticia entre os Caixeiros Viajantes; a linha ainda esta interrompida em Maquinista Severo. Vai ter baldeação?

A China Magra de Livramento resolveu espichar as pernas e desembarcou para passear na plataforma da estação. De uma das janelas do segundo vagão de segunda classe o Mentiroso de Azevedo Sodré a viu e ficou interessado.

Carregadores se movimentando ligeiro, um trem de cargas passou ao lado do Noturno enchendo os vagões de fumaça. Passageiros apressados embarcando.

No primeiro vagão de segunda classe embarcou, com uma gaita embaixo do braço, o Gaiteiro de Santa Barbara e sentou junto do Argentino. A China Magra de Livramento embarcou e olhou para o gaiteiro dizendo:

- Oba, bamos tê música...

A China Gorda de Rio Grande, abraçada no Marinheiro de Santos, interrompeu:

- Já a sirigaita se refestelou...

O Mentiroso de Azevedo Sodré trocou de vagão, passou para o primeiro vagão de segunda classe onde conseguiu lugar junto ao Futuro Sargento de Freitas Vale.

O Degolador de Agente Gomes tremeu o corpo, sentiu raiva, meteu a mão dentro do cano da bota para tocar na faca: ainda mato um dentro desta merda deste trem.

47

Page 48: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Vinte e duas horas e vinte e seis minutos o Agente de Cruz Alta bateu o sino dando partida para o Noturno. O Clandestino de José Vargas embarcou na plataforma do último vagão.

Próxima parada em Santa Barbara as zero hora e treze minutos, o Cabineiro do Vagão da Cauda se acomodou no seu canto para tirar uma soneca.

No primeiro vagão de segunda classe a China Magra de Livramento pediu para o Gaiteiro de Santa Barbara:

- Hei tche! Toca um troço.

Tímido o Gaiteiro se encolheu, mas outros passageiros pediram e ele resolveu:

- Ta bom... Vou tocar um tanguinho...

Tanguinho? O Argentino se remexeu no banco. Bastavam os dias que tinha passado em Barra do Quarai aguardando que os companheiros de partido fizessem os contatos e conseguissem documentos e dinheiro para ele fugir, e lá tinha escutado muitos tangos. Ele que nos bons tempos que servia e se servia do poder freqüentava as boas casas de tango de Buenos Aires, com as grandes orquestras: “Troilo”, “Darenço”. Na fronteira encontrou tal de “tango de fronteira”, dançado por gaúchos pilchados e se pavoneando. Cantado pelo Negro Cantor de Beleza; Beleza uma estação do ramal de Uruguaiana a Barra do Quarai, que abria o peito pra cantar “Adios Pampa Mia” e tremiam as três vilas da tríplice fronteira: Barra do Quarai, Bella Union e Monte Caseros, ou quando cantava: Um tango de frontera, Pa se bailar la noche entera, em meio à polvadera,

48

Page 49: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

com canha brasileira, e ao son del bandoneio, yo me pavoneio...

Mas o Gaiteiro de Santa Barbara abriu a gaita fanhosa que retumbou na segunda classe e abriu o peito:

- Restisflaus de mis tristes, vos que a sido em mi pobre vida paria...

Pobre do Argentino sentiu dor de estomago.

O Mentiroso de Azevedo Sodré com os olhos cravados na China Magra de Livramento, contava para o Futuro Sargento de Freitas Vale:

- Pois eu sou do município de “San Gabriel”, venho da estação do Azevedo Sodré. Na vila do Azevedo Sodré já namorei as gurias todas, nos bailes do Sodré eu sou o pai dos homens e o namorado de todas as mulheres...

A China Magra de Livramento franziu a testa e disse:

- Ih! Esse é comedor de égua...

E o trem correndo passou pela estação de Eurico Martelete. O Pistoleiro de Espalha Brasas entrou no ultimo vagão, o Cabineiro dormia, parou no corredor, olhou para todos os lados, caminhou até defronte a cabine quatro, parou, tirou a pistola de dentro do casaco, olhou o cano, conferiu se estava carregada, empunhou, sacudiu, pensou, sacudiu a cabeça, botou a pistola no bolso, caminhou pelo corredor. Parado num ponto escuro da última plataforma do trem o Clandestino de José Vargas o cuidava.

49

Page 50: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

As vinte e três horas passaram na estação Lagoão e o Gaiteiro de Santa Bárbara prometeu tocar “La cumparsita” o Argentino levantou para ir ao banheiro.

O Ex Oficial Nazista, sacudia a cabeça para espantar o sono e cuidava a o Homem de Terno Cinza. Enquanto a Mulher Estranha de Cruz o cuidava. Mulher estranha porque na quinta-feira na linha de Cacequi Rio Grande às dez horas e cinqüenta minutos chegou à pequena estação de Cruz onde todo o mundo se conhecia e ela era a primeira vez que aparecia ali e ainda pedindo uma passagem para São Paulo. Tremeu o Agente de Cruz que nunca tinha tirado uma passagem para São Paulo, faltando cinco minutos para o trem tinha que calcular distancia e conferir três tabelas: Viação Férrea, Rede de Viação Paraná Santa Catarina e Sorocabana.

- A chegar a Santa Barbara... Santa Barbara...

O Cabineiro do Vagão da Cauda, acordou, levantou, ajeitou o uniforme e se preparou para recepcionar mais um passageiro.

Para a sorte do Argentino o Gaiteiro de Santa Barbara parou de tocar e começou a preparar-se para desembarcar.

O Degolador de Agente Gomes olhou para o Lanceiro de Inhandui e sentiu raiva: vontade de degolar este infeliz.

O Mentiroso de Azevedo Sodré piscou para a China Magra de Livramento e ela sacudiu o ombro dizendo:

- Mas vai-te enxergar!

50

Page 51: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No vagão da cauda, vestida de preto, mas muito faceira, loira, embarcou a Viúva de Santa Barbara, O Cabineiro do Vagão da Cauda a ajudou a carregar as malas até a cabine nove.

O Agente de Santa Barbara avisou ao Chefe de Trem que a linha em Maquinista Severo estava quase desimpedida; as turmas de socorro estavam trabalhando sem descanso.

O Comunista de Canoas viu na plataforma o velho camarada: o Comunista de Cruzinha; abriu a janela e chamou:

Desconfiado o Comunista de Cruzinha se aproximou, reconheceu o “camarada” e avisou:

- Também vou neste trem. Pra onde o camarada vai?

- Nem sei direito... A policia, de Canoas, ta querendo me prender...

- Eu também ando me escapando... Eu vou para Cruzinha, lá para a casa da minha mãe...

No vagão da cauda a Viúva de Santa Barbara pediu ao Cabineiro:

- Tu me fazes um favor? Compras, no vagão restaurante, uma gasosa? Vou jantar: coelho a Santa Barbara; frito no azeite de oliva e enrolado na farinha de rosca...

Na segunda classe sentaram perto do Argentino três de uma parceria que ia de Santa Barbara para correr uma carreira de cavalos em Carazinho: famosas as pencas de Carazinho.

51

Page 52: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Degolador de Agente Gomes levantou foi ao banheiro, trancou a porta, tirou a faca do cano da bota, examinou, sentiu o fio.

Na primeira classe os Caixeiros-Viajantes perguntavam: E a linha? Já desimpediu? Tem baldeação?

O Degolador de Agente Gomes saiu do banheiro, andou devagar pelo corredor e parou perto do Lanceiro de Inhandui, a China Magra de Livramento olhou firme para ele.

O Ex Oficial Nazista, espichou os braços, levantou segurando a pasta botou a mala em cima do banco, para marcar o lugar e seguiu para o banheiro. O Homem de Terno Cinza fez um sinal para a Mulher Estranha de Cruz, e foi parar perto do banheiro.

O Degolador de Agente Gomes olhou a China Magra e foi sentar em seu lugar.

Zero hora e dezoito minutos, no horário o trem saiu de Santa Barbara.

Há zero hora e quarenta e oito minutos parou em Dois Irmãos, um Caixeiro- Viajante reclamou:

- Pronto, ele não para aqui... Parou; a linha continua entupida.

Nos vagões a mesma pergunta: quanto tempo?

Em Maquinista Severo, com luz de lampiões e do farol de uma locomotiva, homens lutavam para desimpedir a linha. O Agente de Maquinista Severo, conferenciou com o Mestre de Linhas;

52

Page 53: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- O Noturno já parou em Dois Irmãos.

O Mestre de Linhas tirou o relógio do bolso do casaco, olhou, olhou o serviço:

- Quinze minutos; ta desimpedida a entrada do teu recinto.

O Agente de Maquinista Severo esfregou as mãos:

- Mando o Noturno avançar?

Trem parado em Dois Irmãos, o Ex Oficial Nazista voltou do banheiro para o seu lugar, o Homem de Terno Cinza andou pelo corredor do vagão. O tropeiro de Povinho dos Castilhos piscou para a China Magra de Livramento e a mulher dele viu e o beliscou com fúria e força que ele encheu os olhos de lagrimas, mas agüentou firme.

No vagão da cauda, dentro da cabine sete o Pistoleiro de Espalha Brasas, sentado no leito, pensava e examinava a pistola.

Na cabine cinco o Criador de Mulas de General Neto, acordou com vontade de urinar.

Trem parado o Clandestino de José Vargas sentado em cima do ultimo vagão, de noite ninguém o via.

A pequena plataforma de Dois Irmãos iluminada por um fraco lampião, no escritório Agente de Dois Irmãos e Chefe de Trem aguardando.

53

Page 54: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Criador de Mulas de General Neto seguiu pelo corredor até o banheiro, por uma fresta da porta o Pistoleiro de Espalha Brasas o espiou.

Bateu o sino da estação, alegria entre os passageiros, apitou a locomotiva, zero hora e cinqüenta e três minutos partiram.

Muita atenção, as luzes dos lampiões, o lampião sinaleiro sacudido pelo Guarda-Chaves. De vagar, noite escura, os curiosos abriram janelas para ver o acidente, mas a noite estava escura. Uma hora e sete minutos passaram bem devagar em Maquinista Severo onde embarcou a história que andou em todos os vagões: Tombaram dois vagões de carga na entrada do recinto e um deles caiu por cima da guarita do Guarda-Chaves, mas ele escapou porque poucos minutos antes do trem chegar o “Fantasma do Guarda-Freio” apareceu para ele e avisou para ele passar para o outro lado dos trilhos. Muitos maquinistas e chefes de trens diziam que em Maquinista Severo havia um fantasma de um guarda-freio que costuma fazer sinais para os trens.

- A chegar e Pinheiro Marcado... Pinheiro Marcado...

Chegou; uma hora e trinta e dois minutos. Um passageiro apressado correu a embarcar no último vagão.

O Advogado de Rio Pardo abriu a porta da cabine oito e parou no corredor aguardando o cliente e companheiro de viagem. O Cabineiro ajudou o passageiro embarcar. Por uma fresta da porta da cabine um o Inspetor José viu o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado.

54

Page 55: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Na segunda classe o Ex Oficial Nazista, levantou, botou a mala em cima do banco, segurou a mala e foi ao banheiro. A estranha Mulher do Cruz levantou e foi parar perto do banheiro.

Um grupo de corredores de carreira de cavalos embarcou e se encontraram com o grupo que vinha de Santa Barbara. Ganha o cavalo de Pinheiro Marcado... Ora, ganha o de Santa Barbara, uns sentados, outros de pé se amontoaram no extremo do vagão onde viajava o Argentino e falando alto, e gesticulando, e rindo se desafiavam e fechavam apostas; penca grande em Carazinho, nove cavalos, três ternos, cavalos de Santa Barbara, Pinheiro Marcado, Cruzinha, São Bento, Carazinho, Pulador e Passo Fundo.

Batida de sino apito e partiram de Pinheiro Marcado.

No vagão da cauda o Inspetor José, sentou no leito, tirou os sapatos, deitou: vou dormir até clarear o dia.

O Ex Oficial Nazista saiu do banheiro, voltou para o seu lugar. Os carreiristas, riam, gesticulavam, faziam apostas e deixavam o Argentino tonto.

Os Balseiros do Rio Uruguai dormiam. A China Magra de Livramento conversava com um dos Cortadores de Foice de Pertile.

Chegada em Cruzinha ponto de cruzamento com o “N4” que saiu quarta feira de São Paulo. O apito rouco das duas locomotivas.

55

Page 56: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Comunista de Canoas e o Comunista de Cruzinha desembarcaram e sumiram na escuridão, ficavam ali onde iriam planejar a salvação da Pátria.

O Ex Oficial Nazista, levantou ligeiro, botou a mala em cima do banco, segurou a pasta e correu para o banheiro. O Homem de Terno Cinza fez sinal para a Mulher Estranha do Cruz os dois levantaram e ele foi para perto do banheiro.

Na plataforma da estação o encontro dos dois Chefes de Trem, as informações ao Agente de Cruzinha.

Na segunda classe, novos carreiristas embarcaram e aumentou a reunião junto ao coitado do Argentino: ganha o cavalo de Cruzinha. Joga cem, conta cinqüenta? O cavalo de Santa Barbara nunca perdeu penca em Carazinho. Sempre tem uma primeira vez. Joga cem contra oitenta? A égua tordilha do Pinheiro Marcado é a dona da penca...

A batida do sino. O Homem de Terno Cinza segurou a mala do Ex Oficial Nazista; vazia. A Mulher Estranha do Cruz tentou abrir a porta do banheiro; não estava trancada, abriu. O apito das locomotivas. Janela aberta e banheiro vazio. O trem se movimentou; os dois desceram do trem, correndo, embarcaram no outro.

Duas horas e trinta e seis minutos chegaram a Carazinho, desembarcaram os barulhentos carreiristas.

O Falso Padre de Cafundó, que viajava na primeira classe jogando canastra com um grupo de Caixeiros-Viajantes, saltou para a plataforma, correu até o ultimo vagão, embarcou, o Cabineiro cochilava, caminhou pelo corredor e

56

Page 57: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

bateu de leve na cabine nove. Sorridente a Viúva de Santa Barbara abriu a porta e ligeiro ele entrou. Pela porta de trás do vagão o Clandestino de José Vargas viu o encontro.

Na segunda classe o Degolador de Agente Gomes levantou e começou a passear no corredor do vagão. Muitos dormiam.

Sem os óculos escuros, sem a peruca loira, sem o falso bigode, vestindo outra roupa o Ex Oficial Nazista saiu de entre dois vagões, correu a bilheteria para comprar uma passagem; de primeira classe, só ida até Capinzal.

Na plataforma da alterosa estação de Carazinho os grupos de carreiristas discutindo e quase deu briga entre o grupo de Cruzinha com o de Pinheiro Marcado. Uma adaga brilhou no ar, policiais da Brigada Militar correram.

O Mentiroso de Azevedo Sodré disse em voz alta:

- Num baile que eu vim aqui em Carazinho, eu namorei a filha do prefeito...

A China Magra de Livramento deu uma gargalhada debochada.

O mentiroso de Azevedo Sodré ficou vermelho: ainda enfio a mão nos beiços desta galinha.

O Degolador de Agente Gomes cansou de passear pelo corredor; sentou.

Duas horas e quarenta e um minutos saíram de Carazinho. Três horas e cinco minutos passaram em Lassance Cunha e as três e vinte e cinco chegaram a Pulador.

57

Page 58: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O trem vinha parando, na segunda classe o Degolador de Agente Gomes, deu um grito, levantou de um pulo, correu pelo corredor do vagão, desceu do trem e correu para o meio da noite.

O Camareiro correu a avisar ao Chefe de Trem. No escritório da estação o Agente de Pulador jogou o quepe vermelho para a nuca e disse:

- Outro... Com este já são cinco... Todos este ano.

A locomotiva apitou; Maquinista nervoso querendo prosseguir viagem. O Agente de Pulador reclamou:

- Ta com pressa o outro.

O Agente de Pulador começou a pegar os formulários para preencher e orientou ao chefe de trem:

- Veja se o tal tem parentes no trem... Procedência e destino?... Consegue três testemunhas...

Um galo cantou.

Chefe de Trem e um Camareiro revistaram as passagens no vagão, conferiram o mapa de passagens e voltaram com as informações:

- Viajava só... De Agente Gomes...

- Onde fica isto?

- Uma estaçãozinha perto de Pelotas, lá no sul do estado... Agente Gomes a Passo Fundo, passagem de ida e volta na segunda classe...

58

Page 59: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Preenchendo os formulários da ocorrência o Agente de Pulador contou:

- O primeiro foi no inicio do ano, no trem da manhã; oito horas da manhã, o sujeito vinha na primeira classe, tava tomando café, deu um pulo saiu do trem e sumiu no meio do mato, dez dias depois amanheceu dormindo ai na plataforma... O segundo pulou do “N4” vinha de São Paulo pra Porto Alegre, uma semana depois amanheceu na plataforma de Lassance Cunha... Já andam dizendo que são os espíritos dos que morreram no “Combate do Pulador”, na Revolução de Noventa e Três... A mulher do Telegrafista de São Miguel; que é metida com esse negocio de espiritismo, já veio quatro ou cinco vezes aqui fazer perguntas...

Com vinte minutos de atraso; as três e quarenta saíram de Pulador. Passaram em São Miguel as três e cinqüenta e três.

- A chegar a Passo Fundo... Passo Fundo, saída porta da frente...

As luzes da Capital do Planalto, o apito rouco da locomotiva, entraram em Passo Fundo batendo o sino. Quatro horas e dezoito minutos. Movimentação dentro do trem, boa parte da carga ficaria ali. Alto falantes da estação saudando os passageiros:

- Bem vindos a Passo Fundo... Atenção senhores passageiros acaba de encostar-se a nossa plataforma trem procedente de Porto Alegre com destino a São Paulo, passando por Erechim, Marcelino Ramos, Capinzal...

59

Page 60: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Domador de Tiaraju se despediu da Viúva de Umbu e do casal de Povinho dos Castilhos. O Lanceiro de Inhandui desembarcou. O Mentiroso de Azevedo Sodré antes de desembarcar disse uma piada para a China Magra.

Terra da fartura, plataforma cheia de pilhas de sacos, caixas e barris com mercadorias, na ponta norte da plataforma; várias gaiolas cheias de perus que gorgolejavam. Carregadores se movendo apressados. Na ponta sul da plataforma o gaiteiro cego, se embalava e tocava na sanfona um “bugio”.

Abastecendo a locomotiva de carvão e água. Completando as caixas de água dos vagões.

No vagão da cauda o Falso Padre de Cafundó, saiu da cabine da Viúva de Santa Barbara e voltou para a primeira classe, parado ao lado do trem o Clandestino de José Vargas viu.

Um Conferente avisou ao Agente de Passo Fundo e ao Chefe de Trem: o Louco de Maquinista Maino esta embarcando no trem.

- Louco; coisa nenhuma; safado.

O Louco de Maquinista Maino embarcou no primeiro vagão de segunda classe e sentou ao lado do Argentino.

Como o trem noturno não parava em Maquinista Maino, ele comprava a passagem até a estação Coxilha, mas quando o trem passava em “Maino” ele acionava o freio de emergência, desembarcava ligeiro e sumia.

60

Page 61: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

As quatro e trinta e cinco o trem saio de Passo Fundo. O sino batendo. Dois Camareiros no primeiro vagão de segunda classe cuidando os movimentos do Louco de Maquinista Maino.

No ultimo vagão o Ceboleiro de Povo Novo, acordou, olhou o companheiro de cabine. Segurou a pasta e saiu para o corredor a fim de espichar as pernas.

O Ervateiro de Irati saiu da cabine, os dois se olharam, cumprimentou:

- É... Bom dia...

- Bom dia.

- A gente ta saindo de Passo Fundo, até que vamos quase ao horário... Ainda tenho mais de vinte e quatro horas de viagem pela frente...

- E eu... Vou pra São Paulo, tenho mais de quarenta e oito.

- De onde vem?

- Venho do sul do estado, venho do município do Rio Grande, da estação Povo Novo...

O Ervateiro de Irati ficou contente, sorriu e interrompeu:

- Povo Novo... Faz cinco anos eu estive na sua terra, eu meu irmão que mora em Castro... Meu irmão é muito entusiasmado com a história dos tropeiros... Até hoje ele cria mulas... O sonho dele é comprar a fazenda Capão Alto, lá no município de Castro, mas vai ficar no sonho... Ele inventou

61

Page 62: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

de colecionar objetos e relatos dos tempos dos tropeiros... Povo Novo foi um marco no primeiro caminho, que foi feito por Cristovão Pereira, ali é que fazia a travessia da Lagoa dos Patos para pegar o caminho no Estreito entre a Lagoa e o Mar...

O Ceboleiro sorriu desapontado e disse:

- Pouco sei dos tempos passados...

- Meu avo era nascido no Povo Novo... Eu tenho sessenta e dois anos, quando eu nasci o meu pai tinha cinqüenta e três e quando meu pai nasceu; meu avo tinha cinqüenta... Somando temos cento e sessenta e cinco... Estamos no ano de mil novecentos e cinqüenta... Diminui; dá mil setecentos e oitenta e cinco... Único documento que ele tinha era o certificado de batismo na Capela de Nossa Senhora das Necessidades da vila do Povo Novo do ano de mil setecentos e oitenta e cinco. Este documento ele sempre carregou enrolado e dentro de uma garrafa... Era índio, muito bom cavaleiro; andava montado, sentado, deitado, de pé, fazia o cavalo ajoelhar, empinar, deitar... Era amigo do cavalo... Em mil e oitocentos os tropeiros, já tinham abandonado o caminho antigo, usavam o caminho de São Borja a Cruz Alta, que, aliás, diminuiu muito o tempo das viagens, ele veio pra Cruz Alta... E seguiu tropeando de Cruz Alta a Sorocaba... Casou em Cruz Alta... Em Mafra... Em Castro e em Sorocaba... Teve quatro mulheres e com cada uma quatro filhos homens... Dezesseis filhos...

Na segunda classe o Louco de Maquinista Maino deu com o cotovelo no Argentino e ordenou:

62

Page 63: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Cuida quando passa em Arroio Miranda.

O Argentino não entendeu, mas tremeu. Os dois Camareiros cuidando o vagão. Alguns passageiros desconfiados, a China Magra de Livramento comentou:

- Ta cheirando a buchicho.

A tabuleta branca com letras pretas: Arroio Miranda, sinal de apito e a locomotiva apitou. Em seu posto o Guarda-Chaves de Arroio Miranda levantou o lampião verde. Quatro horas e cinqüenta.

A direita do trem, lá na linha do horizonte a barra do dia, dentro do trem dois Camareiros atentos, o Louco de Maquinista Maino desconfiado e o Argentino nervoso. O Louco olhou para o Camareiro e perguntou:

- Para em “Maino”?

Sério o Camareiro sacudiu a cabeça negativamente e afirmou:

- Só para em Coxilha.

No ultimo vagão na cabine dez o Contrabandista de Jaguarão, acordou sobressaltado, viu a luz acesa, espiou para o outro leito; vazio, levantou afobado procurando a pasta preta.

Apito pedindo passagem em Maquinista Maino. Lampião verde na entrada do recinto. O Louco se remexeu, olhou para os dois Camareiros, virou a cabeça e olhou caixa presa na parede frontal do vagão, acima da cabeça do Argentino: freio de emergência: quebre o vidro, puxe a alavanca. O barulho das rodas entrando nos aparelhos de mudanças de vias; o

63

Page 64: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

recinto de “Maino”. Tensão, respirou, olhou os dois, olhou o Argentino, olhou a caixa. Levantou e estendeu o braço para a caixa, um Camareiro o deteve, o Argentino botou as mãos na cabeça e se encolheu no canto. O Louco de Maquinista Maino tentou dar um soco no Camareiro. A China Magra de Livramento deu um grito. A China Gorda de Rio Grande, louca de sono, reclamou:

- Além de puta é fiasquenta.

Um Guarda-Freio entrou no vagão para ajudar os dois Camareiros a imobilizarem o Louco de Maquinista Maino, que esperneava e esbravejava enquanto o Argentino quase se urinava de medo.

Galos cantando; as cinco e vinte o “N3” encostou-se à estação de Coxilha. Dois soldados da “Brigada Militar” entraram no trem para prender o Louco.

Faltando cinco minutos para as seis chegaram a Engenheiro Luiz Englert. O grupo embarcou no primeiro vagão de segunda classe, cerca de trinta pessoas; brancos, loiros, negros e todos vestidos de branco. Uma negra gorda sentou ao lado do Argentino, duas loiras na frente dele e o resto do grupo ficaram de pé e no extremo do vagão. O Argentino nada entendia e estava tonto com a mistura de cheiros; perfume de flores, cheiro de fumaça, cheiro de pólvora, cheiro de cachaça. Viagem rápida, doze minutos e estavam em Sertão onde desembarcaram; era um grupo de umbandistas que voltavam de uma seção.

64

Page 65: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Trem parado na estação de Sertão o serviço de restaurante iniciou o café. Em mil novecentos e cinqüenta a pedida era uma taça de café com leite, pão e manteiga. Os garçons começaram a percorrer os vagões. Parada de dois minutos e retornaram a vigem.

Na primeira classe alguém disse: manteiga é a de Pedras Altas, e outro respondeu: salame é de Caxias.

Seis e trinta; vinte e quatro horas de viagem e chegaram a Getulio Vargas. Em novembro dia claro, galos retardatários cantando. Cidade de Getulio Vargas da boa cerveja.

Na segunda classe um grupo de jovens descendentes de alemães, olhos azuis cabelos loiros embarcaram. A mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos os achou muito bonitos, comentou com a Viúva de Umbu:

- Que olhos!

O Tropeiro de Povinho dos Castilhos não gostou e disse baixinho:

- Quando chegar em casa vou te cagar de pau.

Na plataforma da estação o Alemão de Erebango, bêbado criando confusão, que o Chefe de Trem não queria o deixar embarcar:

- Mais uma veiz eu vai pa Rebangas...Eu tenho que i pá Rebangas.

- O senhor esta bêbado...

65

Page 66: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Getulio Vargas tem o melhor cerveja e eu vai pá Rebangas...

E a Mulher do Alemão de Erebango, loira, magra, alta e atrevida chegou perto do Chefe de Trem e reclamou:

- Ele tomou cerveja com o dinheiro dele... Só que nóis é passage de segunda... Dentro do trem, os rico do primeira classe, eles pode bebe cerveja dentro do trem...

O Agente de Getulio Vargas tirava o quepe vermelho da cabeça e passava a mão no cabelo, até que pediu ao Chefe de Trem:

- Daqui ali são quinze minutos de viagem... Ele vai quieto...

O Alemão de Erebango, podre de bêbado, sentou ao lado do Argentino. A Esposa do Alemão sentou defronte o Argentino.

No ultimo vagão o Inspetor José abriu a janela da cabine e espiou a plataforma da estação a tempo de ver o Pistoleiro de Espalha Brasas conversando com dois sujeitos, vestidos de preto. O Pistoleiro gesticulando e mostrando quatro dedos aos interlocutores. Fechou a janela, espichou os braços: bem José vai trabalhar, afinal não estou neste trem a passeio.

Saíram de Getulio Vargas, apitando e batendo o sino.

Rosto vermelho, olhos verdes brilhando o Alemão de Erebango levou as mãos a barriga e deu uma arcada, nervosa a mulher dele, quase caiu por cima do Argentino tentando abrir a janela. O Argentino tremeu com medo que vomitasse por cima dele. Alemão sorriu e fez sinal que estava bem.

66

Page 67: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No vagão da cauda o Ex Prisioneiro de Marcilho Dias, sentou no leito, passou a mão na barriga; fome.

Na cabine quatro o Comprador de Mulas de Sorocaba convidou o companheiro de cabine a irem ao restaurante tomar café.

Na segunda classe a China Magra de Livramento conversava com o Futuro Sargento de Freitas Vale, ele contando que era órfão de pai e mãe, se criou numa fazenda e teve muita ajuda do Agente de Freitas Vale, para aprender a escrever e ler, bem como incentivo para ir estudar na Escola de Sargentos das Armas em Três Corações: a mulher dele me fez a roupa e ele me deu a passagem.

O Alemão de Erebango deu um forte arroto, o cheiro enojou o Argentino.

No último vagão o Inspetor José perguntou ao Cabineiro:

- Nosso vagão já esta lotado?

- É... Sim, o último que embarcou foi em Pinheiro Marcado...

Levando quinze minutos de atraso o “N3” se aproximava da progressiva vila de Erebango.

- Chegada a Erebango... Erebango.

O Argentino se encolheu no canto, com medo e nojo, o Alemão de Erebango, quase ajoelhado por cima dele se debruço na janela, botou a cabeça para fora e começou a dar arcadas.

67

Page 68: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Parada em Erebango às sete horas. Erebango ponto de almoço do trem diurno. Na primeira classe alguém disse: Aqui o bom é o risoto.

Duas loiras, altas, olhos verdes entraram no vagão e o Tropeiro de Povinho de Castilhos regalou os olhos, mas a mulher dele o beliscou que encheu os olhos de lágrimas.

Partiu de Erebango; ninguém sentado ao lado do Argentino que respirou; aliviado.

O Tropeiro de Povinho dos Castilhos levantou e foi conversar com um dos Balseiros do Rio Uruguai que o contou das aventuras, alegrias e perigos de levar balsas feitas com toras de madeira; impulsionada pela correnteza do Rio Uruguai até Itaqui e Uruguaiana.

- Estação Capo-Êre... Capo-Êre...

Os vendedores de pastel cercaram o trem.

Um Cortador de Foice de Pertile pagou um pastel para a China Magra de Livramento.

O Criador de Galos de Capo-Êre, embarcou e sentou ao lado do Argentino, com uma caixa no colo. Olhou para o Argentino, pediu para segurar a caixa enquanto se debruçava na janela para comprar pastel.

No último vagão o Ex Prisioneiro de Marcilho Dias abriu a janela e comprou dois pasteis.

68

Page 69: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Da primeira classe saltou o moço que vinha de Porto Alegre visitar a tia, comer arroz com galinha de angola e apertar as coxas grossas da prima.

Continuaram correndo pelo meio de campos plantados com trigo. No vagão da cauda, sentados nos leitos, na cabine dois, comendo pastéis e tomando gasosa; o Escritor de Jandira escutava as histórias do Cafezeiro de Monte Azul:

- Foi num dia de festa no Quem-Quem... Moço, malhação de Judas... O moço já malhou o Judas?...Biscoito de araruta, cachaça, bastante foguete... Veio convidado e não convidado e veio um moço de Canaci... Conhece Canaci? É a primeira estação quando sai de Montes Claros pra Monte Azul... O Moço de Canaci falou pra meu padrinho que os sulistas de São Paulo; aqueles da confusão das mulas... A, pois os paulistas contrataram um pistoleiro de Uratinga, que é a segunda estação... Uai moço! A festa tava boa, mas meu padrinho botou arreio em duas mulas e convidou mais eu pra ir falar com o tal pistoleiro lá na Uratinga... Quem contratou o Pistoleiro de Uratinga? Pois foi estes dois paulistas que tão indo neste trem, neste vagão na cabina quatro...

Na segunda classe o Criador de Galos de Capo-Êre, abriu uma fresta na tampa da caixa, o galo botou a cabeça para fora, pegou um pedaço de pastel e deu, o galo bicou com força e saltaram farelos no colo do Argentino:

- Tô indo pras rinhas em Barro... O vizinho gosta de rinhas?

Não entendeu, sacudiu a cabeça:

- Bacileiro de Barra Del Quarai.

69

Page 70: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No corredor do ultimo vagão o Cabineiro espiou o Criador de Mulas de General Neto passando pelo Criador de Mulas de Pinheiro Marcado. O de Pinheiro Marcado cerrou os punhos e cuspiu no chão, o outro virou o rosto.

Na cabine dez o Contrabandista de Jaguarão abraçado na pasta preta convidou ao companheiro de cabine:

- Vamos tomar um café.

O Ceboleiro de Povo Novo, também abraçado a sua pasta preta, pensou e respondeu:

- É bom... Vamos.

- E a gente vai abraçada com as pastas?

O Ceboleiro não gostou da pergunta, pensou:

- É minha pasta não tem nada importante; roupa, cuecas...

- A minha também; cuecas, até tão sujas...

O Ceboleiro interrompeu:

- A minha eu vou levar...

- I eu também.

Erechim, capital nacional do trigo, dos “bota amarela”.

- Chegada a Erechim, saída porta da frente...

Na segunda classe os Cortadores de Foice de Pertile, levantaram contentes e começaram a juntar suas bagagens e se prepararem para desembarcar.

70

Page 71: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Oito horas e vinte minutos em Boa Vista do Erechim, movimento na plataforma. Passageiros desembarcando outros embarcando, carregadores se movendo rápidos.

Inspetor José saltou na plataforma da estação e correu pelo costado do trem até o vagão restaurante para tomar café. No vagão restaurante, chamou sua atenção; numa mesa de dois lugares em conversa animada o Ervateiro de Irati com o Pistoleiro de Espalha Brasas.

O Cafezeiro de Monte Azul desceu para espichar as pernas, na plataforma da estação passou pelos dois compradores de mulas que voltavam do vagão restaurante. O Comprador de Mulas de Itapetininga olhou-o, voltou o rosto para olhar melhor e disse:

- Eu conheço esse sujeito...

Na primeira classe embarcaram três irmãs de caridade acompanhadas de um grupo de moças com fitas azuis no pescoço; Filhas de Maria.

No último vagão na cabine oito o Advogado de Rio Pardo, dizia ao Criador de Mulas de Pinheiro Marcado:

- Não podemos fazer provocações e nem ligar para tal...

- Mas eu tenho raiva dele... Me lembro bem; a gente tava na fazenda dele, lá em General Neto, tomando cachaça com mastruço e olhando um jumento montar numa égua, que a gente tava esperando o finado, até a mulher dele nos levou o mate... A mulher dele é muito mais nova que ele, ela mora em Porto Alegre, diz que é uma baita puta... Mas a gente olhando

71

Page 72: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

o jumento cobrir a égua e pensando no encontro e ele foi que disse: se ele não quiser pagar a gente ameaça matar ele...

Oito e vinte e cinco, bateu o sino da estação, o apito da locomotiva e o chiar dos cilindros.

Estação Baliza perto da estação muitas carroças de quatro rodas, ditas carroças de colônia. O Engenheiro Construtor de Ferrovias prestou a atenção: rodas dianteiras com o diâmetro menor que o das rodas traseiras, freio de sapata nas traseiras acionado por uma manivela e um eixo com rosca na ponta, guardas laterais inclinadas para fora, ou seja, olhando de trás ou da frente; um trapézio.

Da primeira classe desembarcaram duas bonitas professoras que logo foram cercadas por um grupo barulhento de crianças.

O Agente de Baliza bateu o sino dando a partida; nove horas.

Na segunda classe o Criador de Galos de Capo-Êre, cuidou o movimento do Camareiro, abriu uma fresta na tampa da caixa, que levava no colo, o galo botou a cabeça para fora e deu uma bicada na mão do Argentino.

- Estação Gaurama... Gaurama...

O forte cheiro de chiqueiro de porcos. Chegando com cuidado ponto de cruzamento com o trem “P52”. Cheiro de banha. Gaurama com seus matadouros de porcos.

72

Page 73: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Criador de Galos de Capo-Êre desembarcou. Embarcou o Profeta de Viadutos, cabeludo, roupa suja, pés descalços; sentou ao lado do Argentino.

O apito das duas locomotivas ecoou pela vila, dois trens seguiram vigem.

O Falso Padre de Cafundó voltou para o último vagão.

Recostados na porta de trás, Inspetor José e Escritor de Jandira olhavam a paisagem. O Escritor contando:

- É estou viajando que tenho planos de escrever um livro com a estória neste trem... Eu moro em Jandira; é perto de São Paulo, desde pequeno eu via este trem e sentia muita curiosidade... Pensei vou escrever uma estória que se passe no trem... Pensei numa estória de um crime no último vagão...

Na segunda classe a Viúva de Umbu contava para a Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

- Tive cinco filhos, todos, homens e todos são guarda-chave... Cada, um, mora numa estação; então passo o ano viajando para visitar os filhos, fico um tempo na casa de um, volto no Umbu e logo já vou visitar outro filho... Tinha muita vontade de ter uma filha... Mas tive muita sorte que todas as minhas noras são, muito, minhas amigas... Tem uma que mora na estação de Foguista Lacerda, é na linha de Cacequi para Uruguaiana, aquela é uma preocupação comigo e quer porque quer que eu more com ela... Agora apareceu, lá, uma estória que tem um lobisomem; e dizem que seguido ele fica urrando na plataforma da estação, então eu digo que não moro lá por que tenho medo de lobisomem...

73

Page 74: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Profeta de Viadutos segurou o braço do Argentino e começou a dizer:

- Só tem serraria, tão serrando todos os pinheiros, ninguém planta, é pecadores, vão acabar com os pinheiros, ninguém planta... Já sei; tu és serrador... Serrem; vão serrando, acabem com tudo... E tu és paulista? Já sei; tu tens serraria, tu serras pinheiro... É serraria em Carazinho, em Coxilha, no Pulador, no Sertão, no Erebango... Ó vem ai no Viadutos pra nós comer um churrasco de porco... Vão acabando com os pinheiros cambada de filhas das putas...

No ultimo vagão o Escritor de Jandira disse ao Inspetor José:

- É vou dar um passeio no trem...

- E o livro? Já tem nome?

- Já... Um Cadáver no Último Vagão.

Inspetor José acendeu um cigarro: ora livros de trens, escritor! Vai é morrer de fome... Sim, mas cadáver no último vagão?

Na cabine quatro os dois compradores de mulas, deitados, lendo revistas. O Comprador de Mulas de Itapetininga soltou a revista, levantou, pegou a mala debaixo da cama, abriu e do meio das roupas tirou o revolver e ante o olhar interrogativo do companheiro:

- Lembrei... A gente conhece o sujeito da cabine dois... É das Minas Gerais... Trabalhava com o velho que vendia mulas nas feiras de Pai Pedro...

74

Page 75: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Que você inventou de contratar o tal Pistoleiro de Uratinga...

- Que acabou apanhando do velho e contou tudo...

A Viúva de Santa Barbara abriu a porta da cabine nove e chamou o Cabineiro:

- Tu me fazes um favor? Pede um garçom para me trazer o almoço... Não vou ao restaurante; é chato, uma dama sozinha...

Os Camareiros atravessando o trem e avisando:

- Viadutos... Viadutos...

O Profeta de Viadutos, levantou, regalou os olhos, apontou para o Argentino e falou com raiva:

- Eu sei, tu és dono de serraria, eu sei, tu vais pro Paraná derrubar pinheiros, a gralha azul vai comer os teus olhos...

Às dez horas e trinta chegou a Canavial. O Cabineiro do Vagão da Cauda contou ao Inspetor José:

- Canavial, aqui eu cai do trem. Vinha de São Paulo, foi em quarenta e três; um velho, mosca tonta trancou a porta do banheiro e não sabia destrancar e eu me pendurei na janela pra ensinar ele, o trem arrancou e eu caio. Inverno, seis horas da tarde, fiquei caído na beira dos trilhos, destronquei o pé. Me levaram pra casa do Guarda-Chave de Canavial... A filha dele ajudou a me cuidar... Gostei dela, namorei, noivei e casei.

75

Page 76: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Fronteira com Santa Catarina, Marcelino Ramos. Cidade simpática na barranca do Rio Uruguai, paisagem bonita, a estação a ponte. Onze horas.

Na segunda classe o grupo de Balseiros do Rio Uruguai levantou contente. A Viúva de Umbu se despediu do casal de Povinho dos Castilhos:

- Boa viagem e rezem por mim lá em Aparecida...

- Com certeza, e a senhora vai visitar a gente lá em Povinho... Comer feijão de Povinho dos Castilhos...

- Vou sim, vou levar licor de batata-doce do Umbu... Eu tenho um filho que mora lá perto; guarda-chave em Unistalda...

Troca de locomotiva; troca de nome passa a ser o “P10”, troca de equipe, troca de ferrovia passa a rodar na Rede de Viação do Paraná e Santa Catarina; a RVPSC. Na tabela parada de quarenta minutos, mas o pessoal se movendo rápido para reduzir o tempo e com isto diminuir o atraso.

Na primeira classe, sentados em bancos individuais, frente a frente; o Ervateiro de Irati e o Engenheiro Construtor de Ferrovias, tomando chimarrão e comentando a viagem, o Engenheiro:

- De Porto Alegre a Marcelino Ramos; vinte e oito horas... Construindo a “Linha Tronco”; saindo de Bento Gonçalves, passando por Lages, Mafra... Faz a viagem em trinta e seis horas...

76

Page 77: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Trinta e seis?

- Sim... Retificando e reformando alguns trechos desse traçado dá para aumentar a velocidade... A média de viagem deste trem é quarenta quilômetros por hora... Estas locomotivas podem fazer a média de sessenta...

Inspetor José desembarcou para andar na plataforma da estação e espichar as pernas. Enquanto andava, cuidava o movimento.

Abraçado na sua pasta preta o Ceboleiro de Povo Novo caminhava numa ponta da plataforma enquanto na outra ponta o Contrabandista de Jaguarão também andava com a sua pasta preta.

O Advogado de Rio Pardo desceu do trem, acendeu o cachimbo e ficou tirando baforadas e admirando a paisagem.

O Cafezeiro de Monte Azul e o Escritor de Jandira seguiram pela plataforma até o vagão-restaurante. Parados próximo ao último vagão os dois compradores de mulas. O Comprador de Mulas de Sorocaba disse:

- Você tem razão, aquele sujeito é do norte de Minas Gerais... Ele era capanga daquele velho safado...

- Viu como eu tenho razão... E o que faz um tocador de mulas, viajando de primeira classe em vagão-leito?

Com o quepe vermelho aprumado na cabeça, olhar altivo, o Agente de Marcelino Ramos bateu o sino, um Camareiro gritou:

77

Page 78: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Vai partir.

O Chefe de Trem trilou o apito. Locomotiva batendo sino arrancou. Curva para a esquerda e entrou na bonita ponte sobre o Rio Uruguai. Entrou em Santa Catarina e passou a correr a margem do Rio do Peixe.

Parada rápida em Volta Grande e seguiu até Rio Uruguai, ponto terminal sul das linhas da Rede de Viação do Paraná e Santa Catarina. Recinto cheio de vagões de carga.

No último vagão na cabine oito o Advogado de Rio Pardo conversava com o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado:

- O fato é que ele é testemunha e diz que tu ameaçaste a vitima... Nisso é que a acusação vai se pegar para afirmar que o crime foi premeditado...

- Mas doutor, foi ele, esse safado que combinou comigo...

- Eu sei, mas o importante e que tu negues e negues sempre, que tu ameaçaste...

- Ele vai neste vagão... O bom é ele cair deste trem...

Na cabine nove, debruçada na janela, fumando, o cigarro na grande piteira dourada; a Viúva de Santa Barbara pensava nos planos que motivaram a sua viagem.

Na cabine quatro o Comprador de Mulas de Sorocaba, tirou o revolver da cintura, conferiu as balas e disse ao Comprador de Mulas de Itapetininga:

- Não estou gostando desta viagem...

78

Page 79: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Na cabine sete, de pé, janela aberta o Pistoleiro de Espalha Brasas, treinava a rapidez em tirar a pistola da cintura.

Treze horas, Camareiros atravessaram o trem avisando:

- Piratuba... Chegando a Piratuba.

Na segunda classe embarcou um grupo de artistas de circo. A o lado do Argentino sentou o anão que levava uma caixa no colo; dentro da caixa um macaco pequeno.

A China Magra de Livramento já procurou se entrosar no grupo o que motivou a China Gorda de Rio Grande comentar:

- Mais metida que piolho em costura.

Parada rápida em Barra do Pinheiro, o vendedor de bananas andando perto do trem e gritando:

- Banana menina de Santa Catarina...

No último vagão o Ex Prisioneiro de Marcilio Dias abriu a janela e comprou uma dúzia de bananas.

Na segunda classe o Anão do Circo comprou bananas e abriu a caixa do macaco para dar uma, mas o macaco saiu da caixa, pulou no colo do Argentino que tremeu de medo. O Anão gritou:

- Fecha as janelas que o macaco fugiu.

Risadas, gritos, o macaco pulando na cabeça dos passageiros, a China Magra de Livramento correndo no corredor do vagão de um lado a outro tentando pegar o macaco.

79

Page 80: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No vagão da cauda, o Criador de Mulas de General Neto retornou do vagão-restaurante, entrou na cabine, sentou na cama, desabotoou o casaco, tirou o revolver da cintura, colocou debaixo do travesseiro, deitou de barriga para cima.

Na cabine um o Inspetor José fazia suas anotações.

Parada rápida em Avaí.

O Marinheiro de Santos levantou e decidido pegou o macaco, que entregou para o Anão do Circo dizendo:

- Guarda bem este bicho ou eu aviso ao Camareiro.

Chegaram a Capinzal. O grupo de artistas de circo desembarcou. Da primeira classe desembarcou o Ex Oficial Nazista, respirou; aliviado, ali teria novo nome, novas esperanças e esqueceria uma guerra onde, como muitos outros, entrou obrigado.

Passaram por Leão, Barra Fria, Itororó e chegaram à capital brasileira da alfafa; município de Joaçaba:

- Chegando a Herval do Oeste e Joaçaba... Herval do Oeste e Joaçaba, sair pela porta da frente...

Movimento na plataforma, gente embarcando, gente descendo na estação que servia duas cidades gêmeas.

O Clandestino de José Vargas que dormia em cima do último vagão acordou e desceu rápido se misturando ao pessoal na plataforma.

80

Page 81: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O trem encheu de gente, parado no corredor do último vagão o Inspetor José comentou com o Cabineiro:

- Embarcou bastante gente.

- É... Agora ele passa por umas quantas vilas... Vamos ver muitas gurias bonitas... Tarde de sábado é tarde de ver o trem.

Parada rápida em Luzema. Embarcou uma velha acompanhada de uma moça, a velha sentou defronte o Argentino e a moça tímida ao lado dele.

O Agente de Luzema bateu o sino o Chefe de Trem trilou o apito.

Um Garçom com uma planilha na mão começou a percorrer o trem e a perguntar:

- Quem vai jantar no vagão-restaurante?...Jantar...

A Moça de Luzema que não era tão tímida quanto parecia, puxou conversa com o Argentino:

- Eu e minha avó, a gente vai numa festa no Ibicaré... Eu até levo um coração...

Mostrou a pequena caixa feita de papel colorido em forma de coração:

- É um coração do pão-por-Deus, que aqui a gente usa pra pedir um presente, eu vou dar para o meu primo e até fiz o versinho do pedido; vai meu coração/no mundo sem fim/com emoção/pede pão-por-Deus para mim.

- A chegar a Ibicaré... Ibicaré...

81

Page 82: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Ibicaré, paisagem bonita, as margens do Rio do Peixe, plataforma cheia de gente, muitos grupos de jovens. O apito da locomotiva a batida do sino.

A Moça de Luzema, junto com a avó desembarcou.

Um Falso Religioso embarcou na segunda classe, sentou ao lado do Argentino, carregava uma bíblia debaixo do braço, ajeitou a mala debaixo do banco, levantou e no momento em que o trem iniciou a viagem, começou a andar no corredor dizendo:

- Aleluia irmãos... Que todos nós tenha uma boa viagem... Uma viagem repleta de luz de paz de glória de amor de fartura... Aleluia...

No vagão da cauda o Falso Padre de Cafundó acordou tonto, olhou as horas e levantou reclamando:

- Bá! Dormi demais...

Parado no corredor, fumando e olhando pela vidraça da porta traseira o Inspetor José.

O Ceboleiro de Povo Novo, abraçado com sua pasta preta, saiu da cabine dez e foi ao banheiro.

O Criador de Mulas de General Neto saiu da cabine cinco, recostou-se numa das janelas do corredor, tirou do bolso um rolo de fumo, canivete e começou a picar o fumo para fazer um cigarro de palha.

A Viúva de Santa Barbara abriu uma fresta da porta da cabine nove.

82

Page 83: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Pistoleiro de Espalha Brasas saiu da cabine sete, fechou a porta com a chave, abotoou o casaco, colocou a mão no bolso direito e saiu do vagão dizendo ao Cabineiro:

- Vou à primeira classe espiar as gurias...

O Ceboleiro de Povo Novo saiu do banheiro e voltou para a cabine dez.

O Falso Padre de Cafundó saiu da cabine, foi ao banheiro lavar o rosto, voltou para o corredor, parou diante da porta da cabine nove. A Viúva de Santa Barbara abriu a porta e se encostou a ela.

O Inspetor José notou os dois conversando. É; estes dois já se conheciam...

Na primeira classe, com um monte de revista debaixo do braço, bilhetes de loteria no bolso do casaco o Revisteiro do Trem oferecia:

- Bilhetes; a sorte grande... Revistas; “O Cruzeiro”, “Gibis”... Revistas e jornais...

Na segunda classe o Falso Religioso de Ibicaré continuava andando no corredor e pregando:

- Aleluia... Atravessando o seco deserto, disse: pegai de vossas moedas para pagar teus pecados...

A China Magra de Livramento revirou os olhos e comentou:

- Isto ele inventou.

83

Page 84: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Estação General Góes. Os vendedores de bolinhos de graxa cercaram o trem:

- É o bolinho de graxa...

No vagão da cauda o Ex Prisioneiro de Marcilio Dias saiu da cabine três e foi à plataforma traseira do vagão comprar bolinhos.

O Inspetor José olhou para o Ex Prisioneiro de Marcilio Dias e foi comentar com o Cabineiro:

- É estranho este passageiro da cabine três...

- É mesmo... Ele me disse que saiu da cadeia...

O trem continuou a viagem e na segunda classe o Falso Religioso de Ibicaré segurou a bíblia aberta com as duas mãos e passando diante dos passageiros pedindo:

- Uma ajuda para lavar a tua alma...

A China Magra de Livramento riu e disse:

- Eu sabia que ele ia pedir dinheiro...

O Falso Religioso de Ibicaré não gostou e disse:

- Aleluia! Perdoai as mulheres mundanas que elas são pecadoras...

A China Magra de Livramento levantou, requebrou a bunda e disse:

- Pecador é quem é gigolô de Cristo...

84

Page 85: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

A China Gorda de Rio Grande aplaudiu.

Tarde bonita de sábado, plataforma da estação de Tangará cheia de gente bonita.

- Estação Tangará... É Tangará...

O Falso Religioso de Ibicaré fechou a bíblia, pegou a mala e desceu do trem.

Embarcou um grupo de jovens formadores de uma “Bandinha Alemã”, no primeiro vagão de segunda classe, seguidos de outros jovens. A alegria tomou conta do vagão.

No último vagão, o Criador de Mulas de General Neto fumava debruçado na janela do corredor. O Falso Padre de Cafundó conversava com a Viúva de Santa Barbara. O Contrabandista de Jaguarão saiu da cabine dez, abraçado a sua pasta preta e foi ao banheiro. Inspetor José comentou com o Cabineiro:

- Estes dois da cabine dez tão sempre abraçados com a pasta...

- Até parece que eles vão brigar...

A “Bandinha Alemã” tocando um xote, na segunda classe e o trem saiu de Tangará.

- Chegar a Pinheiro Preto... Pinheiro Preto...

Pinheiro preto do bom vinho de Santa Catarina, estação cheia de gente. Locomotiva com o sino batendo.

Muita gente embarcando, principalmente grupos de jovens que iam a um “Baile do Chope” em Videira.

85

Page 86: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Ervateiro de Irati que continuava na primeira classe conversando com o Engenheiro Construtor de Ferrovias, espiou pela janela, viu o negro velho sentado num dos bancos da plataforma, levantou ligeiro e correu a plataforma da estação. Parou diante do negro velho, apertou a mão dele. O Agente de Pinheiro Preto chegou perto deles, o Ervateiro perguntou:

- Ele mora aqui?

- Morava com um neto, lá na outra margem do rio, mas o neto casou e a mulher do tal neto, correu o velho de casa, agora ele vive aqui na volta da estação.

O Ervateiro sacudiu a mão convidou o negro velho a levantar enquanto pedia ao Agente de Pinheiro Preto:

- Me tire uma passagem de segunda classe, só de ida, até Irati... Ele vai para a minha fazenda...

Um Camareiro ajudou o negro velho a embarcar e o Ervateiro contou ao Agente de Pinheiro Preto:

- Ele foi tropeiro de mulas, trabalhou muito para a minha família, vai passar o resto da vida na fazenda...

No ultimo vagão o Guarda-Chave de Pinheiro Preto pediu ao Cabineiro do Último Vagão:

- O colega leva um garrafão de vinho para entregar ao Agente de Engenheiro Eugenio Melo.

- Claro! Então eu vou te negar um favor.

86

Page 87: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Além de colegas eram amigos. O Guarda - Chave de Pinheiro Preto entregou o garrafão de vinho.

Saiu de Pinheiro Preto apitando e batendo o sino.

Passaram pelo túnel de Pinheiro Preto e a Cruz do Vacariano

Na segunda classe a China Magra de Livramento batia palmas e transbordava de alegria ao som da “Banda Alemã de Tangará”. O Argentino ia tonto e se perguntando se agüentaria até Recife.

- Próxima estação é Videira... Videira sair pela porta da frente... Videira...

Estação cheia, sábado de festa, noite de “Baile de Chope”. A “Bandinha Alemã de Videira” saudando os visitantes.

Boné vermelho aprumado na cabeça o Agente de Videira deu duas batidas no sino saudando a chegada do trem.

Gente embarcando, gente desembarcando, o encontro das duas bandas.

Acompanhado de um Carregador o senhor Deputado Federal do Partido Trabalhista seguiu para embarcar no penúltimo vagão leito, recebido pelo Cabineiro que o conduziu a cabine três.

Dentro da cabine o Clandestino de José Vargas, deu um pulo abriu a janela e fugiu a tempo.

No vagão da cauda o Escritor de Jandira desceu e ficou na plataforma da estação cuidando tudo afinal tinha idéia de

87

Page 88: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

escrever um livro que teria uma estória passada naquele trem e naquelas estações.

Um grupo de ciganas andava pela plataforma e uma delas se aproximou do Cabineiro do Ultimo Vagão, que estava na última plataforma do trem conversando com o Inspetor José e ofereceu:

- O moço quer tirar a sorte?

O Cabineiro sacudiu a mão, sorriu e respondeu:

- Não... Muito obrigado.

A cigana insistiu:

- Esse trem vai carregar um morto atrás...

O Cabineiro sacudiu a mão e interrompeu:

- Já carregou, ontem de tarde; de Jacui a Arroio do Só...

Parado no corredor o Falso Padre de Cafundó disse para a Viúva de Santa Barbara:

- Vou lá ao restaurante trazer uns sanduíches e umas gasosas para nós...

No vagão-restaurante começavam os preparativos para os serviços da janta.

Na plataforma da estação o Bagageiro do Trem e um Conferente da Estação contaram os barris de chopes que descarregaram do vagão de bagagens.

88

Page 89: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Chefe de Trem combinou com um Camareiro de recorrer o trem conferindo as passagens iniciando pelo último vagão, incluindo os vagões-leito. O Clandestino de José Vargas, escutou, esfregou as mãos contente e embarcou no primeiro vagão de segunda classe, sentou no primeiro banco ao lado do Argentino: Até eles chegarem aqui eu viajo um pouco sentado.

O Agente de Videira bateu o sino liberando o trem.

Parada rápida na pequena estação de Gramada, o Falso Padre de Cafundó saltou do vagão-restaurante e correu até o último, pela beira do trem com duas garrafas de gasosa e um pacote de sanduíches nas mãos. A Viúva de Santa Barbara pegou o pacote de sanduíches para ele poder subir na plataforma do vagão. Ela disse:

- Deixamos a porta da minha cabine aberta e comemos nela... Esta noite tu vais lá para a primeira classe?

- Não... Esta noite tenho que ficar neste vagão.

Estação Ipomeia no costado da serra. Embarcou na segunda classe um tropeiro de mulas e sentou diante do Tropeiro de Povinho de Castilhos.

Nos fios do telegrafo pousados um bando de tangarás, o Inspetor José olhando pela janela da cabine.

O Agente de Ipomeia bateu o sino e o trem seguiu viagem.

Na segunda classe o Tropeiro de Mulas de Ipoméia contava ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

89

Page 90: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Eu sou tropeiro de mulas...

- Mas tche! Eu também sou tropeiro... Toco tropas de bois para as charqueadas...

E seguiu contando das tropeadas, clima e topografia dos campos da Fronteira do Rio Grande do Sul.

No último vagão o Ex Prisioneiro de Marcilio Dias saiu da cabine três e foi conversar com o Cabineiro:

- Eu vou pra Marcilio Dias, é bem pertinho de Canoinhas...

- É eu sei.

- Onde é que eu desço deste trem?

- É em Porto da União da Vitória, o senhor desce lá e amanhã de manhã pega outro trem; “O Bananeiro” até Marcilio Dias...

- Que horas, passa em Porto União?

- Quinze para uma da madrugada...

- Eu vou dormir... O senhor me chama...

- Pode ficar tranqüilo, é minha obrigação...

Na segunda classe o Tropeiro de Mulas de Ipoméia tentava explicar ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

- Não é uma tropa grande de mulas... É um trem de mulas de cargas... A gente usa as mulas pra carregar cargas...

- Bueno, lá em Povinho dos Castilhos, São Borja, na nossa região a gente carrega carga de carreta de boi...

90

Page 91: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Mas lá é tudo campo, aqui é serra com subida, descida, mato, rio... Os caminhos são estreitos... Eu viajo com uma mula de montaria e dez de carga...

- Próxima estação é Rio das Antas... Rio das Antas...

O bater de sino ecoou pela bonita e alegre vila. Junto à estação vários grupos de mulas com cargas na garupa e vigiadas pelos tropeiros. O Tropeiro de Mulas de Ipoméia mostrou ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos e apontando ia explicando.

Na primeira classe o Engenheiro Construtor de Ferrovias prestou à atenção as tropas de mulas e lembrou: Há pouco mais de um mês andando no sul do Rio Grande, passou na estação Cerrito e notou que ali usavam muito para carregar cargas para a estação umas carretas de duas rodas, pequenas e puxadas por uma junta de bois; carretas diferentes das da fronteira ou do vale do Jacui que eram grandes e reforçadas. Lembrou, também, que mais ao sul no município do Rio Grande na pequena estação do Capão Seco, numa madrugada contou mais de cem carroças de duas rodas puxadas por um cavalo, carregando tarros de leite para serem embarcados num trem especial que corria entre Pelotas e Rio Grande o “SL”; serviço de leite.

Desembarcou bastante gente em Rio das Antas e o Clandestino de José Vargas desceu do vagão de segunda classe e foi se pendurar no último vagão.

Tardinha e chegaram e Coronel Tiburcio Cavalcanti. Dois soldados da Policia Militar do Estado de Santa Catarina

91

Page 92: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

embarcaram no primeiro vagão de segunda classe conduzindo; algemado um ladrão de mulas que sentou ao lado do Argentino.

No último vagão o Cafezeiro de Monte Azul propôs ao Escritor de Jandira:

- Moço é bom a gente jantar cedo e dormir cedo... Essa noite eu quero dormir...

Coronel Tiburcio Cavalcanti, lugar pequeno; poucos desembarcaram e poucos embarcaram, o Agente bateu o sino liberando o trem para avançar até Engenheiro Leite Ribeiro.

No último vagão o Comprador de Mulas de Sorocaba perguntou ao companheiro de cabine:

- A gente janta?

- Não... Em Caçador a gente compra uns pastéis e uma cerveja, come aqui na cabina, nem sai deste vagão e dorme cedo...

Os dois Soldados sentados diante do Argentino e o Ladrão de Mulas de Coronel Tiburcio Cavalcanti ao lado, e inquieto planejando fugir.

O Tropeiro de Mulas de Ipoméia contava estórias ao Tropeiro de Povinho de Castilhos:

- Mas lá em Ipoméia nós faz é carreira de mulas... Mas é muito divertido...

- A chegar a Engenheiro Leite Ribeiro...

92

Page 93: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O trem parou e o Ladrão de Mulas de Coronel Tiburcio Cavalcanti, levantou rápido, mas os dois soldados foram mais rápidos e pularam para segurá-lo; os três caíram de encontro ao assustado Argentino.

Um vendedor de pastéis gritando na beira do trem.

O Agente de Engenheiro Leite Ribeiro bateu o sino e o Chefe de Trem trilou seu apito.

- Chegar a Caçador, sair pela porta da frente...

Encostou a plataforma de Caçador batendo o sino. Muito movimento; plataforma cheia de gente.

O Bagageiro do Trem descarregou as latas com rolos de filme para o cinema.

Os dois policiais desembarcaram com o Ladrão de Mulas. O Tropeiro de Mulas de Ipoméia se despediu do companheiro de viagem dizendo:

- Aqui eu fico...

No último vagão o Advogado de Rio Pardo e o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado desceram para a plataforma da estação e apressados foram para o vagão-restaurante.

O Inspetor José disse ao Cabineiro:

- Nem vou jantar. Saindo desta estação eu vou deitar e dormir...

O Ervateiro de Irati voltou ao último vagão, disse ao Cabineiro:

93

Page 94: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Ainda tenho cabine?... Hoje viajei mais lá na primeira classe... Agora vou dormir que amanhã de manhã estou chegando à minha casa; se Deus quiser...

O Falso Padre de Cafundó e a Viúva de Santa Barbara continuavam conversando com a porta da cabine aberta.

Na segunda classe a Parteira de Adolfo Konder sentou ao lado do Argentino contando:

- Sou parteira, vim passear, mas mandaram me chamar...

Saiu de Caçador, batendo o sino e apitando.

Parada rápida na estação de Adolfo Konder e continuou a correr no território do antigo Contestado.

A tabuleta branca, na beira dos trilhos, com letras pretas o nome da estação; Presidente Pena. A pequena estação inaugurada em quatro de abril de mil novecentos e nove pelo Presidente Afonso Pena.

Ringir de freios; o bater do sino da estação.

A Esposa do Agente comprou revistas do Revisteiro.

Na segunda classe embarcou a figura que chamou a atenção dos passageiros; pés enrolados em sacos de estopa, cabelo comprido, barba grande, vestindo uma batina feita de sacos brancos, muito encardida, pintada na frente uma cruz vermelha: o Monge de Calmon. Sentou ao lado do Argentino, um Camareiro se aproximou, e ele com a passagem na mão; avisou:

94

Page 95: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Tenho passagem sim... Paguei... Ó passagem de Presidente Pena até Calmon... Paguei para não ter incômodo.

O Camareiro sorriu fez sinal que estava tudo bem.

O Agente de Presidente Pena bateu o sino liberando o trem; “P10” para continuar viagem.

No último vagão, o Pistoleiro de Espalha Brasas, retornando do restaurante parou junto ao Cabineiro e avisou:

- Vou dormir, quando passar em Ponta Grossa, se eu não tiver levantado você faz o favor de chamar...

Na segunda classe o Monge de Calmon, fanático pela história do Contestado, olhava para o Argentino e dizia:

- Tão todos enganados, a luta não terminou, eu sou do ano de mil oitocentos e noventa e cinco, tenho cinqüenta e cinco anos, eu gosto de ouvir o canto do tangará, aqui ainda é o reino do Contestado. Em mil novecentos e onze eu tava na luta. Eu sou o novo monge, eu sou o Monge de Calmon, eu preparo a volta de “João Maria”, de “José Maria Agostinho”, de “Manuel Ferreira dos Santos”, que nós continuaremos a luta contra os “peludos” e vem o grande rei, o grande rei; ”Don Pedro Segundo”, ele vai reinar o “Grande Reino do Contestado”, dos Pampas a Amazônia...

O Argentino nada entendendo apenas disse:

- Bracileiro de Barra Del Quarai.

O Monge de Calmon apontou para ele, olhos regalados, voz de maluco:

95

Page 96: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Tu és republicano, hoje um presidente, amanhã é outro. Muita gente bajulando no palácio e roubando a pátria. Ontem coronelismo, hoje é trabalhismo, amanhã será o populismo e depois o bandidismo; os bandidos presidirão e o presidente vai ser o bobo da corte...

Estação de Anhanguera, um lampião iluminando a pequena plataforma e um único passageiro. Parada rápida e seguiram.

- Próxima estação é Calmon... Chegando a Calmon...

A luz do farol da locomotiva iluminou a plataforma cheia de gente da vila Calmon.

O Monge de Calmon desembarcou e foi cercado por um grupo de moleques que começaram a mexer com ele e ele a gritar bandalheiras.

No último vagão o Comprador de Mulas de General Neto aproveitou que o trem estava parado e correu para o vagão-restaurante.

Correndo numa planície deserta, fria, a mil e cem metros de altitude, no norte do estado de Santa Catarina, o farol da locomotiva iluminou, ao longe, o prédio branco da estação de General Dutra.

Parada em General Dutra, desembarcou um único passageiro que sumiu na noite escura. Um Camareiro entregou ao Agente de General Dutra uma caixa com sanduíches, jornais, revistas e um bilhete de loteria. Naquela estação isolada o jovem Agente e sua Esposa passariam o domingo, após um café com sanduíches, lendo e sonhando ganhar na loteria.

96

Page 97: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- A chegar a Matos Costa... Matos Costa...

A vila de Matos Costa; inicio da nova variante, a mil e cem metros de altitude e inicio de uma longa descida até a margem do Rio Iguaçu em Porto da União da Vitória.

O Criador de Mulas de General Neto voltou do vagão-restaurante para o último vagão.

O Cabineiro do Último Vagão se enrolou num cobertor, sentou no seu canto no extremo do vagão: meus passageiros estão todos no vagão, vou tirar uma soneca até chegar a Engenheiro Eugenio de Melo, que lá tenho que entregar o vinho.

Dois grupos de homens embarcaram na segunda classe, um com destino a estação de Maquinista Molina e outro a estação de Cerro Pelado; tinham vindo a Matos Costa jogar a malha e tomar cerveja.

O Clandestino de José Vargas, da ultima plataforma do trem espiou para dentro do vagão, viu o Cabineiro se enrolando no cobertor e a porta da cabine cinco aberta. Sentou na plataforma.

O Agente de Matos Costa liberou o trem.

Na segunda classe o Argentino, levantou, marcou o lugar botando a mala encima do banco e saiu caminhando, desconfiado pelo corredor do trem. A China Magra de Livramento notou.

- A chegar a Maquinista Molina... Maquinista Molina.

97

Page 98: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Os jogadores de malha se prepararam para desembarcar e antes de se despedirem dos colegas de Cerro Pelado desafiaram para um novo encontro no próximo fim de semana.

Saiu de Maquinista Molina, estavam atravessando um túnel, o Clandestino de José Vargas escutou barulho dentro do vagão, levantou para espiar. Com cuidado para não ser descoberto, olhou, viu o vulto, recuou, pensou, olhou outra vez, foi para o estribo da plataforma, segurou firme nos balaustres, inclinou o corpo para fora do trem, o forte deslocamento de ar, queria ver qual cabinha tinha aberto a janela. O golpe nas costas, o trem entrou noutro túnel.

A tabuleta branca, letras pretas; Cerro Pelado.

Parada rápida; desembarcaram os jogadores de malha e continuou a viagem até a estação de Nova Galícia.

Em Nova Galícia o cruzamento com um grande trem de cargas.

Estação de Achiles Stendal, na segunda classe embarcou um grupo de caçadores de tatu, um deles, muito sujo sentou ao lado da China Magra e contou:

- Cai dentro de uma valeta... E nem pegamos nenhum tatu... A noite foi da caça...

- A chegar a Engenheiro Eugenio de Melo... Engenheiro Eugenio de Melo...

98

Page 99: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

No último vagão o Cabineiro acordou da soneca, olhou as horas, se desenrolou do cobertor, espichou os braços, tinha que entregar o garrafão de vinho ao Agente de Engenheiro Eugenio de Melo, levantou, sacudiu os braços e saiu para ir ao banheiro passar água no rosto. Ia ao meio do corredor, sentiu o cheiro forte, levantou a cabeça olhou a porta do banheiro, tremeu, parou, caminhou devagar, olhou, voltou, e seguiu apressado atravessando o trem para falar com o Chefe de Trem.

Na segunda classe o Argentino voltou para o seu lugar, sentou e vencido pelo cansaço dormiu.

O Cabineiro do Último Vagão entrou no vagão-escritório e encontrou o Chefe de Trem atualizado o mapa de passagens e preparando a documentação para entregar o trem a nova equipe em Porto da União da Vitória. O Chefe de Trem levantou, ficou de pé no centro do vagão:

- Tu tens certeza?

- Sim senhor.

O Chefe de Trem andou na volta iniciou a ir ao último vagão, mas parou:

- Aqui de Melo vou avisar Porto União... Lá eles já vão providenciando a policia... O trem vai atrasar...

Estação de Engenheiro Eugenio de Melo, um grupo alegre de passageiros na pequena plataforma. Tinham saído de uma festa de casamento, voltavam para Porto União inclusive os recém casados.

99

Page 100: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Nervoso o Chefe de Trem chamou o Agente para o escritório e disse:

- Problemas; têm que avisar a Porto União para providenciarem a policia... Temos um morto no banheiro do último vagão... Afigura-se assassinato...

Saiu de Engenheiro Melo descendo para Porto União. No vagão-escritório o Chefe de Trem disse ao Cabineiro:

- Tu voltas para o teu vagão, eu já vou para lá.

Pediu ao Bagageiro para preparar os documentos de entrega do trem e aos Camareiros ordenou:

- Vamos providenciar a chegada a Porto União... Vamos acordar os passageiros e providenciar a baldeação...

O trem se aproximando da divisa de Santa Catarina com o Paraná.

- Chegar a Porto da União da Vitória...

Duas cidades; Porto União em Santa Catarina e União da Vitória no Paraná, as duas a margem esquerda do Rio Iguaçu, separadas, uma da outra pela linha férrea. Uma estação com duas frentes servia as duas cidades e na linguagem ferroviária era chamada de Porto da União da Vitória.

- Porto União, baldeação para o ramal de São Francisco do Sul e Joinvile... Passageiros para Canoinhas, Três Barras, Mafra, São Bento do Sul, Jaraguá do Sul, Joinvile, Araguari e São Francisco...

100

Page 101: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Gente, acordando, gente se espreguiçando, gente tonta. Os Camareiros dando informações:

- Sim; Rio Negro desembarca aqui... Segue amanhã de manhã pelo “Trem da Banana”.

Em Porto da União da Vitória o Agente chamou o delegado de Porto União que chegou com cara de sono, abotoando o casaco e reclamando:

- Tinha que chamar o Delegado de União da Vitória, o trem vai entrar no Paraná...

- É, mas ainda esta em Santa Catarina...

Para não discutir com a policia pediu a um Conferente para chamar o Delegado de União da Vitória.

No trem os Camareiros continuavam avisando:

- Próxima estação é Porto da União da Vitória.

Na primeira classe o homem gordo tirou a mala da porta bagagens dizendo:

- Vou pra Curitiba, mas eu vou é no “Bananeiro”, em Mafra ele se divide em dois; um segue pra São Francisco e outro entra pelo ramal da Lapa e vai a Curitiba...

- Mas pode ir por Ponta Grossa...

- O de Ponta Grossa tem que esperar o que vem de São Paulo e se aquele atrasa...

101

Page 102: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Plataforma de Porto da União da Vitória cheia de gente, muitos passageiros chegados no trem procedente de São Francisco do Sul e aguardando para continuarem a viagem no “Paulista”.

Acompanhado de um Inspetor o Delegado de União da Vitória entrou no escritório da estação onde já estava o Delegado de Porto União, reclamou:

- Estava saindo da delegacia... Morto no trem dentro de Santa Catarina...

- O trem vai entrar no Paraná...

- Espero que os senhores entrem num acordo e não atrasem o trem...

- Quando o trem parar aqui na estação se vê o lado do vagão que o corpo esta... O centro dos trilhos é a fronteira; no caso, lado direito é Santa Catarina...

O apito do trem agitou a plataforma.

O Agente de Porto da União da Vitória, os dois Delegados e o Inspetor do Paraná saíram do escritório e ligeiro, caminharam até o último vagão. Embarcaram, o Chefe de Trem e o Cabineiro os receberam.

O corpo caído dentro do banheiro, os pés para o corredor, ao lado uma escova de dente, sobre a cabeça uma toalha de rosto. Cheiro de sangue. Um tiro nas costas.

Rosto grande; olho direito muito maior que o olho esquerdo, óculos de grau de grossas lentes, cabeça raspada o Inspetor de

102

Page 103: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Policia do Paraná abriu a pasta de onde tirou um lápis e um bloco de anotações, começou a estudar a cena do crime e tomou conta da situação dando ordens a Delegados, Chefe de Trem e Agente;

- Providenciem para remover o corpo...

Agachou ao lado da vitima e remexeu nos bolsos procurando os documentos.

Na plataforma os Camareiros auxiliavam no embarque e desembarque.

Um reparador, com um lampião recorria à composição examinando sapatas de freio e frisos das rodas.

O Inspetor do Paraná tomou nota, entregou carteira e documentos ao Agente, foi até a cabine cinco que estava com a porta aberta. A mala aberta sobre a cama, enquanto anotava perguntou:

- De onde vinha a vitima e o destino?

O Cabineiro do Último Vagão respondeu:

- Estação General Neto para São Paulo.

O trem trocou de locomotiva. Engatou uma “Mallet”, quatro cilindros, mil toneladas de ferro, água, carvão, fogo e suor do Foguista.

No último vagão o Cabineiro bateu na cabeça e foi bater na cabine três:

- Eu tava esquecendo... Este passageiro desce aqui...

103

Page 104: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Parado na porta da cabine um o Inspetor José:

- Ele é suspeito.

O Inspetor do Paraná parou de tomar notas, olhou para o Inspetor José, foi antipatia a primeira vista:

- Quem é o senhor?

- Um passageiro... Um policial...

- Um policial de folga...

- A serviço... Conversamos...

Uma hora e quinze minutos de domingo, o trem “P10” trocou de prefixo e passou a ser o “P8”.

Desembarcaram o corpo e o Inspetor do Paraná avisou:

- Eu vou ocupar a cabine cinco... Eu vou, no trem, investigando... Em São Paulo eu chego com tudo solucionado...

Inspetor José sorriu com desprezo.

O Inspetor do Paraná tirou da pasta um formulário de telegramas, ligeiro escreveu dois e entregou ao Agente de Porto da União da Vitória:

- Passe esse telegrama ao Agente de General Neto pedindo informações da vitima... Este outro para o Agente de Porto Alegre...

A nova equipe assumiu o trem.

104

Page 105: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Inspetor do Paraná pediu ao Delegado de União da Vitória para providenciar a burocracia e disse que por ele o trem podia partir.

Terno cinza, sujo, desalinhado, chapéu caído para o lado, muito tonto, mas fazendo força para caminhar direito, depois de dois dias de farras o Bêbado de Paula Freitas embarcou sob o olhar de um Camareiro, sentou ao lado do Argentino, deu um soluço.

A China Magra de Livramento comentou:

- Bá! Esse bebeu todas...

A China Gorda de Rio Grande interrompeu:

- Foi com o dinheiro dele.

Uma hora e trinta minutos o “P8” partiu, no horário e logo começou a atravessar a ponte sobre o Rio Iguaçu.

No último vagão o Inspetor do Paraná começou suas investigações conversando com o Cabineiro:

- Você dormiu?

- É... Eu dormi logo que o trem saiu de Matos Costa e como eu tinha que entregar uma encomenda ao Agente de Engenheiro Eugenio de Melo, eu acordei logo depois que o trem saiu da estação de Achiles Stendal...

Na segunda classe o Bêbado de Paula Freitas, sacudiu a cabeça, deu um forte arroto, passou a mão na barriga, olhou para o Argentino que estava assustado no seu canto.

105

Page 106: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Chegando a Paula Freitas... É Paula Freitas...

O Bêbado de Paula Freitas levantou, cambaleou e caiu por cima do Argentino, a China Magra de Livramento o ajudou a levantar e desembarcar.

Batida de sino apito da locomotiva e continuou a viagem.

Na cabine cinco o Inspetor José de pé recostado na porta e o Inspetor do Paraná sentado no leito, com o bloco de notas na mão:

- Telefonemas anônimos?

- Foi o que eu disse...

- Então você esta viajando a serviço...

- Foi o que eu disse...

- Mas não avisou ao Cabineiro...

- É, achei melhor viajar com segredo de policia...

- Me afigura um erro... Se tivesse pedido ajuda ao Cabineiro...

- É.

- Você disse que o passageiro da cabine três é suspeito.

- É... Todos os passageiros deste vagão são suspeitos.

- Você tem razão... Você estudou o comportamento dos passageiros... Qual eu devo conversar primeiro?

- O da cabine seis; o Ervateiro de Irati.

106

Page 107: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Parada rápida em Vargem Grande, na segunda classe embarcou um grupo alegre de pessoas de todas as idades; colonos ucranianos e seus descendentes que seguiam para uma festa religiosa em Mallet.

Estação Paulo de Frontin; grande vila de ferroviários. O som de música; baile no clube dos ferroviários. Plataforma cheia.

Um Camareiro correu, ao lado do trem, até o ultimo vagão para chamar o Inspetor do Paraná que o Agente de Paulo de Frontin tinha um recado.

Confusão na plataforma; coisa de jovens. Rixa entre as vilas de Paulo de Frontin e Dorizon.

O Agente de Paulo de Frontin avisou ao Inspetor do Paraná:

- Um trem de cargas que seguia de Porto União para Matos Costa encontrou um homem caído na saída do túnel cinco entre as estações de Cerro Pelado e Maquinista Molina... Era um clandestino deste trem... O Delegado de Matos Costa esta com o tal homem e assim que tiver mais informações ele passa um telegrama...

O trem saiu de Paulo de Frontin o grupo de jovens de Dorizon embarcou e gritou ofensas a o grupo que ficou.

No último vagão na cabine cinco o Ervateiro de Irati conversava com o Inspetor do Paraná, contando o que sabia sobre o morto e outros passageiros do vagão. O Inspetor consultou as anotações, coçou a cabeça:

107

Page 108: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Então a vitima era testemunha de acusação num processo de um crime, cujo criminoso viaja na cabine oito...

- Isto mesmo... O Criador de Mulas de Pinheiro Marcado que viaja com o seu Advogado; o Advogado de Rio Pardo.

- Bem... E na cabine quatro viajam dois compradores de mulas que eram sócios da vitima do tal Criador de Mulas de Pinheiro Marcado...

- Isto mesmo; Comprador de Mulas de Sorocaba e Comprador de Mulas de Itapetininga...

O Inspetor do Paraná, olhou bem para o Ervateiro e perguntou, falando com calma:

- O senhor conhece o passageiro da cabine sete?

O Ervateiro de Irati, pensou, respondeu:

- Não.

Estação Donizon, vila progressiva, plataforma cheia. Um grupo de paraguaios, homens, mulheres e crianças com muitas mochilas, conversando alto numa mistura de português, espanhol e guarani embarcou na segunda classe e sentaram perto do Argentino; trabalhadores na colheita de erva mate.

Continuaram a viagem ao lado da majestosa Serra da Esperança já em terras do rico município de São Pedro de Mallet.

108

Page 109: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Na cabine cinco o Inspetor do Paraná conversava com o passageiro da cabine três:

- Você esta voltando a Marcilio Dias...

- Sim senhor, eu sou de lá...

- Você estava preso em Porto Alegre...

- Sim senhor, eu tentei matar o meu sócio... É que eu trabalhava em Três Barras, na serraria; a maior serraria da América... Eu entendia de madeiras e um gaucho de Porto Alegre que era comprador de madeira me convidou a ser sócio dele e botar um depósito de madeira em Porto Alegre... Ele viajava e eu trabalhava... Ele roubou o dinheiro da sociedade... Dei um tiro e feri ele... Fui julgado e peguei três anos de cadeia... Sai da cadeia e fui ficar no albergue e andava procurando conseguir dinheiro para voltar... Aconselharam eu pedir passagem na policia... Andei nas delegacias e nada... Ai; na quarta-feira deixaram um envelope no albergue com a passagem...

- Estação Mallet, sair pela porta da frente...

Desembarcaram muitos passageiros e entre eles o grupo de religiosos de Vargem Grande. Embarcou um grupo alegre; um time de futebol e sua torcida barulhenta que ia participar de um torneio em Irati.

O Inspetor do Paraná desceu e foi conversar com o Agente de Mallet. O Agente o entregou dois telegramas e ele entregou outros ao Agente e pediu para serem transmitidos.

109

Page 110: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O rouco apito da locomotiva ecoou na Serra da Esperança e a viagem continuou.

Os paraguaios, tomando terêrê numa guampa, conversando alto e sentada ao lado do Argentino uma velha fumava um fedorento cachimbo.

Correndo rumo norte, à esquerda a imponente Serra da Esperança a direita a barra do dia.

O Inspetor do Paraná conversando com o Falso Padre de Cafundó:

- Entre as estações de Matos Costa e Porto União o senhor não estava na sua cabine.

- Nome de estação eu não entendo...

- O senhor viajou sempre na sua cabine?

- Não.

- O senhor conhece a passageira da cabine nove?

- É... Somos companheiros da “confraria do coelho” em São Paulo.

- O senhor vem de Cafundó... Onde é?

- Cafundó é no município de Montenegro, estação da linha que vai para Caxias do Sul.

- O senhor é padre, qual a sua ordem religiosa?

110

Page 111: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Eu não sou padre... Estou vestido de padre; é uma promessa...

Estação Mindui e os vendedores de pinhão cozido. O grupo de paraguaios se debruçou nas janelas para comprar.

Amanheceu e chegou à alegre cidade de Monte Azul, na plataforma o time de futebol e sua torcida que embarcou para ir a Irati participar do torneio.

O Agente de Monte Azul bateu o sino dando sinal para reiniciar a viagem.

O Inspetor do Paraná conversando com o Cafezeiro de Monte Azul:

- O senhor vem de onde?

- Eu?

- É.

- Venho de lá.

O Inspetor revirou os olhos, fez esforço para manter a calma:

- Lá tem nome.

- É, tem.

- E como é o nome?

- Eu vim das Gerais...

- Minas Gerais... Qual a cidade?

111

Page 112: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Uai! Passei em muitas...

Na segunda classe, os paraguaios tomando terêrê, comendo pinhão. De vez enquanto voava uma casca de pinhão pra cima do Argentino que escutava a velha explicar:

- Chamusca a erva no barbaquá, depois leva pro carijo, que tem que canchear...

O Camareiro entrou no vagão avisando:

- Chegando a Antonio Rebouças sair pela porta da frente...

Rebouças, cidade desde vinte e um de março de mil novecentos e trinta, a setecentos e setenta e dois metros de altitude.

Plataforma, cheia de gente com cara de fim de baile, gente acompanhando o time de futebol que embarcou para Irati.

Inspetor do Paraná entrou no escritório da estação para conversar com o Agente de Rebouças que avisou:

- O Delegado de Matos Costa esta viajando num trole, junto com o tal passageiro clandestino, até o trecho entre Maquinista Molina e Cerro Pelado, que o tal passageiro diz que jogaram alguma coisa na saída do túnel...

Acompanhado do Inspetor José o Inspetor do Paraná foi para o vagão restaurante tomar café:

- Uma taça de café com leite, pão e manteiga.

112

Page 113: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Entraram no vagão o Ceboleiro de Povo Novo e o Contrabandista de Jaguarão; cada abraçado com sua pasta preta. O Inspetor José avisou:

- Viajam no último vagão; cabine dez.

- Cada qual abraçado na sua pasta...

Trem cheio deixou Rebouças com licença até Engenheiro Gutierres.

Engenheiro Gutierres, antiga Riozinho, entrada para o ramal de Guarapuava.

Plataforma cheia. O Passageiro nervoso perguntando:

- Tem trem pra Guarapuava?

- Não, os trilhos ainda não chegaram lá... Hoje é domingo... Amanhã tem um misto que vai até a ponta dos trilhos.

Na segunda classe o Argentino até já estava tomando terêrê e comendo pinhão cozido. Embarcaram cinco putas; a Negra Gorda e alegre com a fita vermelha na cabeça, a Loira Magra e Estrábica, uma muito branca e desdentada, a Mulata Faceira com a cicatriz na testa e a Cafetina Velha. A China Magra de Livramento já se enturmou.

O Agente de Engenheiro Gutierres conferindo o desembarque de bagagens. Um passageiro querendo saber como chegar a Água Clara:

- Amanhã tem trem misto que entra no ramal...

Partida com licença até Irati.

113

Page 114: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Irati a oitocentos e Cinqüenta metros de altitude, a Pérola do Sul. Dia de festa, estação cheia, foguetes saudando os times visitantes para o torneio de futebol.

O Ervateiro de Irati se despediu do Cabineiro e foi até a segunda classe ajudar a desembarcar o Velho Tropeiro que embarcou em Pinheiro Preto.

Inspetor José e Inspetor do Paraná voltaram do vagão-restaurante para o último vagão.

O “P8” saiu de Irati apitando e batendo sino.

Na segunda classe a Negra Gorda, com a fita vermelha na cabeça dava risadas e contava para a China Magra de Livramento:

- Que a gente vai lá pra linha de Maringá, lá ta tendo mais homem, o ramal de Guarapuava ta pobre.

O Capataz de Turmas dizia para o vizinho de banco:

- São putas que aparecem nas frentes de serviço... Muito o Brasil deve a elas e a cachaça... Sem elas o peão não fica nas frentes, isoladas do mundo, de serviço...

O sinal de apito; chegando a Florestal.

Mais vendedores de pinhão, próximo a estação um bonito erval, desembarcou o grupo de paraguaios.

No último vagão o Inspetor José fumando recostado na última porta. Na porta da frente conversando o Cabineiro e o Inspetor do Paraná.

114

Page 115: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Pistoleiro de Espalha Brasas saiu da cabine, sonolento, abotoando o casaco, parou, levantou a cabeça. Olhou firme para o Inspetor do Paraná o qual o estava olhando, disfarçou, parou e disse ao Cabineiro:

- Companheiro eu vou dormir mais um pouco... Perto de Espalha Brasas você me chama.

Entrou na cabine e trancou a porta. Inspetor do Paraná caminhou até a frente da cabine, olhou bem o numero; sete. Voltou para junto do Cabineiro e em voz baixa trocaram idéias e depois voltou para a cabine cinco onde começou a escrever telegramas.

Um grande trem de cargas entrou pela ponta norte do recinto, locomotiva bufando e soltando brasas. O Agente de Florestal aguardou o sinal do Guarda-Chave para depois bater o sino liberando o “P8” até a estação de Fernandes Pinheiro.

A Puta Estrábica de Engenheiro Gutierres sentou ao lado do Argentino tentando conseguir conversa.

A China Magra de Livramento contava para a Cafetina do Ramal de Guarapuava:

-- Só trabalho em cidades da fronteira, a senhora sabe; fazendeiros, coronéis do exercito, Só freguês descente... Deus que me livre trabalhar em cidade de porto... Deus me perdoe; marinheiro levando doença dum porto pra outro...

A China Gorda de Rio Grande ficou vermelha de raiva e quis levantar, mas o Marinheiro de Santos a segurou pelo braço.

115

Page 116: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Os garçons atravessavam os vagões, equilibrando bandejas, servindo o café.

No último vagão o Inspetor do Paraná conversava com o Escritor de Jandira:

- Então o moço é escritor...

- Desculpe; é eu tento escrever para depois tentar publicar...

- Pois pode escrever um livro com uma estória que se passe neste trem... Até já tem um cadáver...

Vermelho, esfregando as mãos o Escritor de Jandira interrompeu:

- Desculpe... Quero conhecer o norte das Minas Gerais... Parece que lá dá boas estórias... Meu companheiro de cabine contou...

O Inspetor do Paraná se interessou e perguntou:

- O companheiro de cabine?

- É... Brigas, pistoleiros, brigas de compradores de mulas...

As sete e cinqüenta e cinco o trem parou em Fernandes Pinheiro, estação junto ao Rio Imbituva.

O Inspetor do Paraná correu até a estação onde entregou ao Agente de Fernandes Pinheiro um maço de telegramas pedindo:

- Faça o favor de enviar...

116

Page 117: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Alegria dos avos que esperavam os netos para passar as férias; abraços, risadas, avisos:

- Desce as malas... Cuidado... Desce que o trem já vai.

Tristeza dos pais que se despediam do filho que seguia para a Escola de Sargento das Armas. Embarcou; triste e tonto, no primeiro vagão de segunda classe. Sentou ao lado do Futuro Sargento de Freitas Vale:

- Vou pra Três Corações...

- Bá tche! Eu também.

Antes de o trem partir iniciava uma amizade para o resto da vida.

O apito da locomotiva ecoou pelo meio das matas ricas em madeira de lei e o trem seguiu viagem.

Na cabine oito o Advogado de Rio Pardo escutava o Criador de Mulas de Pinheiro Marcado que estava triste:

- Apesar da gente ta brigado... A gente foi muito amigo... Eu e ele passamos muitos trabalhos juntos... Uma vez ele veio para Pinheiro Marcado me ajudar a domar burros...

O trem parou na estação de Angaí.

A Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos olhou uma casa perto dos trilhos e apontou falando alto:

- Olha as telhas são de madeira...

117

Page 118: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Embarcou um sujeito, muito aprumado, terno, gravata e perfumado. A Puta Estrábica de Engenheiro Gutierres, que estava sentada ao lado do Argentino, levantou e foi sentar perto deste passageiro; O Galã de Angaí.

O trem continuou a viagem. O Inspetor do Paraná, sentado no leito, analisava seus apontamentos e raciocinava a respeito do passageiro da cabine dois; O Cafezeiro de Monte Azul. Vende café nas janelas do trem e tem dinheiro para fazer uma viagem destas, em vagão-leito?

- A chegar a Teixeira Soares... Teixeira Soares...

Município desde mil novecentos e dezessete, Teixeira Soares grande produtor de trigo, milho, erva mate e madeira.

Na segunda classe embarcou o Camelô de Teixeira Soares, também chamado de o “Homem da Cobra”, como vendia nas praças de cidades e vilas por onde passava, usava a uma jibóia para atrair os curiosos e depois ele vendia sua mercadoria; um elixir que curava dor de dente, dor de ouvido, reumatismo, ciúme, dor de cotovelo: fórmula que ele dizia que aprendeu com os índios; água, álcool e corante. Escolheu o lugar ao lado do Argentino, botou uma mala feita de madeira embaixo do banco e a outra sobre o banco, esta ele abriu, tirou alguns frascos do poderoso elixir, fechou a mala, colocou no porta-bagagem e saiu a vender dentro do trem.

Na primeira classe embarcou um time de futebol amador com destino a Guaraji.

Saiu de Teixeira Soares batendo o sino e apitando, apito que ecoou na bonita praça central da cidade.

118

Page 119: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O bonito e pitoresco povoado de Rio das Almas, plataforma da estação um grupo de jovens alegres e barulhentos.

O Maquinista errou no tempo e puxou a alavanca de freio fazendo o trem parar de supetão.

A mala feita de madeira, do camelô de Teixeira Soares que estava debaixo do banco do Argentino correu para frente e bateu nas pernas dele. Com o pé, empurrou-a de volta para debaixo do banco, mas neste gesto tirou o trinco da tampa.

O trem continuou a viagem e com a trepidação do vagão a tampa da mala começou a abrir.

- Chegando a Guaraúna... Guaraúna...

Um grupo de pessoas de todas as idades, fiéis da religião protestante, com suas bíblias embaixo do braço embarcaram no trem; iam assistir o culto em Guarají.

O Telegrafista de Guaraúna correu pelo costado do trem até o último vagão e entregou ao Inspetor do Paraná um telegrama:

- Que o senhor Delegado de Matos Costa esta enviando da estação de Cerro Pelado.

O Inspetor leu o telegrama, ficou interessado, rápido pegou lápis e um bloco e rascunhou outro telegrama que entregou ao Telegrafista de Guaraúna:

- Faz favor transmite este e pede urgência no retorno...

O trem continuou viagem e deu confusão na segunda classe; A Puta Estrábica de Engenheiro Gutierrez quis arranhar o

119

Page 120: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

rosto do Galã de Angaí, mas a turma da deixa disto acabou com a confusão.

- Próxima estação é Guarají... Guarají...

Guarají, vila progressiva, exportadora de erva mate e madeira. Plataforma cheia de gente, dia de festa na vila com torneio de futebol amador. O cheiro gostoso de pinhão sendo assado junto com carne moída, na brasa encheu o trem.

O Telegrafista de Guarají foi ao último vagão entregar um telegrama ao Inspetor do Paraná.

Na segunda classe embarcaram duas bonitas gêmeas; as Gêmeas de Guarají.

Gente desembarcou, gente embarcou, a viagem continuou naquela manhã de domingo.

Jabuticabal, povoado alegre, plataforma movimentada. O trem parou e a mala que estava debaixo do banco do Argentino se abriu e ele sentiu o frio na perna, olhou e viu a jibóia se enroscado nas pernas: desmaiou.

O Inspetor do Paraná desembarcou, correu ao lado do trem até o escritório da estação e entregou ao Agente de Jabuticabal um maço de telegramas:

- Faça o favor, transmita para Cerro Pelado, Maquinista Molina, Porto União, General Neto e Porto Alegre.

Saiu de Jabuticabal com licença até a estação de Rio Tibagi, junto a este rio.

120

Page 121: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Parada rápida em Rio Tibagi.

- A chegar a Ponta Grossa... É Ponta Grossa... Baldeação para Curitiba... Baldeação para Palmeira, Morretes...

- Morretes tem barreado e a Lapa tem quirela...

- A chegar a Ponta Grossa, favor sair pela porta da frente... Ponta Grossa, baldeação para Paranaguá, Antonina e para o ramal da Lapa...

- Hein! Moço, para Porto Amazonas?

- Porto Amazonas baldeação aqui.

É Ponta Grossa, é Paraná Brasil. Ponta Grossa coração ferroviário do Paraná. O bairro das Oficinas, o grande recinto, cheio de vagões, locomotivas de manobra montando e desmontando composições.

Plataforma cheia de gente. Os dois Pastores Luteranos, com roupa preta, colarinho branco, pastas debaixo do braço. O Deputado Federal do Partido Trabalhista que discutia com o Deputado Federal da União Democrática. Juiz de Direito de Londrina...

Onze horas e cinqüenta e cinco minutos encostou a plataforma. Movimento nervoso de gente descendo, gente embarcando, janelas se abrindo para curiosos olharem a plataforma. A mulher nervosa, segurando o filho pela mão parada no corredor do vagão perguntando:

- Quem vai pra Alexandra?

121

Page 122: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Alexandra é perto de Paranaguá, desce aqui, embarca no trem de Curitiba...

A Cozinheira de Morretes, “rainha do barreado”, mulata bonita que ia a São Paulo cozinhar no encontro mensal da “Confraria do Barreado” embarcou na segunda classe e sentou perto da Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos.

O grupo de jovens, alunos da “Escola Profissional Ferroviária Coronel Tiburcio Cavalcanti”; alegres, barulhentos que seguiam em férias para desembarcarem nas estações do trecho até Itararé.

Embarcaram soldados do “Treze de Infantaria” que iam tirar licença em suas casas.

Na sala dos Controladores de Movimento, um controlador nervoso; analisava gráficos e planejava manter linhas desimpedidas para os trens de passageiros. Trem de passageiro tem preferência, trem com charque tem preferência, trem com café tem preferência, com destino aos portos de Paranaguá, Antonina ou São Francisco do Sul... Tudo tem preferência nesta droga!

Inspetor José desembarcou e ficou perto do último vagão cuidando nos movimentos.

O Inspetor do Paraná foi até a cabine três e chamou o Ex Prisioneiro de Marcilio Dias. Desembarcaram e ficaram perto do vagão. Um Sargento da Policia Militar e dois Soldados, caminhando com decisão rumo ao último vagão. Inspetor José cuidando o movimento. O Cabineiro parou na plataforma do

122

Page 123: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

vagão. A Viúva de Santa Barbara espiou pela janela. O Sargento fez continência ao Inspetor, trocaram palavras. Cada um dos Soldados ficou numa das portas do último vagão. Inspetor do Paraná fez sinal para que o Ex Prisioneiro de Marcilio Dias o acompanhasse até o escritório da estação onde foram recebidos pelo Agente de Ponta Grossa. Inspetor mostrou sua carteira de policial e explicou:

- Senhor Agente, devido ao crime que ocorreu no trem, este passageiro que viaja de Porto Alegre até Marcilio Dias, teria que ter desembarcado em Porto União para baldear... Continuou a viagem até aqui por motivo de investigação... Peço que o senhor providencie a revalidação de passagem e o retorno...

- Sim... Ele pode retornar para Porto União pelo trem que passará aqui dentro de duas horas... Ou pode seguir no trem que vai para Curitiba até a estação de Engenheiro Blei e lá baldear para o trem que segue pelo ramal da Lapa...

Inspetor do Paraná acertou tudo com o Agente de Ponta Grossa, foi até o último vagão e convidou o Inspetor José para irem ao vagão restaurante comerem um “filé a Oswaldo Aranha”. Inspetor José coçou a cabeça e disse:

- Ó, estou pensando em voltar... O trem de São Paulo a Porto Alegre vem no horário...

Inspetor do Paraná sacudiu o dedo:

- Não; posso precisar de sua ajuda... Até pergunto sua opinião sobre os dois que viajam na cabine dois?

123

Page 124: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- O Cafezeiro de Monte Azul e o Escritor de Jandira...

Na bilheteria ainda passageiros retardatários:

- Uma passagem de ida, primeira classe, a Carambeí.

Agente e Chefe de Trem estudavam os mapas de passagens: trem cheio.

- Tem gente de pé nos corredores...

- Até Castro desce muita gente...

Na segunda classe embarcou o velho maluco, na cabeça um antigo capacete militar, vestindo uma túnica muito velha e judiada; lutou nas tropas do governo contra os fanáticos do Contestado: o Arcabuz do Boqueirão. Sentou ao lado do Argentino dizendo bobagens:

- To muito alerta... Vim na Ponta Grossa buscar trens... No Boqueirão tem mil homens, tudo de arcabuz novo... Vamos descer pra Porto União...

Assustado o Argentino escutava e nada entendia:

- Soy bracileiro de La Barra Del Quarai...

- É; eu sei, tu és paraguaio, espião dos fanáticos, bandidos, no Boqueirão tem mil e no Carambeí tem mais mil...

Confusão na plataforma da estação: o Galã de Angaí passou a mão na bunda de uma mulher e levou uma bofetada na cara. A Policia Militar levou ele.

124

Page 125: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Às doze horas e trinta e cinco minutos continuou a viagem, deixando a plataforma da estação cheia de gente, gente que embarcaria no trem para Curitiba ou no trem procedente de São Paulo com destino a Porto Alegre.

- Chegando a Rio Verde... Rio Verde.

Rio Verde cruzamento com o trem procedente de São Paulo. Curiosos abrindo janelas. Parada rápida e as duas locomotivas continuaram a viagem batendo sino e apitando.

O Argentino ia tonto e desconfiado diante do falatório, e os olhos arregalados do Arcabuz do Boqueirão:

- Depois da vitória, cachaça pra todos... Cachaça de Morretes...

O Inspetor do Paraná voltou do vagão-restaurante para o último vagão onde encontrou no corredor, o Ceboleiro de Povo Novo abraçado com a pasta preta.

- A chegar a Boqueirão... Estação Boqueirão...

O Telegrafista de Boqueirão foi ao último vagão entregar um maço de telegramas ao Inspetor do Paraná.

O Arcabuz do Boqueirão levantou para desembarcar, fez continência para o Argentino e depois apontou o dedo dizendo:

- Tu te cuidas!

Deixou Boqueirão com licença até a estação de Carambeí.

Carambeí, plataforma cheia de gente.

125

Page 126: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Perto da estação muitos carroções do Paraná; carroças de quatro rodas, caixa retangular coberta por um toldo em arco. O quê despertou a atenção do Engenheiro Construtor de Ferrovias que viajava na primeira classe.

Um carroceiro, um pouco desconfiado, embarcou na segunda classe e sentou ao lado do Tropeiro de Povinho de Castilhos, que até gostou e logo puxou conversa.

O Agente de Carambeí bateu o sino, a locomotiva apitou e o trem seguiu viagem.

Inspetor do Paraná recostado na porta da cabine nove, a Viúva de Santa Barbara sentada no leito:

- É eu embarquei em Santa Barbara...

- A senhora conhece o passageiro da cabine seis?

- Eu não sei nem o número da minha cabine.

- O padre.

- Ah! Somos companheiros na “confraria do coelho” lá em São Paulo.

- Qual é a ordem religiosa a que ele pertence?

- Ele me ensinou a fazer coelho a Cafundó; recheia o coelho com cebola picada, toicinho picado, amendoim torrado, assa no forno...

- Desculpa... Perguntei a ordem religiosa...

126

Page 127: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- De religião nada entendo... Não tenho religião, não acredito em padre, não acredito em santo, não acredito...

Na cabine quatro o Comprador de Mulas de Sorocaba, folhando uma revista escutava o Comprador de Mulas de Itapetininga:

- Chega a Itapetininga, salto deste trem e nunca mais vou viajar... Negócio com burros e mulas acabou...

- Você desce em Itapetininga se este policial que esta viajando ai neste vagão deixar, que ele pode querer que a gente siga até São Paulo...

- Ele ainda não falou com a gente... Ele tava conversando com o Advogado de Rio Pardo e o advogado só respondia; data vênia, alfarrábios, data vênia, meus alfarrábios...

Os Garçons começaram a percorrer o trem, equilibrando bandejas e oferecendo gasosas e sanduíches.

Parada rápida em Tronco.

Os Camareiros começaram a avisar:

- Próxima estação é Castro... Castro sair pela porta da frente... Castro.

Castro, jardim a margem do Rio Iapó, numa lombada entre serras cobertas de matas. A cidade das mulheres bonitas, antigo pouso de tropeiros, nos tempos das tropas entre o Rio Grande do Sul e Sorocaba. Fundada em mil setecentos e setenta e quatro.

127

Page 128: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Tarde de domingo, plataforma e arredores da estação cheios de gente, muitos grupos de jovens.

Dois Soldados da Policia Militar se postaram junto ao último vagão. O Inspetor do Paraná fez sinal para eles, desembarcou e correu ao escritório da estação com um maço de telegramas a serem transmitidos. O Telegrafista de Castro o entregou outro maço de telegramas:

- São para o senhor.

Agradeceu e voltou para o último vagão.

O Agente de Castro bateu o sino, o apito da locomotiva ecoou nas ruas da Vila Nova de Castro, os cilindros chiaram e o trem partiu.

A ponte sobre o Rio Iapó, o Inspetor do Paraná, leus dois telegramas que recebeu de Porto Alegre e um que recebeu de General Neto, coçou a cabeça, tinha muito que pensar, pegou o bloco de anotações.

- Estação Iapó... Iapó...

Iapó da mina de mármore. Uma mulher muito gorda subiu no vagão de segunda classe, com muito esforço e auxiliada por um Camareiro. Ofegante, entrou no vagão e o único lugar vago ao lado do Argentino, sentou largando o corpo e apertou o Argentino contra o canto.

O vagão sacolejando e o Inspetor do Paraná rabiscando um telegrama.

128

Page 129: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Estação do povoado de Caxambu, os vendedores de pastel, o Inspetor correu a estação e entregou um telegrama ao Agente de Caxambu:

- Faça o favor, transmita com a máxima urgência este telegrama para Porto Alegre.

Voltou para o último vagão, embarcou com o trem já em movimento.

- Estação Tijuco Preto... A próxima é Tijuco Preto...

Chegou à estação do povoado de Tijuco Preto, no pátio de uma casa simples a beira dos trilhos, chamou a atenção dos passageiros; um pequeno altar com uma imagem de São Gonçalo, ao som de viola duas filas; uma de moças e outra de rapazes baila às vezes trocando de lugar e cantando versos. A Mulher Gorda de Iapó disse em voz alta:

- É uma “Sarambada de São Gonçalo”.

O trem continua a viagem na linha paralela ao Rio Pirai. A Mulher Gorda de Iapó, apertando o Argentino contra o canto.

O Inspetor do Paraná tirou de dentro da sua pasta o revólver e conferiu as balas antes de colocar na cintura, saiu da cabine e andou no corredor, parou olhando a cabine sete. Na cabine sete viajava o Pistoleiro de Espalha Brasas.

O Contrabandista de Jaguarão, abraçado a sua pasta preta, saiu da cabine dez e foi para o banheiro.

- A chegar a Pirai do Sul... Pirai do Sul.

129

Page 130: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

A Mulher Gorda de Iapó fez esforço para levantar, levantou e caiu sentada em cima do Argentino que deu um urro em ritmo de tango.

O Agente de Pirai do Sul bateu o sino saudando a chegada do trem.

O Inspetor do Paraná foi para a plataforma do vagão e cuidou o movimento na estação.

Um Camareiro ajudou a Mulher Gorda do Iapó a descer.

Um Delegado de Policia, um Sargento e dois Soldados da Policia Militar do Paraná se aproximaram do último vagão, o Inspetor do Paraná saltou e foi conversar com eles. Pela janela o Inspetor José os espiava.

O Agente de Pirai bateu o sino liberando o trem para continuar a viagem. O Inspetor, o Delegado e o Sargento subiram no último vagão e ficaram no corredor enquanto cada um dos Soldados embarcou em uma das plataformas do vagão.

Na primeira classe o Engenheiro Construtor de Ferrovias conversava com os dois Maquinistas da Leste Brasileiro, enquanto tomavam gasosas e comiam sanduíche.

- Foi no Rio Grande do Sul, na linha de Bagé a Pelotas, na estação de Biboca... Trem de cargas parou esperando cruzamento; o Maquinista desceu da locomotiva e foi até o meio da composição ver o Guarda-Freio que estava consertando uma sapata de freio... O Foguista desceu pelo outro lado e foi conversar com a filha do Guarda Chaves...

130

Page 131: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Locomotiva sozinha, as válvulas de escape fechadas... Explodiu a caldeira...

- Estação Espalha Brasas... Espalha Brasas...

O Cabineiro do Último Vagão levantou de seu canto, espreguiçou. Tenho que chamar o passageiro da cabine sete.

No corredor do vagão, Inspetor, Sargento e Delegado ficaram alertas.

O Cabineiro bateu com força na porta da cabine sete:

- Hei! Senhor está chegando...

Na segunda classe e Puta Estrábica de Engenheiro Gutierrez disse em voz alta:

- Espalha Brasas, foi aqui que eu perdi minha virgindade...

O trem parou na pequena estação. No último vagão o Cabineiro continuava chamando o passageiro da cabine sete. A porta não abria o Delegado olhou para o Sargento que Olhou para o Inspetor. O Sargento fez sinal e os dois soldados, que estavam nas plataformas, entraram para o corredor. O Delegado segurou a maçaneta da porta e tentou abrir. Trancada por dentro.

Na pequena plataforma o Agente de Espalha Brasas e o Chefe de Trem aguardavam um sinal do último vagão para continuarem a viagem.

O Cabineiro desceu e correu pelo costado do trem até a plataforma onde avisou ao Chefe de Trem:

131

Page 132: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Trancada, por dentro... O Delegado quer arrombar.

O Chefe de Trem pensou rápido e ordenou:

- Vai à locomotiva e pede ao Maquinista uma alavanca.

Correu à locomotiva e logo voltou com uma pequena barra de ferro. O Chefe de Trem mandou:

- Embarca, vamos partir... Nós dois vamos por dentro do trem.

O trem continuou viagem num trecho de linha cheio de curvas.

O Chefe de Trem, acompanhado do Cabineiro chegou ao último vagão.

- Próxima estação é Joaquim Murtinho... Joaquim Murtinho.

Parou em Joaquim Murtinho, o Cabineiro do Último Vagão arrombou a porta da cabine sete. O Delegado olhou para o Inspetor; cabine vazia. O Cabineiro entrou, examinou a janela; janela de guilhotina estava sem os trincos. O Pistoleiro de Espalha Brasas ergueu a janela, pulou e a janela fechou. Onde? Em que estação?

Na segunda classe, embarcou sapatos de salto alto, toda pintada, enormes brincos, loira sardenta, mala e uma bolsa grande, a Puta de Joaquim Murtinho para a alegria das que já viajavam; foi bem recebida e sentou ao lado do Argentino.

132

Page 133: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Agente de Joaquim Murtinho liberou o trem que continuou a viagem deixando na estação um Delegado, um Sargento e dois Soldados que tencionavam prender um pistoleiro.

O trem descia a serra das Furnas rumo à estação de Presidente Castilhos.

- Estação Presidente Castilhos... Castilhos.

A pequena estação estava cercada por um grupo de índios Coroados, que protestavam e reivindicavam melhores tratos pelo governo.

O Argentino levou um susto, quando o índio, cara pintada, enfiou a cabeça pela janela.

O Agente de Presidente Castilhos e o pessoal do trem acalmaram os índios e os afastaram de perto do trem. Continuou a viagem.

No último vagão, até um pouco envergonhados; Inspetor do Paraná e Cabineiro trocavam idéia; onde teria pulado o Pistoleiro de Espalha Brasas? O Cabineiro:

- Olha; desde que o trem saiu de Florestal em todas as estações que o trem parou eu cuidei a janela da cabine dele...

Na segunda classe a Puta de Joaquim Murtinho abriu a bolsa que carregava no colo e um papagaio botou a cabeça para fora. O Argentino olhou o papagaio e sacudiu a cabeça

Na primeira classe o Engenheiro Construtor de Ferrovias contava aos Maquinistas da Leste Brasileiro:

133

Page 134: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- A gente estava construindo o ramal de Santiago do Boqueirão a São Luiz de Gonzaga, na estação do Carovi tinha um louco que andava sempre na volta dos trens dizendo que era maquinista... Um dia o pessoal do trem-lastro, carregado de trilhos, parou no Carovi para almoçar, pois o dito Louco do Carovi viu que a locomotiva estava só...

O papagaio olhava para o Argentino, espichava o pescoço e dizia:

- Puto... Puto... Puto...

Estação Cilada, dia de festa; casamento, os recém casados e convidados na pequena plataforma, risos de alegria, lagrimas de despedida. O Trem chegou apitando.

O Telegrafista de Cilada correu pela beira do trem e entregou um telegrama ao Inspetor do Paraná. O trem continuou a viagem.

No corredor do vagão o Inspetor caminhava de uma ponta a outra, sacudia o telegrama e em voz alta contou ao Cabineiro:

- Agora que avisaram... O Guarda-Chaves de Fernandes Pinheiro viu um passageiro sair pela janela do último vagão, quando o trem estava chegando à estação.

O Cabineiro se entusiasmou e começou a contar:

- Uma vez em Tijuco Preto...

Inspetor sacudiu o telegrama e entrou para a cabina.

134

Page 135: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Na segunda classe a Puta de Joaquim Murtinho, deixou a bolsa com o papagaio em cima do banco e foi conversar com a Cafetina do Ramal de Guarapuava. O Papagaio saiu da bolsa e pulou para o ombro do Argentino, sempre dizendo:

- Puto... Puto...

Remexendo nos seus papéis o Inspetor do Paraná encontrou o rascunho de um telegrama, bateu na cabeça:

- Merda... ; tinha que ter mandado este telegrama ao Agente de Pinheiro Marcado... Bem eu mando de Jaguaraíva...

A Puta de Joaquim Murtinho viu o Camareiro entrando no vagão e correu para esconder o papagaio.

- Estação de Jaguaraíva... Jaguaraíva baldeação para o Ramal do Paranapanema... É Jaguaraíva...

Movimentaram-se a carga humana, gente conferindo bagagem de mão, outros juntando objetos.

- Jaguaraíva, baldeação para Ourinhos... Quem vai entrar em São Paulo por Ourinhos...

- Hei! Eu vou pro Mato Grosso, estação Porto Esperança...

- Pode entrar por Ourinhos, vai a Bauru e de lá segue no trem da Noroeste...

- Baldeação para; Arapoti, Calógeras, Venceslau Brás, Jacarezinho...

- Vou para Quatingá?

135

Page 136: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Pula aqui...

A progressiva Jaguaraíva, com seu grande frigorífico, a fabrica de papel, a Igreja de Bom Jesus da Pedra lisa.

Plataforma cheia de gente, dezoito horas e trinta minutos. Domingo de torneio de futebol. Equipe de Sengés, time de Itararé.

Confusão de gente subindo, gente descendo, gente indecisa; que ainda não entendeu a baldeação.

O homem alto sentou ao lado do Argentino que o olhou com desprezo; o homem alto levantou e trocou de lugar. Azar do Argentino que pretendia chegar a Recife, pois o homem viajava para a Paraíba e sabia os trens que teria que pegar para chegar até o Rio São Francisco, e do São Francisco para diante. O homem alto sentou ao lado do caboclo forte e perguntou:

- Vai pra onde?

- Moço eu vou é pro Sergipe... Malhada dos Bois...

- Conterrâneo temos muito chão pra anda junto... Eu vou pra Sousa na Paraíba...

A Cafetina do Ramal de Guarapuava juntou suas meninas as quais se uniram a China Magra de Livramento e a Puta de Joaquim Murtinho, desembarcaram para baldearem e tomarem o trem até o ramal de Maringá.

Confusão na plataforma entre jogadores do time de Sengés e os do time de Itararé.

136

Page 137: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Sentou ao lado do Argentino o Peidão de Rio das Mortes, e já passou a mão na barriga e soltou um peido fedorento.

Trem cheio, gente de pé nos corredores, fim do dia, reiniciou a viagem no “pior trecho ferroviário do Brasil”.

Estação Samambaia, o Inspetor do Paraná foi à estação pedir para o Agente de Samambaia passar telegramas para o Agente de José Vargas, o Agente de Pinheiro Marcado e o Agente de Fernandes Pinheiro.

Na segunda classe, inicio de briga entre as torcidas do futebol, os Camareiros acalmaram.

De Samambaia a Rio das Mortes o Argentino viajou com a janela aberta e a cabeça para fora que o Peidão de Rio das Mortes tinha muito gás.

Rio das Mortes muita gente para embarcar; time de futebol de Rio do Bugre e sua torcida. Gente nas plataformas dos vagões, Camareiros acomodando o pessoal.

Desceu o Peidão de Rio das Mortes, sentou ao lado do Argentino o Juiz de Futebol de Engenheiro Schamber, que apitou o jogo e a torcida de Rio do Bugre dizia que ele roubou para o Rio das Mortes, para evitar a briga, dois Camareiros ficaram perto dele.

Engenheiro Schamber onde o Juiz de Futebol desembarcou sendo ameaçado de apanhar.

Continuaram a viagem e no último vagão o Cabineiro contava ao Escritor de Jandira:

137

Page 138: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- A próxima estação é Fabio Rego, ano passado embarcaram duas mulheres em Fabio Rego; uma delas tava barriguda e ocuparam a cabine oito... Tinham passagem de Fabio Rego até Ponta Grossa... O trem parou em Jaguaraíva e elas desceram... Eu não vi elas voltarem... O trem seguiu viagem e eu fui olhar a cabine... Acredite; abandonaram uma criança...

O lampião a querosene iluminando a pequena plataforma da estação Fabio Rego. Parada rápida e continuou a viagem.

O Falso Padre de Cafundó e a Viúva de Santa Barbara saíram atravessando o trem até o vagão-restaurante.

O Cabineiro continuava contando estórias ao Escritor de Jandira:

- Agora a gente vai passar em Rio do Bugre... Ai tinha uma mulher que traia o marido... O amante dela era de Rio das Mortes...

- Esta estação que o trem passou há pouco?

- É... Eles se encontravam neste trem... Uma vez a gente vinha voltando de São Paulo, ela subiu aqui em Rio do Bugre e ocupou a cabine seis, quando o trem chegou a Rio das Mortes o amante embarcou; os dois tinham passagem até Porto União... Só que o marido dela se pendurou ali atrás do vagão... E viu eles abraçados ai no corredor...

- Estação Rio do Bugre... Rio do Bugre...

Rio do Bugre; desembarcaram os barulhentos torcedores do time de futebol. O Inspetor do Paraná correu até a estação

138

Page 139: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

onde o Agente de Rio do Bugre o entregou um telegrama. Leu e comentou:

- A policia de Teixeira Soares vai procurar o pistoleiro na região de Fernandes Pinheiro... Esta hora!...

Continuou a viagem até a estação de Tucunduva onde fez parada rápida. Embarcaram dois homens na segunda classe, um deles sentou ao lado do Argentino, que se arrepiou ao ver o companheiro de banco; ferido no rosto e um talho grande no braço. O companheiro disse:

- Briga por causa de jogo de cartas.

Jogando cartas, um grupo de Caixeiros Viajantes, um disse:

- Estamos chegando a Sengés, aqui eu passava as minhas férias escolares na casa do meu avô materno. A gente vinha de Porto Alegre a Sengés, passava o ano preso dentro de casa estudando, nas férias chegava aqui e tinha a liberdade... Na chegada, já a minha avó me esperava com um panelão de frango com mandioca...

- A chegar a Sengés... Sengés...

Sengés do rio Jaguariguatu, das cachoeiras e dos bosques de pinheiros.

Desembarcou o Ferido de Tucunduva para alivio do Argentino que estava anojado com cheiro de sangue.

O apito da locomotiva ecoou na vila e o trem partiu.

139

Page 140: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Parada rápida em Coronel Isautino onde embarcou o Herói de Itararé, velho, roupas sujas, pés descalços, esperou o trem continuar a viagem e entrou para o vagão, sentou ao lado do Argentino. Embarcou sem passagem e sabia que em Itararé o Camareiro o faria descer, seguido fazia isso. Em mil novecentos e trinta quando da revolução e que as tropas paulistas se entrincheiraram em Itararé para impedir o avanço dos gaúchos, ele era jovem, mas já tinha problemas mentais, acompanhou os movimentos das tropas e continuou com a mania de ser um combatente.

No último vagão o Inspetor José conversava com o Cabineiro que avisou:

- Estamos saindo do Paraná... Em Itararé cruzamos com o “Internacional”, que vem de São Paulo e vai até Santana do Livramento e lá tem baldeação para Montevidéu...

Na segunda classe o Herói de Itararé, olhou o Argentino e começou a disser besteiras:

- Tu és dos bárbaros do sul... Degolador, ladrão de cavalos... De Itararé vocês não passam... Caudilhos...

O Argentino nada entendendo apenas repetia:

- Bracileiro de La Barra Del Quarai.

Na cabine um o Inspetor José arrumou a mala e ficou de pé pensando: Não estou fazendo mais nada neste trem... Eu vou voltar para Porto Alegre... Embarco no Internacional...

140

Page 141: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Foi interrompido pelas batidas na porta, abriu; o Inspetor do Paraná:

- Vou precisar de ajuda do colega... Precisamos analisar o comportamento de alguns passageiros...

- A chegar a Itararé... Itararé...

No horário; vinte uma hora e trinta e um minutos; no horário encostaram-se a Itararé. Os alto-falantes:

- Senhores passageiros bem vindos a Itararé, bem vindos ao estado de São Paulo... São Paulo a locomotiva do progresso...

Movimento na plataforma, gente subindo, gente descendo. Um Camareiro fez o Herói de Itararé desembarcar.

Um Caixeiro Viajante comentou:

- Entramos na Sorocabana, daqui a São Paulo quatrocentos e oito quilômetros e cinqüenta e quatro estações; é estação em cima de estação...

Movimento na plataforma da estação; locomotiva batendo o sino o imponente IN-2, o Internacional, com seus vagões metálicos pintados de preto, chegava a Itararé.

Funcionários apressados se movimentavam para a troca de equipes e locomotivas dos dois trens. O trem procedente de Porto Alegre trocou de ferrovia, deixou de ser da Rede de Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC) e passou para a Estrada de Ferro Sorocaba (EFS), trocou o nome passou a ser o “NS4” e popularmente continuaria recebendo os apelidos a cada estação; noturno, sulista, Porto Alegre, das dez...

141

Page 142: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

As Vinte e duas horas o “NS4” deixou a plataforma de Itararé a da batalha que não houve. Na cabine cinco o Inspetor José de pé enquanto sentado na cama o Inspetor do Paraná conferia seus apontamentos:

- Este vestido de padre; o da cabine seis vem de Cafundó... É o Falso Padre de Cafundó... Pedi informações ao Agente de Cafundó, só mandou dizer que um padre reservou passagem e cabine, mas não conhecia o passageiro... Mas este Falso Padre é amigo da viúva da cabine nove...

- Esta viúva embarcou na viagem em Santa Barbara...

- Exato; a Viúva de Santa Barbara... Passei telegrama ao Agente de Santa Barbara e ele respondeu: ela tem um cabaré em Santa Barbara, diz que é viúva, mas ninguém conheceu o falecido...

Parada em Ibiti onde embarcou uma senhora e seus sete filhos, todos, crianças; sentou ao lado do Argentino que ficou tonto rodeado de crianças barulhentas e o menor passou as mãos lambuzadas de chocolate nas suas calças.

O Inspetor do Paraná pegou outro papel:

- E os dois da cabine dez...

- Embarcaram em Santa Maria...

- É, mas já vinham viajando em outros trens no interior do Rio Grande do Sul... Um diz que é comerciante na cidade da fronteira; Jaguarão...

142

Page 143: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Os dois, cada um tem uma pasta e andam sempre abraçados com as pastas...

- É... Na cabine dois vem um mineiro; Cafezeiro de Monte Azul... E o tal comerciante de Jaguarão, tem jeito de contrabandista... Pois o Contrabandista de Jaguarão e o Cafezeiro de Monte Azul, eu vi os dois conversando na plataforma de Ponta Grossa...

Estação de Rio Verde; desembarcou a mulher com os sete filhos para alegria do Argentino.

No último vagão o Falso Padre de Cafundó encontrou o Cabineiro no corredor e perguntou:

- O tal Inspetor do Paraná ainda esta no trem?

- Ta... Ta na cabine cinco conversando com o passageiro da cabine um.

- Eu desconfio que aquele velho também seja policial.

Parada rápida na estação Gorita e continuou.

O Inspetor do Paraná coçou a cabeça e disse:

- Os dois da cabine quatro são inimigos da vitima... Todos trabalham com o comércio de mulas...

- Sim... Não esquece que o morto viajava para testemunhar contra o passageiro da cabine oito...

Estação Itanguá. O Inspetor do Paraná tirou o relógio do bolso, olhou as horas e comentou:

143

Page 144: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Bem vamos à janta, que o pessoal do restaurante já esta finalizando.

Inspetor José sacudiu a cabeça:

- Eu nem vou jantar... Vou deitar e descansar um pouco, esta é a terceira noite neste trem.

Meia noite encostou-se à plataforma de Itapeva, movimento de gente subindo e gente descendo.

O Violeiro de Buri sentou ao lado do Argentino, para a alegria da segunda classe e tristeza do Argentino.

O Agente de Itapeva bateu o sino e liberou o “NS4” que trem da Sorocabana não podia atrasar.

O Violeiro de Buri, tocando e cantando. Passaram por Jaó, Engenheiro Bacelar, Rondinha e finalmente o destino do violeiro.

- Estação Buri... Buri...

Inspetor do Paraná voltou para o último vagão, encontrou o Cabineiro parado no corredor, perguntou:

- E a nossa carga? Estão todos nas suas cabines?

- Tão... Só o senhor é que estava fora do vagão.

Na segunda classe embarcou um senhor muito falador, sentou ao lado do Argentino e já começou a conversar:

144

Page 145: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Dá licença? Vou descer na próxima estação, eu sou de Vitorino Carmilo, moro ali desde antes do combate... O senhor sabe a história do segundo combate de Buri?

O Agente de Buri bateu o sino, o apito da locomotiva ecoou na cidade e continuou a viagem.

Paradas rápidas nas estações de Vitorino Carmilo, Aracaçu e Ligiana.

- A chegar à estação Engenheiro Hermilho...

O cheiro forte de esterco de gado misturado com a urina e pisoteado; numa das linhas do recinto vinte vagões carregados com gado aguardavam a locomotiva. A estação de Engenheiro Hermilho tinha um embarcadouro de gado e porcos.

Na segunda classe embarcou um vaqueiro com um grande berrante a tiracolo e sentou perto do Tropeiro de Povinho dos Castilhos e logo os dois começaram uma animada conversa.

Saíram de Engenheiro Hermilho e dez quilômetros adiante chegaram à estação de Angatuba onde o cheiro forte era de esterco de porco dos vagões que estavam no recinto da estação. Angatuba tinha um embarcadouro de porcos.

O Telegrafista de Angatuba correu pelo costado do trem até o último vagão onde conversou com o Cabineiro e este foi ligeiro chamar o Inspetor do Paraná. O Telegrafista entregou ao Inspetor um maço de telegramas;

145

Page 146: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- telegramas vindos de Porto Alegre, General Neto, Pinheiro Marcado, Maquinista Molina, Matos Costa, Espalha Brasas e Irati.

O Inspetor do Paraná agradeceu e voltou para a cabine a fim de decifrar os telegramas.

O trem continuou e na segunda classe o Vaqueiro de Engenheiro Hermilho dizia ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

- A, pois eu tenho vontade de conhecer os pampas...

- Mas bá! Já ta convidado tche; É só embarcar num trem e ir apear na estação de Povinho dos Castilhos...

No último vagão o Inspetor do Paraná chamou o Cabineiro até a porta da cabine e perguntou:

- A próxima cidade grande é?

- Itapetininga...

- Esta muito longe?

- Quarenta quilômetros...

O trem parou em Recham, um grupo de capoeira embarcou e sentaram perto do Argentino, um tocando o marimbaú, outro com um forte bafo de cachaça.

O Inspetor do Paraná correu até o escritório da estação, entregou o rascunho de um telegrama ao Agente de Recham:

146

Page 147: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Por favor, passe este telegrama com urgência ao Delegado de Itapetininga...

Na segunda classe o Tropeiro de Povinho de Castilhos apontou o berrante que o Vaqueiro de Engenheiro Hermilho carregava a tiracolo e perguntou:

- O que é esta guampa?

- Guampa?!... Há vocês chamam o chifre de guampa...

- E vocês chamam a guampa de chifre...

O Vaqueiro explicou ao Tropeiro que aquilo era um berrante. O Tropeiro de Povinho dos Castilhos gostou do instrumento de trabalho do colega e achou interessante. Prontamente o Vaqueiro de Engenheiro Hermilho tirou o berrante e deu de presente ao companheiro. Emocionado o Tropeiro agradeceu e disse:

- Mas eu fico mui contente... Gracias amigo... Mas um dia eu tenho que lhe dar um presente.

O Vaqueiro deu uma risada e disse:

- A, pois, se um dia eu vou no Sul o amigo dá de presente um laço... Um dia eu quero ter um laço; daqueles dos gaúchos...

- Mas com certeza... Eu faço laço, eu trabalho com couro e sou trançador... Pois vou lhe fazer um laço.

E foi a Mulher do Tropeiro que deu a idéia:

- A gente até manda pelo trem... É só o vizinho dizer o seu nome e o nome da estação.

147

Page 148: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

E ela chamou um Camareiro e pediu para ele anotar. O Vaqueiro de Engenheiro Hermilho explicou:

- A estação é Engenheiro Hermilho e o meu nome é...

O trem parou em Juriti e o grupo de Capoeiristas de Recham desembarcou para a alegria do Argentino.

Parada rápida na estação Cezário onde o Vaqueiro de Engenheiro Hermilho desembarcou.

- Próxima parada é Engenheiro Mendonça... Engenheiro Mendonça...

Na cabine quatro do ultimo vagão o Comprador de Mulas de Itapetininga, levantou do leito e começou a se preparar para desembarcar. O Comprador de Mulas de Sorocaba riu e disse:

- Só falta a policia não querer que você desembarque...

Parada em Engenheiro Mendonça, o Argentino nem acreditava que não tinha ninguém sentado a seu lado.

- Próxima estação é Itapetininga... Itapetininga...

Na cabine um o Inspetor José levantou e ajeito a roupa que estava desalinhada.

Na cabine cinco o Inspetor do Paraná pegou um papel dobrou, colocou no bolso e foi para o corredor de vagão.

O Cabineiro do Último Vagão conferiu a lista de passageiros e foi bater na cabine quatro.

148

Page 149: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

Itapetininga, estação movimentada, recinto grande cheio de vagões de carga, locomotivas de manobra formando composições, chegada ao recinto apitando, batendo o sino e muito cuidado. Plataforma cheia de gente. Carregadores apressados. O Delegado acompanhado de dois Policiais Militares seguiu para junto do último vagão.

O Inspetor José parou no corredor do vagão. O Inspetor do Paraná caminhou ligeiro, desembarcou e se apresentou ao Delegado de Itapetininga.

O Comprador de Mulas de Itapetininga apertou a mão do Comprador de Mulas de Sorocaba e se despediu dizendo:

- Não compro e nem vendo mais mulas... Parei...

O Cabineiro ficou no extremo do vagão cuidando os movimentos. O Inspetor José acendeu um cigarro. Mala na mão o Comprador de Mulas de Itapetininga, saiu da cabine e caminhou com calma até desembarcar. Parados, perto do vagão, o Inspetor do Paraná e o Delegado de Itapetininga, se viraram para olhar ele desembarcar.

O Inspetor José jogou o cigarro fora e voltou para a cabine.

O Inspetor do Paraná tirou o papel do bolso e entregou ao Delegado, que pegou o papel e convidou:

- Vamos ao bar da estação tomar um café.

Saíram de Itapetininga apitando e batendo o sino.

Parada rápida em Peixoto Gomide e depois chegaram à estação de Morro do Alto onde o primeiro vagão de segunda

149

Page 150: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

classe foi invadido por um grande grupo de cortadores de cana. O caboclo, alto, roupa tisnada, chapéu de palha, facão na cintura sentou ao lado do Argentino que ficou assustado.

- A chegar a Santa Adelaide... Santa Adelaide.

Em Santa Adelaide o Telegrafista foi ao último vagão entregar um telegrama ao Inspetor do Paraná que agradeceu e foi para a cabine ler o telegrama.

Estação Tatuí, os Cortadores de Cana de Morro do Alto desembarcaram. Embarcou um casal que sentaram perto do Tropeiro de Povinho dos Castilhos.

Madrugada; no vagão restaurante começaram os preparativos para servir o café.

Parada rápida em Guilherme Wendell.

Na segunda classe o Tropeiro de Povinho dos Castilhos escutava o companheiro de viagem contar:

- É seu moço, eu faço cafezal... Sou formador de cafezal.

No último vagão o Inspetor do Paraná, escreveu seu relatório, leu, corrigiu, voltou a ler.

- Próxima estação é Iperó... Iperó...

Em Iperó embarcou uma senhora acompanhada de uma moça, com jeito de maluca que sentou ao lado do Argentino e começou a jogar “biblioquê”.

O Formador de Cafezal de Tatuí contava ao Tropeiro de Povinho dos Castilhos:

150

Page 151: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- A gente faz as covas, planta o café, e entre as linhas do café pode plantar milho, feijão, arroz, que estas culturas são da gente... A primeira safra do café é do formador...

O trem correndo a Moça de Iperó jogando o biblioque, rebolando com força e assustando o Argentino.

As barras do dia e chegaram a Bacaetava. Um galo cantou, o trem apitou, um vendedor de pastel gritou ao lado do trem. Uma família de japoneses embarcou na segunda classe o que chamou a atenção da Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos: ela nunca tinha visto um japonês.

Parada rápida na estação de Varnhagem e logo os camareiros começaram a se movimentar que logo estariam chegando a Sorocaba. A Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos continuava olhando os japoneses enquanto o Tropeiro e o Formador de Cafezal discutiam em voz baixa sobre o órgão genital da mulher japonesa:

- Dizem que é atravessado...

Passaram por George Oetterer e Lopes de Oliveira.

- A chegar a Sorocaba... Sorocaba baldeação...

De ponta a ponta do trem se movimentou a carga humana.

- Sorocaba, baldeação para Bauru, Lençóis Paulista, Botucatu.

Passageiro indo ao banheiro, passageiros recolhendo e conferindo as bagagens. A mulher nervosa que perguntava:

- E quem vai para Araçatuba?

151

Page 152: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Araçatuba baldeação aqui.

No ultimo vagão o Cabineiro foi bater na cabine quatro. O Inspetor José levantou e saiu da cabine. O Inspetor do Paraná abriu a porta da cabine e ficou espiando o movimento no corredor do vagão.

Sorocaba importante centro ferroviário do estado de São Paulo, plataforma cheia de passageiros o trem encostou lentamente.

O Contrabandista de Jaguarão segurou firme a pasta desembarcou e caminhou ligeiro para o restaurante da estação.

O Cafezeiro de Monte Azul desembarcou.

O Comprador de Mulas de Sorocaba segurou a mala e saiu da cabine.

Na segunda classe o Formador de Cafezal de Tatuí se despediu do Tropeiro de Povinho dos Castilhos.

Para a sorte do Argentino a Moça de Iperó desembarcou.

Numa mesa de canto do restaurante da estação sentaram o Cafezeiro de Monte Azul e o Contrabandista de Jaguarão, olharam para todos os lados; o Contrabandista abriu a pasta e com calma tirou quatro maços de dinheiro e entregou ao Cafezeiro que os colocou em bolsos internos do casaco. O Contrabandista disse:

- Tudo aí... Na próxima viagem arranja mais diamantes... O diamante ta valendo bem no Uruguai...

152

Page 153: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Cabineiro do Último Vagão conferiu a lista de passageiros:

- Bom... Desce um em Jandira e o resto é em São Paulo...

Bateu o sino dando a partida do trem. Passageiros apressados embarcando. O Chefe de Trem apitou. Continuaram a viagem.

Parada rápida em Humberto de Campos onde um grupo de menores; fugitivos do Abrigo de Menores mantido pela Estrada de Ferro Sorocabana embarcaram no primeiro vagão de segunda classe.

Parada em Brigadeiro Tobias onde o Chefe de Trem e dois Camareiros desembarcaram os Menores de Humberto de Campos e entregaram a guarda do Agente.

- A chegar a Inhaíba... Inhaíba...

Inhaíba um vendedor de pamonha gritando e andando ao lado do trem.

Parada em Piragibu e uma mulata, alta, bonita e cheirosa embarcou na segunda classe e para a alegria do Argentino sentou ao lado dele.

Estação Aluminio e logo estação Pantojo. Em Pantojo embarcou o Português, dois metros de altura, forte, bigode grande, camiseta da “Portuguesa de Desportes”. Entrou no vagão de segunda classe, olhou a mulata sentada ao lado do Argentino, caminhou decidido, um Camareiro o acompanhou. Parou perto da mulata, apontou o Argentino e perguntou:

- E quem é o gajo?

153

Page 154: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Argentino suou frio e tremeu o queixo.

Parada em Mairinque, o Português segurou a Mulata pelo braço e desembarcaram.

Passaram em São Roque, Gabriel Pisa, Mailaski, São João Novo e Amador Bueno.

- A chegar a Itapevi... Itapevi...

Parou em Itapevi, um Delegado acompanhado de dois policiais militares foi ao encontro do Chefe de Trem avisando:

- Vamos revisar os documentos de todos os passageiros...

- Todos!

- Sim; procuramos um argentino...

- Bandido?

- Política...

O Chefe de Trem sorriu e disse:

- Idéias!... Não se prendem idéias.

O Delegado pensou, sacudiu a mão:

- É... Política da Argentina... Pode seguir viagem...

Saíram de Itapevi e o Cabineiro do Ultimo Vagão foi bater na cabine dois e avisar:

- A próxima é Jandira.

154

Page 155: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

O Inspetor José abriu a porta da cabine e ficou cuidando o movimento. O Inspetor do Paraná saiu da cabine e ficou parado no corredor.

Apitando e batendo o sino o trem chegou a Jandira. O Escritor se despediu do companheiro de cabine, pegou a mala, abriu a porta da cabine e caminhou vacilante. O Inspetor do Paraná olhou firme para ele, e segurou seu braço. O Escritor se assustou, o Inspetor do Paraná sorriu e disse:

- Meu jovem escreva um livro sobre este trem... Não vá escrever sobre o norte de Minas, não se meta em terras “Roseana”.

Parada rápida em Barueri, um cego embarcou e seguiu atravessando o trem e pedindo esmola.

- A chegar a Carapicuíba... Carapicuíba.

Embarcou o Poeta de Carapicuíba e começou a oferecer seus livros de versos aos passageiros.

Estação Quitaúna e a mulher vendendo bolo de mandioca.

Osasco; e o trem corria dentro de São Paulo, debruçada na janela a Mulher do Tropeiro de Povinho dos Castilhos admirava tudo e comentava:

- Dois milhões de habitantes; é muita gente.

Estação Barra Funda, no último vagão embarcou um Delegado acompanhado de dois policiais militares. O Inspetor do Paraná foi conversar com o Delegado.

155

Page 156: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

- Chegada em São Paulo... São Paulo... Passageiros que vão continuar na Central do Brasil aguardem informações na plataforma da estação...

- E quem vai pra Santos?

- Atravessa a rua e embarca na estação da Luz...

Nove horas, depois de setenta e quatro horas e trinta minutos; dois mil cento e sessenta quilômetros e dezenas de estações a viagem chegou ao fim.

O Cabineiro do último vagão começou a bater nas cabines. Inspetor José ficou parado na porta da cabine um. O Inspetor do Paraná e o Delegado ficaram no meio do corredor, em cada ponta do vagão um Policial Militar.

O Ceboleiro de Povo Novo, abraçado na sua pasta preta abriu a cabine, olhou os policiais, pegou a mala e saiu para desembarcar pela porta dianteira do vagão.

O Advogado do Rio Pardo pediu para o Cabineiro levar a mala até a plataforma da estação. Saiu da cabine oito caminhou devagar até desembarcar.

Inspetor José olhou para o Inspetor do Paraná. O Falso Padre de Cafundó saiu da cabine seis, olhou os policiais, sacudiu a cabeça e desembarcou.

O Contrabandista de Jaguarão saiu da cabine, desconfiado; desembarcou.

O Criador de Mulas de Pinheiro Marcado saiu da cabine, olhando para baixo; desembarcou pela porta de trás.

156

Page 157: UM TREM PARA O NORTE · olhando as águas do Guaíba. Sentou esperando o Delegado. Terno desalinhado, gravata frouxa, depois de percorrer os cabarés da Rua Riachuelo, o Delegado

A Viúva de Santa Barbara abriu a cabine chamou o Cabineiro. O Inspetor do Paraná olhou para o Delegado. O Cabineiro pegou a mala da Viúva, seguiu e ela atrás.

O Cafezeiro de Monte Azul abriu a cabine, pegou a mala e caminhou ligeiro. Inspetor José olhou para o Inspetor do Paraná. O Cafezeiro desembarcou.

O Cabineiro examinou todas as cabines. O Inspetor do Paraná chegou perto do Inspetor José, olhou para o Delegado e disse:

- Na fronteira de Santa Catarina com o Paraná aconteceu o crime... Um clandestino que viajava na traseira deste vagão, viu o crime e viu quando abriram a janela e jogaram a arma fora... A arma foi encontrada e esta na delegacia de Matos Costa... Vitima; Criador de Mulas em General Neto, casado com uma mulher muito mais jovem que ele... A viúva esta presa em Porto Alegre e já contou que ela se aproximou do nosso colega- apontou o Inspetor José. - tramaram este crime, pois ela queria assumir a herança...

Fim

Pelotas 30 de agosto de 2008

157