Um vulto no nevoeiro

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Um Vulto no Nevoeiro Ana Maria Prande Pereira Como é bom ficar parada olhando através da neblina o anoitecer de Santa Terezinha, o pequeno Patrimônio no Estado de São Paulo, onde moro. Não sei por que nunca me lembro de vir aqui. Não fica longe, apesar de ser o ponto mais alto da região. A silhueta das casas se mostra de forma irregular no horizonte, mas sem ofuscar a agitação das folhas das árvores. Aqui não ouço nenhum barulho suspeito, apenas o som do vento na folhagem densa. Escuridão e silêncio, apenas. Não gostei nem um pouco quando, na estrada, a freada de um caminhão boia-fria quebrou a quietude do ambiente. Fiquei irritada ao ser despertada dos meus devaneios. Ao virar a cabeça, percebi que um homem saltara de um caminhão. Não podia enxergá-lo, pois não passava de um vulto no nevoeiro. O caminhão foi embora roncando e o homem atravessou a estrada, vindo à minha direção. Não ao meu encontro, pois não sabia que eu estava ali, no meio da neblina. Não avançava decidido, nem tampouco com pressa, mas acelerou o ritmo ao passar por mim. Observei-lhe a feição. Reconheci imediatamente: era um índio que chegara recentemente da região norte do Brasil. Para dizer a verdade, não pretendia segui-lo. Foi com passos quase que maquinais que me vi seguindo o rapaz. Podia alcançá-lo facilmente, mas não quis. Tinha tempo de sobra. A neblina rondava silenciosamente o caminho. Ao chegarmos ao Patrimônio, vi o índio desaparecer pelo portão escuro de uma das seis casas ali agrupadas. Só quando me vi parada na calçada foi que me dei conta da imensa simpatia que aquele índio me despertava. Ao passar as mãos pela testa, lembrei-me de que o professor Bruno morava perto dali e era um grande pesquisador da história do Brasil. Esse pensamento me deixou toda animada. Não havia ninguém no Patrimônio que comparasse àquele professor que vivia constantemente no campo, no sertão, pesquisando os costumes locais. Na escola conhecia todo mundo e todo mundo o conhecia. Estava bem frio quando parei diante da casa dele. Senti de novo contente por ter decidido vir. Esperei um pouco antes de bater palmas tentando arrumar uma desculpa para o encontro. Mal acabei de bater a segunda vez, o professor apareceu diante de mim.

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Um Vulto no Nevoeiro

Ana Maria Prande Pereira

Como é bom ficar parada olhando através da neblina o anoitecer de Santa Terezinha, o pequeno Patrimônio no

Estado de São Paulo, onde moro. Não sei por que nunca me lembro de vir aqui. Não fica longe, apesar de ser o

ponto mais alto da região. A silhueta das casas se mostra de forma irregular no horizonte, mas sem ofuscar a

agitação das folhas das árvores.

Aqui não ouço nenhum barulho suspeito, apenas o som do vento na folhagem densa. Escuridão e silêncio,

apenas.

Não gostei nem um pouco quando, na estrada, a freada de um caminhão boia-fria quebrou a quietude do

ambiente. Fiquei irritada ao ser despertada dos meus devaneios. Ao virar a cabeça, percebi que um homem

saltara de um caminhão. Não podia enxergá-lo, pois não passava de um vulto no nevoeiro. O caminhão foi

embora roncando e o homem atravessou a estrada, vindo à minha direção. Não ao meu encontro, pois não

sabia que eu estava ali, no meio da neblina. Não avançava decidido, nem tampouco com pressa, mas acelerou

o ritmo ao passar por mim. Observei-lhe a feição. Reconheci imediatamente: era um índio que chegara

recentemente da região norte do Brasil.

Para dizer a verdade, não pretendia segui-lo. Foi com passos quase que maquinais que me vi seguindo o rapaz.

Podia alcançá-lo facilmente, mas não quis. Tinha tempo de sobra.

A neblina rondava silenciosamente o caminho.

Ao chegarmos ao Patrimônio, vi o índio desaparecer pelo portão escuro de uma das seis casas ali agrupadas.

Só quando me vi parada na calçada foi que me dei conta da imensa simpatia que aquele índio me despertava.

Ao passar as mãos pela testa, lembrei-me de que o professor Bruno morava perto dali e era um grande

pesquisador da história do Brasil.

Esse pensamento me deixou toda animada. Não havia ninguém no Patrimônio que comparasse àquele

professor que vivia constantemente no campo, no sertão, pesquisando os costumes locais. Na escola conhecia

todo mundo e todo mundo o conhecia.

Estava bem frio quando parei diante da casa dele. Senti de novo contente por ter decidido vir.

Esperei um pouco antes de bater palmas tentando arrumar uma desculpa para o encontro. Mal acabei de bater

a segunda vez, o professor apareceu diante de mim.

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- Maria Clara, onde você se escondeu? Faz tanto tempo que não a vejo!

Fiquei agradecida com o calor da acolhida. Então tentei responder com calma:

- Andei meio ocupada. Este ano a colheita do café está muito difícil.

- Deixa-me dar uma olhada em você – ele disse.

Eu sabia o que o professor estava vendo. Uma moça com dezoito anos de idade, relativamente alta, olhos

verdes, com uma pele creme escura e um rosto “bonito”, mas muito castigada pelo sol. Uma moça com o desejo

abundante de ser feliz e uma voz em formato de canto.

- Vamos entrar, Maria Clara!

Resolvi acabar com o formalismo e fui direto ao que me interessava:

- Professor, o que o senhor sabe sobre os índios que estão no Patrimônio?

Ele riu.

- Anda vigiando os Terenas ou os Xinguanos que estão trabalhando na região como boias -frias?

Caí, nesse momento, violentamente na realidade. A palavra perfurou minha sensibilidade, então tentei repeti-las

com indiferença:

- Vigiando? Não! Tenho pensado muito sobre eles. Por que saem de seus Postos Indígenas e se

incorporam como reserva de mão de obra?

O professor concordou com o teor da minha pergunta. Perto dele nós sempre pudemos concordar ou discordar.

Nenhum aluno era colocado contra a parede quando as questões eram contraditórias.

O professor procurou f ingir que estava um pouco embaraçado.

- Uns são Xinguanos. Recebem esse nome porque vieram do Parque Indígena do Xingu. Parece-me que

são apenas três índios. Os outros, os Terenas, são da reserva de Araribá, perto da cidade de Avaí, localidade

próxima do Patrimônio. Aparentemente, nada os distingue da nossa população rural. Vestem os mesmos trajes,

comem os mesmos alimentos, só que eles não passam despercebidos porque estão certos de que constituem

um povo.

Tentei acrescentar:

- O mais importante é que eles parecem ser muito leais a essa identidade.

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O professor completou:

- Identidade étnica.

- Como pertenço a uma geração mais discreta, achei melhor encerrar, por enquanto, a minha curiosidade.

- Tenho que ir embora.

O professor balançou a cabeça.

- Os índios xinguanos vão frequentar a nossa escola – ele disse.

Como a autodefesa é um dos poucos instintos que nos resta, tentei mostrar indiferença frente à notícia, mas era

exatamente isso o que desejava saber. O índio que tanto me impressionara iria permanecer no Patrimônio.

O professor levantou e estendeu a mão para se despedir. Fiquei surpresa quando ele me disse:

- Estou contente por constatar que você está preocupada com os índios. A escola também está se organizando

para receber esses novos alunos, pois vieram de um lugar onde eles aprendem a partir da própria experiência e

da experiência dos outros.

- E qual é a diferença? – perguntei.

- A íntima convivência entre pai e f ilho e entre mãe e f ilha é a forma básica de educação na comunidade

indígena. Qualquer adulto é capaz de ensinar aos f ilhos tudo o que eles precisam aprender para assumir seu

lugar na comunidade. Isso porque não há desníveis culturais. A mesma cultura é igualmente compartilhada por

todos.

Tentei indagar com um ligeiro sorriso:

- Então nossa escola se voltará para o índio? Irá respeitar o seu sistema de vida?

O professor assentiu:

- Já entramos em contato com a União das Nações Indígenas que desde 1980 tomaram em suas mãos a

defesa indígena. Eles prometeram nos orientar, principalmente na forma de alfabetizá-los e na organização de

textos a f im de que possamos verbalizar a luta dos índios na história do Brasil a partir da ótica das lideranças

indígenas.

Eu f iz uma pausa antes de acrescentar:

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- O trabalho não será difícil, pois tenho certeza de que a pressão indígena não será focalizada

isoladamente. Eles estão no nosso contexto, como os boias-frias e os peões. Somos todos remadores do

mesmo barco.

O professor reconheceu a verdade das minhas palavras e me aconselhou a não transformar esse desejo num

piquenique sofrido, pois o homem pode às vezes levar a vida inteira na penumbra, suas terras e suas árvores

sempre escuras e sombrias. Os acontecimentos mais importantes passam de roldão, insípidos. Procure

conhecer o índio e suas tradições, mas observe também outras coisas que passam ao seu entorno. Passou a

mão na minha cabeça e me abraçou afetuosamente

Saí apressada, sem dizer mais nada porque não queria saber como a história iria terminar. Queria apenas vivê-

la enquanto estava acontecendo. Não sou aquele tipo de pessoa que deseja que a história seja do seu jeito.

Naquele momento não queria saber como a história iria terminar.

INTERVALO PARA CONVERSA

Naquela manhã de julho sentia-me mais feliz do que nos outros dias. Uma certeza me invadia. O canto, a

devoção e a poesia podiam arrancar o homem de sua desolação por algum tempo. Minha preocupação

“indígena” era uma pausa para espicaçar minha consciência adormecida.

Percebi imediatamente, ao abrir as cortinas do meu quarto, que não havia sol, o céu estava nublado, talvez

chovesse.

Cumprimentei meus pais que estavam saindo para a roça e tomei o meu primeiro gole de café. Sempre fui

amante de café. O mais curioso é que sinto satisfação até mesmo ao fazê-lo.

Quando o caminhão de boias-frias para na esquina de casa é que substituo o meu casaco de dormir pela roupa

de trabalho.

Já são nove horas e aqui no cafezal há muito vento. As nuvens de um branco ligeiramente dourado correm

rápidas e, às vezes, os boias-frias seguram seu chapéu de palha, ameaçados por uma rajada de vento.

Às dez horas paramos para almoçar.

Sentei-me junto a Olga, uma ruiva pequena, de dentes saltados e belos olhos risonhos.

Seu sorriso é comunicativo. Também sorrio e ela me pergunta:

- O que você acha de estarmos agora trabalhando com os índios?

Lancei um olhar comprido, pensando-me que poderia dizer:

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- Eles serão caracterizados como índios tanto quanto os que moram e trabalham na Reserva, como

aqueles que trabalham fora dela. São cidadãos como nós. Podem trabalhar onde quiserem.

Ela se calou, parecendo refletir.

- Você confia neles, Maria Clara?

- Minha cara amiga, quem não deve confiar em nós são eles, pois sempre escondemos a história triste de

seu povo. Uma história da qual devíamos ter vergonha, pois os colonizadores massacraram os índios no Brasil.

Essa observação deixou Olga nervosa.

- Estou convencida – ela retrucou – de que talvez você tenha certa admiração por eles.

A minha voz abaixou como um sussurro.

- E difícil explicar. Mas acho que muitos não acreditam que os índios sejam gente como nós. Olga, disse,

amavelmente, sem qualquer insinuação de sarcasmo, eu própria sou uma ignorante a respeito dos indígenas do

Brasil. Talvez um dia entenda o que a professora de geografia sempre fala: “neste momento está sendo travada

uma guerra silenciosa contra os índios e contra os camponeses inocentes”. Acredito que não existe nada puro

neste mundo, mas aquele índio parece que possuía um potencial de pureza.

- A hora do almoço terminou. Comecei a descer a trilha silenciosa que me levaria a minha rua de café.

A fragrância do mato impregnava o ar com uma doçura que me deixava quase tonta. Senti um carinho imenso

pelo índio que me seguira na noite anterior, um sentimento tão estranho, tão acolhedor… Se ao longo da

história, o povo indígena foi oprimido pelos povos brancos, se nós os escravizamos, roubamos suas terras e

assassinamos seus chefes assim como sua cultura, só mesmo essa União das Nações Indígenas saberá como

enfrentar esta dominação que está acabando com eles.

Tendo certeza de que se a nossa escola, assim como todas as outras se propuseram a ensinarem aos índios a

não terem vergonha de ser índios e mostrar aos dominadores que eles têm direitos, pois são os primeiros

habitantes de nossa terra, essa situação vai mudar.

Empurrei para trás meus cabelos compridos, segurei fortemente a peneira que levantava uma nuvem de poeira

que se desprendia dos grãos de café e, assim, peneirando, passei o resto do dia.

Gostaria que meus pensamentos fossem sábios. Sei que qualquer busca de conhecimento é árduo e muitas

vezes nos leva a desmoronamentos abruptos e nos fazem mergulhar num lodaçal, mas as respostas virão.

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ORIGEM DE UIRÁ

Tive uma noite agitada, me sentia como uma plantinha numa terra descuidada que perdia suas f lores, como se

estivesse se esvaindo toda a minha vitalidade. Levantei duas vezes durante a noite, uma das vezes coloquei

meu rosto na vidraça fria, sem nada a ver senão a rua deserta. A neblina ia se tornando mais violenta, mais

agressiva.

Na segunda vez olhei para o relógio. Eram cinco horas e os boias-frias seguiam em direção ao trabalho.

Um homem passa por cima de uma pedra e quando a luz do poste cai sobre ele, percebo que é o índio que tem

ocupado minha mente nos últimos tempos. Os nossos olhares se cruzam em meio à cerração. Senti uma vaga

inquietude, uma opressão, a sensação de um mundo desconhecido ao qual se é de todo alheio e cuja vida

prossegue independente em torno.

No patrimônio, as casas pequenas, no máximo cinco cômodos, quase todas de cor indefinível. Só algumas

apresentam visível a cor branca.

Àquela hora do dia, as mulheres estavam dentro de casa preparando o almoço para ser levado para a roça.

As crianças não iam para a rua, mas já estavam acordadas prontas para serem deixadas na porta da creche ou

da escola.

Ao clarear, resolvi descobrir por mim mesma uma resposta mais objetiva sobre o índio misterioso. Saí

rapidamente de casa e só parei na frente de uma casa com um portão de cedro. Após bater palmas, o portão foi

aberto por um homenzinho magro, que me afagou no ombro, quase agradecido pela visita, enquanto me

introduzia na casa. Ele se chamava Júlio. O rosto trazia as marcas de um homem que sof reu durante toda a

vida as agruras do trabalho na roça.

Ao me levar para a cozinha, falou diretamente:

- O que está preocupando você, Maria Clara?

Levantei a cabeça e f iquei admirada ao constatar como o meu rosto deixa transparecer as emoções que sinto.

- Quem é o índio que o senhor está hospedando?

O homem ficou embaraçado com a rudeza da minha pergunta, mas tentou sorrir.

- Como é que você sabe que o índio Uirá está morando comigo? – indagou.

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- Eu o segui, respondi naturalmente.

- Vocês, jovens, pensam que são tão espertos – respondeu o senhor Júlio com complacência. Uirá já

percebeu que você o tem seguido.

Ele virou-se, sorriu para mim e disse novamente:

- Você está fazendo algum estudo sobre o impacto da civilização sobre as populações indígenas?

Balancei a cabeça negativamente.

- Não sou homem curioso, logo não vou perguntar quais os motivos que levaram você a se interessar por

Uirá. Todos nós temos a liberdade de encontrar dentro de nós um sentimento novo, então, contarei a você tudo

o que quiser saber sobre ele.

Eu estava consciente de que era observada atentamente, então perguntei com todo o cuidado:

- O que o senhor sabe sobre Uirá?

O senhor Júlio disse suavemente:

- Uns missionários que tentam levar a cristandade para suas tribos e depois disso levá-los a adotar a cultura

nacional; tentaram internar Uirá e os outros dois xinguanos numa escola missionária para tirar deles os

costumes tribais. Ao chegarem à escola, perceberam que as janelas estavam bloqueadas com grades de ferro,

assim como os portões. Não havia como atravessar. Com toda a certeza estavam ali para impedir que os índios

saíssem do local. Desapontados, eles resolveram fugir, arrombando uma das grades.

Protestei com raiva na voz:

- Mas esses missionários provocam o desmembramento da família indígena?!

O senhor Júlio balançou a cabeça.

- E verdade, sem dúvida. Mas, como eu estava dizendo, eles fugiram da escola que f icava muito distante

da sua tribo. Então, sem saber como voltar, resolveram pedir ajuda a um fazendeiro que encontraram num

povoado. Eles só chegaram até nosso Patrimônio porque o fazendeiro é morador desta região e se encontrava

naquele lugar para comprar madeira de lei. E como aquela região onde se encontravam estava infestada de

homens fora-da-lei, homens perigosos e brutos, que respeitavam apenas violência e truques, resolveu tirar os

índios de lá.

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O senhor Júlio fez uma pausa para deixar que as palavras fossem plenamente entendidas. Depois de um

momento, prosseguiu:

- Sabe, Maria Clara, acredito que nossas vidas são sobrecarregadas e a vida muitas vezes nos parece um

negócio terrivelmente complicado. Acho que esse fazendeiro sentiu-se impotente, sem saber o que fazer

realmente com os índios. Por isso os trouxe até o nosso Patrimônio.

Sacudi minha cabeça para clarear as ideias.

- Mas, especif icamente, o que eles pretendem ao f icar no Patrimônio? – perguntei.

O senhor Júlio bateu na minha testa com intimidade.

- Acredito que eles não querem abdicar de sua própria identidade, do orgulho de ser índio. Mas precisam

aprender a escrever corretamente o português para se apropriar desse instrumento de dominação que o homem

utiliza na demarcação de suas terras ou em outros tipos de contratos.

Balancei a cabeça confirmando.

- Ele veio para o lugar certo, porque nossa escola não engana o boia-fria, não enganará também o índio.

Ela respeitará o nível de compreensão desses xinguanos.

Neste momento, o senhor Júlio pegou na minha mão e me conduziu para a cozinha.

- Tome café e coma alguma coisa.

Enquanto eu mordiscava um pedaço de pão, ele continuou falando com um olhar bem triste:

- Sabe, Maria Clara, quando Uirá me contou como eles são molestados pelo branco, meu cérebro quase

estourou de ódio. Não acredito que exista um índio neste Brasil que confie que alguém poderá assegurar

proteção às populações indígenas.

A ironia cruel e desdenhosa com que tudo isso foi dito, a raiva controlada do senhor Júlio me reduziram a um

monte de massa trêmula, mas ele desabafou corajosamente outra vez:

- Coitado dos índios! Seu povo não é mais livre, seu trabalho é vendido tão barato e seu sangue é

derramado tão facilmente…

Ao falar, reconheci alguma coisa quase insolente nas minhas palavras:

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- Às vezes, acho que se discute sobre o índio como se ele fosse um objeto com quem ninguém sabe o que

fazer.

Ficamos longo tempo sem dizer nada.

O silêncio foi rompido por uma batida na porta. O senhor Júlio foi falar com o turmeiro que o estava chamando.

Quando voltou, fez um sinal para que eu saísse pelas portas do fundo.

Fiquei imóvel por um instante e depois me lembrei de que, como ele é um líder sindical de nossa região, a

minha presença na sua casa poderia me comprometer, principalmente por ter perdido um dia de trabalho. E os

turmeiros, que sempre nos contratam como boias-frias, não toleram ausência no trabalho.

Volto para minha casa sem muito entusiasmo e digo coisas para minha mãe sem importância. Ela, certamente,

percebe que estou preocupada. Por várias vezes me olha com curiosidade.

O tempo passa. Então, vou até meu quarto e abro um livro sobre o impacto da civilização europeia sobre os

índios.

Gosto muito de descobrir nos livros a fraqueza dos homens, principalmente dos colonizadores brasileiros em

não saberem como lidar com a cultura indígena. Sinto menos vergonha ao ver minha impotência frente aos

problemas do meu povo.

Estou mais bem humorada, depois da leitura. Vou caminhar um pouco pelo campo. Caminho devagar por uma

estrada de terra. Da beira do caminho posso contemplar os ipês f loridos dispersos pelas encostas do morro.

Sinto a fragância das f lores silvestres e vou experimentando uma enorme serenidade.

Não me sinto mais tão desamparada frente à vida, mesmo sabendo que nenhum destino glorioso me está

reservado.

Na história da minha vida não haveria grandes vitórias.

Tenho apenas uma vaga ideia sobre meu futuro. Futuro de uma pobre boia-fria.

Ao escurecer, posso contemplar do lugar onde estou as luzes das casas do Patrimônio se ascendendo. Ouço o

alto-falante anunciando a Ave-Maria.

Volto correndo para casa e, no portão, encontro minha mãe que me abraça com tanto calor que descubro o

intenso amor que nos une

OS TERENAS

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É uma segunda-feira. Faz exatamente uma semana que não vejo Uirá. Esse fato me irrita, pois gostaria de pelo

menos conhecê-lo. Não iria tentar mudar seu caráter ou seu tipo de vida: seríamos apenas bons companheiros.

Estou antecipando, mas o dia virá. É inevitável.

Safo-me murmurando:

- A vida é tão imprevisível…

Quando eu era criança, estava convencida de que quando eu fosse adulta, seria uma mulher forte, segura e

enfrentaria os problemas do meu cotidiano com muita clareza. Iria fazer melodias que cantariam as noites

estreladas, Mas hoje, com meus dezoito anos, vejo que tal estado adulto é totalmente falso. Não consigo juntar

nem mesmo as pétalas caídas da minha vida.

Ainda há pouco, f iquei vermelha como se tivesse feito alguma coisa errada. Mas eu só estava pensando em

densas f lorestas, onde Uirá, ostentando seu admirável corpo, aparecia…

Hoje voltei da roça com um índio Terena. Viemos conversando e ele me disse que retorna para a Reserva

Indígena todas as noites.

Contou-me que por lá existe uma presença acentuada de homens brancos, resultado principalmente pelo

casamento de índios com brancos. Parece haver um interesse especial dos homens que vivem nas cercanias

da reserva pelos casamentos com mulheres indígenas.

Com uma voz zombeteira, perguntei:

- É interesse pela terra?

O índio me fixou com seus olhos castanhos escuros e com um sorriso que parecia dizer exatamente o que eu

estava pensando.

- Você sabe das coisas de seu mundo. Realmente, como moro num lugar onde a maioria não tem terra, o

casamento com mulher índia é uma forma de o homem branco ter terra.

Meus olhos faiscaram de raiva, mas me limitei a dizer, suavemente.

- E uma forma também de tirarem de vocês a força de permanecerem índios.

O índio Terena virou-se para mim e disse, gentilmente:

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- Acho que na nossa Reserva só temos a coragem de sermos índios, mais nada.

Fiz outra pausa e, com um sorriso infantil perguntei:

- Você já entrou em contato com os índios xinguanos?

O índio ponderou muito sobre sua resposta. Podia facilmente recusá-la, mas não o fez.

- Eles são bravos guerreiros e sua tribo não conta com muito tempo de contato com o homem

branco.

Perguntei suavemente:

- O contato com o branco prejudicou sua tribo?

O Terena olhou para mim, pensativamente, por um momento, depois disse:

- Quando eu era criança, o meu povo falava dos antigos costumes da minha tribo que morava no

Chaco Paraguaio. Meu avô era um Unait, chefe e o meu pai era um Shuna Asheti, guerreiro. Nós pertencemos

ao grupo Chané-Guaná do tronco Arauque e onde nós morávamos tinha treze nações indígenas. Quando os

colonizadores chegaram, o meu povo foi obrigado a se deslocar para o Mato Grosso do Sul para garantir sua

sobrevivência. Lá eles foram usados como escravos para defenderem as fronteiras na Guerra do Paraguai. Foi

em 1930 que foram transferidos para o Posto Indígena de Araribá. Isso porque ele estava quase desabitado em

função de um surto de gripe que havia dizimado a população Guarani ali existente.

O índio soltou um longo suspiro e continuou:

- Hoje, nossa língua e costume tribal foram esquecidos. Nossas técnicas tradicionais estão

desaparecendo. Substituímos nossa tecelagem pela compra de tecidos e nossa cerâmica pelas panelas de

alumínio. Hoje, os nossos arcos e f lechas não visam tanto à caça, mas àvenda como artesanato.

Fiquei surpresa com as lágrimas que rolaram dos olhos do Terena. Era um choro cantado totalmente

desconhecido. Depois perguntei cheia de curiosidade:

- Foram vocês que quiseram mudar seus costumes?

- O Terena f icou de cabeça baixa por um longo tempo, depois respondeu:

- Foi o contato com o branco que fez meu povo criar estas novas necessidades.

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A emoção de sua voz me fez corar e me fez lembrar do barulho do vento quando sopra nas campinas. Depois

eu disse:

- Eu sinto muito por saber esse fato. Isso é o homem flor da melancolia que mistura amor e desamor em tudo

que faz.

O Terena meditou por um momento, enquanto eu esperava num silêncio acabrunhador. Depois ele deu um

suspiro e falou calmamente:

-Mas apesar de tudo, nós ainda temos orgulho de sermos chamados de índios.

Sinto uma pequena tensão ao pensar que esses índios que trabalham conosco na lavoura e moram na Reserva

estão ilhados num mundo estranho e hostil e tiram dessa hostilidade a coragem para permanecerem índios.

Pelo menos tão índios quanto seja possível., uma vez que eles passam de trabalhador coletivo para um

trabalhador individual e, portanto, assalariado.

Gostaria de iniciar um movimento a favor da preservação da cultura indigena, isto é, o que sobrou, entao faria o

impossível para impedir que as populações indígenas continuassem a ser dizimadas. Seria uma preservadora

de seus destinos.

DISCUSSÃO SOBRE OS ÍNDIOS

Quando o dia nasceu, f iquei preocupada ao receber um recado da escola de que teríamos uma reunião. Foram

convidados apenas os representantes de classe.

A manhã estava cinzenta, envolta em bruma, a eterna bruma, só que agora ela estava mais luminosa.

Sinto-me estranha. Nada aconteceu de sensacional. Todavia, a conversa que tive com o Terena me trouxe

progresso na compreensão sobre Uirá. Vários aspectos da sua cultura vieram juntar-se aos que já possuo.

Quando cheguei na escola, por volta das dez horas da manhã, as crianças brincavam num sol friorento de

inverno.

A diretora, com um vago sorriso nos lábios, observava maquinalmente os alunos sentados no pátio, esperando

o início da reunião.

Minha escola sempre teve atitudes grandiosas, sempre se preocupando com a justiça, mesmo estando

instalada em um lugar que só fala de pão e arroz com feijão.

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Ficamos um bom tempo numa sala de aula observando a porta, esperando os professores.

Quando chegaram, apertaram nossas mãos. Prestei atenção na entonação de voz do professor Adonis, que

estava presidindo a reunião. Tinha um rosto bonito, de traços marcados, com uma boca meio curva, generosa e

sensível. Começou a falar devagar. Possuía uma voz sonora, a voz de um orador nato.

- Esta reunião tem como objetivo explicar para os representantes de classe, que serão portadores das notícias

para os demais alunos, que a nossa escola receberá neste semestre alguns índios que tiveram muito pouco

contato com a civilização. Vamos pensar durante o dia de hoje sobre a questão indígena. E sobre a dívida que

nós temos para com os povos que viveram aqui há milênios, antes da chegada do branco. Nossa escola vai

fazer sua parte para saldar um pouco da nossa dívida com eles.

O professor fez uma pausa.

As perguntas começaram. Além disso, havia muitas curiosidades sobre esse povo. Todos os alunos se

acomodaram para o longo dia pela frente. Algumas mães, que participavam da reunião, foram fazer um café

fresco.

Um aluno, em tom de brincadeira, recitou:

-“Uirá, Raoni e Cairá, parem de se lamentar.

Porque eu, de bom grado, deixaria de ser homem branco para estar em seu lugar”.

Os outros alunos soltaram gargalhadas e balançaram a cabeça, concordando.

O professor Bruno, que estava respondendo como poderia ser identif icado um índio, dizia:

O Estatuto do índio, no artigo 3o, diz que “índio ou silvícola é todo indivíduo de origem e ascendência pré-

colombiana que se identif ica e é identif icado como pertencente a um grupo étnico, cujas características culturais

o distinguem da sociedade nacional”.

Com interrupções e trocas de ideias, outra aluna chegou à seguinte conclusão:

- Então, se algum aluno perturbar os índios, caçoar de seus costumes, de suas tradições, estará

praticando um crime contra ele.

- Você está certa – respondeu o professor Bruno, com um sorriso espontâneo.

O que se seguiu foi inevitável. A discussão se tornou tão calorosa, que obrigou os professores a tomarem

partido ou mesmo controlar os ânimos dos alunos.

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Já era tarde, quando encerramos nossa discussão.

Ouvimos atenta as últimas palavras do professor:

- Conheci alguns aspectos da cultura de Uirá, e tambem que está hospedado na casa do senhor Júlio

enquanto Raoni e Cairá estão alojados numa casa da Colônia dos Almeidas. Posso dizer, com certeza, que

apesar da exploração desumana e a repressão sangrenta com que eles convivem, não guardam rancor contra o

homem branco, que tenta destruir o rumo de suas vidas. Para f inalizar, quero deixar bem claro para vocês que,

se f izermos uma comparação com os índios, vamos notar que nós, os civilizados, somos uma sociedade sofrida,

pois o índio não conhece a ira, a angústia e a ansiedade que fazem parte da nossa civilização.

Olho em tomo de mim e sinto vontade de concluir a reunião. Levanto a mão e

acrescento:

- Amanhã, sabendo dos direitos da cidadania dos índios, os acolheremos também com afeto.

Minha voz ressoou alta e clara. Houve um silêncio prolongado.

Ficamos parados, f itando-nos orgulhosamente, por estarmos empenhados numa educação que não favorece as

falsas ideias e que ao nos preocuparmos coletivamente com a chegada desses novos elementos, estávamos

tendo um dever revolucionário de pensar certo e desenvolver a curiosidade sobre um povo que tão pouco

conhecemos.

OS ÍNDIOS NA ESCOLA

A noite caía. No poente, o céu sombrio se coloria de púrpura. Nuvens espessas refrescavam a terra ainda

quente do calor do dia.

Os boias-frias voltavam das fazendas. Quando passei por eles, me olharam com surpresa, quase

afetuosamente, como se eu fosse um ser diferente que, após um penoso dia de trabalho, ainda achava força

para ir para a escola.

De repente, vi Uirá que, pensativo, também seguia para a escola. Às vezes, parava, erguia-os olhos e f icava

ouvindo o doce murmúrio da brisa entre as árvores. Então respirava profundamente e recomeçava a andar.

Comecei a rir. Ele, então, parou, olhou para trás e como se me reconhecesse, esperou por mim.

O meu coração, de súbito, encheu-se de alegria. Senti todo o meu corpo estremecer de contentamento.

Page 15: Um vulto no nevoeiro

Fico com vergonha, pois no mesmo instante percebo que não sei o que dizer para um homem que é tão

diferente do meu povo.

Ao me aproximar, ele ergueu o braço e me disse:

- Paz!

De novo hesitei em fazer pergunta. Por que paz? Não compreendi. Tomei a dianteira e, poucos minutos mais

tarde chegamos à escola.

A noite não chegara por completo, os últimos lampejos do crepúsculo iluminavam a escola.

Uirá virou-se, e disse numa voz suplicante:

- Carib, conheço bem a sua língua, pois desde menino fui intérprete da nossa tribo junto aos missionários,

mas mesmo assim estou com medo de ter que enfrentar este lugar estranho.

Naquele momento, adivinhei a sua dor e queria compartilhá-la. Afinal ele estava tão distante do seu mundo, de

seus costumes, de suas tradições. Era natural que sentisse medo. Também porque a morte e a vida tem que

andar tão próximas

Os alunos, rapazes e moças, olharam para ele com espanto. Tudo é possível em se tratando de humanos.

Um aluno perguntou:

-Ei, você, não é o índio que nunca frequentou uma escola? Conta um pouco de sua tribo, queremos saber.

- Conta, conta! – gritaram outros alunos, mais parecendo um tiroteio de vozes.

De repente, ouviu-se um bramido. Os alunos pararam, imediatamente. O inspetor de alunos, o senhor Lázaro,

um homem bom e amável atravessou o pátio e dispersou os alunos.

Neste momento, chegou a professora que estava comprometida em conduzir os xinguanos ao processo de

aprendizagem da escrita e da leitura da palavra da língua do homem branco.

A professora era uma pequena muito bonita, denotando um ar de autoconfiança e segurança.

- Tenha calma, garoto. A sua voz era tranquilizadora.

Fiquei olhando Uirá entrar na classe. Como ele não escutasse mais meus passos atrás de si, virou-se.

- Carib, gritou, espere Uirá na saída.

Page 16: Um vulto no nevoeiro

Sorri para ele e me lembrei de que o senhor Júlio havia me explicado que os xinguanos tinham o hábito de

chamar todo “civilizado” de Carib.

- Mantenha-se f irme e não f ique apavorado, eu disse, acenando com a mão.

- Não f icarei – respondeu Uirá.

Em seguida atravessei o umbral do pátio e corri para minha sala de aula. Queria me perder de mim mesma.

A classe era pequena e dispunha apenas de uma entrada. Olhei para o fundo da classe e vi a professora de

português conversando com os demais alunos.

Era uma mulher tão voluntariosa e autoritária que até seu corpo irradiava poder.

Assim que me viu, ordenou:

- Passe o recado para a classe, Maria Clara.

Como na noite anterior eu preparara o que dizer para a classe, o discurso já estava pronto na minha mente. Dei

um longo suspiro e comecei:

- Três índios xinguanos, assim chamados, pois pertencem a algum dos onze grupos tribais localizados no

Alto do Xingu, região Norte do Brasil vão frequentar a nossa escola. Eles vieram de um imenso Parque Nacional

onde tem a fauna e a f lora intocadas e quase não tiveram contato com a sociedade nacional. Além disso, na

sociedade xinguana, não há preponderância do mais forte, nem submissão dos mais fracos. Há um perf eito

equilíbrio e respeito entre eles. A escola se comprometeu em respeitar seus costumes e seus mitos, que

procuram dar explicações mágicas para as coisas que os cercam.

Tito, que pela segunda vez tenta terminar o terceiro colegial, levanta-se da carteira e exclama:

- Sabe, Maria Clara, hoje lá no seringal, esses índios cantaram para nós. Ninguém sorriu ou teve qualquer

gesto zombeteiro. Ao contrário, f icamos comovidos, pois a letra da canção dizia que enquanto houver árvores,

f lores e aves na terra o mundo será bom.

Fiquei surpreendida. Os alunos falavam com tanta convicção sobre os índios que achei melhor deixá-los

discutindo, sem tentar coordenar a reunião.

A voz da outra aluna interrompeu o que eu estava pensando:

- Se nas demarcações de suas terras eles não souberem o português, podem ser enganados!

Page 17: Um vulto no nevoeiro

- Eles precisam entender o sistema de vida dos brancos. É por isso que eles necessitam da escola. Mas

ela não deve quebrar seus padrões culturais. Também estaremos dando um exemplo de luta para transformar a

democratização do acesso à escola em democratização do acesso aos bens culturais e simbólicos de nossa

sociedade

Olga me observava, fazendo um ar de desagrado com a boca.

- Será, Maria Clara – ela disse com bastante afetação, que você não está colocando algumas liberdades

indígenas na sua cabeça? Os laços de apego têm seu preço? Parece que você está muito curiosa a respeito de

um deles. É bem provável que você esteja desenvolvendo algum sentimento especial a seu respeito. Cuidado

com as águas represadas que depois de soltas invadem todos os afetos e invadem os outros e todas as suas

condutas

Fiquei aborrecida. Não que houvesse algum motivo para me envergonhar. Estar apaixonada por alguém que

dera tanta coisa ao meu mundo e fora tão injustamente tratado por este mesmo mundo nada tinha de errado.

É lógico, não estava com vergonha. Estava pouco à vontade, desejando saber o que meus amigos estariam

pensando. O meu rosto, entretanto, ardia como intensa labareda. Esperei passar uns minutos e, olhando para

Olga, sorri.

Ela puxou sua carteira e em plena classe acariciou meu rosto, tentando atenuar o efeito de suas palavras que

tinham deixado meu corpo muito quente.

Guardei silêncio, esperando a reunião terminar.

Decorreram as três primeiras aulas.

No intervalo, senti que as reuniões com os líderes das outras classes tinham surtido efeito, pois o quadro de

avisos do pátio estava repleto de recados. Senti meu corpo e minha alma se fortalecerem ao ler um deles:

“Alunos, se queremos que os índios, que agora frequentam nossa escola, tenham confiança em nós, que

durante séculos os perseguimos e lhes ensinamos a ver em nós os piores inimigos, precisamos aceitá-los como

índios e depois amá-los como nosso próximo”.

Como eu não sou covarde, nem ao menos uma heroína o meu coração vacilou na hora em que as aulas

terminaram. Então resolvi chamar Olga, para juntas acompanharmos Uirá.

Atravessamos um bosque de paineiras. A lua jorravanos as pedras uma claridade muito pálida. De vez em

quando uma coruja voava baixo por cima de nossas cabeças. Ouvimos alguns passos se aproximando e de

repente, apareceram Raoni e Cairá na nossa direção.

Page 18: Um vulto no nevoeiro

Pude então observar que Uirá era diferente dos outros, mais alto, sua compleição era mais robusta e seu nariz

não era tão achatado como os demais. Mas o olhos oblíquos, cabelos pretos, lisos, grossos e abundantes, e o

rosto imberbe era igual para todos.

Enquanto caminhávamos na direção de nossas casas, admirávamos como os índios tinham consciência

permanente de possuir um corpo que não esconde suas características de povo diferente.

Por que será que nós, brancos, não aprendemos que o corpo é o elemento natural que todo homem possui,

uma espécie de arquivo muito adequado, de modo a tornar visível certos valores, crenças e ideias?

Nessa altura, já estávamos na porta da minha casa. Viemos mergulhados no mais completo silêncio.

Eu e Uirá f icamos observando os nossos amigos atravessarem a rua e prosseguirem seus caminhos.

Permanecemos ali na calçada por cerca de dez minutos, quando o ar da noite foi cortado pelo som da voz de

Uirá:

- Agora você é o meu pequi.

Perguntei, tranquilamente:

- Por que pequi, se o meu nome é Clara?

Uirá balançou a cabeça.

- Porque pequi é uma árvore que nasceu das cinzas de um jacaré, e seus frutos têm quatro cores

diferentes, conforme a orientação dos ramos. Essa fruta traz dentro de si o poder de atrair um homem para

perto de uma mulher.

Dei um suspiro.

Neste momento, Uirá pegou a minha mão e olhou-me com ternura.

- Agora – ele disse você é minha Carib. Se você debruçar sobre mim enxergará o seu rosto e se eu

debruçar sobre você enxergarei meu rosto.

Então murmurei de modo quase inaudível:

- Eu não quero envolvê-lo, Uirá. Pertenço a um mundo que não tem nada de inocente. Você veio de um

lugar onde a vida ainda pode ser considerada menos perigosa. Tenho medo de ferir os seus sentimentos, pois

muitas vezes agredimos com medo de ser atacadas no nosso sentimento

Page 19: Um vulto no nevoeiro

Uirá reconheceu o valor de minhas palavras com um aprovador aceno de cabeça.

Depois disse:

- Tereza seja minha amiga!

Fiquei surpresa por não encontrar palavras para responder. Então, apenas sorri.

Houve um longo silêncio e depois Uirá, ao se despedir, falou quase que suspirando:

- Quero que você goste de Uirá, está bem?

- Está bem – eu respondi.

Mas não consegui dizer a ele que se alguém me dissesse que nunca mais iria vê-lo, não seria capaz de

suportar.

O XAMÃ UIRÁ

É domingo. Uirá me convidou para irmos passar o dia numa reserva f lorestal, próxima do Patrimônio. Fiquei

contente com o convite, pois ele tem saído muito com os índios Terenas, nos f ins de semana.

Saímos cedinho de casa e andamos por um trilho cortando um capinzal durante mais de uma hora até

chegarmos à mata. Enquanto andávamos, Uirá repetia os sons dos pássaros e identif icava as árvores que

conhecia. De repente, ele parou e exclamou:

- Carib Clara, eu gosto das árvores. Acho bonito seus galhos, principalmente aqueles que f icam lá perto

do céu.

Calou-se, pouco depois avistou uma garça.

Logo depois paramos novamente para tomar água numa fonte.

Durante todo o caminho, Uirá procurava as aves que trinavam nos ramos das árvores.

Ao chegarmos numa clareira, ele me olhou profundamente e disse numa voz rouca:

- Estou cansado de ver testa franzida, tenho sede de ouvir risos. Você não sabe rir, mulher brava?

Page 20: Um vulto no nevoeiro

Comecei a rir.

Os raios do sol caíam sobre as folhas dando um colorido muito especial. Paramos para comer um lanche que

eu havia preparado.

Depois de comer um pouco, Uirá perguntou.

- Perdoe-me irmã, mas, ao vê-la sentada e quieta, pensa que o homem branco mente muito para ele

mesmo.

Levantei-me para protestar. Contudo, achei melhor perguntar:

- Por que você acha que ele mente, ou melhor, que eu minto?

E difícil explicar, mas o homem branco f ica com o pensamento longe das coisas que machucam. Então ele

pensa coisas boas de si mesmo. Você acha que é muito melhor que índio. Olha para mim e eu sinto o que você

pensa. Onde eu passei até agora sempre foi assim. Todos falam em defender e aceitar o índio, mas na ação

vocês nem defendem, nem aceitam. Homem branco mente para ele mesmo.

- Uirá! – exclamei, quem é você, que lê pensamento, que conhece tão bem o seu caminho?

- Eu sou um xamã – ele disse.

Abanei a cabeça e Uirá adivinhou o meu pensamento. Disse que iria explicar melhor.

- Um dia, Uirá f icou doente. Meu pai se aproximou e me deu um cigarro de ervas e nós dois fumamos.

Aspirando grande quantidade de fumaça. Caí em transe. Ainda em transe, eu vejo meu mamaê, vejo-o bem de

perto e escuto seu canto. Como fiquei bom, me tornei xamã. Só xamã consegue ver o próprio espírito.

Perguntei o signif icado da palavra.

- Xamãs, são pajés – disse ele.

Fiquei toda trêmula. Pajés, na minha memória, são feiticeiros.

Uirá agita as mão, tentando me acalmar.

- Pajé não é, como branco costuma pensar, um feiticeiro que usa seus poderes para fazer mal aos

demais membros da comunidade.

Fiz um gesto de desprezo, mas falei com ar ponderado:

Page 21: Um vulto no nevoeiro

- Então o pajé é um antifeiticeiro?

Uirá olha para as árvores com uma calma forçada.

- Na minha tribo – ele diz, o pajé é respeitado porque deseja o bem de seu povo. Tem muito prestígio

junto ao seu grupo. Sua missão é a de curar doentes e ser conselheiro de toda a tribo.

Inclinei minha cabeça para a frente e perguntei:

- Mas, Uirá, você adivinhou o que há pouco eu estava pensando?

Ele acrescentou suavemente:

- Nós temos o poder da vidência. Quando um xamã é solicitado a “ver”, sempre se faz uma cerimónia na

aldeia e ela f ica no mais completo silêncio.

- Dou-me por vencida, mas tomo a liberdade de perguntar se as mulheres se tornam xamãs.

-Embora as mulheres e crianças possuam mamaê, elas não as vêem – ele diz. Continuamos andando pela

Reserva Florestal. Uirá colheu uma folha e esfregou o nariz várias vezes nela, como se a beijasse.

- Uirá e todo o meu povo acreditamos que há mamaê, espíritos, que vivem em todos os lugares: nas

árvores, no ar, nos animais, mas só o pajé pode ver e ouvir os espíritos.

Uirá sentou-se no chão com o rosto entre as mãos, e f icou em silêncio.

Enquanto isso começo a pensar que estou num sonho. Vejo as copas das árvores como conchas escuras que

se aproximam voando e logo desaparecem . É como se o mundo tivesse mudado a maneira de girar.

A minha vida, até então, era tão triste e monótona, mas agora um índio me ergue para um mundo novo. Fecho

os olhos e me deito na sombra de uma árvore, enquanto uma bisa suave me roça o rosto.

Quando abri os olhos, percebi que Uirá me fitava com os olhos, refletindo um ar tão jovial, com uma bondade

tão grande, que resolvo dar uma resposta sobre o porquê do homem branco f icar com o pensamento longe das

coisas que o machucam.

- Irmão índio, f ique sabendo que no caminho do civilizado seguem lado a lado o amor e o ódio, o bem e o

mal. A nossa vida é só de fadiga, luta e violência. O homem branco não acredita nele mesmo, não confia no seu

julgamento. E por isso que, para conseguir sobreviver, ele mente para si próprio.

Uirá me olhou profundamente, como se no fundo de si mesmo conhecesse o segredo da vida.

Page 22: Um vulto no nevoeiro

Compreendi, imediatamente, que Uirá não tinha entendido minha colocação. Com o decorrer dos dias, eu já

tinha aprendido que os valores dele eram muito diferentes dos da maioria das pessoas; que as minhas palavras

também podiam ter um signif icado diferente.

Naquele momento, Uirá começou a cantar. Sua voz crescia, levanta-se clara e alta, poderosa e triste ao mesmo

tempo, envolvendo em suas notas algo como um pedido para que eu fosse com ele para sua aldeia, e depois da

cerimónia de iniciação, fosse sua mulher; que ele iria me procurar noite após noite, como a um doce fruto da

sombra e, às vezes, ele iria me procurar no sol, no meio do campo, qual uma ave no céu.

O seu canto me fez reconhecer que, aparentemente, eu tinha um afeto tranquilo, mas no fundo amava aquele

índio como a terra ávida ama a água.

Quando voltamos, o dia já f indara e o sol escondia-se no horizonte.

Uirá segurou na minha mão e veio cantando para tentar iludir meu cansaço.

Quando chegamos no Patrimônio, ele se despediu dizendo;

- Hoje Uirá vai tentar “ver” Maria Teresa se transformando em uma índia e, com um sorriso, encostou sua

testa na minha.

Quando entrei em casa, estava serenamente feliz.

Minha mãe estava esperando por mim. Nada lhe disse ao abraçá-la e, ao me deitar, senti que sobre o mundo

tinha caído um belo silêncio cheio de música.

CULTURAS DIFERENTES

Na semana seguinte ao nos reunirmos na orla do Patrimônio para colhermos algodão, f iquei sabendo que os

xinguanos não iam mais trabalhar como boias-frias.

Disseram para o Senhor Júlio, o sindicalista, que eles não eram tolos, pois já tinham ganhado o suficiente para

acabarem de aprender a ler e a escrever a língua do homem branco e voltarem para suas terras e não tinham o

costume de trabalhar para juntar riqueza e que eles estavam contentes com a nossa terra, que os nutriu o

suficiente para alimentá-los e, como eles amavam o povo do Patrimônio, iriam deixar a terra para os nutrir

também, por isso iriam descansar sem maiores cuidados.

Parei de ouvir. Meu pensamento escapou e passou para uma terra desconhecida. Demorei bastante por lá, até

que Olga me puxando pela manga da camisa, conseguiu me trazer de volta.

Page 23: Um vulto no nevoeiro

Ela me sacudiu com força e depois perguntou:

- Será que o nosso povo acostumado com os horários f ixos de trabalho não vão chamar os xinganos de

preguiçosos?

Balancei a cabeça.

- Tenho certeza de que sim, porque é muito estranho que outros homens possam dosar livremente seu

tempo de trabalho e lazer sem a preocupação de produzir mais do que o exigido pelas necessidade diárias.

Olga, que me observava, comenta:

- Esses índios são mais espertos que nós. Nunca mais vou me esquecer: “Se a terra que me alimentou

também alimentará o povo do Patrimônio”.

Naquele momento senti um calafrio.

- Para não parecer cafona – eu disse, ou moça sem gosto estético apurado, comprei quatro calças jeans

de marca, que levarei seis meses para pagar. O que será que Uirá comentaria sobre isso?

Olga soltou uma risada exclamou:

- Que você é escrava da roupa que comprou.

Não fiz outro comentário. Durante algum tempo, trabalhamos no algodoeiro em silêncio. Em seguida, inclinei-me

sobre a enxada e expliquei:

- Esse é o nosso problema, minha amiga, não conseguimos enxergar nada além dos nossos miseráveis

empregos. Não temos a menor ideia de como poderíamos caminhar em direção à liberdade humana.

Olga retrucou:

- Somos dominados pelo consumismo. E se nós quersermos ser livres deles, nós teremos que assumir

este modismo todo, assim nós vamos pensando sobre ele até o superarmos.

Os meus olhos deixaram o rosto de Olga e vaguearam, pelo chão.

Começo a observar cada movimento, cada mínima diferença de cor na mistura confusa de manchas verdes e

brancas. Vejo lá diante a roupa cinza dos índios Terenas, que sempre se vestem iguais; logo ao meu lado vejo

uma camisa molhada de suor de um outro boia-fria. Todos fazem parte da colheita de algodão.

Page 24: Um vulto no nevoeiro

- Algodão! Sempre algodão – falo baixinho. Por que será que não plantam outra coisa, e essa coisa

felpuda que não se pode comer quando se está com fome?

De repente, Olga, franzindo as sobrancelhas, me diz, calmamente:

- Vou dizer uma coisa que talvez você não saiba: mas todas as noites quando você sai da escola junto

com Uirá, vemos o seu rosto se transformar numa máscara de felicidade.

Fiz uma pausa e, em seguida disse pensativamente:

- Sabe, Olga, não adianta negar. Uirá desorganizou a minha vida.

Olga inclinou-se e deu uma palmadinha no meu ombro.

- Você está passando por um período difícil. Muito de seus valores estão abalados. Também, amar um

índio, só poderia dar nisso. Mas saiba que o mundo é grande demais, portanto que vença seu ideal de projetar

seus sonhos nesse amor Uiriano

Fiquei imóvel por alguns minutos. Depois eu disse:

- Eu sou forte. Nunca antes eu tinha percebido o quanto sou forte. Eu sei que estou cometendo muitos

excessos ao desafiar o meu mundo e amar um índio, ou melhor, um pajé. Estou trazendo para minha realidade

a realidade de Uirá, mas depois eu vou selecionar as experiências que são gratif icantes e enriquecedoras e

quais são as desagradáveis para a minha vida.

Nesse momento, um Terena que apanhava algodão ao passar por mim e escutar o que dizia, disse:

- Moça, eu concordo que é forte. Você parece forte o suficiente para levantar um cavalo no braço e feliz o

bastante para comê-lo com biju.

Por um segundo eu perdi minha pose.

Mais tarde, nesse mesmo dia, um professor da escola me disse que os xinguanos, na sala de aula, se

distinguiram rapidamente, pois ao término do segundo mês, já se encontravam alfabetizados.

Senti a notícia como uma espécie de cumprimento amistoso de despedida. Pela primeira vez, um medo terrível

de perder Uirá se apoderou de mim.

SAUDADE DA TRIBO

Page 25: Um vulto no nevoeiro

É primavera.

Uma brisa ligeira soprava do sul, trazendo para os fazendeiros a esperança de uma boa chuva para um futuro

próximo.

Eu estava, juntamente com os outros alunos da classe, trabalhando no jardim da escola, em uma aula de

ciências. Naquele momento estava cortando as hastes dos crisântemos. De vez em quando eu lançava um

olhar para a classe de Uirá. Estava tão ansiosa para vê-lo que as hastes das plantas pareciam frágeis demais

para tanta energia. Estremeci ao ouvir a voz de Uirá. Ele se aproximou muito silenciosamente.

- O olho da minha Carib está brilhando – ele disse sorrindo.

Sacudi os meus cabelos pretos e sorri também. Eu estava agachada no chão, olhando para ele. Os meus seios

arfavam de paixão.

Os olhos de Uirá se estreitaram, então murmurou:

- Olhe para o céu. A noite está escura… a quietude domina o mundo. Sinto um vazio tão grande no meu

coração!

Eu o interrompi com uma voz rouca:

- Você está desanimado. Ninguém vai se importar se eu sair daqui agora. Então vamos embora. É minha

última aula. Que vença o ideal e a aventura de querermos andar em caminhos planos.

O rosto de Uirá assumiu uma expressão manhosa.

- Deixe-me então eu andando, segurando sua mão, – ele disse. Parece que é costume dos brancos.

Apertei então sua mão e disse para confortá-lo:

- Você não está sozinho! Você veio de longe suavizou meu tempo e agora construímos um templo.

Uirá respondeu com uma voz que transmitia tristeza:

- Não sei até quando Uirá vai aguentar a saudade que sente de sua tribo.

Estendi minha mão na direção de seu rosto, mas ela caiu bruscamente. Fomos até a praça e nos sentamos num

banco do jardim.

Page 26: Um vulto no nevoeiro

Eu me encolhi toda, enquanto Uirá cantava:

- Quando eu era criança, meus pais não gritavam, nem me deixavam chorar. Meu pai me ensinou a fazer

o arco preto de tamanho pequeno. Meus pais não davam conselhos como fazem o senhor Júlio e os

professores da escola. Eles pegavam a iaiap, que é como um pente feito de dentes, e passavam na minha pele.

Arranhavam levemente como castigo e nós não podíamos chorar. Muitas vezes meus pais me levavam até a

lagoa de Ipavu, que é o lugar mais bonito que conheço. No caminho, nós parávamos para nadar, pescar e

apanhar mel das árvores. Era tanta paz! Sinto falta da paz que tem o meu povo.

Fiquei calada por algum tempo. Depois argumentei:

- Os meus livros dizem que os índios são extremamente dedicados aos f ilhos, zelando por eles até que

possam viver com independência.

Os olhos de Uirá nublaram-se. Com um gesto súbito ele curvou-se sobre as pernas.

- O homem branco é muito orgulhoso porque conseguiu dominar a natureza. Ele tem muito poder sobre

todas as coisas da Terra. Só que ele deixou de ser escravo da natureza para ser escravo das coisas que ele

criou. E coisa tão simples, como criar e ensinar um filho, ele deixou de saber. Tudo é importante para ele,

menos a sua vida e a sorte de viver.

Fiquei alguns minutos pensativa, depois f iz outra observação:

- O homem branco só sente satisfação no dever de trabalhar e ter sucesso. É por isso que predomina na

sua vida a falta de alegria e de felicidade.

Uirá fez um pequeno gesto de indiferença.

- O índio tem mão, olhos, pés. Se vocês nos furam, nós sangramos. Se nos enganam, nós morremos. Se

nos prejudicam, nós vingamos. Mas e só nisso que pare

Permaneci calada, feliz por verif icar que Uirá, ao perambular em pensamento na terra e no céu de sua tribo,

demonstrava sofrimento. Após um longo silêncio, perguntei:

E os índios Terenas, continuam tão índios como você?

Ele fez uma pausa e disse impassivelmente:

- Os meus irmãos Terenas não têm mais vida tribal. Eles não têm mais pajé. Então, Carib Tereza, quem

guardará na memória a lenda, os cânticos religiosos, a confecção de máscara e objetos sagrados? O conselho

Page 27: Um vulto no nevoeiro

de Anciãos, que ajuda tanto a tribo para resolver seus problemas, não existe mais Se eles não têm seus

costumes, sua língua, sua dança, sua arte plumária, nem matas para preservar, o que resta ao índio Terena?

Transtornada, segurei a sua mão.

- Durante a colheita de café interroguei cada Terena que trabalhava comigo como boia-fria, para saber

como se sentiam ao ver que tinham se transformado num aldeado pobre, dependentes de um Estado tão

distante. Mas os Terenas sentiram-se humilhados por não saber o que responder.

Uirá cruzou os braços, levantou o rosto, e seus olhos, de novo percorreram o céu. Sofria, porém, mordia os

lábios para refrear a dor.

Nesse momento, pousei minhas mãos nas suas e falei baixinho, num desabafo:

- Meu Deus, por que a questão indígena soluciona-se de uma única maneira: com a destruição e o

desaparecimento da maioria da população aborígene!?

Uirá levantou-se, hesitou por um momento e depois pronunciou com voz grave:

- No começo da vida só havia Mavutsinim. Ninguém viveu com ele. Não tinha mulher. Não tinha f ilhos e

nenhum parente. Era só. Um dia, ele fez uma concha virar mulher e se casou com ela. Quando o primeiro f ilho

nasceu, perguntou para a esposa se era homem. Como era homem, ele levou a criança. E assim, na tribo, nós

dizemos que somos todos netos do f ilho de Mavutsinim.

Calou, prosseguindo logo:

- Mavutsinim vem me chamar todas as noites. Ele quer que eu volte para minha tribo.

Eu quis contestar, porém as palavras f icaram presas na minha garganta.

Quando Uirá falou, havia algo na sua voz que me alertou.

- Quem vive no meio de lobo precisa ser lobo, mas Uirá só sabe ser cordeiro Por isso, índio não consegue

viver longe de sua tribo.

Do lugar onde eu estava, ouvia trêmula o que ele dizia.

- Gostaria de segui-lo, Uirá. Apesar da minha razão não querer aceitar este sonho como realidade

Page 28: Um vulto no nevoeiro

Começamos a caminhar com passo incerto. Às vezes, nós tínhamos a impressão de que alguém nos chamava

pelo nome. Então virávamos, mas era só imaginação. Chegamos até uma fonte e molhamos o rosto para nos

refrescar. Uirá me olhou surpreso, como se nunca me tivesse visto.

- Abre bem os ouvidos – recomendou, e grava para sempre o que vou te dizer: o corpo de Carib Tereza é

o arco; Uirá o f lecheiro e Mavutsinim a f lecha. Só Mavutsinim sabe se vamos juntos para minha tribo. Olhou em

torno e, de repente, se lançou nos meus braços.

Uirá falou baixinho:

- As árvores, um dia, morrerão e os índios desaparecerão. A pedra nunca morrerá e o nosso amor, que é

pedra clara, jamais desaparecerá.

E assim, aconchegados, deixamos que a brisa da noite acariciasse nosso rosto. Estávamos felizes por estarmos

juntos, por nos sentirmos, por podermos ouvirmos a nossa respiração e o ritmo. De nossos corações cada vez

mais acelerados.

TRISTEZA

Um atentado às comunidades xinguanas, levando algumas delas ao total desaparecimento em virtude de uma

chacina realizada por homens brancos, deixou Uirá, Raoni e Cairá em total desespero. Eu gostaria tanto que o

resto do mundo tivesse presenciado a patética revolta que eles sentiram.

Ao verem na televisão aldeias queimadas, os crânios de seus irmãos índios junto com seus ossos e os couros

cabeludos espalhados pelo chão das tribos, eles f icaram tão chocados e tão tristes que isso provocou no

Patrimônio todo um terrível mal-estar.

Uma doença estranha apoderou-se deles. Era como se se deixassem morrer pouco a pouco. A dor dos

xinguanos era tanta que se alguém não reparasse, sentia vergonha.

Foi com um profundo sentimento de pesar e de tristeza, que me dirigi até a casa do professor Bruno. Estava na

sua casa desde às nove horas da manhã, e do outro lado da janela observava as mas deserta do Patrimônio.

O professor estava com as duas mãos no bolso, o cachimbo entre os dentes, olhava-me de uma forma

estranha, pois sabia que eu esperava justiça porque assassinar índios era uma afronta ao nosso “decoro” de

nação civilizada.

Então me desabafei timidamente.

Page 29: Um vulto no nevoeiro

- Por que, professor, o homem branco assassina seu irmão índio?

O professor acenou a cabeça gravemente:

- Sabe, Maria Clara, toda população que convive em contato imediato com os índios se acha no papel de

civilizador e a seus olhos isso justif ica todas as intervenções na vida do índio.

Acrescento depois de um silêncio:

- Mas colocar fogo nas suas aldeias, assassiná-los, não é interferência, apenas o desejo sádico de

destruí-los!

O professor declarou num murmúrio:

- Não há dúvida de que uma violência dessa natureza não tem justif icativa. Houve um vandalismo, algo

extremamente grave.

Acrescentou numa voz rouca:

- Na nossa sociedade, dif icilmente há lugar para um indivíduo com características físicas e culturais tão

diferentes do resto da população. O resultado mais provável é, pois a marginalização seguida de seu efeito mais

desastroso: assassinato.

O professor segurou o rosto com as mãos.

O índio de hoje vê em qualquer civilizador com quem se depara uma fera terrível. É trabalho perdido querer

conquistar sua confiança por meio de um tratamento fraternal e justiceiro. Mesmo os atos mais desinteressados

ele atribui a motivos sujos, convencido de que só por uma conveniência qualquer o civilizado disfarça a sua

natureza de fera.

- É verdade – eu respondi. As relações entre os índios e os civilizados – os brancos como dizem – estão

irremediavelmente estragadas. Um abismo se abre entre nós.

O rosto do professor mostrava um ar perplexo. Mesmo assim eu continuei:

- Eu gosto de Uirá. Ele foi a pessoa a quem dediquei a maior lealdade durante a minha vida. Mas durante

este nosso relacionamento, observo, às vezes, um olhar cheio de medo e desconfiança. Muitas vezes o meu

comportamento carinhoso não é compreendido.

O professor acenou a cabeça afirmativamente:

Page 30: Um vulto no nevoeiro

- O conhecimento entre vocês e a convivência amorosa, pode, em vez de conduzir a uma compreensão

mútua, levar ao levantamento de barreiras. Para Uirá, este relacionamento pode gerar enormes frustrações,

pois ele tem que negar a si mesmo para compreender o seu mundo, Maria Clara.

- Nada sei a esse respeito. Explique melhor, eu disse.

- A existência de um território tribal é muito necessária para a sobrevivência dos índios. Muitas tribos que

perderam suas terras e foram levadas para longe para trabalharem como peões demonstraram que, embora

tivessem oportunidade de interação e de se dissolverem na população nacional, isso no ocorreu. O desespero

dos índios para realizar tarefas da civilização e a forma como eles conservam suas ideias e motivações são tão

grandes que, se eles não fossem recolhidos aos Postos de Proteção, estariam condenados ao extermínio.

Pela primeira vez f iquei zangada com o professor. Foi uma zanga fria que não foi externada por qualquer gesto

ou alteração de voz. Imaginei que ele estava insinuando que eu deveria abandonar Uirá. Deixar que ele voltasse

o quanto antes para a sua reserva.

Como se imaginasse o que eu pensava, ele arrematou:

- O índio tem o direito de viver em sua terra.

Tentei protestar:

- Mas, professor, durante todos estes séculos, eles foram despojados de suas terras. Toda vez que sua

reserva desperta a cobiça dos homens brancos, suas terras são invadidas e eles desalojam os índios, ou

melhor, chacinam todos eles.

O professor pensou um pouco.

- O problema do índio depende não só de uma política indigenista, mas de uma política que melhore as

condições de vida de toda a população do Brasil. Quando os lavradores forem donos de um pedaço de terra e

pararem de ser explorados, aí, sim, teremos condições de melhorar a vida dos índios.

Houve um longo silêncio, depois falei num tom baixo:

- A única coisa que não me sai da mente é pensar no estado deplorável em que se encontra Uirá.

Então o professor me lançou um olhar triste e eu tentei, a todo custo, esconder a corrente de ódio que me

percorria o corpo. O professor colocou a mão no meu ombro.

Page 31: Um vulto no nevoeiro

- Maria Clara – ele exclamou, seu rosto está completamente branco. Sei que você dedica todo o seu afeto

a Uirá. Não vou dar a menor importância para as razões que você apresente, mas de uma coisa não abro mão:

facilite a volta de Uirá para sua tribo. Ele já sabe ler o suficiente para defender seu povo!

Tentei sorrir para abrandar o que ia dizer e então respondi:

- Será que minha atitude salvacionista não tem mais razão de ser?

- O problema do índio – disse o professor, é um problema específ ico e que, portanto, exige uma atenção

especial. É um problema para o qual não podemos fechar nossos olhos como se não nos dissesse respeito. No

entanto, você não pode ter a pretensão de querer resolvê-lo sozinha.

Ouvi tudo isso com lágrimas nos olhos. Levantei-me para sair. Ao me despedir do professor, ouvi o sino da

capela tocar. Como me haviam ensinado a fazer quando pequena, bati ligeiramente no peito com a mão

fechada, a batida do arrependimento.

- Perdoe- me Uirá por não ter poder suficiente para ajudá-lo.

Fui caminhando devagar para minha casa. O silêncio era completo aquela hora de sol a pino.

Enquanto andava, ia meditando sobre a vida de Uirá. Como era perigoso para ele viver no meu mundo. Em toda

parte onde houvsse civilizado ele não estariá seguro. Como poderíamos “pacif icar” os indígenas se no homem

branco não existe paz no coração? Comecei a f icar com medo novamente. Onde eu encontraría forças para

viver sem o homem que me abrira os olhos interiores e tinha me ensinado a ver o invisível? Eu não estava

pronta para perder Uirá.

SOFRIMENTO

Raoni e Cairá partiram. Só Uirá f icou.

Eu não tentei barrar sua volta. Mas quando ele veio me dizer que estava retardando seu regresso para a tribo,

tremia feito verde brejo. Mesmo cambaleando, me disse erguendo a voz:

O, Carib Tereza, você não conseguirá se transformar numa xinguana. Mas a força do seu corpo passeia

constantemente no meu. Como então conseguirei partir?

E, bruscamente, com um só passo, segurou o meu braço. Curvou-se, pegou um punhado de terra e um vaso e

despejou na minha cabeça. Movia os lábios, murmurando qualquer coisa inteligível. Era ao mesmo tempo um

grunhido, um balido, um uivo.

Page 32: Um vulto no nevoeiro

Na sala escura onde estávamos, ergueu-se a voz de Uirá, agora serena - e com grande doçura:

- Aprendi a amar Carib Tereza, mas parece que meus pés não conseguem aprender a caminhar sobre a

estrada do homem branco.

Com os olhos cheios de lágrimas, Uirá suspirou:

- Quando Mavutsinim criou o mundo, foi para a f loresta e cortou três toras da madeira Kuarup, levou para

a aldeia e as pintou. Depois de pintar, adornou-as com penachos, colares e braçadeiras de penas de arara.

Feito isso, Mavutsinim mandou que f incasse os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo cururu e

a cutia para cantar junto ao kuarup. Os maracá-êp, que são cantores, cantavam sem parar. Às vezes, tocavam

o jakui, que é uma flauta bem grande. No meio do dia, terminaram os cantos. Os kuarup se transformaram em

gente e foram viver como gente. Os outros índios quiseram chorar de emoção, mas Mavutsinim não permitiu

porque kuarup, quando vira índio , não pode ser chorado. Ele precisa ser tranquilo para poder ter paz no

coração.

Após curta pausa, continuou:

- Quando o seu Deus criou o homem branco, depois de lavar as mãos sujas de barro, sentou-se na

sombra de uma árvore e fechou os olhos. Estou cansado, murmurou, “descansemos um pouco!”

E ordenou que o sono viesse. Mas, no mesmo instante, um sabiá pousou na sua mão e começou a gritar: “Não

existe tranquilidade para o homem branco, nem paz. Eu sou o coração do homem branco!”

Fiquei embaraçada. O que podia dizer frente a essa comparação?

Adivinhando o meu pensamento, Uirá sorriu.

- Sim, Carib Tereza, no coração do homem branco não existe paz. Ele não consegue ser livre. O homem

branco é só preocupação e aflição. Ele é mais fraco do que os animais. É por isso que ele destrói. Destruiu suas

matas, seus rios e seu ar. E até mesmo seu irmão índio ele destrói. Destrói porque quer se apoderar do chão

onde índio mora. Eu não sei se posso ter esperança de que nós poderemos preservar nossas terras.

Naquele dia fazia muito calor. Cansado, Uirá fechou os olhos. Então eu me inclinei e beijei seus longos cabelos

encharcados de suor. Aquele gesto me pareceu tão terno que levantei os olhos, pensando no que poderia fazer

para convencê-lo a partir.

Movimentei então os lábios:

- Uirá, por amor ao seu povo, volte para sua tribo!

Page 33: Um vulto no nevoeiro

- Carib Tereza, como pode índio separar-se da mulher que é o seu próprio coração? Seria como pegar a

alegria e a beleza e as transformar em cinza. Não haveria mais luz no caminho de Uirá.

Conservou-se em silêncio.

Depois pegou a minha mão e a esfregou no seu rosto. Fiquei sem saber o que dizer, pois não entendia mais

nada.

De repente Uirá tentou se mover, mas caiu ruidosamente no chão Uma claridade suave lhe contornava os

cabelos.

Sentei, então, perto dele e percebi que de alguma forma se afastava de mim. Agora eu sabia que nunca mais

iríamos para sua tribo juntos.

Terminei, eu pensei. “A caminhada de Uirá terminou”.

Então, ele tirou a mão do peito e disse:

- De qualquer forma, vou retornar a minha aldeia e quando se sentir triste, lembre o amor que nos uniu.

Uirá deixou-se cair, uma febre alta lhe provocava convulsões. Mandei chamar o médico do Patrimônio o qual

disse:

- Mau sinal! Ele precisa voltar com urgência para sua tribo. Os seus laços de vida estão se quebrando. O

impacto com o nosso mundo caiu sobre ele com muita força, com muita violência. A notícia de que seu povo

está sendo exterminado porque os homens querem se apoderar das suas terras está enfraquecendo o seu

coração.

Do lugar onde estava, ouvia trêmula o que ele dizia.

O médico ao sair comentou:

-Muita tristeza, Maria Clara, enferruja o coração e a vontade de viver.

DESPEDIDA

Começou a época das chuvas. Só que elas não vieram lentamente . Chegaram bramindo nas copas das

árvores e parece que diziam choro a vida e a morte. Após um dia de céu claro, veio a noite com uma

tempestade, com o vento uivando. As árvores caíam gemendo sob a força do vento. A tempestade lançou

galhos e pedras sobre o Patrimônio.

Page 34: Um vulto no nevoeiro

Ao amanhecer, apenas um chuvisco f ino empapava a terra e escorria em pingos pela vidraça da janela. A

temperatura era fresca, mas Uirá suava em bica por baixo dos lençóis. Às vezes ele fechava os olhos e

escutava o barulho das gotas caindo do telhado.

Assombrados com a palidez de Uirá e o quanto ele havia emagrecido, meus pais consentiram que ele f icasse

em nossa casa e, nesse momento, minha mãe me ajudou a sentar Uirá debaixo da janela do quarto, onde

estendia as mãos e recebia as gotas da chuva.

Ao ver as palmas das mãos cheias de água, curvava-se e bebia com imensa felicidade.

A cada dia Uirá definhava mais e afundava mais na terra, enquanto qualquer coisa dele subia em direção a sua

tribo.

E uma vez, quando estávamos a sós e fechei os olhos para descansar um pouco, ouvi a voz de Uirá, calma e

triste:

- A vida é tão bonita! Gostaria de ter vivido mais lentamente. Como sinto saudade do perfume do guaraná

na primavera.

Numa outra tarde, um bem-te-vi se aproximou dele. Uirá dirigiu-se à ave com tanto carinho que f iquei

assombrada, pois nunca tinha visto uma ave se aproximar com tanto encanto perto de um homem.

Desde então, o pássaro não o deixou mais e, durante os poucos dias em que f icou na minha casa, a avezinha

permaneceu perto do quarto onde Uirá estava. Não sabia se ele imitava o canto da ave, ou se era mera

coincidência.

A cada dia que passava, o seu estado se agravava. Não podia dormir. Mantinha os olhos erguidos como se

esperasse que aparecesse, num passe de mágica, a sua tribo e o seu povo. O seu rosto era como um templo

voltado para o norte remoto, procurando um suave encontro.

Um dia tomou-me pela mão e mostrou-me o sol:

- Carib Tereza, no começo do mundo, tudo era escuro. Era sempre noite. Não havia dia. Os meus irmãos

Kuat e Taê, o sol e a lua, não sabiam o que fazer. Queriam fazer o dia, mas não sabiam como. Foi o urubutsin,

que é o urubu-rei, que ensinou ao sol e à lua como fazer o dia. Quando o urubutsin explicou, o sol como

agradecimento, o enfeitou. Raspou o alto da cabeça dele com uma pedra, passou urucu e amarrou uma linha

branca de algodão ao redor de seu pescoço. Antes de ir embora, o pássaro disse para o sol e a lua: “Coloquem

sempre alimentos num lugar alto para que os pássaros possam vir comer na sua tribo”. Depois que falou,

urubutsin voou e foi embora.

Enquanto falava, várias vezes cerravam os dentes, dobrando-se em dois, para resistir à dor

Page 35: Um vulto no nevoeiro

De repente, Uirá sentou-se na cama.

Carib Tereza, o meu mamaê, espírito, quer sair do meu corpo. E por isso que estou doente, que só vejo

sombras dançando!

Adivinhando os meus pensamentos, ele ia falar. Porém o professor Bruno chegou para avisar que já entrara em

contato com os responsáveis pelo Parque do Xingu, a serviço da FUNAI, e que eles iam mandar um avião para

buscá-lo.

Uirá estendeu a mão e me tocou.

- Não chore. A separação vai ocorrer. Se eu for para minha aldeia Mavutsinim pode me devolver metade

da minha vida ou levá-la para sempre. Mas a outra metade f icará ao seu lado.

O clarão do dia se despedia nesse momento. As árvores cantavam repletas de pássaros. As primeiras vozes

noturnas já se faziam ouvir.

Uma hora mais tarde, Uirá tentou se levantar Segurei então sua mão, que tremia nas minhas. Enquanto eu o

contemplava, distrai-me um instante e deixei cair a mão de Uirá. Ele deu dois passos, bateu numa cadeira e

caiu. Corri a socorrê-lo. Seu rosto sangrava. Ergueu os braços e disse:

- A alma do índio quando morre, enfrenta uma jornada perigosa, durante a qual alguns animais tentarão

destruí-la. Por isso, eu preciso morrer na minha terra, para que enterrem armas junto com o meu corpo.

Atirei-me sobre ele e chorei. Tentei ajudá-lo a levantar-se.

- Vem – disse-lhe, tomando-o pela mão E pare de falar em morrer, por favor.

Permanecemos calados por longo tempo. A expressão de Uirá se endurecia a cada momento.

- Uirá é um índio de linhagem pura. Quando um de nós morre, amarram-se os punhos com estacas e o

corpo é enrolado na rede e depositado no chão da cova. A posição do rosto deverá estar voltada para o

nascente, para que possa ver o sol nascer todos os dias.

Uirá admirou-se por me ver chorando.

- Por que estas lágrimas? Perguntou.

Enxuguei meus olhos.

- Respeite sua vida. Peço que pare de falar na morte.

Page 36: Um vulto no nevoeiro

Sem fazer ruído, arrastei-me até Uirá e o abracei. E assim permanecemos a noite toda.

Quando o dia rompeu a escuridão, percebi que o sol estava deslizando pelo quarto e nos acariciava com os

seus raios quentes.

Enquanto isso, a porta se abriu, dando passagem a um médico e dois homens da FUNAI.

Uirá procurou levantar-se Em vão…

Chamei meus pais. Erguemos Uirá.

Antes de sair, ele olhou para o pássaro, que há dias se tornara cativo do lugar, e murmurou:

- Meu irmão bem-te-vi, vieram me buscar. Voe até minha tribo. Esperarei por você.

- O pássaro olhava-o com ternura, trinando baixinho e abaixava a cabeça como se fosse um ser humano.

Colocaram Uirá numa maca e como o avião estava bem próximo, num campo de pouso de uma fazenda, fomos

andando.

Uirá foi segurando a minha mão e, quando cruzamos os portões do Patrimônio, ele pediu para que o

colocassem no chão

Paramos de tal maneira que, atrás de mim, f icava o local onde ele tinha passado tantos dias. O olhar de Uirá

demorou-se bastante no meu rosto Ergueu a cabeça e me disse:

- Carib Tereza gostou primeiro de Uirá. Na minha lembrança tudo é exatamente igual àquele dia em que o

caminho coberto de ervas conheceu seus passos que tentavam cobrir os meus. No ar tinha um doce aroma de

campinas e campos e uma intensa neblina. Eu cantava na minha língua nativa bem baixinho. Minha roupa de

frio dependurada no braço. Desci do caminhão e após ter passado do seu lado, senti que você me olhava com

tanta força que até a minha melodia cessou. Do outro lado do caminhão eu olhei para trás com a impressão de

que você ainda me olhava. Verif iquei que, além de olhar, me seguia. A maneira como você me olhou vai

permanecer no meu coração por toda a vida – um doce pequi – uma doce f igura de mulher, passou o tempo.

Agora Uirá gosta primeiro de Carib Teresa.

Olhei tão profundamente para Uirá que pude perceber como ele era bonito.

De repente, puxou o meu corpo e abraçou-me por tanto tempo e com tanto ardor que nos fundimos numa só

pessoa.

As últimas palavras que me disse foram:

Page 37: Um vulto no nevoeiro

- Vou sempre lembrar que conheci uma mulher branca que aceitou Uirá como índio e lhe ensinou os

segredos do amor.

Reuni todas as forças e, chorando, sentindo uma ávida ferida no meu rosto, mesmo assim o beijei.

Nesse momento, uma brisa tranquila nos envolveu…