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1 UMA ANÁLISE DA REGRA HUGOLINIANA DE 1219 doi: 10.4025/XIIjeam2013.aguiar1 AGUIAR, Veronica Aparecida Silveira 1 Hugolino dei Conti di Segni nasceu no ano de 1170 em Anagni, cidade na qual recebeu a sua primeira formação religiosa. Estudou direito em Bolonha, é considerado um dos papas “juristas” segundo a historiografia, e provavelmente, conseguiu o título doutoral na faculdade de Teologia de Paris. Sobrinho de Inocêncio III, foi cardeal-bispo de Ostia e Velletri. Embora, a carreira de Hugolino não se iniciou apenas com a subida de Lotario dei Conti di Segni como o papa Inocêncio III (1198-1216). No ano de 1198 Hugolino foi elevado ao cargo de capelão papal e de cardeal diácono de São Eustáquio. E somente em 1206, tornou-se cardeal-bispo de Óstia. Nesta comunicação pretende-se fazer um exercício de análise da Regra de Hugolino de Óstia de 1219, elaborada para dar forma canônica às comunidades femininas de inspiração evangélico-pauperista que surgiram em diversos lugares como imitação ou não do mosteiro de São Damião. A forma vivendi que reuniu os diversos conventos de inspiração franciscana deveriam observar as novas ordenações e forma de organização jurídica que representavam uma das afirmações mais explícitas e completas da necessidade de regulamentação para a vida religiosa das comunidades femininas. Conforme a Enciclopedia dei Papi 2 , o cardeal Hugolino encontrou-se pela primeira vez com Francisco de Assis no dia 14 de maio de 1217 na cidade de Firenze, exatamente depois de um Capítulo geral dos frades, celebrado na Porciúncula, dentro da qual havia sido decidido o envio de frades pelo mundo cristão e fora da Itália. A partir daquele momento, o cardeal de Óstia teria iniciado a sua atuação política dentro do movimento Franciscano. Era um momento delicado para os frades, porque a fraternitas não tinha adequado-se as prescrições conciliares com a sua nova forma de vida, somente havia obtido a aprovação oral dada pelo papa Inocêncio III (1198-1216) em 1210. 1 Bacharel, Licenciada e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora Assistente II de História Antiga e Medieval na Universidade Federal de Rondônia e Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo. 2 CAPITANI, Ovidio. “Gregorio IX”. In: ENCICLOPEDIA dei Papi. Roma: Istituto della Enciclopedia italiana, 2000, 2v, p. 363.

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UMA ANÁLISE DA REGRA HUGOLINIANA DE 1219 doi: 10.4025/XIIjeam2013.aguiar1

AGUIAR, Veronica Aparecida Silveira1

Hugolino dei Conti di Segni nasceu no ano de 1170 em Anagni, cidade na qual

recebeu a sua primeira formação religiosa. Estudou direito em Bolonha, é considerado um

dos papas “juristas” segundo a historiografia, e provavelmente, conseguiu o título doutoral

na faculdade de Teologia de Paris. Sobrinho de Inocêncio III, foi cardeal-bispo de Ostia e

Velletri. Embora, a carreira de Hugolino não se iniciou apenas com a subida de Lotario dei

Conti di Segni como o papa Inocêncio III (1198-1216). No ano de 1198 Hugolino foi

elevado ao cargo de capelão papal e de cardeal diácono de São Eustáquio. E somente em

1206, tornou-se cardeal-bispo de Óstia.

Nesta comunicação pretende-se fazer um exercício de análise da Regra de

Hugolino de Óstia de 1219, elaborada para dar forma canônica às comunidades femininas

de inspiração evangélico-pauperista que surgiram em diversos lugares como imitação ou

não do mosteiro de São Damião. A forma vivendi que reuniu os diversos conventos de

inspiração franciscana deveriam observar as novas ordenações e forma de organização

jurídica que representavam uma das afirmações mais explícitas e completas da necessidade

de regulamentação para a vida religiosa das comunidades femininas.

Conforme a Enciclopedia dei Papi2, o cardeal Hugolino encontrou-se pela primeira

vez com Francisco de Assis no dia 14 de maio de 1217 na cidade de Firenze, exatamente

depois de um Capítulo geral dos frades, celebrado na Porciúncula, dentro da qual havia

sido decidido o envio de frades pelo mundo cristão e fora da Itália. A partir daquele

momento, o cardeal de Óstia teria iniciado a sua atuação política dentro do movimento

Franciscano. Era um momento delicado para os frades, porque a fraternitas não tinha

adequado-se as prescrições conciliares com a sua nova forma de vida, somente havia

obtido a aprovação oral dada pelo papa Inocêncio III (1198-1216) em 1210.

1 Bacharel, Licenciada e Mestre em História pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora Assistente II de História Antiga e Medieval na Universidade Federal de Rondônia e Doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo. 2 CAPITANI, Ovidio. “Gregorio IX”. In: ENCICLOPEDIA dei Papi. Roma: Istituto della Enciclopedia italiana, 2000, 2v, p. 363.

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Respondendo ao pedido de Francisco de Assis, o papa Honório III (1216-1227)

teria dado um “protetor” aos franciscanos, mas o nome de “dominus de Ostia” teria sido

escolhido pelo próprio Frei Francisco segundo as hagiografias de Boaventura. Em 1217,

Hugolino de Óstia utilizou-se dos poderes que lhe foram dados pelo papa Honório III,

visitava os movimentos novos e mosteiros femininos da região em que era responsável,

sobretudo dos lugares que almejavam seguir o modelo de São Damião. Na Ordem

franciscana a função do cardeal protetor era corrigir as situações de perturbação, ele agia

como um guia disciplinador “externo”, que cuidava das intervenções coercitivas que aos

poucos se tornavam necessárias e também exercia influência para a formulação de uma

Regra definitiva, mais articulada e orgânica, para ser submetida à aprovação pontifícia.

Desta forma, a figura de cardeal protetor existe desde 1217, data na qual inicia o

processo de institucionalização do movimento Franciscano. As funções do cardeal protetor

estão explicitamente descritas na normativa franciscana no final do capítulo XII da Regra

de 1223: “Ad haec per obedientiam iniungo ministris, ut petant a domino papa unum de

sanctae Romanae Ecclesiae cardinalibus qui sit gubernator, protector et corrector istius

fraternitatis, ut semper subditi et subiecti pedibus eiusdem sanctae Ecclesiae stabiles in

fide (cf 1Col 1,23) catholica paupertatem et humilitatem et sanctum evangelium Domini

nostri Jesu Christi quod firmiter et promisimus, observemus.”3. Além disso, o IV Concílio

de Latrão de 1215 colocou como uma necessidade a normatização dos novos movimentos

religiosos dentro de um dos modelos normativos existentes, a fraternitas foi aos poucos

forçada a assumir uma forma institucionalizada dentro da normativa canônica vigente,

apesar de ter criado um novo modelo, o Apostólico. Consequentemente, Inocêncio III

esforçou-se para que as Ordens mendicantes entrassem licitamente na Igreja4.

Assim, o cardeal Hugolino agia como intermediador dos frades menores perante o

papa. Da mesma forma, atuava e persuadia o movimento Franciscano a mostrar a

disponibilidade à institucionalização, que deveria se enquadrar aos moldes das demais

Ordens religiosas, não perdendo a sua especificidade mendicante. Oficialmente, Hugolino

foi nomeado como “cardeal protetor” pelo papa Honório III no ano de 1219, período na

qual redigiu a Forma vitae para as damianitas, conhecida como Regra Hugoliniana. Antes

de tudo, a presença de Hugolino de Óstia na Ordem Franciscana foi importante e ocupou

3 MENESTÒ, Enrico & BRUFANI, Stefano (org.). Fontes Franciscani. Assis: Porziuncola, 1995, p. 180. 4 BOLTON, B. A Reforma na Idade Média século XII. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 79.

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uma posição central5, principalmente no que se refere às comunidades femininas de

inspiração evangélico-pauperista que não queriam propriedades, mas havia o problema de

garantir a posse da casa em que elas moravam.

Desde o princípio, as damianitas estabeleceram relações intrínsecas com a

fraternitas de Francisco de Assis. Na verdade, a criação de comunidades femininas na

linha dos franciscanos deu-se por uma série de atos do cardeal protetor da Ordem,

Hugolino de Óstia, futuro papa Gregório IX (1227-1241), que almejava a criação da

Segunda Ordem com o objetivo de atender uma necessidade de participação feminina

religiosa na Igreja, ter uma ramificação feminina dentro da Ordem dos frades e também

por interesse político de Inocêncio III (1198-1216). Tendo em vista os interesses acima

citados, não podemos afirmar que Clara foi a fundadora da Segunda Ordem Franciscana

com a sua vestição em 1212 e vale lembrar que só podemos utilizar o termo “Clarissa” a

partir de 1263, data em que o papa Urbano IV (1261-1264) reformulou a Regra de Clara e

estabeleceu uma homogeneização dos conventos de seguimento franciscano com a difusão

da Segunda Regra que foi escrita por ele6.

Enfim, as “Irmãs pobres” possuíam um estreito vínculo com a primeira geração dos

frades. No entanto, o movimento feminino Franciscano, sobretudo, as sorores Minores de

São Damião, igreja doada de Francisco à Clara de Offreduccio em 1212, iniciaram um

processo mais rápido de adequação e enquadramento jurídico aos moldes institucionais

monásticos que a Igreja permitia naquele período.

Assim, a Regra de Hugolino não foi escrita somente por ele, há indicações

históricas de que Frei Felipe Longo, um dos companheiros de Francisco, foi um colaborar

na redação do texto, porque ele era o visitador das Irmãs Pobres. O tempo de uso da Regra

de Hugolino foi de 1219 até 1247, quando foi substituída pela Regra de Inocêncio IV

(1243-1254). Além da “resistência” a imposição da Regra de São Bento e as exigências do

cardeal protetor em relação ao jejum e ao silêncio, Clara e as Irmãs “resistiram” às outras

imposições alheias ao modelo evangélico-pauperista que havia prometido a Francisco. O

objetivo de Hugolino era dar respaldo jurídico às comunidades femininas que estavam

sendo incorporadas ao movimento Franciscano. Embora, não haja nenhum documento

curial enviado a São Damião estabelecendo a Regra Hugoliniana, sabemos que Clara de

Assis utilizou este texto em sua normativa. 5 BOLTON. Op. cit., p. 38. 6 ALBERZONI, Maria Pia. Chiara e il papato. Milão: Edizioni Biblioteca Francescana,1995, p. 18.

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Outra observação importante refere-se ao fato de que há três versões ou edições

desta Regra Hugoliniana: de 1219, de 1238 e de 1245, com pequenas diferenças.

Utilizamos neste texto a tradução em português das Fontes Clarianas7 de José Carlos

Corrêa Pedroso, trata-se da primeira versão da Regra Hugoliniana, que foi enviada ao

mosteiro de Pamplona em 1229 e publicado pela primeira vez por Omaechevarria em

1970, na primeira edição do BAC.

Conforme já mencionamos, em 1219, o cardeal Hugolino, protetor da Ordem

Franciscana, estabeleceu ao mosteiro de São Damião uma Regra nova ou Forma vitae que

recebeu o nome a posteriori de “Constituições Hugolinas”, assim as “Irmãs Pobres” eram

obrigadas a observar a Regra beneditina com alguns acréscimos de Hugolino, o que

provocou novas tensões, por isso Clara pedia constantemente aos papas uma garantia do

“privilégio” de viver na Santa pobreza prometida a Francisco, o privilégio de viver uma

vida sem privilégios, um privilégio que garantia a vida sem garantias8. O mosteiro de São

Damião na qual Clara era abadessa sempre seguiu mais os escritos de Francisco e o

Privilégio da Pobreza do que a Regra de Hugolino ou de Inocêncio IV. Na verdade, não

sabemos até que ponto foi utilizado a Regra de São Bento e de Hugolino em São Damião,

contudo, são textos referências para a elaboração da Regra de Clara em 1253.

O modelo cisterciense influenciou bastante as “Constituições hugolinianas” que aos

poucos serviu de base para a construção de outras Regras para a Ordem de São Damião.

Apesar de o formulário de Hugolino de Óstia não mencionar São Damião de Assis e nem

Santa Maria de Montecelli, mosteiros com trajetória peculiar em relação aos demais,

sabemos que podem ter sido utilizados conjuntamente com as Bulas papais. Neste texto o

nosso objetivo é compreender os principais aspectos e significados que teve a normativa

mencionada para as comunidades femininas, pretendemos examinar como e com quais

elementos elaborou Hugolino de Óstia a sua Regra em 1219.

Outra referência importante é a bula Sicut manifestum est de 17 de setembro de

1228, tradicionalmente chamada de “Privilégio da Pobreza”, que foi promulgada na visita

do papa Gregório IX ao convento de São Damião. A resposta da Carta papal transpareceu a

preocupação de Clara e companheiras com a vontade de manter-se fiel a “Altíssima

pobreza” prometida a Frei Francisco de Assis. Segundo Caroli, uma leitura nupcial da

7 PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. Petrópolis: Vozes, Cefepal, 1994, p. 146-154. 8 BARTOLI, Marco. Clara de Asís. Madri: Editorial Franciscana Aránzazu Oñate (Guipúzcoa), 1992, p. 110-111.

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“Altíssima pobreza” que era típica das Cartas de Clara na qual defendia um propositum de

virgindade que identificava com o seguir “Cristo pobre” revela que a pobreza e a sua

aplicabilidade são as bases do convento de São Damião9. Sem dúvida, a Sicut manifestum

est foi uma bula essencial na qual o papa Gregório IX demonstrou uma atenção

significativa ao caráter evangélico de vida assumido e vivido pelas irmãs do convento de

São Damião em Assis. Posteriormente, a mesma Carta pontifícia foi enviada a outros

conventos de seguimento franciscano, por exemplo, endereçada as irmãs de Santa Maria de

Monteluce e as irmãs de Perugia, confirmando que São Damião não estava em isolamento.

Indubitavelmente, o objetivo de Gregório IX seria a unificação do monaquismo feminino

sob a Regra beneditina com uma ênfase na clausura e com sutilezas jurídicas para a

aquisição de bens móveis.

Na Carta Quo elongati de 1230, Gregório IX acabou estabelecendo uma distinção

entre o monaquismo feminino franciscano e os demais conventos femininos, porque

autorizava a entrada dos frades menores nos conventos em lugares não compreendidos pela

clausura devido a pregação, já os conventos femininos franciscanos só permitiriam a

entrada dos frades com uma autorização especial da Igreja Romana com a função de

dificultar a entrada dos Menores. Em resumo, isso causou uma reação de Clara e suas

irmãs que identificavam laços diretos e particulares com Frei Francisco e com a Ordem dos

Menores, vínculos que provocaram momentos de tensão entre Clara e o papa Gregório IX.

Feito essas considerações passamos a análise da Regra de Hugolino, futuro papa Gregório

IX.

Na introdução da Regra Hugoliniana da versão de 1229, o papa Gregório IX

recorda que quando escreveu a Regula era ainda um cardeal protetor, portanto, estava “em

um posto inferior”. Esta versão sofreu poucas alterações em relação a 1219. Hoje, o

pergaminho original em latim, encontra-se no mosteiro de Santa Maria de Olite, na

Espanha.

Quando nos pedem alguma coisa justa e honesta, tanto a virtude da equidade quanto a boa ordem exigem que, pela solicitude de nosso cargo, façamos que o pedido seja devidamente atendido. Por isso, filhas queridas no Senhor, colocando-nos de acordo, de muito boa vontade, com os vossos justos desejos, houvemos por bem inserir neste documento a

9 CAROLI, Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e biografie di san Francesco d’Assisi. Cronache e altre testimonianze Del primo secolo francescano. Scritti e biografie di santa Chiara d’Assisi. Testi normativi dell’Ordine Francescano Secolare. Padova: Editrici Francescane, 2004, p. 1944.

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Forma e modo de viver que, estando ainda em um cargo inferior, como legado na Toscana e na Lombardia, demos a todas as pobres monjas reclusas, pois queremos que sejam observados inviolável e perpetuamente em vosso mosteiro, e o confirmamos por nossa autoridade apostólica e reforçamos com a garantia deste documento10.

Conforme o trecho acima mencionado do preâmbulo, a Forma de vida das “pobres

monjas reclusas” é viver dentro da Igreja Romana. Além disso, averiguamos que a

fraternidade e pobreza defendidas por Clara ficaram de fora na Regra de 1219. Neste outro

excerto fica mais claro que o principal objetivo era o de regulamentar as Comunidades

femininas dentro da normativa canônica de maneira mais rápida e concisa, sem

preocupação com a identidade franciscana.

Como toda verdadeira Religião e toda instituição aprovada consta de certas regras e medidas, e também de certas leis disciplinares, quem quer que deseje levar uma vida religiosa vai desviar-se do caminho reto se não procurar diligentemente observar uma regra determinada e certa em seu comportamento e uma disciplina em seu modo de viver, por não observar as linhas da retidão.

A pobreza que é um conceito fundamental do movimento Franciscano está

completamente ausente da Forma vitae Hugoliniana, que possui características de regra

mais do que de “Constituições”.

Por isso, queridas filhas no Senhor, como decidistes, por inspiração da graça divina, caminhar pela senda árdua e estreita que leva à vida, e escolhestes levar uma vida pobre para lucrar as riquezas eternas; resolvemos descrever resumidamente para vós a observância e a forma dessa religião, para que cada uma de vós saiba o que fazer e também o que deve evitar, para que nenhuma, dando a desculpa de que não sabia, atreva-se perigosamente a fazer o que está proibido ou não foi concedido.

Apesar de alguns trechos da Forma vitae ou Regra de Hugolino transparecer a ideia

de que as Irmãs escolheram a Regra de São Bento como forma de organizar a vida no

mosteiro em que pertenciam, fica claro em outra parte que era uma decisão do cardeal

protetor em conjunto com o plano político da Igreja Romana como veremos abaixo.

10 Conforme já mencionamos, optamos pela tradução de José Pedroso da Regra de Hugolino da primeira versão. Ver: PEDROSO, José Carlos Corrêa. Fontes Clarianas. Petrópolis: Vozes, Cefepal, 1994, p. 146-154.

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... entregamos-vos a Regra de São Bento, em que se reconhece como norma a perfeição das virtudes e a maior discrição, e que foi recebida desde o início com devoção pelos Santos Padres e aprovada com veneração pela Igreja Romana, para que a observem em tudo que de maneira alguma se comprovar contrário à mesma Forma de vida que Nós lhes damos, e de acordo com a qual decidistes pautar especialmente a vossa vida.

Na Regra Hugoliniana, verificamos uma rigorosidade no tocante à clausura que

diminuirá na normativa de Inocêncio de 1247 e na Regra de Clara de 1253.

... observem esta lei de vida e de disciplina fervorosamente. Pois devem permanecer encerradas todo o tempo de sua vida; e, depois que tiverem entrado no claustro desta religião, assumindo o hábito regular, a nenhuma delas será dada licença ou faculdade de sair jamais daí, a não ser que por acaso algumas sejam transferidas para algum lugar para plantar ou edificar a mesma religião.

Conforme o trecho acima mencionado, essa rigidez da Norma está presente não

somente na clausura. No capítulo quatro aparece também como uma forma de controle da

entrada de noviças que passariam por uma provação de “coisas duras e ásperas”.

Mas a todas as que quiserem abraçar esta Religião e deverem ser admitidas, antes que mudem de hábito e assumam a Religião, serão expostas as coisas duras e ásperas pelas quais se vai a Deus e que terão que observar firmemente de acordo com esta Religião, para que depois não se desculpem com a ignorância.

A divisão em quatorze partes da Regra Hugoliniana foi dada a posteriori., quando

esta Regra foi adotada nos vários mosteiros de seguimento franciscano, a Ordem ainda não

era estabelecida, a Regra de São Francisco é de 1223. Além disso, como vemos neste

excerto abaixo a leitura e o aprendizado eram estimulados nos mosteiros, o que diferencia

de outras normativas religiosas.

E se houver algumas jovens, ou mesmo um pouco maiores, capazes e humildes, a abadessa, se lhe parecer bem, faça com que sejam instruídas nas letras, indicando-lhes uma mestra idônea e discreta.

Em outro ponto observamos que a rigidez não era somente na clausura, mas o

silêncio para a Regra de Hugolino é algo mais rigoroso do que na Regra de Clara. Assim,

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as “esposas de Cristo” não podiam falar livremente para se comunicar com as outras e

existia todo um controle no momento em que se podia falar.

O silêncio contínuo seja constantemente observado por todas, de maneira que não lhes seja permitido falar nem umas com as outras nem com outra pessoa sem licença, com exceção das que tiverem algum outro encargo que não possa ser executado convenientemente em silêncio. Essas poderão falar do que diz respeito a seu ofício ou trabalho, onde, quando e como parecer bem à abadessa. Mas quando alguma pessoa religiosa, secular ou de qualquer dignidade pedir para falar a alguma das senhoras, avise-se primeiro a abadessa. Se ela permitir, vá ao locutório mas tenha sempre pelo menos mais duas consigo, as que forem mandadas pela abadessa, que escutem tudo que lhe for dito ou que ela disser.

Outro aspecto de rigidez normativo está no jejum que é bastante rigoroso segundo o

capítulo sete. O “manjar” mencionado abaixo reporta a palavra “pulmentum” que significa

um prato de carne ou sopa.

Para jejuar observe-se esta norma: em todo tempo devem jejuar todos os dias, abstendo-se nas quartas e sextas-feiras da quaresma também do manjar e do vinho, a não ser que tenham que celebrar nesses dias a festa principal de algum santo. Nesses dias, quartas e sexta-feiras, sirvam-se na refeição das Irmãs, se houver, frutas, frutos da terra ou verduras cruas. E jejuem a pão e água quatro dias por semana, e na quaresma de São Martinho, três dias.

Em relação às vestes das Irmãs Pobres, não há uma definição de cor, mas

provavelmente era pano de cor escura a vestimenta utilizada, porque não havia uma

identidade formada naquele momento, assim como a institucionalização, o hábito estava

em construção.

Quanto às roupas, observe-se o seguinte: cada uma tenha duas túnicas e um manto, além do cilício ou estamenha, se o tiverem, ou do saco. Tenham também escapulários de pano leve e religioso, ou de estamenha, se quiserem, de largura e comprimento adequado, conforme o exigirem a condição e a estatura de cada uma; vistam-nos quando estiverem trabalhando ou fazendo alguma coisa que não lhes permita usar adequadamente o manto. [...] Cortem seu cabelo de maneira redonda; e nenhuma seja tonsurada de outra maneira se isso não for exigido por uma evidente enfermidade corporal.

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Às vezes, as palavras “cilício, estamenha e saco” se equivalem no latim medieval.

Essas três palavras referem-se aos panos grosseiros, roupa comum aos pobres e usado por

religiosos, sendo assim, ainda não havia um modelo definido.

Outra parte da Regra de Hugolino bastante inflexivo refere-se à entrada de pessoas

no mosteiro, seja religiosos ou leigos.

Quanto à entrada de pessoas no mosteiro, preceituamos firme e rigorosamente que jamais alguma abadessa ou suas irmãs permitam entrar no mosteiro alguma pessoa religiosa ou secular, ou de qualquer dignidade. E isso não seja absolutamente lícito a não ser para alguém e para aquilo que tiver recebido, concessão do Sumo Pontífice, ou nossa, ou, depois de nós, por aquele que, como nós, tiver recebido especialmente do papa o cuidado e solicitude especial de vós. Pois, quando morrer o cardeal ou bispo da Igreja Romana que for especialmente encarregado de vós, devem cuidar solicitadamente de pedir que sempre seja nomeado pelo senhor Papa outro de seus irmãos. Ao qual vós deveis recorrer especialmente quando precisardes, através do visitador ou de um mensageiro próprio. Excetuam-se dessa lei de ingresso aqueles que a necessidade exigir que entrem para fazer algum trabalho necessário.

No capítulo dez da Regra de 1219, a rigorosidade quanto à entrada de pessoas no

mosteiro é bastante acentuada conforme mencionado. Ademais, a figura do visitador e sua

função revela um plano político do cardeal protetor para os mosteiros em que era

responsável.

Cuide a abadessa que não se esconda alguma coisa do visitador, por ela ou pelas outras senhoras, sobre o estado do mosteiro na observância da Religião na unidade do amor mútuo. Pois isso seria um mau indício, uma ofensa a ser gravemente punida. Aliás, queremos e mandamos que sugiram diligentemente ao visitador, em público ou em particular, como for melhor, as coisas que, de acordo com a sua forma de vida, tiverem que ser estabelecidas ou corrigidas. Mas as que agirem diferentemente, a abadessa ou outras, sejam condignamente punidas, como for conveniente.

Por último, seguindo os postulados de Herbert Grundmann11, não podíamos deixar

de mencionar o quanto a Forma vitae que entendemos por Regra, principalmente porque as

características emanadas nas fórmulas jurídicas de Hugolino de 1219 demonstra isso, uma

adequação aos preceitos canônicos, inclusive do IV Concílio de Latrão. Para finalizar, a

fórmula de vida que é um recurso retoricamente elaborado e utilizado em larga escala pela 11 GRUNDMANN, H. Moviment religiosi nel Medioevo. Ricerche sui nessi storici tra l'eresia, gli Ordini mendicanti e il movimento religioso femminile nel XII e XIII secolo e sulle origini storiche della mistica tedesca. Bologna, 1974.

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instituição eclesiástica para regulamentar as Ordens Religiosas regulares. A Regra

enquanto gênero retórico situa-se no contexto das outras Regras monásticas e das

Constituições de outros institutos religiosos, realiza a função de “lei constitutiva”. É o

resultado da autenticação dada pela Igreja (elemento jurídico) mais o elemento espiritual

(representado pela experiência de vida da comunidade religiosa regular).

Queremos e ordenamos que esta fórmula de vida, aqui escrita de maneira breve, seja observada por todas, em toda parte, uniformemente. De modo que a unidade de vida e os costumes conformes unam e ajuntem no vínculo da caridade as que estão separadas pela distância dos lugares.

De 1220 a 1230, as relações entre Clara e o papa Gregório IX foram tensas, porque

Clara insistia nos laços diretos com os frades menores, com a memória de Francisco e com

o “Privilégio da Pobreza” que foi dada ao mosteiro de São Damião. Já Gregório IX tinha

um projeto político para o monaquismo feminino com a posse de bens e a clausura de

acordo com a influência beneditina e cisterciense, além de almejar uma forte distinção

entre a Ordem masculina dos frades menores e a Ordem feminina de São Damião. Enfim,

como resposta as prerrogativas de Gregório IX, Clara e as Irmãs exerceram um

afrouxamento das suas relações com o papa nos anos trinta do século XIII que percebemos

através das Cartas de Clara e de suas irmãs, uma forma de demonstrar a não neutralidade e

“resistência” em relação às medidas impostas a elas12.

Em suma, a Regra Hugoliniana teve um tempo relativamente curto de duração nos

conventos femininos de inspiração evangélico-pauperista, sendo depois substituído

paulatinamente pela Regra de Inocêncio IV de 1247. A rigidez de Hugolino e preceitos

incomuns ao seguimento franciscano feminino provocaram insatisfações não somente ao

mosteiro de São Damião, conforme atestamos através das Cartas e de inúmeros pedidos

para garantir o “Privilégio da pobreza” e uma ligação mais estreita com os Menores. A

Regra de Hugolino representa um enquadramento rápido do seguimento feminino, como

resultado de um projeto político da Igreja, que destoava da interpretação da pobreza de

Clara de Assis e demais companheiras. Por isso, tantos pedidos de aproximação com os

frades menores que eram negados pela Igreja ou contornados de maneira que não atendia

as demandas dos mosteiros. Após a Regra bulada de 1223, essas Cartas das damianitas se

12 MERLO, G. Em nome de São Francisco. História dos Frades Menores e do franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes; FFB, 2005, p. 96.

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multiplicaram ainda mais e as bulas papais também, isso por si só, revela uma insatisfação

e “resistência” ao modelo não franciscano que era o tempo todo imposto pela Cúria

Romana. A ideia de Hugolino era fazer uma Regra para toda a Ordem, o problema

principal configurava no fato de que os mosteiros eram independentes uns dos outros e

seguiam regras diferentes, além disso, o modelo que ele queria para a sua jurisdição

organizacional destoava fortemente do modelo franciscano, o que evidentemente provocou

conflitos e não somente com o mosteiro de Clara de Assis.

REFERÊNCIAS:

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